Uma nova forma de sociabilidade é possível.

July 22, 2017 | Autor: I. Costa | Categoria: Historia, Socialismo, Marxismo, Historia Económica
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UMA NOVA FORMA DE SOCIABILIDADE É POSSÍVEL


José Flávio Motta *


Iraci del Nero da Costa **



A derrocada do socialismo real, a globalização e a preeminência da
perspectiva econômica neoliberal proporcionou a reafirmação de uma visão
fatalista quanto ao futuro da sociabilidade humana, qual seja a da crença
na dominância absoluta e imorredoura do capitalismo e, consequentemente, da
economia de mercado.
Um analista chegou mesmo a acreditar que havíamos chegado ao fim da
história; afirmação logo reconhecida como incorreta pela maioria dos
cientistas sociais e reconsiderada pelo próprio proponente da ideia,
Francis Fukuyama, em trabalho publicado em 2012 (FUKUYAMA, Francis. The
Future of History. Foreign Affairs. Volume 91, n. 1. Jan/Fev 2012).
Mesmo assim, há pensadores de estofo que ainda aludem à dominância do
capital; diz Slavoj Zizek: "É fácil rir da noção de fim da história de
Fukuyama, mas o ethos dominante hoje é 'fukuyamiano': o capitalismo
democrático-liberal é aceito como a fórmula da melhor sociedade possível
que finalmente se encontrou – só resta torná-lo mais justo, mais tolerante
etc. A única pergunta verdadeira hoje é: endossamos essa 'naturalização' do
capitalismo ou o capitalismo global contemporâneo contém antagonismos
suficientemente fortes para impedir sua reprodução indefinida?" (ZIZEK,
Slavoj. Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 416).
Assim, muitos críticos da desigualdade e da exclusão próprias do
capitalismo concebem o devir da humanidade ocorrendo em meio a um processo
que, aparadas inevitáveis mas superáveis arestas, apresenta-se como
eminentemente natural. De fato, este "aparar de arestas" põe-se como marco
a delimitar a extensão das críticas à economia de mercado, as quais têm
assumido um caráter "conciliatório". Em suma, em que pesem as disparidades
que apartam algumas das posturas críticas com respeito ao capitalismo em
seus moldes atuais, elas se aproximam em um aspecto crucial. De forma mais
ou menos relevante, "por bem ou por mal", todas preveem soluções ditas de
mercado; ao assumirem tal "inevitabilidade" fazem uma iniludível concessão
ao neoliberalismo. Ora, a nosso ver, há que pôr em questão esse traço
fatalista que induz muitos estudiosos a aceitarem uma espécie de "mercado
light", com respeito ao qual é impossível distinguir a efetiva superação do
capitalismo da extrema flexibilidade característica desse modo de produção.

Para nós, o capitalismo representa a forma superior e derradeira da
existência natural da sociabilidade humana. A consideramos natural porque
até então a postura dos homens marcou-se pela mera acomodação de cunho
imediatista, ainda que revolucionária, frente às circunstâncias com as
quais se defrontaram.[1] Ademais, enquanto a sociabilidade humana mantiver-
se restrita a essa expressão natural dar-se-á, inevitavelmente, a re-
produção automática do capitalismo.
Contudo, a ação da consciência – tornada possível como demonstrado por
Karl Marx pela própria sociedade capitalista – tem o poder de acarretar a
ruptura do aludido movimento de re-produção. A partir daí, abrir-se-ia a
possibilidade para uma etapa distinta, diríamos mesmo antinatural, em que a
sociabilidade humana ver-se-ia moldada conscientemente pelo homem e por ele
seria sustentada: é o fim da história natural, o início da história posta e
sustentada pelo homem. É evidente que nada garante, a priori, que se
efetive essa sociedade fruto da ação consciente do ser humano. Exatamente
porque não se porá "naturalmente" é que ela se apresenta como mera
possibilidade. Todavia, das enormes dificuldades que ante ela se erguem não
decorre a necessidade de descartar essa possibilidade in limine, mediante a
adoção de soluções mais fáceis, "de mercado", com o que o ponto culminante
da história "natural" do homem tende a tornar-se, de fato, o ponto final de
sua história.
Saliente-se, por fim, que não advogamos, teimosamente, a volta ao
experimento do socialismo real. Estamos afirmando ser possível a ação
consciente, "não natural", do homem enquanto sujeito da história.
Contemplemos, pois, esta alternativa ao que se poderia chamar de
onipotência do mercado.
Antes do mais, como sabido, uma vez superado o capitalismo a
mercadoria deixa de existir como a conhecemos hoje. Os bens deixarão, pois,
de ser valores de troca e limitar-se-ão à condição de valores para o uso.
Apesar disso, permanecerão problemas econômicos afetos à alocação dos
recursos e dos fatores de produção, às técnicas produtivas e à
produtividade, assim como os vinculados à distribuição dos resultados da
produção. Trata-se, pois, de uma situação na qual a vida econômica ver-se-á
absolutamente imersa (esgotar-se-á) na produção física de bens e serviços e
na distribuição dos seus resultados. Para dar conta de tais problemas
necessitar-se-á, portanto, de uma "engenharia econômica" que não se
confunde com a(s) engenharia(s) de hoje, nem com a administração como a
conhecemos, nem com a economia como a praticamos nos dias correntes. A essa
nova engenharia cumprirá estabelecer as relações que vincularão a produção
física com os recursos e as técnicas disponíveis e com as demandas de
caráter individual e social.
Tais soluções, frisemos novamente, contrariamente ao que ocorre no
âmbito da sociedade capitalista, terão de ser formuladas conscientemente e,
necessariamente, sua formulação terá de anteceder sua aplicação efetiva.
Ademais, uma vez que estamos a tratar de uma nova forma de sociabilidade a
ser sustentada pelo homem, cumpre lembrar que tal sustentação só será
garantida se forem obedecidas duas condições essenciais e sem as quais,
cremos, é impossível pensar-se numa sociedade "pós-capitalista"
autossustentável. Em primeiro, considerando que terá de haver livre
assentimento com respeito à nova forma de sociabilidade, é indispensável
uma ambiência democrática, vale dizer, a democracia e os direitos que
expressam a cidadania têm de prevalecer, absoluta e irrestritamente, e a
estes elementos, obviamente, há de estar aliado o maior grau possível de
liberdade pessoal e coletiva. De outra parte, as vontades individuais
desenvolvidas em tal ambiência devem associar-se livremente de sorte a
chegar-se à organização necessária àquela sustentação. Liberdade e
associação definem-se, pois, não só como metas desejáveis por si, mas, e
sobretudo, como elementos imanentes à assim chamada sociabilidade "pós-
capitalista" ou socialista, caso se queira.
Se não forem estabelecidas conscientemente alternativas às soluções
derivadas do funcionamento automático do capital, a tentativa de se
construir uma sociedade de corte socialista poderá terminar em mera
acumulação ampliada de ineficiência econômica, imposições autoritárias e
dirigismo burocrático. Descontados os horrores que o cercaram e outros
fatores que o condicionaram, não teria sido esta a experiência vivenciada
pelo fracassado socialismo real? E a aventura cubana, ainda que se tenha
defrontado com o brutal cerco imposto pelos Estados Unidos, não estaria a
conhecer, por causa de suas próprias mazelas, um fim semelhante?
Mas este desenlace melancólico da experiência socialista conduzida de
maneira puramente empírica não é o único possível. Poderão, os socialistas,
ainda, pretender "parasitar" o capitalismo, cobrando da sociedade, com
incidência particularmente forte sobre o capital, um "tributo" que
chamaríamos de "taxa de garantia do direito de existir" cuja destinação
seria atender aos menos privilegiados. Não é deste feitio a solução que
tentam implementar na Europa alguns partidos de extração social-democrata
ou comunista? Como é patente não se pode falar, neste caso, em sociedade
"pós-capitalista", pois, a "solução" aventada e os intentos aludidos não
pretendem alcançá-la e limitam-se, tão somente, a aceitar a perpetuação de
um "capitalismo não-raivoso". Quanto a este tópico, escreveu-se já há
alguns anos: "Espremida entre uma base social cambiante e um horizonte
político em contração, a social-democracia parece ter perdido sua bússola.
... Houve época, nos primeiros anos da Segunda Internacional, em que ela
orientou sua ação para a superação do capitalismo. Empenhou-se depois por
reformas parciais, consideradas passos gradativos rumo ao socialismo.
Finalmente, contentou-se com o bem-estar social e o pleno emprego dentro do
capitalismo. Se ela admitir agora uma diminuição do bem-estar e desistir do
pleno emprego, em que tipo de movimento vai se transformar?" (ANDERSON,
Perry. Introdução. In: ANDERSON, Perry & CAMILLER, Patrick. Um mapa da
esquerda na Europa Ocidental. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 9-31).
Outra possibilidade colocada no mesmo plano consubstanciar-se-ia na
geração de bolsões controlados de capitalismo que serviriam para
complementar uma "produção de tipo socialista" não muito bem definida.
Neste caso gerar-se-ia, em verdadeiros "enclaves socioeconômicos", uma
espécie de capitalismo enclausurado, "enjaulado" ou domado e manipulável de
sorte a conformar-se às necessidades políticas e econômicas de uma
sociedade "socialista" inclusiva. Seria este o caso da China dos dias
correntes? Aparentemente sim, embora as atitudes e resoluções de caráter
econômico e político adotadas pelos dirigentes chineses aproximem-se da
instituição de uma forma de capitalismo capitaneado por um partido político
único. De toda sorte, o rumo tomado pelos dirigentes chineses parece
decorrer de três fatores: um externo, a globalização, e dois outros de
cunho interno intimamente relacionados quais sejam, a necessidade de ser
gerado o número necessário de postos de trabalho para garantir o prometido
pleno emprego de sua imensa força de trabalho e, por fim, o receio das
reações políticas da massa de sua população caso o compromisso supracitado
venha a ser descumprido. Assim, as práticas acima delineadas aproximam-se
mais de uma acomodação às condições internas e de uma concessão à
globalização do que de uma solução desejada, planejada e perseguida.
Em suma, e voltando ao eixo central deste texto, ao proporem uma nova
forma de sociabilidade, os socialistas e comunistas clássicos prenderam-se,
basicamente, à questão da distribuição do produto deixando de lado a
discussão das formas a adotar para se efetuar a alocação de recursos e
fatores e para se promover a produção. Neste sentido pode-se afirmar que as
propostas das esquerdas cingiram-se à apresentação de formas mais equânimes
de se distribuir a produção efetuada, não podendo ser vistas, portanto,
como soluções econômicas integradas e orgânicas, pois lhes faltou,
justamente, uma vertente essencial, qual seja a concernente à produção
propriamente dita, a qual, como tudo o mais, é automática e imediatamente
resolvida, no capitalismo, pelo funcionamento da "lei do valor". Na
eventual sociedade "pós-capitalista" não se dará o mesmo. Ademais, os
paradigmas empiricamente adotados pelas nações do Leste Europeu que
conheceram o socialismo real e que se encontravam calcados, sobretudo, na
experiência proporcionada pela Revolução Industrial e nas técnicas e
métodos adotados pelos países ocidentais na primeira metade do século XX
mostraram-se absolutamente insuficientes para promover um crescimento
econômico harmônico, consistente e autossustentável. Por outro lado, o
asfixiante e totalitário sistema político então vigente tornou o assim
chamado socialismo real absolutamente inaceitável pelas populações e nações
por ele alcançadas. Destarte, de "positivo", as aludidas sociedades do
Leste Europeu conheceram, tão só, uma política de pleno emprego que
esboroou e práticas assistencialistas que foram descontinuadas.
Ora, se pensarmos uma sociedade na qual se deseje ver promovida, sem
nenhuma mediação, a distribuição da produção de acordo com as necessidades
de cada um de seus integrantes (e é isto que os socialistas e comunistas
alegam querer), seremos obrigados a admitir que seus pressupostos são: 1)
tal sociedade tem de se erigir com base na negação da propriedade privada
sobre os meios de produção, já que não pode haver, por hipótese, qualquer
mediação entre a produção de bens e serviços e sua distribuição; 2) essa
sociedade tem de ser "pensada", projetada, antes de existir concretamente,
pois, como vimos, a natureza é incapaz de instituí-la, de produzi-la;
aliás, pelo contrário, o que se produziu "naturalmente" foi justamente a
propriedade privada sobre os meios de produção, óbice maior à instituição
da aludida sociedade almejada pelos socialistas e comunistas; 3) como
visto, tal sociedade não é um produto da natureza, mas algo antinatural,
decorrente da vontade dos homens (da consciência); não traz em si,
portanto, os elementos necessários à sua reprodução (re-posição), pois,
"colocada" (posta) pela consciência, por ela terá de ser re-colocada,
cabendo a ela, portanto, sustentá-la. Destarte, tanto sua existência como
sua persistência (subsistência) derivarão da vontade dos homens, de sua
tensão em mantê-la. Não há, portanto, repisemos, nenhuma razão de ordem
natural para que ela venha a existir ou permaneça existindo.
Cumpre notar por fim que, na ausência de controles automáticos, a vida
econômica de tal sociedade terá de ser gerida pela anunciada "engenharia
econômica" a qual, até o momento, nem sequer foi esboçada.


* Professor Livre-docente da Universidade de São Paulo.
** Professor Livre-docente aposentado da Universidade de São Paulo.

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[1] Como asseveram vários autores marxistas, os grupos ou classes sociais
que protagonizaram os movimentos mediante os quais foram gerados os
distintos modos de produção existentes até os dias atuais – incluído neste
rol o capitalismo e excluído o "socialismo real" que não foi além de um
dirigismo estatal autoritário – apenas apegaram-se a seus interesses
socioeconômicos imediatos e os impuseram a todos que compunham a comunidade
na qual estavam inseridos.
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