Uma nota só: sobre diversidade, vozes e caricaturas na ficção brasileira contemporânea

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Sobre a noção de diversidade no debate crítico contemporâneo1 Miguel Conde Para quem pretende deixar de lado os estudos de caso e pensar de modo mais abrangente a literatura brasileira contemporânea – esforço que por si só parece autorizar os escritores a abrirem seu reservatório de má-vontade com a crítica e sua “mania” classificatória –, o termo “diversidade” é hoje um ponto de partida incontornável, com vários significados sobrepostos. Em primeiro lugar, é como que um registro do óbvio, reconhecendo a inegável variedade de estilos, temas e filiações da produção literária. Em segundo, funciona como julgamento em suspenso, medida cautelar imposta pelos críticos a si mesmos: cuidado para não rotular apressadamente aquilo que sequer podemos enxergar direito, pois está ainda próximo demais. E, finalmente, serve de atalho interpretativo, inscrevendo os estudos sobre nossas letras na discussão mais ampla sobre a pós-modernidade, o que pode acabar transformando-o numa pista falsa, encobrindo as especificidades dos contextos particulares. O termo “diversidade” supõe, de maneira implícita, um autodiagnóstico. Ele exprime uma desconfiança da própria crítica em relação a suas catalogações, à pertinência dos rótulos geracionais e dos grandes panoramas da história literária tradicional, com seus períodos e movimentos – cujos contornos claros e bem definidos são muitas vezes delimitados à custa de uma planificação forçada de livros e autores, quando não da exclusão daqueles que não se ajustam bem ao grande quadro explicativo. Quem fala em diversidade tenta, portanto, afugentar, logo de saída, a tentação do reducionismo, reconhecendo aquilo que a periodização tem de

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Publicado em versão abreviada em http://www.goethe.de/ins/br/lp/kul/dub/lit/pt11542405.htm.

potencialmente violento e desonesto. O problema é que o termo, em seu uso atual, funciona ele próprio como eixo de grandes diagnósticos panorâmicos sobre o presente – é uma evocação imediata de uma infinidade de clichês tranquilizadores a respeito do ecletismo estético ou do ativismo identitário pósmodernos –, o que pode fazer com que o crítico escape aqui de rotular o literário apenas para inscrevê-lo, mais adiante, num outro rótulo mais amplo a respeito de nosso tempo. O resultado da operação crítica, então, vai pouco além da confirmação de diagnósticos prévios. A cautela inicial resulta assim numa duplicação estéril, cujo efeito mais visível é a redução da literatura a um papel ilustrativo, sem especificidade. Espelhamento semelhante ao que ocorre quando o crítico aborda as obras literárias por meio de agrupamentos temáticos e estilísticos que exemplificam sua própria produção teórica, ou então reproduzem um mapeamento já indicado pelos escritores, caso em que resta a ele a escolha entre o papel de cartógrafo imparcial e o de porta-voz de uma determinada “facção”.

O final dos 1990 e o início dos 2000 demarcam um momento em que uma série de novos autores fazem uma entrada em cena coletiva no meio literário brasileiro: multiplicam-se revistas virtuais (como CardosOnline e Paralelos), a leitura e citação mútua em blogs, as antologias geracionais (os dois volumes da Geração 90 organizados por Nelson de Oliveira, mas também Prosas Cariocas, Paralelos e todo tipo de volume temático reunindo novos autores, de contos inspirados em pinturas a histórias em torno da obra de Renato Russo). E, finalmente, os prêmios, festivais literários e em menor escala os seminários de crítica. Os esforços da crítica (raros e isolados, em comparação com a multiplicação dos espaços de prestígio e difusão) para entender os recémchegados são vistos com desconfiança pelos próprios, que apesar da apresentação em grupo são ciosos da própria singularidade. É que os agrupamentos dessa entrada em cena coletiva resultam mais de uma estratégia

editorial, às vezes reforçada por laços de amizade, do que de um programa estético comum. É diante desse contexto, e dos impasses com que se depara na reflexão sobre sua atividade, que a crítica dispõe, como último recurso, de um diagnóstico que já parece pronto: cena pós-moderna, logo definida com o adjetivo-fetiche “plural”, em que as grandes narrativas de síntese (sociológicas ou ficcionais) dão lugar a uma infinidade de discursos que fazem da própria singularidade a razão de sua enunciação. À sugestão de um vínculo específico entre diversidade literária e pósmodernidade, e mesmo à consagração da diversidade como categoria central de análise do contemporâneo, só pode corresponder, no entanto, uma subscrição implícita daquilo que desde o início se procurava evitar: a velha noção de história literária como sucessão de estilos monolíticos. Pois, se a diversidade é a marca específica do contemporâneo, deve-se concluir por contraste que os momentos anteriores definiam-se por sua uniformidade. Aqui se poderia fazer um recuo para que se reconheça, antes, a diversidade como característica própria do moderno, entendido como período de crise e abandono da concepção neoclássica da arte como campo constituído pela aplicação habilidosa de regras gerais. Assim talvez seja possível recolocar a discussão para propor que o que vai deixando de existir não é uma hipotética uniformidade de prosas-padrão, supostamente vigentes em momentos anteriores, mas uma certa concepção da relação entre arte e verdade, que, em resposta a uma indefinição própria do campo estético, procurava atrelar o sentido da atividade literária a categorias de algum modo mais estáveis (regradas), como as de nação e história. Essa transformação tem consequências importantes para a cultura brasileira, porque o valor de nossa literatura foi

sempre tão pensado em relação a alguma outra coisa, subordinado a um índice de verdade ou medida de utilidade. Entre nós, portanto, a dissolução de velhas demarcações do valor ou do propósito da atividade literária tampouco se ajusta simplesmente às generalizações atópicas sobre uma crise global das metanarrativas ou das identidades nacionais, mas possui uma história particular. Menos causa da diversidade contemporânea do que um contexto que ajuda a moldar seu perfil, esse quadro vai redefinindo interesses e prioridades. Os anos 1990 e 2000 podem ser pensados como décadas em que fazer literatura no Brasil é confrontar-se com uma falta de medidas: por um lado, movimentarse com liberdade por um campo vasto, sem limites claros; por outro, procurar aflitivamente espaço para algo que já não tem um lugar bem demarcado. A ausência de balizas favorece a prática de escritas duplicadas, literatura e pensamento sobre literatura, que não necessariamente se esgotam num jogo de espelhos insular, mas podem exprimir um esforço político, no sentido de busca de um lugar. A reflexão se impõe também como exigência de mercado. Por contraditório que possa parecer, os mesmos escritores que se queixam da escassez de leitores se deparam com um número sem precedentes de oportunidades para discorrer sobre sua obra em palestras, oficinas, feiras literárias. Todo autor hoje, a não ser que recuse a tarefa cada vez mais obrigatória de vender seu peixe aos leitores em potencial, é por definição ao mesmo tempo um mercante e um teórico de si mesmo. Como já se via em Oito e meio, de Fellini, o resultado pode ser paralisante, e não à toa o filme serve de modelo para um romance recente como O Dia Mastroianni, de João Paulo Cuenca. A autocrítica imposta pela dissolução de antigos pontos de referência, a mirada teorizante infiltrada na ficção dos escritores com formação acadêmica, cada vez mais numerosos, as autodefinições feitas em entrevistas e seminários, tudo isso

contribui para que os livros cheguem ao crítico já interpretados, ou ao menos comentados, de modo mais ou menos explícito, pelos próprios autores. Nesse contexto, o risco que se apresenta é o de redução do crítico ao papel de validador do discurso alheio, logo transformado também em promotor cujo êxito parece depender da popularidade de seu “produto”. É o que se vê nos textos críticos que recolhem “pistas” arremessadas pelo autor para organizá-las num discurso articulado, escoltadas por notas de rodapé. Endosso por meio do qual o crítico assume o posto de “sumo sacerdote” do culto “de certo autor ou do grupo a que este se acha vinculado”2.

Reflexão e comércio se dão, no entanto, muitas vezes por contraposição, indicando rivalidades e travando alianças É assim, por exemplo, que Luiz Ruffato alfineta os escritores de classe média que “parecem romanticamente fascinados pela figura do bandido ou do marginal e nunca se interessam pelo personagem sem glamour do trabalhador urbano”, observação feita em favor de seu próprio projeto ficcional e endossada por Fabrício Carpinejar, para quem “talvez seja uma maldição da literatura contemporânea de mitificar o desvio e favorecer o excluído. Parece que a classe média e trabalhadora pouco existe, não rende impacto imediato”. Da mesma maneira, em sua atividade como resenhista Marcelo Moutinho critica a literatura “realista e de cunho social” que achata nuances e termina por sucumbir “às grades invisíveis do panfletarismo”, construindo, por oposição, um pensamento em que se esboça uma estética do afeto e do banal que pode ser encontrada em sua própria prática ficcional. Já a constatação de “que a literatura brasileira quem faz é a gente. Ela passa a ser também o meu livro” não impede Bernardo Carvalho de se dizer “solitário”

A observação de Flora Süssekind, embora se aplique aqui, é na verdade dirigida ao que ela chama de santificação de autores que tiveram mortes prematuras, ou cuja biografia inclua a experiência da “pobreza, exclusão social ou vinculação a espaço periférico”. Ver SÜSSEKIND, Flora. “Hagiografias”. In: Inimigo rumor, nº 20. São Paulo e Rio de Janeiro: Cosac Naify e 7Letras, 2008. 2

num meio em que a ficção teria quase sempre “um pé no real”, e no qual seria necessário abrir “à força” (grifo meu) espaço para um outro tipo de texto. A sugestão muito difundida de um ecletismo convivial, sem atritos, parece por isso um desdobramento especialmente problemático do tropo da diversidade, pois negligencia um pressuposto de muitos desses livros – a interrogação crítica sobre o lugar da escrita de ficção no Brasil contemporâneo, questionamento que dá a essa pluralidade, muitas vezes, um sentido conflitivo. Aqui, a percepção de algo como a recorrência de uma inflexão caricatural da escrita talvez seja um contraponto possível ao uso genérico da ideia de diversidade, substituindo a hipótese de uma variedade meio solipsista pelo reconhecimento da curiosa acentuação de contrastes que nos últimos anos tem demarcado, também nos textos (e não só como "metadiscurso" autoral), as diferenças de nosso campo literário. Trata-se então de pensar um desejo e uma exploração do dissenso em lugar do mero inventário de idiossincracias, para que se possa identificar em certa radicalidade da figuração uma forma propriamente política da escrita, e não mais o álbum de imagens de um presente definido preguiçosamente pela via do exotismo. Em algumas ficções nacionais dos anos 1990 e 2000, há uma circunscrição ao mesmo tempo tão estreita e insistente do espectro afetivo e do universo temático que nelas a autoria parece de fato ser entendida como uma espécie de partidarismo. Fazendo uma comparação meio forçada, mas que serve à explicação, pode-se dizer que, assim como na medicina o estreitamento do escopo clínico é acompanhado por um aprofundamento do saber segmentado, certos escritores parecem ganhar em desenvoltura conforme se afunilam seus nichos de atuação. Numa inversão de método, porém, o olhar parcial torna-se para eles uma condição para a consideração do conjunto. Tal estreitamento produz uma espécie de hipertrofia, em que um aspecto da vida humana é de tal

modo ampliado que passa a representá-la por inteiro, fazendo da escrita menos uma exploração de variações da experiência do que a reiteração enfática de um mesmo registro: literaturas de uma nota só. Esse procedimento se assemelha talvez à atividade dos caricaturistas, que, ao deformarem a fisionomia de seus objetos, procuram relevar alguns poucos traços fundamentais, os quais, assim sublinhados, definem a feição geral. O caricatural nasce de uma deformação deliberada (não aleatória) que, por um lado, faz com que a caricatura não coincida por inteiro com aquilo que representa, mas que, ao mesmo tempo, é o meio pelo qual ela evidencia algo a respeito desse objeto. Os primeiros teóricos da caricatura entenderam esse procedimento principalmente como uma simplificação, evocação da fisionomia com um mínimo de traços. Economia de meios que situaria a caricatura como arte menor dentro da tradição pictórica ocidental. Essa depreciação tem no entanto um sentido liberador, pois sobre a caricatura não pesam as mesmas exigências e interdições a que a pintura e a escultura estão submetidas. Ela se torna, então, terreno para experimentação com expressões humanas pouco exploradas, que ampliam o repertório expressivo da arte ocidental.3

A escolha de um registro como que desbastado de tudo aquilo que é acessório se traduz numa escrita mais afeita à intransigência do que à conciliação, às cores fortes do que ao meio tom. A obra de André Sant'Anna talvez seja exemplar, nesse sentido, em sua recusa enfática da nuance e do meio termo, em sua forma peculiar de oscilação entre extremos que vão do automatismo banal de Sexo aos momentos mais raros de contos como Bitches Brew ou Pro Beleléu, em que o tédio da repetição dá lugar a uma intensidade emocional que desarticula

Ver GOMBRICH, E.H. “O experimento da caricatura”. In: Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. Martins Fontes: São Paulo, 2007. 3

o discurso e impõe uma adição sucessiva de instantâneos ligados em "e". Daí, ainda, a inadequação da ideia de delicadeza tão frequentemente associada à escrita de Adriana Lisboa, onde há pelo contrário uma notável sujeição de objetos diversos à equalização de um mesmo olhar contemplativo. Algo semelhante ao que poderia ser dito da permanente comoção que atravessa os contos de João Anzanello Carrascoza, cuja reiteração insistente acaba por sugerir uma intenção apostólica, como se a literatura se tornasse uma forma de catequese da sensibilidade do leitor. Procedimento que se explicita, em outro registro, nas constantes réplicas e interpelações enfáticas dos textos de Marcelino Freire. Parece haver aí um desejo de intervenção instantânea sobre a experiência de mundo do leitor, que em vez de ser solicitada e questionada progressivamente pela leitura é convocada diretamente pelo tom ostensivo da voz narrativa. Essa reiteração impõe de maneira intransigente uma espécie de consonância, na qual o jogo imaginativo e provisório da leitura é regulado pela vivência imediata de uma certa inflexão. Se a recorrência desse primitivismo emocional, cujo método próprio é a deformação, permite questionar o aparente solipsismo das escritas contemporâneas, ele por outro lado impõe ao crítico a tarefa (tantas vezes menosprezada) de se voltar em seus comentários sobre a própria experiência de leitura. Enquanto a diversidade em sua formulação genérica tem servido para desautorizar as tentativas de agrupamento e comparação, na escrita crítica é a diversidade das experiências de leitura individuais que tem sido muitas vezes descartada em favor da mediania homogênea de discursos teóricos ready-made. Em suas leituras “diversas”, a crítica encontra com frequência apenas o mesmo (rizomas, signos abertos, sujeitos fraturados etc. etc.), pois do texto literário

espera-se apenas que se ajuste docilmente a uma ou outra categoria teórica definida de antemão. Num panorama de ficções disformes, cabe à crítica confrontar-se com a própria atrofia de sua sensibilidade. Não para realizar um retorno ingênuo à ideia de crítica como exercício do gosto cultivado, mas como forma de recuperar o papel reflexivo que lhe cabe – como um esforço necessário contra certa prática que ameaça reduzi-la a uma forma particularmente obscura e irrelevante de tipologia cultural.

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