Uma profilaxia antidogmática: a Teoria da Crença, de Joaquim Braga

Share Embed


Descrição do Produto

AAVV, Convergências & Afinidades: homenagem a António Braz Teixeira, Lisboa, CFUL/ CEFi, 2008, pp. 499-519.

UMA PROFILAXIA ANTIDOGMÁTICA A TEORIA DA CRENÇA DE JOAQUIM BRAGA Maria Leonor L. O. Xavier A crença «é como que uma coordenada traçada pela mão humana na vastidão do universo da sua experiência, em virtude da necessidade que temos de nos definirmos perante o indefinido»1. Esta descrição impressionista da noção de crença, segundo Joaquim Braga, é também sugestiva acerca do alcance da obra em que tal noção se exprime e desenvolve, a Teoria da Crença. Diversamente do que o título poderia fazer esperar, esta obra não elabora o tema da crença, especificamente, no âmbito da teoria do conhecimento ou da filosofia da religião. O tema da crença é, antes, a linha condutora com a qual se desenham as articulações de uma mundividência, como as relações entre teoria e prática, ideal e real, natureza e história, ética e arte, ciência e religião, ou ainda religião e política. Na medida em que organiza uma mundividência, a teoria braguiana da crença traça as coordenadas de uma filosofia, que situamos entre uma pragmática e uma metafísica. 1. Uma teoria normativa da crença A eleição de um tema pela reflexão começa habitualmente por reclamar uma definição, mesmo que o desenvolvimento da reflexão conduza a reconhecer que é impossível ou inadequado o procedimento da definição. Cabe, assim, perguntar em primeiro lugar: qual o género que define a noção de crença, segundo Joaquim Braga? O seu discurso oferece-nos várias formulações do género da crença: «uma necessidade humana», «uma atitude sui generis», «a primeira forma de “compreensão humana”», «um ponto crucial entre o instinto e o raciocínio do homem», «um ponto crucial na consciência de existir»2. Definida como necessidade e atitude próprias do homem, a crença não pode deixar de inscrever-se no âmbito de uma antropologia filosófica. Mas se o género da crença é o da compreensão, ainda que se trate de uma pré-compreensão entre o instinto e o raciocínio, e, por conseguinte, de uma composição de ambos os elementos, a crença não pode deixar de solicitar a atenção da psicologia e da filosofia da cognição. Entretanto, esse composto de instinto e de raciocínio, que constitui uma pré-compreensão e que se dá pelo nome de «crença», não se situa fora da consciência, aquém ou além dela, mas sim no âmago da consciência, visto que Joaquim Braga a caracteriza singularmente como «um ponto crucial na consciência de existir». A consciência é, portanto, mais do que o género, o lugar onde reside a crença, a sua sede própria, ou a instância mais primitiva a que ela é conduzida. Assim entendida, a partir da consciência, a crença mostra-se especialmente apropriada a uma abordagem de tipo 1

Joaquim Braga, Teoria da Crença (TC), Lisboa, 1959, p.31-32. «A crença é uma necessidade humana; e a prova é que sem a “crença” a vida do homem, como ser consciente, entra em crise. E embora apresente um carácter instintivo ou intuitivo, é uma atitude sui generis, que deve ter sido a primeira forma de “compreensão humana”, ou de tentativa de compreensão, e, portanto, a primeira afirmação do homem como animal racional, embora a um espírito desprevenido isto possa parecer paradoxal. Parece, pois, um ponto crucial entre o instinto e o raciocínio do homem, que é o mesmo que dizer: um ponto crucial na consciência de existir.» TC, p.32. 2

1

AAVV, Convergências & Afinidades: homenagem a António Braz Teixeira, Lisboa, CFUL/ CEFi, 2008, pp. 499-519. fenomenológico. Múltiplas são, pois, as abordagens que a caracterização braguiana do tema da crença permite. Todavia, nenhuma das abordagens referidas é aquela que o próprio Joaquim Braga segue, na sua Teoria da Crença. Esta obra é, na realidade, a expressão de uma teoria normativa da crença, ou seja, de uma teoria que versa mais sobre aquilo que a crença deve ser do que sobre aquilo que a crença é de facto. Ora a crença, segundo aquilo que ela deve ser, é a crença pura, enquanto que a crença, segundo aquilo que ela é de facto, é a crença prática. A distinção da crença em pura e prática é a distinção estruturante da obra em análise, de modo que, dividindo-a em dois livros, o autor dedica o primeiro à crença pura e o segundo à crença prática. A crença pura tem, assim, prioridade sobre a crença prática na ordem de composição da obra. Esta prioridade não é indiferente, antes assinala um primado de valor da crença pura sobre a crença prática. Com efeito, não é à crença prática que se adequa a crença pura, mas é para a crença pura que deve tender a crença prática. Por outras palavras, não é à crença real que se adequa a crença ideal, mas é à crença ideal que deve reduzir-se tendencialmente a crença prática. A crença pura, ou ideal, é que é o critério de adequação da crença prática, ou real. Em matéria de crença, segundo Joaquim Braga, é o real que deve adequar-se ao ideal, não é o ideal que deve conformar-se com o real; é aquilo que a crença é, que se conforma com aquilo que ela deve ser, e não inversamente. Nesta ordem de prioridades, que se estabelece na crença, entre pura e prática, ou entre ideal e real, não podemos deixar de reconhecer uma orientação filosófica idealista, que remonta a Platão, na história da filosofia ocidental. Joaquim Braga, enquanto teórico da crença pura, é um filósofo idealista. Esclareça-se, então, aquilo que deve ser a crença, ou seja, aquilo que constitui a noção de crença pura, segundo o autor da Teoria da Crença. A fim de nos aproximarmos daquilo que algo deve ser, começamos, muitas vezes, por afastar aquilo que o mesmo não deve ser, devido sobretudo à dificuldade do assunto. Assim acontece também com Joaquim Braga, a respeito da crença pura. Antes de mais, a crença não deve ser dogmática, isto é, não deve definir-se por algum conteúdo doutrinário exclusivo. A crença pura não é dogmática, pelo que não se define como doutrina. Em contrapartida, a crença deve ser funcional, isto é, deve definir-se apenas pelo seu sentido lógico em função da existência humana3. A crença pura é funcional, na medida em que é uma função da nossa existência, ou seja, uma necessidade ou uma exigência que a nossa existência postula. A existência humana é toda a base de sustentação da crença. Esta não se legitima por alguma fundamentação metafísica. Por isso, a crença pura, apesar de ser conotada com «o sentido religioso da vida» e com «o sentido ideal da nossa existência», só pode definir-se pelo seu «sentido lógico», como Joaquim Braga afirma4 e reafirma, ao longo da sua Teoria. Mas afirmar que a crença pura só pode definir-se pelo seu sentido lógico é admitir que a mesma não pode definir-se senão negativamente, porquanto o sentido lógico da crença é aquele que não é doutrinário, nem metafísico, nem separável da nossa existência. Joaquim Braga, enquanto teórico da crença pura, não é um teólogo nem um metafísico. Mais, apesar de ser uma função da existência humana, a crença adequa-se ao seu dever ser, isto é, a crença torna-se pura, na medida em que se desantropomorfiza5. A 3

«A crença deve, pois, possuir um carácter funcional, e não estático, fixo ou dogmático. Não nos deve ser dada por qualquer dogma, mas sim pelo seu sentido lógico em função da nossa existência.» Op. cit., p.12. 4 «A “crença pura”, ou o sentido religioso da vida, representa o sentido ideal da nossa existência, e, por isso, lhe dá significado válido em toda a sua extensão. Mas só pode definir-se pelo seu sentido lógico, mantendo-se, na sua essência, religiosismo indefinido.» TC, pp.14-15. 5 «A crença deve, portanto, ser crença pura, na medida em que se desantropomorfiza, permanecendo como intuição.» TC, p.14.

2

AAVV, Convergências & Afinidades: homenagem a António Braz Teixeira, Lisboa, CFUL/ CEFi, 2008, pp. 499-519. adequação da crença ao seu dever ser é uma purificação, e esta é uma desantropomorfização. A crença deve libertar-se de toda a projecção da forma humana. Assim se define, mais uma vez, a crença pura por negação, isto é, por superação do antropomorfismo. A crença é inseparável da existência humana, mas deve ser separada da influência da forma do homem, portanto, da essência. As disciplinas antropológicas não permitem, por isso, descortinar os segredos da crença pura. Não será, pois, um antropólogo, o teórico da crença pura. Será um filósofo, que dá primado à existência sobre a essência, e que procura combinar este pendor existencialista com a orientação idealista da sua teoria da crença. A epistemologia pode, entretanto, dar um enquadramento ao processo de desantropomorfização da crença. Este processo é análogo, segundo Joaquim Braga, ao da desantropomorfização do saber. Mesmo o saber mais puro, ou exacto, como o saber das matemáticas, é antropomórfico nas suas origens, considerando o procedimento de contagem pelos dedos das mãos, na origem do sistema decimal. Assim também as crenças religiosas podem transitar de uma condição antropomórfica originária para uma condição depurada de antropomorfismo, mas acrescida de universalidade e de validade para a existência humana6. A desantropomorfização da crença, ou a sua purificação, é um processo de universalização, que provê à sua validação. A crença pura é a crença creditada ou validada. Deste modo, a crença escapa à sua mortalidade. Ora, este processo de desantropomorfização, de universalização e de validação, não se faz sem crítica. A crença pura é a crença crítica. Nessa medida, Joaquim Braga, enquanto teórico da crença pura, é um crítico da crença. É, no entanto, a crítica da crença que impede a morte da crença, e que assegura a sua recuperação. A crítica da crença é a via da sua recuperação. A Teoria da Crença exprime o empenho de Joaquim Braga nesta via, empenho esse, que nos interpela e que nos cumpre compreender. A perspectiva crítica sobre a crença torna-se, desde logo, evidente na consideração da crença como problema e na decorrente redefinição do problema da crença. Para Joaquim Braga, há um problema da crença, mas este problema não consiste já em saber se Deus existe, e se o homem é realmente imortal e livre. Se assim se definisse, o problema da crença pediria uma solução em conformidade com as vias clássicas da metafísica. Todavia, o cepticismo de Joaquim Braga a respeito destas vias condu-lo a colocar o problema da crença fora do âmbito da metafísica, redefinindo-o como o problema de saber «se é ou não legítimo e necessário crer em Deus, na imortalidade e na liberdade»7. Deste modo, o problema da crença desloca-se do foro da metafísica para o de uma filosofia pragmática, acusando a influência do pragmatismo no 6

«A ciência matemática, instrumento, por excelência, da investigação, teve a sua remota origem, segundo alguns investigadores, quando o homem começou a contar pelos dedos e segundo os dedos; quer dizer: quando a compreensão do sistema decimal lhe era dada pelos dedos das suas próprias mãos. E só o facto de tal sistema se tornar extensivo às coisas de uso comum possibilitou a sua aceitação, primeiro como método experimental, e depois como sistema abstracto aplicado ao uso das coisas concretas. Assim, o carácter da contagem apresenta-se-nos, na sua origem, aparentemente “antropomórfico”, porque as coisas contadas são compreendidas no sistema dos dedos das mãos. Mas isso não impediu a construção da aritmética e o seu desenvolvimento ulterior. De forma que também determinadas noções de carácter religioso, tendo partido, como não podia deixar de ser, de relações antropomórficas, podem perder esse carácter de origem, deixando de ser noções antropomórficas, para funcionarem como noções gerais válidas para a existência humana.» TC, pp.11-12; «Não vai menor distância da contagem pelos dedos das mãos às equações matemáticas, do que das crenças antropomórficas à crença pura, e, no entanto, ainda hoje se conta pelos dedos.» TC, p.32. 7 «Para uma solução positiva do problema da crença, não se trata de saber se Deus existe e a imortalidade e a liberdade humana são realidades, mas sim se é ou não legítimo e necessário crer em Deus, na imortalidade e na liberdade. É esta, segundo nos parece, a forma como deve pôr-se o problema da crença.» TC, p.13.

3

AAVV, Convergências & Afinidades: homenagem a António Braz Teixeira, Lisboa, CFUL/ CEFi, 2008, pp. 499-519. pensamento de Joaquim Braga. Importa sublinhar, no entanto, que os tópicos metafísicos de Deus, da imortalidade e da liberdade continuam presentes na reformulação do problema braguiano da crença. Quer isso dizer que Joaquim Braga, como filósofo da crença, não consegue abandonar alguns dos principais e tradicionais motivos da metafísica, embora procure creditá-los por vias não metafísicas. A articulação dos três referidos tópicos metafísicos, sob a noção de crença pura, constitui mesmo, a nosso ver, um dos traços mais singularmente marcantes desta filosofia da crença. Na verdade, Deus, a imortalidade e a liberdade são indispensáveis, como «aspectos» ou «coordenadas» da crença pura, segundo as palavras de Joaquim Braga. A crença pura é a unidade diferenciada de crença em Deus, na imortalidade e na liberdade. Na crença pura, estes três aspectos são indissociáveis e correlativos entre si. A crença pura caracteriza-se, precisamente, pela unidade inseparável dos três aspectos, porquanto estes são separáveis na crença prática. Ao nível da crença pura, o crente é aquele que crê em Deus, na imortalidade e na liberdade, porque não pode prescindir de alguma destas coordenadas complementares para orientar o sentido ideal da sua existência, tal como não pode prescindir das coordenadas do espaço e do tempo para orientar a sua existência no mundo sensível8. Os três aspectos da crença pura são, assim as três coordenadas orientadoras do sentido ideal da existência. O crente é aquele que não renuncia a esse sentido, mesmo que renuncie a fazer metafísica. Assim se revela a nós, o próprio autor da Teoria da Crença: um crente no seu próprio ideal de crença. Mas será que renuncia, mesmo, a fazer metafísica? O que é que se pode dizer, em rigor, dos três aspectos da crença pura? Joaquim Braga toma claras precauções: nenhum dos três aspectos pode ser definido. Nem Deus, nem a imortalidade, nem a liberdade são susceptíveis de definição, segundo a teoria braguiana da crença pura. A crença pura é fundamentalmente uma intuição, que se exprime numa atitude de vida, «numa atitude humana perante a existência»9. Qualquer formulação doutrinária objectiva trai a intuição originante. Esta inspira uma atitude, não 8

«Conscientemente, o homem só pode crer no seu próprio destino se viver com crença em Deus, na imortalidade e na liberdade, isto é, se for um crente. Doutra maneira não encontrará, em última análise, orientação ideal para a sua vida no Universo.» TC, p.14; «E as nossas vivências e as nossas normas éticas não teriam significado sem a crença de que agimos, naturalmente, como seres livres; e a experiência humana já não poderia ser considerada em relação com as outras crenças (Deus, imortalidade), porque aquelas perderiam o seu sentido lógico, com a perda da noção do valor humano, como experiência. Mas a “crença na liberdade”, por sua vez, deixaria de dar significado à experiência humana, ou à nossa existência, sem as outras crenças (Deus, imortalidade), e, assim, perderia também o sentido. Logicamente, ou aceitamos os três aspectos, digamos complementares, da “crença pura”, relacionados entre si através da significação da experiência humana, ou então não aceitamos nenhum. Mas quer-me parecer que as coordenadas da “crença pura” nos são tão necessárias para definirmos, humanamente, a nossa situação, ou a nossa existência, como as coordenadas de espaço e de tempo.» TC, p.41. 9 «Qualquer dos aspectos da “crença pura” (Deus, imortalidade, liberdade) não pode ser reduzido à objectividade; mas também não deve ser reduzido a puro subjectivismo, porque possui um sentido lógico, que funciona com a experiência humana. Pode, talvez, considerar-se a crença pura como uma “indefinição”, visto que indefine a noção de existência de Deus, de imortalidade e de liberdade, como crenças, de forma que o sentido da existência não possa separar-se do sentido da crença; quer dizer: para a “crença pura”, a existência de Deus só tem sentido como crença, não podendo separar-se, portanto, o sentido da existência do sentido da crença. E isto porque a crença pura é de natureza intuitiva, é fundamentalmente uma intuição, e, portanto, uma “indefinição” de sentido ideal logicamente válido, que somente pode concretizar-se numa atitude humana perante a existência.» TC, p.23; «A “crença em Deus”, como qualquer outro aspecto da crença pura, não pode ser reduzida à noção de objecto. Portanto, não pode definir-se como objecto, mas somente pelo seu sentido lógico, ou ideal de verdade lógica.» TC, p.23; «A liberdade, como crença pura, não pode ser definida. Para a crença pura, definir a “liberdade” seria negá-la, porque, como “Deus” e a “imortalidade”, não admite a noção de limite, aplicável a objectos.» TC, p.39.

4

AAVV, Convergências & Afinidades: homenagem a António Braz Teixeira, Lisboa, CFUL/ CEFi, 2008, pp. 499-519. se traduz em doutrina. Daí, mais uma vez, a definição da crença pura por negação, agora por negação da própria possibilidade de definição: a crença pura caracteriza-se pela sua indefinição. Por conseguinte, as três crenças, que constituem os três aspectos da crença pura, não são crenças objectivamente definíveis ou doutrinariamente formuláveis. Deus, a imortalidade e a liberdade não são objectos de crença. Não é aliás por acaso, é por negação desta condição de objectos, que aqueles recebem a designação de «aspectos» da crença pura, na Teoria da Crença. Não sendo por via da definição, algo se pode, no entanto, dizer dos três aspectos da crença pura, por via da ordenação. Com efeito, apesar da correlação dos três aspectos, de modo que qualquer deles obriga a supor os dois restantes, há certa ordem de prioridades a pautar as respectivas relações de interdependência. A ordenação subtil dos três aspectos da crença pura é mesmo, a nosso ver, um dos traços marcantes e distintivos da teoria braguiana da crença. Julgamos não cometer infidelidade ao pensamento de Joaquim Braga, colocando a crença em Deus em primeiro lugar na ordem dos três aspectos da crença pura. Qual o sentido desta prioridade? A crença em Deus caracteriza-se por ser a crença descentradora do homem, aquela que «evita que o homem se confine a si próprio, individual ou colectivamente»10. Através dela, o homem repara que há mais horizonte para além de si mesmo e do reflexo narcísico de si mesmo no saber antropomórfico do mundo. Deste modo, a crença em Deus é uma crença produtora de horizonte para o sentido ideal da existência. Ela desempenha, por isso, um papel estruturante no interior da crença pura: a crença em Deus é aquela pela qual as outras crenças, na imortalidade e na liberdade, alcançam sentido ideal11, ou seja, aquela que abre às outras duas crenças um horizonte não antropocêntrico de sentido. A crença em Deus é, em suma, o nosso reservatório de ideais para o sentido da vida. Compreende-se assim que qualquer configuração antropomórfica da crença em Deus, ou mesmo qualquer determinação metafísica do tema de Deus, corra seriamente o risco de limitar e reduzir o horizonte ideal da crença, e, desse modo, trair a vocação libertadora da crença em Deus no âmbito da crença pura. Entre a crença em Deus e a crença na liberdade, medeia, por assim dizer, a crença na imortalidade. Esta crença corresponde à necessidade de dar sentido à existência, consciente do confronto com a morte. A realidade da morte justifica a crença na imortalidade tal como a luta pela vida justifica a crença na liberdade12. Mas a própria motivação da luta pela vida depende, segundo o teórico da crença pura, da crença na imortalidade13. É esta, portanto, que sustenta tanto a luta pela vida como, 10

«A crença em Deus evita que o homem se confine em si próprio, individual ou colectivamente, sem sair de um círculo vicioso, fora do qual não encontra senão o nada, e, indo mais longe, a dúvida sobre se o próprio nada existe.» TC, p.15; «Se o homem quiser viver com confiança no seu próprio destino, e desprezar a “crença pura”, só encontrará, como falsa compensação, uma forma de narcisismo intelectual, colocando-se a si próprio no lugar das suas crenças.» TC, p.15; «Assim, um homem consciente, mas sem crença, ou limita os seus ideais, o que é um círculo vicioso, ou então cai no niilismo.» TC, p.14. 11 «A “crença em Deus” representa o aspecto da crença pura pelo qual as outras crenças (imortalidade, liberdade) encontram sentido ideal. Mas, por outro lado, perderia o seu próprio sentido ideal sem o concurso das outras crenças (imortalidade, liberdade).» TC, p.34. 12 «Como dissemos já, a crença na liberdade, na imortalidade e em Deus são simples aspectos complementares da “crença pura”, e, por isso, se encontram nela implícitas. E assim, na crença na imortalidade, como aspecto da crença pura, o homem encontra uma significação para a sua própria existência, em face da morte, que justifica, afinal, essa crença, como a luta pela vida justifica, particularmente, a crença na liberdade.» TC, p.36. 13 «Na verdade, se o homem não possuir a “crença na imortalidade”, e, consequentemente, a crença no destino humano, em relação com a crença em Deus, o que poderá interessar-lhe, em última análise, como ser consciente, a luta pela vida?» TC, p.35.

5

AAVV, Convergências & Afinidades: homenagem a António Braz Teixeira, Lisboa, CFUL/ CEFi, 2008, pp. 499-519. indirectamente, a crença na liberdade. Daí a prioridade da crença na imortalidade sobre a crença na liberdade na ordem da crença pura. Apesar de parcas, as palavras de Joaquim Braga, acerca da crença na imortalidade, elas permitem-nos tirar algumas ilações filosoficamente relevantes. Por um lado, aplica-se à crença na imortalidade a mesma cláusula da indefinição, que abrange todos os aspectos da crença pura. A crença na imortalidade não depende de alguma doutrina metafísica sobre a alma, nem se destina a inspirar alguma14. A crença pura não se funda numa metafísica nem visa fundar alguma. Ainda que sejam crenças de sentido metafísico, as crenças em Deus e na imortalidade são crenças independentes de qualquer metafísica, na teoria braguiana da crença. Por outro lado, a crença na imortalidade tem aquilo a que Joaquim Braga chama uma «extensão social», que é a crença no futuro na humanidade15. As duas crenças não se confundem entre si. A crença no futuro da humanidade é a esperança no nosso futuro colectivo, e constitui a dimensão moral da crença na imortalidade, evidenciando que esta não descuida do destino dos outros. Mas antes de se estender para o colectivo, é o valor do indivíduo, que a crença na imortalidade visa guardar. Com efeito, nem a natureza biológica nem a história colectiva bastam para dar sentido à vida e à morte do indivíduo. A natureza biológica sacrifica o indivíduo à sobrevivência da espécie16. A história sacrifica o indivíduo à evolução das sociedades17. Ora a crença na imortalidade é uma aposta na sobrevivência do significado do indivíduo, não obstante e para além dos factores naturais e positivos da sua redutibilidade. Deste modo, a crença na imortalidade é uma afirmação do valor do indivíduo na filosofia de Joaquim Braga. A crença na liberdade, por sua vez, reafirma este mesmo valor. Relativamente à história, como ciência, a crença na liberdade é a salvaguarda do valor do indivíduo. Por isso, observa, o autor da Teoria da Crença, que a ciência histórica não anula a crença na liberdade18. Esta é a terceira crença na ordem dos aspectos da crença pura. Com efeito, a crença na liberdade depende, por um lado, da crença em Deus, para alcançar sentido ideal, e, por outro, da crença na imortalidade, para alentar a luta pela vida. Esta é, como vimos, a vertente da experiência humana, que justifica a crença na liberdade. Mas, apesar destes laços de dependência, a crença na liberdade é, entre os aspectos da crença pura, aquele que se impõe de forma mais incontornável. Isto pode compreender-se diferenciando as duas crenças anteriores, em Deus e na imortalidade, como crenças de sentido metafísico, da crença da liberdade, como 14

«A crença na imortalidade pode considerar-se, assim, logicamente anterior à metafísica da alma, e não parece necessário dar uma definição de alma para a legitimar.» TC, p.36. 15 «Quanto à crença no futuro da Humanidade, ou no destino humano, é uma extensão social da crença na imortalidade. É, afinal, um aspecto moral de uma crença de sentido metafísico, que serve, por assim dizer, de ligação entre a crença na liberdade e a crença em Deus.» TC, p.65. 16 «Como a vida do indivíduo não se pode separar da vida da espécie, no aspecto positivo da continuidade, nem do meio em que vive, e como a morte biológica do indivíduo é necessária à conservação da vida da espécie, como parte do binário de renovação nascimento-morte, exigida pela continuidade biológica, a morte do indivíduo, como elemento da espécie, só pode ser considerada relativamente à espécie. Portanto, biologicamente, a morte do indivíduo não tem qualquer significado, ou não tem outro além do de servir a espécie.» TC, p.36. 17 «E a crença na imortalidade tem sentido social, na medida em que o indivíduo é um produto da experiência social, sendo a sua crença o único sentido lógico possível de utilidade para a vida humana. A crença na imortalidade vem a ser assim uma crença de sentido social, a crença de que a experiência humana se não perde para além da existência das sociedades. A História não basta para dar significado à existência ou sentido à vida humana.» TC, pp.36-37. 18 «O conhecimento da História não invalida, cientificamente, a crença do homem na liberdade, visto que pode considerar-se o factor humano como um factor contingente da História, que deixa margem para a nossa crença. De resto, sem ela o homem negar-se-ia a si próprio.» TC, p.41.

6

AAVV, Convergências & Afinidades: homenagem a António Braz Teixeira, Lisboa, CFUL/ CEFi, 2008, pp. 499-519. crença «de uma dimensão mais à escala humana», segundo as palavras de Joaquim Braga19. A crença na liberdade é, assim, uma crença menos metafísica e mais à medida do homem. Não quer isto dizer, porém, que se trate da crença mais antropomórfica. Pelo contrário, a crença na liberdade terá sido aquela que se terá «apresentado originariamente sob um aspecto mais puro»20. Porquê? Talvez em virtude disso mesmo, de ser uma crença mais proporcionada à escala humana, e, portanto, de menor exigência metafísica, a crença na liberdade não requer tanto a mediação de formulações antropomórficas objectivantes no caminho para a crença pura. Serão, sobretudo, as crenças de maior alcance metafísico, aquelas que exigem mais a mediação de tais formulações no respectivo processo de purificação, que é, precisamente, um processo de desantropomorfização. Entretanto, a crença na liberdade, tal como os restantes aspectos da crença pura, é uma intuição, que inspira atitude na vida, mas que não se define nem se demonstra. De acordo, porém, com a redefinição braguiana do problema da crença, como o problema da legitimidade da crença, pode demonstrar-se a legitimidade da crença na liberdade21, mais claramente até do que a das outras duas crenças que constituem a crença pura. Com efeito, a crença na liberdade é aquela que mais directa e estreitamente acompanha a nossa vida em sociedade, pelo que não é difícil destacar razões sociais da sua legitimidade. Assim acontece na Teoria da Crença, segundo a qual a crença na liberdade é legítima ou necessária, desde logo, em função da realidade das relações humanas, na medida em que são irredutíveis a relações de causalidade, e da própria existência de personalidade nos indivíduos22; bem como em função da construção teórica do Direito, e do próprio facto histórico da Declaração Universal dos Direitos do Homem23. Sobre a crença na liberdade, assenta, pois, a construção das sociedades humanas. 19

«Ora esta crença é somente um dos aspectos complementares da “crença pura”, embora seja, digamos, de uma dimensão mais à escala humana.» TC, p.16. 20 «E o facto de a crença na liberdade se nos ter apresentado originariamente sob um aspecto mais puro, isto é, menos antropomorfizado do que a crença em Deus e na imortalidade, e ainda o facto de se apresentar imediatamente necessária para a vida em Sociedade, é que nos esclarecem sobre a atitude de muitos homens bem intencionados aceitarem a crença na liberdade e desprezarem, de certo modo, as outras duas crenças afins com aquela.» TC, p.16. 21 «Como intuição, ou como crença, a “liberdade” não é demonstrável, mas sim necessária. O que pode é demonstrar-se a necessidade de tal intuição ou crença, para a vida humana.» TC, p.39. 22 «A “crença na liberdade” é tão necessária como o conceito de causalidade. Ambos são do chamado sentido ou senso comum. O conceito de causalidade serve a investigação científica, e a crença na liberdade serve as relações humanas. Nós procuramos conhecer as causas das coisas e das acções humanas, mas temos necessidade de crer que agimos, naturalmente, como seres livres; temos necessidade da crença na liberdade, para nos realizarmos.» TC, pp.39-40; «E parece-nos absurdo admitir a existência de “personalidade” nos indivíduos sem aceitar a crença na liberdade, que, para o caso, é humanamente indispensável. Sem esta crença a noção de “personalidade” não teria qualquer valor humano.» TC, p.41. 23 «Poderão os homens desprezar a crença em Deus e na imortalidade, mas ao fazê-lo esquecem-se de que não deixam a “crença na liberdade”, aquela que praticamente dirige ou acompanha a nossa experiência social, e que, por isso, possibilita toda e qualquer construção teórica do Direito. Por mais positivas que sejam as nossas coordenadas sociológicas, estas nunca tornarão dispensável a “crença na liberdade”.» TC, p.15; «E como parece impossível determinar o comportamento do ser humano normal como se determina a trajectória de uma bala, a queda de uma pedra, ou o comportamento de um autómato, a sociedade serve-se do “controle” lei-penalidade, construindo uma “teoria do Direito”, que, no seu aspecto positivo ou negativo, gira sempre à volta da “crença na liberdade”, e que, de contrário, não teria valor humano.» TC, p.40; «Foi, necessariamente, com a crença na liberdade, que, em 10 de Dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas adoptou e proclamou esse belo documento que é a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Pois só pode falar-se de “direitos”, seja de que natureza forem, se se aceitar a “crença na liberdade”.» TC, pp.40-41.

7

AAVV, Convergências & Afinidades: homenagem a António Braz Teixeira, Lisboa, CFUL/ CEFi, 2008, pp. 499-519. Na crença pura, no entanto, a crença na liberdade não é separável das duas restantes. A crença pura, nos seus três aspectos correlativos, coincide com o sentimento religioso do homem, mas não depende nem postula a necessidade de qualquer religião. As religiões são sempre portadoras de boa dose de antropomorfismo, nos seus mitos e doutrinas, e, por isso mesmo, são também potenciadoras da descrença24. Melhor do que pela religião, o sentimento religioso do homem é cultivado, segundo o teórico da crença pura, pelo dever moral e pela emoção estética. A ética e a arte são os melhores estímulos do sentimento religioso do homem, depurado ao nível da crença pura25. Esta mais não necessita, para ser crença pura, do que de exigências éticas e de obras de arte. A crença pura é a síntese dos ideais humanos26 e o próprio ideal de crença. Os ideais humanos têm de tomar a forma da crença: antes de mais, por uma razão negativa, isto é, porque nenhuma metafísica nos pode dar o conhecimento objectivo de tais ideais, sem impor-lhes limites, e, portanto, sem pervertê-los; e, também, por uma razão positiva, isto é, porque só pela adesão, pelo sentimento e pelo assentimento que a crença comporta, é que os ideais podem ser mais do que abstracções, ligando-se com a vida e dando-lhe sentido27. Todavia, a crença pura, que sintetiza os nossos ideais, e que não se alimenta senão de ética e de arte, permanece um ideal de crença, um ideal normativo para apurar a realidade da crença. 2. Uma teoria pragmática da crença A Teoria da Crença, de Joaquim Braga, acusa a influência filosófica do pragmatismo. Esta influência faz-se, desde logo, sentir ao nível da teorização da crença pura. A própria reformulação do problema da crença, como um problema de legitimidade da crença, é já um reflexo dessa influência. Certo é que legitimidade não é o mesmo que utilidade, e não é, porventura, por acaso que Joaquim Braga evita empregar o termo «utilidade» a respeito do problema e do sentido da crença. Com efeito, a teoria da crença pura não é, no essencial, uma teoria pragmática, mas sim, como sugerimos, uma teoria normativa. Atentando bem, a ordem dos três aspectos da crença pura denuncia uma intencionalidade metafísica no pensamento de Joaquim Braga, que ele não pretende desenvolver nos moldes tradicionais. A própria meta de um sentido ideal para a crença e toda a elaboração da noção de crença pura, como o ideal da crença, revelam um idealismo mais do que tendencial. A verdade, porém, é que a crença não se define senão pelo seu sentido lógico, que é o mesmo que dizer, pelo seu sentido funcional, isto é, em função da necessidade de dar sentido à existência. Mesmo que a crença pura alcance, através da crença em Deus, um sentido ideal, este nunca deverá receber uma determinação metafísica, sob pena de limitar o seu horizonte de idealidade. A crença em Deus é, aliás, o aspecto da 24

Tendo em conta que «[…] certos intelectuais, aliás bem intencionados, aceitem ou procurem um sentido “ideal” para a existência sem aceitarem a “crença em Deus”, talvez como reacção ao antropomorfismo, […]» TC, p.28. 25 «O homem encontra na crença a única significação possível para a existência. E no “dever moral” e na “emoção estética” encontra o estímulo de que necessita em virtude de a crença tender para o ideal, para o absoluto.» TC, p.27; «A crença possui, além de sentido lógico, sentido ideal; e este sentido ideal da crença utiliza, como estímulos, os motivos éticos e estéticos da existência. Assim é que, concretizando, as boas acções e as obras de arte desempenham um papel importantíssimo como “estímulos” do sentimento religioso do homem.» TC, p.28. 26 «E o sentido ideal da “crença pura” é, por assim dizer, o ponto de convergência de todos os ideais humanos, […].» TC, p.28. 27 «[…] só como crença, só como sentido da crença, o ideal adquire significado para a vida.» TC, p.28.

8

AAVV, Convergências & Afinidades: homenagem a António Braz Teixeira, Lisboa, CFUL/ CEFi, 2008, pp. 499-519. crença pura, que evidencia com maior acuidade a influência do pragmatismo. Por um lado, o problema da existência de Deus é, desde logo, reduzido ao problema da crença em Deus, este, por sua vez, a um problema da existência humana, o problema do sentido da existência humana28. Fica, assim, desmotivada, toda a metafísica da existência de Deus, com os tradicionais procedimentos de prova e de refutação. Por outro lado, quanto ao entendimento dos nomes divinos nas diversas línguas, Joaquim Braga segue explicitamente a filosofia da linguagem de John Dewey. Admitindo que todas as palavras são símbolos, e, como tais, não têm valor em si, mas apenas valor funcional, assim também a palavra «Deus» e todas as correspondentes nas diversas línguas não valem senão pela função que têm, que é a de constituírem símbolos do sentido da crença29. Esta marca de pragmatismo empobrece e torna mesmo deceptivo o tratamento do tema de Deus, como aspecto da crença pura. É, contudo, ao nível da crença prática, que essa marca se torna mais evidente. Com efeito, o teórico da crença propõe não só uma noção de crença pura como também uma noção de crença prática. Donde a necessidade de uma crença prática, não além, mas aquém da crença pura? Da necessidade humana do concreto. A necessidade da crença prática não é senão uma especificação desta necessidade humana do concreto. Com efeito, a crença pura, pela sua própria indefinição, corre o risco de esfumar-se, apesar dos estímulos que pode encontrar no dever moral e na emoção estética. A crença dificilmente se mantém pura, isto é, indefinida, numa consciência afeiçoada às coisas concretas, como é, em geral, a consciência humana. A crença pura é o ideal da crença, não é a realidade da crença. Embora a crença deva tender para o seu ideal, na realidade ela não pode evitar concretizar-se numa significação. A crença prática é realmente inevitável. A crença pura e a crença prática são as duas faces, respectivamente, a ideal e a real, da mesma intuição da consciência humana, que se dá aqui pelo nome de «crença»: a crença pura caracteriza-se pela indefinição, e a crença prática, pela significação. Esta é já uma determinação da crença, mas, de acordo com a orientação pragmática subjacente, uma determinação apenas funcional30, e, como tal, inteiramente 28

«Para a crença pura, a “existência de Deus” só tem sentido como “crença”, isto é, o sentido de existência é inseparável do sentido da crença: só se considera a existência no sentido da crença, embora os dois conceitos se nos apresentem irredutíveis. E a crença pura adquire sentido lógico e, portanto, validade, em função do significado que dá à experiência humana.» p.31; «O problema da “existência de Deus” pode ser posto como problema da “crença em Deus”, e este, por sua vez, adquire sentido como problema da existência humana. Na verdade, todos os problemas são humanos, e a “crença em Deus” corresponde a uma necessidade humana de encontrar significação para a vida.» TC, p.34; «“Deus” representa, pois, já não como palavra isolada, considerada pelo seu significado, mas sim como sentido ideal da “crença”, (a palavra como símbolo na sua função), uma necessidade humana, que dá significado à nossa experiência, e que, por isso, adquire sentido lógico como crença. E assim se nos apresentam inseparáveis o sentido da existência de Deus e o sentido da crença em Deus, funcionando esta crença com a, ou encontrando validade na, experiência humana.» TC, p.34. 29 «E o facto de as palavras que designam “Deus”, segundo as línguas, derivarem ou não da mesma raiz, não obsta a que se utilize qualquer delas como símbolo, em virtude do seu valor funcional, visto que a sua função é idêntica para todas as línguas. As palavras são, na verdade, símbolos, e, como explica o filósofo John Dewey, estes não têm valor em si, mas sim um valor funcional. […]. E acabamos por verificar que a palavra Deus tem um ou mais significados, mas que nenhum deles define (e não seria essa a sua função) a “existência de Deus”. O sentido ou senso comum não define a existência de Deus, embora a admita. Qualquer que seja o significado que possa atribuir-se à palavra Deus, esta só é válida pela função que satisfaz como símbolo do sentido da crença.» TC, p.33. 30 «Humanamente, a crença, ao tornar-se pura, corre o risco de desaparecer, porque o homem se perde facilmente para além das coisas concretas. E, assim, sendo a crença pura, por natureza, uma indefinição, há necessidade humana de lhe dar uma significação, na prática. E deste modo se legitima a necessidade da crença prática, com o seu carácter simbólico, relativo e humano. - A transformação da crença como indefinição (= crença pura) em crença como significação (= crença prática) opera-se a partir da

9

AAVV, Convergências & Afinidades: homenagem a António Braz Teixeira, Lisboa, CFUL/ CEFi, 2008, pp. 499-519. relativa. Assim se faz sentir, de novo, a prevenção antidogmática do filósofo da crença, que é Joaquim Braga. Se a indefinição da crença pura impedia a sua redução dogmática, é esta mesma preocupação que anima a assunção da relatividade da crença prática. A fim de justificar, na prática, esta atitude relativizadora, o autor da Teoria da Crença invoca o princípio da tolerância31. Este é um princípio necessário à crença prática, porquanto esta, requerendo uma significação, não pode prevenir-se do dogmatismo só pela indefinição da crença pura. Como repensar, agora, os três aspectos correlativos da crença pura em conformidade com a real e humana necessidade de significação? Ao nível da crença prática, os três aspectos da crença pura recebem significações, através das quais se tornam formas separáveis de crença32. Os três aspectos inseparáveis da crença pura transformam-se em formas separáveis da crença prática. Esta separabilidade é a principal consequência da passagem da crença pura a prática. As crenças em Deus, na imortalidade e na liberdade convertem-se, assim, em crenças separáveis, de modo que assumir uma não obriga a assumir as restantes: é possível crer em Deus, sem crer na imortalidade, caso a significação da crença em Deus ou não seja motivada pelo interesse na imortalidade ou não seja suficiente para garanti-la; bem como é possível crer na imortalidade, sem crer em Deus, caso a crença na imortalidade obtenha significação metafísica independente de Deus; bem como é também possível crer na liberdade, sem crer em Deus e na imortalidade, caso a crença na liberdade obtenha significação moral e social, sem requerer sustentação metafísica, através da significação das outras duas crenças. Assim acontece plurimodamente na realidade. A realidade humana da crença verifica crença prática, não a crença pura. Cabe aqui observar que a separação e autonomização das três crenças seria aquilo que poderia, a muitos, parecer uma purificação das crenças: para um teólogo, o desprendimento da crença na imortalidade pode ser uma via de purificação da crença em Deus, tornando esta menos antropocêntrica; para um militante de causas sociais, o abandono das crenças em Deus e na imortalidade pode ser, por seu turno, uma via de purificação da crença na liberdade, promovendo o empenhamento desta nos assuntos da vida presente e do mundo. Joaquim Braga, porém, não é um teólogo, ainda que revele sensibilidade religiosa, e também não é um militante político, embora acuse sensibilidade social e política. A sua filosofia normativa da crença não advoga, como vimos, a purificação da crença através da separação e da autonomização de formas de crença; pelo contrário, a purificação da crença é uma função da indefinição e da unidade correlativa das três crenças distintas pela análise. A Teoria da Crença não nos oferece, por isso, uma perspectiva óbvia ou previsível sobre o tema da crença, o que acresce como razão do seu interesse. Na filosofia pragmática da crença, que também se configura nesta obra, há sem dúvida uma aproximação da realidade, mas esta aproximação não é uma realização do ideal, é antes uma desagregação do ideal de

necessidade lógica ou humana de existência prática. Na verdade, a necessidade humana de crença perder-se-ia na indefinição, e não encontraria satisfação, faltando à teoria validade prática ou funcional.» TC, p.45. 31 «Qualquer crente, a partir da ocasião em que se rege pelo princípio de tolerância, deixa de ser, praticamente, um dogmático, em matéria de religião. Assim, a problemática da relativização da crença prática processa-se a partir do princípio de tolerância.» TC, pp.67-68. 32 «O problema da “indefinição”, em crença pura, transforma-se, na prática, em problema de “significação”. Quer dizer: os três aspectos complementares da crença pura (Deus, imortalidade e liberdade) como indefinições, transformam-se, na prática, em significações. E, assim, o significado humano que qualquer dos aspectos complementares da crença adquire, na prática, constitui, afinal, uma forma de crença.» TC, pp.45-46.

10

AAVV, Convergências & Afinidades: homenagem a António Braz Teixeira, Lisboa, CFUL/ CEFi, 2008, pp. 499-519. unidade da crença pura. Joaquim Braga concede pragmaticamente essa desagregação, não faz apologia dela33. A unidade da crença permanece um ideal da crença prática. Tal é o que se verifica na preocupação com a articulação entre as extensões sociais e políticas das crenças na imortalidade e na liberdade. Ainda que estas crenças se disponham naturalmente a receber significações éticas, sobre estas não se detém o filósofo pragmático da crença, que prefere apontar para as respectivas significações políticas. Assim, a crença na liberdade é associada ao liberalismo, enquanto a crença na imortalidade, na sua extensão social de crença no destino humano, é politicamente conotada com o socialismo. Social e politicamente indesejável é, segundo Joaquim Braga, a separação prática das duas crenças, ao nível das respectivas significações políticas: nem só o sacrifício do colectivo ao individual, que o liberalismo comporta; nem só o sacrifício do individual ao colectivo, que o socialismo implica. Uma sociedade politicamente equilibrada exige a combinação de tendências liberais com tendências socializantes34. Esta defesa de um equilíbrio entre as duas ideologias é expressão da continuidade do ideal da unidade da crença, ao nível das suas significações e extensões práticas, bem como da sensibilidade social e política do autor da Teoria da Crença. Expressão da sua sensibilidade religiosa é, por sua vez, o tratamento do tema de Deus ao nível da crença prática. Esta é, como vimos, expressão do apego humano ao concreto. Por conseguinte, a crença prática exige alguma concreção da crença em Deus, indefinida ao nível da crença pura. Joaquim Braga chama a essa concreção, “humanização” da crença em Deus35. A significação desta crença humanizada em Deus define-se, antes de mais, pela acepção de Deus como Criador. Esta é uma acepção de Deus, comum às grandes religiões monoteístas, como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. A noção de criação divina, associada a estas religiões, comporta duas ideias tendencialmente divergentes: por um lado, a ideia da bondade da criação, como expressão da bondade divina; por outro lado, a ideia da imperfeição da criatura, em comparação com a perfeição do Criador. É esta segunda ideia que se retém, sobretudo, na Teoria da Crença, a respeito da significação de Deus como Criador. Segundo Joaquim Braga, esta significação é uma função «da existência da imperfeição, do erro, ou do mal na natureza humana»36. Deste modo, a noção de criação justifica-se pela 33

«Pragmaticamente, da crença em Deus poderá dizer-se que é a crença religiosa propriamente dita; e da crença na liberdade poderá dizer-se que é a crença social propriamente dita, pela sua extensão moral e social. Teoricamente, ambas se encontram ligadas, (e ainda a uma terceira, a crença na imortalidade, que é a crença de maior expressão metafísica), mas, na prática, podem separar-se, embora a sua separação absoluta gere um desequilíbrio no campo social.» TC, p.65. 34 «É que a extensão social da crença na liberdade só admite uma significação política: o liberalismo. Mas, por outro lado, o Estado moderno, de sentido liberal, deverá ser de tendências sociais ou socializantes, de acordo com a extensão social da crença na imortalidade, que vem a ser a crença no destino humano, que, politicamente, significa: humanismo = socialismo. Portanto, socialmente, ou politicamente, é necessário o equilíbrio entre a significação política da crença na liberdade (= liberalismo) e a significação política da crença no destino humano (= humanismo = socialismo).» TC, p.66. 35 «Ora, correspondendo a crença em Deus a uma necessidade humana de significação para a vida, e sendo, como crença pura, uma indefinição, a “humanização” da crença em Deus (= significação humana da crença em Deus) é uma necessidade prática da crença, ou melhor, corresponde a uma necessidade humana de crença prática.» TC, p.46. 36 «Se pusermos o problema da existência de Deus como um problema de significação, podemos, em crença prática, encontrar uma solução pragmática, por derivação lógica: - se sem a existência de Deus a vida humana (e todas as coisas do seu campo vivencial) não teria (ou não teriam), moralmente, significação, então Deus pode ser considerado, (antropomorficamente), o “Criador”, depois de ter sido considerada, racionalmente, a necessidade da sua existência como significação. Todavia, a “Criação”, (como obra do Criador), não poderá ser encarada racionalmente, (em sentido absoluto), mas sim pragmaticamente, por força da existência da imperfeição, do erro, ou do mal na natureza humana, embora a imperfeição, o erro e o mal possam e devam ser racionalmente encarados, em relação à existência do

11

AAVV, Convergências & Afinidades: homenagem a António Braz Teixeira, Lisboa, CFUL/ CEFi, 2008, pp. 499-519. experiência da fragilidade humana. Não se trata, portanto, da melhor das noções de criação. Não se trata, no entanto, também de uma noção metafísica de criação, mas de uma noção apenas funcional, que não provê senão a uma acepção antropomórfica de Deus, «por meio de atributos à semelhança do homem»37. A crença religiosa em Deus-Criador, é, pois, para ser tomada com a relatividade, que o princípio da tolerância recomenda, como princípio regulador da crença prática. Entretanto, mais do que a concessão pragmática da crença em Deus, como Criador, é a interpretação do cristianismo, que mais expressivamente manifesta a sensibilidade religiosa de Joaquim Braga. Com efeito, apesar da relatividade preconizada a respeito das crenças religiosas, pelo teor de antropomorfismo que comportam, o cristianismo continua a exercer especial fascínio sobre o autor da Teoria da Crença, dada atenção que aí merece. Não, decerto, o cristianismo dos dogmas, construído ao longo da história eclesiástica, mas sim o cristianismo que corresponde à necessidade de humanização de Deus na crença prática. É, como um processo original de humanização de Deus, que Joaquim Braga interpreta o cristianismo. Não se confunda essa humanização com o dogma da Incarnação, que estabelece a dupla natureza humana e divina de Jesus Cristo. O filósofo da crença remete a doutrina da divindade de Cristo para o domínio da fé subjectiva, o que é uma forma de dizer a sua relatividade38. A originalidade da humanização de Deus, no cristianismo, reside no sacrifício voluntário de Cristo na cruz, a experiência-limite da sua humanidade39. O cristianismo radicaliza e homem, como acidentes da evolução, e, portanto, de significado relativo, em função da tendência evolutiva do espírito humano, que sente a necessidade da existência do bem, do belo e do justo, e, bem assim, da existência de Deus, - e ainda por causa da liberdade.» TC, pp.46-47. 37 «Quanto à crença em Deus, como “Criador”, que procura explicar a existência do Mundo, não é antropomórfica por procurar explicar a existência, mas sim porque objectiva a crença (=crença-objecto) pela única forma possível que é por meio de atributos à semelhança do homem.» TC, p.19. 38 «Cristo descobriu um novo sentido do divino para a existência humana, e por isso foi um revolucionário da crença em Deus. Cristo é o símbolo da humanização da crença em Deus, para além de qualquer discussão sobre a naturalidade ou sobrenaturalidade da sua existência (Divindade ou não-Divindade de Jesus). Objectivamente, Jesus foi um homem, e só subjectivamente, pela fé, pode ser considerada em Jesus uma pessoa divina. Por outro lado, toda a Cristologia vai dar à crença em Deus-Pai, ou, se quisermos, à primeira pessoa da Divindade, uma vez que Cristo é considerado como medianeiro entre Deus e os homens. Portanto, partindo da referência Crística, ou, o que é o mesmo, de Cristo, é possível seguir as suas linhas simbólicas, (ou espirituais), para chegar até Deus, para além, ou à margem, da divergência entre Arius e Athanasius. Para além da problemática da intercepção das figurações histórica e mitológica do Cristo, permanece o valor simbólico da sua existência, em função da sua doutrina.» TC, p.55. 39 «O Cristo é o Cordeiro sacrificado no Novo Testamento. Mas não é na troca do animal pelo homem que existe a originalidade na formação ou génese do Cristianismo, na sua relação espácio-temporal, isto é, no espaço e no tempo com que se encontra em relação. O homem, como o animal, já havia sido sacrificado aos deuses. A primeira diferença está, parece-nos, no carácter voluntário do sacrifício, embora indo ao encontro da profecia. E depois na limitação absoluta de todo o sacrifício humano ou animal dos ritos. No sacrifício de Jesus acaba, no sentido crístico da religião, todo o sacrifício legítimo de homem ou animal, integrado no ritual da crença prática.» TC, p.51; «No plano teológico, propriamente dito, descobre-se também, na génese do Cristianismo, o processo original da humanização de Deus pelo sacrifício do humano, única forma compatível, em profundidade, ou altitude, com essa humanização. No Cristianismo, (na génese do Cristianismo), não é a humanização de Deus que é original, mas sim a forma por que essa humanização se processa. E processa-se na cruz. A mitologia grega humanizou os deuses, mas só em superfície, com as virtudes e os vícios humanos aumentados; humanizou-os a rir. O Império Romano humanizou-os na figura dos seus imperadores, tal como o Egipto na figura dos faraós (e na relação de parentesco de pai e filho). Mas nenhuma destas formas de humanização da Divindade anteriores a Cristo se processou segundo um plano teológico (ou mitológico) preestabelecido, com a sua consumação na cruz. E a originalidade também não está, como é sabido, na forma do sacrifício, isto é, na cruz, mas sim no processo de humanização pelo sacrifício, que se consumou na cruz. E por isso a cruz assumiu um carácter simbólico para os cristãos. A Cruz representa o limite material da vida de Cristo, e o

12

AAVV, Convergências & Afinidades: homenagem a António Braz Teixeira, Lisboa, CFUL/ CEFi, 2008, pp. 499-519. aprofunda o processo de humanização de Deus, através da experiência-limite de Cristo, que fora o sacrifício voluntário da sua vida. Esta interpretação do cristianismo, no âmbito de uma teoria pragmática da crença, não pode deixar de nos surpreender. Por um lado, a significação da crença prática em Deus é sempre uma concessão ao antropomorfismo. É certo que Joaquim Braga prefere falar de «humanização», em vez de usar a palavra «antropomorfização», para tratar da significação de Deus na crença prática. Será que «humanização», neste contexto, não significa o mesmo que «antropomorfização»? Ou será que significa quase o mesmo, sem a conotação pejorativa de «antropomorfização»? Julgamos entrever aqui um Joaquim Braga dividido: a humanização de Deus na crença prática, seja que crença religiosa for, é inelutavelmente uma antropomorfização; mas a radicalidade do gesto e a profundez do acto, que é o sacrifício voluntário de Cristo na cruz, não condizem com o carácter desqualificante de uma antropomorfização. Por outro lado, a crença em Deus, ao nível da crença pura, visava, como vimos, o descentramento do homem. Ora, no cristianismo, a humanização de Deus não pode deixar de recentrar o homem, dado que afecta a significação de Deus com uma experiência-limite de humanidade, como a experiência crística de exposição voluntária a um sofrimento de morte. Não pode deixar de ser antropocêntrica, a significação de Deus, mediada por tal extremação da experiência humana, mesmo que não lhe seja acrescentado algum significado salvífico, ponto em que Joaquim Braga é omisso. Não obstante a originalidade da humanização de Deus no cristianismo, essa humanização é um movimento oposto à tendência para o ideal da crença pura. Há, assim, aspectos da sensibilidade cristã de Joaquim Braga, que não se ajustam inteiramente à sua teoria da crença. 3. A crença, a ciência e a metafísica A crença fora inicialmente apresentada numa relação de comparação com a ciência: tal como as ciências mais exactas, as matemáticas, provêm de um saber antropomórfico, como ilustra o procedimento rudimentar da contagem pelos dedos, assim também a crença pura tem origem em crenças antropomórficas. Generalizando a comparação: tal como a ciência evolui com a redução do antropomorfismo, assim também a crença se purifica com um processo análogo. Ciência e crença progridem na medida em que se desantropomorfizam. Um mesmo critério, a desantropomorfização, serve para aferir o progresso da ciência e da crença. Deste modo, a ciência não se impõe contra a crença, mas coloca-se em paralelo com a crença, na teoria braguiana da crença. Mais, a ciência não só se coloca em paralelo com a crença, como também abre espaço à crença no seu âmago. Com efeito, a própria ciência se constrói com base em crenças, que estão na origem das hipóteses que formula a fim se serem testadas pela experimentação científica40. Joaquim Braga sublinha a existência das crenças início da vida espiritual do cristão, como crente na “Ressurreição” (ou na transposição, pelo espírito, dos limites materiais da existência terrena).» TC, pp.51-52. 40 «Foi a crença, aliás como fruto da experiência, de que as coisas se passavam na natureza de acordo com certas relações entre elas, e de que se se encontrassem as constantes dessas relações para determinadas coisas, se poderiam estabelecer as “leis” que as regiam, ou a que obedeciam, aumentando assim o conhecimento sobre elas, foi essa crença, repetimos, que deu significado às experiências ou ensaios dos homens no sentido da ciência, o que não exclui a consideração dos fundamentos teóricos da experiência científica.» TC, p.17; «O criador científico, o homem de ciência de génio, é levado, naturalmente, a crer no sentido religioso da vida, em virtude de criar por intuições. As suas experiências são dirigidas por hipóteses que construiu, partindo de intuições ou crenças, e que as mesmas experiências devem verificar.»

13

AAVV, Convergências & Afinidades: homenagem a António Braz Teixeira, Lisboa, CFUL/ CEFi, 2008, pp. 499-519. científicas, e nelas encontra de novo motivo de comparação com a sua noção de crença pura. Uma diferença fundamental separa os dois tipos de crença: a crença científica aplica-se a objectos e visa dar lugar a uma explicação de objectos, sejam coisas do mundo seja o próprio universo; a crença pura, por seu turno, não se aplica a objectos, nem à experência humana, como a um objecto passível de explicação científica, mas aplica-se à experiência humana, a fim de dar sentido à existência41. Ao contrário da crença científica, a crença pura é totalmente avessa à objectivação: nem a experiência, ou a existência humana, nem a crença, ou o seu sentido, são objectiváveis. Qualquer objectivação trairia o ideal da crença pura. Crença científica e crença pura são, portanto, dois tipos de crença entre si irredutíveis. Com base nesta diferença irredutível, é, entretanto, possível destacar propriedades análogas, como a relatividade e a necessidade. Crença científica e crença pura são ambas relativas, ainda que distintamente: a crença científica é relativa com o seu objecto, enquanto «a crença pura é relativa com a própria experiência humana»42. Note-se que o teórico da crença diz «relativa com», não diz «relativa a», porquanto não é um absoluto exterior à crença, nem o objecto próprio da crença científica, nem a própria experiência humana, subjacente à crença pura. Tanto o objecto da crença científica participa da relatividade desta crença, quanto a experiência humana, na sua globalidade, participa da relatividade da crença que lhe dá sentido. Mas nem por isso, isto é, nem pela respectiva relatividade, os dois tipos de crença deixam de ser de certo modo necessários. Crença científica e crença pura são ambas necessárias, ainda que distintamente: a crença científica é necessária em função da concordância com os factos, enquanto a crença pura é necessária em função do sentido da existência humana43. Os dois tipos de crença são necessários, mas segundo uma necessidade funcional, e, portanto, relativa. Esta necessidade funcional é estruturalmente solidária com a indefinição da crença pura, indefinição devida a humanas limitações metafísicas. Entretanto, não só a ciência abre o seu âmbito à crença, através da noção de crença científica, como a crença se abre à influência da ciência, purificando-se por TC, p.17; «O cientista, antes de construir as hipóteses que dirigem as suas experiências, tem crenças ou intuições, que dão significado ao seu labor científico.» TC, p.18. 41 «Podemos considerar que a crença, qualquer crença, acompanha uma “totalização da experiência”. Mas enquanto que as crenças científicas (=hipóteses) operam sobre objectos, sendo verificadas crucialmente, a “crença pura” só adquire validade pelo seu sentido lógico. É que a crença pura, funcionando embora com a “experiência humana”, não opera, todavia, sobre objectos. É necessário distinguir que a crença dá significado à experiência humana, e não a objectos de experiência.» TC, p.18; «Todas as crenças, que não a crença pura, procuram uma explicação para as coisas existentes, para o Mundo ou para o Universo, de forma que ou as coisas ou o Universo são para elas “objecto de crença” no sentido em que procuram uma explicação da coisa e das suas manifestações. Ora a “crença pura” não explica a experiência humana como objecto, porque a explicação objectiva da experiência humana, por objectos, é trabalho ou assunto para as ciências positivas. Na verdade, é no campo da investigação científica que podemos procurar a explicação, por objectos, da actividade humana. Mas o significado da “experiência humana”, ou o significado que a existência possa ter para o homem, isto é, o sentido da existência, é que só a “a crença pura” nos pode dar. » TC, pp.19-20 42 «Tudo quanto é verificável, tudo quanto está incluído no mundo dos fenómenos, e que, portanto, existe no espaço e no tempo, pode ser objecto de crenças científicas (=hipóteses). Assim, enquanto que as crenças científicas (=hipóteses) são relativas com os seus objectos, a crença pura é relativa com a própria experiência humana, e não com objectos dessa mesma experiência, o que é diferente.» TC, p.21. 43 «De entre as diversas crenças científicas (=hipóteses), construídas para explicar certos fenómenos, pode aceitar-se a que se apresenta mais satisfatória, ou que melhor ou mais amplamente concorda com os factos. Mas, para dar significado à existência, como experiência humana, só pode aceitar-se, em última análise, a “crença pura”, com as suas incógnitas. E por isso esta apresenta um carácter necessário, mas não dogmático, enquanto existirem limitações metafísicas.» TC, pp.21-22.

14

AAVV, Convergências & Afinidades: homenagem a António Braz Teixeira, Lisboa, CFUL/ CEFi, 2008, pp. 499-519. efeito da evolução desta. Na verdade, a teoria normativa da crença, segundo Joaquim Braga, preconiza que a crença não deve entrar em conflito com a ciência44. Esta norma, por assim dizer, só se cumpre aceitando que a crença pode evoluir com a ciência, não só em paralelo com a ciência, mas também em conformidade com os resultados do progresso da ciência. A ciência funciona, assim, como critério de aferição da crença. O processo de purificação da crença resulta desta consideração da ciência, como critério de aferição da crença. Assim, da aplicação deste critério resultou a superação das crenças religiosas como formas de explicação da existência e da natureza das coisas45. O conhecimento objectivo da realidade passou definitivamente do domínio das crenças antropomórficas da religião para o da ciência. A crença pura não se aplica já à existência e à natureza das coisas, que se tornaram objectos de ciência, antes se implica na experiência inobjectivável da existência humana. Deste modo, a crença pura, confinada ao sentido da experiência humana, desloca-se para fora do campo de observância da ciência, e sobrevive à sua influência aferidora. Daí que a superação pela ciência, das crenças antropomórficas de origem religiosa, não se estenda à crença pura46. De novo, a ciência não se impõe contra a crença, especialmente, a crença pura. Para além da ciência, há outro factor a considerar na determinação do valor da crença: a metafísica. Esta não recebe, porém, na Teoria da Crença, a mesma positividade epistemológica que convém com a ciência. Joaquim Braga não o diz, mas segue a tradição kantiana da crítica da metafísica como ciência. Na verdade, a teoria braguiana da crença pura e prática não se compreende sem aspirações e limitações metafísicas. Por um lado, Joaquim Braga assume que o homem tem aspirações metafísicas, como aquelas que se reflectem nos três aspectos da crença pura, mas, por outro lado, o filósofo assume também que o homem padece de «ignorância metafísica», em virtude dos limites do seu entendimento47. Daí a necessidade da crença, em vez da 44

«Mas a crença não deve ser desnaturada na sua essência intuitiva, o que, aliás, seria a sua negação, funcionando sem atritos com a experiência humana, não entrando em conflito com as resultantes do conhecimento científico, histórico ou cultural.» TC, pp.13-14. 45 «Na verdade, desde que as ciências se estruturaram no campo da objectividade, com as coordenadas fundamentais de espaço e tempo, que a explicação dos fenómenos e das coisas passou a ser das suas exclusivas atribuições. E isso impediu que as crenças de carácter religioso continuassem válidas a respeito da natureza das coisas. Todavia, como o fim da ciência não é dar significado à existência, significado que a “explicação” religiosa satisfazia, no seu antropomorfismo, a crença pura, isto é, a crença desantropomorfizada, é ainda válida no sentido em que dá significado à nossa existência, como experiência.» pp.19-20; «A objectivação das crenças religiosas, ou a sua redução à noção de “objecto”, parece ser, pois, uma sobrevivência da mentalidade primitiva, que interpretava as coisas e os fenómenos da natureza como manifestações ou acções dos deuses, se não com os deuses mesmos. Assim os deuses e as coisas, as crenças e os objectos se confundiam. Mas os fenómenos da natureza já não mantêm qualquer ligação com os deuses, permanecendo, porém, os objectos. A crença deixou de possuir sentido físico, para adquirir sentido lógico, não deixando de possuir referência existencial, como não podia deixar de ser. Foi a sua purificação, a redução a crença pura, em face das consequências da investigação científica.» TC, pp.22-23. 46 «E o agnosticismo, como consequência da investigação científica, se fechado em si mesmo, constitui uma situação totalmente problemática, e, portanto, de crise. Ora a “crença pura”, dando significado à experiência humana, adquire sentido lógico para a existência, e apresenta-se como uma solução legítima para a problemática agnóstica. As consequências da investigação científica levam à “desantropomorfização” da crença de sentido religioso, mas não à sua negação absoluta.» TC, p.32. 47 «E a legitimidade da crença, como necessidade, deve procurar-se na sua correspondência com a experiência, visto tratar-se de uma atitude humana, em face da existência, originada pela necessidade de “crer”, que o homem tem revelado através da História, na sua constante procura de significado para essa existência. E é no sentido da crença que o homem encontra uma significação para a vida, capaz de o libertar ou compensar da sua ignorância metafísica.» TC, p.13; «Na verdade, se os problemas transcendentes ultrapassam, de certo modo, os limites do entendimento humano, só a “crença pura” nos resta como guia das nossas necessidades metafísicas.» TC, p.15.

15

AAVV, Convergências & Afinidades: homenagem a António Braz Teixeira, Lisboa, CFUL/ CEFi, 2008, pp. 499-519. ciência; daí a indefinição da crença pura; daí, ainda, a relatividade da crença prática. Tanto a indefinição da crença pura quanto a relatividade da crença prática, previnem o dogmatismo da crença. A teoria normativa da crença pura tem continuação na teoria pragmática da crença prática, porque, a par de aspirações metafísicas, o homem tem também necessidade do concreto. Todavia, a teoria normativa da crença pura não pode encontrar continuidade ou desenvolvimento, segundo Joaquim Braga, numa metafísica: esta é ainda uma via de objectivação e, como tal, de antropomorfização, pelo que constitui, não um desenvolvimento, mas uma regressão relativamente à crença pura48. Mas não há também um preço de objectivação, e, portanto, de antropomorfização, a suportar a respeito quer da crença científica quer da crença prática? Joaquim Braga suporta esse preço nestes dois tipos de crença, mas já não faz o mesmo a respeito das crenças metafísicas. Por isso, estas devem permanecer puras, isto é, indefinidas. Esta discriminação negativa da metafísica parece-nos ser uma interrupção frustrante desta da teoria da crença, que encaramos, sobretudo, como uma profilaxia antidogmática. Ora, múltiplos são os caminhos da metafísica, que não se impede de tomar precauções anti-objectivantes, desantropomorfizantes e antidogmáticas; múltiplos são, pois, também os caminhos da metafísica, que poderão continuar a teoria da crença, de Joaquim Braga.

48

Daí a diferenciação explícita da teoria da crença, relativamente a vias metafísicas: «Do ponto de vista da teoria da crença, isto é, do nosso ponto de vista, a vida não entra, como um todo qualitativo, ou como objecto de crença, num esquema de causalidade-finalidade, o que seria seguir vias metafísicas, e que nos levaria à criação de uma crença-objecto, com um carácter necessariamente antropomórfico.» TC, p.31; «A crença pura não é uma razão explicativa de uma finalidade da existência – e isso seria fazer metafísica – mas é um meio de significação para a existência, como experiência humana.» TC, p.31.

16

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.