UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, USP - FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS, FFLCH - \"HOMOSSEXUALIDADE E CONSUMO ESTÉTICO EM PARAISÓPOLIS\"

June 2, 2017 | Autor: Leonardo Francez | Categoria: Estética, Psicologia Social, Análise Experimental Do Comportamento, Homossexualidade
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ­ USP  FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS – FFLCH 

Ciências Sociais – 2015  Vespertino              RELATÓRIO FINAL  MÉTODOS E TÉCNICAS DE PESQUISA II   HOMOSSEXUALIDADE E CONSUMO ESTÉTICO EM  PARAISÓPOLIS                    Julia Laura Rezende   Juliana Rodrigues Alves   Leonardo Gonçalves Francez   Vinicius Guimarães Ribeiro da Cunha   

Parte I – O problema de pesquisa    1 – Tema de pesquisa    O  tema  escolhido  para   a  realização  da  pesquisa  fundamenta­se  nas  relações  entre  homossexualidade,  identidade,  preconceito  e  consumo  na  favela   de  Paraisópolis. ​ A  escolha  do  tema  se  explica  a  partir  do  interesse de estudar uma população estigmatizada por conta da  homossexualidade  e,  ao  mesmo  tempo,  marginalizada, por viver em Paraisópolis: uma favela  que  se  encontra   em  um   contexto  de  pobreza  geograficamente  circunscrito  por  uma região de  altíssima  renda  (ALMEIDA   e  D'  ANDREA, 2004). Além disso,  pesquisas sobre preconceito,  identidade  e  mercado  gay,  hoje  em  dia,  são  majoritariamente  realizadas  nos Estados Unidos,  em  oposição  a  um  número  ainda  discreto  de  estudos  realizados  no  Brasil  (NUNAN,  2003).  Assim,  entendemos  que  a  pesquisa  qualitativa  realizada  é necessária para melhor entender as  relações  entre  homossexualidade,  preconceito,  identidade  e  comportamento  de  consumo  estético homossexual em Paraisópolis.    2 – Levantamento bibliográfico   

Nunan, 



Adriana. 

padrões de consumo​ .  Ed 

Homossexualidade:  do  preconceito  aos  Caravansarai   Ltda,  Rio  de  Janeiro,  2003  ­  págs. 

70­79;  116­136;154­200; 260­330.  Neste  livro,  Adriana Nunan, Doutora em Psicologia Clínica e Pós­graduada em Comunicação  Social,  pretende  analisar  o  que  significa  ser  homossexual  a  partir  do  ponto  de   vista  do  consumo  estético  gay. Isto é, assume­se que o consumo estético possui papéis determinados e  influenciados  pelo  estigma,   preconceito,  aceitação,  encobrimento  e  afirmação  da  identidade  homossexual, que podem ser identificados e relacionados a tais estratégias.      ●

PEREIRA, 

Bill; AYROSA, Eduardo André 

Teixeira;  OJIMA,  Sayuri. 

Consumo  entre  gays:  compreendendo  a  construção  da  identidade  homossexual 

através do consumo. Cad. EBAPE.BR​ ,    Rio  de 

Janeiro , v. 4, n. 2, p. 01­16, June 2006 . Available  from  . 

access on 10 Sept. 2015. 

http://dx.doi.org/10.1590/S1679­39512006000200002.  Este  estudo  procura  entender  a  forma  como  os  gays  interagem  com  o  mundo  dos  produtos,  observando  as  mudanças  nos  hábitos   de  consumo  gay  antes  e  depois  do  ​ coming  out​ ,  rito  de  passagem  caracterizado  pela  adoção  pública   da  identidade  homossexual,  isto  é,  a  “saída  do  armário”.  O  estudo  destaca  que  o  consumo  participa,  portanto,  de  estratégias  de  negação,  camuflagem e reforço da identidade homossexual.   

MACHADO,  Maíra  do Vale; PEREIRA, Severino Joaquim Nunes. 



Espelho, 

Espelho  Meu?  Consumo  Estético  e  Construção  da 

Identidade da 

Mulher. 

http://www.fucape.br/_public/producao_cientifica/2/Maira.pdf  Esse  texto  procura  relacionar  a  construção  da  identidade  feminina  com  o  consumo estético e  busca pela beleza, percebendo como a mulher percebe e reage à pressão estética social.   

ALMEIDA,  Ronaldo de; D’ANDREA, 



Tiarajú. ​ Estrutura  de 

oportunidades em uma favela de São Paulo. 

In.“Pobreza 

sociais em uma favela de São Paulo ”In: Novos Estudos, 

São  Paulo:  Cebrap,  n.  68, 



redes 

mar, 2004  http://www.fflch.usp.br/centrodametropole/antigo/v1/pdf/Ronaldo_Tiara_Cap8.pdf  Ronaldo  de  Almeida  e   Tiarajú  D'Andrea  procuram  relacionar  a  favela  de  Paraisópolis a uma  estrutura  de  oportunidades,  dado  o  seu  contexto  específico  no  centro  de  uma  região  de  alta  renda  da  cidade  de  São  Paulo.  O  texto  apresenta  uma  contextualização  importante  de  Paraisópolis, assim como informações sobre a sua origem.    ●

GOFFMAN,  Erving. ​ Estigma: 

Identidade Deteriorada. 

Notas  Sobre  a  Manipulação  da 

Tradução  de   Márcia  Bandeira  de  Mello  Leite 

Nunes. 4 ed. Rio de  Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1988  Neste livro, Goffman analisa o estigma, marca negativa que outorga um status social baixo ao  indivíduo que o possui. O estigma é analisado em face da identidade pessoal e social, além do  alinhamento  grupal.  A  partir disso, Goffman fala ainda sobre o controle de informações sobre 

as  quais  o  indivíduo  estigmatizado  lida  em  seus  contatos  sociais,  utilizando­se  ora  de  estratégias para revelar seu estigma ora para escondê­lo.    ●

FONTES, 

Olivia de Almeida; 

BORELLI, 

Fernanda 

Chagas; 

CASOTTI, Leticia Moreira. ​ Como  ser  homem  e  ser  belo?  Um  estudo 

exploratório 

sobre  a  relação  entre  masculinidade  e  o  consumo 

de beleza​ .  REAd. Rev. eletrôn. adm. (Porto Alegre), Porto Alegre , v. 18, n.  2,  p. 400432, Aug. 2012 . Available from . access on 8 Sept. 2015.  http://dx.doi.org/10.1590/S141323112012000200005  Este  estudo pretende entender como funciona o consumo masculino de produtos e serviços de  beleza,  identificando  as  estratégias  de  manipulação  das  práticas de beleza para construção de  papéis sociais e identidades de gênero.    ●

BORRILLO,  Daniel.  ​ Homofobia:  História  e  Crítica  de  um  Preconceito​ .  Editora autêntica, ed. 1. 2010 – Belo Horizonte 

Neste  livro,  Daniel  Borrillo  pretende  identificar  as  causas  e  manifestações  da  homofobia,  além  de  relacioná­la  com  outras  formas  de  estigmatização  e  descriminação,  mostrando  a  homofobia  como  um  fenômeno  complexo  e  variado.  Borrillo  evidencia  as  relações  que  se  formam  em  uma  sociedade  heteronormativa  e  seus  desdobramentos  na  homofobia,  além  da  forte questão de gênero existente no tema.    ● RADCLIFFE­BROWN,  Alfred  Reginald.  ​ Sobre  a  estrutura  social​ .  PIERSON,  Donald.  1970.  Estudos  de  organização  social  –  Tomo  II:  leituras  de  sociologia  e  antropologia social. São Paulo: Martins. p. 156­173.   Nesse  texto,  Radcliffe­Brown  faz  uma  análise  sobre  o  estruturalismo  na  antropologia  social,  esclarecendo  posturas  etnológicas  vigentes  em  sua  época.  O  autor  destaca  o  papel  central da  estrutura social, destacando, porém, que sua análise deve seguir métodos específicos.         

3 – Definição do problema de pesquisa    A  questão  de  pesquisa  é:  como  os  homossexuais  masculinos  de  Paraisópolis  lidam  com  o  estigma  e  preconceito,  no  processo  de  assumir  a  homossexualidade  socialmente,  através  do  consumo estético?  De  acordo  com  Adriana  Nunan,  em  “Homossexualidade:  dos  preconceitos  aos  padrões  de  consumo”,  enquanto  que  a  homossexualidade  não  é  uma  escolha,  por  outro  lado,  o  processo  de  saída  do  armário,  “coming  out”,  isto  é, assumir a identidade homossexual publicamente, é  uma  tomada  de  decisão  do  indivíduo.  Nas  palavras  de  Nunan,  o  sujeito  faz  a  opção   de  ser  socialmente  homossexual  e  não  de  desejar  homossexualmente (TREVISAN, 2000). Assim, é  durante  esse  processo  que  o  estigma  homossexual  deve  ser  superado,  e  o  comportamento  de  consumo  estético  em  relação  ao vestuário e ao corpo permeia tal superação, como uma forma  de  lidar com o preconceito. O consumo apresenta, portanto, um importante papel durante esse  rito  de  passagem,  onde  produtos  e  serviços  são  transformados  em  artefatos  de  consumos  ritualísticos impregnados de grande valor simbólico (PEREIRA; AYROSA e OJIMA, 2006).  Assim,  Nunan  destaca  que  antes  da  saída  do  armário,  o  homossexual  vive  uma  constante  manipulação de informações, procurando esconder sua identidade.    Após  a  saída  do  armário,   o   consumo  passaria  a  possuir  outro papel, construindo e afirmando  uma  identidade  homossexual  e  não  procurando  disfarça­lá.  A  partir   desses  pressupostos,  formulamos  a  questão  de  pesquisa   para  entender  de  que  forma   o   consumo  estético  transforma­se  durante  o  processo  de  saída  do  armário,  compreendendo  melhor  como  se  dá  a  adoção  pública  da   identidade  homossexual  e  sua  relação  com  o  comportamento  de  consumo  estético do indivíduo.      4 – Hipótese    A  hipótese  central  se  baseia  na  possibilidade  de  os  indivíduos  homossexuais  masculinos  da  favela  de  Paraisópolis  sofrerem  uma  modificação  em  seu  comportamento  de  consumo  estético  nos  estágios  anterior  e  posterior  ao  “coming  out”,  em  outras  palavras,  na  adoção  pública  de  sua  identidade  homossexual.  Assim,  no  rito de passagem da “saída do armário”, o 

indivíduo  homossexual  sofre uma mudança nos hábitos de consumo,  cabendo estudar aqueles  relacionados  à  estética  do  indivíduo:  discutindo,  principalmente,  a  estética  das  roupas  e  a  estética  do  corpo.  O  consumo estético é importante na construção da  identidade homossexual  do  indivíduo,  pois  na  base  das  estratégias  de  negação,  de  camuflagem  ou  de  reforço  de  tal  identidade  podemos  encontrar  diferenças  comportamentais.  Assim,  a  hipótese  pode  ser  apontada  da  seguinte  forma:  antes  da  adoção  pública  da  identidade homossexual,  o  consumo  estético  funciona  como  estratégia  de  encobrimento,  negação  e  camuflagem de tal identidade.  Depois  da  adoção  pública  da  identidade  homossexual,  o consumo estético passa a  ter o papel  de afirmação e reforço da mesma identidade.    Assim,  de  acordo  com  a  hipótese,   durante  a  “saída  do  armário”, ou seja, a adoção pública da  identidade  homossexual;  a  relação  do  individuo  com  produtos  e  serviços  se  transforma  devido  ao  grande  valor  simbólico  que  tais  elementos  possuem  em  sua  vida,  junto  a  positivação  e  a  contribuição  destes  na  construção  de  tal  identidade  (PEREIRA;  AYROSA   e  OJIMA,  2006).  Da  mesma  maneira,  produtos  e  serviços  são  importantes  na  construção  da  identidade  de  homens   e  mulheres  heterossexuais  (MACHADO  e  PEREIRA,  2010;  BORELLI, CASOTTI e FONTES, 2012).    No  movimento contrário, antes da “saída do armário”, o indivíduo homossexual passa por um  “encobrimento”  em  suas  interações  sociais,  em  que  ele  esconde   e  manipula  informações  sobre  sua verdadeira  identidade, ou seja, ele possui um controle estratégico sobre sua imagem  através  do  consumo  estético.  Esta  prática  pode  ser  muito  bem  avaliada  no  momento anterior  ao  “coming  out”,  em  que  o  indivíduo  homossexual  camufla  sua  real  identidade,  a  qual  está  inteiramente  ligada  ao  estigma  da  identidade  homossexual,  para  não  perturbar  suas  relações  sociais;  o  que  não  significa  que  tal  camuflagem  não  se  realiza   no   momento  posterior  ao  “coming  out”.  Dessa  maneira,  vive­se  uma  “vida  dupla”,  um  “inferno”  de  todos  os  dias  em  que  o  indivíduo  não  pode  revelar  sua  real  identidade.  Nisso,  o  consumo  estético  precisa  ser  bastante  cuidadoso,  pois  tudo  deve  remeter  ao  padrão  estético  do  mundo  heterossexual.  A  partir  do  contraste  do  consumo  estético  do  indivíduo  antes  e  depois  do  “coming  out”,  podemos  compreender  como  ele  lidou  com  o  “encobrimento”  de  sua   real  identidade  (NUNAN, 2003).   

A  partir  da  categorização  dos  indivíduos  numa  sociedade,  devido  ao  estabelecimento  de  determinados  atributos,  surge  uma  identidade  social.  Tal  identidade  compõe­se  ora  de  atributos  desejáveis,  ora  de  atributos  não  desejáveis.  Estes  correspondem  aos  que  são  incongruentes  com  o  estereótipo  que  criamos  para  um  determinado  tipo  de  individuo,   como  um  defeito,  uma  fraqueza,  uma  desvantagem.  Em  outras  palavras,  uma  marca  pública  que  outorga  ao  indivíduo  um  status  social baixo. Esta marca é denominada estigma (GOFFMAN,  1988).  O  estigma  representa  uma  ameaça  social,  seja  ele  camuflado  seja  ele  revelado  pelo  indivíduo.  Todo  estigma  é  carregado  de  um  forte  simbolismo,  o qual influencia as formas de  tratamento  e  julgamento  de um indivíduo para outro em determinada situação, sendo causa da  depreciação  e  de  experiências  com  preconceito  e  discriminação  (NUNAN,  2003).  O  indivíduo homossexual, portanto, carrega o estigma da sua homossexualidade.    Na  “saída  do  armário”,  o  indivíduo  transita  de  uma  posição  social  determinada  para  outra.  Cada  posição  social  é  marcada  por  papéis  sociais,  dentre  estes  o  indivíduo   pode  ocupar  um  papel  de  estigmatizado.  No  caso,  ao  se  assumir  como  homossexual, o indivíduo é obrigado a  conviver  com  tal   estigma  em  suas  relações  sociais  de modo que esta marca seja aparente. No  entanto,  como  é  possível  perceber, o indivíduo lida com o estigma da homossexualidade com  estratégias,  comportamentos,  hábitos  e  práticas,  seja  antes  ou  depois  do  momento  em  que  revela  seu  status  social  estigmatizado  para  vários  públicos.  E  essa  camuflagem  ou  revelação  pode  ser  instrumentalizada  a  partir  do  consumo  estético  do  indivíduo  (PEREIRA; AYROSA  e  OJIMA,  2006). A identidade  homossexual é conferida como um defeito a ser “reparado” no  interior,  e  apenas  no  interior,  de uma socialização heteronormativa,  a qual constrói e delimita  a homossexualidade numa ótica estigmatizante.    No  entanto,  ao longo da pesquisa, a  hipótese se mostrou incompleta já que não possibilitava a  compreensão  de   todos  os  casos  encontrados.  Especialmente  no  que  diz  respeito  ao  papel  do  consumo  estético  após  a  “saída  do  armário”,  ficará  evidente   que  os  indivíduos  nem  sempre  adotam  estratégias  de  afirmação  de  sua  homossexualidade,  encaixando­se  em  uma  lógica  heteronormativa  e  por  vezes  utilizando  outras  esferas  que  não   a  do  consumo  estético  para  lidar com o estigma homossexual.    5 – Demarcações de campo e referencial empírico 

  A  definição  do  referencial  empírico  baseou­se  na   bibliografia  de  apoio  consultada,  especialmente  o  livro  “Homossexualidade:  do  preconceito  aos  padrões  de  consumo”  de  Adriana  Nunan  e  no  artigo “Consumo entre gays: compreendendo a construção da  identidade  homossexual  através  do  consumo”,  de  Bill  Pereira,  Eduardo  André Teixeira Ayrosa e Sayuri  Ojima.  Nesses  estudos,  os  autores  optaram  por  trabalhar  com  homossexuais  masculinos  assumidos,  isto  é,  homens  gays  fora  do  armário.   Não  foram  incluídos  homens  transsexuais.  Assim,  procuramos  adotar  o  mesmo  procedimento. É preciso esclarecer,  no  entanto, que nem  todos  os  entrevistados  haviam  adotado  a  identidade  homossexual  publicamente  em  todas  as  esferas  de   seu  convívio,  assim,  em  um  dos   casos,  o  entrevistado  não  se  considerava  “assumido” para a família e sim apenas para os amigos.  Para  localizar   esses  sujeitos  em  Paraisópolis,  utilizamos,  primeiramente,  o  contato  de  uma  assistente  social,  Eliana,   que  trabalha  atualmente  no  programa  “Einsten  na  Comunidade  de  Paraisópolis”.  Eliana  recomendou  que  procurássemos  a  União  de  Moradores.  Neste   lugar,  conversamos  com  o  diretor  do  estabelecimento,  Isaac,  que  indicou  um  amigo  pessoal  assumidamente  gay,  Diogo.  Ele  aceitou  participar  da  pesquisa  e  realizar  uma  entrevista.  Os  outros  entrevistados  serão  localizados  pela  técnica  conhecida  como  ​ snowball  sampling,  ​ ou  “bola de neve”. Nessa técnica, o entrevistado indica um conhecido para participar da pesquisa  e  esse  novo  entrevistado,  por  sua  vez,  faz  o  mesmo.  É  importante  destacar  que  o  recorte  geográfico  se  restringe  a  Paraisópolis,  apenas  fazendo  parte da pesquisa sujeitos que residam  na favela.  A  favela  de  Paraisópolis  localiza­se  na  zona  sul  da  cidade  de  São  Paulo,  mais  especificamente  no  centro  de  uma  das  regiões  mais  ricas  da  cidade,  o  bairro  do Morumbi. A  favela  se  originou  da  ocupação  de  terrenos  loteados,  a  partir  da  década  de  1920,  em  grande  parte  por  migrantes  nordestinos.  Na  década  de  1970,  houve  um  grande  salto  populacional,  fortemente  atrelado  ao  crescimento  do  Morumbi,  pois  a  expansão  de  empreendimentos  mobiliários  nesse  bairro  “determinou  a  fixação  de  uma  população  atraída  pela  demanda  de  mão­de­obra  para  construção  civil”  (ALMEIDA  e  D'  ANDREA,  2004).  Paraisópolis  possui,  portanto,  diversas  fronteiras  com  regiões  onde  se  localizam  requintadas  mansões  e  condomínios.  O  centro  de  Paraisópolis,   região  mais  antiga  da  favela  e  onde  há  grande  concentração  do  comércio,  é  caracterizado  por  ruas  uniformemente  perpendiculares  e  asfaltas.  É  no  centro,  portanto,  que  se  encontram  as  melhores  condições  urbanas  da  favela. 

Paraisópolis  apresenta  uma  população  bastante  elevada  e  as  residências  são, em sua maioria,  construídas  através  de  “puxados”  (ALMEIDA  e  D'  ANDREA,  2004),  isto  é,  pequenas  anexações  informais nas construções, conforme estas se fazem necessárias. Assim, o contexto  em  que  se  inserem  os  entrevistados  se  mostra  peculiar,  na  medida  que  uma   região  pobre  é  circunscrita  por  uma   das  regiões  mais  ricas  da  cidade,  provocando  contrastes  em  muitas  esferas sociais.  Voltando­se  agora  especificamente  para  o  público  gay  em  Paraisópolis,  percebemos,  a partir  do  trabalho  de  campo,  que  não  há  espaços  públicos  de  socialização  entre  indivíduos  homossexuais  masculinos,  semelhantes  à  região  central  de  São  Paulo,  como  restaurantes,  bares  e  baladas.  A  recorrência  da  fala  dos  entrevistados  em  relação  ao  assunto  voltava­se  sempre  para  uma  reunião  privada  entre  amigos  gays  na  casa  de  um  indivíduo  do  círculo  de  amigos  destinada  ao encontro ou então se referia a ida à espaços de socialização acessíveis na  região  central   ou   em  outros  pontos  de  São  Paulo,  principalmente  casas  noturnas  no  final  de   semana.    

Parte II ­ O Trabalho de Campo    1 ­ Descrição do trabalho de campo. 

   O  trabalho  de  campo  teve  início  a  partir  do  primeiro  contato  que  obtivemos   na  comunidade  de  Paraisópolis:  Eliana.  A  partir  de  saber  pela  sua  tia, Juliana logo se prontificou a perguntar  pra  ela  qual  seria  o  nome  e  o  número  dela  .  Como  assistente  social,  atualmente  trabalha  na  Comunidade  Albert  Einstein  em  Paraisópolis.  Foram  várias  trocas  de  e­mails,  e  o  horário de  ambos  os  integrantes  do  grupo  e  a  assistente  eram  sempre  conflituosos.  Após  algumas  conversas  então,  foi   decidido  que  o  encontro  seria  às  15  h,  do  dia  09  de  Setembro  de  2015.  Eliana  foi  desde  o  começo  muito  atenciosa,  e  nos  informou  com  muita  precisão  onde  se  situava  o  lugar  da  Comunidade  Albert  Einstein:  Rua  Manoel  Antônio  Pinto,  número  285.  Para  chegarmos  até  lá,  fomos  os  quatro  integrantes  utilizando  de  transporte  público:  No  terminal  Butantã,  tomamos  a  linha  4,  amarela,  do  metrô.  Descemos  na  estação  Pinheiros  e  partimos  em  direção  à  estação  Santo  Amaro,  que  si  situava  sentido  Grajaú   da  linha  9,  esmeralda,  da  CPTM.  Chegando  na   estação,  fizemos  uma  baldeação  com  a  linha  5,  lilás  do 

metrô,  e  descemos  na  estação  Giovanni  Gronchi.  Na  estação,   pegamos um circular da região  do  Morumbi,  bairro  que  faz  divisa   com  a  favela  e  descemos  numa  das  divisas  entre  Paraisópolis e o bairro, numa das ruas mais íngremes da favela.     Atrasamos  um  pouco  para   o   encontro,  mas  algo  cerca de 15 minutos. O local estava cheio de  crianças  e   acabamos  descobrindo  o  porquê:  o  local,  estava oferecendo aulas de capoeira para  crianças,  além   de  corte  e  costura  para  adultos.  Quando  entramos,  o  local  estava  cheio  de  desenhos  de  crianças  atendidas  pelo  projeto,  além  de  exposições  relembrando  o  período  da  escravidão, e um quadro sobre comidas típicas de cada região do Brasil.     Após  uma  espera  bem  curta,  fomos  atendidos  por  Eliana,  que  logo  se  prontificou  em  ajudar­nos.  Perguntou­nos  sobre   o   trabalho,  o que nos motivou a escolher esse tema e porque  estudar  Paraisópolis.  Após  alguns  diálogos sobre o projeto de pesquisa, afirmamos precisa de  outros  contatos  para  que  pudéssemos  entrevistar,  e  depois  de  passar  alguns  nomes  que  frequentavam  a  própria  Einstein,  nos  sugeriu  que  fôssemos  à  União  de  Mulheres,  e   à  União  de  Moradores  de   Paraisópolis,  já  que  se  nos  apresentássemos  lá,  seria  parte  ideal  de  nosso  trabalho  na  região.   Então,  assim  que  saímos  da  comunidade  Einstein,  fomos  em  direção  à  União de Moradores.  No  local,  fomos  atendidos  por  Isaac,  diretor  da  União  de  Moradores,  que  trata  dos  assuntos  gerais  quando  o  presidente  do  local  não  está  por  lá.  Seguimos  basicamente  o  procedimento  que  o  ocorrido  com  Eliana,  explicando  nosso  projeto  de  trabalho  e  demonstrando  nossa   hipótese.  Assim,  afirmamos  nossa  procurar  por  indivíduos  homossexuais  masculinos  assumidos  na  comunidade,  e  Isaac  logo  nos  passou  alguns  nomes  de  conhecidos  dele.  Entre  eles, estava o número de Diogo, que viria a ser nosso primeiro entrevistado para a pesquisa.     Na  União  de  Moradores  de Paraisópolis,  tivemos uma recepção calorosa por parte da maioria  que  estava  lá  naquele  momento:  numa  sala,  patrocinada  por  uma  marca  de  refrigerantes,  crianças  estavam  tendo  aula  de  computação,  e  em  outra  sala,  no  mesmo  corredor,  mulheres  estavam  tendo  aula  de  corte  e  costura.  Quando  Isaac   disse   “Esses  são   estudantes  da  USP,  estão  fazendo   um  trabalho  aqui  em  Paraisópolis”,  elas  logo  sorriram  e  nos  cumprimentaram  de  longe.  Na  própria   União,  Isaac  nos  mostrou  o  espaço  todo,  como  uma  cozinha,  que  teria  cursos  de  culinária  aos  fins  de  semana,  e  uma  sala  cheia de cadeiras, uma antiga sala em que 

o  curso  de  balé  da   União  era  administrado,  mas  acabou  sendo  deixada  de  lado.  Essa  mesma  sala serviria futuramente como local de entrevistas para a pesquisa.     Ao  sairmos  de  lá,  fomos  acompanhados  por  Isaac  até  o  ponto  de  ônibus,  que  segundo  ele,  seria  muito  mais  fácil  para  chegar  à  favela, do que chegar à “fronteira” e atravessar andando.  Passamos  pelo  chamado  “centro”  de  Paraisópolis, com muitos comércios, como uma loja das  Casas  Bahia,  por  exemplo.  Esperamos  o  ônibus,  e  após chegar, demoramos em torno de uma  45  minutos  para  voltarmos  à  estação  Faria  Lima,  de  onde  iríamos  para  o  terminal  Butantã,  num total de trajeto de uma hora, aproximadamente.     A  segunda  ida  a  campo  foi  feita  por  apenas  um  integrante  do  grupo do trabalho  de pesquisa,  Leonardo.  Esta  foi  feita  no  dia 26 de setembro de 2015, à noite, em torno de 21h quando saiu  da  Cidade  Universitária.  No   dia  anterior,  em que todos fomos para a União, Isaac nos fez um  convite  para  irmos  à  inauguração  de  um  bar  na  região,  em  que  as  donas  do  bar  são  homossexuais,  e  então  poderia   lá,  haver  outros  homossexuais  masculinos  com  quem  pudéssemos  conversar.   No entanto, pelo evento ser logo depois ao do encontro, apenas um de  nós  poderia  comparecer.  Logo  Leonardo  saiu da estação Butantã em torno das 21h, e foi pelo  trajeto  de  trem  e  metrô  até o terminal João Dias. De lá, ele pegou um ônibus até Paraisópolis,  indo  até  o  ponto  final.  Isaac  o  buscou  a  pé,  e  foram  antão  a  pé  até  o  local, chamado “I Love  Potato”,  o  apresentou  para  todos   que  estavam,  lá.  Era  uma  “re­inaguração”,  estava  muito  cheio  e  era  difícil  entrar  e  andar  por  lá.  Leonardo  se  enturmou  bastante,  mas  não  chegou  a  fazer  contato  com  algum  homossexual  masculino,  logo  ficou  pouco  tempo, em torno de uma  hora, e retornou ao seu trajeto inicial.        Nossa  terceira  ida  a  campo  foi  para  a  primeira  entrevista  a  ser  realizada.  Após  Isaac  nos   passar  alguns  contatos,  escolhemos  nos  comunicar  com  Diogo,  que  segundo  o  diretor  da  União  de  Moradores   de  Paraisópolis,  tinha  uma  companhia  de  teatro,  e  cuidava  de  todos  os  assuntos  relacionados  a  arte  e  a  cultura  na  favela,  e  era  um  homossexual  assumido.  Assim,  após  trocar  algumas  mensagens  via  WhatsApp,  combinamos  de  encontrá­lo  no  dia  13  de   outubro  de  2015,  na própria União. Isaac foi o mediador do encontro e nos ofereceu a própria 

União  para  que  pudéssemos  realizar  a  entrevista,  que  ocorreria  na  sala  de  ballet  desativada,  no primeiro andar do local.  Para  a  entrevista,  utilizamos  um  gravador  Sony,  com  capacidade  pra  12  horas  de  gravação  ininterruptas. Na entrevista, Julia e Leonardo compareceram.     Para  chegar  ao  local,  no  horário  marcado  de  14h,  na  União  de  Moradores  para  a  entrevista,  tomamos  um  ônibus  na  estação  Faria  Lima,  o  circular  7040,  e  descemos na região central de  Paraisópolis,  na  ​ Rua  Melchior  Giola.  ​ A  rua  da  União  de  Moradores  ficava  bem   próxima,  na  Rua  Enerst  Rennan.  Ao  chegarmos  lá,  ficamos  esperando  alguns  minutos  e  nosso  entrevistado,  Diogo,  então  chega.  Com  o  primeiro  roteiro  de  entrevistas  já elaborado, demos  início  a  entrevista.  Com a duração de uma hora e quarenta e dois minutos, a conversa fluiu de  forma  bem  amistosa e tranquila, e Diogo não se sentiu desconfortável em responder nenhuma  delas.  Fomos  muito  bem  atendidos  por  todo  o  pessoal  da  União,  e  nossa  primeira  entrevista  foi  um  sucesso.  A  partir  da  conversa  e  de  diversas  histórias  relacionadas  a  sua   homossexualidade e o consumo, tiramos algumas conclusões que seriam refutadas mais tarde,  após a apresentação do relatório parcial.     Nossa  quarta  ida  a  campo  foi  para  a  entrevista  de  Anderson,  um  dos  vários  contatos  que  conseguimos  através  de  Diogo,  o  primeiro  entrevistado.  Anderson,  agente  de  saúde,  homossexual  assumido  e  morador  de  Paraisópolis.  Para  a  entrevista,  Leonardo  e  Vinícius  compareceram,  e  fizeram  o  mesmo  trajeto,  a  partir  da  estação  Butantã.  Novamente,  a  entrevista  ocorreu  na União de Moradores de Paraisópolis no dia 17 de novembro  de 2015, às  15  horas,  na  sala  do  setor  de  comunicação  e  imprensa  na  União,  oferecida  para  a  parte  de  divulgação  da União. Esta fluiu tranquilamente, já com algumas pequenas alterações feitas no  roteiro,  em  que  fez­se  necessária a adequação das perguntas ao tema pesquisado. A entrevista  toda teve um total de uma hora e onze minutos. Anderson mostrou­se muito atencioso e gentil  para  ajudar   na  nossa  pesquisa  de  campo  e  em  nenhum  momento,  recusou­se  a  responder  alguma questão.     Nossa  quinta  ida  a  campo  ocorreu  no  dia  20  de  novembro  de  2015,  às  10  h.  Na  quinta  ida,  realizamos  uma  nova  entrevista,  que  no  caso  seria  realizada  com outro contato oferecido por  Diogo,  no  esquema  “bola  de  neve”:  Marcos,  um  jovem  de  24  anos  que  sempre  esteve 

envolvido  com  o  cenário  cultural  e  teatral  de  Paraisópolis.  Marcos  conheceu  Diogo  quando  também  esteve   envolvido   com  a  companhia  teatral  Cia.  TP,  a  qual  foi  idealizada  por Diogo.  A  entrevista  ocorreu  no  espaço  CEU  Hebe  Camargo,  de  Paraisópolis,  localizado  na  Rua  Dr.  José  Augusto  de  Souza  e  Silva.  Na  ocasião,  compareceram  Julia  e Juliana, que  após fazerem  o  mesmo  trajeto  da  estação  da  Faria  Lima,  porém,  desceram  na  rua  do  CEU,  sem  saberem  que  li  seria  o lugar da entrevista, e após alguns imprevistos, foram andando e chegaram numa  rua  a  qual  faz  cruzamento  com  a  União  de Moradores. O ponto de  encontro entre as meninas  e  Marcos  seriam  em  frente  a  União,  já  que  Marcos  mora  perto  e  seria  o  ponto  mais  fácil  de  ser  encontrado  pelas  pesquisadoras.  Após  alguns  breves  minutos,  Marcos  chega  e  nos  acompanha  andando  até  o  CEU,  cerca  de  dez  ou  quinze  minutos  distantes  da  União.  Muito  receptivo,  fomos  explicando  sobre  o  que  se  tratava  o  trabalho,  o  que  ele   fazia,  e  no  que  trabalhava.     Ao  chegarmos  no  CEU,  nos  acomodamos   num  espaço  com  algumas  mesas  e  cadeiras,  um  espaço  coberto   com  várias  quadras de basquete, em que um grupo  estava  jogando próximos  a  nós.  Toda  a  conversa  fluiu  muito  bem,  e  de  forma  bem  tranquila,  novamente.  A  entrevista  teve  uma  duração  de  uma  hora  e  vinte  minutos  no  total.  Ao  final,  nos  acompanhou  até   o   ponto  de  ônibus  mais  próximo  e explicou onde seria mais fácil para nós. Durante nossa visita  ao  CEU,  observamos  muitas  fotos  sendo  expostas,  de  rapazes  vestidos  de  forma  social  e  tiradas  no  meio  da  comunidade.  Ao  perguntar  sobre  quem  eram  essas  fotos, Marcos nos fala  que  é  de  um  estilista  muito  famoso  na  região,  nascido  na  favela  e  homossexual  assumido.  Demonstramos  interesse  em  contatar  então  esse  rapaz,  e assim, Marcos nos passou o número  dele, o que acabaria nos levando a nossa última entrevista.     A  sexta  ida  a  campo  então  foi  realizada  para  nossa  última  entrevista.  Após  conversas  via  ligação,  conseguimos  contatar  Alex,  o  estilista  de  Paraisópolis,  para  uma  entrevista,  sendo  algo  combinado  bem  rapidamente,  e  desse  modo,  apenas  uma  pessoa  do  grupo  pôde  comparecer:  Leonardo.  A  entrevista  ocorreu  na  União  de  Moradores,  na  mesma  sala  de  balé  desativada,  situado  na  Ernest  Rennan,  às  10  horas  do  dia  24  de  novembro  de  2015.  Novamente,  tudo  ocorreu  perfeitamente  bem,  e  a  entrevista  teve  uma  duração  de uma hora e  trinta  e  três  minutos.  Após  a  entrevista,  partimos  para  o  CEU,  para ver a exposição das  fotos  

de  Alex,  sobre  a  qual   o   último  entrevistado  havia  comentado.  Percebemos  a  importância  do  CEU para a favela, e o quão sua estrutura traz benefícios a toda população atendida. 

     2­ Justificativa da adequação das três técnicas utilizadas ao problema.    Foram  utilizadas  três  técnicas  de  pesquisa  para  a  realização  do  trabalho.  A  principal  técnica   escolhida  foi  a  realização  de  entrevistas  em  profundidade   com  indivíduos  homossexuais  masculinos  moradores  de  Paraisópolis.  As  entrevistas  são  semi­estruturadas,  gravadas  e  posteriormente  transcritas.  Utilizamos  a  história  de  vida,  por  meio  de  entrevistas   semi­estruturadas,  fotografias  e  documentos  dos  entrevistados.  Por  fim, também fizemos uso  da  análise  de  fotografias,  cedidas  pelos  entrevistados.  Todo  o  material  obtido  foi  utilizado  apenas  para  a  realização  do  trabalho,  conforme  previamente  combinado  com  os  indivíduos  que participaram na qualidade de entrevistados.     Escolhemos  trabalhar  com  entrevistas  em  profundidade  por  elas  permitirem  um  maior  aprofundamento  do  tema.  Como  a  preocupação  é  compreender  aspectos  ligados  a  homossexualidade  e  ao  consumo estético, ou seja, temas subjetivos, tornou­se mais adequado  o  uso  de  entrevistas,  principalmente  pelo caráter exploratório e investigativo  pretendido pelo  trabalho.   A  entrevista  semi­estruturada  permite  apreender  as  perspectivas  individuais  de  cada  sujeito,  capturando  ao  mesmo  tempo,  seus  universos  sociais  (NUNAN,  2003).  A  realização  de  entrevistas  semi­estruturadas  foi  fundamental  para o trabalho, pois nos permitiu compreender  diversos  aspectos  ligados  à  homossexualidade  dos  indivíduos  gays  de  Paraisópolis.  Como  não  há  registros  de estudos sobre o nosso  tema envolvendo a favela de Paraisópolis, podemos  dizer  que  as  falas  dos  entrevistados  nos  colocaram  em  contato com um universo inexplorado  pelas  nossas  referências  bibliográficas,  pois  apesar  de  tratarem  de  temas  comuns  ao  nosso  trabalho,  foram  realizadas  em  circunstâncias  e  lugares  completamente  diferentes,  com  um  grupo  focal  de  homens  homossexuais  adultos  de  classe  média  e  média­alta  na  zona  sul  carioca.  O  uso  de  entrevistas  semi­estruturadas  possibilitou  ao  grupo  entender  o  universo  social  em  que  os  homens  gays  de  Paraisópolis  estão  inseridos.  Diversas  perguntas  do  roteiro(e  outras  feitas  de  modo  circunstancial)  instigavam  o  indivíduo  entrevistado  a  se 

localizar  em  Paraisópolis,  seja  para  falar  sobre  a  infraestrutura  para  o  público  gay,  sobre  preconceitos  vividos  ali,  sobre  o  círculo  de  amizades,  etc.  Buscamos  compreender  o  espaço  delimitado  através  das  perspectivas  do  grupo  amostral  selecionado  para  as  entrevistas  utilizando  as  falas   dos  entrevistados  e  suas  percepções  sobre  Paraisópolis.  Em alguns pontos  as  falas  foram  praticamente  idênticas,  como  sobre  a  ausência  de  uma  infraestrutura  para  o  público  gay  e  a  relativa  tranquilidade  para  os  gays  no  cotidiano  na  favela.  Os  entrevistados  relataram  diversas  situações  vividas  com  muitos  detalhes,  de  maneira  bem  articulada  e  fazendo  uma  regressão  ao  ambiente  vivido  através  da  memória,   algo  intencionado  pelas  perguntas  abertas   utilizadas  na  entrevista  semi­estruturada.  Em  diversas  situações  o  uso  de  perguntas  circunstanciais,  possibilitado  pela  metodologia  escolhida,  se  mostrou  fundamental  para  estimular  o  desenvolvimento  e  complementação  das respostas por parte do entrevistado,  a partir de suas próprias reflexões.    A segunda técnica utilizada foi a história de vida, por meio de entrevistas feitas pessoalmente,  também  gravadas  e   posteriormente  transcritas,  além  da  análise  de  fotos  associadas  ao  relato  “biográfico” dos entrevistados e cedidas por eles.  A  primeira  obra  a  utilizar  a  história  de  vida  com  fins  sociológicos  foi  “The Polish Peasantry  in  Europe  and  America”,  de  W.I.  Thomas  e  F.  Znaniecki.  “Os  autores  buscaram  com  tais  estratégias  a  compreensão  e  interpretação  desses   emigrantes(poloneses)  a  partir  da  significação  subjetiva  que  os  sujeitos  denotavam  às  suas  ações.”  (BARROS,  2000).  Dessa  forma,  o  pesquisador  tem  papel  ativo  na  obtenção  e  compreensão  do  objeto  de  estudo  e  do  mundo que o cerca, repleto de significações dadas pelos pesquisados.    Como  o  trabalho  busca  compreender  o  universo  em  que  os  gays  de  Paraisópolis  estão  inseridos  e  a sua realidade, a história de vida apareceu  como um  bom método qualitativo para  identificar  essas  informações.  O  objetivo  do  método  da  história  de  vida  é  ter  acesso  a  uma  realidade  que  ultrapassa  a  do narrador. O ponto de vista do entrevistado  é mais importante do  que o do entrevistador.    Existe  uma  necessidade  de  uma  relação  de  cumplicidade  entre  pesquisador  e  pesquisado.  Essa  relação   proporciona  intimidade  e  abertura  suficiente  para  que o sujeito faça seus relatos  de  forma  boa  e   tranquila.  Infelizmente  não  conseguimos  essa  relação  de  total  confiança  em 

algumas  entrevistas,  de  certa  maneira,  essa  ausência  de  uma  boa  relação  culminou  em  entrevistas  não  tão  boas,  pelo  pesquisado  não  se  sentir  tão  à  vontade  para  relatar  alguns  aspectos.  Quando  essa   relação  de  confiança  foi  atingida,  os   relatos  fluíram  de  forma  muito  mais  natural,  como  se   fosse  uma  conversa  e  não  uma  entrevista. Um dos entrevistados disse,  após  a  gravação,  como  a  entrevista  foi  boa  para  ele,  que  foi  como  um  desabafo  poder  fazer  essa regressão e relatar situações ocorridas ao longo de sua vida.    Como  visto,  a  utilização  da  história  de  vida  permitiu  um  aprofundamento  nos  relatos  e  nos  significados  dados  a  eles  pelos  entrevistados.  Compreender  aspectos  ligados  a  homossexualidade  e  consumo  estético  no  meio  no  qual  estão  inseridos,  Paraisópolis,  só  foi  possível por meio do uso da história de vida no nosso trabalho.    A  terceira   técnica  utilizada  no  trabalho  foi  o  uso  de  análises  fotográficas  dos  entrevistados.  Como  uma  das  principais  intenções   do   trabalho  é  compreender  o  consumo  estético  dos  indivíduos  homossexuais,  essa  técnica  se  mostrou  importante  por  permitir  ao  grupo  analisar  diferenças  estéticas  e  de  vestuário,  não  só  entre  todos  os  entrevistados  mas  também  entre  os  próprios  entrevistados  individualmente,  ao  comparar  diferenças  estéticas  antes  e  depois  do  “coming  out”  quando  possível.  O  consumo   apresenta,  portanto,  um importante papel durante  esse  rito  de  passagem,  onde  produtos  e serviços são transformados em artefatos de consumos  ritualísticos impregnados de grande valor simbólico (PEREIRA; AYROSA e OJIMA, 2006).  A  análise  de  fotografias,  gentilmente  cedidas  pelos  entrevistados  para  o  trabalho,  permitiu­nos  a  identificar,  visualmente,  os  casos  em  que  houve  uma  mudança  no  comportamento  de   consumo  estético  e  se  o  indivíduo  utilizou  o  consumo  estético  para  a  construção  e  afirmação  de  sua  identidade  homossexual,  algo  relacionado  com  a  nossa  hipótese.    3 ­ Descrição das condições de uso de cada uma das técnicas    Foram  realizadas  quatro  entrevistas  em  profundidade,  com  média   de  1h30min   cada.  Três  entrevistas  foram  gravadas  na  União  de  Moradores  através  da   disponibilidade  e  ajuda  do  diretor Isaac  em nos atender. A outra entrevista foi realizada  no  CEU  Paraisópolis, outro local  de fácil acesso dentro da comunidade, onde a entrevista pode transcorrer normalmente.  

  A  entrevista  semi­estruturada  tem  como  característica  questões  apoiadas  em  teorias  e  hipóteses  relacionadas   ao  tema  do  trabalho.  O  roteiro  tem  perguntas   principais  que  são  complementadas   de  acordo  com  as  circunstâncias  da  entrevista  e  das  falas  do  entrevistado,  permitindo  uma  organização  das  questões  que  pode  ser  ampliada  a  medida  que  as  informações vão sendo fornecidas.     Chegamos  aos  sujeitos  que  seriam   entrevistados  pela  ferramenta  conhecida  como  “bola  de  neve”,  na  qual  um  indivíduo  que  os  pesquisadores  conheçam  indica  um  de  seus amigos para  participar  da  pesquisa,   que  por  sua  vez  convida  outro  amigo,  e  assim  por  diante.  É  uma  técnica  muito  usada  em  estudos  qualitativos  de  grupos  estigmatizados  e  difíceis  de  serem   localizados,  onde  a  abordagem  precisa  ser  mais  cautelosa.  (NUNAN,  2003).  O  nosso  primeiro  entrevistado,  Diogo,  foi  muito  solícito   e  nos  passou  contatos  de  outros  conhecidos  gays  que  também  são  moradores  de  Paraisópolis.  Constatamos  um  ligeiro  vício  na  amostra,  pois  como  o  primeiro  entrevistado   é  envolvido  na  área  cultural  da  favela(criador  da  Cia.  Teatral  de  Paraisópolis),  acabou  por  nos  indicar  outros  gays  também  envolvidos  com  a  área  cultural  de  Paraisópolis,  inclusive  um participante do mesmo grupo teatral e um frequentador  do  mesmo.  A  ferramenta  da  bola  de  neve  facilitou  a  realização  das  entrevistas,  já  que  utilizamos  as  redes  de  amizade  e  de  confiança  do  primeiro  entrevistado,  o  que  nos  permitiu  encontrar  indivíduos  homossexuais  com  certa facilidade e sem a desconfiança por parte deles  para  que  as  entrevistas  fossem  feitas.  Isso  não  impediu  que  a  falta  de  intimidade  entre  entrevistados  e  entrevistadores  afetasse  a  forma  como  algumas perguntas foram respondidas,  pois  algumas  delas  tratavam  de  temas  mais  íntimos  e  como  na  maioria  das  ocasiões  conhecemos  os  entrevistados  poucos  minutos  antes  das  entrevistas,  cremos  que  certas  situações durante as entrevistas foram afetadas por isso.     Utilizamos análises de trechos dos discursos dos entrevistados para analisar o material obtido,  que  posteriormente  foi  comparado  com  o  que  temos  de  bibliografia  e  hipótese  para  a  conclusão  do  trabalho.  O  grupo  se  reuniu  para  ouvir  e  analisar  as  entrevistas  em  todos  os  casos,  as  discussões  nessas  reuniões  foram  muito  edificantes  para  o  trabalho  e   as  nossas  conclusões.   

As  entrevistas  semi­estruturadas  também  foram  de  utilidade  para  a   aplicação  do  método  da  história  de  vida.  Foi  pedido  aos  entrevistados  que  contassem  a  sua  história  no  geral,  onde  nasceram  e   cresceram,  sobre  os  amigos  e  familiares,   sobre  o  trabalho,  sobre  Paraisópolis  e  também  sobre  acontecimentos  relacionados  a  sua  homossexualidade,  como  a  saída  do  armário,  a  aceitação  ou  não  aceitação  de  família  e  amigos,  situações  de  preconceitos vividas   ou presenciadas, etc.    Os  relatos  podem  não  ser  reais  em  sua  totalidade,  mas  essa  não  é  uma  preocupação  para  a  história  de  vida,  já  que  o  que  importa é o significado que o sujeito atribui a esses fenômenos.  O  relato  colhido  é  “uma  produção  de  si”  (BOURDIEU  apud  PREUSS,  1997).  Nós,  como  pesquisadores,  precisamos  acreditar  na  fidedignidade  do que nos foi contado,  pois na história  de  vida  o  ponto  de  vista  do  narrador  é  sempre  mais  importante  ao  nos  colocar  em  contato  com um novo universo.    Foi  perguntado aos entrevistados se eles poderiam contribuir com algum material, como fotos  ou  documentos,  para  contribuir  e  aprofundar  o  conhecimento  que  temos  sobre  eles  para  o  trabalho.  Eles  nos  cederam  esse  material  solicitamente,  a fim de contribuir mais  para o nosso  trabalho.  Através  das   fotos   cedidas  por  cada  um  deles,  analisamos  a  estética  dos  indivíduos,  algo  perceptível de modo explícito ao olhar as fotos. Assim, foi possível encontrar padrões de  consumo  estético  dentro   do   grupo  entrevistado  e realizar comparações dentre os membros do  mesmo.  Desse  modo,  junto  com o material obtido pelas  entrevistas, pudemos analisar melhor  os  perfis  dos  gays  entrevistados  com  o  material  adicional  das  fotografias.  Analisamos  as  imagens  cedidas  em  conjunto,  utilizando  como  referências  a  bibliografia  do  trabalho,  o  material obtido nas entrevistas e a análise visual do material cedido.     4 ­ ​ Avaliação do valor das evidências coletadas. 

  No  nosso  processo  de pesquisa, não foram  utilizadas além da entrevista, evidências de relatos  em  papel,  carta,  documentos  ou  material  impresso  ou  específico,  com  exceção  das  fotos  coletadas  pelos  próprios  entrevistados  e  enviados  a  nós,  com  o  propósito  de  análise  de  vestuário  e  estética  homossexual  masculina.  As  entrevistas  foram  todas  baseadas  na  história  de  vida  dos  entrevistados,  e  foi  notável  a  espontaneidade  nos  discursos  de  cada  um  deles.  

Talvez  menos  na  entrevista  com  Anderson,  já  que  boa  parte  de  sua   fala  parecia  de  certa  forma, querer “impressionar” o entrevistador, por isso se percebe certo viés no seu discurso.     Assim  como  um  relato  pode  ser  modificado,  ao  relatar  suas  histórias  de  vida,  pôde  ter  ocorrido  uma  manipulação  ou  ocultação  de  alguma  informação,  irrelevante  ou  não  à  entrevista.  Neste  caso,  percebe­se  que  não  foi  realizado  um  acompanhamento  do  dia­a­dia  dos  entrevistados,  justamente  pela  falta  de  tempo  necessário  para  que  uma  investigação  completa  pudesse  ser  feita.  Apesar  de  manipulável,  as  informações  coletadas  e uma possível  observação  participante  poderiam  ocorrer  a  partir  de  um  maior  conhecimento  entrevistador­entrevistado, e com uma consequente maior intimidade entre ambos.     As  entrevistas  foram  o  principal  meio  utilizado,  já que houve a necessidade  de uma conversa  mais  íntima,  devido  ao  fato  da  homossexualidade  ser  um  tema  relativamente  pessoal  a  cada  um  dos  entrevistados.  Assim,  a  história  de  vida  pôde  ser  obtida  a  partir  da  oralidade,  e  as  fotos posteriormente recebidas como forma de sustentar e de análise da estética de vestuário.  A  consistência  e  compatibilidade  de  dados  obtidos de diferentes fontes foram observadas nas  entrevistas:  a  partir  da  técnica  da  “bola  de  neve”,  os  entrevistados  possuíam  certa  relação de  amizade  entre  si,  e  havia  comentários  sobre  algo  que  já  havia  sido  dito  antes  por  outro  entrevistado, confirmando o acontecimento.       A  consistência  das  informações  passadas  aos  entrevistadores  coube  à  trajetória  de  vida  dos  participantes  da  pesquisa  e  a  escolha  de  informações  que  seriam  passadas  a  nós  de  acordo  com  a  relevância  em  relação  as  perguntas  das  entrevistas,  e  o  quanto o entrevistado se sentiu  relativamente confortável para passar certas informações ou não a nós, entrevistadores.     5 ­ Avaliação geral do trabalho de campo.    Do  ponto  de  vista  geral,  o trabalho de campo pode ser visto como o principal trajeto de nossa  pesquisa,  já  que  confirmou  ou  refutou  hipóteses  e  ainda  mostrou­se  de  forma geral essencial  para que todo o trabalho pudesse ser elaborado.    

A  partir  da  aprendizagem,  o  trabalho  de  campo  veio  como  ferramenta  transformadora,  tanto  do  ponto  de  vista  técnico  quanto   subjetivo  dos  participantes:  o  primeiro  contato  com  região  por  parte  de  cada  integrante  do  grupo  revelou­se  uma  grande  importância  para  todo  o  processo,  em  que  houve  realmente  uma  desconstrução  de  todos  os  paradigmas  pensados  anteriormente a respeito de favelas, como Paraisópolis, por exemplo.     A  aprendizagem  que  a  pesquisa  nos  trouxe  foi  algo  totalmente  colaborador  não  só  à  nossa  formação  acadêmica,  mas  como  pessoal. O envolvimento com pessoas de realidades distintas  das  nossas,  de  diferentes  classes  sociais  e  portadores  de  “bagagens  culturais”  surpreendentemente  diferentes,  o  que  tornou  o  trabalho  de  campo  enriquecedor  em  todos  os  aspectos.  Tentar  compreender  essa  realidade  em  que  os  gays  de  Paraisópolis  estão  inseridos  foi,  em alguns momentos, o maior desafio para nós, já que não tínhamos nenhuma noção nem  estudo sobre o tema.     A  percepção  de  que  como  comunidade,  as  mídias  tendem  a  exaltar  certos  estereótipos  exagerados,  porém,  percebemos  que,  como  qualquer  lugar,  necessitam­se  certos  cuidados,  também  isso  se  aplica  a  Paraisópolis.  A  ideia  de  “favela  perigosa”   pôde  ser  desconstruída  a  partir  das  idas que tivemos  até os lugares para as entrevistas. O perigo pode ser observado em  quaisquer  lugares,  de   diferentes  formas,  mas  no  caso  de  Paraisópolis,  o  perigo  pode   não  ser  como  vemos  na  TV  todos  os  dias,  ou  como  descrever  pessoas  de  diferentes  bairros,  mas  assim  como  qualquer  outro  lugar,  deve­se  manter  respeito  pelas  pessoas  as  quais  convivem   lá.     A  partir  de  certas  experiências,  podemos  notar  também  como  não  temos  total  controle sobre  as  situações  nas  quais  estávamos  inseridos   no   contexto  de  Paraisópolis:  No  dia  da entrevista  do  Marcos,  Julia  e  Juliana  passaram  por  certo  imprevistos.  Quando  estavam  a  caminho  de   Paraisópolis,  dentro de um circular,  este de repente para numa rua próxima a comunidade. No  momento,  ambas  ficaram  bastante  apreensivas,  já  que  aparentemente,  na  rua  poderia  passar  apenas  um  veículo,  e  o  veículo  da  frente,  em  sentido  oposto,  se  recusava  a   deixar  o  ônibus  circular  continuar  seu  trajeto,  mesmo  com  passageiros.  Assim,  Julia  e  Juliana  partiram  em  direção  à  comunidade  a  pé,  seguindo  uma  senhora  que  tinha  o  mesmo  destino,  o  centro  de  Paraisópolis. 

   Naquele  momento  podemos   notar  como  as  situações  não  poderiam  ser  controladas  ou  planejadas,  mas que deve­se manter a calma e refletir sobre saídas alternativas para a ocasião.  Estas  formas  acabaram  se  tornando  um  aprendizado  sobre  como   lidar  com  a  insegurança,  quando em trabalho de campo.     Um  importante  item  observado   foi  a  importância  dos  meios  de  comunicação,  e  das  redes  sociais  para  que  as   entrevistas,  e  seus  agendamentos.  A  partir  da  comunicação  com  um  entrevistado,  o  próximo  entrevistado  viria  a  ser  contatado  por  WhatsApp,  o  que  acabou  agilizando de modo benéfico todo o andamento do trabalho de campo e da pesquisa em si.      Um  ponto  observado  foi  notar  todos  aqueles   condomínios  de  altíssimo  padrão,  concessionárias  de   carros  caríssimos,  estabelecimentos  “gourmet”  e  de  forma  repentina,  descer  do  ônibus,  entrar  em  uma  pequena  rua  e  ver  aquela  imensidão  da  comunidade, lado a  lado  com  toda  aquela  riqueza,  no  primeiro  momento,  nos  surpreendeu  muito.  Naquele  momento,  nos  veio  à  cabeça  imagens  assustadoras  da  desigualdade  social  no  Brasil,  dos   barracos  da  favela  ao  lado  dos  condomínios  de  luxo. E depois disso que fomos descobrir que  essas fotos foram tiradas exatamente naquela fronteira Morumbi­Paraisópolis.     Assim  como  qualquer  outro  lugar,  também,  Paraisópolis  apresenta  múltiplas  facetas.  Diferentes  pessoas,   com  diferentes  pensamentos  e  posições  sobre  a  vida  e  o  mundo.  Diante  disso,  tornou­se  necessário  que  fossem  desfeitas  certas  generalizações  quanto  a  região,  sua  população  ou  costumes,  já  que  essas  generalizações  nem  sempre  podem  ser  feitas.  Por  mais  que  tenhamos  entendido   sobre  quaisquer  assuntos,  certas  situações  em  campo  nos  faz   questionar  sobre  todas  as  informações  pré­concebidas  e  perceber  o  pesquisador  como  um  aprendiz diante da situação do trabalho em um lugar relativamente desconhecido.     Por  conta  dessas  informações  pré­concebidas,  geralmente  meios  de  comunicação,  por  exemplo, antes de começarmos nosso trabalho de campo houve certo receio e insegurança por  conta  do  local.  Por  mais  que  estivéssemos  dispostos  a   desmistificar  a  ideia  de  favela  ser  um  lugar  extremamente  perigoso,  ou  violento,  certos  contatos,  como  familiares  por  exemplo,  ao  saberem  que  íamos  fazer  uma  pesquisa  em  Paraisópolis,  afirmavam­nos  para  tomar cuidado, 

outros  até  em  posições  extremas,  chegaram  a  afirmar  para  não  fazermos  esse  trabalho,  por  conta  do  risco  que  estaríamos  correndo.  Apesar  disso,  a  primeira  ida  a  capo  ocorreu  tranquilamente.     De  fato,  tudo  ocorreu  de  modo  muito  natural:  Todas  as  pessoas  que  encontramos  foram  extremamente  solícitas,  e  em  nenhum  momento  nos  sentimos  apreensivos,  em  relação  a  situação;  andar  pelas  ruas  da  comunidade  era  algo  tranquilo,  exceto  pelo  fato das ruas serem  estreitas,  e  os  veículos  competirem  espaço  com  os  pedestres,  mas  esse  foi  um  fato  que  logo  nos  acostumamos.  Tomamos  assim,  uma  opinião  após  a  primeira  visita,  de  que  tudo  seria  perfeito  em  relação  ao  que  pensávamos  antes,  sobre  a   comunidade  ser  muito  perigosa.  Isso  logo foi refutado, já que uma situação bem preocupante aconteceu em seguida à nossa visita.     No  bairro  do  Morumbi, que faz divisa com a comunidade de Paraisópolis, e a discrepância de  renda  entre   ambos  os   lados  é  aterradora,  ocorre  um  assalto  a  residências  em  uma  de  suas  principais  ruas.  O  caso,  noticiado  por  todos  os   meios  de  comunicação,  foi  algo que alertou a  nós  e  a  todos  os  outros  grupos  de  pesquisa  na  região,  deixando  assim  o  trabalho  de  campo  como,  novamente,  algo  perigoso  e  cheio  de  cuidados  necessários  por  nossa  parte.  Nos  noticiários,  a  suspeita  de  que  os  assaltos  tenham  sido  praticados  por  moradores  de  Paraisópolis  só  aumenta  a  tensão,  e  com  o passar dos dias, o policiamento na região aumenta  de  forma  monumental,  com  atenção  voltada  principalmente  para  as  fronteiras  entre  Paraisópolis  e  Morumbi.  Logo  depois  deste  fato,  foi  relatado  que  um  grupo  de  pesquisa  na  mesma  região  foi  perseguido  por  indivíduos  não  identificados.  Sendo  este  fato,  o  de  maior  tensão  entre todos os grupos, e que  possivelmente atrasou o andamento de outros grupos, mas  felizmente, acabou não sendo nosso caso. 

   PARTE III ­ ANÁLISE    1 ­ ​ Descrição das situações e processos observados junto com a interpretação dos mesmos:  Utilizando­se  do  conceito  sobre  estrutura  social  proposto  por  Radcliffe­Brown,  entendemos   que  os  fenômenos  sociais  estudados  a  partir  do  trabalho  de  campo  feito  na  favela  de  Paraisópolis  são  consequências  diretas da estrutura social na qual se situam e se desenvolvem 

ao  longo  do  tempo  e  não  são  resultado  imediato  da  natureza  dos  seres  humanos.  A  partir  do  pensamento  de  Daniel  Borrillo,  compreendemos  que  o  grande  problema  em  lidar  com  o  estigma  da  identidade   homossexual  dentro  da  favela  de  Paraisópolis  está intimamente ligado  com  o  fato  de  que  o  heteronormativismo,  isto  é,  as  práticas  e  as instituições que legitimam a  heterossexualidade  e  os  relacionamentos  heterossexuais como fundamentais e naturais dentro  da  sociedade;  é  responsável  por  transformar  a  homofobia  “em  um  elemento  central  capaz,  ainda por cima, de garantir o equilíbrio individual e a coesão social” (BORRILLO,  2010,  pág.  88).    A  partir  do  que  foi  exposto  acima,  podemos  descrever  as  recorrências  e  suas  peculiaridades  nas  falas  dos  entrevistados  que  remetem  a  um  comportamento  homofóbico  que,  em  sua   grande  parte,   constitui­se  como  elemento  da  identidade  masculina  com  a finalidade de evitar  a  transgressão  do  “ser  homem”  e  “a  necessidade  de  se  afirmar  pelo  menosprezo  do  outro­não­viril”  (BORRILLO,  2010,  pág.  90).  Com tudo isso,  podemos assinalar a existência  de  dois  tipos  de  indivíduos  gays,  “os  que  se  mostram”  e  “os  que  não  se  mostram”:  denominados aqui, devido a sua recorrência, de “tipo afeminado” e “tipo contido”.    O  primeiro  entrevistado,  chamado  Diogo,  é  o  indíviduo  que  se  encontra  no  polo  do  tipo  contido.  Na  fala  abaixo, é possível perceber que a homossexualidade para ele não ultrapassou  por  completo  uma  identidade  negativa  como  constituição  de  sua  própria  identidade,  ou  seja,  mesmo com o “coming out”, ele não vê o “ser gay” como algo positivo para a sua vida:  Eu nunca aceitei de fato, sou gay desde  que nasci, sou muito bem resolvido  quanto a isso, mas não é uma coisa que  eu posso dizer que sou super feliz  quanto a isso,  não posso dizer “Ah, amo ser gay.”  Gosto de ser homossexual porque sou  feliz assim, mas como você disse, ​  ​ nas  minhas palavras é uma coisa terrível. 

  A  repulsa  por  qualquer  traço  feminino  na  vida  cotidiana  de  Diogo  antes  de  se   assumir  demonstra  o  quão  importante  para  ele  significava  a  manutenção  de  sua  masculinidade, 

“moldando”  seu  corpo  a  fim  de  evitar  qualquer  símbolo  de  um  comportamento  de  consumo  estético feminino:    [...] eu ficava pensando que meus  amigos não iam me aceitar, que minha  família não ia me aceitar, que ia ser  horrível, que todo mundo seria  muito  ruim  comigo,  que iam ter   muito preconceito  com  minha  pessoa e tudo mais. Então sempre fui me  pilhando com isso, fui crescendo,  comecei a mudar meu corpo de uma  forma que eu não ficasse afeminado,  que comprasse roupas que não ficassem  afeminadas, tendo todos esses cuidados  e isso foi muito ruim. Hoje em dia, no  teatro, eu não consigo fazer coisas que  eu tenho que fazer, que eu me mato pra  fazer, porque meu corpo tá mudado  dessa forma. Na dança também é  terrível, não sei  dançar direito porque moldei meu corpo  dessa forma. 

  Encontramos forte preocupação com a aceitação de outros indivíduos em relação a sua  própria imagem mesmo depois de se assumir como homossexual para todos:  Acho que todo homossexual tem isso,  esse medo. De achar que as pessoas não  vão te aceitar. Ninguém é “Ah, to nem  aí pra aceitação de  todo mundo”. A gente sempre busca  aceitação em tudo. 

  É  necessário  frisar  que  tal  aceitação  em  relação  a  sua  imagem  exige  um  comportamento  de  consumo  estético  voltado  exclusivamente  para  uma identidade masculina e para os limites de  tal  identidade,  ajustando­se  ao  perfil  “prático,  padrão”   de  se  vestir;  e  ,  ao  mesmo  tempo,  tal 

comportamento  volta­se  para  uma negação de qualquer traço feminino, como, por exemplo, a  grande  demanda  de  tempo  e  preparação  voltada  para  se  vestir,  o  uso  de  shorts  curtos,  uma  maior preocupação com o cabelo, como podemos ver na fala abaixo de Diogo:  Tem a questão do jeito que se veste, eu  acho que me visto assim, tipo vocês, que  tem que trabalhar, estudar tudo, então  pega a roupa que tem ali e já sai. A  roupa que tá na frente já pega, às vezes  tá com uma blusa com outra, às vezes  com outra, ás vezes uma em cima da  outra que aí é só pegar e tirar. Até falo  pra minha amiga “Tô com a roupa do  teatro, de reunião,  de trabalhar e de dormir.” [...] Eu sou  mais prático, não tenho muito tempo pra  ficar indo atrás dessas coisas. [...]    

A  heteronormatividade é tão presente no cotidiano de Diogo porque a maioria de seus amigos  são  héteros  e,  em  uma  das  suas  falas,  é  possível destacar o fato de que, no seu cotidiano com  os  amigos,  ele  não  sofre  preconceito  por  conta  de  “seu  jeito”,  ou  seja,  porque  ele  mantém,  mesmo  após afirmar sua identidade homossexual para sociedade, a sua masculinidade perante  os  outros.  Diferentemente  dele,  percebemos  que  o  estigma  da  identidade  homossexual,  quando se coloca de um lado, ele, Diogo e outro indivíduo homossexual qualquer que seja, do  tipo  afeminado,  este  último  será  caçoado  pelos  seus  amigos;  é  o  tipo  afeminado  que  mais  sofre  o  estigma  da identidade  homossexual porque seu comportamento de consumo estético é  voltado  parcialmente  para  o  que  se  ajusta  ao  feminino,  e  por  conta  disso,  é o tipo afeminado  que  transgride  o  “ser  homem” tão enaltecido pela sociedade heteronormativa que se reproduz  fielmente na favela de Paraisópolis:  Eu dificilmente sofro preconceito, eu  acho que pelo meu jeito. E isso é um  preconceito, eu percebo isso pelos meus  amigos. Eles são super de boa comigo,  mas criticam outros gays, eu tenho que  estar sempre xingando, falando pra eles  “Gente, nada a ver, cada um é cada um, 

a pessoa tem o direito de ser do jeito que  ela é, de ser afeminado ou não.” Eu  tento explicar essa situação que eu  passei durante muitos anos pra poder ser  do jeito que eu sou hoje em dia. Mas  meus amigos tem essa questão ainda, de  criticar, de falar “Ah, olha lá a bichona”. 

  O outro entrevistado, chamado Anderson, que, do mesmo modo que o Diogo, também se  localiza no polo do tipo contido, ou seja, ele é um gay que mantém a sua masculinidade  mesmo após assumir sua identidade homossexual para a sociedade, não demonstra indícios  de sofrer o estigma da identidade homossexual a partir de seu comportamento de consumo  estético. Nas suas palavras:  [...] eu  gosto  de  roupas  que  podem  ser  estilosas, fashion,  diferenciadas,  que  um  heterossexual  e  um  homossexual  vai  usar,  porque  gay  não  tem  muita  frescura porque como  que coloca uma roupa, pode ser rosa, se  for falar, tá escrito “homem”, eu tô  usando.  Agora  usar  uma  coisa  mais  extravagante,  mais  feminina,   eu  já  não  gosto.  Eu gosto de roupas  estilosas, mas que sejam roupas de  homem, que estejam num padrão de  masculinidade e não de feminilidade.  P: Mas um padrão de masculinidade  heterossexual?  R:  Sim,  também.  Porque  diferencia  muito,  tem  o heterossexual,  às  vezes  ele  não  quer usar  essa  camisa  verde,  porque  ele  acha  muito “cheguei”,  mas  tem  outros  que  curtem uma roupa  mais discreta assim, bermudão. Mas  enfim, eu uso tudo isso, bermudão… Eu  gosto de roupas estilosas. Não gosto de  roupas muito brega. 

   

  A  partir  da  fala  acima  de  Anderson,  em  primeiro  lugar,  podemos  destacar  que  ele  ,embora  não  seja  o  gay  “padrão”  e  ao  mesmo  tempo  abuse  na  sua  estética  do  vestuário, utilizando­se  de  roupas  “estilosas”,  “diferenciadas”;  ele  faz  uso   de  estratégias  de  negação  do  tipo  afeminado  ajustando­se   á  roupas  “num  padrão  de  masculinidade  e  não  de feminilidade”. Por  conta  disso,  mesmo  após  se  assumir  socialmente  como  homossexual,  Anderson  não  sofre  o  estigma  da  identidade   homossexual  a  partir  de  seu  comportamento  de  consumo  estético  e,  consequentemente,  isso  resulta  numa  vida  tranquila  com  a  família  e  com  os   amigos  no  seu  cotidiano na favela de Paraisópolis, como podemos ver nas seguintes falas:  Pra mim  foi  bem  tranquilo,  minha  mãe é  bem  tranquila  também  e  ela  nunca ligou  pra  minha  homossexualidade, eu não tive nenhum  problema com relação  a ser homossexual.   

 

  Minha  vida  gay,  na  verdade,  eu  posso  dizer  que  é  tranquila. Acho  que  eu  nunca  tive nenhum  problema...  To  com  26  anos,  então  faz  12  anos  de  homossexual  [sic]...  E  eu nunca tive  nenhum problema... Não sei se pelo fato  de eu ser muito reservado, de não dar  muita  intimidade  pras  pessoas. Acho  que  é mais  ou  menos  isso,  porque  a  partir  do momento que você dá ousadia,  as pessoas aproveitam isso... Mas se  você é uma pessoa reservada e mostrar  que você não é aquilo, que gay não é  bagunça, que cada gay tem o seu  diferencial…  P: Mas foi difícil em relação a sua  família em relação a seus amigos... 

R:  Não.  Foi  tranquilo  assim,  nunca  tive  problema  com  amigos,  nunca  tive  problemas assim de  homossexualismo (sic) com amigos, ou  família, foi bem tranquilo mesmo. Pode  falar que não foi uma vida sofrida, se  alguém falou por trás não sei, também  não importa, mas pra  família  foi  tranquilo.   

  Na  montagem  de  fotos  acima,  o  primeiro  indivíduo  é  Diogo  e  o  segundo  é Anderson, o qual  não  quis  mostrar  seu  rosto.  Ambas  as  fotos  foram  enviadas  por  eles  mesmos  pelo  Whatsapp  para  Leonardo.  Percebemos  que  a  estética  do  vestuário  de  Diogo  é  muito   simples,  pois  ele  usa  um  tênis  que  não  seja  bem  “trabalhado”,  uma  calça  folgada  e  azul­marinho,  uma  cor  padrão  e  por  fim  uma  camiseta  simples  azul­claro,  que  de  acordo  com  ele  seria  uma  peça  ligada  a  União  de  Moradores,  quase  como  um  uniforme.  Enquanto  isso,  não  é  perceptível  pela  foto,  mas  a  gola  de  sua  camiseta  era cavada e a cor verde é de um tom muito forte, além   disso,  o  calçado  é  mais  “trabalhado”;  por  esses  detalhes,  afirmamos  que  Anderson ousa bem 

mais  que  Diogo  em  sua  estética  do  vestuário.  Porém  ambos  se  assemelham  aos  padrões  de  consumo estabelecidos pela sociedade heteronormativa para afirmar sua masculinidade.    

    Nessa  segunda  montagem,  podemos  ver  nitidamente  uma  diferença  entre  os  dois  quanto  a  estética  do  cabelo.  O  primeiro  entrevistado  possui  um  cabelo,  que  de  acordo  com  suas  falas,  seria  um  cabelo  padronizado  na  favela  de  Paraisópolis,  utilizado  por  todos  os  homens  da  favela.  Assim,  mais  uma  vez,  Diogo  não  possui  um  cabelo  ousado  para  não  atingir  a  sua  masculinidade.  Já  a  estética  do  cabelo  de  Anderson  é  muito  interessante,  pois   o   cabelo  para  ele  é  algo  importantíssimo,  a  p​ reocupação  com  o  cabelo  é  enorme.Para  ele,  o  cabelo precisa  estar  perfeito.  Um  cabelo  desarrumado  mexe  com  o  seu  psicológico.  Nas   suas  palavras,  “A  minha  auto­estima  é  meu  cabelo.”  Essa  grande  preocupação  sempre  foi  assim  em  toda  a sua  vida.  Apesar  desses  detalhes,  tanto  Anderson  quanto Diogo usam um cabelo num padrão que  não negue ou distorça a sua masculinidade.    É  imprescindível  destacar  o  trecho  em  que  o  segundo  entrevistado,  Anderson,  diz  que  cada  gay  tem  seu  “diferencial”,  pois  isso  remete  a  outros  trechos  de  sua  entrevista  que  irão  se  referir  inconscientemente  a  uma  heteronormatividade  em  relação  ao  comportamento  de  consumo  estético,  que  será   responsável  por  obrigar  o  indivíduo  gay  a  se  “comportar”  para 

“conquistar”  o  respeito   de  outra  pessoa  e  para  que  ela  não tenha atitudes preconceituosas em  relação  a  tal  indivíduo.  Dessa  maneira,  percebemos  que  Anderson  não  possui  atritos  com  as  outras  pessoas  por  conta  de  sua  identidade  homossexual  porque  ele  se  ajusta  ao  padrão  heteronormativo  que  o  contexto  de  Paraisópolis  lhe proporciona cotidianamente e não rompe  o  respeito  com  a  outra  pessoa,  ou  seja,  não  transgride  a  masculinidade  que  os  outros  reclamam de seu  comportamento de consumo estético. É claro que  há uma diferença entre um  e  outro  quando  colocados  lado   a  lado,  Anderson  e  Diogo,  pois  este  último  é  o  gay  do  tipo  contido  “padrão”,  enquanto  o primeiro é o gay do tipo contido “estiloso”.  No entanto, ambos  se  assemelham  pelo  fato  de  que  o  seu  comportamento  de  consumo  estético  é  reflexo  de  um  mundo de referências masculinas.     O terceiro entrevistado, chamado Marcos ­ nome fictício criado por nós por conta de sua  escolha em não revelar seu nome publicamente ­ é um caso diferenciado do resto dos  entrevistados, porque ele não assumiu plenamente sua identidade homossexual para a sua  família, que na maior parte do tempo se constitui por sua mãe e avó, com as quais reside em  casa. No entanto, ele fora de casa é “livre” para ser o que é:  Ser  gay  é  ser  livre…  Eu  posso  usar   a   roupa  que   eu  quiser,  posso  usar  meu   cabelo  assim.  Posso   gostar  das  coisas  que  eu  gosto,  e  é  isso,  porque  eu  gosto,  porque  sou   gay  e  não  tenho   essa  limitação  de “Ai, a pessoa vai me julgar,  a  pessoa  vai  falar  que  sou  gay  e  isso”,  acontece muito e não é uma coisa legal. 

  Marcos  considera  que  existem  dois  “padrões”  de  gays: de um lado, “os mais alegres, os mais  mostrados”  e  de  outro,  “os  mais  contidos”.  Tais  categorias  podem  se  referir  aos  nossos  tipo  afeminado  e  tipo   contido,   respectivamente.  Para  o  entrevistado,  ele  se  considera  no  meio­termo,  possivelmente  porque  ele  não  é  assumido  para  a  família  e  não  passou  por  uma  positivação  plena   de  sua  identidade  homossexual,  sendo  obrigado  a  agir  como  um  “camaleão”  e  criando  “personagens”  conforme  as  pessoas  com  os  quais  se  relaciona  socialmente  e   os  espaços   sociais  em  que  tais  relações  se  configuram.  Podemos perceber isso  na seguinte fala: 

Eu  sou  muito  camaleão  assim.  Eu  me   adapto   ao  lugar  assim…  eu  sei  que  tem  pessoas mais  contidas, então  eu não vou  “Eaiiii  Bixa”  e  tudo  mais.  Mas eu  gosto  muito  disso.  Tem o trabalho  do ator, do  teatro,  que  me  ajudou  muito…  na  vida,  nem  na   questão  de  ser  gay,  também,  mas  na vida. Tem esse lance de criar um  personagem  no  momento  que  tenho  de   ser   aquilo.  É  uma  coisa  que  me  incomoda  porque  eu  não me achei ainda  e  eu  não  sei  quem  é  o  Marcos.  E não é  uma  coisa  falsa assim:  “Eu vou ser legal  aqui  porque  eu  quero”;  mas  é mais  isso  de  adaptação.  Eu  sei que vocês são mais  confortáveis  com  o  padrão  e  eu  tenho  um 

padrão  também,   são  diversos 

padrões,  diversas  nuances.  Então  eu  consigo  me  adaptar  assim.  Mas  tem   lugares,  por   exemplo,  que  eu  não  consigo,  que  eu me  sinto reprimido e eu  não  consigo  ser  nada.  Eu   não  consigo  me  mostrar,  não  consigo  falar  as  coisas  que eu gosto. 

  Como  podemos  perceber  na  fala  acima,  Marcos  precisa   reprimir  suas  emoções  frente  a  sua  família,  adotar  um  comportamento  sério  dentro  de  casa,  para  se  ajustar  ao  padrão  heteronormativo  esperado  de  um  homem  por  sua  família.  A  transgressão  de  sua  masculinidade  não   ocorre  dentro  de  casa,  mas  sim  fora  de casa, onde existe um “espaço para  ser  gay”,  em  outras   palavras,  espaços  de  socialização  em  que  as  expectativas  dos  outros  indivíduos  não  sejam contra o comportamento referente ao indivíduo homossexual masculino  do tipo afeminado:  Mas com meus amigos, eu sou mais  livre, eu tenho esse espaço de  ser gay.  Em casa eu sou sério. E é uma coisa que  incomoda. Porque parece que a partir do  momento que eu saio de casa e que eu 

entro, eu mudo. Tem acréscimos e  decréscimos de  mim. 

  Ele  comenta   que  uma  roupa  “mais  trabalhada”,  “mais  cheguei”,  que  transmita  que “estou no  local”  ou  seja,  que  afirme  sua  identidade  homossexual,  é  encontrada  na  Augusta.  O  estilo  dele  é  considerado  por  ele  mesmo  como  um  estilo  fora  de  Paraisópolis,  de  uma  maneira  alheio  à  estética  do  vestuário  mais  comum  à  população  dali.  Para ele, os gays  não usufruem  de  roupas  “mais  trabalhadas”  dentro  da  favela.  Por  lidar  todos  os  dias  com  “acréscimos  e  decréscimos”  de  si  mesmo,  é  tanto  possível  que  ele  se  ajuste  a  um  comportamento  de  consumo  estético  voltado  para  afirmar  sua  masculinidade,  como  também é possível voltar­se  para  um  padrão   relativamente feminino aceito pela sociedade, como podemos ver na seguinte  fala,  onde  mais  uma  vez  o  estigma  da  identidade  homossexual  é  denunciado  por  um  “estranhamento  na   rua”  ao  transgredir  a  masculinidade  dentro  da  favela,  que  no  caso  seria o  uso de “camisa rosa”:  E por ser gay, eu posso usar uma camisa  rosa, que eu não tenho esse, tem esse  estranhamento na rua e de muitas  pessoas, mas são deles, não são meus. 

  Marcos  expõe  claramente  a  existência  de  um  padrão   de  comportamento de consumo estético  voltado  para  homens,  “homens  héteros”  e  outro  para  gays,  em  que  estes  últimos  podem   ter  uma  “brincadeira”  com  o  cabelo,  ou  seja,  abusar,  ousar  em  seu  penteado,  podem  fugir  de  coisas  viris,  coisas  másculas;  como  consequência,  os  gays  que  “se  mostram”  possuem  a  tendência  de  se  assemelhar  ao  comportamento  de  consumo  estético  voltado  para o feminino,  utilizando­se  de  “símbolos”  para  registrar  tal  comportamento.  Tudo  isso  pode  ser  vislumbrado na fala a seguir:  Um símbolo em mim… deixa eu ver…  o cabelo haha, também. Também,  porque tem  esta brincadeira que  normalmente os homens não fazem, os  homens héteros [...] Mas o símbolo tem  o cabelo, que é uma coisa que eu brinco,  que  não é normal um garoto fazer nos  nossos padrões e não sei se tem outro 

símbolo. Acho talvez  o meu trabalho…  o meu trabalho, as coisas, que é uma  tradução de muitas coisas que eu  gosto.  Não são coisas viris, não são coisas  másculas. 

  No  final,  Marcos  expõe  suas  opiniões  sobre  o  comportamento  de consumo estético de um de  seus  amigos  que  contrasta  de  modo  claro  com  seu  próprio  comportamento.  Ele  vê  o  comportamento  de   consumo  estético  de  gays  iguais  ao  seu  amigo  como  um  “ponto  de  fuga”  para  negar  o  perfil  “afeminado”,  em  outras  palavras,  ele  se  refere  ao  comportamento  dos  gays  do  tipo  contido,  que  se  ajustam  ao   padrão  heteronormativo  imposto  pela  favela  de  Paraisópolis  mesmo  depois  de  ultrapassarem  o  “coming  out”  em  suas  vidas.  E  é este mesmo  indivíduo  gay  do  tipo  contido  que  não  sofre   preconceito, que vive com “limitações”, ou seja,  que  não  ultrapassa  os  limites  do  comportamento  de  consumo  estético  voltado  para  o  masculino destacado pela sociedade, o tipo de gay “sou mas não sou”:  Eu conheci um amigo, um amigo do  trabalho, ele é super, você olha pra ele e  você  não diz que ele é gay, a partir do  momento que ele abre a boca, assim, ai  você fala que ele é  gay. Mas ele é  super, ele que faz sucesso nas baladas,  ele tem esse (sic) coisa, porque ele gosta  também, ele não tá usando uma  máscara. Mas ele tem barba, ele é super,  ele é magrinho, mas  ele tem, ele é  másculo, ele tem muita barba e tem esse  cabelo, ele tem um corpo, que… condiz  com as roupas que ele usa, porque não  faz muita curva, porque ele é assim.  Então a gente  brinca assim, tipo, “Ah,  eu sou afeminada.” Então, tipo, sabe, é  meio que diminuir. Afeminada,  hoje em  dia, porque, hoje as pessoas não querem  se assumir gay, então hoje em dia é  garoto ficando com garoto, assim “Não 

me chama de gay, não me chama de  afeminada!” Sabe?!    P: É um preconceito dentro do próprio  meio né?   Marcos: Sim, existe isso, é uma coisa  que eu to refletindo muito, é esse  preconceito. Hoje em  dia…  antigamente, nossa! Você vê um gay  comparando com hoje em dia é muito  diferente.  Hoje, porque existe esse  preconceito, e ninguém quer sofrer esse  preconceito. Então todo  mundo... tá  deixando barba crescer, eu vejo como  isso, acho, eu vejo como ponto de fuga,  que  é... ter: “Eu sou gay, mas eu não  posso mostrar que sou gay, porque, se  não eu vou ser  discriminado. Na minha  família, eu posso dizer que eu sou gay,  mas eu não posso dizer o que  eu faço  com o parceiro, senão eu vou ser visto,  mal visto.” Sabe?  P: Sou, mas não sou…né?   Marcos: Isso, sou, mas não sou. Então  “Eu sou, mas não sou um gay que é  afeminado, eu sou um contido. Eu sou  um gay, mas eu sou um gay macho”,  que é uma coisa super contraditória.  A  partir do momento que você é gay, você  tem essa liberdade, acredito que você  tem que ter  essa liberdade. Você não  pode, acho que você não pode ter essas  limitações. Porque é o que você é! 

  Grande  parte  dos  fenômenos  aqui  expostos  demonstram  o  quão  o  estigma  da  identidade  homossexual  se  reforça  quanto  mais  se  transgride  o  padrão  heteronormativo   de  comportamento  de   consumo  estético  exigido  pela  estrutura  social  da  favela  de  Paraisópolis.  Por  conta  disso,  podemos  constatar  que  existem  níves  de  transmissão  de  informações  que  revelam  a  transgressão  da  masculinidade  do  indivíduo  gay  conforme  sua  estética  do  vestúario,  que  muitas  vezes  se revela a partir da “ousadia” de suas peças “cheguei” e também  conforme  sua  estética  facial,  na  qual  um  rosto  delicado,  mais  bem  cuidado,  evidencia  muito  mais a sua identidade homossexual.      A  partir  da  leitura  do  artigo  “​ Como  ser  homem  e  ser  belo?  Um  estudo  exploratório  sobre  a  relação  entre  masculinidade  e  o  consumo  de  beleza”​ ,   podemos  ver  claramente  que  existem  sim  conexões  entre  a  construção  da  identidade  masculina  e  seu  comportamento  de consumo, 

sendo  incluídas  aqui  também  as   questões  de  gênero.  “O  indivíduo  tende  a  adotar  hábitos  de  consumo  que  tradicionalmente  estão  associados  ao  seu  papel  social  ou  ao  seu   ​ papel  de  gênero  –  as  expectativas  da  sociedade  a  respeito de como o homem e a mulher devem se  comportar​ .  O  gênero  apresenta  papel  central  na  construção  da  identidade  social  do  consumidor,  sendo  que,  muitas  vezes,  essa  noção  toma  a  forma  de  estereótipos  sociais  de   gênero  –  crenças  rígidas  e  simplistas  a  respeito  das  características  e  traços  psicológicos  atribuídos  aos  homens  e  às  mulheres  em  função  de  sua  identidade  sexual”  (BORELLI,  CASOTTI, FONTES, 2012, pág. 404. grifo meu).   Percebemos  que  o  ajuste  do  homem  ao  padrão  de  comportamento  de  consumo  está  intimamente  ligado  com   o   ajuste  a  sua identidade de gênero. Dessa maneira, numa sociedade  heteronormativa,  um  indíviduo  do  sexo  masculino,  cuja  orientação  sexual  é  para   o   mesmo  sexo,  é obrigado a ser compatível com o estereótipos de gênero com os quais lida todo dia em  seu  processo  de  socialização.  A  normatividade  sexual,  denominada  aqui  incoscientemente  pelo  entrevistado  como  “taxação”,  é  tão  intensa na vida de um  homossexual a ponto de que é  possível  que  um  indivíduo  homossexual  duvide  da  heterossexualidade  de  um  indíviduo  heterossexual  simplesmente  porque  este  último  se  adequa  aos  padrões  de  consumo  estabelecidos  pelo  homossexual  nos  quais  ele  se  encontra.  O caso abaixo é ilustrativo do que  foi  exposto  anteriormente,  ou  seja,  de  que  há  um  intenso  ajustamento  de  papeis  de  gênero  à  identidade  de  gênero  na  qual  o  indivíduo  se  reconhece;  o  caso  em  questão  enriquece  ainda  mais  a  discussão  porque  o  próprio  entrevistado  reconhece  que  teve  uma   atitude  preconceituosa  em   relação  ao  seu amigo e deixa claro a íntima relação do problema com uma   questão  de  gênero,   onde  “um  garoto  brincar  de  boneca”  é  um  comportamento  de  consumo  exclusivo  do  sexo  feminino,  estabelecido  pela  sociedade heteronormativa em que vivem e na  qual a favela de Paraisópolis é um mero reflexo:  Tem um  amigo lá no trabalho que às  vezes ele chega cantando umas músicas  que são do universo gay, então eu fico  achando “Nossa que engraçado, que  bonitinho.” Eu falo pra ele “É tão  engraçado ver você cantando música  gay.” Ai ele fala “Não, mas não é uma  música gay. A música é universal e tudo  mais.” Eu falo “Não, mas é o público  gay que escuta Madonna, Lady Gaga e  tudo mais.” E ele “Não, mas eu posso  gostar. E isso não me faz gay.” Eai eu vi  esse  preconceito e falo “Nossa, é uma 

coisa natural, tem essa taxação. Quem  escuta Lady Gaga, é  gay!” E nisso,  torna esse preconceito, e nisso eu  mesmo, eu sendo gay, eu estou baixando  esse preconceito encima dele por ele ta  cantando e eu falo “Nossa, mas por que  isso? Não é  normal. Um garoto hétero  cantando gay.” Mas não deveria ser  assim, porque é música, assim como  tudo. O garoto brincar de boneca não  deveria ser visto dessa forma  preconceituosa. 

  Por  fim,  o  último  indivíduo homossexual entrevistado para a pesquisa, o qual se chama Alex,  é  diferente  de  todos  os  outros,  porque  ele  se  encontra  no  polo  do  indivíduo  gay  do  tipo  afeminado.  Alex  é  aquele  que  mais  sofre  com  o  estigma  da  identidade  homossexual,  pois  ultrapassa  os  limites  impostos  pela  favela  de  Paraisópolis  ao  comportamento  de  consumo  estético  direcionado  ao  público  masculino. A partir da abordagem de Nunan de  que o estigma  é  uma  marca  social  que  outorga  ao  indivíduo  um  status  social  baixo,  compreendemos  que  o  individuo  estigmatizado  cumpre  um  papel  social,  pois  os  atributos  ou  características  que  compõem  a  marca  desse  indivíduo  exprimem  tal  identidade  social  depreciada,  interferindo  em  suas  relações   sociais  de  aceitação  e  exclusão.  O  estigma  representa  uma  ameaça  social,  seja  ele  camuflado  seja  ele  revelado  pelo  indivíduo.  Todo  estigma  é  carregado  de  um  forte  simbolismo,  o  qual  influencia  as  formas  de  tratamento  e  julgamento  de  um  indivíduo  para  com  outro  em  determinadas  situações,  sendo  causa  da  depreciação  e  de  experiências  com  preconceito  e  discriminação.  Podemos  constatar  o  que  foi  anteriormente  explicitado  a  partir  das seguintes falas:   A gente ainda tem aquela barra do  preconceito e a gente ficar rotulado,  sabe? O gay tem que ficar escondido,  que o gay tem que ser homem... Eu acho  que tem vários perfis de gays. Tem os  gays afeminados, tem os gays homem  (sic)... tem vários tipos de gay. Eu acho  que a gente não pode ficar escondido,  tem que mostrar nossa identidade, nossa  verdade. Eu sou assim, sou feliz só que  o preconceito ainda é muito forte. Tanto  fora como dentro de casa é uma coisa  muito difícil de lidar e conviver, mas a  gente dá a cara a tapa e consegue viver  as coisas.   

  “É um mundo sujo, tem muitas doenças  e coisas erradas, assim como o mundo  hétero, mas é um mundo que você ainda  vai passar por muitas dificuldades,  muitos preconceitos e você vai levar  isso pro resto da sua vida.” [...] Essas  coisas, só que até hoje ele (pai) acha que  é um mundo sujo, aquele pensamento  que é um mundo errado. Ele respeita,  mas ainda eu não posso me vestir do  jeito que eu quero, tem um padrão pra  ele, minha família acha que eu posso ser  gay, mas que não preciso mostrar pra  todo mundo que sou gay. Ser gay entre  quatro paredes, não precisa mostrar nada  fora. 

  A primeira fala se refere ao momento inicial da entrevista, no qual Alex expõe as dificuldades  em  ser  gay  na  sociedade  em  que  vivemos,  dizendo  que  é  preciso  dar  “cara  a  tapa”,  mostrar  “nossa verdade”, ou seja, ele se refere ao fato  de que a homossexualidade é uma característica  distintiva  de  sua  identidade  e  que,  por  conta  do  estigma  de  tal  identidade  homossexual,  uma  socialização  heteronormativa  tenta  “reparar”,  “consertar”  com  a  finalidade  de manter imóvel  a  ótica  de  que,  antes  de  tudo,  para  ser  homem:  é  necessário  e  imprescindível  não  ser  homossexual. A segunda fala  acima se inicia com um comentário do pai de Alex no momento  em  que  Alex  se  assume  como  homossexual  como  um  aviso  sobre os perigos do mundo gay,  sobre  o  quanto o mundo gay é um “mundo sujo”, “mundo errado”. Embora ele tenha aceitado  a  orientação  sexual  de seu filho, não houve superação da  ótica estigmatizante sobre qual ele e  o  resto  da  família   aludem  sobre  a  forma  de  vestir  de  Alex  e  de  ser  gay  “fora  de  quatro  paredes.”    Diferentemente   dos  outros  entrevistados,  devido  ao  fato  de  que  ele  transgride   o   comportamento  de   consumo  estético  voltado  para  o  masculino  e  não  é  gay  somente  “entre  quatro  paredes”,  Alex  é  o  único  que  possui  atritos  com  a  família  pela  razão  de  desenvolver  estratégias  de  revelação,  reforço  ou  de  afirmação  de  sua  identidade  homossexual  a  partir   de  sua  estética  do  vestuário  e  estética  facial,  demonstrando  mais  proximidade  aos  padrões  de  consumo  intimamente  relacionados  com  os  esterótipos  sociais  de  gênero  voltados  ao  feminino: 

A parte do preconceito eu ainda vivo  muito dentro de casa. agora que eu sou  estilista eu quero fazer as minhas  próprias roupas, quero me vestir com as  minhas próprias criações. então tem essa  parte, não posso me vestir do jeito que  eu quero, comecei a andar maquiado,  gosto de me arrumar, de me cuidar e  minha mãe fica "Pra que se maquiar?"  Mesmo assim eu ainda supero as coisas,  entra por um ouvido e sai pelo outro.  Em casa eu ainda sofro isso muito forte  porque o que eu aguento em casa ainda  acho que todos os homossexuais sofrem,  os que moram com os pais. Então a  partir do momento que eu sair de casa  eu vou viver a minha vida, aí vou viver  do jeito que eu quero.    E se acontecer alguma coisa comigo e  eu entrar em depressão, vou pedir ajuda  pra quem? Sendo que meus pais não me  aceitam do jeito que eu sou. Meu pai  aceita, mas ele prefere ficar do lado da  minha mãe do que do meu lado. Não  quero botar em risco o casamento deles  por minha causa. Eu sei que ano que  vem eu tenho a minha meta, que é sair  de casa definitivamente porque tá muito  difícil.    Questão de roupa eu não posso vestir  roupa curta, não posso vestir short curto,  não posso usar roupa cavada porque tô  expondo muito meu corpo, expondo o  que sou, eles não querem.    Se for sair com ele (irmão) com roupa  extravagante ele não gosta, porque já  chama a atenção. Então ele tem essa  coisa de preconceito também, mas ele  não fala, mas eu sei que ele tem. Então  ele não quer sair com um irmão que  anda de um jeito diferente dele. Porque  se eu andar de um jeito diferente dele, o  povo vai pensar que ele não é meu  irmão, que é meu namorado. A gente é  da mesma altura, a gente é muito  parecido, o cabelo é parecido e essas  coisas assim, mas se a gente sair junto o  povo pode pensar outra coisa dele. [...] 

Dependendo às vezes tem que sair junto,  mas com uma roupa que não aparenta  muito porque ele não quer passar  vergonha. Isso é certo também com  relação a ele, não quero que ele passe  uma imagem do que ele não é. Ele é  hétero, não quero que ele passe uma  imagem de que possa ser homossexual  só pela forma de se vestir. 

  Os  trechos  ilustram  o  quão  para  Alex  a  liberdade  para  ser  homossexual   perante  todos  os  outros  é  algo  extremamente  difícil,  pois  muito  mais  do  que  expor sua homossexualidade, ele  não  se  enquadra  ao  condicionamento  da  identidade  de  gênero  ­  homem  ­  com  o  papel  de  gênero correspondente a tal identidade, ou seja, comportar­se como homem, que lhe é exigido  dentro de sua casa, no seu ambiente familiar, composto por indivíduos que, assim como Alex,  estão  envoltos  pela  ótica  estigmatizante  construída  pela  socialização  heteronormativa  que  se  reproduz  na  favela  de  Paraisópolis.  Dessa  maneira,  o  estigma  da  identidade  homossexual  nesse  contexto  aqui  analisado  está  muito  mais  intimamente  relacionado  ao  níveis  socioinformacionais  que  determinam  as  estratégias  de  exposição  ou  revelação  de  tal  identidade  do  que  realmente  a  orientação  sexual  de   homens  para  o  mesmo  sexo.  Em  outras  palavras,  podemos  dizer  que  o  “olhar”,  “o  jeito  de  andar”   são  aceitáveis  para  um  homossexual  masculino,  enquanto  isso  assemelhar­se  a  uma  mulher,  seja  na  estética   do   vestuário  seja  na  estética  facial,  em  Paraisópolis,  é  algo  inaceitável. Assim como foi exposto  por  Borrilo:  “Em  uma  sociedade  androcêntrica  como a nossa, os valores apreciados de forma  especial  são  os  masculinos;   neste  caso,  sua  ‘traição’  só  pode  desencadear  as  mais  severas  condenações”  (2010,  pág.  88).  Um  caso  extremamente  interessante  para  o  que  foi  anteriormente  explicitado  é  a  fala  a  seguir  de  Alex,   um  indivíduo  homossexual que lida com  as  severas  condenações  de  uma  sociedade  heteronormativa  e  que  possui  a  “sensação”  de  viver  numa  “jaula”  todos  os  dias,  na  qual  a  favela  de  Paraisópolis,  mero  componente  de  estrutura  social  que  legitima  a  heteronormartividade,  é  justamente  a  porta  de  entrada  para  a  “cadeia”  que  impede  a  transgressão  do  comportamento  de  consumo  estético  voltado  ao  homem:  Você vê, muitas pessoas não aparentam  mesmo. Depende, tem o gay afeminado  que aparenta muito, tem os gays que são  mais discretos. Eu acho que é isso que a  minha família quer, que eu seja um gay, 

mas um gay discreto. Eu não consigo ser  um gay discreto.   P: Gay discreto seria um gay?...  R: Que não aparenta ser gay  P: E como não aparentar ser gay?  R: Se (sic) vestir como hétero, a postura  como se fosse um hétero, rotular  novamente a pessoa. Ai a pessoa pode  andar como é, a pessoa pode beijar  quem quiser, mas determinado lugar  você não pode fazer isso. É complexo…  se eu pegar meu namorado e começar a  beijar aqui no Paraisópolis, muitas  pessoas que não me conhecem, imagina  o furdunço que vai dá, o comentário que  vai dá.   P: Onde ele mora?  R: Mora no Jardim São Luís. É muito  complexo… porque ele não aparenta ser  gay. Ele veste bermudão, então ele  parece um hétero. Isso que eu acho que  é errado, as pessoas se vestirem como  uma coisa que não são. Mas as pessoas  usam essas roupas, fazer o que. Igual  meu pai mesmo, um dia, a mesma roupa  que eu usei ontem, eu fui no trabalho do  meu pai, depois do meu desfile, ele  ficou muito envergonhado, ele ficou  muito incomodado com a roupa que eu  fui. Então ontem a gente brigou por isso  e ele falou assim “Meu, por que você  não se veste igual o seu, o seu  companheiro? Seja comportado, igual  ele.”   P: Comportado…  R: Eu não posso me vestir do jeito que  eu quero.  P: Você não pode mostrar esse seu “ser  gay” porque isso te deixa, te torna  inferior, te torna ruim, te torna negativo,  te torna…  R: Eu falei “Não! Chega!” Por isso que  eu quero exatamente sair logo da casa  dos meus pais, cortar esse cordão  umbilical logo, apesar de que já foi  cortado, mas continua junto. Eu preciso  viver a minha vida, preciso viver…  porque fora daqui, eu consigo viver  muito bem, quando eu começo a vir pra  cá, eu fico incomodado, dentro de casa  eu fico incomodado, eu não consigo 

fazer mais nada. Fora eu consigo fazer  um monte de coisa, aqui eu não consigo  fazer mais nada. Tipo, parece que eu  entro numa jaula, só saio para o banho  de sol e entro de novo pra cadeia, sabe?  A sensação é essa​ .  

          Análise das fotos de Alex e Marcos   

    Alex  As  fotos  de  Alex  revelam   um  padrão  estético  que  se  apresenta  no  polo  afeminado.  Em  comparação  a  todos  os  outros  entrevistados,  Alex  é  o  único  que  pinta  o  cabelo,  comportamento  estético  geralmente  associado  ao  consumo  estético  feminino  em  uma  estrutura  social  heteronormativa.  Assim,  fica  evidente  que  Alex  transgride  a  masculinidade  esperada  pela  sociedade.  Além  disso,  Alex  é  estilista  e isso se manifesta em suas roupas,  que  possuem  um  estilo  também  geralmente  não  associado  ao  padrão  masculino  heteronormatizado. Assim como Marcos, Alex também procura roupas mais justas. 

 

    Marcos 

 

 

A  partir  das  fotos  de  Marcos,  é  possível  perceber  que  seu  estilo  estético  foge  do  padrão  heteronormativo,  especialmente  no  que  se  refere  ao cabelo. O  cabelo de Marcos, segundo ele  próprio,  funciona  como  um  símbolo  de  afirmação  de  sua  negritude,  além  de  símbolo  de  sua  homossexualidade,  como  destacado  anteriormente.  Além  disso,  quanto  ao  estilo,  o  entrevistado  diz  que  prefere  roupas  mais  “justas”,  em  oposição  a  roupas  “folgadas”.  Aqui  podemos  perceber  dois   polos  estéticos  referentes  aos  tipos “gay afeminado” e “gay contido”.  Isto  é,  roupas  folgadas  podem   ser  usadas  como  estratégia  de  encobrimento  do  estigma   homossexual  por  se  assemelhar  ao  padrão  masculino,  enquanto  que  roupas  “justas”  transgridem o padrão anteriormente citado esperado pelos outros indivíduos..    PARTE IV ­ CONCLUSÃO    Com  o  que foi exposto ao longo do relatório  e ainda tomando como empréstimo as definições  de  identidade  de  gênero  e  papel  de  gênero  enunciadas  por  Adriana  Nunan,  que  são,  respectivamente,  ser  mulher  ou  homem  e  comportar­se  de  forma  feminina,  masculina  ou  andrógena;  podemos  concluir  que  a  intensa  estigmatização  da  identidade  homossexual  do 

indivíduo  gay  do  tipo  afeminado  quando  comparado  ao  do  tipo  contido  se  explica devido ao  fato  de  que  as  práticas  de  beleza  associadas  a  um  comportamento  de  consumo  estético  feminino  são  exclusivas  de  mulheres  num  padrão  de  identidade  de  gênero  construída  e  afirmada  por  uma  sociedade  heteronormativa.  Dessa  maneira,  ser  homem  significa  não  ser  mulher,  em  outras  palavras,  em  uma  sociedade  heteronormativa  quando  tomada  pelo  comportamento  de  consumo estético, a construção do comportamento de consumo estético de  um  homem se desenvolve a partir  da negação do comportamento de  consumo estético de uma  mulher.  Isso evidencia as razões pelas quais os indivíduos gays que foram entrevistados e que  se  encontram  no  polo  do  tipo  contido  não  sofrem  o  estigma  da  identidade  homossexual  a  partir  de  seu  comportamento  de  consumo  estético,  enquanto  isso, aqueles indivíduos gays do  tipo  afeminado  que   ou   ultrapassam  os  limites  da  masculinidade  ou  não  seguem  os  padrões e  atributos  referentes  ao  comportamento  de  consumo  estético  voltado  aos  homens  numa  sociedade  heteronormativa  possuem  indícios  visíveis  de  sofrer  com  o  estigma  da  identidade  homossexual  a  partir  de  seu  ajustamento  a  um  comportamento  de  consumo  estético  enfatizado como subversivo quando situado na favela de Paraisópolis.         

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