Uma outra dimensão: o cinema 3D e sua efemeridade

July 8, 2017 | Autor: Gabriel Coêlho | Categoria: 3D Cinema, Mídia, Espectador, Psicologia
Share Embed


Descrição do Produto

Uma outra dimensão: o cinema 3D e sua efemeridade From another angle: 3D cinema and its temporality

Gabriel Coêlho1

Resumo: Este artigo pretende transcorrer sobre as principais problemáticas do cinema 3D como uma instituição midiática que, desde sua retomada com o sucesso do filme Avatar (James Cameron, 2009), procura tornar-se padrão no circuito comercial cinematográfico e, sustentando-se em teorias do cinema e pesquisas na área da comunicação, preconizar seu fracasso nessa jornada. Palavras-chave: cinema 3D, espectador, mídia, psicologia.

Abstract: This article intends to take a look at some of the main issues of 3D cinema as a midiatic institution that, since the rise of Avatar (James Cameron, 2009), tries to become standard in the commercial film circuit and, taking as a starting point film theories and researches in the field of Communication, to profess its failure in this journey. Key-words: 3D cinema, spectator, media, psychology.

1

Graduando do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Pernambuco.

A curiosidade pela representação do real e, com isso, pelas inovações técnicas não é (e nunca foi) restrita ao cinema. Durante a pré-história, o homem pintava nas paredes de cavernas seu cotidiano, numa tentativa de representar a natureza e sua experiência com o espaço onde habitava. Antes de Thomas A. Edison e os irmãos Lumière exibirem filmes com seus inventos cinematográficos, no século XIX, já haviam ocorrido diversos experimentos com a imagem em movimento e a representação, como comenta Flávia Cesarino Costa: Os filmes são uma continuação na tradição das projeções de lanterna mágica, nas quais, já desde o século XVII, um apresentador mostrava ao público imagens coloridas projetadas numa tela, através do foco de luz gerado pela chama de querosene, com acompanhamento de vozes, música e efeitos sonoros. (…) O cinema tem sua origem também em práticas de representação visual pictórica, tais como os panoramas e os dioramas, bem como nos “brinquedos ópticos” do século XIX (Costa 2010, p.18).

Poderíamos, a partir desta visão, entender o cinema não como um surgimento isolado e atemporal, que criou para si suas formas de expressão independentes de outras formas artísticas, mas como mais uma evolução da tentativa humana de retratar o real sempre se aproximando mais do realismo da representação. Em termos de cinema, André Bazin, um dos maiores teóricos do realismo cinematográfico, escreve em seu célebre artigo O Mito do Cinema Total que pensar em um cinema que representasse perfeitamente a realidade, que fosse ideal em formas de reprodução e captação, na verdade, é uma grande ilusão: O mito guia da invenção do cinema é, portanto, a realização daquele que domina confusamente todas as técnicas de reprodução mecânica da realidade que apareceram no século XIX, da fotografia ao fonógrafo. É o mito do realismo integral, de uma recriação do mundo à sua imagem, uma imagem sobre a qual não pesaria a hipoteca da liberdade de interpretação do artista, nem a irreversibilidade do tempo (Bazin 1991, p.30).

Diversas questões são levantadas quando se fala no cinema tridimensional. A priori, devemos entender que essa modalidade de cinema se apresenta como bastante ampla, não se limitando apenas às salas de exibição tradicionais. É uma mídia que toma espaço em parques temáticos da Disney e até mesmo nas televisões domésticas atuais. Estamos vivendo seu terceiro surto, propiciado com o lançamento do filme Avatar (2009), do diretor James Cameron, que, com um orçamento de US$237 milhões, arrecadou mais de US$ 3 bilhões, “batendo todos os recordes anteriores da indústria cinematográfica” (Nogueira, Mazzon, Chimenti, Rodrigues, Almeida 2014, p.3). Essa modalidade de cinema é explorada desde a década de 20 e teve seu auge nos anos 50, nos EUA, mas o desconforto com os óculos, a produção de filmes que não utilizavam muito bem o recurso, a diminuição da qualidade da imagem como consequência das lentes coloridas, dentre outros fatores, contribuíram para que, naquela década, a invenção não vingasse como padrão nos circuitos de exibição e, rapidamente, caísse no esquecimento. 2

Analisando um pouco da história do cinema e relembrando o que foi comentando acima pelo teórico André Bazin, verificamos diversas tentativas de ampliação da realidade com inovações técnicas nas salas de cinema e na maneira como os filmes eram produzidos. A panorâmica foi utilizada extensivamente durante os séculos sempre que se tentava reproduzir um efeito de imersão. "Patenteado por Robert Barker em 1787, tratava-se de um tipo de pintura mural construída num espaço circular, em torno de uma plataforma central, de forma a criar a imersão dos espectadores no universo representado pela pintura, como se ele estivessem diante dos próprios acontecimentos” (Parente 2009). As grandes produtoras do século passado se utilizaram de novidades técnicas para atraírem mais público para as salas de cinema, como o Cinerama e o CinemaScope. Essas invenções despertavam grande interesse no público; porém, amenizado o clima de novidade, eram rapidamente esquecidas e os grandes custos de produção dessas imagens imersivas não compensavam o decréscimo de audiência. Analisando tais experiências, alguns autores contemporâneos e pesquisadores da área de mídias digitais e marketing questionam se o surto do cinema 3D com Avatar não seria, também, mais uma moda passageira ou se a tecnologia melhorada com as lentes polarizadas não criaria uma nova forma de se experimentar filmes e, consequentemente, acarretaria na conversão total das películas para o cinema tridimensional. Neste artigo, tenho como finalidade preconizar o fracasso na tentativa das produtoras de cinema em padronizar a produção de filmes em formato 3D, tornando obsoleto qualquer outra; fracasso esse que não ocorreu, por exemplo, com a chegada do som e da cor no cinema. Na verdade, as próprias teorias do cinema e estudos do espectador mostrarão, ao longo da análise, que tal tentativa é ilusória e dificilmente vingará.

O espectador de cinema Discussões sobre o papel do espectador no cinema e sua relação ideológica com os filmes existem, na verdade, desde que o cinema surgiu. Porém, "nos últimos 30 anos, o espectador constituiu possivelmente o eixo central dos debates” (Bento 2008, p.238). O entendimento dos processos de subjetivação que tomam lugar durante a projeção é essencial para concluírmos o porquê do dispositivo clássico do cinema ter conseguido funcionar durante todo esse tempo. Em seu artigo Prazer visual e cinema narrativo, Laura Mulvey tenta entender os mecanismos psicológicos que atuam sobre o espectador, que passa a se tornar um voyeur e dono do olhar objetificador da imagem feminina na tela. Passando pelas teorias psicanalíticas de Freud e Lacan, dentre outros, a autora ressalta alguns dos processos envolvidos na aquisição da imagem no cinema clássico hollywoodiano: (…) o cinema dominante e as convenções nas quais ele se desenvolveu sugerem um mundo hermeticamente fechado que se desenrola magicamente, indiferente à presença de uma plateia, produzindo para os espectadores um sentido de separação, jogando com suas fantasias voyeuristas. Além do 3

mais, o contraste extremo entre a escuridão do auditório (que também isola os espectadores uns dos outros) e o brilho das formas de luz e sombra na tela ajudam a promover a ilusão de uma separação voyeurista (Mulvey 1983, p.441).

Em seu texto, Mulvey também se utiliza da concepção de Lacan sobre a fase do espelho, na qual a criança, em seu primeiro contato com sua imagem refletida no espelho, toma essa forma como mais perfeita que seu próprio corpo, e o falso reconhecimento entre a imagem idealizada e a forma real ocasiona numa projeção extra-corpórea do ego ideal. Essa experiência com o espelho se reproduziria nas salas de cinema, já que o espectador, esquecido momentaneamente do seu estado de ser, se projeta nos personagens da tela como uma extensão do seu próprio ego. Esse aspecto é bastante interessante para adentrarmo-nos um pouco mais na relação entre o espectador e o cinema estereoscópico. A projeção em 3D ainda é vista como novidade, apesar de seu surgimento, como já falado, remeter à década de 20. O espectador que entra numa sala de cinema recebe óculos embalados em plásticos que subentendem que o mesmo passará por uma experiência sensorial única. Mas a questão é que, nesse momento, fica explícito que o mesmo passará por uma experiência em três dimensões, e menos por uma experiência fílmica pura. Ao se adentrar na sala e acomodar-se em sua poltrona, o espectador esperará ver um filme mais pelo uso do recurso (que o fez pagar um preço “premium" para presenciar) do que pela própria narrativa ou aspectos fílmicos tradicionais sob os quais estão baseadas as principais teorias do cinema. Partindo desse pressuposto, a relação espectador-filme sofrerá drásticas mudanças. O próprio fato de vermos que tal filme está em cartaz numa versão 3D já mostra que essa tecnologia ainda possui grande dificuldade em fazer parte da própria ideia de filme. É como se dissociássemos o cinema da tecnologia tridimensional, e essa ambiguidade, a meu ver, não se restringe às limitações técnicas atuais do sistema 3D (óculos desconfortáveis e ridículos, afetação da qualidade da imagem fílmica ao ser filtrada pelas lentes dos óculos polarizados, movimentos em cena que não se adequam bem aos olhos quando muito rápidos etc.). Não é o aspecto de novidade que perpetuará essa polarização. Em seu texto Por que gostamos de cinema: o espectador de cinema e a psicanálise, Maria José Ferreira Mota remete a Roland Barthes e seu ensaio Ao sair do cinema: Roland Barthes (1975) no ensaio “Ao sair do cinema” diz que mesmo antes de assistirmos ao filme, ao decidirmos entrar no cinema, já estamos em uma situação pré-hipnótica que ele denomina de “situação de cinema” tomando emprestado o termo a Hugo Mauerhofer. Ao sairmos do cinema estaríamos em um estado pós-hipnótico (Mota 2010, p.2).

A situação pré-hipnótica da qual fala Barthes é a expectativa criada em torno do filme com relação aos elementos que compõem a própria peça cinematográfica, termo cunhado por Hugo Munsterberg. No caso de projeções em 3D, a situação pré-hipnótica é deslocada do filme para o aparato tecnológico, mudando a dinâmica de funcionamento da subjetividade do espectador. Durante a exibição em uma sala tradicional, 4

(…) fica como que misturado o que sentimos e o que vemos, o que vem de fora, o que vem de dentro de nós, fazendo-nos duvidar da existência de uma pura interioridade e de uma pura exterioridade. Nosso pensar lógico que nos conforta com a divisão “ou isto, ou aquilo” é questionado (Mota 2010, p.3).

Tal experiência é afetada com a consciência da presença do filme, que pode interromper a imersão total na obra e impedir que o espectador consiga “retomar sua fase do espelho" durante a projeção, que necessitaria de um total esquecimento da consciência do estar.

O cinema e as inovações bem sucedidas Em se tratando das inovações que, através da história do cinema, conseguiram ocupar espaço perpétuo dentro das teorias fílmicas e se adequaram bem aos filmes em sua concepção unitária, poderíamos destacar o som e a cor. O som sincrônico no cinema foi muito bem recebido pelo público, que, pela primeira vez, poderia ouvir os personagens dialogando entre si sem o intermédio de intertítulos. Os chamados talkies foram um grande sucesso de audiência nos EUA na década de 1920, e a inovação perpetuou no cinema e foi tida como padrão para a produção de filmes de qualquer gênero. A cor, a priori, foi usada com cautela pelos grandes estúdios, pois os produtores tinham receio que a inovação distraísse o público do principal de seus filmes: a narrativa. Por causa disso, os primeiros filmes coloridos se utilizavam de cores mais sutis, escuras e neutras, como no caso do filme Amor e Ódio na Floresta (Henry Hathaway, 1936). Apesar disto, com o passar do tempo, começou-se a explorar mais intensamente esse recurso e a utilizá-lo com fins artísticos e expressivos, conseguindo torná-lo padrão nos circuitos comercias e alternativos. A questão que surge é: por que tais inventos vingaram na história e tomam lugar nas salas de cinema, televisões e computadores pessoais até hoje, enquanto que o cinema tridimensional, em suas duas tentativas anteriores, e outras invenções cinematográficas (como as citadas anteriormente) fracassaram? Em seu livro Film Art: An Introduction, David Bordwell e Kristin Thompson, no capítulo reservado para o som no cinema, destacam algumas das vantagens do uso do som e como alguns diretores conseguiram manuseá-lo com fins artísticos efetivos. Dentre suas considerações iniciais para com o estudo do som, os autores comentam um aspecto importantíssimo do mesmo: We’re accustomed to ignoring many of the sounds in our environment. Our primary information about the layout of our surroundings comes from sight, and so in ordinary life,

5

sound is often simply a background for our visual attention2 (Bordwell; Thompson 2004, p.264).

O mesmo ocorreu com a cor, após intensas tentativas das companhias produtoras em melhorar as câmeras e os processos de captação de luz. Com o tempo, a cor nas películas passou a ser algo natural, e os realizadores puderam explorar diversas possibilidades de fruição da imagem através de pigmentos. Estas observações levam a concluir que as duas inovações mais notáveis no cinema conseguiram tomar lugar nos circuitos de exibição hegemônicos e alternativos pois foram bem sucedidas em ampliar as possibilidades de criação ao mesmo tempo que mantiveram a naturalidade da exibição das películas. O espectador ainda poderia presenciar as obras sem ter consciência de estar escutando um som ambiente ou presenciando uma imagem levemente azulada, sobre uma narrativa que se passa numa tarde chuvosa. Foram invenções muito felizes em se tornarem parte da experiência e funcionarem em conjunto com a narrativa, mantendo, portanto, a ilusão do cinema sobre a qual escrevem tantos teóricos, como os mencionados neste artigo. O cinema 3D falha justamente nesse ponto. Ele é ineficiente em se tornar parte da experiência e ser um artifício natural ao espectador na maioria dos filmes, e a imagem bidimensional conseguiu suficientemente, com a perspectiva e enquadramento, suprir e mediar a fantasia durante a projeção. Uma prova disso é o som surround, que vingou nas salas mais modernas de cinema digital, porém é ineficiente quando usado de forma demasiada. Uma vez que o som de um pássaro se encontra, mesmo que por um rápido instante, mais alto que a fala dos personagens em primeiro plano e o espectador o escuta vindo de seu lado direito, ele rapidamente se assusta e é trazido novamente à consciência de estar presenciando um som imersivo, quebrando, assim, a ilusão da cena e estragando o efeito pretendido.

Considerações finais É fato que qualquer inovação técnica que procure ampliar a imersão do espectador na obra deve ser muito bem vinda e analisada, pois o dispositivo clássico do cinema não deve ser o único caminho para se entender e conhecer essa forma de arte que, a cada nova película finalizada, se reformula e se redescobre. Como afirma André Parente: Não devemos, portanto, permitir que a “forma cinema” se imponha como um dado natural, uma realidade incontornável. A própria “forma cinema”, aliás, é uma idealização. Deve-se dizer que nem sempre há sala; que a sala nem sempre é escura; que o projetor nem sempre está escondido; que o filme nem sempre se projeta (muitas vezes, e cada vez mais, ele é transmitido por meio de imagens 2

“Nós estamos acostumados a ignorar muito dos sons em nosso ambiente. Nossa informação primária sobre a forma de nossos arredores vem de nossa visão, e, assim como na vida cotidiana, o som é apenas o plano de fundo de nossa atenção visual” (tradução minha). 6

eletrônicas, seja na sala, seja em espaços outros); e que este nem sempre conta uma história (muitos filmes são atracionais, abstratos, experimentais etc.) (Parente 2009, p. 25).

O cinema 3D com certeza é uma forma cinema bastante válida em diversos aspectos. Filmes de ação, em sua maioria, se beneficiam bastante do efeito, que aumenta o envolvimento da plateia com explosões, trilhas pesadas, choques e objetos voando em direção ao público. Até mesmo alguns filmes mais alternativos, como é o caso de Pina (2011), do diretor alemão Wim Wenders, conseguem se utilizar do efeito como expressão artística e não apenas como mero recurso de atração de audiência. O que devemos levar das análises feitas neste artigo é que o cinema bidimensional ainda é o formato melhor aceito como padrão pelos espectadores de cinema e que a estereoscopia, apesar de poderosa como fonte de ampliação do efeito de realidade, não se tornará padrão no cinema hegemônico e nas projeções usuais. Mesmo com suas limitações técnicas superadas pelo avanço das tecnologias de captação e exibição, os filmes 3D comerciais ainda continuarão a se utilizar de sua própria artificialidade como forma de propaganda, ignorando a natureza fílmica das películas, pelas quais os espectadores comuns continuarão a prezar.

7

Referências Bibliográficas

COSTA, F. Primeiro Cinema. In: MASCARELLO, M. História do cinema mundial. São Paulo: Papirus, 2010. BAZIN, A. O Cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. NOGUEIRA, A.; MAZZON, J.; CHIMENTI, P.; RODRIGUES, M.; ALMEIDA, D. Satisfação dos Espectadores de Cinema e a Questão da Experiência 3D. VI Encontro de Marketing da ANPAD. 2014. PARENTE, A. A forma cinema: variações e rupturas. In: MACIEL, Kátia (Org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009. BENTO, G. O espectador e os efeitos de experiência cinematográfica. Cien. Cogn. 2008; Vol. 13 (2): 235-242. MULVEY, L. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER, I. (org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983. MOTA, M. Por que gostamos de cinema: o espectador de cinema e a psicanálise. III Encontro Das Seções Regionais da SBPSP - Santos. 2010. BORDWELL, D.; THOMPSON, K. (1979) Film Art: An Introduction, New York: McGrawHill (2004, data da última edição e revisão).

8

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.