Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social ENTRE JAGUNÇOS E VALENTES Família, terra e violência no interior do Paraná
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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
ENTRE JAGUNÇOS E VALENTES Família, terra e violência no interior do Paraná Dibe Salua Ayoub
Rio de Janeiro 2016
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DIBE SALUA AYOUB
ENTRE JAGUNÇOS E VALENTES Família, terra e violência no interior do Paraná
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Antropologia Social. Orientador: Moacir Gracindo Soares Palmeira
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Entre jagunços e valentes: família, terra e violência no interior do Paraná Dibe Salua Ayoub
Tese de Doutorado submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Antropologia Social. Aprovada em: 15 de fevereiro de 2016. _________________________________________________ Prof. Moacir Gracindo Soares Palmeira (Orientador) PPGAS/MN/UFRJ _________________________________________________ Prof. John Cunha Comerford PPGAS/MN/UFRJ _________________________________________________ Profª. Adriana de Resende Barreto Vianna PPGAS/MN/UFRJ ____________________________________________ Profª. Ana Claudia Duarte Rocha Marques PPGAS/USP _________________________________________________ Prof. Jorge Mattar Villela PPGAS/UFSCAR _________________________________________________ Profª. Graziele Cristina Dainese de Lima (Suplente) PPGAS/MN/UFRJ _________________________________________________ Profª. Ana Carneiro Cerqueira (Suplente)
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Agradecimentos Esse trabalho resulta de longas caminhadas por estradas diversas, pelas quais não andei sozinha. Em cada lugar de Pinhão que conheci, uma família me recebeu em sua casa, aceitando dividir comigo seu cotidiano. Entre essas famílias, encontrei amizade, generosidade e conforto. Agradeço toda a sua gentileza e tudo o que fizeram por mim, que foi muita coisa, durante muito tempo. Agradeço, também, a todas as pessoas que me receberam em suas casas, e compartilharam comigo um pouco de suas vidas. E a todos aqueles que me levaram a lugares, apresentaram-me pessoas, e me ajudaram a tornar possível essa tese. Liliana Porto me convidou para participar do Projeto Memórias dos Povos do Campo no Paraná, abrindo um caminho que pude seguir e que culmina, agora, com esse trabalho. Agradeço sua amizade, o aprendizado, e também sua delicadeza e atenção em todas as nossas conversas e debates sobre a pesquisa e o campo. Jefferson Salles foi quem apresentou nossa equipe do Projeto Memórias aos posseiros de Pinhão. Agradeço-o também pelo extenso trabalho com os arquivos sobre o conflito de terras, e por tê-lo compartilhado comigo. A Moacir Palmeira, meu orientador, por seu incentivo, simplicidade, paciência, gentileza e dedicação às leituras e discussões de meus trabalhos. Pelas boas histórias, ensinamentos e pela alegria do convívio. John Comerford, por sua presença em mais essa banca, os cursos que me propuseram novas perspectivas, os giros, a oficina sobre animais de criação, e o bom humor. Adriana Vianna, pelas discussões enriquecedoras, as contribuições em minha banca de qualificação, e a participação na banca examinadora de minha tese. Aos professores José Sérgio Leite Lopes, Olívia Gomes da Cunha, Maria Claudia Coelho e Graziele Dainese, com quem realizei cursos ao longo de meu doutorado, e que contribuíram intensamente com a proposição de questões ao meu material de campo. À Graziele, em especial, pelas trocas para além das aulas, nas rodas de discussões do NuAP e nos encontros dentro e fora da Quinta da Boa Vista. Sou grata a Ana Claudia Marques, Jorge Villela, Ana Carneiro, e também a Graziele Dainese, por aceitarem compor a banca examinadora de minha tese. A Ana Claudia e Jorge, pela generosidade de virem ao Rio e discutirem meu trabalho, propondo-me novos questionamentos e aprofundamentos.
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À Carla, Anderson Arnaud, e Adriana de Alcantara, agradeço sua disposição e auxílio junto à Secretaria do PPGAS. A Marcio Nunes de Miranda e Dulce Paes de Carvalho, da Biblioteca Francisca Keller, sempre prestativos e gentis. Durante o curso de doutorado, encontrei muitos queridos que me permitiram momentos de descontração e leveza em meio à turbulência desse processo de preparação e escrita da tese, e me trouxeram muitas novas ideias, através dos bons debates tecidos em nossos encontros. Por isso tudo, sou grata a Luan Teixeira, Everton Rangel, Marcela Rabello, Fabrício Teló, Izabela Boisisio, Léa Mougeolle, Mariana Renou, Carolina Castellitti, Francesca Repetto, Lucas Freire, Clarisse Kubrusly, Roberta Novaes, Aline Maciel, Ana Carneiro, Carmen Andriolli, Luzimar Pereira e André Guedes. A Luan agradeço em particular por ter me motivado a refletir sobre cães e animais de criação, tema que acabou se tornando de particular interesse para mim e que adentrou as discussões do corpo da tese. Com Rodica Weitzman
e Maria Rossi tive a alegria de conviver ao longo do
doutorado e compartilhar parte do processo de escrita dessa tese. Gratidão por suas leituras, pelas valiosas discussões e pela boa prosa. Fernanda Abreu, pela leveza da dança, os passeios por Niterói, os encontros na Quinta. Marília Lourenço, Lila, com quem compartilho os assombros por esses rios do “sul” em que nos metemos e por esses divinos que são de toda parte. Isso sem falar nos voos por esse outro rio que se diz de Janeiro, onde tudo de estranho acontecia. Thais Danton e Anacely Costa, parceiras de andanças, festejos e vizinhança. Diógenes Parzianello, com quem conheci o Rio de Janeiro e tanto mais. Agradeço também a hospitalidade de sua família. Às amigues de Curitiba! Gabriela Becker, que apesar das distâncias sempre se faz presente com suas palavras e seu sorrisão, e que tanto me ajudou durante toda a jornada de elaboração desta tese. Carlos Eduardo Silveira, pela sempre boa presença e a boa música. Karina Coelho, cuja fineza para imitações e piadas é imprescindível. Agradeço a vocês três por terem, em diferentes momentos, me aberto as portas e me deixado ficar em suas casas em minhas jornadas rumo a Pinhão. Finalmente, a Eduardo Bischof, que além de estar comigo em Curitiba, me levou ao seu Pinhão familiar. A meu pai, Said, por todo seu apoio e carinho. Agradeço também à sua esposa Mariza e aos meus irmãos Amir e Said, pelas acolhidas em União da Vitória, nas diversas vezes em que precisei ir e vir de Pinhão. E a meu tio Daniel, por todas as conversas sobre o Contestado e o incentivo à minha pesquisa.
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À minha mãe, Marcia, a José Carlos, e à minha irmã Karime, que me dão sua força, coragem e ternura, e me fazem feliz com as diversões que nos inventamos. A Ronaldo, sabiá, meu amor.
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bem no fundo no fundo, no fundo, bem lá no fundo, a gente gostaria de ver nossos problemas resolvidos por decreto a partir desta data, aquela mágoa sem remédio é considerada nula e sobre ela – silêncio perpétuo extinto por lei todo o remorso, maldito seja quem olhar pra trás, lá pra trás não há nada, e nada mais mas problemas não se resolvem, problemas têm família grande, e aos domingos saem todos passear o problema, sua senhora e outros pequenos probleminhas Paulo Leminski
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RESUMO Nesta tese, busco compreender os modos com que os moradores do interior do município de Pinhão, Paraná, falam sobre violência, e lidam com a presença dela em seu cotidiano. Para tanto, discuto casos de ofensa, morte e agressão, chamadas pelas pessoas de encrencas, brigas, vinganças e violência. As experiências que analiso são marcadas pela familiaridade com aqueles que produzem tais agressões, ameaças e mortes, de modo que falar sobre elas implica ponderar as relações que as constituem, e o próprio envolvimento da pessoa que conta sua história. Através desses casos, famílias, pessoas, lugares e terras adquirem novos contornos e reputações. Além disso, essas experiências revelam formas de cuidado de si e dos outros, que se tornam centrais nos tratamentos dados a processos de hostilização que culminam em mortes. Levando isso em conta, observo as maneiras com que as pessoas traçam proximidades e afastamentos em relação a esses processos, questionam os motivos que levaram a tais hostilidades, problematizam os elementos que as articulam, e refletem sobre as mudanças que esses acontecimentos produzem na vida social. Ao longo do trabalho, invisto em diferentes frentes de abordagem das encrencas, brigas, vinganças e violência. Nesse sentido, discuto experiências de conflitos de terras com uma madeireira, de brigas entre vizinhos ou conhecidos que geram mortes, de broncas e desaforos envolvendo a criação de animais e roubos, e de conflitos dentro da família.
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ABSTRACT In this thesis, I seek to comprehend the ways in which the inhabitants of Pinhão, Paraná, talk about violence and deal with its presence in their daily lives. My interest is to discuss situations of injury, death and aggression, named as troubles (encrencas), fights (brigas), vengeance (vingança) and violence (violência). I analyze stories that are marked by the familiarity of the narrators with those who produce such assaults, threats and murders. Most of these narratives involve considerations about the relations that constitute deaths and aggressions, and the stories are also characterized by the narrator’s involvement in such relations and dynamics. Through these cases, families, persons, places and lands acquire new traits and reputations. Moreover, these experiences reveal ways of caring for oneself and for others, which become central in the treatments given to hostility dynamics that end in death. Taking this into account, I observe the ways in which people trace their proximity and distance in relation to these processes, and also their questions about the reasons that lead to such hostilities. I also intend to problematize the elements that are articulated in these situations, and reflect on the changes that these events engender in social life. Throughout the work, I invest in different forms of approaching the troubles, fights, vengeance and violence. In this sense, I discuss experiences of land conflicts involving a timber industry, fights and killings between neighbors or people who know each other, insults involving livestock and robbery, and conflicts within the family.
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Lista de Ilustrações Figura 1. Mapa do Paraná com destaque ao município de Pinhão. Pág.14. Figura 2. Município de Pinhão e divisas. Pág.14
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Lista de siglas e abreviações AFATRUP – Associação das Famílias dos Trabalhadores Rurais de Pinhão APF – Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses ARESUR – Área Especial de Uso Regulamentado COPEL – Companhia Paranaense de Energia Elétrica CPT – Comissão Pastoral da Terra ELEPIÃO – Programa Especial de Regularização Fundiária do Município de Pinhão IAP – Instituto Ambiental do Paraná IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis ICMBio – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade IML – Instituto Médico Legal INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária ITCG – Instituto de Terras, Cartografia e Geociências ITCF – Instituto de Terras, Cartografia e Florestas do Paraná MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra PNSCA- Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil RDS – Reserva de Desenvolvimento Sustentável
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SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................................12 Pinhão e seu interior.................................................................................................................14 O campo....................................................................................................................................18 1. PERMANÊNCIAS: TEMPOS DE FRANCISCA...........................................................35 1.1 Parar o pé: a terra e seus percursos...................................................................................38 1.2 Guardas, jagunços e pistoleiros: problematizações...........................................................48 1.3 Violências, narrativas e silêncios........................................................................................64 1.4 A morte de Leonardo: termos da trama..............................................................................76 1.5 Ameaças, presenças e ausências.........................................................................................83 1.6 O pé e o mastro na terra de Francisca.................................................................................95 2. BRIGAS E VALENTES.....................................................................................................101 2.1 Pinhão e os valentes..........................................................................................................102 2.2 Os Ambrósios e as brigas de família................................................................................109 2.3 Dos que não levam desaforo para casa.............................................................................122 3. ENCRENCAS DOS OUTROS.........................................................................................129 3.1 Morte em dia de festa: vizinhança em resguardo.............................................................130 3.2 Quando as brigas e as encrencas dos outros chegam em casa.........................................150 4. VIZINHOS: BRONCAS E DESAFOROS......................................................................163 4.1Criação dá muita bronca..................................................................................................165 4.2Agradar e desaforar: o roubo e suas mensagens..............................................................186 5. BRIGAS ENTRE FAMILIARES....................................................................................208 5.1 Irmãos ruins, afetos e terra................................................................................................208 5.2 Homens e mulheres...........................................................................................................220 6. TERRAS E LUTAS..........................................................................................................231 6.1 Terra e desaforo................................................................................................................233 6.2 A expulsão do guarda.......................................................................................................243 6.3 O MST, o guarda e os Junqueira......................................................................................256 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................265 Vinganças................................................................................................................................265 Jagunços e valentes.................................................................................................................271 Narrativa e envolvimento........................................................................................................275 Referências bibliográficas....................................................................................................285
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Introdução Esse trabalho parte de meu interesse em compreender como os moradores do interior1 do município de Pinhão, Paraná, falam sobre violência e lidam com a presença dela em seu cotidiano, no convívio uns com os outros. Meu interesse por esse tema surgiu, primeiramente, através de narrativas de pessoas que vivem ou viveram conflitos de terras com uma empresa madeireira, experiência que marca as trajetórias de inúmeras famílias que habitam o município. Ao contarem histórias sobre seus enfrentamentos e sua proximidade aos agentes que as ameaçavam, as pessoas teciam uma série de considerações que ultrapassavam a luta por terras com a madeireira. Contadas do ponto de vista de sua familiaridade com os guardas, jagunços e pistoleiros da empresa, as narrativas dos moradores do interior eram repletas de alusões aos seus conhecimentos e vínculos com esses inimigos próximos. Elas falavam em formas de conduta que possibilitavam ou não a boa convivência com esses homens, e em um saber viver que, por entre amizades e enfrentamentos, garantiu sua permanência na terra. Além dos conflitos de terras, havia outros perigos que preocupavam os moradores do interior. Alguns locais e eventos, como os bares e as festas, eram marcados por brigas que culminavam em mortes, que por sua vez se estendiam em vinganças, concebidas também como de família. As vinganças, enquanto possibilidade ou efetivação de uma morte em razão de outra, estão no cerne do que levou Pinhão a ser reconhecido, na região, por sua fama de valente. Relacionada pelos pinhãoenses ao passado do município e de algumas famílias que lá viviam, essa fama é atrelada aos homens, que antigamente andavam armados pelas estradas, bebiam, provocavam-se, e matavam-se entre si. Alguns desses homens, que mataram em brigas e vinganças, tornaram-se renomados matadores de gente, e passaram a atuar como pistoleiros. As brigas em festas e em locais onde homens se reúnem para beber, contudo, são uma preocupação do presente. Do mesmo modo, a presença na vizinhança de pessoas tidas como perigosas, já envolvidas em mortes, era tema de observações. Além disso, nas tramas das próprias famílias também havia casos de morte entre irmãos, e entre marido e mulher. As experiências de violência que importavam aos meus interlocutores, nesse sentido, ultrapassavam o conflito fundiário. No entanto, as mortes e ameaças que adentravam a vida 1
O interior, como esmiuçarei mais adiante, é a forma com que os moradores do município chamam sua zona rural. Ressalto, desde já, que todos os termos em itálico que se seguem são referentes a expressões e frases utilizadas e ditas por meus interlocutores. As citações de entrevistas ou de diálogos com as pessoas com quem convivi no município, porém, não estão em itálico, mas em parágrafos deslocados. Para citações de autores, utilizo aspas.
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das pessoas por meio do conflito de terras eram consideradas muitas vezes de modos parecidos às situações de inimizade entre próximos, e das brigas em bares e festas, ou seja, a outras formas de hostilidade que ultrapassavam a questão da terra, mas constituíam um repertório comum a outros tipos de encrencas, tal como são chamadas as situações de confusão e desentendimento que podem se tornar fatídicas. Ao falarem sobre acontecimentos de agressão e morte que haviam ocorrido há muito tempo, ou que se desenrolavam enquanto eu desenvolvia meu trabalho de campo, as pessoas compunham observações sobre as reputações dos envolvidos, sobre os motivos que os levaram a tais confusões, e sobre as mudanças que as mortes provocavam nas vidas daqueles que mataram ou dos que tiveram um ente querido morto, e nas de todos aqueles que os conheciam e que de algum modo se percebiam também como afetados por tais acontecimentos. As narrativas expressavam, nesse sentido, formas de cuidado de si e dos outros, que moviam o viver em família e em vizinhança, e que se tornavam sobressalientes nas maneiras com que as pessoas compreendiam a presença de encrencas e criavam expectativas sobre elas. Por essa via, os modos de se portar, de se cumprimentar, de se visitar, de trocar ajudas, de cuidar da criação e dos cães, de lidar com as crianças (suas e dos vizinhos), de se movimentar pelas casas, de desempenho do trabalho, de conversar, tudo isso, enfim, que fundamenta a convivência das pessoas umas com as outras, tornava-se matéria de atenção, na medida em que era por meio dessas atividades que reputações e discórdias entre próximos ganhavam corpo. Esses cuidados também se tornavam centrais nas considerações sobre agressões e mortes, nas tramas das encrencas, broncas, brigas e vinganças, e nos tratamentos dados a elas. Assim, através de suas narrativas sobre violência, as pessoas me apresentavam maneiras de se conduzirem entre próximos, formas de agir que constituem um conhecimento indispensável e representativo daquilo que tanto as une, quanto move seus desentendimentos e confusões. Dando primazia aos modos pelos quais os habitantes de localidades do interior de Pinhão falam sobre mortes e agressões, e lidam com elas em seu cotidiano, invisto em uma discussão que toma como ponto de partida a familiaridade entre pessoas que se envolvem em diversos processos de hostilização e de agressão. Minha preocupação não é tanto diferenciar violências a partir das relações que as movem, de seu potencial transgressor de regras ou agregador de pessoas, de seus níveis de aceitação ou de incompreensão. Espero, ao contrário, discutir as formas com que os moradores do interior produzem sentido sobre esses acontecimentos, assim como as diferentes maneiras com que os incorporam em suas práticas de convivência e em seus conhecimentos sobre lugares, pessoas, famílias, e sobre a terra.
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Para tanto, discuto suas formas de concepção de situações de ofensa, morte e agressão, enquanto encrencas, brigas, vinganças e violência. Ao atentar às próprias experiências e terminologias de meus interlocutores, percebi que não só para “nós”, “antropólogos”, mas para “eles”, também, há uma série de problematizações sobre os significados da violência, e uma espécie de “ética”, enquanto “modo de conduzir-se moralmente” (FOUCAULT, 2010) frente a tais processos de hostilização e de enfrentamento. Mais do que conceber a ameaça, a agressão e a morte como eventos pontuais, relacionados a um simples opositor ou a díades que contrapõem lados em conflito, as pessoas que vivem tais situações acabam por destrincha-las em diversos agentes e relações, demonstrando como a violência afeta seu estar umas com as outras, suas relações em família, em casa e entre casas, seus movimentos entre lugares, e suas lutas pela terra.
Pinhão e seu interior
Figura 1. Mapa do Paraná com destaque ao município de Pinhão
Figura 2. Município de Pinhão e divisas
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Pinhão é um município da região centro-sul do estado do Paraná, que concentra em sua área uma população de aproximadamente 30.200 habitantes, equilibradamente distribuídos entre a zona rural e a zona urbana2. Fundado em 1964, Pinhão foi até essa data distrito de Guarapuava, município vizinho e maior centro urbano da região. As primeiras investidas dos colonizadores portugueses na região se deram no final do século XVIII. Porém, a colonização dos chamados Campos de Guarapuava, ambiente de gramíneas forrageiras e capões de mato, que caracteriza as terras ao norte de Pinhão, só se consolidaria no século XIX. Nessa época, os Campos de Guarapuava se tornaram um importante ponto de passagem e pouso de tropeiros que, levando gado do Rio Grande do Sul a São Paulo, paravam nas fazendas de invernada no Paraná, destinadas à pastagem dos animais, e que utilizavam mãode-obra escrava. No século XX, os campos de Pinhão permaneceram ocupados pelas grandes propriedades da elite regional. Atualmente, essas áreas são destinadas sobretudo à criação de gado bovino para corte e produção de laticínios, e ao cultivo de soja. Campo é também o termo que os moradores do município se utilizam para falar desse ambiente. O Pinhão, como os pinhãoenses nomeiam o centro urbano, localiza-se na divisa entre os campos e os faxinais. Faxinal é o modo com que são chamadas, pelos habitantes do lugar, as áreas de matas de araucárias, formação florestal típica da região Sul do Brasil. Essas terras de floresta sofreram uma ocupação distinta dos moldes de colonização dos campos. Habitadas por famílias que vieram sobretudo dos estados da região Sul e Sudeste, de outros municípios do Paraná, e por imigrantes europeus, os faxinais de Pinhão tiveram sua colonização iniciada na segunda metade do século XIX, e consolidada no início do XX. Diferentemente dos campos, divididos entre grandes proprietários, os faxinais constituíram-se como áreas de posse das famílias que lá viviam, de modo que eram a moradia e o trabalho na terra que legitimavam seus direitos sobre os terrenos. O ambiente de faxinais caracteriza-se historicamente por um modo tradicional de organização do território, típico dessa região do Paraná. As matas de araucárias, localizadas em planaltos, constituíam terras de uso comum para a criação de gado suíno e bovino, terras que são chamadas de criador pelos moradores de Pinhão. No entanto, os faxinais também eram demarcados por frentes, terrenos identificados com famílias particulares, que ali praticavam o extrativismo de erva-mate, atividade econômica que continua sendo, junto à criação de gado, a mais expressiva na vida dos habitantes dessas áreas. Separadas dos faxinais 2
Dados do Censo Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
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por cercas extensas, as quais eram cuidadas pelos moradores das terras de criador, ficavam as terras de planta ou terras de cultura, destinadas às lavouras de subsistência de quem vivia no faxinal. Essas áreas se localizavam geralmente em encostas de serras e beiras de rios, e como as frentes, eram concebidas como terras de uma família em particular, que possuía em suas culturas um paiol, pequena casa habitada sazonalmente, durante os períodos de plantio e colheita. Porém, nas terras de cultura também havia moradores permanentes, que dedicavamse às lavouras e à criação de animais fechados em cercados. Essa caracterização do ambiente enquanto campo, faxinal, terra de planta/cultura, permanece amplamente acionada pelos moradores do município para descrever o seu interior, como eles chamam a zona rural, distinta do Pinhão, centro urbano. Grande parte das localidades do interior recebem a nominação de Faxinal dos, como Faxinal dos Oliveiras, Faxinal dos Ambrósios, Faxinal dos Cascatas, muitas vezes referente aos sobrenomes dos primeiros moradores desses faxinais, ou de algumas famílias proeminentes nessas áreas3. Alguns desses Faxinais são concebidos como grandes regiões do município, dentro das quais há várias comunidades, as quais também podem ser chamadas de Faxinal dos (...) ou receber outros nomes, como o do santo padroeiro da igreja católica que lá existe. Algumas comunidades coincidem com as divisões administrativas da própria prefeitura do município. Contudo, muitas delas não constam nessas divisões oficiais. Comunidades são concebidas como lugares específicos do interior, onde habitam diversas famílias, em terrenos distintos e com características distintas. Cada comunidade conta com a presença de uma igreja. Algumas comunidades contém agrupamentos de casas perto umas das outras, chamadas de vilas ou de vilinhas. Nessas vilinhas, as pessoas vivem em terrenos pequenos, separados por cercas, cujo espaço é praticamente aquele da casa e de seu quintal. No entanto, a maior parte das comunidades é dividida em terrenos familiares mais dispersos. Chamo eles de familiares porque, em geral, certas porções de terras são identificadas com uma família, que lá se espalha em diversas casas, marcando divisões internas ao terreno. É o que acontece, por exemplo, quando um filho se casa e faz casa nas terras do pai, ganhando direitos sobre um pedaço do terreno da família. Mas o que emerge como mais característico da relação de comunidade, entre aqueles que vivem em uma localidade caracterizada enquanto tal, é que cada morador sabe onde todos os outros vivem, a que família pertencem, o que fazem da vida. Há, nesse sentido, uma relação de conhecimento 3
Todos os nomes que utilizo para descrever lugares e pessoas são fictícios, com exceção do Pinhão, e do Zattar, como era chamada a região da antiga Zattarlândia.
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mútuo que caracteriza as formas com que os moradores do interior se compreendem e se tratam uns aos outros. Em meu trabalho, concentrei-me sobretudo em áreas de faxinal, onde vivem a maior parte das famílias que me receberam em suas casas. Não é à toa que permaneci maior tempo nesses ambientes. Foi em especial nos faxinais pinhãoenses que a madeireira Indústrias João José Zattar S/A adquiriu imensas porções de terras, dando força aos conflitos que interesseime primeiramente em estudar. Também chamada de o Zattar, ou Zattar, a empresa iniciou suas compras de pinheiros em Pinhão na década de 1940, através de João José Zattar, que era, então, presidente da madeireira. No fim daquela década, Zattar estabeleceu sua primeira serraria em Pinhão, ao redor da qual formou um reduto onde ficavam as casas de seus empregados, armazéns, farmácia, clube, igreja, escola. Esse local foi chamado de Zattarlândia. O período em que a empresa se inseriu no município corresponde à entrada da região de Guarapuava no mapa da exploração madeireira no Paraná, atividade que moveu a economia daquele estado por quase todo o século XX. Devido à exploração intensiva das florestas, em 1992, as araucárias foram reconhecidas pelo IBAMA como uma das plantas brasileiras ameaçadas de extinção, estando desde então protegidas por leis ambientais. Se num primeiro momento a Zattar concentrou-se em adquirir terras ao redor da Zattarlândia, a partir dos anos 1960 os donos da empresa conseguiram documentar imensas áreas em seu nome. Essas terras iam muito além do seu reduto, espalhando-se pelos mais variados faxinais, terras de cultura e em algumas porções de campos do interior pinhãoense. No entanto, essas áreas já eram habitadas por famílias vinculadas à terra através do antigo sistema de posses, e que viviam de acordo com a tradicional ocupação dos faxinais/culturas. Foi então que os conflitos de terras entre a empresa e os antigos posseiros tiveram início. Além de explorar a madeira, as Indústrias Zattar também se inseriram nas atividades ervateiras, passando a praticar o extrativismo de erva-mate dos faxinais, e a impedir os antigos moradores dessas terras de seguirem adiante com esta que sempre havia sido uma importante fonte de renda para as famílias da região. Nas terras de cultura, a empresa criava gado, de modo que buscava impedir os moradores de fazerem lavoura em determinados períodos, e cobrava arrendo sobre sua produção agrícola. Nos campos mais próximos dos faxinais, ela adquiriu fazendas de antigos proprietários, e áreas onde também havia posseiros, nas quais se dedicou à produção de lavouras e à criação de gado. Entre fins dos anos 1980 e início dos anos 1990, o conflito nas terras adquiridas pela madeireira chegou ao seu ponto mais tenso, com a organização dos moradores a fim de garantir seus direitos sobre as terras onde viviam. Em meados dos anos 1990 a empresa vai à falência. Apesar de ter interrompido
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suas atividades em Pinhão, ela deixa, como veremos, um grande lastro de conflitos em torno da terra. Para finalizar essa breve descrição da paisagem do interior do município, gostaria de destacar a presença de três usinas hidrelétricas em suas imediações. Entre elas estão a usina de Foz do Areia, na divisa entre Pinhão e Bituruna, e a de Salto Segredo, em Reserva do Iguaçu, município que era distrito de Pinhão até 1995. Ambas essas usinas ficam no grande Rio Iguaçu, que atravessa o Paraná de leste a oeste. A terceira e última é a usina de Santa Clara, que fica no município de Candói, e no Rio Jordão, limite natural entre Candói e Pinhão. Esses empreendimentos não só nos remetem ao relevo acidentado do município e ao local estratégico que ele ocupa nos planos de geração e distribuição de energia da Companhia Paranaense de Energia Elétrica (COPEL), como também a outros projetos de “desenvolvimento” que afetaram a estrutura fundiária de Pinhão. Devido à construção das barragens, diversas famílias foram reassentadas e deslocadas das áreas onde viviam, e novas vilas, que serviram de base aos operários que trabalharam nesses empreendimentos, foram erguidas nos entornos das usinas. O campo Minha primeira ida a Pinhão ocorreu em 2009, quando eu iniciava meu mestrado e participava do Projeto Memórias dos Povos do Campo no Paraná, composto por pesquisadores interessados em compreender e registrar as histórias de populações rurais que vivem conflitos fundiários4. Assim, foi a questão da terra que me levou ao município, como integrante de uma equipe. O primeiro lugar que lá conheci foi a Associação das Famílias dos Trabalhadores Rurais de Pinhão (AFATRUP), onde fomos apresentados a Joaquim, importante articulador dos diálogos entre movimentos sociais, INCRA e Indústrias Zattar, na busca pela resolução dos impasses referentes aos direitos fundiários de quem habita as terras que a madeireira possui no município. Joaquim se tornaria uma pessoa central em meu trabalho, na medida em que foi quem me apresentou à parte das famílias que, ao longo de minhas andanças por Pinhão, receberam-me em suas casas. Ainda em 2009, ele e um advogado que defende as causas dos associados da AFATRUP solicitaram à nossa equipe 4
O Projeto Memórias dos Povos do Campo no Paraná foi formado por pesquisadores de universidades e instituições públicas do Paraná, dentre os quais Liliana Porto e Jefferson Salles, que também desenvolveram pesquisa em Pinhão, e organizaram, junto à historiadora Sônia Marques, o livro “Memórias dos Povos do Campo no Paraná – Centro Sul (Porto, Salles e Marques, 2013), que reúne os trabalhos desenvolvidos pelos membros da equipe. O Projeto foi viabilizado pelo Instituto de Terras, Cartografia e Geociências do Estado do Paraná (ITCG) e financiado pelo Ministério da Cultura (MinC).
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estudos, cuja finalidade seria compreender a questão dominial no município e as especificidades da relação dos seus habitantes com a terra, a fim de ajudá-los a pensar em um modelo de assentamento que não fosse padrão, mas que reconhecesse as características particulares, a história dos moradores das terras de faxinais. Foi assim que em fevereiro 2010, em companhia da antropóloga Liliana Porto, iniciei minha travessia por diversas áreas do interior do município, as quais eram consideradas em termos jurídicos como propriedade da madeireira, mas que se encontravam ocupadas por uma infinidade de famílias, participantes de distintos movimentos sociais. Nesse momento, era Fernando, rapaz de vinte e poucos anos, nascido em Pinhão e integrante do MST, quem nos levava de carro a diferentes lugares que haviam sido afetados pela empresa madeireira, e onde habitavam famílias que viviam disputas fundiárias com a Zattar. Os trajetos que fiz, e as pessoas que conheci naquele momento, foram previamente pensados a partir de uma discussão com Joaquim, Fernando e outras pessoas ligadas à AFATRUP, na qual foram listados os locais por onde deveríamos passar nesse que seria um primeiro e mais geral reconhecimento das questões fundiárias relacionadas à madeireira. O Pinhão seria nosso ponto de pouso e descanso, e o interior, nosso caminhar diário. Foi também nessas travessias que tive a chance de conhecer os diferentes ambientes que caracterizam o interior de Pinhão, e a diversidade de movimentos sociais que lá se firmaram. Em nossa primeira ida ao município, eu já havia conhecido membros do Movimento de Posseiros de Pinhão, instituído alguns anos após a fundação da AFATRUP, que se dera em 1987. A própria história da Associação se funde com as histórias de luta dos então moradores das áreas ocupadas pela madeireira, os quais identificavam a si mesmos como posseiros. Quando a madeireira iniciou sua expansão pelas terras pinhãoenses, a maior parte dos posseiros já habitava os terrenos onde vivem até hoje. A fim de fazer valer seu domínio territorial, a empresa contratou e espalhou alguns homens armados por essas terras. As pessoas que vivem o conflito de terras, ou que não sofreram diretamente as intervenções da empresa sobre suas terras mas relembram episódios do conflito, chamam esses homens de armas de guardas, jagunços e pistoleiros. Uma das tarefas deles era levar contratos para as famílias que viviam nas áreas que a empresa havia adquirido ou almejava, e convencer esses moradores a reconhecerem que o Zattar era agora o dono dos seus terrenos. Chamados também de comodatos, ou de contratos de arrendamento, esses papeis eram um modo de a empresa firmar acordos com quem vivia nas terras que adquiriu. Ao assinarem os contratos, as pessoas reconheciam a propriedade do Zattar sobre as áreas que habitavam e onde desenvolviam suas atividades produtivas, tornando-se moradoras da empresa. Além
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disso, elas ficavam sujeitas à vigilância dos guardas, jagunços e pistoleiros, que deveriam garantir que os moradores cumprissem com os termos dos contratos. Segundo tais termos, os moradores não poderiam mais tirar madeira, erva-mate, pinhão ou qualquer outro material vegetal das áreas que habitavam, e só poderiam fazer lavoura quando tivessem permissão para tanto. Sobre as lavouras, era cobrado um arrendo de trinta por cento. Os antigos posseiros que se recusaram a assinar os contratos, ou a obedecer seus termos, tornaram-se perseguidos pelos jagunços. As experiências dos posseiros e posseiras em seu convívio com esse novo ordenamento territorial, e com os homens de armas da empresa, foram um tema central em meus primeiros encontros com a população do interior de Pinhão, que busquei problematizar em minha dissertação de mestrado (AYOUB, 2011). As histórias dos posseiros traziam detalhes sobre como viveram perseguições dos jagunços, que queimavam casas, ameaçavam pessoas, matavam animais de criação, faziam esperas no mato para matar os moradores que se contrapunham a essas regras, apontavam armas para eles, atiravam contra residências, e mataram muita gente. Ao mesmo tempo, as pessoas contavam que esses homens de armas também viviam com suas famílias nas comunidades em que deveriam impor as regras do Zattar. Muitos deles eram nascidos e criados nessas ou em outras localidades do interior, de modo que os posseiros conheciam suas trajetórias e relações familiares, e interagiam com eles em outros níveis, para além do domínio madeireiro. Nos anos 1980, Frei Domingos, religioso que rezava missas pelo interior pinhãoense, compadeceu-se com a situação dos moradores das áreas que a madeireira havia adquirido, e deu início ao processo de organização de um coletivo de trabalhadores rurais, com o objetivo de buscar os direitos fundiários dessa população. Foi por via dessa organização que, em 1987, foi instituída a AFATRUP, e em 1991, o Movimento de Posseiros de Pinhão, que chegou a reunir 800 famílias em luta pela terra. A identificação enquanto posseiro era centrada em uma relação com a terra que, historicamente, fora estabelecida através de sua posse, e não por meio de sua titularização, o que deu condições para que a madeireira documentasse em seu nome áreas já habitadas. Mas essa relação de posse se tornou também o tipo de vínculo que outras pessoas adquiriram com as terras tomadas pela empresa. Digo isso porque, além dos antigos moradores daquela região, houve uma série de outros habitantes que se identificaram com a categoria posseiro. Dentre eles, estavam algumas pessoas de outros municípios paranaenses que, na década de 1980, compraram terras da madeireira em Pinhão. Contudo, como a empresa havia previamente penhorado esses terrenos, não tinha como esses compradores registrarem seus
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títulos. Foi esse o caso de Joaquim, que veio do oeste do Paraná, nos anos 1980, para viver em uma área que seu pai havia comprado da madeireira. Chegando nela, ele não só se deparou com o fato de que já havia famílias morando ali, como também que as terras não poderiam ser documentadas em seu nome. Chamados por Joaquim de vindouros, alguns desses compradores de terras da empresa se identificaram como posseiros5. Além disso, no início dos anos 1990, impulsionada pelo contexto de crescente endividamento e decadência de sua produção, a madeireira demitiu muitos de seus funcionários. Essa crise impulsionou não só um grande número de processos trabalhistas contra as Indústrias Zattar, como fez com que vários desses trabalhadores se unissem ao movimento de luta fundiária, permanecendo nas terras da empresa como posseiros. Foi também nesse momento que o Movimento de Posseiros empreendeu uma política de ocupação de áreas que haviam sido adquiridas pela Zattar, e que se encontravam livres de moradores. A organização do Movimento de Posseiros e o estabelecimento dessas novas ocupações territoriais foram respondidos com investidas ainda mais radicais dos homens de armas da empresa contra a população em luta pelas terras. Vários posseiros, agora organizados em sua recusa ao cumprimento dos termos dos contratos, sofreram ameaças, tiveram suas cargas de erva-mate tomadas, tornaram-se ainda mais sujeitos a emboscadas por entre os caminhos que percorriam cotidianamente, e sofreram tiros contra suas residências. Nas áreas de novas ocupações, os agentes da empresa queimavam as casas e tomavam para si as motosserras dos ocupantes, além de levarem embora os palanques que eles haviam cortado para fazerem as cercas de seus terrenos, e as tábuas de madeira que utilizavam para a construção de suas residências. Também nesse momento ocorreram as primeiras ocupações do MST no município. Incentivados pelos projetos do INCRA, que na época almejava estabelecer assentamentos da reforma agrária em certas localidades do interior, os sem-terra, vindos de outras partes do Paraná, adentraram essas áreas, onde também moravam antigos posseiros. Embora não fossem originalmente propriedade das Indústrias Zattar, essas terras eram visadas pela empresa, que lá havia comprado uma vasta quantidade de pinheiros, em negociações 5
Os vindouros, contudo, não consistem em um grupo homogêneo e unido. Enquanto alguns desses compradores são como Joaquim, e se identificaram com os movimentos de luta pela terra, outros seguiram caminhos distintos. Alguns desses sujeitos, por exemplo, se estabeleceram em terrenos de campos, distintos dos faxinais, terras de araucárias, de difícil cultivo. Praticam uma agricultura mais mecanizada, e costumam plantar grãos e tomates com o auxílio do uso intensivo de agrotóxicos. Outros desses compradores não vieram morar no município, deixando apenas caseiros cuidando de suas áreas, onde criavam gado. Assim, os compradores se diferenciam pelo tipo e tamanho de área em que se estabeleceram, pelas atividades que nelas desenvolveram, e pelos modos com que lidam com a questão da regularização de suas áreas, alguns se identificando com os movimentos sociais, e outros não.
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estabelecidas com os antigos proprietários desses terrenos. Foi supostamente para defender os direitos da madeireira sobre essas árvores, que os pistoleiros realizaram uma série de incursões contra as áreas ocupadas pelo MST, onde atiraram contra uma escola rural enquanto várias crianças estavam em aula, e seguiram adiante, atirando contra os sem-terra. Momento crítico do conflito de terras, o início dos anos 1990 é também o período em que membros do Movimento de Posseiros, unidos a religiosos da Comissão Pastoral da Terra (CPT), buscaram realizar denúncias acerca da violência perpetrada pelos agentes da madeireira, atraindo atenção da mídia e do poder público para a situação dos posseiros de Pinhão. Em meados dos anos 1990, é declarada a falência da empresa, e nos anos subsequentes, vários dos seus homens de armas foram presos. Mesmo assim, muitos permaneceram no município ou, quando saíram da prisão, voltaram para lá. Ainda naquela década, os posseiros conquistaram a regularização de um assentamento em Pinhão. Outros posseiros empreenderam ações de usucapião para tentarem adquirir a propriedade das terras onde viviam. Enquanto uns poucos foram bem sucedidos, a maioria foi impedida por ações de reintegração de posse realizadas pela empresa. Grande parte dos posseiros com quem convivi ao longo de meu trabalho de campo continuou nas áreas onde já viviam com suas famílias, ou em suas proximidades. Na década de 1990, a fim de se prepararem para a possível regularização de suas terras, eles delimitaram suas posses a partir de um tamanho padrão de 10 alqueires, cada uma delas ocupada por uma família de moradores. Assim, por exemplo, um coletivo familiar que detinha 50 alqueires de terras, dividiu oficialmente essa área entre seus membros, de tal modo que os pais da família ficaram com 10 alqueires, e quatro filhos, já casados ou em vias de se casar, ficaram com o restante dos 40 alqueires divididos entre eles em terrenos de 10, onde respectivamente construíram suas casas. Nesse sentido, manteve-se uma certa lógica de terreno familiar que já era comum nas áreas de faxinais, onde pais e seus filhos vivem perto uns dos outros, em terras que são reconhecidas simultaneamente como de uma família mais ampla, e como subdividas entre donos específicos (no caso exemplificado, o pai e os filhos que detém partes diferentes do terreno). Com o passar dos anos, várias dessas posses sofreram novas divisões, em virtude de processos de herança. Além disso, alguns posseiros picaram seus terrenos, vendendo pequenos pedaços a vizinhos, conhecidos, ou a outros membros de suas famílias, de modo que o terreno familiar deu lugar a novas configurações de moradores. Outros desses terrenos foram comprados em bloco por pessoas do Pinhão (área urbana do município) e de outros
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lugares, as quais hoje são donas de 50 ou mais alqueires de terras onde antes viviam famílias de posseiros, que se mudaram para a cidade ou para outras localidades do município. Além das terras onde viviam os posseiros, os trajetos com Fernando pelo interior nos levaram também a áreas mais recentemente ocupadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), pela Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses (APF), e pelo Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Depois daquela primeira inserção no município no início dos anos 1990, o MST se estabeleceu nas terras do Zattar no ano de 2007, após a madeireira ter ofertado ao INCRA cerca de 21 mil hectares de terras, para fins de reforma agrária. Essa mais recente vinda dos Sem-Terra ao município foi estimulada pelas lideranças da AFATRUP, que buscavam nesse sentido fazer pressão ao INCRA para a resolução do impasse das áreas da empresa, e garantir que tais terrenos fossem efetivamente ocupados. Além disso, a Associação buscou incentivar outros moradores do interior, que não possuíam terras em tamanho suficiente para garantir seu auto-sustento, a participarem dessas ocupações. Assim, os acampamentos do MST em Pinhão conjugam tanto famílias que vieram junto ao Movimento, de outras partes do Paraná, como também pessoas que nasceram e cresceram no próprio município. De início, os acampamentos do MST foram estabelecidos em áreas ao redor da antiga Zattarlândia, mas espalharam-se depois para outras terras ofertadas pela madeireira. Enquanto os posseiros e os sem-terra aproximam-se na maneira com que buscam a regularização de suas áreas, a partir da delimitação de lotes individuais e da criação de assentamentos, a Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses busca outros modos de reconhecimento territorial, que associam a tradicional ocupação dos faxinais à identidade de faxinalense. Os faxinalenses visam a uma regularização fundiária fundada nos modos históricos de organização e produção familiar nesses ambientes, e nesse sentido, é a perspectiva de que o faxinal consiste em terras de uso comum utilizadas para a criação de gado que emerge como central nas reivindicações desse movimento de luta pela terra. A regulamentação das áreas faxinalenses, por outro lado, é vinculada a órgãos do meioambiente, como o Instituto Ambiental do Paraná (IAP) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), caracterizando-se, nesse sentido, como áreas de “reserva ambiental” voltadas à preservação das matas de araucárias, ambiente onde os faxinalenses praticam também o extrativismo de erva-mate e de pinhão. No ano de 2013, dois territórios faxinalenses do município foram reconhecidos pelo Estado do Paraná como Área Especial de Uso Regulamentado (ARESUR), estando oficialmente normalizados. O próximo
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passo para a consolidação da área é a mudança de seu estatuto para Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS). O Movimento de Pequenos Agricultores, tal como o MST, vem a Pinhão por meio de uma aliança com a AFATRUP, que incentiva o Movimento a fazer acampamentos em partes das áreas ofertadas ao INCRA. Tem como orientação a apropriação coletiva da terra, e práticas agrícolas ligadas a ideais de cuidado com o meio ambiente, como a produção agroecológica e o cultivo de sementes crioulas. Com o passar do tempo, o MPA, cujos acampamentos também eram formados por moradores do interior de Pinhão, aproximou-se dos faxinalenses, de modo que alguns de seus membros se integraram a esse outro Movimento. É a proposta mais coletiva de aproveitamento e de ocupação da terra que surge, nos discursos de suas lideranças, como ponto de convergência entre seus projetos. Ao conhecer os membros desses diferentes coletivos, ouvir suas histórias acerca de suas trajetórias na terra, e das agressões e ameaças sofridas na luta pelo território, percebi que as pessoas transitavam entre esses distintos movimentos sociais, os quais se constituem em relação uns com os outros. Desde esse início, tornou-se claro para mim que não era possível enquadrar esses movimentos separadamente, ou compreender seus membros somente em referência à sua inserção em um desses coletivos. Embora essa não seja a temática central de minha tese, espero que esse intenso movimento dos movimentos sociais nas terras do Zattar, e as articulações de seus membros por meio de seus vínculos familiares, de vizinhança, de amizade, e com o próprio território, tornem-se claros ao leitor através do trabalho. Conforme salientei anteriormente, essas andanças diárias por diversos lugares distintos de Pinhão me levaram a conhecer muitas pessoas que conviveram com os homens de armas da empresa e que sofreram suas agressões. Foi ouvindo as histórias dos moradores do interior sobre os guardas, jagunços e pistoleiros que atuaram em conjunto com a madeireira, que a questão da violência surgiu como problemática de pesquisa para mim. Enquanto agentes da empresa, que atuavam de modo a garantir seu domínio territorial, esses homens de armas emergiam como os causadores de uma série de situações desesperadoras e trágicas para as pessoas que me contavam suas histórias. Eram as ameaças de morte e perda de suas casas, e da possibilidade de permanecerem nas terras onde viviam, que ganhavam proeminência nesses assuntos. Contudo, as histórias sobre os homens de armas revelavam também aspectos de sua proximidade com os demais moradores do interior, e os modos com que eram inseridos e incluídos nas vizinhanças que deveriam atender, ou seja, vigiar para fazer valer as regras do Zattar. Quando falavam sobre os funcionários da empresa, as pessoas diziam como eles
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chegavam em suas casas, se sabiam conversar, se eram respeitosos ou não. Falavam ainda sobre suas famílias e trajetórias, sobre os lugares de onde vieram, se já haviam matado pessoas antes de se tornarem guardas, se estavam nessa profissão somente para atender ou se eram ruins e matavam gente em troca de dinheiro. Os próprios termos guarda, jagunço e pistoleiro eram carregados de problematizações sobre o convívio com esses homens de armas e sobre suas reputações, de modo que tanto poderiam ser usados ao mesmo tempo, pela mesma pessoa, quanto adotados em sua singularidade. Há quem chame esses homens somente de guardas, que é uma referência mais respeitosa. Jagunço é um termo muito utilizado pelos antigos posseiros que fundaram a AFATRUP, os quais destacam justamente o lado violento e intimidador desses funcionários da madeireira. E pistoleiro, por sua vez, é uma forma de nomeação que destaca a capacidade de matar que esses homens de armas encerravam em suas funções. O uso dessas diferentes formas de nomeação, além disso, tem a ver com a própria relação que o narrador tem com o homem de armas de que fala. Parentes e amigos jamais se referem a esses homens como jagunços e pistoleiros, somente como guardas, o que indica que as próprias considerações traçadas acerca desses funcionários da empresa, e sobre seus atos de violência, passam pelas maneiras com que as pessoas que contam suas histórias vinculam-se a eles em outros níveis, que não somente como moradoras das terras do Zattar, mas como participantes de uma mesma vizinhança ou de uma mesma trama de parentes. Além disso, muito do que as pessoas falavam sobre esses homens de armas e suas violências não se centrava nos eventos mais trágicos do conflito, mas sim em outros aspectos da convivência no interior, e dos perigos contidos na socialidade. Ouvi diversas histórias sobre jagunços que morreram em brigas de bar e em festas, pois provocavam os outros e acabavam levando tiros por isso. Grande parte deles emerge nas narrativas como bêbados, característica que tem a ver diretamente com compreensões sobre a agressividade, enquanto algo que pode ser despertado pela bebida. Por outro lado, vários dos pistoleiros, tidos também como matadores de gente, tinham um passado de encrencas, brigas de família e vinganças, através das quais se tornaram perigosos, bandidos, e assim adquiriram renomes que os levaram a serem chamados para trabalhar pro Zattar. Portanto, ao falar desses homens de armas e dos perigos que eles carregavam em si mesmos, meus interlocutores encadeavam outros modos de compreender as atitudes desses funcionários da empresa, e de conceber as violências em que eles eram metidos. Se meus primeiros contatos com o campo foram mediados por homens como Joaquim e Fernando, o primeiro assumindo papel fundamental na articulação das políticas de terras no
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município, a continuidade de meu trabalho me levou ao convívio diário com os moradores do interior, que me receberam e me hospedaram em suas casas. Entre 2010 e 2014, fui a Pinhão cinco vezes, e, somando todo o tempo que permaneci no município ao longo desses anos, realizei cerca de onze meses de trabalho de campo. Contudo, não permaneci esse tempo todo dentro de uma única comunidade do interior. Na verdade, esse trabalho resulta de minha permanência em várias casas de moradores, os quais eram envolvidos de diferentes maneiras na luta pela terra, em distintas localidades pinhãoenses. Todas essas famílias me foram apresentadas por Joaquim ou Fernando, e vivem majoritariamente em terras de faxinal, que foram afetadas pela presença das Indústrias Zattar. Evidentemente, eu pedi se seria possível ficar em suas casas para conhecer mais suas histórias na luta por terras e suas vizinhanças, tentando esclarecer que esse convívio cotidiano era importante para o trabalho que desenvolvo. Depois de ter feito esses primeiros contatos, mediados pela AFATRUP, eu busquei ir sozinha às casas dessas pessoas. Para tanto, utilizava os ônibus de linha que fazem os percursos entre o Pinhão e as localidades do interior, e naquelas para as quais não era possível chegar dessa maneira, eu pegava caronas no transporte escolar (prática também comum no interior, ainda que alguns motoristas não gostem disso). De algumas comunidades eu conseguia ir até outras, próximas, sem ter que passar pela zona urbana do município. Mas na maior parte das vezes em que me desloquei, tive que ir até a cidade e lá pegar outro ônibus que me levaria até a localidade para onde eu queria ir. Em alguns momentos, eu permaneci em um hotel na área urbana, para visitar meus conhecidos que lá moravam, utilizar a internet e organizar meu material de campo, e também para fazer os contatos necessários para meus subsequentes deslocamentos. Na comunidade do Faxinal dos Cascatas, permaneci primeiro na casa de Dona Lúcia Miller, e depois, na casa de seu filho Abel, casado e pai de duas filhas. Apesar de Dona Lúcia e Abel viverem em casas distintas, eles habitam um mesmo terreno familiar. São posseiros, e no início dos anos 1990 uniram-se ao movimento social contrário à madeireira. Perto dos acampamentos do MST, em terras relativamente próximas à antiga Zattarlândia, fui recebida na casa de Dona Francisca, viúva, que vive com sua família também em um terreno familiar. O falecido marido de Francisca era guarda do Zattar, e foi após sua morte que Francisca se tornou uma posseira em terras da empresa. Na grande região do Faxinal dos Ambrósios, permaneci na comunidade do Faxinal dos Caldas, onde fui recebida na casa de Seu Lucas Teles e sua esposa Áurea. Seu Lucas ocupava uma área do Zattar onde foi estabelecido um acampamento do MST, de modo que
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ele se uniu a esse movimento social. Ainda no Faxinal dos Caldas, estive por alguns dias no acampamento do qual seu Lucas participava. Lá, fiquei na casa de Cristiano e Rafaela, jovem casal que participava ativamente da organização do MST em Pinhão. Permaneci também na localidade de Rio Bonito, reconhecida como terra de cultura, onde a madeireira havia adquirido terras. Lá, fui recebida na casa de Elisa e Jonas Santos, posseiros. O falecido pai de Jonas, Sebastião, foi uma pessoa central na criação da AFATRUP e do Movimento de Posseiros. Por anos ele teve que conviver com jagunços, que moravam a dez metros de sua casa. Ele foi muito ameaçado por alguns desses homens de armas, mas com outros, conseguiu estabelecer relações de amizade, em virtude de suas práticas hospitaleiras em relação a esses novos vizinhos. Por fim, estive também no Faxinal dos Camargos, território faxinalense, onde fiquei na casa de Érico e Mariane, vinculados a esse movimento social. Eles haviam primeiramente acampado naquelas terras, mas quando os conheci, já tinham feito sua casa, onde moravam com seus filhos. Reconhecido como ARESUR, esse território também faz parte do pacote de terras ofertadas ao INCRA pelas Indústrias Zattar em Pinhão. Quando estive lá, os faxinalenses estavam passando por conflitos com um antigo guarda da madeireira, que vivia naquela área. Foi a partir dessas famílias que conheci seus parentes e vizinhanças. Estabelecida na casa das pessoas, tentei me inserir em seu cotidiano, e como mulher, era em companhia de mulheres que eu ficava na maior parte do tempo. Além de buscar me deslocar, e em companhia das mulheres que me acolheram, conhecer as outras famílias que moravam perto de suas casas, eu também permanecia muito dentro de casa, convivendo cotidianamente com as famílias, tentando ajudar em alguma tarefa doméstica, ouvindo o rádio, caminhando por entre as casas dos terrenos familiares, e tomando chimarrão e proseando ao redor do fogão à lenha. Nas casas das famílias, outras histórias e situações de agressão e de morte que marcavam suas vidas e aquelas das pessoas que viviam perto delas, e que não eram relacionadas à terra propriamente dita, adquiriram importância. Em muitas das genealogias que fiz, havia um membro da família que matou alguém e foi embora do município, para escapar de vinganças. Histórias de vinganças de família, em que pai e filhos se unem para matar aquele que tirou a vida de seu ente querido, também surgiram. A expectativa de vingança ou considerações sobre sua possibilidade emergiam sempre que uma morte matada, causada pela ação de outra pessoa, acontecia. Brigas em bares e festas da vizinhança tornavam-se eventos perigosos, onde era possível que acontecesse algo trágico. Broncas entre
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vizinhos, motivadas pelas ultrapassagens de cercas pelos animais de criação e cachorros, também continham perigos de agressões subsequentes. Havia, enfim, outras possibilidades de agressões e violências que preocupavam meus interlocutores, e que eram matéria de interesse de seus causos e prosas com seus familiares e vizinhos. E na maior parte das vezes, essas situações envolviam pessoas próximas entre si, que ou tinham vínculos de parentesco, ou viviam perto umas das outras. Foi prestando atenção a essa confluência de formas de viver cotidianamente as hostilidades que resultavam em agressões e mortes, que percebi que havia continuidades nos modos com que as pessoas lidavam com o Zattar e falavam sobre seus homens de armas, e nos modos com que problematizavam histórias de encrencas, brigas e vinganças que ocorriam em suas famílias e vizinhanças. Nas histórias de vida dos moradores do interior, tanto quanto nas situações que ocorriam em suas vizinhanças, a morte enquanto declaração de ameaça, ou enquanto matar gente, era um tema de preocupação. Contudo, nem sempre tais atos, ou as agressões físicas e desaforos que os desencadeavam, eram chamados de violência. Na verdade, esse termo surgia muito mais como referência aos pistoleiros do Zattar, ou aos fatos que aconteciam nas grandes cidades brasileiras, como os roubos seguidos de mortes e os tiroteios entre policiais e traficantes, fatos distantes que se tornavam conhecidos pelas notícias de televisão. Encrenca, briga e vingança, eram os termos comumente usados por eles para falarem de mortes ou situações de conflito que poderiam levar a desenrolares mais trágicos. Expressão que significa desentendimento e confusão, a encrenca é uma espécie de estado de tensão em aberto entre pessoas, que é concebido como iniciado em um desaforo, bronca ou provocação. Há diversas maneiras potenciais de se desaforar ou provocar alguém. As pessoas se encrencam por causa de terra, do uso de fontes d’água, de criação que passa as cercas e vai incomodar no terreno do vizinho. Se encrencam também por quererem tomar o par do outro no baile, por causa de casos amorosos, por beberem e falarem bobagens ou ficarem valentes. Enfim, há um amplo leque de situações que levam a encrencas, as quais geralmente têm a ver com a proximidade entre as pessoas, e com os modos com que elas se conduzem umas frente às outras em seu cotidiano. Por outro lado, a encrenca pode tanto partir de uma briga quanto levar a uma ou mais brigas, mas nem todas as encrencas terão esse desenvolvimento. O tema em questão e os modos com que as pessoas envolvidas lidam com o estado de tensão fazem com que cada encrenca siga um caminho particular, e tenha sua própria história. Se o desaforo for grave e a pessoa não quiser levá-lo para casa, é possível que algo mais grave aconteça.
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Briga e brigar, por sua vez, são expressões que remetem na maioria das vezes a ações mais pontuais. Apesar de poderem se estender no tempo, podendo gerar novas brigas e consolidar encrencas, as brigas são tomadas como momentos de embate entre pessoas diferentes, e algo com um caráter mais espontâneo. Brigas sugerem discussões, gritaria, tapas, e agressões mais sérias, como tiros e facadas. Há contudo, a expressão briga de família, que remete-se diretamente ao desenrolar de vinganças. Quando um membro da família é morto, seu pai, irmãos e filhos buscam produzir uma retaliação, matando o que matou seu ente querido, ou algum dos membros de sua família. Vingança, por sua vez, é um termo bastante recorrente em meu trabalho. O prenúncio de vingança era sempre colocado em questão quando ocorria alguma morte causada pelas mãos de outra pessoa. Ainda que nem sempre acontecesse, a vingança, enquanto possibilidade, era também a forma com que as pessoas retratavam a continuidade da vida de uma pessoa que matou alguém, como se o perigo por ela inspirado fosse um fator de ameaça a ela mesma. Por isso, muitas pessoas ameaçadas por vingança partiam, iam embora de suas localidades, para se afastarem daqueles que poderiam querer matá-las. No que diz respeito à minha inserção nas casas das pessoas e, por conseguinte, nas possibilidades de minha introdução à problemática da violência, o próprio fato de eu ser mulher afetou os modos com que eu me orientei e fui conduzida aos temas que discuto nesse trabalho. Não era uma possibilidade, para mim, andar sozinha com homens e frequentar os bares onde brigas geralmente ocorrem, simplesmente porque não era assim que as mulheres com quem convivi, nem mesmo as solteiras, agiam. Porém, isso não significa que eu só convivi com mulheres, ou que só as mulheres me falavam sobre violência. Significa, mais que tudo, que os homens que me falavam sobre isso, falavam obviamente para uma mulher, e desde dentro de suas casas, que eram os lugares onde eu conversava e convivia com eles e com toda sua família. Em seu trabalho com os beduínos Awlad’Ali, Abu-Lughod (1986) busca compreender o que chama de diferentes discursos sobre a vida social e suas relações com perspectivas de gênero, propondo que há uma imbricação entre os domínios íntimo/privado e público da vida, e que frente a um código de honra e modéstia que reprimia expressões de vulnerabilidade no espaço público, havia um gênero específico de poesia através dos quais as pessoas podiam expressar seus sentimentos em momentos de intimidade. As observações da autora, nesse sentido, são interessantes para pensar nas condutas e narrativas que se realizam frente a um público mais amplo, e naquelas que ocorrem dentro de casa, em um ambiente íntimo onde homens e mulheres se misturam em suas preocupações comuns.
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Por um lado, as denúncias feitas à madeireira eram muito vinculadas a um universo masculino de lutas: eram os homens que ameaçavam e eram ameaçados, era o Zattar que expropriava as pessoas, eram os guardas, jagunços e pistoleiros que matavam gente, são os homens que lideram os movimentos sociais aqueles que discutem e condenam essas situações frente aos órgãos do governo, também representados por homens. As brigas nos bares e festas, sobretudo aquelas que marcam o passado das comunidades do interior, eram comumente centradas em homens, embriagados e desaforados, que expressavam sua masculinidade portando armas aonde quer que fossem. As famas de gente ruim e de lugar de gente ruim, do mesmo modo, eram diretamente relacionadas às ações de homens de uma mesma família, que uniam-se para vingar a morte de um dos seus, em combates que ocorriam em espaços públicos. Em geral, também são os homens que juram vinganças na ocasião do velório de um ente querido que morreu pelas mãos de outro. As mortes por assassinato e as encrencas que as geravam, nesse sentido, surgiam vinculadas a figuras masculinas, que ao mesmo tempo em que deveriam defender seu lar, suas terras e seus familiares, também pareciam as mais propensas a trazerem perigos para dentro de suas casas. Mas essas mesmas casas eram relacionadas a outras, tantos pelos vínculos de parentesco que atravessam seus moradores, quanto pelos próprios laços de conhecimento, ajuda ou inimizade que conectam as pessoas. Era assim que ao falarem dos conflitos de terras, não só as mulheres, mas também os homens que conversaram comigo, traziam outros caminhos de compreensão para as disputas que marcavam suas vidas e as de seus conhecidos. Suas narrativas, contadas do ponto de vista da proximidade com as pessoas envolvidas em mortes e ameaças, eram centradas no universo da família, da casa, e dos lugares aos quais elas eram vinculadas. A maior parte das histórias que ouvi, evidentemente, foram contadas por mulheres. Em suas narrativas, elas enfatizavam as características pessoais dos homens briguentos e os guardas do Zattar, e mostravam como as inimizades e hostilidades eram levadas adiante também por meio das mulheres de suas famílias. Ademais, ao falarem dos conflitos de terra, elas salientavam o fato de que as esposas dos guardas eram suas vizinhas, e teciam considerações sobre as relações de cordialidade (ou não) que tinham com essas mulheres e seus filhos. Havia, nessas narrativas femininas, algo próximo ao que Figurelli (2011) observou em seu estudo sobre o trabalho e os conflitos em uma antiga fazenda do Rio Grande do Norte, notando que as mulheres falavam de um âmbito público que correspondia às suas relações pessoais, aos seus espaços de trabalho e de socialidade, os quais escapavam ao interesse masculino. Para além do que fica somente entre mulheres, as histórias de minhas
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interlocutoras contavam ainda sobre os seus próprios modos de participação nas agressões e mortes de homens. Não só elas eram ameaçadas, como também ameaçavam e em alguns casos, matavam. Elas também poderiam se tornar vítimas das ambições alheias sobre suas terras. Além do mais, desentendimentos entre elas, ou envolvendo elas, poderiam se tornar encrencas espalhadas por suas famílias de um modo mais amplo. Por outro lado, tal qual as mulheres, os homens que me contavam histórias de violência também partiam de suas próprias relações com as pessoas envolvidas em tais acontecimentos. Eles teciam considerações sobre a vida masculina dentro da família, e as reputações de certos homens e de certas mulheres, de modo que promoviam avaliações sobre as condutas das pessoas e os lugares onde viviam, em termos semelhantes aos que esboçavam as mulheres, ou seja, considerando como as pessoas convivem umas com as outras, se portam-se de maneira respeitosa, se são capazes de inspirar confiança ou se contam mentiras, se são trabalhadores ou trabalhadeiras, se são fuxiqueiros ou fuxiqueiras, e assim por diante. Para eles, falar sobre violência era também um modo de realizar essas associações que unem ou distanciam as pessoas umas das outras em seu convívio cotidiano. É muito pela via das relações dentro de casa e do convívio entre vizinhos, que questões de gênero atravessam meu trabalho como um todo, na medida em que experiências femininas e masculinas estão presentes e são problematizadas, e que as mulheres, e não só os homens, vivem ameaças, e em alguns casos, ameaçam e efetivamente matam. Foi dentro de casa e caminhando com as pessoas, ouvindo suas histórias, prestando atenção a suas narrativas sobre os acontecimentos perigosos que marcavam os lugares onde elas vivem, que aproximei-me das experiências de violência dos moradores do interior. Essas diferentes narrativas, sobre temas que iam desde o Zattar, passando pelas encrencas entre vizinhos e indo até aquilo que ocorre dentro da família, implicam diferentes modos de aproximar-se e distanciar-se de situações de ameaça, agressão e morte, que eram tomadas como algo próximo, algo que gerava um envolvimento do próprio narrador nas situações das quais falava. As pessoas sempre tomavam aquilo que acontecia com os vizinhos, com seus parentes, com seus conhecidos, como algo que afetava a elas mesmas, de modo que era considerando seus vínculos com tais eventos, com aqueles que tomaram parte neles, e com os locais em que eles ocorriam que os moradores problematizavam as mortes e suas condutas perante elas. Era por meio dessa tessitura de relações e da consideração de detalhes sobre cenas de brigas e de confusões, que algumas das histórias que as pessoas me contavam traziam frases e comentários jocosos e bem humorados, enquanto outras eram permeadas por um tom de
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tensão, de voz baixa, de contar algo que não deve ser dito. Histórias de mortes, em grande parte das vezes, são tidas como causos feios, coisa que não se diz. Não é assunto que se puxe nas casas dos outros, ainda mais em uma primeira visita. Muito do que as pessoas me falaram sobre isso dizia respeito às suas próprias famílias, ou a acontecimentos recentes, que se tornavam motivo de comentários por toda a vizinhança. Depois de um tempo, porém, já não se tocava mais nesses assuntos. Eles se tornavam uma espécie de conhecimento comum que as pessoas têm umas das outras, fazendo com que passem a se enxergar de novas maneiras, e a evitar o perigo que sabem que está contido na outra, o que também se refletia sobre os modos com que o pessoal se desloca pelos lugares que habitam. Ao longo do trabalho, invisto em diferentes frentes para refletir sobre os conflitos de terra, as encrencas, as brigas, as vinganças, as mortes e ameaças que marcam as experiências dos habitantes do interior pinhãoense. Em termos gerais, organizei os capítulos de modo a começar com a questão dos conflitos com a madeireira, seguir pelas considerações sobre as encrencas e brigas entre próximos, adentrar as brigas em torno de terra no interior das famílias, e retornar, por fim, à questão das ameaças e agressões nas terras ocupadas pelos movimentos sociais. No Capítulo 1, abordo a trajetória de Dona Francisca, que quando conheci era posseira, mas que com muita insistência e paciência, conseguiu a usucapião de seu terreno. Parece-me fundamental começar a discussão com ela porque sua história abrange de modo peculiar a questão do conflito de terras com as Indústrias Zattar, e os significados que o domínio territorial da madeireira e a convivência com os guardas, jagunços e pistoleiros assumem na vida das pessoas. Viúva de um guarda do Zattar, Francisca permaneceu nas terras que o marido havia recebido da empresa em contrapartida ao seu trabalho. Por isso, ela passou a ser ameaçada por outros homens que trabalhavam para a madeireira, os quais queriam expulsá-la de suas terras. Esses outros homens, que ela chama de pistoleiros, viviam perto dela, passavam por dentro de seu terreno, vinham até sua casa. As famílias deles permanecem na vizinhança até hoje. Nesse sentido, problematizo as diferentes maneiras com que Dona Francisca compreende a presença de ameaças em sua vida, de um modo que se estende no tempo, e que continua promovendo seu afastamento de certos lugares e pessoas. Além disso, busco também inserir a discussão sobre a importância que a casa, enquanto local fundamental para a consolidação da terra como terra de uma família, assume enquanto foco de violências e centro da luta dos seus moradores. No Capítulo 2, busco discutir a fama de valente que Pinhão e a região do Faxinal dos Ambrósios adquiriram em virtude das mortes e vinganças que lá ocorriam. Centrando-me nas
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histórias do Faxinal dos Ambrósios, enfatizo as brigas de família, assim como algumas trajetórias de homens que se tornaram renomados matadores de gente através dessas brigas, e depois foram trabalhar como pistoleiros para a empresa madeireira em Pinhão. Observando os modos com que os moradores dessa localidade se relacionam com a fama de seu lugar, de suas gentes e de alguns de seus parentes próximos, analiso os afastamentos que produzem em relação a essas histórias, os quais partem tanto de apreciações sobre o tempo quanto sobre a própria família. O Capítulo 3 é centrado nas brigas e encrencas que acontecem entre pessoas próximas, em geral vizinhas dos moradores do interior que me receberam em suas casas. Suas narrativas sobre esses eventos de agressão e morte passam pela avaliação dos comportamentos e reputações dos envolvidos nessas situações. Além disso, nas conversas que tinham como base esses acontecimentos, as pessoas falavam dos deslocamentos dos bandidos e das pessoas encrencadas, e cogitavam o que poderia acontecer com eles no futuro, colocando sempre em questão o horizonte da vingança. Ao mesmo tempo em que buscavam se distanciar dessas encrencas, colocando-as como algo que não era problema seu mas que dizia respeito somente aos envolvidos e aos familiares do morto, as pessoas também mostravam como uma morte matada transforma o cotidiano e as relações de toda a comunidade. No Capítulo 4, dedico-me ao desenrolar de broncas e desaforos no cotidiano, e para tanto, observo problemas em torno da criação de animais e da presença de cachorros, assim como casos de roubos protagonizados por crianças, no Faxinal dos Cascatas. São os traços mais prosaicos da vida em um mesmo terreno familiar e em comunidade que, aqui, emergem como linguagem através da qual as pessoas falam das broncas. Saber viver, ou saber conviver com os outros é uma resolução ética dos moradores do interior, que buscam estabelecer entre si bons modos de convívio, como o se cumprimentar, visitar, receber as pessoas em suas casas, ajudar os vizinhos, cuidar para que seus animais não passem para os terrenos alheios, dar caronas, tratar bem as crianças dos outros e cuidar delas se for preciso. Essa proximidade, que traz uma sensação de segurança para as pessoas, que se conhecem umas às outras, é a mesma alavanca dos desaforos, broncas, fuxicos e desconfianças entre vizinhos. Assim, busco observar como as pessoas vivem e debatem essas ofensas, e como se medem umas às outras através desses atos, que também são compreendidos por elas a partir das diferenças entre vizinhos. No Capítulo 5, saio do terreno da vizinhança para entrar na questão das mortes dentro das famílias. Nesse ponto, analiso três casos que aconteceram em diferentes localidades do
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interior, sendo um deles referentes a uma morte entre irmãos, um sobre uma mulher que matou seu marido, e outro sobre um marido que matou sua esposa. Todas essas mortes eram concebidas como vinculadas a questões de terra, ainda que em um dos casos houvesse contestações a esse respeito e a produção de diferentes versões, que elencavam diferentes motivações. Os conflitos de terra adquirem, portanto, uma nova dimensão, vinculada a disputas internas à própria família. No Capítulo 6, retomo a questão da violência atrelada aos conflitos de terras contemporâneos, em áreas ocupadas por distintos movimentos sociais. Nessas terras, a presença de guardas ou de outros responsáveis que cuidam de tais terrenos é tratada pelos membros dos movimentos de modos distintos. São esses homens, ou outras pessoas que disputam as mesmas terras, as principais ameaças com as quais aqueles que tomam parte nos coletivos de luta pelo território devem lidar. Busco discutir os modos com que as pessoas concebem esses guardas, enquanto vizinhos, enquanto família e enquanto moradores de uma casa. É a casa, enquanto algo que expressa o vínculo de uma família com a terra, que se torna o principal local de ameaça nessas questões.
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Capítulo I PERMANÊNCIAS: TEMPOS DE FRANCISCA Dona Francisca acolheu-me em sua casa por diversas vezes em minhas andanças pelo interior de Pinhão. Eu a conheci logo no início de meu trabalho, quando questões relativas aos modos com que as pessoas viviam e falavam sobre os conflitos de terras conformavam meu principal interesse de pesquisa. Na época, eu estava começando a conhecer as terras que a madeireira Indústrias João José Zattar haviam adquirido no município. Nesses trânsitos, conheci vários moradores que viviam nessas áreas, e que buscavam o reconhecimento de seus direitos sobre elas, os documentos de seus terrenos. Francisca foi uma das primeiras pessoas que despedaçou, em minhas perspectivas, uma imagem dicotômica de conflito. Se num primeiro encontro com o campo, pareceu-me que posseiros e o Zattar eram lados antagônicos em uma disputa por terras, experiências como a de Dona Francisca fizeram-me perceber como eu estava sendo simplista e pueril ao imaginar o conflito como opostos em disputa. A trajetória dela extravasava a quaisquer categorizações e oposições, mostrando-me que as pessoas moviam-se, na verdade, por linhas de aproximação e de distanciamento em relação à madeireira, aos seus agentes, e aos coletivos de luta pela terra. Além disso, as histórias de Francisca marcam meus primeiros encontros com a questão da violência, vinculada a disputas por terras. Foi sobretudo meu interesse nessa temática que levou-me a querer compreender como os moradores do interior lidam com a violência em suas vidas. Quando a conheci, Francisca estava como posseira em suas terras. Porém, sua entrada na área se deu através de Leonardo, seu falecido marido, que era guarda do Zattar. Leonardo recebeu aquelas terras para morar com sua família, e para cuidar. Era de lá que ele partia para fazer seus trechos pelas terras do Zattar, onde buscava garantir que os moradores cumprissem com as normas que a empresa impunha sobre os que viviam em suas terras. Chegou um tempo em que Leonardo começou com umas conversas estranhas. Dizia que se ele morresse, era para Francisca não sair de sua casa. Ela achava graça, não acreditava nas palavras do marido. Até que ele foi morto, por motivos que permanecem obscuros, e que ela acredita terem a ver com o serviço que ele desempenhava. Francisca, então, permaneceu em sua casa, como havia prometido a Leonardo. Anos depois, outros guardas da empresa realizaram uma série de tentativas de tirá-la de lá. Chegaram a prometer-lhe terras em outros quinhões. Chegaram a prometer-lhe uma casa no Pinhão. E não pararam por aí. Atiraram em sua casa. Colocaram um pistoleiro para morar ao lado de sua cerca. Passavam por dentro de
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seu terreno, tomavam-lhe a erva-mate que ela tentava tirar das terras. Ela crê que eles queriam matá-la, visão que garante a forma com que ela mesma se afirmava quando me contava suas histórias. Em suas narrativas, Francisca se revelava como uma pessoa que sofrera grandes aflições, mas que, à sua maneira, conseguiu vencer todas elas. Francisca vive na mesma região de Pinhão em que a madeireira estabeleceu seu principal reduto, a chamada Zattarlândia, complexo industrial que foi símbolo do poder que a madeireira agregou no município, e que, enquanto localidade, também é chamada de o Zattar. Da mesma maneira, o Zattar é o modo com que os moradores do município chamam a empresa e seus homens de armas, ou seja, os chamados guardas, jagunços e pistoleiros da madeireira. Chamo-os de homens de armas porque eles são rememorados pela população do interior como funcionários da empresa que andavam armados, sendo os armamentos um símbolo de sua postura de intimidação e do trabalho que desempenhavam, como uma espécie de guarda privada da empresa, que fazia valer seu domínio territorial. Em meados dos anos 1990, a madeireira passou por uma série de dificuldades financeiras e estruturais que culminaram com o fechamento de suas serrarias em Pinhão. Com o passar do tempo, a Zattarlândia foi sendo esvaziada e suas estruturas foram aos poucos sendo postas abaixo. Mas ainda assim, algumas de suas edificações se mantiveram, como a igreja e a escola, e as casas de alguns funcionários. Nos anos 2000, a empresa iniciou seu processo de negociações com o INCRA, para a desapropriação de sua áreas com a finalidade de criação de assentamentos. Hoje, as terras do Zattar ao redor da antiga Zattarlândia estão ocupadas pelo MST, pela Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses, e pelo Movimento dos Pequenos Agricultores. Também permanecem na área antigos proprietários de terras, e posseiros, membros do coletivo de luta pela terra com o qual Francisca se identificou. Em 2013 ela obteve a usucapião da área onde mora há décadas, vitória que celebrou como uma graça recebida por Nossa Senhora, a quem ela havia feito uma promessa para conseguir as terras. Como agradecimento, ela reformou sua casa e realizou uma mesada de anjo, típico ritual de pagamento de promessas em Pinhão. É em minha ida à sua casa, após a mesada e a usucapião, que inicio minhas discussões, as quais seguirão por idas e vindas no tempo e nas terras de Francisca, abrindo caminho para o tema das permanências e das transformações ensejadas ao longo de sua trajetória, presenças e mudanças que observo a partir dos modos com que ela e seus familiares me falaram sobre a madeireira, seus homens de armas, as terras do interior, as agressões e ameaças vividas na luta pelo território. Nessas narrativas, emergem várias formas de conceber os homens de armas, enquanto guardas, jagunços ou pistoleiros, e como pessoas conhecidas,
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avaliadas boas ou ruins, e que muitas vezes eram vizinhas e parentes de quem vivia nas terras da madeireira. Esses homens, portanto, não eram tratados somente como parte de um conjunto de agentes que defendiam a empresa, mas considerados enquanto pessoas com histórias, famílias e personalidades próprias, e encarados a partir de um olhar próximo, de quem convive com eles. Assim como acontece com os guardas, há diferentes modos de se conceber o Zattar, que pode ser visto como pessoa, empresa, local e tempo. O Zattar, assim, também assume diferentes formas e reputações, a partir da relação que a pessoa que fala determinada história busca estabelecer junto a ele. É por entre as possibilidades de proximidade a certas mortes e agressões que o termo violência emerge no discurso de Francisca, que o utiliza para falar das barbaridades que os pistoleiros faziam contra acampados nas áreas da empresa. É também dando centralidade aos atos de violência desses homens de armas que as organizações de apoio aos posseiros realizaram uma série de denúncias e esforços para tornar públicas as crueldades vividas pelos moradores de áreas da empresa. No entanto, quando me contavam sobre os guardas, jagunços e pistoleiros, as pessoas também abriam espaço para outros modos de falar sobre mortes e agressões, desviando-se do termo violência para lançar mão de uma outra terminologia, que conforma um idioma particular para se falar desse tema. As situações de agressividade que surgiam no cotidiano dos homens de armas eram muitas vezes encaradas como encrencas, brigas, vinganças, modalidades de ação que ultrapassam a questão do conflito de terras, e que falam de inúmeras possibilidades de confronto forjadas no convívio entre pessoas, conformando outros modos de experiência da própria violência. Também nos interstícios do convívio cotidiano, e das maneiras de se conhecerem umas às outras, as pessoas produzem diferentes formas de silenciamento sobre suas vivências no conflito de terras. Tomadas como situações que se espraiam por uma vasta teia que une pessoas, lugares e terras, as ameaças e mortes vividas ao longo da convivência com os guardas do Zattar marcam as maneiras com que os moradores do interior se veem, se vinculam, se assemelham ou diferenciam, e falam uns dos outros. Conforme afeta os modos de as pessoas estarem juntas, a violência se impõe como conhecimento que, usando os termos de Veena Das (2007), “envenena” o convívio entre próximos. Nesse sentido, agressões, ameaças e mortes matadas podem se impor como permanências na vida das pessoas, modificando suas práticas de convívio umas com as outras e com o próprio lugar onde vivem. É levando isso em consideração que elas buscam proteger-se, defender-se, ou evitar certos locais e encontros, delineando ausências de certas relações, que também podem indicar sua permanência, deixando à mostra a presença de certos perigos.
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Finalmente, volto-me aqui à casa enquanto moradia de uma família, e como expressão material de sua relação com um território, o que também faz dela um polo agregador das ameaças e violências nos conflitos em que a terra é elemento de disputa. É contra a casa que são dirigidas as ameaças mais sérias à continuidade da presença de uma família em determinada terra. Os incêndios, os tiroteios contra residências, a circulação de guardas por dentro das áreas que vigiavam e ao redor das casas dos moradores, são aspectos muito marcantes nas narrativas sobre os conflitos com a madeireira. Para além disso, esses homens de armas circulavam por dentro das casas daqueles que deveriam vigiar, fosse para levar contratos para essas pessoas assinarem, fosse enquanto vizinhos, amigos e parentes. Assim, sua presença nas casas poderia ir além dos interesses da empresa, guardando vínculos com seus moradores em outros níveis, o que abria, por sua vez, outras possibilidades de permanência de pessoas nas terras da empresa, através da boa convivência com seus guardas.
1.1 Parar o pé: as terras e seus percursos Chegar à casa de Dona Francisca, em janeiro de 2014, foi encarar um processo de mudança que começara a se desenrolar muito antes de minha primeira ida àquele lugar, em 2010. A antiga casa de madeira, que eu não via há oito meses, havia sido reformada e aumentada durante o mês de novembro. Tudo foi realizado muito rapidamente, em virtude de uma promessa que Dona Francisca havia feito à Nossa Senhora, e que precisava cumprir até o dia 8 de dezembro, dia da Imaculada Conceição. No dia 12 de outubro de 2013, dia de Nossa Senhora Aparecida, Francisca pediu à santa que lhe concedesse a usucapião de seu terreno, uma área forrada de pinheiros, imbuias, e erva-mate. Há quase quinze anos ela se preparava para aquele momento. Lembro-me dela falando, meses antes do julgamento de sua ação de usucapião, que estava só esperando a terra ser reconhecida como sua para fazer a nova casa. Já tinha até as tábuas de madeira guardadas dentro do galpão. A rapidez da construção e do pagamento da promessa eram como que o fim de um ciclo, e a marca de um novo início. Ela já havia dividido a terra com três filhos (duas mulheres e um homem) e com seu irmão. Prometeu à Nossa Senhora que, caso obtivesse a graça da usucapião, faria a casa nova e realizaria, no dia da Imaculada Conceição, uma mesada de anjo para as crianças da comunidade. Mesadas de anjo são rituais comuns de pagamento de promessas e de agradecimento a graças recebidas, entre os moradores do interior de Pinhão. Tratam-se de almoços servidos em uma mesa, para os anjos, representados por crianças da família, da
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vizinhança, e filhas de conhecidos que moram em outros lugares. Geralmente, as crianças que participam da mesada têm até 8 anos de idade, mas essa não é uma regra, podendo estar presentes também crianças maiores, com até 10 anos. Enquanto os anjos comem, o restante dos convidados presentes reza e entoa cantos ao redor da mesa. Francisca me disse de seu relógio velho, que estava parado, e voltou a funcionar poucos dias antes de sair a notícia da usucapião. Para ela e seus familiares, aquele súbito rearranjo do aparelho era um sinal de alguma notícia que iria chegar, de algo novo que estava para acontecer. Era a terra que entrava em um outro tempo, um novo regime de movimentos, apoiados na chegada dos documentos, e no reconhecimento de uma propriedade delimitada. Lembrei-me de uma fala de Francisca, sobre coisas que Leonardo, seu marido, guarda do Zattar, havia lhe dito pouco antes de morrer: Então até um dia ele disse pra mim, um mês antes de morrer ele disse: – Olha, o dia que eu morrer, porque a gente que trabalha em serviço do Zattar - e daí tava muito feio né, muita bronca do Zattar. Disse: o dia que eu morrer você e as crianças não saiam de cima dessa terra. Porque essa terra o Zattar nem documento não tem. Você toda vida você trabalha com lavoura e com criação - que toda vida eu criava as minhas vacas e era eu que cuidava. Ele só trabalhava pro Zattar e chegava de noite, e no outro dia levantava cedo e ia de novo, e eu que cuidava do serviço. Só no fim de semana, no domingo, ele me ajudava a cuidar das criação, às vezes vacinar ou curar uma vaca que tava doente ou o quê. Mas era toda vida eu e esse meu irmão que mora comigo. Ele veio morar com nós só porque o pai morreu né, ele veio e ficou toda vida comigo. Então daí ele [Leonardo] disse pra mim: – Você não arrede o pé, bata o pé e não saia dessa casa. Porque eu não sei, porque do tipo que o Zattar é, um dia é capaz até de eu tomar um tiro sem saber por quê ele falou pra mim. Você não saia daí! Daí eu meio que caçoando com ele, digo: – Ah, mas será que eu vou ficar com essa fazenda? – Francisca ri. Eu levava tudo na brincadeira! Daí ele disse: É, se você parar o pé aí, fica. Daí foi, daquele tempo ali, não levou um mês, aconteceu isso de matarem ele6.
O marido de Francisca também havia lhe dado um sinal: ele desconfiava que poderia ser morto por causa do seu serviço. Depois de ter ficado viúva, Francisca seguiu a recomendação de Leonardo. Bateu o pé e permaneceu em sua casa, onde firmou-se, e naquela terra ficou. A usucapião foi a resposta final que deu a todos que quiseram tirá-la de seu lugar, e o cumprimento de sua obrigação com o marido morto. Hoje, Francisca divide sua casa com o irmão, Pedro, a filha, Fátima, mais seu genro e seu neto. Para trás da residência, do outro lado de um riozinho, mora Júlia, sua filha mais nova. Fátima, Júlia e Pedro têm 10 alqueires de terras cada um dentro do terreno familiar, de 55 alqueires. Outros 10 pertencem a Celso, filho de Dona Francisca que tem lavoura e casa ali, mas mora no terreno de herança da esposa, a alguns quilômetros de distância. Os 15 alqueires restantes são de Dona Francisca. 6
Conversa gravada com Dona Francisca em fevereiro de 2011.
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Embora criem o gado em comum no terreno todo, cada um desses donos tira erva-mate e pinhão de seu próprio pedaço. E em 2014, quem tinha muita erva em seu terreno estava feliz da vida: o preço da arroba do produto havia triplicado em três anos, chegando a valer entre vinte e um e vinte e quatro reais7. Esse modo de apropriarem-se do espaço e de utilizarem-no inscreve-se em concepções mais amplas de moradia e de produção em áreas de faxinal, tal como é compreendida a região onde vive Francisca, a qual se caracteriza pela presença de mato, da floresta de araucárias. Os faxinais de Pinhão foram constituídos historicamente como terra de criador, onde a criação – sobretudo de gado bovino e de suínos – de diferentes donos era criada à solta, em comum. Contudo, o extrativismo de erva-mate era realizado pelos moradores individualmente, em seus próprios terrenos, chamados também de frentes 8. Com o domínio das terras dessa região pelas Indústrias Zattar, esse modelo produtivo adquiriu novos contornos. Os animais agora não ficavam mais soltos por todo o faxinal, mas sim nos terrenos particulares de cada morador, ou soltos em terrenos que concebo como familiares, por serem subdivididos entre membros de uma mesma família. Esses membros podem vir a constituir suas próprias famílias (como quando um filho ou uma filha se casa e tem filhos), e construírem novas casas em sua parte das terras, como aconteceu com os filhos de Dona Francisca. Ali, os animais que circulam pelo terreno são identificados com seus donos particulares, sendo permitido à criação ultrapassar as linhas das divisas internas ao terreno familiar. Porém, a erva-mate, a lenha, e toda a madeira que cresce 7
Um pé de erva-mate que ainda está se formando pode dar até 20 kg do produto, enquanto os bem novos podem dar 2 kg e os mais antigos chegam a dar 100 kg. A colheita de erva é feita em intervalos de dois em dois anos, ou de três em três. É o tempo que os pés levam para se fazer novamente. Para a colheita, podam-se os galhos do pé de erva, com cuidado para que eles possam brotar de novo. Também por isso, é importante fazer a colheita na primavera e no verão, pois com as temperaturas mais frias, o broto morre. Porém, já vi gente lidando com erva no mês de junho, ainda que este não seja o período mais indicado para realizar essa atividade. Colhidos, os galhos de erva são embolados, e vendidos a intermediários que os levam até as ervateiras, onde o mate será beneficiado e transformado em erva para chimarrão. São os intermediários que pagam diretamente os produtores, e depois vendem a erva por um preço mais caro à ervateira. Nas colheitas, os donos de terrenos costumam empregar moradores de suas comunidades e vizinhanças, cujo pagamento é feito por bolo de erva, cada qual contendo uma arroba (15 kg). É um trabalho desempenhado tanto por homens quanto por mulheres, e apontado muitas vezes como uma tarefa divertida, em que os trabalhadores unidos no mato conversam, contam histórias, brincam uns com os outros e dão muita risada enquanto colhem o produto. 8 Chang (1988), em texto clássico sobre o “sistema faxinal” no Paraná, já apontava para o “faxinal” como terminologia dada a um tipo de vegetação, onde se encontram a erva-mate, a araucária e gramíneas forrageiras. Essas áreas eram aproveitadas para o extrativismo de mate e de madeira, e para a criação de animais à solta. Assim, o faxinal era também a área do “criadouro”, que em Pinhão é chamado de criador. Chang diferencia o “faxinal”, enquanto ambiente, do “sistema faxinal”, que é como a autora designa uma forma particular de organização econômica de grupos camponeses que vivem em áreas de “faxinal”, a qual conjuga a produção animal, a produção agrícola e a coleta de erva-mate. Tanto Chang quanto Porto (2013), Almeida (2004), Souza (2010) destacam a conjugação entre usos privados e usos coletivos da terra nos “faxinais”, sendo os usos privados referentes sobretudo ao extrativismo de erva-mate e madeira, e à produção de lavouras.
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do solo são identificadas com a parte do terreno familiar onde estão plantadas, ou seja, com uma porção de terra que pertence a um dono particular. Assim, um irmão não pode tirar erva da terra do outro que vive no mesmo terreno familiar, mas seu gado pode ir até lá atrás de alimento. Antes de ir morar nas terras onde parou o pé, Francisca vivia em outro terreno, perto da estrada do Zattar. Assim é chamada uma das principais estradas de chão que cortam o interior, ligando Pinhão ao município vizinho de Inácio Martins, e passando pelas áreas das antigas serrarias de Santa Terezinha, logo no início da estrada, e da Zattarlândia, cerca de 30 km adiante. Os pais de Francisca sempre haviam lidado com lavoura em uma área de campo, enquanto moravam no faxinal. Entretanto, Leonardo, marido dela, não era de Pinhão. Ele, seus pais e seus irmãos trabalharam toda a vida em serrarias da Zattar no Paraná, primeiro no município de São João do Triunfo, e depois na Zattarlândia. Foram apenas uma dentre as tantas famílias de trabalhadores que vieram de outros cantos onde a madeireira atuava, para participarem do novo empreendimento em Pinhão9. Dona Francisca se casou com Leonardo em 1970, e nos primeiros anos de seu casamento morou perto dos seus sogros. Era o auge do tempo do Zattar, forma com que os pinhãoenses chamam o período em que a empresa era muito ativa e próspera em Pinhão. Dona Raquel, irmã de Leonardo, casou-se com Diogo, irmão de Francisca. E assim como o restante da família, Raquel e Diogo também trabalhavam pro Zattar. Raquel lembra que logo que chegaram em Pinhão, seus pais foram morar na Zattarlândia. Os primeiros empregados da madeireira vieram aos montes, e assim seguiram, se amontoando e morando em meias-águas. Depois é que fizeram as casas boas, aquelas que, quando as serrarias fecharam, ficaram abandonadas. Mas Dona Raquel e seus pais foram morar fora da Zattarlândia. Lá dentro, havia pouco espaço para quem quisesse ter criação10 ou uma pequena lavoura. Os terrenos comportavam somente a residência e um pequeno quintal. Se as casas eram boas e bonitas, elas não permitiam a continuidade do modo de vida de quem era dos matos, acostumado a viver em terrenos mais amplos, os quais possibilitavam também que a 9
Segundo Monteiro (2008, p.43), antes de se estabelecer em Pinhão, João José Zattar, patriarca que dá nome à empresa, comprava pinheiros na região dos municípios de Fernandes Pinheiro e Teixeira Soares, e construiu uma serraria em São João do Triunfo. Foi somente nos anos 1940, junto a toda uma leva de empresários paranaenses e de outros estados, que Zattar dirigiu-se à região guarapuavana e atravessou o Rio Pinhão. Na época, o Pinhão era uma pequena vila, chamada “Vila Nova do Pinhão”, e Distrito de Guarapuava. Na década de 1950, Guarapuava se tornou o município mais proeminente em exploração de madeiras no Paraná. E em 1964, com o apoio dos madeireiros que lá atuavam, Pinhão emancipou-se de Guarapuava, tornando-se um município com administração própria. 10 Criação é como são nomeadas certas categorias de animais criados por uma família. Chama-se de criação o gado bovino, suíno, caprino e ovino.
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família tivesse outras formas de sustentar-se, que não somente através do salário de trabalhador da empresa. Francisca, nesse sentido, afirma que era ela quem trabalhava na terra, pois seu marido havia se criado nessas casas de serraria, e não sabia lidar direito com as plantas e com a criação. E mesmo depois de terem ido morar juntos nas terras onde ela permaneceu, era ela quem lidava com os animais, o pomar, a horta, pois o marido passava o dia todo fora, trabalhando como guarda. Na primeira vez em que estive com Dona Raquel e Seu Diogo, foram Dona Francisca e seu irmão, Seu Pedro, que me levaram. Juntas, as mulheres me contavam que tanto fazia se era mulher, homem, ou criança, todos por ali trabalhavam no Zattar. Pergunteilhes como era lá antigamente. Muito animado, Raquel respondeu, para depois me contar que só na Zattarlândia havia mais de três mil funcionários. Animado, no linguajar cotidiano, é um termo que se refere ao movimento intenso de pessoas em uma área. Utiliza-se também a expressão ‘tão tudo animado! para dizer que está tudo bem consigo e com sua família, que todo mundo está com ânimo, ou seja, com vontade de fazer as atividades cotidianas, e com saúde para de fato executar suas tarefas, seu trabalho, seu serviço. Desse modo, a animada Zattarlândia concentrava um movimento intenso de trabalhadores, cujo ânimo remete a uma visão positiva da disposição humana para o trabalho, e da existência de trabalho à disposição. Era em boró, que parecia tipo um papelão, que elas recebiam seus pagamentos. Raquel lembrou de uma ocasião em que ela e Dona Francisca receberam em boró por terem carpido um terreno para a empresa plantar pinus. Elas viram esse pinus ser tirado e contaram que hoje já existem outros grandes lá, marcando, através das árvores e do seu ciclo de plantio e corte, o quanto passou o tempo. Não se aceitava boró na cidade, tudo que ganhavam elas tinham que gastar ali. Na Zattarlândia, havia farmácia, açougue, bares, igreja, escola, um armazém que vendia roupas, calçados, alimentos. Se precisassem de médico, nem que fosse com o carro de Miguel Zattar, os administradores da empresa levavam os trabalhadores para Pinhão ou Guarapuava. E o que mulheres e homens iam gastando ao longo do mês era descontado do seu salário em boró. Caso sobrasse alguma coisa do salário, conta Raquel, recebiam na moeda oficial, para gastar no Pinhão. Mas a Zattarlândia era maior que o Pinhão. Quando a firma se estabeleceu por lá, tinha só meia dúzia de casas no Pinhão. Os empreendimentos madeireiros caracterizaram-se, na história do Paraná, por formarem núcleos residenciais e administrativos autônomos no interior dos municípios e regiões onde eram estabelecidos. Criavam verdadeiras cidades, que continham uma estrutura comercial e residencial pronta para atender aos trabalhadores das serrarias. Esse aspecto foi notado pelo historiador paranaense Brasil Pinheiro Machado (1969, p.44), que comenta que
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os núcleos das serrarias eram abastecidos por mercadorias vindas da capital e de outros centros metropolitanos, não integrando-se às regiões onde estavam estabelecidos, mas permanecendo nelas como um “corpo estranho”. Era como se as madeireiras explorassem ao máximo a cobertura vegetal dos lugares onde se instituíam e, depois de anos, quando o material que buscavam estivesse esgotado, elas levantassem sua mudança e se transportassem inteiramente para outros lugares, não deixando nada para trás. O percurso traçado pelas Indústrias Zattar em Pinhão nos convida a pensar na realidade das madeireiras de um modo diferente, na medida em que, ali, a serraria é somente um dos pontos constitutivos de um projeto mais ambicioso do que o de simplesmente cortar todos os pinheiros possíveis, e ir embora. Em Pinhão, a família Zattar, seus sócios e os próprios funcionários da empresa teceram durante muitos anos um amplo domínio territorial. A lógica da empresa, portanto, não era somente comprar árvores e cortá-las. O Zattar queria terras. E foi comprando pinheiros que a empresa adquiriu grande parte dos terrenos ao longo da estrada que ligava Pinhão à Inácio Martins, e que passava pela Zattarlândia, cuja serraria, chamada de São José, foi inaugurada em 1949: João José, ao longo de muitos anos, não comprara terras, mas árvores. Quando faleceu, suas árvores cobriam milhares de alqueires, parte significativa dos municípios limítrofes a Pinhão. Comprava só a madeira em pé, com contratos de exploração que iam de trinta a sessenta anos. Ao morrer, deixou para seus filhos um mar de escrituras de compras, entre árvores e retalhos imensos de terra. Mesmo depois de seu falecimento, este mar foi reforçado com outras compras feitas por seus herdeiros, chegando a sete mil escrituras. Ele havia consolidado uma empresa de porte vultuoso, com ativo imobilizado de dezesseis mil hectares em terrenos rurais, várias serrarias, renome internacional e significativa carteira de clientes (MONTEIRO, 2008, p.58).
Para realizar essas compras, João José Zattar, patriarca que dá nome à madeireira, contou com a ajuda de antigos moradores da região. Seu Diogo, irmão de Dona Francisca, lembra de Machadinho, apelido de Juvenal Assis Machado, que foi prefeito de Guarapuava entre 1947 e 1951, e morava perto da Zattarlândia. Machadinho teria sido o intermediário da compra de terrenos não-escriturados e de sua posterior venda para Zattar. Ele enganava as pessoas, convencendo-as a assinarem contratos de compra e venda de árvores, os quais, na verdade, eram contratos de compra e venda das terras. Com isso, ele registrava os terrenos em seu nome, e depois os vendia, escriturados, pro Zattar. Seu Diogo lembra ainda de Olímpio Esmério, corretor de imóveis que também teria colaborado para o aumento do patrimônio da empresa, por meio do mesmo esquema de obtenção de terras através de contratos que dizia
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serem de compra e venda de árvores. Com a ajuda desses intermediários e desses contratos, muitas das compras de árvores em pé, cujo valor era pago à vista, tornaram-se escrituras de terras. Além disso, quando iam fazer a medição dos terrenos adquiridos para realizar sua regulamentação, os agrimensores da madeireira aumentavam a linha de suas divisas, para abrangerem mais algumas boas árvores. Foi assim que sujeitos que se identificam como herdeiros de antigos moradores dessa região perderam partes de suas terras. Se para alguns essas perdas foram mais trágicas, para outros dos moradores as vendas de terras ocorreram de maneira menos conflitiva. Foi o caso de Belarmino, imigrante ucraniano que possuía terras onde hoje passa a estrada do Zattar. Quando João José Zattar foi construir a estrada que ligava Santa Terezinha à Zattarlândia, ele pediu permissão para Seu Belarmino para passar o caminho pela terra dele. Belarmino aceitou, desde que os caminhões da firma lhe dessem carona quando precisasse ir para Ponta Grossa, município onde tinha parentes. Até pouco tempo atrás, Seu Antônio, neto de Belarmino que me contou essa história, tinha o documento de permissão que o avô utilizava para pegar carona com os caminhões do Zattar. A Zattarlândia, por sua vez, era um reduto de prosperidade e agitação em meio à floresta de araucárias. Muitos queriam morar lá, onde tinha tudo, as casas eram boas, e certas tecnologias e cuidados, como o telefone e a farmácia, estavam à disposição. Por outro lado, a Zattarlândia possuía uma forma industrial parecida com a que Leite Lopes (1978) observou em uma usina açucareira em Pernambuco, a qual, por sua vez, era comum a muitas indústrias têxteis do começo do século XX: a formação de um bairro operário nos arredores da fábrica, constituído por uma série de casas que eram de propriedade da usina. Unidades industriais, residenciais, e administrativas, esses redutos promoviam uma realidade cotidiana em que o mundo do trabalho e o da moradia permaneciam completamente imbricados. Palmeira (1977), observou que a união entre trabalho e residência era também o que fundamentava a relação de “morada” na plantation açucareira, e os vínculos entre senhor-deengenho e “morador”. Nesses contextos, os trabalhadores buscavam justamente uma “casa” quando procuravam trabalho nos engenhos. Havia, ainda, mecanismos de diferenciação interna dos moradores do engenho, como a concessão de “sítios”, nos quais o morador poderia plantar roçado e árvores, ligando-se permanentemente à propriedade. Viver no “sítio” era como que um prêmio concedido ao morador considerado leal ao seu patrão, para que assim ele passasse a representar o senhor de engenho nos pontos mais longínquos de seu domínio.
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O projeto das Indústrias Zattar em Pinhão envolvia, por um lado, dinâmicas parecidas a essas no que diz respeito às condições de trabalho e de residência dos funcionários da empresa. Quem trabalhava nas serrarias morava na Zattarlândia, e seu contrato de trabalho envolvia a concessão de uma casa para morar. Os trabalhadores que ocupavam os mais altos cargos na hierarquia madeireira, como o gerente, por exemplo, moravam em casas grandes, espaçosas, com quintais amplos. Os funcionários da serraria moravam em meias-águas, casas boas, porém pequenas, chamadas também de ranchos. Os guardas, por sua vez, eram agraciados com casa e terras para cuidarem, como foi o caso de Leonardo, marido de Dona Francisca. Isso indica que ser guarda era ocupar um cargo de distinção na hierarquia madeireira. Mas os chamados moradores das terras da empresa no interior viveram um processo bastante distinto, na medida em que já moravam e produziam naquelas terras, e de repente se viram tendo de lidar com a mudança do estatuto dos terrenos, e com imposições sobre como deveriam viver e trabalhar em áreas que há até pouco tempo eram suas, e nas quais passavam então a serem moradoras do Zattar. Há quem lembre do tempo do Zattar, e da Zattarlândia, como uma época e um local de escravidão. Ao recordar esse tempo, Seu Alcides, senhor que mora em uma localidade próxima à antiga Zattarlândia, relacionou a um jeito cativo o modo de vida dos trabalhadores que moravam no interior do reduto madeireiro. Aquilo bem dizer era uma prisão! Nem mesmo o salário dos trabalhadores, que eram pagos em boró, poderia ser gasto em outros lugares que não dentro do quadro da própria firma. Eles estavam presos àquele sistema, se saíssem de lá perderiam tudo o que tinham. Alcides referiu-se, porém, a um sistema de troca de moedas entre aqueles que moravam dentro e fora da Zattarlândia. Para quem morava ali perto, era mais cômodo comprar os mantimentos necessários para o dia-a-dia nos armazéns do reduto madeireiro, ao invés de se deslocar até o Pinhão. E nesse movimento de comprar coisas no Zattar, as pessoas acabavam trocando dinheiro por boró com os próprios funcionários da empresa, que também se davam bem com isso, já que podiam sair gastar fora de lá, como bem entendessem. No entanto, como Dona Francisca e sua cunhada, Dona Raquel, falavam quando descreviam suas atividades de trabalho pro Zattar, receber em boró nem sempre era um problema para os funcionários da empresa. Ali dentro da Zattarlândia, essa era a moeda corrente, e era ali que elas encontravam tudo o que precisavam para suprir as necessidades básicas de suas famílias. O Pinhão era uma pequena vila, e muitas vezes não tinha os bens disponíveis para venda que haviam na Zattarlândia. O boró se torna motivo de crítica, entretanto, quando pensado como algo que prendia as pessoas a o Zattar, não só enquanto
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patrão, mas enquanto um lugar restrito de circulação. O tempo do Zattar, nesse sentido, surge nos enunciados dos moradores do interior como modo de demarcar o tempo das atividades da empresa madeireira, cuja estrutura, local, território, funcionários, gerentes, e apoiadores são nomeados de o Zattar. O tempo do Zattar é o tempo dos vínculos entre todos esses sujeitos, elementos, e das ocupações e movimentações referentes às práticas produtivas da empresa. A noção de tempo contida nesse enunciado se aproxima da noção de “tempo da política”, conceituada por Palmeira (2001) como maneira de recorte e representação da estrutura social, onde a ênfase está menos na circunscrição de uma certa temporalidade, e mais na descrição de atividades adequadas a determinado momento. Para Palmeira, a qualificação do tempo, enquanto tempo de (da política, das festas, etc.), é um modo de estabelecer uma marcação dentro do tempo cotidiano, aquele que avança eternamente, e o tempo da contingência, de ocupações que, embora transitórias, são capazes de “contaminar todo o tecido social”, vinculando todas as atividades que caracterizam a vida social à atividade definidora do tempo (PALMEIRA, 2001, p.175). No caso do tempo do Zattar, é a exploração madeireira que surge como principal demarcadora, aquela que sustenta os complexos industriais da empresa na região, e impulsiona grandes aquisições de terras pelos donos do empreendimento. Por outro lado, o tempo do Zattar também é visto como o tempo da escravidão. Ao trabalhar com essa categoria entre os moradores da antiga Fazenda Belém, no Rio Grande do Norte, Figurelli (2011, p.124) observa como a categoria “escravidão” não é histórica, ou referente a um período que chegou ao fim. Enquanto modo de representar a estrutura social, a “escravidão” permanece como possibilidade presente, algo que também é observado por Velho (1995), quando salientou o temor que camponeses da Amazônia possuíam do retorno do “cativeiro”, noção que serve como referência para pensar as experiências de ausência de liberdade, como é o caso do trabalho escravo. Essa ponderação aproxima-se das maneiras com que o tempo do Zattar é percebido, na medida em que persistem, entre os moradores do interior de Pinhão, dúvidas e especulações sobre a possibilidade de o Zattar voltar. Vários posseiros refletiam sobre as chances disso acontecer, enquanto reclamavam da demora para conseguirem seus documentos, e das notícias de ações de despejo que moradores de outras áreas haviam recebido. Assim, a empresa mantém-se presente não só porque é a reconhecida dona de grande parte das terras do município (muito embora a legalidade do seu domínio seja amplamente questionada pelos moradores do interior e pelos integrantes dos movimentos sociais), mas porque ela permanece representando uma possível realidade para as pessoas que vivem nessas áreas, no que diz respeito à sua própria relação com a terra. Apesar de
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considerarem que o Zattar não pode mais cortar pinheiros como antigamente era permitido, elas especulam que tipo de atividades ele poderia desenvolver ali, se plantaria pinus ou eucaliptos, se construiria uma granja de porcos, se venderia as terras para outras empresas interessadas em realizar esses empreendimentos. A conjugação das relações de trabalho, residência e vida familiar, por sua vez, demonstra que a madeireira participava do âmbito mais íntimo da existência das pessoas, atravessando suas próprias casas e relações familiares, enquanto se apropriava da terra. Esse atravessamento, porém, se dava de distintas maneiras, segundo o tipo de trabalho desempenhado por uma pessoa dentro da indústria, se ela vivia dentro da Zattarlândia ou não, e se habitava previamente as terras que foram adquiridas pela madeireira. Nesse último caso, os guardas da empresa constrangiam as pessoas a assinarem contratos, pelos quais reconheciam a propriedade da madeireira sobre os terrenos. Com esses contratos, os antigos habitantes tornavam-se moradores do Zattar, e ficavam sujeitos a uma série de interdições em relação às suas atividades produtivas: não podiam mais extrair erva-mate, retirar madeira, só poderiam plantar quando a empresa autorizasse, e deveriam ainda pagar arrendo à madeireira. Quem vigiava os moradores para fazer valer os termos dos contratos eram guardas como Leonardo, marido de Dona Francisca. E ele próprio também recebera da empresa uma terra e uma casa para cuidar e morar, com sua família. Cabe ressaltar que nem todas as pessoas que moravam nas terras da Zattar se reconheciam como moradoras, pois nem todas assinaram contratos. Houve os que não assinaram e tiveram de se sujeitar a inúmeras ameaças, a queimas de casas, a constrangimentos e pressões para deixarem as terras. Foi isso que também aconteceu com Francisca, depois que Leonardo faleceu e que os guardas começaram a intimidá-la, na tentativa de fazê-la desistir do terreno. Tanto os moradores quanto essas pessoas que viviam nas terras da empresa sem contrato identificaram-se como posseiros, quando uniram-se no movimento social contrário à empresa, nos anos 1990. Outras pessoas que ficaram como posseiras em terras da empresa foram sujeitos que se percebem como antigos herdeiros de terras, que ou não possuíam os títulos regulares de seus terrenos, ou perderam parte de suas áreas através de medições realizadas pela empresa. Além disso, durante os anos 1980, a madeireira vendeu algumas de suas terras para pessoas de fora do município, terras que estavam penhoradas e, por isso, não podiam ser documentadas em nome dos novos donos. Algumas dessas pessoas também se reconheceram como posseiras. Somam-se a elas várias famílias que participaram de ocupações de terras da empresa, nos anos 1990. Há, portanto, uma grande diversidade de categorias de habitantes dentro das terras que foram apropriadas,
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compradas, ou documentadas pela madeireira em Pinhão, que faz com que a própria categoria posseiro seja marcada pela heterogeneidade de experiências de ocupação territorial.
1.2 Guardas, jagunços e pistoleiros: problematizações Seu Diogo, irmão de Dona Francisca, trabalhou quase a vida inteira cortando toras para a madeireira, nos matos. Quando indaguei se os guardas o acompanhavam no trabalho no mato, ele respondeu que não, eles tinham o lugar deles. Essa ideia de lugar remete ao cargo que cada funcionário ocupava na empresa, e à sua respectiva posição tanto em termos de hierarquia quanto de distribuição espacial dos empregados e de suas funções. Os guardas são reconhecidos como funcionários que circulavam pelas áreas da madeireira, vigiando seus moradores, a fim de garantir que cumprissem com os termos dos contratos. Ainda assim, alguns guardas tinham posições mais fixas, como aqueles que cuidavam dos portões da Zattarlândia, chamados também de portãoeiros. E entre outros empregados havia, por exemplo, a turma que trabalhava nas serrarias, a dos caminhões, e a que cortava madeira no mato, caso de Seu Diogo. Depois de afirmar que seu lugar era distinto daquele dos guardas, Diogo contou um causo de quando estava trabalhando com uma turma de homens, e Paulão, reconhecido como o mais terrível de todos os guardas que viviam por aquelas bandas, estava junto. Ele quis assustar um crente11 que estava com eles, e jogou uma capa para baixo da cama, dizendo que aquele era o corpo de um homem que ele havia matado. Diogo riu do coitado do crente, que passou a noite acordado, com o suposto defunto embaixo de sua cama. Nas porosidades da convivência diária, a união do espectro da morte com os homens valentes e os medrosos podia se tornar motivo de riso, de um humor vinculado ao assustar e ao fugir do perigo. Pela manhã o crente já tinha se mandado, antes que os colegas pudessem lhe mostrar que aquela era só a capa de Paulão. Se Paulão era terrível para muitas das pessoas que me falaram sobre ele, Seu Diogo não o representava nesses termos. Sozinho ele não era de nada. Era com os outros que ficava valente. Vivia bêbado, como grande parte dos valentes que me foram apresentados em inúmeras narrativas. E meio pistoleiro, sumia por uns tempos e depois aparecia de novo, cheio de dinheiro. Ou seja, além de guarda, Paulão fazia serviços por fora, matando gente em troca 11
Crente é como são chamados os praticantes das religiões evangélicas.
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de recompensa. É significativa, nesse sentido, a diferenciação que as pessoas que relembram os homens de armas do Zattar, fazem entre eles. Havia os guardas, havia os portãoeiros, e havia também os pistoleiros, homens que ganhavam dinheiro matando pessoas a mando de seus chefes. Em seu trabalho sobre “pistoleiros” e o “sistema de pistolagem” no Nordeste, Barreira (1998) ressalta o nomadismo de quem assume essa profissão, enquanto descreve a lógica dos “crimes por encomenda”, postos em ação por um conjunto de agentes que podem ser resumidos em três personagens centrais: o “mandante”, o “intermediário”, e o “pistoleiro”, valorizado por sua frieza de matar. Nos exemplos de Barreira, destacam-se os pistoleiros que matam anonimamente, sozinhos, às escondidas. Em Pinhão, apesar de os pistoleiros serem tidos como homens que trabalham por empreitada, ou seja, cada morte que realizam é encomendada e planejada, e que viajam a fim de realizar esses empreitos (o que configura um certo nomadismo), há uma estabilização deles nos quadros das Indústrias Zattar, de modo que vários eram percebidos como guardas e jagunços. Outros, até, eram chamados de meio pistoleiros, como se a função de matador não fosse parte plena de suas carreiras profissionais, sendo mais um trabalho esporádico que permitia que eles ganhassem dinheiro rapidamente, mas que não definia por completo sua vida profissional.
Em Pinhão, além disso, os
pistoleiros não eram anônimos, ao contrário, todos sabiam muito bem quem eram e como ganhavam suas vidas. É assim que há uma diversidade interna ao corpo de homens de armas das empresa madeireira, composto por homens que são retratados de múltiplas maneiras, em uma variação que vai desde o guardinha e o jaguncinho que não faziam nada para ninguém, até os pistoleiros terríveis, que gostavam de matar. Outra forma de nomear os guardas é chamando-os de jagunços, termo que é usado sobretudo pelos membros dos movimentos sociais, e que destaca a ilegitimidade da atuação dos homens de armas e da propriedade do Zattar. No Brasil, o termo “jagunço”, de modo geral, é relacionado a várias modalidades de homens de armas que atuam em situações de conflito social. Segundo Câmara Cascudo (2012, p.361), “jagunço” era o nome dado a uma haste de madeira com ponta de ferro, usada como arma de ataque e defesa, principalmente na Bahia. No final do século XIX, o termo passou a ser utilizado para se falar dos “valentões assalariados”, os “capangas”, os “cangaceiros”. No começo do século XX, “jagunço” foi o modo com que ficaram conhecidos os “valentes” e “fanáticos” seguidores de Antônio Conselheiro, durante a Guerra de Canudos. Tomando como base as definições de Câmara Cascudo, Queiroz (1976) busca se aprofundar na genealogia da expressão “jagunço”, que de nome de arma passou a ser utilizada
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como referência aos capangas de chefes políticos e famílias, os quais atuavam sobretudo em disputas por terras. Entre fins do século XIX e início do XX, jagunço passou a ser o termo utilizado para nomear os participantes de movimentos messiânicos. Tal como os membros do exército que lutaram em Canudos, os que participaram da Guerra do Contestado, que abrangeu partes de Santa Catarina e do Paraná, também passaram a chamar de “jagunços” a população em revolta contra o Estado. É curioso, nesse sentido, que pessoas de Pinhão que me falaram sobre o Contestado chamaram esse conflito de guerra dos jagunços (AYOUB, 2014a). Segundo Queiroz (1976, p.226), foi em meados do século XX que a expressão “jagunço” passou a ser acionada para caracterizar os “capangas” armados de grandes fazendeiros e companhias colonizadoras. Assim, o termo foi relacionado aos homens que atuavam como armas dos poderosos que expropriavam e exploravam trabalhadores rurais, e nesse sentido, tornou-se uma forma de nomear um inimigo comum a inúmeras populações camponesas em processos de disputas por terras. Contudo, como demonstram as próprias definições de Câmara Cascudo e a discussão proposta por Queiroz, a palavra “jagunço” qualifica-se por sua abertura e pela possibilidade de fazer referência a diferentes sujeitos, em diferentes contextos de lutas armadas. No caso de Pinhão, jagunço é um termo que, apesar de utilizado com mais frequência pelos membros dos movimentos sociais, é acionado também a partir de sua relação com os termos guarda e pistoleiro, outras formas possíveis de se fazer referência aos mesmos homens de armas da madeireira. Dona Francisca, por exemplo, jamais chamou Leonardo de jagunço, somente de guarda. Por outro lado, alguns antigos posseiros disseram-me que na verdade, os jagunços eram guardas. Outros revelaram-me que jagunço e guarda eram a mesma coisa. Seu Damião Oliveira, do Faxinal dos Cascatas, posseiro que foi muito perseguido pelos homens de armas da empresa, esclareceu-me que jagunço era o termo certo, que quem dizia guarda eram somente os puxa-sacos do Zattar. Outros moradores, ainda, disseram-me que apesar de falarem jagunços, isso é coisa que não se diz. Ao utilizarem os termos guarda, jagunço, ou pistoleiro, portanto, os sujeitos que contavam sobre suas experiências com a madeireira promoviam uma série de problematizações sobre os modos de nomear os homens de armas. Revelavam, além disso, que o uso desses termos tinha a ver não só com considerações sobre a conduta dos homens de armas, mas com certas aproximações e distanciamentos que possuíam com aqueles de quem falavam (AYOUB, 2011; 2013). Nesse sentido, enquanto guarda é um termo que indica um certo respeito pelo homem de armas de que se fala, e que não traduz explicitamente a
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agressividade com que atuavam os funcionários armados da firma, pistoleiro é um termo que coloca em primeiro plano o agir com violência, e que esclarece que, entre seus funcionários, a madeireira contratava homens que matavam gente. Jagunço, contudo, é um termo bastante ambíguo, que na maioria das vezes é enunciado pelos membros dos movimentos de luta pela terra, e que pode indicar uma postura de contrariedade à empresa, mas nem sempre o faz. Guardas e jagunços podem ser encarados como iguais, ou jagunço pode ser esclarecido como termo pejorativo, que não deve ser dito. Seu Diogo, contudo, não hesitou em usá-lo. De primeiro não tinha jagunço, Seu Diogo disse, referindo-se não a uma ideia genérica de tempo, mas ao início do tempo do Zattar. Foi quando estava em outra região do município, trabalhando, que Diogo conheceu os dois primeiros homens que vieram trabalhar de jagunços pro Zattar: Tião e Zequinha, nomes que eu já conhecia de outras histórias ouvidas em minhas caminhadas pelo interior. É significativo o fato de ambos esses homens serem pessoas de fora, trazidos pela madeireira para atuarem na vigilância de suas áreas recém-adquiridas ou em vias de documentação, por volta do fim dos anos 196012. Tião e Zequinha eram reconhecidos por seu passado de homens de armas em outros cantos. Conta-se que o Zattar tirou esses homens da cadeia em Curitiba e os trouxe para Pinhão, para trabalharem para ele. Se Zequinha é pouco falado, Tião é um homem sobre o qual todos os que relembram o tempo do Zattar têm algo a dizer. Ele se tornou um dos nomes mais importantes dentro da madeireira, sendo citado, junto com os gerentes da empresa, como o chefe dos jagunços, aquele que mandava neles e comandava suas ações – ainda que nem sempre estivesse presente. Antes de vir para Pinhão, ele cumpria pena em Curitiba, por ter matado o próprio patrão, em uma fazenda no norte do Paraná. Fez carreira na empresa e conseguiu se aposentar como funcionário da Zattar, diferentemente de muitos dos seus colegas que atuavam como homens de armas, os quais foram mortos, partiram para outros municípios, ou acabaram presos por causa dos seus atos. Tião, contou Seu Diogo, está velho e com problemas de saúde, e mora no Pinhão. Residiu perto da Zattarlândia por um tempo. Morou também perto do Faxinal dos Oliveiras, num lugar conhecido como a casa dos jagunços, na qual viveram ao longo dos anos diversos homens de armas que trabalhavam para a madeireira. Dizem que a mulher de Tião é muito 12
Em sua pesquisa sobre as origens da propriedade em Pinhão, Salles (2013), observa que foi por intermédio de uma medição judicial, realizada no início dos anos 1970, que as Indústrias João José Zattar S/A obtiveram grande parte dos seus títulos de terras no município. O processo de homologação desses direitos fundiários, contudo, foi repleto de conflitos, pois havia outras famílias da elite regional disputando essas áreas, e argumentando que elas eram suas. Diversos moradores comentaram que foi por meio dessa medição que a madeireira adquiriu terras em parte do interior de Pinhão. E um pouco antes disso, havia colocado homens armados para circularem nas áreas e convencerem os moradores a assinarem os contratos.
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gente boa, assim como um de seus filhos. Zequinha, Diogo não sabe que fim levou. Há rumores de que ele foi para o Mato Grosso. A mim já havia sido dito em outro lugar, por Dona Lúcia, senhora que o conheceu, que Zequinha foi morto numa rodovia, por um fazendeiro para o qual foi trabalhar. Depois disso, o fazendeiro é que foi para o Mato Grosso. Mas não falei disso para Seu Diogo. Na única entrevista gravada com Dona Francisca, ainda durante meu mestrado, em 2011, perguntei- lhe sobre como eram suas relações, enquanto o marido era vivo, com as pessoas que Leonardo atendia: – E como mulher de um guarda do Zattar, a senhora tinha boas relações com o pessoal, ou o pessoal às vezes invocava com a senhora? – perguntei à Francisca. – Um tanto de gente entendia né, mas um tanto de gente tinha raiva de nós. – E aí aprontaram alguma pra vocês antes disso, antes de ele [Leonardo] morrer? – Antes de ele morrer não, mas depois que ele morreu muita gente discriminava nós. Mas nós não tinha culpa, né? Até teve um vizinho nosso, agora ele já é morto, diz que ele falou no dia que mataram meu marido: é, foi cortar taquara no inferno agora! - bem desse jeito. Que se eles tavam roubando, eles entravam roubar, sabe assim, aí tinham que atender. O que entrava roubar claro que tinha que atender né? [...] Ele ia e falava por bem né? Muitas vezes eles já tinham tirado pinhão, ele deixava que levasse aquele, dizia pra não virem mais. Mas muita gente não gostava de nós. E depois levou acho que uns dois anos, com nós se explicando, que nós não... – Não tinha nada a ver... – Não tinha nada a ver né, que ele cumpria ordem do Zattar, mas nós não cumpria ordem do Zattar nenhuma! Daí que o povo foram entendendo. Às vezes a gente saía assim, logo que morreu meu marido, sabe. A gente saía assim pro Pinhão e aquelas turmas tudo comentando: Mais um pistoleiro do Zattar! Um dia eu disse pra um homem: mas quem que ele matou pra você dizer que ele é pistoleiro? O meu marido não matou ninguém! Ele ficou quieto assim, às vezes nem veem a gente né? – Porque nem todos os guardas eram pistoleiros? – É. De mais ou menos uns trinta que eles tinham, acho que uns quatro ou cinco que não eram, o mais tudo era.
Ao falar das relações de trabalho de seu marido, de como ele desempenhava seu serviço, Francisca comenta como o emprego de Leonardo afetava a vida dela, e busca se distanciar do Zattar e dos pistoleiros. Leonardo trabalhava vigiando áreas, o dele era atender, como vários posseiros me falavam das tarefas dos guardas do Zattar. Atender tem a ver com uma noção de cuidar relacionada à vigilância, ao estar de olho nos moradores para que eles agissem conforme previsto no contrato, nas normas do Zattar. Francisca se refere, então, às pessoas que roubavam material vegetal da área. Os contratos previam que os pinheiros e os pinhões, a madeira, a lenha, a erva-mate, tudo isso que crescia da terra era propriedade do Zattar. O morador que mexesse, apanhasse, cortasse, estaria roubando do Zattar. Para atender as áreas do Zattar, Leonardo tinha que se deslocar cotidianamente de sua casa até elas. Dona Margarida, senhora posseira que mora em uma área distante da antiga
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Zattarlândia, e que teve vizinhos jagunços, comentou que esses homens de armas trabalhavam fazendo trecho. Levantavam de manhã cedo, encilhavam o burro, pegavam o revólver e às vezes um cachorro bravo, e saíam para atender as terras da empresa. Cada dia faziam um trecho diferente. Os guardas, portanto, poderiam receber terra e casa para cuidar e morar, mas seu trabalho era passar o dia em trânsito, cuidando de moradores que não necessariamente seus vizinhos mais próximos. Assim, esses homens de armas tinham inserção tanto nas comunidades em que moravam, quanto naquelas por onde passavam, nos movimentos necessários ao seu serviço. Nos faxinais, o cuidado dos guardas recaía principalmente sobre a erva-mate, a lenha, e a madeira. Nas terras de planta, ou nas roças, os homens da empresa fiscalizavam o trabalho dos moradores na lavoura e cobravam o arrendo. Como quem morava no faxinal geralmente tinha lavouras em terra de planta, grande parte da população do interior ficou sujeita a intervenções da empresa sobre todos os planos de suas atividades produtivas, e sobre o próprio modo com que a terra era concebida e engendrada nesse ambiente de faxinais. O arrendo é tido pelos antigos habitantes dessas terras como um valor que era cobrado pelos guardas, e que ficava com eles, como se fosse um ganho a mais além do seu salário. Em uma localidade concebida como terra de planta, ouvi de uma antiga moradora que as pessoas que haviam feito contrato com o Zattar deixavam na estrada o arrendo, em bolsas de feijão e de milho, para os guardas recolherem. Por um tempo os homens da empresa vieram buscar as bolsas, mas depois, já não vinham mais, e a colheita ficava largada na estrada, apodrecendo. Uma senhora posseira de uma comunidade do Faxinal dos Oliveiras disse-me também que ela e sua família tratavam de esconder parte do que colhiam, para assim pagarem menos aos guardas. As dinâmicas das relações entre os moradores, o Zattar e os guardas, tal como são desenhadas nas narrativas das pessoas que viveram os conflitos com a empresa, revelam ideais de propriedade que ultrapassam a terra em si, enquanto solo habitável e sujeito a imposições de limites, e identificado com um sujeito que se torna seu dono. Os moradores do interior consideram, em suas narrativas, as múltiplas e simultâneas presenças de todos os possíveis “donos” dessas terras: eles mesmos, enquanto antigos ou novos habitantes das áreas, o Zattar, seus homens de armas. A madeireira operava um esquema de apropriação da terra que permitia a permanência de moradores nela, desde que assinassem um contrato e não tocassem em nada do que crescia sobre o terreno, riquezas que interessavam tanto à empresa quanto aos seus homens de armas, os quais recebiam ordens do Zattar mas também faziam seus próprios esquemas de apropriação dos produtos dessas terras.
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Nesse sentido, as histórias das lutas por terras têm sempre a característica de reativar essas relações e misturá-las de tal modo que distintos pontos de vista entram em cena numa mesma conversa, como se todas essas vozes clamassem ao mesmo tempo por sua legitimidade enquanto “dona” das terras. Muitos posseiros diziam-me que não podiam tirar erva-mate dos terrenos, pois se o fizessem estariam roubando do Zattar. Quem os acusava de roubo eram os guardas, mas muitos guardas também tiravam a erva do Zattar e vendiam por conta própria. As terras do Zattar, desse modo, tornavam-se terras dos guardas. Por outro lado, muitos posseiros e moradores insistiam em tirar a erva-mate e tentar vende-la, argumentando que não estavam roubando, já que aquelas áreas sempre haviam sido de suas famílias. A terra, nesse sentido, mantém-se em relação com diferentes pessoas e diferentes riquezas, que se tornam temas a mais nessas disputas, as quais vão além do espaço habitável em si mesmo e de “lados” em conflito. A acusação de roubo de taquara, pinhão, etc., por pessoas que sempre viveram num terreno como suas donas, é internalizada como grande ofensa e humilhação. Era esse um dos tantos motivos – junto às proibições e cobranças sobre as lavouras, às andanças dos jagunços por dentro dos terrenos, chegando às vezes a circularem dentro do próprio terreiro dos moradores, nos arredores imediatos de suas casas – que causava revolta aos que assinaram os contratos com a madeireira. Quem não assinou, contudo, ficou sujeito ao mesmo tipo de tratamento. As imposições em relação à propriedade da terra e do que nela existe, as interdições, a assinatura de documentos estranhos (os contratos), a presença de um conjunto de homens armados andando por estradas e terrenos e vigiando seus habitantes, enfim, essa forma de domínio protagonizada pela madeireira, permanece presente nos modos como os habitantes do interior, sobretudo os posseiros e os membros de outros movimentos sociais que moram em áreas da empresa, vivem suas relações com a terra. Em diversos lugares por onde passei, as pessoas me diziam sobre não poderem fazer certas benfeitorias na área, tirar erva ou tirar madeira, não por causa da legislação ambiental, mas porque ali é terra do Zattar. Aí depois ainda dizem que eu tô roubando! Ouvi comentários como esse sobretudo em áreas onde há uma intensa movimentação em torno da desapropriação das áreas da madeireira, e onde há conflitos recentes em torno da formação dos acampamentos do MST e dos territórios faxinalenses. Nas áreas onde moram antigos posseiros, que tiveram que viver de acordo com os contratos e conviver com os guardas, as pessoas fazem o que bem entendem nos terrenos, compreendidos hoje como delas mesmas. Contudo, num plano mais distanciado, questionam
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a demora na regularização das posses, e várias delas, inclusive, falam do seu medo de que o Zattar volte. Pois se ali está tudo quieto, sabe-se que em outros cantos do município, sobretudo nas áreas dos sem-terra, há pessoas recebendo ameaça e ordem de despejo. Assim, se o tempo do Zattar passou, seus lastros deixam no ar a possibilidade de que ele retorne. A própria terra incorpora a presença da madeireira e das lutas nela engendradas. É ao tempo em que o Zattar mandava em tudo que Francisca encadeia as ações do seu marido, no trabalho de guarda. Leonardo cumpria ordens. Ele tinha a obrigação de atender se pegasse as pessoas roubando. Pinhão, deixava que as pessoas levassem. Falava por bem, ou seja, de um modo respeitoso. Leonardo não agredia ninguém, ele não era um matador de gente, como também são chamados os pistoleiros. Tanto é que Francisca desafiou um homem no Pinhão, perguntando-lhe quem seu marido havia matado para o homem falar daquele jeito. Por essas e outras ocasiões, ela afirma ter sofrido discriminação depois da morte de Leonardo. As pessoas tinham raiva. Não gostavam de sua família. Deu o que ver para seus vizinhos entenderem que ela não recebia ordens do Zattar. Francisca se refere às diferenciações internas ao corpo de guardas da madeireira, as quais abrangem mais do que o desempenho de funções. Quem conviveu com esses homens e suas vigilâncias costuma discutir a maneira como realizavam suas tarefas, e aquilo que conheciam da história de vida desses homens: se falavam por bem com os moradores, se eram desrespeitosos, se eram boa gente, gente ruim, bêbados, se ajudavam ou eram incomodativos, se estavam naquele serviço porque gostavam, ou por causa do salário, e assim por diante. Guardas, jagunços e pistoleiros são observados de um ponto de vista próximo, como sujeitos conhecidos e familiares, que vivem sob os olhos dos vizinhos e compartilham com eles os aspectos de suas vidas. Os relatos sobre o Zattar acabam por privilegiar, desse modo, o cotidiano, o fluxo das relações entre pessoas e dos acontecimentos na vida diária, os encontros e desencontros e aquilo que eles propiciam. As ameaças, as mortes, as más atitudes dos guardas, jagunços e pistoleiros são vividas e problematizadas também nesse plano. Não há narrativas épicas que oponham lados do conflito, que invistam num relato objetivo do passado ou que tracem distanciamentos entre o narrador e os eventos dos quais ele fala. Nesse sentido, há formas de produzir conhecimento sobre vizinhos que são acionadas nas maneiras com que as pessoas falam sobre esses homens de armas. Esse conhecimento tem a ver com como os sujeitos observam, ouvem, e falam uns dos outros a partir de seus encontros, o que nos termos de Bailey (1971), é matéria de produção das “reputações”, que fundamentam a “pequena política” da vida cotidiana. Multifacetadas, as “reputações” das pessoas têm a ver com as tramas de relações em que tanto quem fala, quanto quem é matéria
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de avaliação, estão envolvidos. Assim, um sujeito pode ser tido como bom para alguns e ruim para outros, mas de qualquer modo, é justamente o fato de ele ser considerado de alguma dessas maneiras que faz dele parte de uma “comunidade”. Marques (2002), por sua vez, chama atenção para como as reputações são permanentemente negociadas e redefinidas no interior das relações, ainda que possam em certa medida condicionar os termos destas relações. Tanto quanto os feitos excepcionais, as interações rotineiras também contribuirão para a composição da “reputação”, enquanto conjunto de apreciações e opiniões sobre certas pessoas. Isso, porém, não significa que as condutas determinem o modo como serão ponderadas, e nem que não sejam contestadas. Nas histórias dos moradores do interior de Pinhão sobre os conflitos de terras com as Indústrias Zattar, os próprios termos guarda, jagunço ou pistoleiro revelam conhecimentos engendrados na observação cotidiana que as pessoas realizam umas sobre as outras, o que faz com esses modos de nomear os homens de armas tenha a ver com a produção de reputações. Os homens de armas são observados e reconhecidos a partir das maneiras com que desempenham seu trabalho, e os modos com que tratam os moradores das terras do Zattar. Além disso, suas trajetórias de vida e seus comportamentos – tanto em casa quanto fora dela – são levados em consideração no que se diz sobre esses sujeitos e, por conseguinte, nos jeitos de se conviver com eles. É interessante notar que, ao relembrarem esses homens de armas e suas atitudes, as pessoas ressaltam os modos com que eles conversavam, na verdade, se sabiam conversar, se eram educados e cumprimentavam os outros com respeito, dizendo bom dia, boa tarde, licença, faz favor, se chamavam homens e mulheres de senhor ou de senhora, com que tom de voz falavam. Por outro lado, as pessoas sabiam o que acontecia na casa desses homens de armas: se bebiam e eram agressivos, se cuidavam bem de sua esposa e de seus filhos, se vinham de famílias de gente boa ou de gente ruim, sendo chamadas assim as gentes envolvidas em histórias de mortes e de vinganças, os bravos e valentes. E às vezes, mais do que falarem dos guardas, as mulheres, sobretudo, relembram as esposas desses homens, suas vizinhas, a quem muitas vezes visitavam, e com quem trocavam alimentos e favores, o que as tornava queridas. Outras mulheres de guardas, contudo, criavam problemas com as vizinhas: faziam fuxicos, bebiam, acusavam as moradoras de roubo, e assim por diante. Assim, ao falarem dos homens de armas da empresa não como um eles distante, mas sim como sujeitos com nome, lugar de moradia, família, as pessoas expressam também suas relações com eles, e como os encaravam a partir dos trajetos da convivência cotidiana à qual estão inclinados todos os que vivem numa mesma comunidade do interior, ou em localidades
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próximas. Elas conduzem, nesse sentido, apreciações que na maior parte das vezes deslocam as ações violentas do centro das avaliações sobre os guardas, jagunços e pistoleiros, problematizando então suas gentilezas e grosserias, seus bons modos de ser e de tratar, e também suas condutas ruins, referências que são acionadas nas formas com que se observa qualquer pessoa, e não somente os agentes da empresa madeireira. Ademais, essas narrativas expressam que o tratamento que os guardas dirigiam aos moradores também era medido a partir do conhecimento que tinham com eles, fosse através de vínculos de parentesco, vizinhança e amizade, ou através dos afetos gerados nas próprias idas desses homens de armas às casas das famílias que viviam nas áreas do Zattar. Dirce, hoje moradora de uma terra de planta, contou-me que sua família tinha amizade com um dos guardas do Zattar que aparecia por lá, o qual não os cobrava da maneira que supostamente deveria. A gente queria bem ele, lembra Dirce. O guarda ia à sua casa, almoçava, tomava chimarrão, tirava milho da lavoura. Mandava nós tirar erva escondido pra tomar chimarrão: vamos roubar uma ervinha do Zattar! O guarda, portanto, poderia em certos momentos ser encarado como alguém que transgredia as regras da empresa. No exemplo de Dirce, o próprio uso do termo roubar carrega um tom jocoso, de desafio ao patrão. Como Dona Francisca faz ao falar do marido, Dirce se refere a esse homem como alguém que só cumpria ordens, não incomodava. De certo entrou [no serviço de guarda] só por causa do salário. Mas além deste, havia outros guardas. Apareciam toda semana, dizendo quando a família de Dirce podia ou não trabalhar. Mas era só eles virarem as costas que a gente voltava trabalhar! – conta Dirce, rindo. Ninguém obedecia a esse tipo de ordem sem pestanejar. De fome, quem vai morrer? – falaram-me vários posseiros a respeito dessas interdições sobre as lavouras. Além disso, Dirce falou de outros jagunços, estes mais incomodativos: Carlão e Ernesto Lins. Ernesto, segundo ela, era ruim, ruim, ruim! Foi ele que matou o irmão mais novo de Dirce, Nelsinho, só porque ele atravessou um portão do Zattar para seguir por um carreiro13 que o levaria até uma igreja, onde havia uma festa. O rapaz não tinha permissão para atravessar o portão. A mulher do jagunço não o deixou passar, mas ele a desaforou e seguiu adiante. Mais tarde, na festa, o jagunço apareceu, bêbado, e atirou no rapaz ali, no meio de todo mundo. O garoto morreu. Muitos dos irmãos e parentes de Dirce foram embora de Pinhão depois disso. A morte de Nelsinho traz um conteúdo significativo para a reflexão sobre como as violências vividas pelos posseiros poderiam se inscrever em outros aspectos do convívio com 13
Carreiro ou carreador é como se chamam as trilhas e caminhos estreitos abertos em meio ao mato, e que passam por dentro de terrenos particulares.
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esses homens ruins, colocados em certas localidades para marcar espécies de entrepostos do domínio territorial madeireiro, mas nos quais também viviam como moradores, relacionandose com seus vizinhos de variadas maneiras. A morte do rapaz tem como referência mais ampla a questão da terra, porém, é percebida como motivada por um desaforo feito por Nelsinho, que não obedece as ordens da mulher do guarda e atravessa um portão do Zattar para tomar um caminho mais rápido até a festa. Bêbado e enraivecido, Ernesto vai atrás do garoto, e o mata. A presença do jagunço e o fato de ele próprio ser ruim geram, portanto, uma série de interferências nos próprios deslocamentos que as pessoas fazem pelos lugares onde vivem, onde não podem mais circular como antes. Essas interdições, contudo, são vividas através de uma espécie de lógica do desaforo, enquanto afronta e desrespeito, que conforma os modos com que o que os moradores do interior compreendem as encrencas e brigas geradas a partir do seu convívio cotidiano, da mutualidade de ações e da reciprocidade que caracteriza a vida entre vizinhos. Assim, muitos dos atos violentos dos jagunços eram vividos e referenciados a esses meandros agonísticos da vida em comunidade, que incluem a questão da terra mas modulam as encrencas como oriundas de desaforos e confusões entre os homens de armas e seus vizinhos. Leonardo, porém, é lembrado como homem bom, que sequer cobrava o arrendo. Como disse Dona Francisca, ele tinha muita amizade com o povo. Seu Alcides, senhor que mora perto do Zattar, também já havia me dito que Leonardo não era perigoso, que não chegava a ser um jagunço, como Paulão e tantos outros homens de armas reconhecidamente ruins e perigosos. E Dona Raquel, irmã de Leonardo, lembrou em uma outra visita minha à sua casa, quando falávamos em Paulão, que o irmão dela era o tipo de guarda que avisava quem vivia nas terras do Zattar das ações que Paulão planejava realizar. Leonardo havia contado para uma família, que estava para ir passar uns dias em outro lugar, que era para eles não saírem, porque Paulão, pistoleiro, homem ruim, estava planejando queimar a casa deles. Eles permaneceram na residência, e viram que à noite os homens do Zattar chegaram lá. Mas não atearam fogo, pois havia gente em casa. Por isso, diz Raquel, essa família ficou devendo obrigação a Leonardo. As trocas recíprocas que fundamentam a consolidação da obrigação adquirem significados especiais na vida em comunidade, na medida em que tanto fortalecem relações sociais já existentes, como criam novas. Tomando as “obrigações”, “compromissos” e “ajudas” como centrais nas maneiras com que as pessoas percebem seus vínculos umas com as outras, Heredia (2010), e Palmeira (1992) frisam a importância que tais práticas assumem na conformação de lealdades, que sustentam, por sua vez, laços entre pessoas que nem sempre
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são tidas como iguais ou que participam de uma mesma comunidade, e que são transpostos também às adesões a determinados políticos, por meio do voto, que é expressão do compromisso que se tem com um candidato. No interior de Pinhão, quando uma pessoa declara dever obrigação à outra, ela também está colocando em pauta a existência de um compromisso. Porém, enquanto no que diz respeito à política, a declaração da obrigação remete diretamente ao dever de votar em um candidato, na vida cotidiana essa reciprocidade é cobrada de outras maneiras. Quando afirma dever obrigação a alguém, uma pessoa reconhece a existência de uma dívida moral entre ela e a pessoa a quem deve, a qual é reconhecida também por sua família de um modo mais amplo, na medida em que as obrigações são como que contrapartidas de auxílios cujo valor é inestimável, e que ultrapassam aquele que os recebe. No caso de Leonardo, o auxílio prestado foi o aviso que permitiu que uma família mantivesse sua casa, que seria queimada. Também se contrai obrigação com o sujeito que encontra uma vaca perdida, cuida dela para seu dono, e busca avisá-lo sobre o animal. Mas as formas mais comuns de adquirir obrigação são aquelas que envolvem situações de saúde, vida e morte. Avisar alguém para não ir por tal caminho porque há alguém perigoso lá, cuidar de pessoas doentes, dar caronas para elas irem até o hospital, transportar pessoas para velórios dos seus parentes, ajudar uma mulher em situação de parto, doar remédios, acolher uma pessoa que está passando mal, tudo isso cria laços de obrigação daquele que recebe a dádiva, em relação àquele que doa. Muito mais do que pressupor uma contrapartida material ou a devolução do favor por meio de outros auxílios, a obrigação implica uma espécie de elevação moral do outro, que se desloca do cotidiano ordinário, tornando-se uma pessoa de valor especial e recebedora de um respeito ímpar daquele que lhe deve, o qual a ajudará quando preciso, e a terá em grande estima, muitas vezes mais do que a membros de sua própria família. Isso não significa, contudo, que todos que receberem auxílios destes tipos reconhecerão que devem obrigação a quem que os prestou. Há pessoas que são caracterizadas como gente que não é de fiança, ou seja, em quem não se pode confiar, por não serem inclinadas a estabelecer esses vínculos. Recebem dádivas dos outros, mas não as retribuem com o respeito esperado ou com outro auxílio quando vem ao caso. E ainda saem falando mal de quem as ajudou. Além disso, a obrigação que se tem com um membro de uma família nem sempre se traduz em boa estima pelos seus familiares, e vice-versa. Pois nas famílias também há sempre aquele que não é de fiança, ou um sujeito com quem, por algum motivo, a mesma pessoa doadora do auxílio que a faz respeitada pela família em geral, envolveu-se em algum conflito que a coloca em uma condição de inimizade.
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Voltando à história que levou a família de moradores de terras do Zattar a dever obrigação a Leonardo, o que estava em questão era a possibilidade de Paulão queimar a casa daquelas pessoas. As queimas de casas eram realizadas pelos homens da madeireira para expulsarem das terras as pessoas que não cumpriam os termos dos contratos, ou as que não se dispuseram a assiná-los. Nos anos 1990, eles também queimaram moradias de pessoas que haviam ocupado, junto com os movimentos sociais, terras da empresa. Se em alguns casos os jagunços esperavam as casas ficarem vazias para tocarem fogo nelas, há uma história muito conhecida de uma senhora que foi retirada de sua casa em plena luz do dia e viu os homens a incendiarem. Há também o caso que resultou na morte da menina Janaína, criança de apenas um ano de idade, que dormia no paiol de sua família quando os guardas passaram e atearam fogo no local. Os pais de Janaína, que trabalhavam na roça perto ao paiol, viram o fogo e correram para tentar salvar a menininha. Mas as labaredas já estavam altas, e eles não conseguiram tirar a criança de lá. Essa é uma das poucas mortes que os posseiros costumam mencionar quando contam sobre as atrocidades cometidas pelos homens do Zattar. Queimar casas é tido como um ato terrível, não só porque poderia haver pessoas dentro delas, mas também porque era uma medida que as impedia de permanecerem na terra, já que nessas ocasiões elas perdiam tudo o que tinham. É por ser capaz de tamanha ruindade que Paulão surge, na prosa de Raquel, como a antítese de Leonardo, que buscava impedir o sofrimento dos moradores. Depois que Leonardo morreu, um outro irmão deles que também trabalhava pro Zattar, encontrou-se com Paulão numa festa no Faxinal dos Oliveiras. Esse irmão, Dona Raquel conta, bebia e gostava de falar, ou seja, desandava a dizer tudo o que pensava na cara dos outros, sem pudores. Ele falou alguma coisa para Paulão, que começou a discutir com ele. Os amigos que estavam com o irmão de Dona Raquel o puxaram para fora da discussão, e mandaram ele ir embora antes que algo de pior acontecesse. Quando ele ia partindo, Paulão lhe disse que aquilo não ia ficar assim. Falou que conhecia muito bem todos os caminhos que esse irmão de Dona Raquel percorria para ir ao trabalho, ameaçando fazer espera para o homem, ou seja, se esconder em algum canto do percurso dele, e matá-lo de supetão, às escondidas. As declarações de morte, tidas como promessas, anúncios de que uma briga terá continuidade, são parte importante dessas situações e do que se conta a respeito delas, mesmo quando, como no caso de Paulão, a proposta seja matar às escondidas. Esses anúncios operam tanto como uma demonstração de força daquele que faz a declaração, quanto como uma espécie de previsão, uma marca imposta ao destino do outro, aquele que não poderá mais viver em paz, pois sabe que pode ser morto. Apesar da ênfase na declaração ser uma forma de
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trazer à tona os possíveis culpados para mortes que ninguém pode provar quem executou (caso da morte por espera, que envolve idealmente surpresa e anonimato), grande parte das vezes essas mortes, declaradas previamente, são realizadas na frente de outras pessoas, como em festas e bares. De qualquer modo, todas essas mortes declaradas são vividas aos olhos do público que toma conhecimento desses anúncios, ainda que por vezes não haja testemunhas da cena concreta de um assassinato. É interessante contrapor as histórias que Dona Raquel me contou àquelas que Seu Diogo havia dito, quando nos conhecemos. Enquanto na primeira ida à casa deles eu conversei com o casal, nessa segunda vez, a conversa foi somente com Dona Raquel. Na primeira visita, foi Seu Diogo quem falou em Paulão, dizendo que ele só ficava valente quando estava acompanhado de outros homens. Seu Diogo mostrava não temer o dito pistoleiro, e o fazia através de piadas frente aos perigos que o homem inspirava nos outros, chamando a atenção para o quanto, sozinho, Paulão não era forte. Dona Raquel, agora, trazia questões diferentes sobre o homem de armas, por meio da comparação das ações de Leonardo com as de Paulão. Ambos emergiam, em suas narrativas, como exemplos de atitudes opostas que os guardas tomavam diante das famílias que viviam nas terras da madeireira. Salientar a bondade de Leonardo era uma forma de aprofundar o percurso narrativo que ela fazia para me falar do descomedimento de Paulão, para me mostrar o que é um pistoleiro ruim, que mata gente, queima as casas alheias, e que ameaçara, inclusive, outro irmão dela. Enquanto na história de Seu Diogo era a sua relação com os homens de armas, com quem ele convivia no trabalho, que dava o tom do que era contado, na história de Dona Raquel, era a relação dos seus irmãos com Paulão que dava forma à narrativa. Perspectivas distintas, no entanto, às vezes formavam confluências que me pegavam de surpresa. No dia em que conheci Seu Diogo, irmão de Dona Francisca, ele salientou que a história do Zattar aqui só tem coisa bonita. Diogo contava que para ele o Zattar foi muito bom, e pro Pinhão também. Dona Raquel e Dona Francisca concordaram. É, foi muito bom. Como poderia ser assim, se um parente deles havia sido morto por homens relacionados à madeireira? E tudo que Francisca havia sofrido por causa dos pistoleiros? Parecia estranho, mas é justamente esse paradoxo que marca as falas de muitas pessoas que viveram nos arredores da Zattarlândia. Depois de falar isso, Diogo disse de sua admiração por Miguelzinho, filho de Miguel Zattar 14 , seu herdeiro e atual presidente da empresa. O 14
Miguel Zattar, um dos filhos e herdeiros de João José Zattar, é relembrado como o dono, o chefe majoritário da empresa, aquele que a administrava e que respondia por ela, enquanto era seu presidente. Após a sua morte, sua biografia, unida à história das Indústrias João José Zattar S/A do ponto de vista dos madeireiros, foi escrita
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problema eram os velhos, os que já morreram. E também muito do que acontecia por ali, disseram Diogo e Francisca, o próprio Miguel Zattar não sabia. Eram os gerentes e administradores que pintavam, que encheram os bolsos trabalhando na empresa, desviando dinheiro. De cada carga de mil reais que vendiam, pegavam trezentos para eles. Dona Francisca lembrou dos guardas que lhe tomavam sua erva-mate, e de uma vez em que confrontou o atual presidente da madeireira, que veio até sua casa questionar-lhe sobre a erva e o pinhão. Ela lhe falou de tudo o que havia sofrido por intermédio da morte do marido, e disse-lhe que precisava trabalhar. Acabou por dar um conselho ao dono da empresa: E o senhor preste atenção, se esses guardas cuidam do de vocês ou do deles! Seu Diogo relembrou, ainda, que a questão das terras tinha a ver com outras pessoas, como o já citado Olímpio Esmério, corretor imóveis que teria intermediado a “compra” de terrenos não-escriturados e de sua posterior venda para a firma. Mas agora vai acabar a firma aqui, Diogo e as mulheres começaram a comentar. O Zattar está mais interessado no que ele tem fora, no Mato Grosso, na Bolívia e no Paraguai, diziam meus interlocutores. Quando iniciei meu trabalho no município, ainda havia, no local do reduto madeireiro, várias casas de madeira que deram lugar aos escritórios e armazéns da firma. Contudo, elas permaneciam fechadas. Na última vez em que passei pela Zattarlândia, essas construções antigas também haviam sido destruídas. Permanecem presentes, porém, as casas de alguns antigos funcionários, assim como a igreja e a escola, onde estudam todas as crianças da região, inclusive as que vivem nos acampamentos do MST. Na conversa com seu irmão, Dona Francisca não questionava as falas de Diogo, mas respeitava suas opiniões, e agia como se estivesse de acordo com elas. Ali, abria-se espaço para uma outra forma de falar da história do Zattar, que deixava para outros homens ligados à madeireira a responsabilidade pelas negociações de terras e pelos tormentos vividos pelos moradores, e diferenciava as gerações de donos da empresa, colocando nos antigos o problema. Essa forma de culpabilizar os feitos de uma empresa, onde o problema é colocado nos “mediadores” entre os funcionários e o patrão, foi notada por Sigaud (1975) no contexto das usinas de açúcar em Pernambuco, onde o proprietário era sempre poupado em detrimento do “empregado”, aquele que executava ordens sobre os “trabalhadores”/ “moradores”. No caso das narrativas de Seu Diogo e de Dona Francisca sobre o tempo do Zattar, existem diferentes concepções sobre quem é o “patrão”, quem obedece a quem. Seu Diogo e Leonardo recebiam ordens do Zattar – mais concretamente de um gerente que administrava a pelo jornalista Nilson Monteiro, em obra intitulada “Madeira de lei: uma crônica da vida e obra de Miguel Zattar” (2008).
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Zattarlândia em Pinhão -, enquanto Francisca não recebia ordens de ninguém, como ela mesma ressaltou. Além disso, a responsabilidade pelos feitos do Zattar é transferida por teias de relações entre inúmeras pessoas, as quais fazem da figura o Zattar uma espécie de nó que une sujeitos díspares. Eram antigos proprietários de terras que vendiam terras para o madeireiro João José e convenciam outras pessoas a fazerem o mesmo, eram pessoas que viviam na área urbana do município e negociavam terras para a empresa, eram os gerentes que enriqueceram às custas da venda dos produtos que desviavam da madeireira, eram os guardas que gostavam de matar gente, os guardas que roubavam do Zattar, e por aí vai. O atual presidente era caracterizado como um herdeiro dos feitos de seus antepassados, mas que não era responsável sobre eles. Pelo contrário, ele era tido, em certas circunstâncias, como alguém que quer resolver a questão das terras e ir tocar seus negócios fora. Agora, difícil é o INCRA resolver. Ademais, é notável que pessoas que fazem parte de uma mesma família tenham posições e experiências distintas em relação aos conflitos com a empresa, as quais podem unilas ou afastá-las dos problemas com o Zattar e das lutas por terras. É notável, ainda, como elas lidam com essas perspectivas diferentes em suas conversas. Seu Diogo jamais reclamaria da firma. Ele é um bom funcionário, e tem hoje uma vida tranquila como aposentado. Trabalhou muitos anos no mato e possui boas relações com todos os homens de armas que conheceu. São essas boas relações que o ajudaram a ter hoje sua terra, sua casa, seus filhos criados, seu sossego. Francisca não contesta isso. Ela respeita o irmão. Não o sobrecarrega com problemas que não considera como os dele, ainda que no passado, com a morte do marido de Francisca, pudessem ter sido problemas da família da esposa de Seu Diogo, Dona Raquel, irmã de Leonardo, cujos outros irmãos também trabalhavam pro Zattar. Um Zattar que, como fica explícito na conversa, era muitos, e abrange diferentes tempos e relações. Nas narrativas de Dona Francisca, dos seus parentes e de outras pessoas que conviveram com os homens de armas da madeireira, conforma-se uma linguagem para se falar sobre o conflito de terras com o Zattar e seus guardas. Essa linguagem, por sua vez, vincula-se aos modos com que as relações com esses agentes são vividas cotidianamente, e a dinâmicas de aproximação e de afastamento. A memória sobre a empresa e os meandros do conflito são, nesse sentido, práticas morais, performatizadas por meio da narrativa ou de outras ações cotidianas, como a própria observação do ambiente e dos vizinhos. Tomando os termos de Lambek (1996), para o qual as práticas de memória remetem a uma ética, enquanto intersubjetividade, diálogo e engajamento das pessoas umas com as outras, é interessante observar que no caso de suas recordações das violências que marcam o conflito de terras, os
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moradores do interior modulam suas relações tanto com aqueles para quem contam suas histórias, quanto com as diferentes pessoas que delas participam. É nesse sentido que as narrativas sobre a madeireira e seus agentes nos levam menos a regras de comportamento, e mais a formas de “problematização”, enquanto matéria de preocupação, reflexão e cuidado entre pessoas, e a diferentes maneiras de “conduzir-se moralmente” (FOUCAULT, 2010) frente às encruzilhadas do conflito de terras.
1.3 Violências, narrativas e silêncios Além de distanciar a postura de Leonardo da de outros guardas e pistoleiros do Zattar, Francisca afasta-se das atividades de trabalho do marido, realizadas em lugares longínquos, ou em caminhadas cotidianas para outras áreas de moradores. Na mesma entrevista em que fala de como o trabalho de Leonardo a afetava, ela levanta sua desconfiança sobre os homens de armas e os silêncios do marido sobre as tarefas que desempenhava: – Que a gente sabe assim, a gente tinha desconfiança de muita coisa, que eles não contavam nada também. O meu marido trabalhava com eles, e o meu marido nunca falou nada assim, de violência que ele visse eles fazerem, nada. – Não comentava nada dentro de casa? – Não. E daí de um ponto em diante, sabe, eles levavam, ele ficava até quinze dias assim, nas áreas, aqueles assentamentos […]. Que tinha uns sem-terra lá, foi em noventa, parece que. Acho que foi em 89 pra 90. Oitenta e nove. Que daí eles ficaram acho que uns dois anos lá, atendendo aqueles sem-terra, e ele tirando madeira e os sem-terra lá. Ele ficava até um mês longe de casa. Depois já nem vinha. O prefeito era o Darci Broline, né, e a gente escutava no rádio aquela barbaridade, que diz que davam muito tiro nos sem-terra, faziam muita violência assim. Daí o Darci Broline15 foi e retirou os sem-terra de lá. Pegou e tirou, não sei pra onde é que ele levou. Daí eles pararam com aqueles serviços lá, dali a um mês mataram ele. O meu marido.
Ao contar sobre o trabalho do marido, Francisca dialoga com uma narrativa mais ampla sobre violência, elaborada por diversos posseiros que viveram os ataques da madeireira, e relacionada ao início dos anos 1990, momento de organização do movimento social contrário à Zattar e de publicização do conflito de terras. No relato dela, a violência diz respeito às investidas dos pistoleiros nos assentamentos dos sem-terra, distantes do local onde Francisca vive. Assim, além de fazer seus trechos, percorrendo áreas do Zattar onde havia moradores, Leonardo era chamado para passar certos períodos nos assentamentos, onde havia 15
Darci Broline é relembrado por Dona Francisca e sua filha, Elena, como um prefeito que ajudou os sem-terra, que de algum modo os defendeu de serem mortos pelos pistoleiros.
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conflitos mais agudos em relação à ocupação e propriedade da terra. Nesses casos, ele não ia somente para atender, mas também para tirar madeira, o que demonstra que os guardas acumulavam funções diferentes. Esses assentamentos onde ele trabalhava, citados por Francisca, eram áreas em processo de desapropriação junto ao INCRA. Tratavam-se de terras desocupadas, propriedade de outra tradicional família de fazendeiros do município. A madeireira, entretanto, havia comprado diversos pinheiros naquelas áreas, e supostamente reclamava seu direito sobre as árvores, que estariam sendo cortadas pelos novos ocupantes. Foi com o argumento de coibir o roubo de madeira que a empresa justificou seus atos à Comissão Especial da Assembleia Legislativa do Paraná, organizada para investigar os conflitos de terras em Pinhão. Essa justificativa está registrada em Ata de reunião realizada pela Comissão no dia 27 de novembro de 1991, evento que uniu também posseiros, padres vinculados ao movimento social, representantes do antigo Instituto de Terras, Cartografia e Florestas do Paraná (ITCF), dos órgãos federais Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), e o advogado representante das Indústrias Zattar. Naquela época, a violência dos pistoleiros nas áreas ocupadas pelos sem-terra 16 mobilizou Darci Broline, o então prefeito de Pinhão, a assinar junto com o chefe do antigo Instituto de Terras, Cartografia e Florestas do Paraná (ITCF), e com membros da CPT e da AFATRUP, um Ofício endereçado ao Secretário de Segurança Pública do Estado do Paraná, pedindo providências sobre aquela situação. Esse Ofício, enviado em novembro de 1991, foi escrito após a ocorrência de um tiroteio realizado pelos pistoleiros contra a Escola Rural Municipal Nossa Senhora de Lourdes, no momento em que 38 crianças estavam lá dentro fazendo prova. Uma menina de 10 anos foi baleada, e outras duas foram atingidas de raspão. Depois disso, os pistoleiros se dirigiram ao futuro assentamento Cachoeirinha, onde atiraram contra as casas e devastaram a área, cortando pinheiros e imbuias. Nessa ocasião, uma menina que trabalhava na roça com os irmãos foi atingida no abdômen por uma bala de pistola nove milímetros, sobrevivendo após um período de doze dias de internação. A partir daí, os órgãos de defesa dos posseiros produziram uma série de denúncias contra a Zattar, atraindo a atenção da mídia e do poder público, e levando à organização da Comissão Especial de deputados da Assembleia Legislativa do Estado do Paraná, para 16
Os sem-terra em questão eram originários, em sua maioria, de ocupações do MST em municípios do oeste do Paraná, e do município de Cantagalo, sendo poucos os posseiros que se uniram a esses grupos (Instituto Ambiental do Paraná, 1994, p. 8). Eram pessoas, portanto, que vinham de outros lugares em busca de terras da reforma agrária em Pinhão, posteriormente consolidadas pelo INCRA nos assentamentos Faxinal dos Silvérios, Faxinal dos Ribeiros I e Cachoeirinha.
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investigar e buscar solucionar os conflitos de terras em Pinhão e, mais tarde, ao Programa Especial de Regularização Fundiária do Município de Pinhão (ELEPIÃO). Em 1992, fica pronto o Relatório da Comissão Especial. Além do caso do tiroteio contra a escola rural, o documento cita ainda tiroteios e a queima de um paiol, empreendidos por
homens da
madeireira contra uma família de posseiros em outra localidade do município. A Comissão aponta para a “indefinição dominial” das áreas como a principal causa da “violência” vivida pelos acampados e, do lado dos posseiros, são as ações de usucapião e a recusa em assinar os “contratos de parceria” com a madeireira que surgem como motivadores das agressões dos “guardas florestais”. É assim que os deputados denunciam a omissão do poder público perante o caso dos conflitos em Pinhão, e pedem por uma articulação dos órgãos estaduais e federais para a regularização fundiária das áreas, e pela organização de um corpo policial no município, para reestabelecimento da “paz” e da “justiça” em Pinhão17. Por volta de 1994, a madeireira contrata uma milícia, um corpo de quarenta homens fortemente armados, contando com cinco viaturas e um helicóptero, para evitar o “roubo” de madeira e de erva-mate em suas terras. Essa milícia, como lembram os posseiros, tornou-se uma espécie de polícia que garantia as leis da empresa em Pinhão. Nesse período, aumentam as perseguições às lideranças do Movimento, e as invasões desses guardas às residências dos posseiros, de onde levavam ferramentas e utensílios, e amedrontavam as pessoas para que deixassem as terras. Eles também interceptavam colheitas e cargas de erva-mate em caminhões no interior do município, prendendo os seus donos. Diversas foram as denúncias feitas pela CPT a essa situação, que levaram inclusive a uma reunião entre o arcebispo de Curitiba, Dom Pedro Fedalto, Miguel Zattar, e representantes dos posseiros, na qual o presidente da madeireira se comprometeu a desmontar sua “Guarda Patrimonial”. Em agosto de 1994, foi assinado um Termo de Compromisso entre a madeireira, os posseiros e o Governo do Paraná, onde novamente a empresa garantiu o desmantelamento dessa “Guarda”. No mês seguinte, a CPT enviou uma nova carta ao então governador Roberto Requião denunciando a permanência dos “guardas” e a continuidade de “atos de violência” contra os posseiros, além de ameaças contra os padres que atuavam na causa18. Ainda naquele ano, ocorreu em Pinhão, com o tema “Ocupai a terra e nela habitai”, a 9ª Romaria da Terra,
17 PARANÁ. Assembleia Legislativa. Relatório da Comissão Especial da Assembleia Legislativa do Paraná, organizada para verificar os conflitos fundiários no município de Pinhão. Curitiba, s/d, 1992. 18 Essas cartas e ofícios da CPT se encontram no arquivo da AFATRUP, localizado em sua sede, em Pinhão.
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evento católico que reuniu doze mil pessoas de todo o estado e que chamou ainda mais atenção para as causas do Movimento de Posseiros19. Antes disso, em julho de 1994, foi oficialmente decretada a falência da empresa Indústrias João José Zattar S/A20. Segundo os depoimentos colhidos por Monteiro (2008, p.163), biógrafo de Miguel Zattar, a empresa se endividara fortemente com a construção de seu parque fabril no município vizinho de Guarapuava, em 1975. A partir daí, uma série de más escolhas realizadas por seus administradores, os desperdícios e dívidas, as mudanças no mercado, e os desarranjos entre os herdeiros do patriarca João José Zattar e seus sócios, levaram à desestruturação da empresa. Isso não impediu, como se percebe, que seus guardas permanecessem atuando no interior de Pinhão. É aos atos cometidos pelos agentes da madeireira contra os sem-terra, nas áreas que hoje são assentamentos, que Dona Francisca se remete quando fala da violência, da barbaridade cometida pelos homens que trabalhavam com seu marido, no início dos anos 1990. Essa violência, contudo, é deslocada a um eles que lhe permanece estranho, apesar de familiar, já que para ela Leonardo trabalhava com esses agentes perigosos, mas era diferente deles. Para Francisca, seu marido nunca fez mal a ninguém, e estava naquele serviço somente pelo salário, porque precisava. Os silêncios de Leonardo sobre a violência se somam à distância de Francisca das áreas em que ele trabalhava, e de onde depois já nem vinha. As notícias que vinham pelo rádio falavam da barbaridade, de muito tiro. Algo de terrível que acontecia mas que não era dizível, e que se encontrava em outros lugares, aqueles para onde os homens de armas se deslocavam para fazerem seus serviços. Em 2012, realizei um trabalho em um reassentamento de pessoas que foram afetadas pela construção da Usina de Salto Segredo21. Lá, conheci famílias de reassentados de Pinhão, a quem acabei perguntando coisas que tinham a ver com meu trabalho de campo no município. Uma moça com quem conversei é filha de outro antigo guarda do Zattar. Ela contou que foi um pouco antes de morrer que seu pai começou a falar do que aconteceu durante seus anos de homem de armas. Contava chorando, ela lembrou, na cama no hospital. Uma das histórias foi que ele viu um dos seus colegas matar uma criança dos sem-terra na sua 19
As Romarias da Terra ocorrem em todo o Brasil, e reúnem milhares de moradores de áreas rurais. A maioria desses eventos é organizada pela CPT. Voltadas aos trabalhadores do campo, as Romarias tem como objetivo chamar atenção para a situação dessa população e produzir denúncias sobre quadros de exploração e de opressão. Atualmente, elas são chamadas de Romaria da Terra e das Águas. 20 PARANÁ. Diário da Justiça. Edital de Decretação da Falência da Empresa Indústrias João José Zattar S/A, Curitiba, 7 de julho de 1994, p. 10. 21 Conhecida como Usina de Salto Segredo, a Usina Hidrelétrica Governador Ney Aminthas de Barros Braga localiza-se entre os municípios de Mangueirinha e de Reserva do Iguaçu, o qual foi desmembrado de Pinhão em 1995.
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frente. O menino ia caminhando com um balde na mão, levando água para casa. O homem atirou na criança pelas costas. As agressões contra crianças estão no centro dos atos extremos cometidos pelos empregados da madeireira, e dão base aos discursos dos militantes dos movimentos sociais e da Comissão Pastoral da Terra em suas muitas cartas e ofícios escritos aos órgãos públicos, para denunciar a violência que ocorria em Pinhão. Contudo, nos relatos de quem vive o conflito de terras, essas agressões extremas contra crianças estão envoltas em muitos silêncios, em falas que reconhecem que isso tudo aconteceu, mas que não esmiúçam os sujeitos que cometeram e os que sofreram esses atos. As narrativas sobre as agressões em certos momentos invocam distâncias físicas – como é o caso da fala de Francisca sobre a violência -, construindo um conhecimento enevoado, que entra no rol do diz que, como as notícias que chegam pelo rádio. Ao serem perguntadas sobre os conflitos de terras envolvendo a madeireira e a população rural do município, as pessoas – sejam elas moradoras do Pinhão ou do interior - geralmente baixam o tom de voz e lançam a expressão foi feio... Essas reticências, por sua vez, costumam ser seguidas por frases como: morreu muita gente..., também reticentes. Há quem vá um pouco além, e diga que o Zattar mandava matar gente, que queimava casas, que pessoas eram atiradas de caminhões em movimento para terem seus pescoços quebrados, que até mulheres e crianças eram mortos, para depois serem enterrados de trator, de qualquer jeito. Todas essas mortes e atrocidades, contudo, adquirem um tom de congelamento nas narrativas, de modo que elas não são esmiuçadas em termos de eventos sequenciais, e os mortos acabam não sendo nomeados. É interessante, nesse sentido, que a própria Francisca use o termo violência, que ouvi tão pouco durante meu trabalho, para expressar algo que sabia que acontecia no serviço de seu marido, mas que não era ele quem contava, e sim a rádio. Outra vez, assistindo ao noticiário em casa, Dona Francisca comentou comigo: Você veja o tipo que ‘tão essas cidades, né? É muita violência! A notícia era sobre tiroteios entre policiais e traficantes no Rio de Janeiro. Nesse caso, em particular, a violência estava novamente distante de Francisca, e relacionada ao lugar onde eu vivo. Aos poucos fui me dando conta que, se violência era um termo comum nas cartas, ofícios e relatórios de pessoas vinculadas ao Movimento de Posseiros e de instituições que atuaram na busca por soluções ao conflito fundiário em Pinhão, nas narrativas das pessoas que viveram o conflito, a palavra aparecia pouco. E quando surgia, era para invocar um distanciamento característico de frases como foi feio..., morreu muita gente..., as quais acabavam por se desdobrar em narrativas que não detalhavam essas mortes, mas
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desenvolviam-se pelas histórias de jagunços e pistoleiros que foram mortos por pessoas mais fracas que eles, ou em brigas de bares e em vinganças pessoais (AYOUB, 2014b). Uma das histórias mais conhecidas, e que se tornou uma espécie de fábula, de narrativa moralizante dos posseiros, foi a morte de Paulão. Ele era tão ruim, e tão prevalecido, que achava que poderia mandar em todos, pois nunca aconteceria nada com ele. Quantos esse homem matou! Um dia, Dona Ana, senhora que tinha seus quarenta e poucos anos na época, cansou-se das perturbações de Paulão. Há tempos ele e os outros guardas tentavam tirar ela e seus vizinhos de cima da área. Chegaram até a matar um jovem rapaz que estava carpindo o terreno onde vivia com sua família, com o intuito de expulsá-los de lá. Um dia Paulão foi incomodar Dona Ana e ela não se deteve. Pegou a espingarda e acertou dois tiros no homem, que morreu na hora. Tanto ele atentou que acabou morrendo pela mão de uma mulher! Nunca que ele ia pensar que isso ia acontecer! O mais prevalecido morre pela mão do mais fraco – eis algumas frases que sucedem as narrativas sobre a história da morte do pistoleiro. Para os posseiros que contam essa história, Paulão teve o fim que merecia, já que ele abusava de seu poder. Deus que me perdoe, mas a Dona Ana fez um favor pra nós! - disse-me certa vez uma moça, cuja família também foi muito perseguida por Paulão. Dona Francisca e suas familiares me contaram, ainda, que quando correu a história de que Paulão havia sido morto por uma mulher, muita gente achou que havia sido ela quem matara o pistoleiro, já que todo mundo sabia o quanto ele a incomodava. A morte de Paulão me foi contada por diversas mulheres que vivem nas terras da madeireira e que sofreram as ameaças e vigilâncias de seus homens de armas. Várias delas não chegaram a conviver com esse pistoleiro em particular, e não possuem proximidade com Dona Ana. É como se, ao representar um certo fazer justiça por parte de uma pessoa em condição de mais fraca e ameaçada, Dona Ana fosse representativa de cada uma que conta sua história, e que se identifica com a experiência de ameaças e violência na busca por permanência no território. Nem sempre, porém, as relações entre Dona Ana e Paulão haviam sido conturbadas. Paulão era casado com uma prima do marido de Ana, e foi sua testemunha e padrinho de casamento. Havia, nesse sentido, parentesco entre essas famílias, que tinham laços de boa consideração e amizade, como o apadrinhamento demonstra. Foi a própria Dona Ana quem me disse isso quando a conheci e ela contou sobre a morte de Paulão, em meio a histórias sobre as ameaças que ela e sua família viveram. O marido dela, José, também estava na cozinha conversando conosco. Em alguns momentos, ele interrompia Dona Ana e buscava falar do que havia acontecido com ele. Mas naquela conversa específica, ela regia o assunto.
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Era ela, enfim, quem detinha a autoridade do tema, enquanto a mulher que matou o pistoleiro. Dona Ana disse que há dezenove anos atrás é que a coisa ficou feia. Foram apertando nossos vizinhos e muita gente foi embora. Tinha, porém, um velho que foi resistindo e conseguiu ficar, mesmo com todas as tentativas dos guardas de tirarem ele de lá. E assim foi até que ele morreu. Mas os jagunços não desistiram de tomar suas terras e permaneceram ameaçando o filho do velho, que lá vivia com sua família. Depois de um tempo, o filho do velho saiu de casa com sua esposa. Eles foram passar uns dias em outro lugar para tratar de outras coisas. Deixaram seu filho, rapaz de uns vinte anos, cuidando da casa. Numa tarde, ele estava carpindo o terreno quando vieram os jagunços, e, junto com eles, Paulão, que era padrinho do garoto. O rapaz pediu pelo amor de Deus padrinho, não me mate! Diz que implorava, que saiu correndo, gritando padrinho não me mate, mas Paulão foi atrás e deu um tiro na perna dele. O tiro quebrou a perna do rapaz, que caiu numa grade já dentro da posse de Dona Ana. Assim que o garoto caiu, Paulão deu mais um tiro, matando o afilhado. Tinha um jagunço que estava com eles que já tinha matado cinquenta e dois, mas essa foi a única vez em que ficou com pena. Após a morte, quando a família estava guardando o corpo do guri na escola, os jagunços queimaram a casa do rapaz22. A família dele, que perdeu tudo que tinha, exceto uns porquinhos, foi embora para Guarapuava com os bichos. Depois dessa história, Seu José interrompeu Dona Ana para dizer que os jagunços começaram a ameaçá-lo, e que ele tinha que andar armado. Uma vez veio até um homem em casa, falar para ele não sair, porque Paulão e os outros jagunços queriam matá-lo. Mas logo Dona Ana tomou as rédeas da história de novo. Contou que uma vez ela estava no paiol, trabalhando, quando Paulão e seu bando chegaram e começaram a judiar dela. Paulão esfregou a arma na cara dela, dizendo que para a arma dele Ana era uma pombinha, e José, um jacu, e que se ela desse parte disso na polícia ela ia virar pombinha na arma dele. Os jagunços queimaram o paiol. Tempos depois, Dona Ana estava andando em suas terras com um garotinho, que ela criava (ele não era seu filho biológico, mas sim de criação), quando viu Paulão e os jagunços que trabalhavam com ele pintando sua cerca. Ela disse: o que vocês estão fazendo pintando essa cerca velha? Deviam de ter vindo bem antes, não agora que a cerca já tá podre! Por isso, Paulão ameaçou amarrá-la e fazê-la assistir eles pintarem a cerca. Ana e o menino saíram correndo. Ela conta que ficou com medo que fizessem ao garotinho o que haviam feito 22
Guarda é também o nome dado aos velórios, de modo que guardar o corpo significa velá-lo, realizar o ritual de despedida da pessoa falecida.
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com o filho do vizinho, morto pelo próprio padrinho. Correu para dentro de casa, pegou uma espingarda que disse que nem funcionava direito, voltou para perto de onde os homens estavam e, de trás de uma árvore, deu dois tiros em Paulão. Um acertou na canela e o outro no coração, Ana contou, orgulhosa. Ela teve que passar dois dias no mato, escondida da polícia, que havia procurado ela em sua residência e na de sua filha, e revirado as casas. Enquanto isso, diz ela, a vizinhança se ria do ocorrido: o pistoleiro que foi morto pelas mãos de uma mulher. Diz que o velório de Paulão, numa funerária do Pinhão, estava vazio, e que um grileiro de terras que costumava contratar os serviços do pistoleiro chorou aos montes. Dona Ana acabou passando 120 dias presa, mas a maior parte deles em casa, porque estava doente. Quando a conheci, ela estava aguardando seu julgamento. Recentemente, ela foi absolvida pela morte de Paulão, tida como realizada “em legítima defesa”. Se, por um lado, muito do que se fala sobre as agruras dos conflitos de terras acaba restrito a expressões como morreu muita gente..., a maior parte das narrativas sobre situações ocorridas ao longo dessas disputas adquire o tom pessoal de quem conta a história, e seu formato assemelha-se ao dos causos contados cotidianamente, nas prosas durante minhas visitas às casas, ou nas conversas com as próprias famílias que me hospedavam em seus lares. Em sua análise sobre a prosa do povo dos Buracos, Minas Gerais, Carneiro (2015) discute como o “causo” é um “fato”, uma experiência que tanto pode ser particular ao narrador quanto a alguém com quem o narrador teve contato. Forma narrativa que se faz nos próprios modos de viver a experiência, o causo circula e assim vai sendo permanentemente composto, por uma série de versões. Contada por mulheres, a morte de Paulão se torna uma forma de elas falarem dos sufocos que viviam, de dizerem dos seus sofrimentos e visões de justiça frente aos homens de armas da empresa, de tal modo que se apresenta como parte de sua experiência pessoal, daquilo que elas viveram ou sabem que outras pessoas viveram. É algo que precisa ser contado, diferentemente das coisas que não se diz, e o que permite isso é a própria ironia contida nesse acontecimento: o homem, que se diz valente, morre pelas mãos do mais fraco, uma mulher. É isso que singulariza a história e a torna menos feia, já que a agonia do morto é tida como aquilo que ele mereceu, e que quem mata adquire um caráter heroico, prova-se forte e livra inúmeras pessoas do sofrimento causado por Paulão. Dona Ana, em sua própria narrativa, também traz sua experiência pessoal, que envolve não só as dores dela, mas também as de seus vizinhos, que são o ponto de partida de sua história, a introdução que nos envolve na atmosfera de tensão e de morte que marcava sua vida, e a centralidade de Paulão nesse cenário. A ruindade e o descomedimento do pistoleiro
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são a base da história de Ana. Através dos exemplos daquilo que Paulão era capaz de fazer, ela não precisa justificar porque matou o homem. Ele mesmo parece justificar sua morte. Ele matara cruelmente o próprio afilhado, desarmado e indefeso em meio ao mato, alguém que, enquanto padrinho, deveria proteger. Durante o velório do menino, a casa da família do rapaz foi queimada, episódio que fortalece a imagem de excesso de brutalidade dos homens de armas da madeireira, incapazes de respeitarem o momento sagrado de dor da família e despedida do rapaz falecido. Ao perseguir Ana, em seu paiol, Paulão a desumaniza por completo, colocando-se como caçador frente à caça: Ana seria uma pombinha. Ocorre que essa sequência de acontecimentos acaba por tornar o próprio Paulão, que a princípio era meio parente de Ana e de seu marido, como alguém menos humano, como se ele não fosse gente, na medida em que não reconhecia as pessoas com quem tinha algum tipo de vínculo de parentesco, não respeitava ritos, tratava os outros como se fossem caça. A narrativa de Ana, assim, produz o pistoleiro como “outro”, que ultrapassa limites de comunicação, conhecimento e convívio, alguém que deve, enfim, ser morto. Em Pinhão, contar causo não se configura uma situação específica em que pessoas se reúnem em torno de outra, que conta suas histórias para diversos ouvintes. Tratam-se de momentos no desenrolar da prosa, nos quais o assunto comentado abre espaço para a narração de acontecimentos e da vida de pessoas particulares. Nesse sentido, nem sempre o início e o fim do causo são efetivamente marcados, já que ele pode emendar-se em outro assunto que estava sendo comentado, e dar continuidade a outro, distinto mas próximo do que estava sendo dito. Há causo de planta, sobre as lavouras e hortas, causo dos antigos, sobre a vida dos antepassados, causo de visagens, sobre assombrações, causo da Joaninha, sobre algo que aconteceu com a Joaninha. É no meio da prosa, portanto, que certas histórias são contadas, e ganham as intervenções das diferentes pessoas que participam da conversa, fazendo perguntas, tecendo considerações, trazendo novos detalhes ao causo. Por outro lado, o causo também assume uma função proverbial, tal qual na expressão como diz o causo, que é seguida por um ditado. Como diz o causo, não presta arremedar barulho de bicho quando a gente ‘tá andando no mato. Pode ser que o bicho arremedado resolva vir atrás de você. Uma fala como essa pode, por conseguinte, puxar a história de uma pessoa que foi perseguida por animais no mato. Como contar causo é parte do prosear realizado nas visitas e nos encontros entre conhecidos, e também aquilo que possibilita que as pessoas tomem conhecimento umas das outras, muito do que se fala sobre as agressões e ameaças do tempo do Zattar e sobre a vida dos homens de armas adquire essa forma narrativa. Como essas histórias são experiência, e
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conjugam, enquanto narradas, as experiências de outros ouvintes, que por sua vez também levarão o causo adiante, essas narrativas são marcadas pela familiaridade, e performatizam o tom das relações pessoais. Fala-se do que se conhece, daquilo que é familiar, que aconteceu consigo ou com pessoas próximas de si, e é justamente a proximidade e os modos de observação e conhecimento que caracterizam essas vizinhanças que fundamentam as narrativas. Por isso, quando falam dos guardas e das agruras do conflito de terras, é comum que as pessoas contem sobre o que aconteceu com elas, ou com pessoas que eram de seu conhecimento. Se em certo nível os guardas, jagunços e pistoleiros invocam a dureza e a violência do esquema madeireiro de apropriação territorial, em termos de causo, de história contada, eles são percebidos a partir do convívio cotidiano e das relações que possuem com o narrador ou com pessoas próximas a ele, que lhe contaram outras histórias. Muitas dessas narrativas transmutam a violência do conflito, aquilo que não é dizível sobre ele, em histórias que falam sobre as relações de proximidade entre as pessoas e esses homens de armas, e que tomam como centrais certas categorias que constituem o idioma dos conflitos e das agressões cotidianas, tais como bronca, briga, encrenca, vingança. Apesar de haver diferenças entre as histórias em que o narrador toma uma certa distância da violência para falar que morreu muita gente..., as histórias em que os pistoleiros recebem a morte da qual são tomados como merecedores, e as histórias em que as pessoas efetivamente falam de sua experiência pessoal, todas essas formas narrativas podem ser compreendidas em relação umas às outras (AYOUB, 2015). Os causos que falam de jagunços que se mataram em brigas de bar, ou que falam de experiências de proximidade e amizade com os homens de armas cujo principal trabalho era demarcar que as terras agora tinham um novo dono, demonstram como as experiências mais atrozes e trágicas são incorporadas e subsumidas nesses outros meandros do cotidiano da convivência com a empresa, através de seus agentes. A violência que caracteriza esses homens e seus trabalhos é assimilada a relações de vizinhança e parentesco, e aos modos com que as pessoas se constituem e se engajam no conflito fundiário. As histórias que se baseiam na familiaridade, e em uma certa compreensão do trabalho desempenhado por esses guardas (i.e., ele estava no emprego só pelo salário, não para fazer mal a ninguém; aquele era o trabalho dele, ele só atendia ordens), não são paralelas àquelas que remetem ao abuso e às mortes executadas pelos pistoleiros. Ao contrário, esses distintos aspectos das relações entre as pessoas e os homens de armas são considerados em seu conjunto, dando a forma e o tom das narrativas. Compreendi que eu precisaria conhecer bem as pessoas que viveram essas agressões,
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e estar com elas por mais do que uma visita para quem sabe poder ouvir suas histórias. Como muitas vezes me foi dito sobre as mortes que ocorreram ao longo do conflito de terras – isso não é coisa que se conte de primeiro. E muito disso é coisa que não é bom dizer. Pois essas experiências trágicas não existem num passado que se encerrou. Sua permanência no presente se expressa em sentimentos como o medo, relacionado ao temor de que o Zattar vai voltar, e ao conhecimento que as pessoas possuem sobre os homens de armas, concebidos como pessoas constituídas por diversas relações de parentesco, amizade, vizinhança. E se muitos desses pistoleiros morreram, alguns ainda estão por lá, junto com seus parentes, relacionandose de inúmeras maneiras com inúmeras pessoas, inclusive aquelas que um dia eles vigiaram. Como ressaltei, quando contadas como causos, as mortes são conformadas pelas relações e experiências pessoais dos próprios narradores, que delineiam nomes, lugares e eventos, e promovem avaliações sobre os comportamentos, a vida e o caráter das pessoas que fazem parte da história. É assim que, quando se afastam do diz que, para entrar nos caminhos do vivido, essas falas podem ser problematizadas, pelos seus narradores, como uma espécie de testemunho que implica um envolvimento, um ser parte daquilo que se diz. Seu Lourenço foi uma das pessoas que me esclareceram esse ponto. Estávamos a tarde toda conversando sobre a história de sua família, uma das mais antigas da região próxima à Zattarlândia. Quando perguntei como era a Zattar, ele desandou a dizer sobre as atividades econômicas da empresa, que lidava com de tudo um pouco, madeira, erva, gado, porco, carneiro. Porém, quando tentei entrar no assunto dos problemas com a empresa, ele desconversou. Eu não me envolvo, ele afirmou, e a seguir falou que poderia se complicar se falasse sobre o assunto. É como se a fala sinalizasse a presença do sujeito que narra e, por conseguinte, sua participação no caso. Não somente Seu Lourenço, mas outras pessoas falavam que não se envolviam quando eu perguntava sobre os homens de armas da empresa. Elas construíam, desse modo, a distância entre elas e as ações da madeireira. Nas localidades do interior, as pessoas vivem aos olhos umas das outras, e é isso que as torna conhecidas e reconhecidas como parte desse universo, e que sustenta a produção de um saber mútuo sobre pessoas, famílias, lugares e eventos. Esse saber é permanentemente produzido no cotidiano através das observações que as pessoas fazem umas sobre as outras e as maneiras como repassam esses conhecimento. Essas informações, por outro lado, podem ser vistas como mensagens que envolvem simultaneamente solidariedade, amizade e uma espécie de contaminação das relações, já que toda comunicação é uma troca, e enquanto tal, contém sementes de cooperação e de antagonismo (BAILEY, 1971). Dizer o que se sabe é também uma forma de comprometer-se, de envolver-se, de testemunhar. E saber, por si só, já
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é muitas vezes perigoso. Lembro-me de Justina, senhora de idade avançada, dizendo-me que recomendava a seus filhos que não fossem em festas e bailes, pois caso ocorresse alguma briga nesses locais, seria possível acabarem envolvidos nessas disputas, ou depois serem chamados para dar algum testemunho sobre elas. Se você não é visto, não é lembrado – dizia Justina. Há, portanto, uma ideia de que saber de algo, ou ver pessoalmente uma situação de desentendimento e de agressão, já é, em si, perigoso. Nessas narrativas sobre agressões, ameaças e mortes, o silêncio adquire diversas faces, umas tendo a ver com as outras: não se fala nisso porque é coisa feia, coisa que não se diz; não se fala porque isso não é coisa que se conte de primeiro (para uma pessoa que se está encontrando pela primeira vez); não se fala porque não se sabe; não se fala porque não se compreende; porque tem medo de retaliações; porque não se envolve, e faz-se uma escolha por não abrir espaço para tornar-se parte de uma situação. A proximidade com os envolvidos também constrange as falas, já que alguém pode saber do que foi dito, não gostar, e vir querer tirar satisfação. E, além disso, há um tempo certo para falar determinadas coisas, um tempo em que não é mais possível ser chamado a responder pelo que falou. O silêncio, portanto, aponta para além do indizível nessas situações e narrativas, e mostra-se como atividade produtiva, já que é também por meio dessas formas de silenciamento que as mortes e agressões são problematizadas nas histórias e na vida cotidiana, possibilitando que as pessoas que ameaçam, as ameaçadas, as que tiveram seus parentes mortos e as que sabem o que foi que aconteceu, continuem convivendo umas com as outras. Ao discutir a relação entre experiências passadas de violência e o presente, Das (2007, p.76) reflete sobre como a memória é corporal, mesmo quando não há casos de agressão física. Isso porque a violência altera justamente os modos de as pessoas estarem umas com as outras, trazendo, na forma de um “conhecimento venenoso”, possibilidades de traição para as relações mais íntimas e cotidianas, e colocando-as em risco. Na medida em que a atuação madeireira abrangia diretamente as terras e as casas dos moradores do interior de Pinhão, e que seus homens de armas moravam nas localidades que vigiavam e tinham relações de parentesco e de amizade com seus vizinhos, essas relações foram afetadas por uma atmosfera de desconfiança e de medo, já que poderiam trazer riscos para dentro das casas das pessoas. Esses riscos e desconfianças, por sua vez, inscrevem-se nos modos de convívio e de produção de vínculos, e nas maneiras com que os sujeitos se observam e se reconhecem mutuamente.
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1.4 A morte de Leonardo: termos da trama Depois que o prefeito Darci Broline tirou os sem-terra da área de conflito com a madeireira, Leonardo voltou para casa, e continuou a desenvolver seu trabalho por aqueles lados do município. Ele foi morto num dia de trabalho, em que parou para assistir uma carreira, uma corrida de cavalos, na Zattarlândia. Foi lá que ele encontrou Odair, o homem que o matou, e que Dona Francisca não conhecia. O próprio modo como ela conta sobre a morte do marido revela uma situação estranha, em que Odair estava claramente perseguindo Leonardo para matá-lo, e a quantidade de amigos presentes não foi suficiente para salvá-lo: – Daí ele foi trabalhar, sabe, no domingo, foi ver umas terras de planta do Zattar lá nas roças sabe? Que eles arrendavam assim as roças. E daí foi, era um domingo, passou ali nas carreiras, ali na igreja tinha umas carreiras. Ele chegou lá e esse homem que matou ele tava lá nas carreiras. Diz que desde que ele chegou lá nas carreiras, mas pra olhar né o... – Carreira que a senhora diz é tipo corrida de cavalo? –perguntei para Francisca. – Corrida de cavalo, aham. Daí como ele vinha vindo caminhando pela estrada, chegou lá, pra apreciar aquela carreira. E esse homem tava lá. Desde que ele chegou ele tava perseguindo ele. E ele não tinha encrenca nenhuma com o homem! – Mas perseguindo ele por quê? – Será de certo por alguma coisa que outro guarda do Zattar fez né? E ele queria saber qual é, ele queria se vingar dele. E daí atirou nele, matou ele. – Então quem matou ele trabalhava com ele? – Não. Esse que matou ele nunca trabalhou pro Zattar. De certo que tinha alguma bronca com o Zattar, mas não com ele. Era bronca de certo com o Zattar, mas ele não tinha nada a ver! O homem atirou ele por detrás, deu um tiro na camisa dele, até eu peguei e joguei a camisa na água. Dois tiros assim no ombro dele. Aí diz que ele caiu de bruço, o homem pegou e virou ele e deu um tiro no rosto dele. – Nossa... A senhora tem ideia se eles brigaram ou o que foi que aconteceu? – Diz que eles só discutiram sabe, eles discutiram assim, que o homem tava perseguindo ele. Discutiram e daí a turma atenderam sabe, que todo mundo queria bem ele ali, a princípio ele tinha muita amizade com o povo. Daí atenderam ele, daí quando os homens tavam proseando com ele, assim, o homem atirou ele por trás. Quando ele morreu nem viu que o homem tinha matado ele.
Segundo Francisca, portanto, Leonardo foi perseguido por Odair, que nesse trecho ela não nomeia, chamando-o somente de o homem, esse homem, ele. A perseguição chegou a tal ponto que os dois discutiram e outros homens que estavam por ali, e que queriam bem a Leonardo, tentaram afastá-lo de Odair. Mas ele foi ágil. Sacou a arma e atirou no marido de Francisca pelas costas. Agora, as pessoas que supostamente estavam com Leonardo desaparecem da cena. Odair vira-o de frente, e dá um tiro em seu rosto. Para Dona Francisca, foi uma sorte que os irmãos do marido não estavam na carreira no dia em que ele foi morto. Por sorte, senão ia piorar né? Era mais gente para atirar e vai saber quem mais poderia ter saído sem vida. Tanto eles poderiam ter matado Odair, quanto
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poderiam ter sido mortos por ele ao tentarem ajudar Leonardo. Essa preocupação de Francisca revela também certas concepções sobre como ocorrem as brigas em ambientes públicos, e como elas agregam os familiares e amigos de seus participantes, formando-se, de certo modo, uma coletividade em torno da briga. A morte do marido de Francisca, nesse sentido, é narrada de um modo que mistura vários dos termos, relações e ideias que constituem as histórias de mortes matadas entre homens, sobretudo aquelas que dizem respeito a brigas em bares e festas. A desavença é tida como provocada por um homem que perseguia Leonardo sabe-se lá por quê, pois ninguém tem conhecimento de nenhuma encrenca que eles tivessem. Encrenca é um termo amplamente utilizado para expressar relações de hostilidade entre pessoas, famílias e coletividades 23 . Ela expressa um conflito aberto, reconhecido publicamente, que pode ser originado de alguma agressão prévia, ou pode gerar agressão. Contudo, o termo encrenca é acionado para falar de um amplo leque de situações de desentendimento, que não necessariamente envolvam agressão física ou morte matada. Casais se encrencam por conta de traições e fuxicos; vizinhos e vizinhas se encrencam por causa de água, criação ultrapassando limites de cercas, fofocas, acordos relativos a limites de terras; irmãos se encrencam por causa de partilhas de terras ou outras disputas referentes à herança; homens e mulheres se encrencam por causa de relacionamentos amorosos. É difícil sintetizar que relações e elementos são passíveis de gerar encrencas porque, de fato, a palavra concentra situações de conflito e confusão que podem ocorrer em diversos âmbitos da socialidade, e que seguirão dinâmicas distintas de extensão e retração de acordo com as situações e relações particulares ali entrelaçadas. Se as encrencas entre conhecidos geram apreensão e certas rupturas na convivência, as que ocorrem em família são motivo de extrema apreensão e cuidado, pois podem trazer a morte para dentro de casa, algo a princípio repulsivo. De todo modo, a encrenca tem a ver com o desenrolar de uma bronca, um desentendimento, um ato considerado desrespeitoso, que muitas vezes não se resolve na conversa. Brigas, enquanto discussões que podem levar a agressões físicas e até mesmo mortes, são passíveis tanto de gerar encrencas quanto de serem consequência destas. Muitas vezes, a palavra briga é invocada para se falar de um evento particular de agressão, como deu briga na festa, ou eles brigaram na festa. Assim, brigas podem acontecer em espaços 23
O termo encrenca não é particular ao vocabulário pinhãoense sobre agressões e discórdias, mas é comum ao universo popular brasileiro. No verbete “Encrenca”, de seu “Dicionário do Folclore Brasileiro”, Câmara Cascudo (2012, p.279) define a palavra como: “Complicação, problema confuso, dificuldades, decorrentemente, barulho, briga, motim”. Afirma ainda que há uma corrente que traça a origem do termo a partir do alemão: “Ich bin krank” (eu estou doente), e que foi ouvindo os alemães falarem que estavam doentes que catarinenses começaram a dizer, quando adoeciam, que tinham “uma encrenca”.
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públicos e serem testemunhadas por pessoas que nada têm a ver com os que brigam. Apesar de poder ser entendida como parte de uma encrenca anterior, a briga é um acontecimento que é narrado como espontâneo, decorrente de um encontro infeliz, do estado de embriaguez, da raiva, da perda de juízo. Além disso, o termo briga pode ser acionado para se falar das discussões, desentendimentos e agressões físicas e verbais que acontecem dentro de casa, entre marido e mulher, irmãos, pais e filhos. Diferentes das brigas de homens bêbados em bares, tidas como corriqueiras, essas brigas dentro das famílias, sobretudo as que levam a mortes entre parentes, são tidas como excessos abomináveis, que deveriam ser contidos, e que não poderiam acontecer. A encrenca, nesse ponto da narrativa de Francisca sobre a morte de Leonardo, é questionada como algo que poderia ter a ver com outro guarda do Zattar que queria fazer ou fez algo de ruim para o homem que matou seu marido. Francisca cogita, nesse sentido, a possibilidade de o homem querer se vingar de alguém. Vingança, como bronca, briga e encrenca, é outro dos termos do idioma das agressões e mortes matadas. Trata-se de um arranjo, um ato planejado de punição de uma pessoa culpada por uma morte, por um roubo, ou por alguma ofensa séria, chamada comumente de desaforo, ou de provocação. Nem toda vingança, portanto, é necessariamente motivada por uma morte ou produz outra morte. Ouvi histórias de pessoas que apanharam, que sofreram incêndios em pedaços de suas propriedades, ou que tiveram seus corpos mutilados – dedos e orelhas cortados, por exemplo – por vingança. A vingança surge também como anúncio. Quando há uma morte por tiro ou esfaqueamento, resultante de alguma briga, é comum ouvir dizer que algum parente do morto, em geral um filho dele, jurou vingança em cima do caixão. Nesse sentido, a vingança é também uma expectativa que pode nunca se realizar, mas que se perpetua como uma ideia do que é possível acontecer com quem matou e, por extensão, à sua família. Outro modo de cogitar uma provável vingança é quando alguém próximo ao morto diz que isso não vai ficar assim, sinalizando que haverá uma retaliação a essa morte. Para haver vingança, é preciso que alguém se envolva nesse ato de vingar. Homens que participaram de antigas brigas de família, disseram-me, por exemplo, que eram envolvidos em vinganças (Cf. Capítulo 2). Assim, a própria ideia de vingança define essa modalidade de briga, em que geralmente os pais e irmãos de um morto atacam quem matou, ou seus irmãos, para se vingarem. Isso, por sua vez, pode gerar uma nova vingança, e assim sucessivamente. Outro termo que surge nesse idioma, porém, com menos frequência, é o acerto de contas. Ao usar essa expressão, o narrador deixa claro que há uma encrenca entre os
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envolvidos em uma situação de agressão. Acertar as contas implica planejamento, uso de arma letal e intenção explícita de matar aquele com quem se está encrencado. Porém, o acerto de contas também pode assumir o caráter espontâneo da briga, quando um sujeito encontra outro em algum lugar e lá mesmo busca resolver sua encrenca. Ele pode ser, visto, nesse sentido, como uma modalidade de vingança. Os acertos de contas ocorrem em geral em espaços públicos, como festas, bares, ruas do Pinhão, e estradas. Ao narrar a morte do marido, Francisca se expressa através de vários dos termos que conformam o idioma das agressões e mortes em Pinhão, de modo que cogita que, na ausência de bronca e de encrenca entre Leonardo e Odair, pode ter sido a vontade do último de se vingar de algum outro guarda que tenha motivado sua ação, realizada desse modo contra um sujeito que nada fez para ele. Contudo, essa solução é colocada ao lado de outras, como a possibilidade de que Leonardo tenha sido morto a mando de outros colegas de trabalho. A própria Francisca, nesse sentido, discorre sobre o que potencialmente poderia ter sustentado a ação de Odair, mas não enuncia uma sentença final sobre o caso, deixando ele mesmo em aberto, como se fosse algo a descobrir. Em outra ocasião, Francisca disse que seu marido pode ter sido morto porque sabia de algo que incriminava outros guardas. Que ele havia sido convidado por Paulão para participar de um esquema de roubo de erva do Zattar. Outras pessoas também me falaram de homens que trabalhavam para a empresa mas que acabavam trabalhando para si mesmos – ou seja, roubando o que supostamente seria do patrão ou agindo como se fossem os verdadeiros donos daquelas áreas, desenvolvendo esquemas de corrupção dentro da empresa. Não deixavam os posseiros tirarem erva, mas acabavam pegando a erva dos terrenos do Zattar para si. Tomavam um tanto da madeira derrubada e vendiam por si mesmos. Tiravam e colocavam pessoas das áreas do Zattar como bem queriam. Para Francisca, pode ser que Leonardo não tenha aceitado fazer parte desses esquemas, e por isso o mataram. Numa dessa ele sabia de outra coisa que não queriam que tivesse conhecimento. Dona Francisca mencionou então o nome de um homem que trabalhou pro Zattar e que disse que tem uma coisa muito importante pra contar pra ela, mas que ele só deverá fazer isso antes de morrer. Ela crê que o que ele quer dizer tem a ver com a morte do marido. Outro evento estranho que aconteceu no dia da morte de Leonardo foi que quando Elena, filha de Dona Francisca, veio com o marido, o cunhado e as cunhadas, de carro, para ficar com a mãe depois de saber da morte do pai, os homens que estavam na carreira, bêbados, atiraram no carro. Vinte e sete tiros o genro de Francisca contou na lataria do carro. Como as tantas mortes causadas pelos pistoleiros, das quais não se fala, esse é um episódio
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que permanece reticente. A impressão que se tem é que Odair é somente um dentre tantos homens presentes na carreira que desejavam a morte de Leonardo, e tinham raiva de sua família. Odair, o homem que matou Leonardo, era dos Ambrósios, lugar afamado como terra de onde saíram muitos pistoleiros, e onde brigas de família consumiram muitos homens. Segundo Francisca, Odair já tinha matado pessoas por lá, e depois veio morar para esses lados. Mas ele não trabalhava para a madeireira. Francisca não chegou a conhecer Odair, soube que foi ele quem matou seu marido por causa dos comentários dos conhecidos que estavam na carreira e que tentaram acudir Leonardo. Depois que o marido morreu, ela ficou com muito medo do homem. Nas palavras de Francisca: – Mas eu pra falar bem a verdade eu não conheci esse homem, só ouvi falar! Daí eu já tinha um medo depois que ele matou o falecido. Tinha medo porque o Celso era pequeno né, e piá sai por toda a parte. Eu tinha medo que ele fizesse alguma coisa pra nós. Mas daí ele foi embora, e eu fazia um plano pra mim: Mas meu Deus do céu, que Deus desterre esse homem pra bem longe pra ele não vir incomodar mais! […] Eu já tinha um medo, meu Divino de Deus! Eu saía assim, se algum pica-pau falava eu achava que era o homem. Eu não conhecia, eu nunca tinha visto o homem, não sabia de que jeito que era, um me contava que era de um jeito, outro me contava que era de outro. A gente ficava assim, até no ônibus, né, dá medo de a gente ver. Daí um dia eu pensei: Mas já que eu não conheço ele, ele também não vai me conhecer. […] Uma vez minha sogra disse: Seja boba, comadre! Quem faz essas coisas vai embora pra bem longe e nunca mais incomoda! Ele já tinha ido mesmo embora.
Quando fala sobre Odair, Francisca lembra do quanto a atormentava a possibilidade de encontrá-lo, dos medos de topar com ele em algum dos lugares por onde circulava, da desconfiança que tinha de qualquer passarinho que falasse no mato. Porque as aves falam quando avistam algum movimento diferente. Assim, muitas pessoas também me disseram que, no tempo em que os jagunços perambulavam pelos matos, ouvir as gralhas gritando era um sinal de alerta, pois poderia ser que algum dos homens de armas estivesse por perto. Nos lugares em que eu saía a pé, também ouvia minhas anfitriãs contarem, quando eu chegava, que elas sabiam que eu estava a caminho, pois haviam ouvido o alvoroço dos pássaros. Nesse sentido, Francisca chama atenção para como a morte do marido e a ideia da presença do homem que o matou impactam seus modos de se relacionar com o ambiente e com os deslocamentos cotidianos através dele, criando uma atmosfera de paranoia, de ubiquidade de um matador cuja face, apesar de familiar a vários de seus vizinhos, é desconhecida para ela. Por outro lado, a certeza da sogra, de que quem mata vai embora e nunca mais incomoda,
invoca uma outra percepção sobre os deslocamentos em torno das mortes
matadas. Pode ser que quem faça isso vá embora, se esconda, fuja para evitar o pior para si,
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como foi o caso de Odair. Porém, muitos dos que matam permanecem no mesmo lugar, ou perto dele. Quando procurados pela polícia, escondem-se em suas terras, e raramente saem delas para irem a outras partes. Quando ameaçados por vinganças, restringem seus movimentos a poucos ambientes, e evitam certos espaços e estabelecimentos onde possam dar de cara com seus inimigos. Ainda assim, todos os vizinhos sabem que eles estão ali. De qualquer modo, esses sujeitos serão reconhecidos pelas pessoas da comunidade pela morte que causaram, e ganharão renomes que têm a ver com a circulação das histórias sobre a morte, nas quais estão em jogo avaliações sobre os modos com que esses acontecimentos se desenrolaram, e sobre os sujeitos envolvidos. Ao falar do que sabia sobre Odair, Francisca aproxima-o da noção de gente ruim, relacionando-o a um lugar com fama particular dentro de Pinhão, os Ambrósios, onde brigas de família se estendiam por gerações, consumindo muitas pessoas, e do qual saíram alguns dos mais perigosos homens de armas do Zattar24. Carlão, Ernesto Lins, Mário Ferreira, Nilton Teles são alguns dos mais conhecidos guardas e pistoleiros do Zattar que se criaram nos Ambrósios, e que eram matadores de gente. Era como se sua experiência com mortes em sua própria comunidade fizesse deles especiais para o serviço de pistoleiro, sendo inclusive procurados para trabalharem para a empresa. Francisca conduz, nesse sentido, julgamentos sobre o caráter de Odair que levam em conta uma série de informações que obteve sobre seu comportamento e o lugar de onde veio. Para ela, é provável que ele já tivesse vindo para esta parte do município por ter feito algo a alguém lá onde morava antes. Mas nessa concepção, insere-se também a compreensão do destino de Odair, do que aconteceu com ele depois que matou Leonardo. A sogra de Francisca estava certa no que disse. O homem havia ido embora para um município vizinho, e lá foi morto por vingança em um ponto de ônibus, depois de ter matado um comerciante. Ele era matador mesmo, Francisca disse, para ressaltar as muitas mortes que Odair carregava nas costas. As maneiras com que Francisca lida com a morte do marido, e a expressa em sua narrativa, envolvem, mais do que silêncios, reflexões sobre o próprio silêncio, adensado pelas dúvidas sobre o que aconteceu, um conhecimento que está lá mas que é colocado em questão por ela e que permanece velado para mim, estranha conhecida que me tornei. Se as prováveis causas do acontecimento chegavam a mim como interrogações, por outro lado, elas me indicavam os modos pelos quais as experiências de agressão e morte são comunicadas através 24
Discutirei mais de perto o caso dos Ambrósios e dos homens ruins e valentes que marcam a fama daquela localidade no Capítulo 2.
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de uma terminologia particular, cujos usos não são separáveis das situações de enunciação, e que se refere à hostilidade enquanto ato, existente no tempo e com o tempo. Broncas, brigas, encrencas e vinganças, nesse sentido, pareciam muitas vezes interessar mais aos meus interlocutores pelos desdobramentos e expectativas que elas continham e geravam. Por outro lado, esses termos são carregados de um conteúdo que não é só objetivo, mas também emocional, abarcando o que é feio, ruim, perigoso, ameaçador, repulsivo. A morte de Leonardo, em suma, é encadeada, na narrativa de Francisca, através de uma série de elementos que são comuns nas narrativas de mortes em geral: considerações sobre usos do espaço e certas atividades que fomentam desavenças (bebedeira, corrida de cavalos, muitos homens reunidos), termos de um idioma amplamente utilizado nas narrativas sobre mortes matadas (bronca, encrenca, se vingar) e as caracterizações do próprio Odair (matador de gente, vindo de um lugar de gente ruim). São essas apreciações sobre lugares e pessoas, somadas a um vocabulário específico para o tratamento da violência, que possibilitam que o excesso, o absurdo, a coisa feia sejam trabalhados e reconstituídos no cotidiano e nas narrativas daqueles que convivem com uma morte matada. A morte do marido de Francisca não é tomada por ela simplesmente como um fim, mas como a abertura de novas relações com a terra, com os parentes, os vizinhos, os caminhos da comunidade. E a morte permanece viva no cotidiano, como uma tragédia em aberto, que pode alavancar novas desgraças. Francisca temia que pudessem fazer algo contra seu único filho homem. Sua sogra, por sua vez, garante que quem faz isso vai embora, o que se prova verdadeiro, no final. O homem fugiu para escapar de retaliações, ou de falar o que o motivou, e acabou morto numa vingança, por ter matado outra pessoa nesse novo lugar para onde foi. Alguns de seus parentes, entretanto, continuam vivendo perto de Francisca. Em um passeio de carro, ela apontou-me a casa onde vive a filha de Odair: aí mora a Hildinha, a filha do homem que matou o meu marido. Com a expressão séria, não contou mais nada, mas ficara visivelmente nervosa ao passar pela casa da mulher. Uma vez que acontecem, a morte e a ameaça habitarão as relações entre aquelas pessoas que são próximas ao morto e quem o matou, e entre essas pessoas e seus vizinhos, que sabem do que aconteceu e tentarão lidar com isso de modo a não se envolverem ou a prestarem solidariedade a uma das partes. Até mesmo os lugares ficam marcados pelos acontecimentos trágicos que neles ocorreram. E finalmente, é como se o próprio tempo das relações entre os afetados por essa morte ganhasse novos tons, com as pessoas evitando se encontrar, já que reconhecem que não podem mais ficar perto umas das outras. O perigo, assim, se impõe como permanência.
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1.5 Ameaças, presenças e ausências Alguns anos após a morte de Leonardo, os guardas do Zattar deram início a tentativas de tirar Francisca das terras em que vivia. – Seis anos mais ou menos eles [os guardas] ficaram assim. Aí depois que eles viram que eu tava firme sabe, que eles não podiam mais me tirar, é que eles começaram a me perseguir de novo. Vieram e deram tiro na minha casa, pensaram de certo se nós damos uns tiros essa velha vai-se embora, né? – Seis anos depois que o marido da senhora faleceu eles vieram? – pergunto. – É. Daí um dia eu disse pro guarda: mas vocês vieram muito tarde! – Dona Francisca ri. – E daí como é que foi dessa vez que eles vieram? – Dessa vez que eles vieram atirar aqui? – É. – Pois eu tava trabalhando na lavoura, trabalhei até esta horinha assim. Aí deixei uma blusa ali, pendurada, blusa de couro, e nos recolhemos. A casa era ali, de madeira. Fizemos janta, jantamos, depois que nós deitamos e dormimos. Os cachorros brabos que tavam. Deitamos lá, fazia uma hora e pouco que nós tava deitados, deram os tiros, só na coberta da casa. Aí eu fiz um plano25 que não acertaram em ninguém, que as crianças tavam dormindo tudo num quarto só. O Pedro tava ali, eu disse: não acertou n’ocê? Ele disse não. Aí eu disse: então vamos ficar quietos, não vamos falar nada. Deitei. Eu não dormi mais, sabe. Daí o Pedro dormiu, as crianças dormiram. No outro dia que eles [os guardas] mandaram ver aqui se não tinham atirado em mim. Eu não falei nada, daí que eu registrei queixa na delegacia. Eles já vinham no final de semana que era pra não ter jeito de se comunicar uma autoridade nem nada. Daí sábado eu fui no Pinhão, cheguei lá a delegacia tava fechada. Levei aquelas balas, que eu juntei do telhado e do forro. Voltei na segunda-feira e registrei a queixa. Daí o delegado era muito a favor deles. Disse: – Isso é uma bronca que foram dar tiro lá na tua casa, de certo algum namorado da tua filha. – Não senhor, minha filha não tem namorado nenhum. Esse eu sei quem que é. Eu tenho que foi o Zattar. Daí ele falou que não é e não sei o quê e ficou assim, sabe. Ele disse: – Eu vou registrar mas esse fica ruim porque a gente não sabe quem que foi. Mas eu disse: – Mas tem que registrar! Assim como nessa vez vieram e atiraram, outra vez eles vão e atiram e a gente não faz nada? Tem que registrar! Daí ele registrou. Daí sabe, no mesmo dia que eles vieram aqui dar os tiros eles foram lá contar pro meu cunhado que tinham dado tiro na minha casa. E nós não falamos nada, não contamos nada, nada. Nunca nós falamos nada pra ninguém. Da nossa boca ninguém soube o que tinha acontecido aqui, eram eles que andavam contando. E daí eles vieram dizer que o Zattar queria me mudar daqui. Disseram: – A senhora tem que se mudar daqui, que é um lugar muito ruim, vamos lá pro São Joaquim - lá pra diante do Zattar, nos capoeirão. Eu disse: – Eu não saio daqui. Já que não me mataram não matam mais. Digo agora eu vou ficar né? Eu não vou sair, de tipo nenhum! Daí eles se retiraram um tempo, uns três, quatro meses. E sempre passavam por aí, por dentro da área. Nós íamos e pregávamos os varadores26 deles, eles arranjavam outro lugar, abriam a cerca e entravam. Daí eu tirava uma erva, pois o que que eu ia fazer, tinha que tirar uma
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No linguajar do pessoal do interior, fazer um plano significa pensar, refletir, avaliar, cogitar, ponderar. Não tem, portanto, a ver com uma ideia de “planejamento”, mas sim com a de um modo de analisar. 26 Varador: lugar por onde se vara a cerca, ou seja, por onde é possível passar pelo arame, ou pelas tábuas e ripas de madeira.
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erva né? E tirar pinhão, essas coisas assim. Eles sempre tavam me perseguindo, sondando, não sei se queriam me tomar ou o quê. Erva umas par de vezes eles me tomaram. Me tomaram alguma carga de erva. De pouquinho que a gente tirava, para ajudar na casa, comprar alguma coisa que tava precisando. Eles me tomavam, levavam, vendiam, e de certo ficavam com o dinheiro. Os guardas. Quantas vezes aconteceu.
Aqui, Francisca encadeia uma série de atos que ela considera armados por eles, pronome que identifica, sem nomear em particular, os guardas que queriam tirá-la de cima da sua terra. É como se os homens da empresa tivessem respeitado o luto de Francisca pela morte do marido e, agora que já haviam-se passado mais de cinco anos, resolvessem levar adiante novos planos para aquela área. Tiros para assustá-la, perseguições dentro do seu terreno, tomada de sua colheita de erva-mate, tudo isso faz parte de um mesmo processo, que em outras partes do município me foi caracterizado como um fazer pressão para que as pessoas fossem embora das áreas da empresa. O interesse sobre as terras, aqui, recai novamente sobre os funcionários da madeireira em Pinhão, sobretudo os próprios guardas, que vendiam a erva e pegavam o dinheiro da venda para si mesmos. Francisca conta em outro momento da narrativa que o homem da empresa que mais a incomodava era Paulão, aquele que depois morreu pelas mãos de uma mulher. Ele chegou a propor dar uma casa para Francisca, no Pinhão. Queria tirá-la dali para colocar o filho dele na área. Ela não aceitou, e ele continuou insistindo. Até que um dia Francisca se injuriou e disse para ele: eu vou, mas eu vou levar minhas vacas, meus porcos, minhas galinhas, e vou soltar tudo na rua. E se alguém vier reclamar pra mim eu vou falar que foi você quem mandou eu levar. Depois disso, Paulão nunca mais apareceu. Era justamente a habilidade de saber conversar e a proximidade entre os moradores das áreas da empresa e os funcionários dela que permitia que, ao receber os guardas da madeireira dentro de suas casas para tomar chimarrão e prosear, as pessoas pudessem por vezes confrontá-los através da própria prosa, de modos até jocosos. Junto a esse saber conversar, contudo, intervêm concepções morais que envolvem gênero. Enquanto mulher, Francisca pode desaforar o pistoleiro sem sofrer, em contrapartida, uma reação agressiva. Em geral, os homens podem até se envolver em discussões com suas vizinhas e conhecidas, mas não reagem a elas do mesmo modo com que reagem às desavenças com homens, sobre as quais é clara a possibilidade de continuidade da encrenca e de haver, de fato, uma briga que leve um dos envolvidos à morte. Contudo, os homens podem se envolver nas brigas das mulheres de outras maneiras. Ouvi, por exemplo, a história de um homem que matou outro por causa dos desentendimentos
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entre as esposas deles. Foi Dona Joana, que por muito tempo morou perto da Zattarlândia, quem me contou que lá havia duas mulheres, uma delas, coitada, morreu faz tempo já, era briguenta que Deus o livre! Essa mulher foi até uma mina d’água que compartilhava com outras vizinhas, e viu as duas filhas da outra mulher, duas mocinhas. Bateu nas meninas, pois tinha ciúmes delas, achava que elas estavam interessadas em seu marido. Por louca mesmo, ressaltou Dona Joana. As meninas chegaram em casa chorando. A mãe delas, brava que ficou, pegou uma vara e foi até a mina d’água, onde encontrou a outra mulher e bateu nela. Andaram arrancando uns maços de cabelo lá, como disse Dona Joana. E daí os homens, antes de chegarem em casa do serviço, muitas vezes já tinham passado no clube. Já chegavam com o alambique pela metade. Um dia, dia de compra, quando os moradores da Zattarlândia recebiam seus vales para gastar no armazém, as meninas e as mulheres acabaram se encontrando no estabelecimento comercial. Começaram a se provocar, as meninas e a mãe enfiando o carrinho de compras nas pernas da outra mulher, a enciumada. Ela chegou em casa e contou para o marido o que havia acontecido. Bêbado, ele foi até a casa da vizinha e chamou o marido dela na porta. Quando o homem saiu na porta ele meteu-lhe fogo. Em meio a tudo isso, outro vizinho apareceu e deu um tiro no homem que havia matado o vizinho, mas não conseguiu matá-lo. Dona Joana, enfim, dizia que muitas das mortes que aconteciam no Zattar não tinham nada a ver com terras, mas sim com as brigas de mulheres e crianças, como é o caso deste causo. Entretanto, essas brigas poderiam envolver os homens, que tomavam como seus os desacatos vividos pelas esposas, passando a brigar também entre si. A agonística do cotidiano em vizinhança, portanto, comporta a relacionalidade de gênero, de modos que, ao mesmo tempo em que diferenciam homens e mulheres e as formas com que uns e outras reagem às broncas que vêm de homens e de mulheres, também os unem, na medida em que esses conflitos são vividos em família, afetando a todos os seus membros. Embora a briga de que Dona Joana fala não remeta diretamente à questões fundiárias, ela chama atenção para formas de lidar com broncas que reverberam sobre as dinâmicas de hostilização no conflito de terras, pois revela que homens e mulheres se encontram e se relacionam através desses laços conflitivos, seja como antagonistas, seja como pessoas que compartilham um mesmo “inimigo”. Nesses casos as mulheres não são relegadas à esfera de domesticidade e de subordinação a um chefe de família, que atuaria como a faceta pública da casa, a autoridade que responde publicamente às afrontas feitas à sua família. Mais do que uma história de um homem que defende as mulheres de sua família, o causo de Dona Joana aborda as mulheres como elementos ativos na tessitura das brigas, e como figuras que
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detêm uma autoridade particular perante os homens, a qual é exercida através de sua própria posição de mães, esposas e donas de casa e de terras. Assim, enquanto as afrontas entre mulheres podem ser assumidas como problemas de seus maridos, como no caso da briga de vizinhas contada por Dona Joana, em situações dos conflitos de terras, há histórias como a de Dona Ana, que assume uma posição de força e mata Paulão a tiros, e de Dona Francisca que, viúva, adquire a posição de chefia familiar, de tal modo que é ela quem dialoga com o pistoleiro quando ele vem à sua casa, e que o desafia. Por outro lado, quando se remete ao tiroteio contra sua casa, à produção de denúncia e ao falatório dos próprios guardas em torno do ocorrido, Francisca demonstra como se falava das agressões vividas no tempo do Zattar, e como as histórias que circulavam pela vizinhança influíam sobre as maneiras com que as pessoas lidavam com essas agressões. Ninguém na sua família foi ferido pelas balas que sobrevoaram e atingiram o telhado da casa. Caso isso acontecesse, seria mais difícil esconder o tiroteio: teriam que ir ao hospital, ou fazer um curativo que ficaria exposto aos olhos de quem encarasse a pessoa ferida. Mas como ninguém fora atingido, e o evento acontecera no meio da noite, com claro propósito de assustar a família, Francisca resolveu ficar quieta e pedir o mesmo ao seu irmão. Ainda assim, seu cunhado ficou sabendo que atiraram na casa dela, através dos próprios guardas, que saíram contando a história. Essa situação demonstra que o conflito de terras adentra dinâmicas próprias do cotidiano em comunidade, como o passar das pessoas pelas casas das outras. Esses deslocamentos pelas casas são em si mesmos motivo de controle e de observação por parte da vizinhança em geral, cujos membros observam sorrateiramente pela janela, ou ao longo de seus próprios deslocamentos, para onde as pessoas que passam na estrada estão indo, a que horas, o que e quem estão levando consigo. Comerford (2014; 2015), chama esse controle de “sistemática de vigiar e narrar”, enquanto forma de produção de cuidadosas observações que são desdobradas em recriações narrativas, tornando-se assunto durante os deslocamentos das pessoas, ou por ocasião das “visitas” que chegam às suas casas. Sendo uma prática corriqueira dos moradores do interior, “vigiar e narrar” adquire centralidade também nas experiências de pessoas como Francisca, ao longo do conflito de terras. Aderindo à estratégia do silenciamento do tiroteio em sua casa, ela busca evitar que o assunto se espalhe, e que alguém venha a saber de seus planos de registrar queixa. Ao optar pela artimanha do silêncio, ela também joga com a possibilidade de vir a saber, por meio dos trajetos locais de deslocamentos de pessoas e informações, se alguém da vizinhança tomou conhecimento do que ocorreu ali. Se fosse esse o caso, seria provável que tal pessoa estivesse
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lá, ou que conhecesse quem estava. É assim que Francisca tem a garantia de que foi o Zattar que disparou os tiros: foi um guarda quem passou na casa de seu cunhado e contou a ele sobre o ocorrido. O cunhado, por sua vez, veio procurar Francisca para saber se isso era verdade. Francisca recolheu as balas e as levou até a delegacia, para um delegado que era favorável aos guardas e que a desaforou, relegando a autoria dos tiros a um possível namorado de uma das filhas dela. É interessante observar como os tiros e mortes referentes ao conflito em torno das terras da madeireira poderiam recair nesse tipo de argumentação contrária por parte dos agentes policiais, que levam em conta lógicas de produção de agressões comuns a outras modalidades de encrenca, como as intrigas em torno de relacionamentos amorosos. Lacerda (2012) observa que, no caso das famílias de Altamira que foram assoladas pelo desaparecimento de seus filhos, a opção por comunicar a polícia não estava dada. Isso era feito somente quando se esperava que ela pudesse “fazer alguma coisa”, como procurar os meninos ou viabilizar atendimento médico a eles (ibid, p. 68). Entre os moradores das terras da Zattar, há uma certa visão parecida a essa, de buscar a polícia somente quando se sabe que ela poderá fazer algo, no caso, prender o agressor ou o assassino. Dona Joaquina, senhora que teve sua casa queimada mais ou menos no fim dos anos 1960, e perdeu tudo, foi contundente ao declarar que não daria parte do incêndio criminoso, pois não sabia de quem exatamente dar parte, ainda que tivesse plena certeza de que foi o Zattar quem mandou queimar sua residência. Dizer que foi o Zattar, contudo, ainda não dizia quem especificamente havia feito aquilo, já que o Zattar, nesse caso, é um termo que nomeia o coletivo de guardas, jagunços e pistoleiros da empresa. Para Joaquina, era improvável que sua queixa fosse bem sucedida, já que não havia testemunhas do crime. Ela especulava que o delegado poderia até prender alguns guardas, mas logo os soltaria, e eles muito provavelmente viriam atrás dela, para tirar satisfações e quem sabe agredi-la novamente em retaliação à sua prisão. A denúncia de Dona Francisca, porém, se inscreve em um contexto distinto ao do incêndio vivido por Joaquina. Nos anos 1990, estimulados pelo Movimento de Posseiros de Pinhão, e pelos militantes e padres vinculados à sua causa, os posseiros e sem-terra passaram a registrar queixas na delegacia de Pinhão, referentes aos mais variados assuntos: podas irregulares da erva-mate, ameaças nas estradas, tiroteios por cima das casas, queimas de residências, roubo de equipamentos, roubo de tábuas de madeira. Havia claramente um estímulo para que as pessoas fizessem isso naquele momento. Era importante, para o movimento, ter os registros dessas queixas, levar a público as agressões vividas pelas
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famílias, dando sustentação à construção da causa coletiva. E para Francisca, sobretudo, a denúncia era uma forma de abrir um precedente na delegacia, caso os guardas voltassem a ameaçá-la. No entanto, ao registrar sua queixa, ela se deparou com uma situação que é análoga ao que Lacerda (2012) observa em Altamira, e Vianna e Farias (2011) analisam no caso de vítimas da violência policial no Rio de Janeiro. Enquanto em Altamira, o delegado afrontava as mães com acusações de negligência e omissão em relação aos filhos, no Rio de Janeiro as mães precisam lutar para provar que seus filhos mortos não eram “bandidos” e “traficantes” e, por conseguinte, que merecem justiça. Vianna e Farias destacam, nesse sentido, a centralidade das gramáticas de gênero na construção das denúncias desses assassinatos, na medida em que são as mães que vão à arena pública para buscar as devidas reparações às mortes de seus filhos, e levam suas próprias casas, cenários agora da ruptura de uma ordem doméstica, para as cenas de protesto. No caso de Francisca, é o seu papel de mãe de filhas mulheres que é afrontado pelo delegado, a fim de descaracterizar a denúncia. Ao supor que o tiroteio pudesse ter a ver com uma bronca de namorado, ele busca desestimulá-la a prestar queixa contra o Zattar. Essa suposição do delegado funciona como uma acusação, que envolve diretamente o preceito, amplamente reconhecido pelas mães do interior, de que é à mãe que cabe o cuidado das filhas. Tudo que uma filha faz de certo e de errado recai sobre sua mãe, é ela quem leva a culpa e, muitas vezes, tem que ouvir as reprovações do marido. O delegado manipula, nesse sentido, a gramática de gênero, transformando a acusadora em acusada a partir do questionamento de sua capacidade em cuidar de sua filha e, logo, de sua própria casa. Um argumento desse tipo não seria direcionado a um homem da mesma maneira. Nesse caso, quem sabe, o delegado falaria de algum filho dele que se envolveu em briga, que mexeu com quem não devia por causa de bebedeira, ou tentaria pôr a culpa em uma desavença contraída pelo próprio homem com algum vizinho ao qual tivesse provocado. A história da denúncia de Francisca abre caminho para refletirmos sobre como a produção de um testemunho contra o Zattar implicava a ponderação de enfrentamentos em outros níveis, referentes à própria reputação da pessoa que desejava prestar queixa. Aquela que se propõe a denunciar coloca-se ao crivo de acusações produzidas não só pelo delegado, mas por todos os seus vizinhos, que tomarão conhecimento do ocorrido e, através das dinâmicas próprias do contar causos e da “sistemática do vigiar e do narrar”, criarão suas próprias versões do que aconteceu. A denunciante acaba, portanto, sendo objeto de avaliações e fuxicos dentro de sua própria vizinhança. Nesses momentos, é como se a própria casa onde
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se mora se tornasse aberta ao público, que aprecia as trajetórias de quem vive dentro dela, e tira suas próprias conclusões sobre certos acontecimentos. Por outro lado, há sempre a consideração de que o acusado possa fazer algo de ruim ao seu denunciante, e passe a persegui-lo por raiva da queixa prestada. Muito por isso, Francisca opta por silenciar o ocorrido em sua casa, e a prestar queixa somente para o delegado, ainda que este deixasse bem claro que não haveria investigação porque não havia provas de quem havia feito aquilo. Francisca acredita que queriam matá-la. Entre suas considerações sobre as ameaças dos homens de armas da empresa, ela tece a de que se não a mataram antes, agora não matam mais. Foi com essa esperança que ela cumpriu o pedido feito pelo seu marido antes de morrer, e firmou o pé na terra, negando-se a sair de onde estava e até mesmo caçoando dos guardas que tentavam convencê-la a ir embora. Em outras conversas que tivemos, ela afirmou que chegaram a colocar um guarda para morar na divisa com a terra dela, para matá-la. Também me disse que há muito tempo não vai em festa, por medo de algum plano que o Zattar e outras pessoas envolvidas com a empresa possam tramar contra ela. Ainda que tenham se passado tantos anos após esses acontecimentos, que Paulão esteja morto, e que ela tenha conseguido a terra, esses dramas permanecem atuando sobre seu presente, como assuntos sem desfecho, que podem ainda gerar tragédias se ela não se prevenir. Restringir sua circulação a determinados espaços, nos quais ela esteja livre de encontrar quem a quer mal, é o modo que ela encontrou para dar alguma segurança a si mesma. O enfrentamento da violência vai além do cálculo de possibilidades de novas agressões, sendo atravessado por sentimentos como o medo e a desconfiança, que tornam-se permanências na vida de Francisca. As emoções, por conseguinte, são experiência incorporada, e também operam como idioma para comunicar conflitos e agressões, como “discursos” que produzem os objetos sobre os quais elas falam (LUTZ & ABU-LUGHOD, 1990). O medo, vinculado a uma percepção de onde estão as pessoas que trazem perigos, faz parte do mapeamento realizado por Francisca, para evitar a morte. Considerando a possibilidade de que alguém ainda queira prestar contas com ela sobre o passado e sua resistência na terra, Francisca evita certos lugares, aqueles mais propícios para as mortes e os acertos de contas ocorrerem, que no caso dela, são as festas nas igrejas. Exceto pelas vezes em que fomos para o Pinhão ou até a casa de seu irmão Diogo, Francisca sempre permanecia em casa. A relação dela com esse Zattar que a persegue cria, desse modo, outros mapas e trajetos dentro de sua vizinhança e para além dela, e novas percepções sobre como circular, a que horas e com quem. Além de ser incorporado ao espaço, o Zattar atravessa o tempo, nesse sentido o tempo da terra e o tempo das relações de Francisca com seus parentes, vizinhos e
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com os outros guardas da empresa que a ameaçaram. É o tempo da vida que fica marcado pelo enfrentamento e pela fuga da violência. Esse espraiamento da ameaça pela vida se apresentava em diversas histórias contadas por Francisca e seus familiares ao longo de nossas conversas cotidianas, e de nossos passeios por estradas e pelo próprio terreno. Muitas dessas experiências são centradas no desejo e no poder de tornar-se ausente de um mundo povoado por perigos. Outras, por sua vez, põem em primeiro plano a presença da ameaça através daqueles que estão ausentes, como os mortos e as assombrações, e através de uma percepção da continuidade de certos medos, mesmo quando tudo aparentemente está em paz. Assim, nas histórias que Francisca e suas filhas me contaram sobre os antigos homens de armas da empresa, surgem referências a homens ruins e a casos extraordinários, como o de um rapaz no qual os pistoleiros deram mais de cinquenta tiros mas não puderam matá-lo, porque a mãe dele havia rezado para Nossa Senhora protegê-lo no caminho. Esse milagre fala de forças que estão além dos seres humanos, interferem diretamente em suas vidas, e os auxiliam no enfretamento da violência. Orações para ficar invisível, como a de Santa Catarina27, me foram apresentadas como sagradas e infalíveis protetoras das pessoas ameaçadas, que queriam passar por algum lugar sem serem vistas. Era só rezá-la ao passar do portão, que não havia perigo de ser visto por outras pessoas. A invisibilidade, nesse sentido, pode ser tomada como estratégia análoga ao ausentar-se de certos ambientes e eventos. Sendo imperativo passar por determinado lugar que inspira perigos, é preciso munir-se não só com as armas dos homens, mas também com as proteções de Deus. Seu Damião Oliveira, antigo posseiro do Faxinal dos Cascatas, que foi ameaçado de morte pelos jagunços da madeireira, conta que tinha capacidade de ficar oculto aos olhos dos homens de armas. Era o Divino Espírito Santo, padroeiro do município de Pinhão e de sua família, quem dava coragem a Damião para enfrentar a jagunçada, ajudando-o a prever armadilhas. Ele também sabia da oração para ficar invisível. Depois que a rezava, os homens armados da madeireira passavam ao seu lado, no mato, e não o enxergavam. Era como se a 27 Uma das versões dessa oração, recomendada para abrandar os inimigos, tem os seguintes versos: Minha Santa Catarina, clara e digna, vós que foste aquela senhora que passaste pelas portas de Abraão, encontraste quatrocentos homens bravos como leões e vós com vossas santas palavras os abrandaste. Assim peço-vos, senhora, que abrandeis os corações dos meus inimigos, que fujam de me perseguir. Se tiverem pés que não me sigam. Se tiverem mãos que não me agarrem. Se tiverem olhos que não me vejam. Que se vejam acorrentados, como se viu Jesus Cristo na cruz para sempre. Amém. Dona Francisca me mostrou a prece para Santa Catarina em um livreto de orações católicas, no qual ela também gostava de me apontar outras rezas que poderiam me ajudar a seguir bem e protegida em meu trabalho de campo.
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gente ficasse invisível, parecia que virava uma árvore, ou uma pedra. Os santos, portanto, são tomados pelos moradores do interior como agentes que atuam diretamente nas dinâmicas de extensão e retração de atos de agressão, ameaça e morte, protegendo as pessoas, escondendoas, sendo seu escudo. Quando relembravam as mortes de antigamente, Francisca e suas filhas se referiam também ao bar do Zattar, onde os homens se matavam entre eles, e chegava a haver duas mortes por noite. Seu Pedro, que volta e meia me levava de carro até as casas de pessoas que moravam perto do Zattar, lembrou disso em um dos nossos percursos, e me disse que presenciou muitas mortes naquele lugar. Na estrada do Zattar, ele me apontou uma cruz, colocada onde Paulão foi morto. A seguir, me contou que essa estrada é cheia de cruzes de gente que morreu matada, e mostrou-me o local onde foi encontrado um corpo, descoberto porque porcos estavam arrastando as tripas dele pela via. Ali, Seu Pedro ressaltou, sempre aparecia alguém que foi morto, por acerto de contas ou por bebedeira. Por isso mesmo, diz-se que aquele é um lugar da estrada meio mal assombrado, onde volta e meia alguém avista alguma visagem. As visagens são assombrações que assumem formas variadas, e compõem um tema particular no repertório dos causos que as pessoas gostam de contar, tanto por seus interesses próprios pelo sobrenatural, quanto para assustarem umas as outras. As visagens costumam aparecer logo que alguém morreu, como forma de anunciar sua morte. Elas podem, do mesmo modo, permanecer no lugar em que alguém morreu. Algumas dessas entidades se manifestam como bolas de luz que pairam no ar e logo se esvanecem, ou que caminham até sumir de vista. Outras assumem a forma de pessoas ou de bichos, que passam pela estrada ou no terreno dos moradores, por vezes aos gritos, e que podem interagir de alguma maneira com os seres humanos, acompanhando eles em suas caminhadas ou apontando para a existência de algo a ser encontrado no caminho. Esse é o caso das visagens que guardam os encantes, que são panelas e chaleiras cheias de moedas de ouro, enterradas pelos antigos e por padres jesuítas. Essas visagens, que me foram retratadas como homens e mulheres negros e idosos, mostram onde está enterrado o ouro. Elas aparecem não só nos caminhos por onde as pessoas passam, mas também em seus sonhos, nos quais contam onde estão os encantes. Contudo, a pessoa que encontra esses encantes precisa tomar o cuidado de desenterrar a panela imediatamente, senão ela
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desaparece, desencanta. Além disso, ao abrir a panela ela não pode sentir o odor que levanta das moedas, porque ele é letal, e há inclusive histórias de gente que morreu por causa disso28. Associadas a mortes violentas, contudo, certas visagens demarcam lugares onde esses eventos ocorreram, e a agonia dos mortos, que não se ausentam, mas permanecem no mundo dos vivos, relembrando-os de seus trágicos destinos e de experiências de violência que são constitutivas da vida cotidiana nessas localidades. É aos vivos que cabe rememorar os mortos e relacionar-se com seus feitos, é a eles que cabe inscrever certas mortes em histórias, reverenciando certas formas de morrer, e abominando outras (VERNANT, 1996). Algumas visagens, enquanto memória viva, relacionam-se a visões sobre o que se considera uma morte feia, aquela em que o corpo é mutilado e desfigurado, e em que a vida é tirada de uma maneira considerada atroz. Não é à toa, nesse sentido, que várias visagens não tenham nome, nem rostos conhecidos, e que muitas vezes não adquiram a forma humana. De carro pela estrada, ou caminhando pelos terrenos acompanhada de minhas anfitriãs e anfitriões, novas histórias de mortes, guardas, pistoleiros, e ameaças surgiam, despertadas pelo ambiente. Em nossos passeios com suas sobrinhas e com as crianças por dentro das terras de sua família, Seu Pedro, irmão de Dona Francisca, contava sobre os pés de erva, sobre os ninhos de papagaios nos ocos das árvores, sobre as águas ali que nasciam e os planos que ele tinha para elas, e me mostrava as centenárias imbuias do terreno, árvores gigantescas e de madeira nobre. No meio do mato, em alguns pontos do terreno, havia troncos de árvores largados no chão. Isso aqui é do tempo do Zattar, eles cortaram mas largaram aí. Parte da madeira que fora cortada pelos homens da empresa ficou pelo caminho, não completando o trajeto até a serraria. O tempo do Zattar, desse modo, é incorporado nesse ambiente, e ativado nas andanças e lembranças acarretadas pelo caminhar. Não eram os troncos deixados pelos trabalhadores da madeireira as únicas marcas materiais daquele tempo. As próprias marcas e cruzamentos de carreiros também eram ativadas como elementos de memória nas histórias que Seu Pedro me contava. Num dos lugares por onde passamos, ele me mostrou onde foi que dois pistoleiros se esconderam, atrás das árvores, numa ocasião em que ele e seu sobrinho Celso iam cortar madeira. Seu Pedro estava armado com uma pistola e Celso carregava uma motosserra. O rapaz passou direto pelos pistoleiros, sem vê-los. Eles provavelmente iriam atrás de Celso, mas viram que Seu Pedro vinha atrás, armado, e foram embora. No tempo do Zattar carecia 28
O próprio Seu Damião era um entusiasta da busca por ouro enterrado no Faxinal dos Cascatas. Chegou a cavar buracos nos terrenos dos vizinhos por conta de sua obsessão em achar as tais panelas de dinheiro, o que aborreceu muitas pessoas, não só pelos buracos, mas por Damião entrar nas terras dos outros como se fossem as dele.
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andar armado, era muito pistoleiro por aqui, e muito pistoleiro passando por dentro dos nossos terrenos, Seu Pedro me falou, justificando o porte de armamentos no cotidiano com base na compreensão das particularidades daquele tempo, em que armar-se era uma questão de sobrevivência e que os pistoleiros estavam muito perto. Além disso, não era só o Zattar que incomodava nos terrenos da família de Francisca. Seu Pedro contou, nesse mesmo passeio pelo terreno, que os Junqueira, família que mora lá perto e que tem fama de gente ruim, envolvida em muitas encrencas, vieram uma vez roubar erva das terras de Francisca. Seu Pedro estava caminhando na direção deles mas não os enxergou, pois os homens estavam escondidos atrás de uma árvore. Ele ouviu, então, o plac!, barulho de quando se arma uma espingarda, e fugiu para o meio do mato, para escapar dos Junqueira. Em outro ponto de nossa caminhada, ele me apontou para marcas de tiros nas árvores. Aqueles foram disparados quando Dilnei, outro homem da vizinhança, estava roubando erva deles, acompanhado de outros homens. Seu Pedro e os rapazes de sua família que vinham junto com ele atiraram em Dilnei e nos outros ladrões para assustá-los. Acharam que tinham acertado um deles, e chamaram a polícia, que veio mas não quis campear29 o ferido no meio do mato. Seu Pedro passou então a falar do filho de Dilnei, Jocélio, que costumava ficar na estrada esperando Fátima, filha de Francisca, quando ela ia para o trabalho. Seu Pedro tinha que levá-la, porque Jocélio estava sempre perseguindo a moça. Até que um dia ele foi morto, em uma briga com outro vizinho, Romão, por causa de uma namorada. No dia em que isso aconteceu, Seu Pedro e Dona Francisca foram ao ponto de ônibus pela estrada. Se tivessem ido pelo carreiro, disse Seu Pedro, teriam dado de frente com o morto, que foi encontrado perto da cerca deles. Assim, andar pelo terreno é envolver-se na produção de narrativas sobre aquilo que nele interessa, e sobre as lutas que o constituem. Ao caminhar, Seu Pedro não só me contava histórias, ele também me mostrava onde elas aconteceram e repetia com gestos e passos os movimentos dessas cenas do passado. O caminho, além disso, abria uma gama de situações de agressão e conflito armado que iam além da luta por terras com o Zattar, relacionando todas elas na experiência pessoal do narrador. Nessas histórias contadas no caminhar, Seu Pedro me falava de como a terra se constitui, na trajetória de sua família, como objeto de disputa entre grupos que ultrapassam a madeireira. Além disso, descortinava-se um trajeto constituído pela coexistência entre a família de Dona Francisca, pistoleiros, e ameaças de violência de outras 29
Campear significa procurar, buscar.
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ordens, que poderiam ter a ver com a terra, com o roubo de erva-mate, e com os assédios vividos por Fátima. Diferentes histórias de morte e de ameaça se imbricavam nesse passeio, nesse mostrar-me as terras da família. Produzidas por meio de nossa passagem pelo terreno, essas lembranças se aproximam do que Ingold (2011, p.154) chama de uma forma de conhecimento “meshworked”, ou seja, que não visa à classificação, mas costura pessoas, lugares e relações. Desse modo, as experiências de violência vividas por Seu Pedro não eram separadas no tempo e no espaço, como se cada qual tivesse uma especificidade, uma essência objetiva que as diferenciasse entre si. Quando as contava, ele misturava todas elas, como se cada um desses episódios emprestasse algum sentido aos outros, um conteúdo que ultrapassava a particularidade de cada situação, conformando-se na relação entre todas elas, que se tornavam encadeadas e semelhantes em termos dos sentimentos e reações que provocavam em meu interlocutor. O perigo, desse modo, era compreendido como difuso em diferentes agentes, mas muito próximo, escondido atrás das árvores e nos caminhos feitos pelo terreno e pelas estradas, ameaçando o espaço de moradia e a integridade da vida familiar, trazendo aflição à circulação para fora do terreno e mesmo dentro dele. As experiências de Dona Francisca na luta por terras, enfim, provocam questionamentos sobre como o mundo das pessoas é organizado quando as terras em que elas vivem não são tidas como delas. A partir das narrativas aqui analisadas, a casa dos moradores é tratada como o espaço cuja violação é a mais temida. As queimas de residências, assim como o tiroteio contra a casa de Francisca, revelam que essas eram práticas comuns de expulsão das pessoas de suas terras. Era a ameaça à casa, enquanto construção que dava materialidade a um núcleo familiar, e à ocupação de determinada terra, o modo mais pernicioso de atuação dos jagunços, que assim colocavam em risco não só os homens, mas também as mulheres e as crianças, e a continuidade da existência da vida na terra. Por outro lado, se a casa traduz uma relação entre a família que nela vive e a terra, ela também é uma referência pública, marcando o lugar de um núcleo familiar em determinada vizinhança. E dentro dela passarão, em visitas ou rápidos encontros, parentes, vizinhos, compadres, amigos, e também guardas, jagunços e pistoleiros, que podem inclusive ser parentes, vizinhos, etc. Quando vinham pedir as assinaturas dos contratos, dizer quando ou não as pessoas poderiam plantar, ver o que elas estavam fazendo, os guardas vinham nas casas. Muitos deles, independentemente de serem tidos como pessoas próximas, entravam, tomavam chimarrão, conversavam. É assim, afinal, que manda a hospitalidade pinhãoense. O senhor chegue! - costuma-se dizer a quem surge perto da porta, para convidar a pessoa a
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entrar. E se os guardas eram vizinhos, suas esposas e filhos também frequentavam as casas dos posseiros, criando laços com suas famílias. Por essa via, é central, no modo com que as pessoas lidam com o conflito de terras, a consideração sobre a proximidade do Zattar. Viver o conflito de terras é encarar um inimigo que vive perto, e que assim permanece no tempo, como as ameaças que nunca se esvanecem, e continuarão a atuar como força motriz de medos, ausências e distanciamentos. É a proximidade da ameaça, enfim, que nos permite vislumbrar o que une os pistoleiros, os maus vizinhos, o “vigiar e narrar”, as visagens, as marcas de balas nas árvores. Na medida em que estar perto do perigo é um imperativo da vida cotidiana, as pessoas buscam Deus e os santos como aliados que também existem no mundo, e que os acodem nos momentos de precisão. É também nessa relação com o divino que outro tema central na lida com a violência se faz presente: a importância da invisibilidade. Refazer trajetos, evitar certos lugares, silenciar o que se sabe, rezar para efetivamente ficar invisível, tudo isso diz sobre como o medo e as intimidações são incorporados e trabalhados na vida diária. O perigo é tão próximo e tão espalhado pelas pessoas que compõem esses lugares, que torna-se imperativo lutar cotidianamente para se fazer ausente de certas relações, para assim tornar possível a permanência na terra e a continuidade da vida e dos seus vínculos. Mas como ficar ausente quando o que se busca é estar presente, para assim permanecer nas terras? É esse um dos dilemas mais fundamentais das pessoas que não podem deixar seus terrenos, sob a pena de perderem sua luta. A continuidade entre presença e ausência, além disso, é um tema que emerge com força nos modos com que as pessoas lidam com perigos e ameaças em sua vida cotidiana, ora buscando afastar-se, esconder-se, sumir-se, ora tendo de inevitavelmente enxergar, encarar, enfrentar seus opositores.
1.6 O pé e o mastro na terra de Francisca Foi depois do tiroteio dos guardas contra sua casa que Francisca procurou a AFATRUP e os advogados de defesa dos posseiros. Em 1996, ela começou a pagar o Imposto Sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) e a guardar os recibos do pagamento, como comprovação de que é ela quem vive naquelas terras e que é responsável por elas. Pouco tempo depois, ela entrou com o pedido de usucapião da área, ao qual foi respondida pela madeireira com um processo de reintegração de posse. O pedido de Francisca foi levado a outras instâncias e julgado novamente em 2013, quando finalmente ela obteve um veredito
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favorável. Enquanto o processo de usucapião de Dona Francisca estava em trâmite, novas mudanças ocorreram em sua vizinhança, no que diz respeito à atuação dos movimentos sociais nas terras da madeireira. Depois de as Indústrias Zattar terem ofertado ao INCRA seus imóveis em Pinhão, em meados dos anos 2000, lideranças e políticos vinculados à Associação das Famílias dos Trabalhadores Rurais de Pinhão (AFATRUP) e ao Movimento de Posseiros, estabeleceram uma aliança com líderes do MST em Laranjeiras do Sul (PR). A ideia era que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra entrasse nas áreas do Zattar que estavam ofertadas, mas que permaneciam desocupadas, como era o caso de muitas das terras no entorno da Zattarlândia, onde apesar de haver a presença de posseiros (categoria com a qual Dona Francisca, por exemplo, se identifica), era grande a quantidade de terras sem a presença de ocupantes. Nesse sentido, as lideranças da AFATRUP planejavam não somente a chegada do MST com pessoas de fora de Pinhão para se estabelecerem nessas áreas, mas também a possibilidade de que filhos de posseiros e moradores do interior que viviam em terrenos pequenos, aderissem ao Movimento, como forma de acessarem terras para si mesmos. Por causa disso, alguns dos acampamentos do MST em Pinhão são formados majoritariamente por pessoas do município. O acampamento que foi erguido perto das terras de Dona Francisca, contudo, contêm mais pessoas vindas do oeste paranaense, do que gente de Pinhão. Francisca e suas terras foram fundamentais para a organização do MST naquela região. A AFATRUP, que trouxe os sem-terra ao município, fez um acordo com Francisca, por meio do qual ela consentiu que os membros do MST acampassem no seu terreno em um primeiro momento, até que se organizassem e se espalhassem pelas terras do Zattar na região30. Seu Pedro, irmão de Francisca, afirma que se não fossem os sem-terra, ele não sabe se eles teriam conseguido as terras. Porque foi depois do MST que o Zattar se entregou. Essa entrega tem a ver com assumir o problema das terras no INCRA, e a uma virada da madeireira para uma atitude de querer resolver sua situação em Pinhão, recebendo pela desapropriação dos seus terrenos. Assim, a chegada do MST é outro marco temporal na trajetória da família de Dona Francisca na terra, ensejando novas relações de vizinhança e uma nova inserção dela dentro dos movimentos sociais. Previamente à chegada do MST, Francisca não tinha vizinhos morando perto. Hoje a estrada que passa na frente do terreno dela permanece rodeada de pinheiros, mas entre as árvores, tem gente, os sem-terra, gente de toda parte. 30
Nas comunidades de Francisca e imediatamente vizinhas à sua, vivem cerca de 70 famílias vinculadas ao MST. Com isso, a população dessas áreas praticamente dobrou.
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Em 2014, última vez em que estive nas terras de Dona Francisca antes da escrita da tese, seus vizinhos do MST, que um ano antes ainda viviam na lona, ou em casinhas de chão batido, moravam agora em casas de madeira com assoalho, e haviam feito lavouras de milho em frente às residências. Poucos meses antes, eles haviam recebido o acesso à luz elétrica. O acampamento estava lá desde 2007, mas foi somente em 2013 que os sem-terra foram incentivados pelas lideranças do Movimento a fazerem casas e benfeitorias nos lotes. Se o INCRA, como dizia o pessoal dos movimentos sociais, estava parado, e o processo de desapropriação das terras da madeireira permanecia uma incógnita, ao menos parecia que os membros desses acampamentos mais antigos estavam livres de ameaças de despejo. Porém, não era esse o caso de outro acampamento do MST que conheci em outra região do município, cujos moradores haviam recebido, poucos meses antes de minha ida para lá também em 2014, a visita de um oficial de justiça com uma ordem de despejo, a qual acabou por não se concretizar. Assim, apesar de ter se passado um bom tempo desde o estabelecimento dos acampamentos do MST, e de os membros do Movimento já terem realizado benfeitorias nos lotes que dividiram entre si, a questão da regularização dessas áreas permanece indefinida. Segundo várias pessoas do MST, a situação continua a mesma porque o INCRA e Miguel Zattar Filho, atual presidente da madeireira e dono das terras, não conseguiram chegar a um acordo em relação ao valor total das áreas a serem desapropriadas. Enquanto esse processo de desapropriação vai se estendendo, os acampamentos vão mudando: tem gente que fica, gente que vai embora, gente que chega, a lona dá lugar a casas de madeira, cercas são erguidas, e por aí vai. Também por isso, há quem já os chame de assentamentos, reconhecendo como definitiva a mudança de estatuto das terras da empresa e das terras dos acampamentos, consolidados há vários anos. Além disso, nos últimos dois anos novos acampamentos do MST foram erguidos em áreas próximas à antiga Zattarlândia. Em novembro de 2013, depois de uma missa, Francisca recebeu a notícia de que seu processo de usucapião havia sido bem sucedido. Um mês antes, ela havia prometido à Nossa Senhora que se conseguisse as terras, faria uma nova casa, e realizaria uma mesada de anjo em homenagem à santa, no dia 8 de dezembro, quando se celebra a Imaculada Conceição. No dia da mesada, um mastro com a bandeira de Nossa Senhora foi erguido em frente à sua residência, que na verdade permaneceu no lugar da antiga casa e manteve partes dela. Tanto o mastro quanto a casa, maior do que a anterior, chamaram minha atenção para as transformações que haviam se passado com o resultado do julgamento do processo de Francisca.
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Quando estive com Francisca, após a mesada de anjo, notei que não só a casa já estava diferente, como seus arredores, que começavam a ganhar novas formas. Lavoura de milho, uma pequena área de pasto e uma nova mangueira para recolher o gado também despontavam como novidades decorrentes do reconhecimento da propriedade da terra. E, com o passar dos dias, eu veria a construção de uma casinha de carneiros, a compra de um trator, e o financiamento de vinte boizinhos que a família fez na Cresol31, com o objetivo de vender os animais. O relógio velho que estava parado e voltara a funcionar era um sinal da aceleração que estava a caminho. Agora, tudo aquilo para que Francisca vinha se preparando há tanto tempo finalmente estava sendo posto em prática. A trajetória da casa confunde-se com a trajetória de Francisca em suas terras. Nesse sentido, a própria casa se consolida, tal qual sugerem Carsten e Hugh-Jones (1995), como um corpo animado, dinâmico e processual, que existe enquanto extensão e expressão daqueles que a habitam. Para além disso, nos casos que aqui analiso, a casa também guarda as relações entre as pessoas que nela vivem e as terras onde a residência é estabelecida. A terra, desse modo, também é uma extensão da casa e da autoridade familiar sobre determinada área. Foi depois que Francisca se casou com Leonardo que a empresa adquiriu aquelas terras, onde fez uma casa, e mandou seu guarda morar. Foi, portanto, seu casamento com um trabalhador da empresa que a levou para aquelas terras, onde Francisca sempre trabalhou e criou seus filhos, enquanto Leonardo saía para atender os moradores das terras do Zattar. Foi quando ele se sentiu ameaçado que disse para a esposa jamais sair da casa, bater o pé e ficar. Ficar na casa era o que sustentaria a permanência de Francisca na terra. Depois da morte de Leonardo, Francisca ficou por seis anos em paz, até que os guardas foram assustá-la, justamente para que ela deixasse sua moradia. Eles vieram e atiraram na casa, não em volta dela, ou diretamente em quem morava nela. Mesmo assim, eles atingiam diretamente os corpos de Francisca, de seu irmão e de seus filhos, os quais tinham agora de lidar com essas novas possibilidades de agressão, que abalavam sua estabilidade naquelas terras. Todavia, ela continuou na casa, que por sua vez também incorporava uma relação simultânea com o Zattar. Por isso Francisca não se sentia tranquila para realizar investimentos na casa ou nas terras enquanto elas não fossem suas, já que não havia garantias jurídicas de que ela pudesse permanecer ali. Nesse sentido, a casa também incorpora relações que ultrapassam os que nela vivem, como aquelas com o Zattar e com as esferas jurídicas passíveis de promoverem a regularização das terras. 31 Sistema de Cooperativas de Crédito Rural com Interação Solidária.
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A transformação da casa em uma casa nova, com a vitória da ação de usucapião, era importante justamente para firmar e tornar pública uma nova relação de propriedade das terras. Mas a casa se inscrevia também em outra relação de Francisca, dessa vez com Nossa Senhora Aparecida, a quem prometeu fazer a nova residência se obtivesse a vitória de seu processo. Desse modo, o vínculo entre a casa e a terra se consolidam em outro nível, de sacralização do terreno e intervenção divina sobre ele, comemorada na mesada de anjo, almoço servido dentro da residência a uma mesa repleta de crianças, que representam justamente os anjos a serem ritualmente alimentados em ação de graças. Tive a oportunidade de participar de diversas mesadas de anjo no Faxinal dos Cascatas, em outra região do município. Lá, a promessa foi feita há quase um século pelos descendentes da família Gomes, que fugiu de Santa Catarina durante uma guerra que, segundo alguns dos membros dessa família, é a Guerra do Contestado. Ao encontrar sua nova terra e paz no interior de Pinhão, essa família, que trouxe consigo imagens do Divino Espírito Santo, prometeu ao Divino fazer a mesada de anjo e erguer o mastro com a bandeira do santo todos os anos dali em diante, para celebrar sua conquista de um território onde eles e seus descendentes poderiam viver com tranquilidade, longe das guerras (AYOUB, 2011; AYOUB, 2014 a). Assim, tal como a promessa de Dona Francisca, a promessa que os descendentes dos Gomes celebram anualmente nos Cascatas tem a ver com a relação entre a posse/propriedade da terra, a paz no lugar onde se vive, e uma visão de futuro, de continuidade de uma graça recebida32. A mesada, enfim, foi um marco na história de vida de Francisca, que celebrou ritualmente a passagem para a condição de proprietária de suas terras, por meio de uma cerimônia que transmite recordações de um modo distinto dos atos narrativos. O ritual da mesada não envolve proferir a história de luta pela terra. O passado de lutas é guardado na promessa atendida pela santa, a qual concede a graça que muda o cenário e motiva o rito. Se orações e cantos à Nossa Senhora ecoam enquanto os anjos comem, falar da história por trás da graça não está previsto em nenhum momento do rito. Talvez se fale disso fora de casa, ou fora do momento de servir os anjos. Mas ainda que nada seja dito, os presentes sabem que há uma graça sendo celebrada, um evento que transforma, e ao fazê-lo, também promove novas relações entre quem vive naquela casa e o próprio tempo. 32
Contudo, nem todas as mesadas são motivadas pela questão da terra propriamente dita. Para os Reis, que formam um dos troncos familiares de descendentes da família Gomes, a mesada - que é celebrada também na casa de um senhor da família Reis – tem a ver com a celebração do fim da guerra e da união da família e dos conhecidos. Também conheci uma senhora que fez uma mesada de anjo porque seu filho havia sido absolvido pelo juiz, por ter matado um homem em legítima defesa.
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Ao celebrar a usucapião enquanto graça de Nossa Senhora, a mesada de anjo realizada por Dona Francisca consagra a terra que se tornou sua, e que historicamente se constituiu também como ambiente marcado por mortes, agressões, ameaças, invasões, medo. Através da promessa e do seu cumprimento, abrem-se então modos de lidar, de compreender e de rememorar as agressões vividas, que nem sempre passam pela narrativa, mas sim por uma certa incorporação do passado ao ambiente que se torna a terra de Francisca, sagrada e celebrada ritualmente. A mesada é a comemoração da passagem da terra, para Francisca, como lugar de disputa e ameaça, para um lugar que é reconhecidamente seu e seu lar. São a terra, a casa e ela que se transformam ao mesmo tempo. Como o mastro fincado em frente à casa, com a bandeira de Nossa Senhora Aparecida hasteada, Francisca também firmou-se no seu chão. Se as mudanças no estatuto na terra e na vida de Dona Francisca são marcantes, por outro lado, as permanências do que a vida colocou em seu caminho também o são. O tempo do Zattar, a entrada no processo de obtenção de direitos, a chegada do MST em sua vizinhança, e mais recentemente, a usucapião, são alguns dos marcadores em sua trajetória nas terras onde vive. Apesar de sua propriedade sobre o terreno estar garantida, há outras ameaças que permanecem, povoando a vida cotidiana, os lugares por onde Francisca não gosta de passar, os antigos guardas que vivem por perto e ainda inspiram perigos, as pessoas que a lembram da morte do marido, consolidando o medo que ela ainda tem de ir a festas, e os questionamentos sobre o que aconteceu com Leonardo. É assim que as violências vividas se impõem como permanências, aspectos da vida que tanto não podem ser esquecidos, como afetam as maneiras com que as pessoas se relacionam umas com as outras e com o próprio ambiente.
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Capítulo II BRIGAS E VALENTES Ainda em minhas primeiras idas a Pinhão, quando estava interessada em compreender os modos com que os posseiros relembravam os guardas, jagunços e pistoleiros, chamou-me a atenção o fato de que, apesar de alguns desses homens de armas serem tidos como de fora, muitos deles eram oriundos do interior do município. Pinhão, contaram-me algumas pessoas, tinha fama de valente, reputação que era vinculada a um antigamente em que os homens saíam armados por toda parte, e matavam-se uns aos outros em suas brigas. Havia quem ressaltasse que naquela região cresceram muitos homens afeitos às armas, os quais se tornaram renomados pistoleiros, que poderiam trabalhar no município mas também viajavam pelo Paraná e iam até o Mato Grosso para cumprir os empreitos, os serviços de morte para os quais eram contratados. Grande parte desses pistoleiros inseria-se na carreira após terem matado em brigas e brigas de família, através das quais eles se tornavam hábeis nas artes de perseguir e de enfrentar, e adquiriam o renome de matadores de gente. Quando eu perguntava para os posseiros de onde eram os distintos jagunços que eles nomeavam em suas narrativas, era comum ouvir a sentença ele não era daqui. Algumas vezes, não ser daqui significava ter nascido e crescido em outro município. Porém, muitas vezes significava que o homem de que se falava nascera e crescera em outra parte do interior pinhãoense. Frequentemente, essa outra parte do interior era o Faxinal dos Ambrósios. Lá um mata o outro, disse-me certa vez um senhor posseiro, após ter falado de dois homens de armas da madeireira oriundos dos Ambrósios. Em outras histórias que ouvi pelo interior, os Ambrósios surgiam como lugar marcado por muitas mortes, ocorridas em brigas de família, caracterizadas como processos de sucessivas vinganças, tema que se destaca no imaginário dos moradores do interior. Sempre que havia morte provocada pelas mãos de outra pessoa, havia o temor e a expectativa de vingança. E várias das narrativas sobre as encrencas e mortes do passado remetiam a esses processos de retaliação, em que um ou vários homens levavam adiante a tarefa de dar fim em quem matara alguém de sua família, ou de sua estima. Ao falar da fama de seus lugares e de seus familiares, contudo, as pessoas não reproduziam de modo automático o estereótipo refletido na reputação. Os comentários sobre os valentes, as brigas de antigamente e as imagens das localidades onde se vive são sempre momentos em que a fama é deslocada para um outro caminho de reflexões, através do qual as pessoas que contam suas histórias ativam suas relações e os modos com que cultivam suas
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próprias trajetórias frente às situações que endossam a fama. Essas formas de lidar com os renomes de seu município, de suas comunidades e de suas gentes, revelam identificações bem humoradas, mas também a produção de distanciamentos temporais e a imputação de responsabilidades a determinados sujeitos e partes da família, com os quais se reconhece a existência de um vínculo, mas coloca-se em questão em que medida o que o outro faz diz respeito a si, ou interfere em sua existência. Além disso, quando falam sobre as brigas, brigas de família, encrencas e vinganças que fazem a fama de valente de lugares, famílias e homens, as pessoas revelam os processos pelos quais a hostilidade e a agonística tomam corpo, podendo se concretizar no ato de matar, que nunca é o final de uma história, mas a abertura de um novo tempo nas relações sociais. Os que matam alguém e os que têm um familiar morto formam um vínculo perigoso, tomado pela possibilidade de concretização de uma vingança. As vinganças são um elemento central das histórias de morte que ganharam força no âmbito da circulação de informações sobre os fatos ocorridos em Pinhão e nos Ambrósios, consolidando seu renome e o dos homens e famílias que lá viviam.
2.1 Pinhão e os valentes Enquanto contavam sobre as trajetórias de vida de certos homens de armas que trabalhavam para as Indústrias Zattar, era comum que as pessoas traçassem considerações sobre a relação entre lugar e gente. Há um reconhecimento de que as práticas e modos de ser de certos homens ruins tinham a ver com o lugar onde cresceram. Além disso, entrava em questão a concepção segundo a qual antigamente o homem que não andasse armado não era considerado homem, e também percepções acerca da valentia, enquanto atributo vinculado à agressividade. Essas perspectivas sobre a valentia estendem-se ao próprio município, regionalmente reconhecido por sua fama de valente, e como lugar de onde saíram muitos pistoleiros. Nesse sentido, as narrativas destacavam os movimentos desses homens de armas por lugares e relações com suas famílias e patrões, e a propagação de histórias em torno de suas figuras e atos. Quando falam da fama de valente do Pinhão, e também das famas de valente de localidades particulares do interior do município, as pessoas costumam referir-se a um passado mais longínquo, que remete às primeiras décadas do século XX, quando muitas famílias forasteiras, vindas em geral do próprio Paraná e de outros estados da região Sul,
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assentaram-se nos campos e faxinais da região. Renato Passos, senhor de oitenta anos de idade, que escreveu o livro “O Pinhão que eu conheci” (1992), foi uma das pessoas que me esclareceu como a fama do município ganhou força. Segundo Seu Renato, no começo do século XX, Job de Azevedo, dono da bodega que havia na então Vila Nova do Pinhão, realizou um assalto contra o fazendeiro Pedro Laurindo. Na hora do assalto, a máscara de Job caiu, deixando à mostra a face do criminoso. Para livrarse de ser denunciado, Job matou Pedro, golpeou fortemente sua esposa com o cano do revólver, e fugiu. Uma garota criada (filha de criação) do casal, que estava escondida dentro da casa e viu Job, correu para buscar ajuda com os vizinhos. No dia seguinte, no velório de Pedro Laurindo, os homens presentes juraram vingar a morte do fazendeiro. Quando soube do plano, Job fugiu para Guarapuava, onde procurou ajuda da polícia, argumentando que corria risco de vida. Um dia, ele estava num bar em frente à delegacia, quando outras pessoas ali presentes comentaram que havia uma nuvem de poeira no horizonte, na direção de Pinhão. Eram duzentos homens armados que vinham atrás de Job, para vingar Pedro Laurindo. O ladrão que matou o fazendeiro fugiu novamente. E foi então, disse Seu Renato, que Pinhão ficou com fama de valente. A história de Job de Azevedo também é descrita no livro de José Bischof, que como Renato Passos, era natural do município, e dedicou-se a escrever sobre a história de Pinhão e a apontar alguns fatos curiosos sobre as antigas famílias que lá se estabeleceram. Segundo Bischof (s/d, p.86): O latrocínio de Pedro Laurindo, foi reconhecido como cabeça, a Job de Azevedo, seu criado. Certa vez logo após o delito – Ismael Paulino Nunes, disse ao Job: Você foi o autor da morte e furto de Pedro Laurindo!... Job encolerizado, pegou no cabo do chicote e deu uma forte pancada na cabeça de Ismael, este empunhou uma adaga e com toda a força levou de encontro ao ventre de Job; casualmente a ponta da arma foi em cima da guaiaca, que estava recheada de patacões de prata. E depois disto, Ismael Nunes moveu-se e teve de gastar dinheiro para não ser processado. Um grupo de 200 homens, foram à Guarapuava à procura de Job para lincharem; mas não o encontraram homiziou-se no Estado de Mato Grosso (BISCHOF, s/d, p.86).
Na anedota escrita por Bischof, surge outro homem, Ismael Nunes, que tenta matar Job de Azevedo, mas acaba acertando sua guaiaca, espécie de cinto de couro, que estava cheio de dinheiro. Job foge para Guarapuava, mas isso não é o suficiente para escapar da vingança. Quando o imenso grupo de homens vai atrás dele para o lincharem, ele foge.
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Ambas as histórias sobre Job trazem um interessante conteúdo para pensarmos em valentia e no seu vínculo com práticas de retaliação, como a vingança, que tal como sugere Bischof, poderia, na época em que o caso aconteceu, ser obtida por meio de um linchamento, enquanto morte realizada pelas agressões de muitos homens, no espaço público. No episódio de Job de Azevedo, a vingança emerge como forma de sanção, ou seja, enquanto procedimento aprovado e organizado por uma coletividade, a fim de obter uma compensação por um dano sofrido (RADCLIFFE-BROWN, 1933; VERDIER, 1980; COSTA PINTO, 1949). Todavia, a proporcionalidade da retaliação é algo que emerge como ponto de questionamento, na medida em que aqui a vingança é organizada por um grupo de homens que pode ser visto como o Pinhão inteiro, e que desejam matar Job através do seu linchamento em um espaço público que é também exterior ao distrito. O que desponta, aqui, é a organização de uma vingança desigual, que conjuga a raiva de toda uma coletividade sobre uma única pessoa. Por conseguinte, a quantidade de homens correndo atrás de Job, pela cidade de Guarapuava, é um espetáculo de destaque, que se torna central na própria propagação da fama de Pinhão para além de seus limites. A noção de vingança, que conjuga certas expectativas de ações de retaliação geradas após uma morte, é central nos modos com que os moradores do interior percebem os efeitos que uma morte matada, ou seja, provocada pelas mãos de outra pessoa, gera na vida daqueles afetados por ela33. Contudo, devo ressaltar que essa modalidade de vingança destacada no caso de Job, realizada por meio de um linchamento propagado por um grande grupo de pessoas, é um exemplo excepcional se comparado com as situações que observei. Na ampla maioria delas, vingança implicava um ato de retaliação que deveria ser levado adiante pelos parentes próximos do morto, ou, no máximo, por amigos dele. De qualquer modo, quando dizem respeito a mortes, as vinganças envolvem na maior parte das vezes coletividades, e muito embora possam ser realizadas por um, passam pelo planejamento e pelas opiniões de várias pessoas que se revoltam com o fim de alguém querido. Tema recorrente em diversos trabalhos que se desdobram sobre situações de morte e de violência entre diferentes populações, as vinganças e seus desenvolvimentos são matéria de amplas teorizações, que abordam diversos pontos passíveis de diálogo com os modos através dos quais as pessoas com quem convivi concebem essas situações. Uma questão fundamental, nesse sentido, refere-se à ideia de vingança enquanto “troca de mortes”, tal 33
Utilizo a expressão morte matada, aqui, para caracterizar uma morte que é causada por alguém, com explícita intenção de realizar tal ato. Ressalto, porém, que essa expressão não é utilizada pelos meus interlocutores, que costumam falar somente em matar ou morrer, ou usam sentenças como ele matou o homem, mataram o homem, ele morreu atirado, faquearam ele.
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como descreve Hasluck (1967) em sua discussão sobre os feuds albaneses. Nesse sentido, a vingança tem a ver com concepções de reciprocidade vinculadas a formas destrutivas de relação. Buscando traçar uma descrição formal da vingança no plano da troca, Verdier (1980, p.14), por sua vez, concebe-a como “uma relação de troca bilateral resultante da reversão da ofensa e da permuta dos papeis de ofensor e ofendido”. Desse modo, do ponto de vista de quem a sofre, a ofensa cria um dano que demanda reparações. Bourdieu (1972) demonstra como a vingança é também uma contra-resposta fundada nas pressões que a comunidade e os parentes colocam sobre a pessoa que sofreu a ofensa. Para garantir sua respeitabilidade e aceitação, o ofendido deve realizar sua resposta ao atentado vivido, aquele que afeta a sua “honra” e por extensão, a “honra” de toda a sua família. Se é preciso responder a um atentado contra a vida de um ente querido, por outro lado, esses autores chamam atenção para como essas trocas se estabelecem no tempo e com o tempo, através do qual define-se quem vai proceder com a vingança e como, quais os limites territoriais em que é possível realizá-la (o que nem sempre vem ao caso), e abre-se a possibilidade de desfecho da ofensa, cujo fim permanece incerto. Nem sempre a morte de um inimigo encerra a vingança, ao contrário, ela pode abrir caminho para outras mortes e novas vinganças. Ao trabalhar com as “intrigas” e “questões” no sertão pernambucano, Ana Claudia Marques (2002) discute a temporalidade da vingança e, por conseguinte, das novas relações que ela instaura entre as partes envolvidas em tais disputas. A autora chama atenção para o caráter de infinitude que conforma essas tramas: ainda que muitas vezes as vinganças não se concretizem, a “intriga” entre as partes permanece, e acordos envolvendo distanciamentos espaciais são necessários para evitar novas querelas entre as pessoas que tomam parte na “intriga”. Nas histórias de morte e vingança que ouvi em Pinhão, o ato vingativo também não se realizava necessariamente. As pessoas falavam em vingança muito mais para ressaltar expectativas e possibilidades de atuação de determinadas famílias afetadas pela morte de um dos seus, demarcando seu envolvimento em certas relações e situações perigosas. Em casos de assassinato, as vinganças poderiam também levar a arranjos de distanciamento entre famílias e coletividades marcadas pelo atravessamento de uma ou mais mortes em suas relações, ou ao confinamento de certas pessoas a locais nos quais elas estivessem seguras de encontros com seus inimigos. Foi isso que aconteceu com Job, que precisou primeiro fugir de Pinhão, e depois de Guarapuava, para escapar dos homens que queriam vingar Pedro Laurindo. A vingança, desse modo, nunca é o fim de uma relação de hostilidade, e nem sempre seu anúncio levará a uma morte. Sua declaração pode ser o começo de um deslocamento, que envolve a prerrogativa do
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estar ausente de certos lugares e relações, para escapar da retaliação. Mais do que isso, quando as pessoas contam histórias de mortes e falam em vingança, elas estão apontando para uma forma de se relacionar com uma morte matada e com a indignação que ela pode causar. Tal como no caso de Job de Azevedo, em diversas narrativas que traziam à tona a expectativa de vingança, o velório surgia como um momento fundamental de declaração das intenções de retaliação. Com isso, não quero dizer que antes do velório, se alguém da família do morto encontrasse aquele que o matou, a vingança não seria consumada. O que torna os velórios marcantes como início do tempo da retaliação, é que nesses eventos de despedida de alguém falecido, o desejo de vingança se torna de conhecimento público, enquanto é declarado pelos membros da família do morto, para todos os presentes. Contudo, esse tempo da retaliação, uma vez aberto, é capaz de não se fechar. As hostilidades podem permanecer latentes, e isso é inclusive desejado por pessoas que não querem ver mais sangue derramado, ou que querem impedir que seus próximos tomem parte em atos vingativos. A valentia, tal como delineada na trama de Job, tem a ver com o Pinhão, e nesse sentido, tanto com o assassino de Pedro Laurindo quanto com os duzentos homens que o perseguem. Enquanto o primeiro se dispõe a matar para não ser delatado, os outros se dispõem a executar o ladrão assassino com suas próprias mãos. Aqui, a valentia remete a atitudes exageradamente agressivas, que indicam a disposição de matar e de reagir com o uso de força a uma ofensa. Mas em seu uso corrente, o termo valente pressupõe na maioria das vezes uma concepção negativa sobre um sujeito, algo que remete ao reconhecimento dele como alguém que não vê limites, ou não pondera se é de fato preciso responder ao outro de modo agressivo e hostil. O valente tem uma espécie de brutalidade encarnada nos modos com que interage com os outros, apresentando uma indisposição à conversa e uma expressão corporal que chama brigas. Quando falam sobre os valentes, as pessoas costumam ressaltar o gosto deles pela bebida, que altera suas forças e seu juízo, tornando-os mais dispostos a provocar e a enxergar provocações nas atitudes alheias. Eles falam alto, seu olhar é duro e inspira maldades, não sabem conversar, ou seja, não dispõem dos bons modos necessários para conviver bem com os outros. O valente parece um bicho, também ouvi dizer. Sua corporalidade ultrapassa o que se considera um bom corpo humano, na medida em que seu gestual e seus modos de usar o físico destoam do que é socialmente conveniente em termos de comportamento, aproximando-os dos animais. E, por fim, o valente, em especial o de antigamente, exibia suas armas na cinta. Assim, valentia também nos remete aos usos e técnicas do corpo, que
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permitem avaliar como uma pessoa se porta em meio às outras, e o que, em sua conduta, abala a possibilidade de se ter com ela uma boa convivência. Um exemplo que Dona Francisca contou-me sobre valentia foi o de um homem que havia matado o próprio pai, por causa de herança. A fim de salientar o mal caráter do sujeito, Francisca trouxe à tona várias situações da vida dele. Segundo ela, ele era filho único, e sua família era bastante rica. Ele matou seu pai por causa de conflitos em torno de sua herança, e assistiu ao velório dele do alto de uma árvore, escondido. Outra vez ele matou um homem que estava passando na estrada, pelo simples fato de não ter gostado do jeito com que o sujeito o cumprimentara. Em uma situação diversa, ele bateu com sua caminhonete num cavalo que vinha cruzando a estrada, e matou o animal a tiros porque ele havia amassado seu veículo, algo que Francisca considera uma judiação, um ato de crueldade. Além disso, o homem era bêbado, e sua esposa tinha que fazer as coisas como ele queria, senão ele virava num bicho. A situação chegou ao ponto em que o homem tornou-se uma ameaça para a família toda da mulher, de modo que o pai dela e seus irmãos combinaram de matá-lo, antes que ele os matasse. Outro exemplo me foi contado por Dona Ana Reis, moradora do Faxinal dos Cascatas. Em uma de nossas conversas, perguntei a ela se seu pai, que era inspetor de quarteirão34, poderia ser considerado um homem valente. Ela enfaticamente me respondeu que não, destacando que toda a vida seu pai fora um homem muito educado, que chamava até mesmo as crianças de senhor e de senhora, e com quem os conflitos eram resolvidos na base da conversa. À valentia, portanto, são contrapostos os bons modos de tratamento entre as pessoas, sua educação, percebida através das maneiras pelas quais alguém conversa. Dona Ana falou, então, que o que dá a valentia é a bebida, e contou-me a seguir o causo da morte de uma mulher. Um dia o marido dela chegou em casa bêbado, e ela foi tirar o estribo do burro dele. Atordoado pelo álcool, ele achou que a esposa era uma outra pessoa que queria atacá-lo, e deu diversas facadas na cabeça dela, matando-a. A valentia, tal como me explicava Dona Ana, pode ser vista como um estado de ruindade provocado pelo consumo de substâncias entorpecentes, que fazem com que as pessoas não se reconheçam mais umas às outras e sejam capazes de cometer atrocidades sem sentido, como nesse caso da mulher que foi morta pelo marido bêbado. É interessante, desse modo, observar que tanto Dona Ana quanto Dona Francisca trazem à tona histórias de valentes que agiam com ruindade não só 34
Os inspetores de quarteirão eram homens que antigamente cuidavam da lei e da ordem nas comunidades do interior do município. Prendiam criminosos, resolviam conflitos entre vizinhos, e fiscalizavam as cercas dos moradores que viviam nas áreas de faxinais, para garantir que estivessem bem vedadas e que os porcos não passassem para as terras de cultura.
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contra homens no espaço público, mas contra seus próprios familiares, e, em ambos os casos, contra suas esposas. Assim, se a valentia é um traço mais relacionado ao âmbito masculino e a comportamentos frente a um público mais amplo, nas falas das mulheres, essa característica pessoal também era lida através das atitudes dos homens dentro de casa. Um homem valente é um ser que ultrapassa qualquer limite de ponderação, que não sabe conversar, que bebe e briga com qualquer um, e que gosta de ser ruim. A ruindade, quando relacionada aos valentes, tem a ver justamente com o potencial que uma pessoa tem de agredir os outros, de tratá-los de mal jeito, de ofendê-los e de se sentirem ofendidos por atos que muitas vezes, aos olhos dos outros, passariam batidos, como irrelevantes. O gosto pela ruindade é muito destacado nas narrativas sobre certos pistoleiros do Zattar, que, segundo os moradores do interior, gostavam desse serviço, tinham uma natureza ruim, pareciam bichos, ou seja, seus termos de convívio com os outros destoavam daqueles que regem as boas relações entre as pessoas. Porém, os valentes poderiam ser bons companheiros em alguns momentos. Como uma outra senhora me explicou, eles podem ser de grande valia em situações de perigo, justamente por terem coragem de fazer coisas que a maioria das pessoas não têm. Essa coragem dos valentes, apesar de desabonadora, pode, portanto, ter também um lado positivo. Pois apesar de não ser bom ter um valente dentro de casa, é bom ter um por perto quando é preciso, por exemplo, ir a algum lugar desconhecido, ou a um lugar onde se sabe que pode haver perigos. Do modo como me foi contada, a fama de valente do Pinhão, reconhecida nos homens que vão atrás de Job para linchar Pedro Laurindo, tem a ver com uma proposta exagerada de retaliação, que contém um lado positivo, na medida em que se trata de uma afirmação de um coletivo, enquanto pessoa moral, frente a um homem que agredia a paz na localidade. Essa história possibilita percebermos como, de um certo ponto de vista, a vingança e a valentia conjugam-se para conformar uma imagem positiva de bravura, que pode ter a ver com ideais de fazer justiça com as próprias mãos. E na medida em que a história não termina em uma morte horrenda – como ela poderia ter sido-, e Job, o bandido, foge e se livra da vingança, a narrativa não inspira maiores sensações de repulsa ou sofrimento. Essas histórias revelam o caráter ambíguo da valentia: se na maior parte das vezes um homem valente é um homem ruim, em certos momentos pode ser bom e preciso ser ruim. Além disso, o termo é caracterizado por sua abertura, podendo ser utilizado para se referir a eventos do passado que levam certos lugares a terem uma fama regionalmente reconhecida. Ao mesmo tempo, quando relacionada ao cotidiano e à convivência com certas pessoas, a noção de valente conjuga comportamentos considerados dignos de uma pessoa ruim, referidos
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tanto a atitudes fora de casa quanto dentro dela. Porém, nem todos os homens que matam ou que que brigam são reconhecidos como valentes, de modo que não é o ato de matar, em si mesmo, que dá força a essa reputação. Na maioria das vezes em que usam esse termo, as pessoas estão falando de sujeitos distantes delas, com os quais não tinham convívio ou não se identificavam, ou que representam um outro tempo, relativo ao passado. Dificilmente alguém reconhece um parente próximo como valente, ou o faz sem citar também lados positivos dessa mesma pessoa. Nesse sentido, tal ocorre com os termos guarda, jagunço e pistoleiro, chamar alguém de valente envolve sempre outras considerações, as quais giram em torno de formas de convívio e de respeito mútuo entre as pessoas, e de reconhecimentos dos vínculos que as unem. Do que se apreende dessas noções sobre valentia, assim como sobre a história de Job, fama é algo que não diz respeito somente a sujeitos específicos, mas que, como observa Marques (2002), estende-se a coletividades e a lugares mais amplos. Conforme a autora, a “fama” constitui um corpo de conhecimento em contínua elaboração, segundo o qual serão delineadas as interpretações de certos atos. A consolidação da “fama” tem a ver com comportamentos excepcionais, os quais são percebidos em referência a comportamentos ordinários e aos valores sociais que conduzem as pessoas em sua vida em comunidade, de tal modo que aquilo que é insólito afirma-se mediante o que é corriqueiro, comum. A fama de valente, tal como concebida pelos que me contaram histórias sobre o tema, invoca o exagero na agressividade de certos homens, ao mesmo tempo em que assenta esse exagero em atos tomados como respostas comuns a agressões e mortes, como a própria vingança. Contudo, se algumas pessoas e locais são passíveis de serem identificados com tal fama, há outras qualificações e relações que atravessam essas mesmas pessoas e locais, e que podem contrabalançar os traços de sua reputação, ou adicionar outros traços a ela. É o que acontece quando alguém que quer bem ou tem proximidade com um homem que é tido por outros como valente, fala dele destacando seus bons atos sem negar os maus.
2.2 Os Ambrósios e as brigas de família Enquanto Pinhão tem sua fama de valente, algumas localidades e famílias do município também adquiriram essa reputação. Foram essas famílias, antigamente em contínuas lutas e encrencas umas com as outras, que receberam a qualificação de valentes, a qual, por sua vez, ultrapassa-as, vinculando-se às terras onde vivem e, certas vezes, às suas
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localidades de um modo mais amplo. Esse é o caso do Faxinal dos Ambrósios, reconhecido como lugar de gente ruim por diversos posseiros que viveram as ameaças do Zattar. Essa fama dos Ambrósios se deve ao fato de que de lá vieram grande parte dos homens de armas da madeireira, justamente aqueles reconhecidos como ruins e pistoleiros, e que realizaram ações como o tiroteio contra a Escola Rural Municipal Nossa Senhora de Lourdes, e contra as crianças dos sem-terra no início dos anos 1990 (Cf. Capítulo 1). Esses matadores de gente são tidos como homens que já tinham trajetórias de vida relacionadas às armas e ao uso delas em brigas e vinganças. No caso dos Ambrósios, a fama passa por ideais de valentia referentes à agressividade de homens que antigamente enfrentavam-se em locais públicos, sobretudo em bares, festas, e estradas. Quando fui ao Faxinal dos Ambrósios, compreendi que os Ambrósios compreendem uma ampla região do interior pinhãoense, que abrange as terras de uma antiga sesmaria, cujo proprietário tinha o sobrenome Ambrósio. Para chegar até lá, é preciso pegar uma estrada de chão que, como as outras estradas principais que atravessam o interior, leva a um município vizinho. Grande parte do trajeto corta terras de campo, áreas majoritariamente ocupadas pela elite local, estabelecida em fazendas destinadas ao plantio de grãos e à criação de gado bovino, para corte e produção de laticínios. Depois de uns vinte quilômetros de campo, o mato típico dos faxinais começa a surgir e aos poucos vai começando a tomar conta da paisagem. Estamos, agora, no Faxinal dos Ambrósios, nome que remete tanto à floresta de araucárias, antigamente usada para a criação de gado solto, quanto ao sobrenome de uma das famílias dos antigos, no caso, a família Ambrósio, que lá tinha terras. Apesar disso, eram muitas as famílias que viviam por lá. E, como os moradores me explicaram, existem várias comunidades diferentes dentro dessa região mais ampla chamada de Faxinal dos Ambrósios, algumas inclusive localizadas nas áreas de campo. Essas comunidades, por sua vez, são nomeadas de distintas maneiras. Podem também ser chamadas por meio da expressão Faxinal dos (...), seguido pelo sobrenome de outra família que detinha ou detém terras naquela área específica. Podem ainda ser nomeadas a partir do santo padroeiro da capela ou igreja que existe em uma localidade. Algumas comunidades recebem o nome de alguma referência ambiental, como de algum tipo de vegetação que lá existe em abundância, ou de um rio, um lajeado35 que atravessa aquela área. E há também aquelas que são chamadas pelo nome de uma antiga fazenda da região, como Boa Cria. Assim, falar que vamos ao Faxinal dos Ambrósios é remeter-se a um ponto mais 35
Lajeado é como se chamam os rios pedregosos, que formam cascatas, e que em certos pontos de seu curso correm por cima de rochas planas, chamadas de lajes ou lajinhas.
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amplo de localização, que não diz para qual localidade ou comunidade específica estamos indo. No Faxinal dos Ambrósios, permaneci especificamente em uma localidade reconhecida como a comunidade de Faxinal dos Caldas, que fazia divisa com as comunidades de São Judas Tadeu, e de Lajeado Branco. Cada uma dessas comunidades tinha sua própria igreja. Nelas também viviam certas famílias, identificadas com essas localidades que, por sua vez, também eram reconhecidas como áreas em que vivem determinadas famílias, caracterizadas como gente dos, qualificação à qual segue o sobrenome de determinada família ou de determinado grupo mais amplo de parentes ao qual ela se vincula. No que diz respeito à sua organização espacial, as comunidades apresentam pequenos núcleos centrais, formados pela igreja, um bar ou mercadinho, às vezes uma escola, e uma ou duas casas no entorno. Algumas comunidades apresentam também vilinhas, como os moradores do interior chamam aglomerados de casas onde nem sempre vivem pessoas de uma mesma família, e estabelecidas em lotes pequenos, de poucos hectares de terra. Esse, no entanto, não é o caso do Faxinal dos Caldas. Lá, os moradores estão espalhados para fora do núcleo central da comunidade, e a maior parte das famílias vive em terrenos familiares, ocupados por pais e seus filhos, ou por grupos de irmãos e seus filhos. Em alguns casos, os terrenos não foram subdivididos dessa maneira, de modo que o lote apresenta somente uma casa de família. No Faxinal dos Caldas, os terrenos de herança dos antigos moradores já foram muito repartidos entre seus descendentes. É raro encontrar pessoas que possuem áreas maiores do que 5 alqueires, ainda que os terrenos familiares, como um todo, pudessem ser mais amplos do que isso. Ademais, algumas famílias possuíam terrenos pequenos em outras partes para além do terreno familiar, e ainda dentro do Faxinal dos Caldas. Essas áreas poderiam ter sido compradas de terceiros, ou terem sido recebidas como herança. Como em toda área de faxinal, ali há criação de gado e, nas áreas em tamanho suficiente, as pessoas vivem do extrativismo de erva-mate. Dos anos 1990 para cá, houve uma reconfiguração das atividades produtivas praticadas naquela região. As lavouras, que antes eram feitas nas terras de cultura nas beiras de rios, serra abaixo, hoje também são plantadas no faxinal. E muitas pessoas agora levam o gado para essas antigas áreas de lavoura, onde atualmente fazem pastos. As divisas entre as comunidades costumam ser dadas pelos rios ou pontos das estradas, como uma encruzilhada ou uma curva. Além disso, as comunidades têm um sentido
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religioso, na medida em que seu núcleo é a igreja católica36. É quando passamos na frente na igreja, sobretudo, que as pessoas exclamam: aqui é a comunidade dos Caldas, dos Silveira, do São Judas, do São Sebastião, etc. Fora isso, falam em comunidade quando são perguntadas sobre onde vivem, como por exemplo: Nós somos dos Ambrósios, moramos nos Caldas; ou nossa comunidade é a dos Caldas. No Faxinal dos Caldas, fui recebida na casa de Seu Lucas Teles e Dona Áurea Teles, ambos com idade próxima aos cinquenta anos de idade, pais de um jovem rapaz e de uma menina. Seu Lucas e Dona Áurea são primos cruzados. A falecida mãe de Lucas era irmã do pai de Áurea, Seu Laércio, que vive em uma casa a uns cem metros da do casal que me recebeu. Seu Laércio tem oitenta anos de idade, e detém uma área de dezessete alqueires de terras, as quais são de herança de sua falecida esposa, que lá viveu com seus pais. Essas terras compõem o que chamo aqui de terreno familiar, ou seja, um terreno subdividido entre os membros de uma mesma família. Seu Lucas e Dona Áurea possuem ali uma área de três alqueires. Dália, irmã de Áurea, que mora em uma casa perto da de Seu Laércio, também tem um terreno de três alqueires. O restante das terras estão divididos entre Seu Laércio (que mora com um filho solteiro), e outro de seus filhos, casado e que vive em sua própria casa. Essas subdivisões do terreno são marcadas por cercas, de modo que ali não há, como em outros terrenos familiares por onde passei, trânsito de animais de criação por toda a área. Seu Lucas vive com Dona Áurea na terra de herança dela, mas possui outros terrenos: 5 alqueires na beira do rio, a quilômetros de distância da comunidade, onde tem pasto plantado; e 5 alqueires de herança do pai dele, no mesmo Faxinal dos Caldas. Além disso, Seu Lucas faz lavouras em um terreno que hoje é parte da área de um acampamento do MST, em terra do Zattar. Depois que o MST se estabeleceu lá, Seu Lucas, que participou desse processo de ocupação, permaneceu na área onde tinha lavoura, mas agora enquanto membro do acampamento, onde viveu por um tempo. Quando sua filha mais nova nasceu, eles voltaram para a casa no terreno de herança de Dona Áurea. Porém, Seu Lucas permanece trabalhando nas terras do acampamento. Pelo restante da vizinhança, Seu Laércio e seus filhos são reconhecidos como os Laércio, ou a gente do Laércio. Seu Lucas, apesar de genro de seu tio Laércio, se identifica como parte de outra gente, os Teles, sobrenome de seu pai. Há, porém, outro plano de identificação através do qual Seu Lucas e Seu Laércio se compreendem como parte de uma mesma gente: ambos se percebem como dos Lins, família com a qual a mãe de Laércio e, 36
Ainda que existam igrejas evangélicas no interior, os centros das comunidades permanecem sendo reconhecidos pela presença da igreja católica.
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portanto, avó de Lucas, era vinculada. A noção de gente dos, nesse sentido, é aberta às diferentes perspectivas que as pessoas possuem acerca dos laços de parentesco que as compõem, ora enquanto membros de uma família mais restrita àqueles familiares que vivem ou viveram em uma mesma casa ao longo da vida, ora enquanto relacionadas a uma trama de parentesco mais ampla, à qual se conectam através dos laços familiares de seus pais e mães. Avós, tios, primos e sobrinhos são geralmente tomados como parentes e como parte da mesma gente à qual pertence a pessoa que conta sobre suas relações de parentesco. Cunhados e cunhadas, sogros e sogras, genros e noras, são percebidos pelos membros de uma família como parentes, mas nem sempre serão tidos, a princípio, como parte das gentes com as quais os membros de determinada família se identificam. Porém, no caso de Seu Laércio e de Seu Lucas, sogro e genro, eles eram mais que parentes, mas parte de uma mesma gente, quando seu vínculo era considerado a partir da perspectiva de que eles também eram tio e sobrinho, e que a mãe de Seu Lucas, portanto, era gente dos Lins. Em situações distintas, quando não há laços prévios de parentesco entre afins, o vínculo do matrimônio pode aproximar um dos cônjuges das gentes dos seus sogros, de modo que eles passem a se reconhecerem e a serem reconhecidos enquanto ligados a uma mesma gente, dentre as várias gentes possíveis com as quais possuem ligações familiares. Por outro lado, gente dos pode ainda ser uma expressão acionada para se referir a determinado lugar onde tal gente vive. Consequentemente, os Laércio, os Teles e os Lins podem ser concebidos como gente dos Ambrósios por pessoas de outras regiões do município, e num plano mais restrito às comunidades particulares do Faxinal dos Ambrósios, os Laércio são tidos como gente dos Caldas. Há, portanto, uma mutualidade entre gentes e seus lugares, que faz com que ao falar em certas famílias, as pessoas indiquem onde elas vivem, e ao falar de certos lugares, explicitem os nomes de algumas famílias que lá habitam. Caracterizados como brabos, envolvidos em muitas brigas e vinganças, os Lins são uma das famílias que deram fama de lugar de gente ruim ao Faxinal dos Ambrósios. Como eu já ouvira falar sobre essa fama em outros cantos do interior, perguntei a Seu Laércio sobre isso. Ele contou-me, então, que há tempos atrás, no cartório em Guarapuava, passou por uma situação que mostrava a fama de seu lugar e de sua gente. Enquanto aguardava no balcão para ser atendido, o cartorário perguntou-lhe de onde era. – Do Pinhão. – De onde no Pinhão? – Dos Ambrósios.
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O homem ficou com o olho arregalado. Do Pinhão e ainda por cima dos Ambrósios. – E de qual família o senhor é? – Dos Lins.
Seu Laércio ri desse acontecimento. Foi só falar que era dos Lins, que foi atendido rapidamente pelo cartorário, o qual não fez mais nenhuma pergunta. Seu Laércio invoca, de um modo jocoso, o medo que causava nos que não o conheciam, quando apresentava-se como sendo simultaneamente do Pinhão, dos Ambrósios e, finalmente, dos Lins. As perguntas do cartorário, assim, demonstram como as pessoas elaboram seus modos de “mapeamento” sobre as outras, enquanto práticas de conhecimento do território, das famílias e de suas reputações (COMERFORD, 2003). Nesse caso, o “mapeamento” do cartorário é realizado por meio de um saber acumulado sobre gentes e lugares, cujo renome caminha com as pessoas e com os causos sobre elas e as localidades onde vivem. Tal como sugere Munn (1986), a fama invoca uma dimensão móvel dos nomes das pessoas e de seus lugares, que adquirem seus próprios movimentos, através dos pensamentos e das narrativas de outros, que serão refletidos novamente sobre aqueles que carregam tal reputação. Além disso, na história de Seu Laércio, a soma de suas três identificações é apresentada de um modo positivo, como algo que o fazia respeitado, ao mesmo tempo em que provocava receios, na medida em que os lugares e a gente dele tinham fama de valente. Pensando que estava lidando com um homem potencialmente perigoso, o cartorário teve pressa em atender seu Laércio, e o tratou com cordialidade. O fato disso ter acontecido em Guarapuava, fora de Pinhão, também é revelador da fama que não só o município, mas também que certas localidades e gentes adquiriram regionalmente. A narrativa de Seu Laércio, provocada por minha pergunta sobre a reputação de seu lugar e de seus familiares, guiava-me assim para uma outra forma de lidar com essa que a princípio seria uma má fama, tornando-a motivo de riso e favorecimento, algo com o qual se faz piada e se testa as atitudes e conhecimentos dos outros. A identificação de Seu Laércio com os Lins é feita por via de sua mãe, Maria Rosa Ribas, filha de Domingos Lins, ele sim considerado um homem valente, envolvido com mortes, e cujos filhos homens também seguiram por essa via. O pai de Seu Laércio chamavase Valdomiro Silva, mas era conhecido como Valdomiro das Dores, porque sua mãe se chamava Maria das Dores. O parentesco, portanto, é concebido por essas famílias como bilateral, o que tem implicações sobre como familiares se reconhecem uns aos outros e são reconhecidos como gente dos, por aqueles que os conhecem. Não é óbvio, nesse sentido, se as
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pessoas vão se identificar ou se serão mais identificadas com a família do pai ou da mãe. No caso de Seu Laércio e de seu pai, as relações de parentesco pelo lado materno adquirem proeminência sobre as do lado paterno. Isso se deu não só porque a família de sua mãe era mais numerosa e mais conhecida do que a do seu pai, mas também porque Seu Laércio nasceu e cresceu nas terras de seu avô materno, Domingos Lins, que ficavam em outra comunidade do Faxinal dos Ambrósios. Foi depois de se casar que ele veio morar no Faxinal dos Caldas. As identificações com certas gentes, portanto, não dizem respeito ao sangue, simplesmente, ou a um sobrenome por si mesmo, mas têm a ver com onde se é criado, a terra em que se vive, e com a família de qual dos seus pais a pessoa tem maior proximidade ao longo da vida. É nessa direção que Seu Laércio diz ser dos Lins. Contudo, em outros momentos ele certamente poderia falar de si como Silva, identificando-se mais com a gente de seu pai. Embora reconhecesse a fama de sua família, enquanto os Lins, Seu Laércio buscava distanciar-se dela, esclarecendo para mim que ele e seus irmãos nunca foram de briga. Seu avô, seus tios e seus primos é que eram os valentes, e eles não moravam somente nas terras de Domingos Lins, mas com seus casamentos, espalharam-se pelo Faxinal dos Ambrósios, indo morar também nas terras de seus/suas cônjuges. Domingos Lins era filho de um forasteiro, que chegou aos Ambrósios no início do século passado, e foi morar no oco de uma imbuia37, em um capão de mato por entre os campos. Ele teve dois irmãos, cada um com um sobrenome diferente, algo recorrente nas genealogias dos moradores do interior. Tal como aconteceu com esses irmãos, a mãe de Seu Laércio também não possuía o mesmo sobrenome que seu pai e que alguns de seus irmãos, e sim o sobrenome Ribas. E em diversas outras famílias deparei-me com situações em que os pais tinham um sobrenome, enquanto os filhos recebiam outros, que poderiam ser da mãe, de algum parente dela, de alguém da família do pai, ou mesmo um sobrenome novo, que não era de nenhum antepassado ou parente dos pais da criança. Atualmente, essa prática de dar sobrenomes diferentes aos filhos não é mais comum. Desde mais ou menos a década de 1960, predomina a tendência em identificar as crianças com o sobrenome de seu pai38. 37
A imbuia é uma das espécies de árvores típicas da floresta de araucárias, e sua madeira é considerada nobre. Atinge 20m de altura, e seus troncos podem chegar aos 150 cm de diâmetro. 38 Faço essa afirmação com base nos diagramas de parentesco que elaborei durante minhas visitas às casas dos moradores do interior. Esse foi um dos métodos de pesquisa que utilizei ao longo do trabalho de campo, por meio do qual eu começava perguntando quem eram os pais e os pais dos pais dos meus interlocutores. Questionava também quem eram os irmãos dos pais e os irmãos dos moradores que eram o ponto de partida do diagrama. Junto a isso, perguntava sobre os casamentos (quem casou com quem, e de que famílias e lugares eram os cônjuges). Além do mais, eu colhia informações sobre onde cada parente havia nascido, vivido, se tinha se mudado, por que tinha se mudado. Desse modo, os diagramas acabavam por fornecer uma ampla visão das histórias das famílias, de seus vínculos e dos lugares onde se desenvolveram. Enquanto falavam sobre seus
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Um dos irmãos de Domingos era um renomado curador, que benzia pessoas e remediava suas doenças. O outro irmão foi embora do município, e nunca mais se ouviu falar nele. Domingos Lins tinha um bar/mercado, e valente, cometeu várias mortes por causa de encrencas em torno de terras e uso de fontes d’água, e provocações com seus vizinhos e frequentadores do seu estabelecimento. Ele morreu no presídio, depois de velho. Seus filhos também cresceram valentes, e vários deles foram assassinados em vinganças, que estenderam-se depois aos seus próprios filhos, primos de Seu Laércio. Os irmãos do avô de Seu Laércio constituíram suas próprias famílias e não se metiam nas questões de Domingos. O mesmo aconteceu com a mãe de Seu Laércio, que morava nas terras do pai, mas cujo marido e filhos também mantinham-se distantes das vinganças praticadas pelos irmãos e sobrinhos de Maria Rosa. Apesar de Seu Laércio rir das implicações de suas três identificações sobre seu atendimento no cartório, ele próprio não se identifica com a valentia de seu avô e de sua gente. Desse modo, a fama nem sempre é acionada por meio de um viés da semelhança entre o sujeito de que se fala, ou que fala, e os renomes de seus respectivos lugares e gentes. Ao contrário, a fama muitas vezes emerge como um contraponto, através do qual pode-se também ponderar que: não quer dizer nada ser da mesma família; os antigos é que eram os ruins, eles são gente boa; não eram esses Lins que eram os ruins, eram os do Domingos. Marques (2002), chama atenção para as ambiguidades que cercam a categoria fama, o parentesco e o território, que compõem e são compostos por múltiplas tramas de pertencimento, das quais as pessoas participam ao mesmo tempo. De modo parecido, as narrativas e vínculos que meus interlocutores produzem em relação às suas famas, gentes e lugares revelam movimentos de aproximação e afastamento entre esses termos e as pessoas que a eles são relacionadas, assim como uma contínua relativização dessas mesmas categorias. Ernesto Lins, um dos primos maternos de Seu Laércio, era notável por sua infâmia e destemor, e reconhecido como um homem ruim nas áreas adquiridas pelas Indústrias Zattar. Através de suas participações em brigas nos Ambrósios, nas quais matou outras pessoas, Ernesto adquiriu renome e foi trabalhar como guarda para a madeireira. Seu Laércio, contudo, não comentou nada comigo sobre Ernesto. Foi Felícia, senhora que também mora no Faxinal dos Caldas, mas não tem parentesco com a família Lins, que falou sobre o homem, quando me dizia como era a vida nos Ambrósios antigamente, lembrando dos homens ruins parentes, as pessoas relatavam vários acontecimentos sobre a vida dessas pessoas, e não raro, casos de morte matada dentro de suas famílias, ou de parentes que haviam matado gente.
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que habitavam aquela região. Porém, ela não falou tanto em Ernesto, e sim na mãe dele, Virgília, que também era valente. Andava a cavalo pelas estradas, com um 44 na cinta e um litro de pinga na mão, e participava das vinganças realizadas pelos seus parentes. Pense no tipo da mulher! – exclamou Felícia, séria. Virgília, assim, era rememorada por agir conforme o esperado de um homem, sobretudo de um homem envolvido em brigas de família, o que de certo modo também tornava sua figura caricata, e dava ainda mais peso à fama dos Lins, gente na qual até as mulheres eram valentes. Os Lins tinham brigas com duas outras famílias dos Ambrósios, e por isso tanto mataram quanto foram mortos. Embora algumas pessoas tenham me dito que essas brigas eram motivadas por terra e pelo uso de fontes d’água, o discurso mais comum sobre o que as estimulava diz respeito ao modo de ser dos homens de antigamente. Como Felícia me disse, antigamente o homem que não andasse armado não era considerado homem. Munidos de suas pistolas, eles iam às festas de santo39, na igreja ou nas casas da vizinhança, onde sempre havia música e baile. Lá, bebiam muito, e logo começavam a se provocar, por quererem tomar o par de dança dos outros, ou por impedirem certas moças de dançarem com qualquer um além deles. Dessas festas saíam as brigas, que resultavam em mortes. O pai e os irmãos do morto, ou mesmo seus filhos, uniam-se, então, para vingar seu ente querido, e para isso buscavam matar aquele que matou seu familiar. Muitas vezes, porém, a vingança era dirigida contra qualquer um dos irmãos daquele que matou, pois era comum que eles andassem juntos e se ajudassem em suas brigas. Assim, elas eram concebidas como brigas de família ou vinganças de família, em que grupos de homens formados pelo pai e seus filhos, os quais também são vinculados pelo fato de morarem em uma mesma casa, uniam-se para fazer vingança. Essa vingança, por sua vez, poderia gerar uma outra por parte da família que cometeu a primeira morte e teve agora a perda de um de seus membros. E assim essas afrontas prosseguiam, até que, finalmente, algum dos lados partisse, fosse embora para longe. Briga, em si mesmo, é um termo mais usado para se fazer referência a acontecimentos específicos de provocação, agressão, e até morte, que podem inclusive acontecer dentro de uma mesma família. Briga de família, por sua vez, diz respeito a uma hostilidade entre famílias, e remete a um processo de continuidade da briga, espalhada agora por entre pessoas 39
Essas festas são realizadas em datas comemorativas dos santos padroeiros de uma comunidade ou de uma família, e permanecem sendo realizadas. Costumam ter início com uma reza, em que os anfitriões e convidados reunidos realizam orações e cantos dentro da igreja ou da casa em que a festa está acontecendo. Depois da reza, é realizada uma procissão e a erguida do mastro com a bandeira do santo homenageado. Por fim, as festas seguem com um baile animado com música gauchesca, gênero musical preferido dos moradores do interior de Pinhão.
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que são reconhecidas como familiares do morto e de quem o matou. Assim, as brigas de família que são responsáveis pela propagação da fama dos Ambrósios enquanto lugar, e de sua gente como ruim, são na verdade uma sequência de vinganças, cuja particularidade não está na mera realização de atos de retaliação, mas sim na mobilização, ao menos em termos ideais, de todos os homens das duas famílias que brigam entre si. Porém, a relação de inimizade não recai sobre toda uma gente, na medida em que nem todos aqueles que se reconhecem como parte de uma mesma trama de parentesco/lugar, se envolvem nessas brigas. Elas assumem, desse modo, a mesma forma que outras modalidades de vingança possuem em geral nas histórias que ouvi, ou seja, a de que são os membros daquela que é considerada a família do morto que devem vingá-lo: seu pai, seus irmãos, seus filhos. Nesse sentido, a própria briga, enquanto de família, é uma expressão que dá um significado peculiar e um certo fechamento ao coletivo compreendido como
família.
Enquanto são levadas adiante, as brigas de família tornam-se matéria de um conhecimento que se espalha regionalmente, de tal modo que as famas dos envolvidos acabam também atingindo as suas gentes e lugares de um modo mais amplo, consolidando as problematizações e ambiguidades que cercam essas categorias e as próprias reputações. Além disso, as brigas de família emergem como algo tipicamente masculino, levado adiante por homens envolvidos em vinganças, para os quais as armas eram algo importante em termos de suas práticas de cuidado e afirmação de si mesmos, das suas demonstrações de masculinidade no espaço público. Essa questão do porte de armas ganha ainda mais força em discursos que contrapõem esse tempo de antigamente ao presente, em que há uma série de proibições legais sobre os armamentos, e os homens já não saem para qualquer parte com pistolas em suas cintas. É assim que tanto as brigas de família, quanto as práticas masculinas sobre o uso de armas, emergem nas narrativas como algo afastado no tempo, algo que era parte do ser homem antigamente. Tal como as distâncias postas em termos das relações de parentesco e de território, o tempo também surge como elemento de afastamento moral daquele que fala da fama de valente de lugares e gentes relacionados consigo. Os Teles, gente de Seu Lucas, também foram envolvidos em vinganças relacionadas às brigas de famílias. A encrenca entre os Teles e os Pires começou em uma briga após um baile nos Ambrósios. Segundo Seu Lucas, quatro homens da família Pires pularam40 em seu irmão, Nivaldo, quando ele vinha embora da festa, pela estrada. Ele foi atacado por três irmãos, e pelo pai deles. Atiraram vinte e cinco vezes, mas só puderam acertar dois tiros, que 40
Pular em é uma expressão referente ao ato de atacar alguém. Também pode ser utilizada para falar das ações de cachorros e animais predadores, que pulam em outros animais.
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mataram Nivaldo. A partir daí começaram as vinganças, e Seu Lucas, então com dezesseis anos, passou a andar de revólver na cinta e com imagens de São Jorge e de São Sebastião, impressas em pequenos folhetos de oração, no bolso da camisa. Para ele, foram os santos que o livraram das esperas no mato e nas estradas, ou seja, das tocaias que os Pires organizavam para atacar de surpresa os rapazes da família Teles. A briga de família, portanto, têm os ambientes públicos como local privilegiado para a propagação das mortes e vinganças. Essas vinganças envolviam o pai e todos os três irmãos de Seu Lucas, inclusive Nilton, que depois viria a se tornar guarda do Zattar, tal como Ernesto Lins. Seu Lucas não me disse exatamente como as vinganças entre os Teles e os Pires se sucederam, se houve mais mortes e quem matou quem. Mas o fato de os Pires fazerem tocaias é indicativo de que havia um estado de conflito aberto entre as duas famílias, e que muito provavelmente um ou mais membros dos Pires tenha sido morto ou fortemente ameaçado. Além disso, os Pires foram embora do Faxinal dos Caldas, em uma tentativa de separar-se definitivamente do seu lugar para fugir da briga, que pode ter chegado a um nível insuportável de ameaças e mortes. Perguntei a Seu Lucas como seria se eles se encontrassem atualmente, se ficaria tudo bem. Ele me explicou que não, pois as tensões entre as famílias envolvidas em brigas permanecem, e elas nunca ficam inteiramente de bem umas com as outras. É bom se respeitar, não dá pra mexer, disse-me Seu Lucas. A inimizade, portanto, permanece no tempo, e as brigas de família não cessam de ter efeitos sobre a vida das pessoas que nelas tomaram parte. O tempo, aqui, é percebido de maneira distinta de quando as pessoas falam que tais brigas são algo de antigamente, o que permite que elas se distanciem desses atos e salientem o quanto seu lugar mudou em relação a um passado em que ser homem era andar armado. O tempo da vingança, ao contrário, não adquire um caráter fixo, mas parece estender-se ao tempo da vida das pessoas, como uma ameaça perene ou uma hostilidade duradoura, que pode gerar novas mortes caso um novo encontro venha a acontecer. Foi depois de se envolver nas vinganças de sua família que Nilton Teles foi trabalhar para a madeireira, cujo gerente contratava sujeitos que já tinham trajetórias de matadores. A participação de homens da região do Faxinal dos Ambrósios em brigas de família e vinganças abria portas para carreiras profissionais vinculadas às armas. Os pistoleiros, tal como concebidos no interior de Pinhão, têm muitas vezes trajetórias parecidas com as que Barreira (1998) observa em seu estudo sobre a pistolagem no Nordeste brasileiro, no qual os próprios “pistoleiros” com quem o autor conversou se definem como sujeitos que tiveram experiências iniciáticas de violência em suas famílias e vizinhanças, em situações de conflito de terras.
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Cavalcante (2003), por sua vez, observa que muitos desses homens são oriundos de lugares identificados como “terra de pistoleiros”, e ingressam na carreira jovens, às vezes depois de cumprirem pena em presídios.
Em ambos os autores, há exemplos de homens que se
consolidam como pistoleiros após terem tomado parte em “vinganças de sangue”. Em Pinhão, porém, há o reconhecimento de que alguns desses pistoleiros seguiram essa carreira sem terem, aparentemente, passado por antecedentes desse tipo, pois não só vinham de famílias pacíficas, como eram homens gente boa, que sabiam conversar, com quem era bom de se conviver. Ainda assim, a maioria deles é reconhecida como homens ruins, valentes, que gostavam da profissão e que já tinham experiências de envolvimento com mortes a partir de seus próprios problemas em família. Não é trivial que grande parte desses homens seja relembrada como sendo do Faxinal dos Ambrósios, já que a fama dos valentes iniciados nas brigas de família percorria não só o interior de Pinhão, mas toda aquela região do Paraná. Foram vários os moradores do município que me contaram que o Zattar oferecia bons armamentos e salários a esses homens marcados por trajetórias de mortes, e que buscava justamente esses sujeitos mais valentes para vigiarem os posseiros. Porém, na passagem da vida de valente das brigas de família, para o renomado pistoleiro que mata em nome de outros, há mudanças tanto na forma de propagação de agressões, quanto no próprio homem que segue essa carreira, que de sujeito que briga por si e por seus familiares, dentro de uma certa lógica de igualdade entre ele e seus inimigos, passa a atuar de modo violento em nome de um terceiro, do qual recebe ordens, e que o vê como um empregado. Nos Ambrósios, apesar de a madeireira ter adquirido terras, os moradores não me falaram muito em conflitos com o Zattar, ainda que alguns reconheçam que, nas áreas que a empresa tomou para si, também houve processos de cobrança de arrendo, e de moradores que se viram obrigados a deixar os lugares onde viviam. Seu Lucas contou-me de um único caso de morte envolvendo a madeireira, referente ao assassinato de dois rapazes da família de um fazendeiro, por causa de um pedaço de terras que a empresa queria para si. Esses rapazes foram mortos em uma espera armada por jagunços, após saírem de um bar. No velório, o pai dos garotos jurou vingança e declarou que iria chamar o seu melhor pistoleiro para matar o gerente da empresa. No entanto, o mesmo gerente acabou contratando esse pistoleiro para matar seu próprio patrão. Assim fez o pistoleiro, mas depois acabou sendo morto, em uma ação de queima de arquivo. Ficou vivo o que pagou mais – salientou Seu Lucas, demonstrando que a lealdade do pistoleiro não está dada a princípio. Havia, além disso, um mercado da pistolagem na própria região, que ultrapassava o âmbito da madeireira, de modo
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que os próprios homens que a serviam como pistoleiros também eram contratados por outros fazendeiros e por reconhecidos grileiros de terras, para matarem pessoas. Foi no Faxinal dos Cascatas, localizado em outra região do município, a cerca de 30 quilômetros de distância dos Ambrósios, que ouvi falar pela primeira vez em Nilton Teles, irmão de Seu Lucas. Lá, Nilton era relembrado como um dos homens que ameaçavam os posseiros da comunidade. Seu Lucas chegou a me contar que seu irmão foi guarda do Zattar, mas não deu detalhes sobre suas experiências. Quando falou-me sobre a profissão do irmão, desviou-se de Nilton em si para me falar das experiências que viveu em relação ao trabalho dele. Durante um tempo, Seu Lucas foi caseiro de uma casa do Zattar para Nilton, na região do Faxinal dos Oliveiras. Fez até amizade com os vizinhos, com quem se dava bem. Porém, quando um deles descobriu que ele era irmão de Nilton, virou a cara, e nunca mais falou com Lucas. Só que eu nunca me envolvi, ressaltou Lucas. Concebidos também como envolvimento, os atos de agressão e de morte implicam tomar parte numa relação com alguém, deixando-se afetar por pessoas, objetos em disputa e circunstâncias. Apesar de reconhecer que se envolveu em vinganças de família, Seu Lucas busca se distanciar da profissão do irmão, e ao declarar que nessas questões ele nunca se envolveu, ele se afastava ao mesmo tempo da carreira de Nilton, e da possibilidade de falar sobre ela para mim. Ele perguntou-me, porém, se eu conhecia Marcelino, morador do Faxinal dos Cascatas. Sim, eu não só o conhecia como ele foi um dos posseiros que me contou sobre as ameaças, perseguições e tiroteios que sofreu durante o período de organização do movimento contrário ao Zattar. Naquela época, Seu Lucas jogava carteado com Marcelino em um bar no Pinhão. Nilton, que queria matar Marcelino, falou para Lucas dar um aviso ao posseiro, para que ele começasse a preparar as tábuas de madeira para o seu caixão. Seu Lucas, porém, não falou nada para o parceiro de carteado. Se alguém tivesse que anunciar a morte de Marcelino, não seria ele. É interessante, ainda assim, que sujeitos que aparentemente não tinham nada a ver uns com os outros, e que se encontravam longe de suas terras, poderiam de repente se ver unidos numa mesma trama de informações e conhecimentos em torno de ameaças e agressões. Esse movimento de saberes e das próprias discórdias, através das pessoas que as conhecem, revela mais uma vez o quanto o conflito de terras era vivido nos interstícios da vida ordinária, e até mesmo nos momentos de lazer das pessoas. E aqui, novamente, o bar, como espaço de diversão e encontro masculino, revela-se como ambiente catalisador de ameaças e possibilidades de morte. Nilton foi preso nos anos 1990, após ter sido indiciado por sua participação no tiroteio contra a escola rural, e por homicídio mediante paga de recompensa. Passou doze anos na
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cadeia, e depois que saiu de lá, foi trabalhar como segurança nas terras de um fazendeiro, em Guarapuava. Segundo Seu Lucas, Nilton gosta desse serviço, por isso permanece na vida de guarda. Em momento algum ele reprova o irmão e suas escolhas. Para ele, Nilton já pagou por seus atos. Tanto Seu Lucas quanto Dona Áurea fizeram questão de me frisar o quanto Nilton havia sido bom para eles, ajudando-os quando tiveram que ficar com sua filha pequena em Guarapuava, devido a problemas de saúde da garotinha41. Nilton é querido por Seu Lucas, não só por ser seu irmão, mas por ser um irmão que o ajuda, e a quem ele deve obrigação por isso. É assim que a imagem que diversos posseiros me davam de Nilton, como um bandido, era completamente invertida nos modos com que Seu Lucas problematizava a vida do irmão, falando a partir das suas próprias experiências pessoais, e não das de Nilton. Ademais, sua narrativa abre caminho para observarmos a contestação da fama de valente, e por conseguinte, de ruim, que acompanha certas pessoas, as quais não são apresentadas dessa maneira por aqueles que as querem bem, e que são próximos a ela.
2.3 Dos que não levam desaforo para casa Seu Lucas e Dona Áurea eram membros ativos do conselho da igreja do Faxinal dos Caldas, conselho que muda a cada ano, com novas pessoas assumindo sua direção. Quando essa mudança estava para acontecer, houve uma questão que gerou polêmica na formação do novo conselho: Milton, que seria presidente da organização, já havia matado um homem. Num bar em Pinhão, Milton se achou com esse sujeito, que o provocou. Eles discutiram na rua, mas foram separados pelos que estavam ali perto. Milton avisou o homem: isso não vai ficar assim! Essa fórmula configura uma ameaça, uma promessa de que a briga ainda vai se resolver. Um tempo depois, houve uma festa na igreja de São Judas Tadeu, outra comunidade onde vivem muitos parentes dos moradores dos Caldas. Derza, esposa de Milton, foi à festa. Quando ela voltou para casa, seu marido perguntou-lhe quem é que estava lá. Sem saber que o marido tinha problemas com o tal homem com quem se encontrara no bar do Pinhão, Derza comentou que ele estava na festa. Na hora, Milton pegou sua arma e saiu. Chegou na festa e matou o sujeito, como havia sugerido que faria depois da provocação no bar. Esse causo veio à tona em uma conversa regada a chimarrão, em que Dona Áurea contava à Camila, nora de sua irmã Dália, sobre a transição dos membros do conselho da 41
Quando pacientes de Pinhão precisam de cuidados médicos especializados, para além de consultas de pediatria e clínica geral, eles geralmente têm de ir à Guarapuava ou à Curitiba para obterem tratamento.
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igreja. Chamado por Áurea e Camila de Milton da Derza, por ser marido de Derza, o futuro presidente tinha dúvidas sobre a possibilidade de vir a assumir o cargo. Tendo em vista seu pecado, foi falar com o padre sobre o assunto. O padre, então, não excluiu Milton da função, mas perdoou o homem publicamente, em uma reunião para decidir sobre o futuro do conselho. Dizem que Deus perdoa tudo, se a pessoa se arrepender. Naquela reunião, o padre disse em tom jocoso que se pedisse ali para levantar a mão o homem que nunca tivesse matado gente, nenhum levantaria. Rindo, Dona Áurea comentou que seu filho, ao ouvir isso, pensou consigo mesmo que seria melhor o padre começar perguntando quem ali nunca matou mais de duas pessoas. Era a fama da região dos Ambrósios e os modos com que se vive em meio a esses acontecimentos e histórias que aí entrava em cena, como algo do qual é possível tirar sarro, e que é acionada também como licença para perdoar e compreender aqueles que matam. Milton, porém, não é tratado como um homem de fama, um valente. Matar, em si, não faz dele uma pessoa ruim, na medida em que ele o fez porque provocado, e porque já havia anunciado explicitamente que aquela situação não se acabaria por ali. Longe de traçar a exclusão de Milton, a conversa divertida das mulheres tinha como central a inclusão dele na socialidade, abrindo espaço para a discussão de certos atos destrutivos como um modo reconhecido de lidar com a hostilidade, e como tema de questionamentos contínuos. Dona Áurea me levava às casas das pessoas com quem mais tinha proximidade na comunidade, para eu conhecê-las e aprender sobre elas. Íamos a pé, pelas estradas de chão e carreiros, e Larissa, sua filha pequena, ia conosco. Em certo ponto do caminho, no alto de uma subida, dava para ver os campos e a casa de um fazendeiro, sobre o qual Dona Áurea teceu comentários, como fazia sobre todas as casas por onde passávamos. A frase aqui mora o Fulano, dos Lins era o modo que ela e outras pessoas que me levaram pelas estradas do município me apresentavam a vizinhança. Ela me contava quem morava na casa, e referia-se à gente dos moradores. E era caminhando que histórias surgiam sobre os pontos por onde passávamos, enquanto Dona Áurea me falava de certas pessoas e gentes que lá vivem, e de acontecimentos passados. Foi assim que ela me apontou a água – como também são nomeadas genericamente as fontes e regatos - onde um vizinho havia matado um homem, irmão de seu cunhado. Depois disso, o cunhado foi embora de lá, junto com a esposa e os filhos. Caminhar com as pessoas, portanto, era também uma forma de ouvir histórias, quem traziam à tona novos modos de mapeamento, através do conhecimento que Dona Áurea tinha do ambiente e das memórias nele contidas, aquelas que ele possibilita serem acionadas.
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Era também pelo caminho de onde avistamos essa água que tínhamos de seguir para chegar à casa de Otília, amiga querida de Dona Áurea. Dona Otília, de 63 anos, nasceu perto do lugar onde vive hoje. Quando se casou com o primeiro marido, Aristides, Otília foi morar com a sogra, em cuja casa permaneceu por cinco anos até ter sua residência. Foi logo depois de se mudarem para a casa própria que o marido matou um homem, Paulo Bucanero. Foi por causa de mulher, contou-nos Dona Otília em nossa conversa na cozinha de sua casa, afirmando que o marido era mulherengo, e que dizia para ela quando ficava com outras. Um dia ele falou de uma mulher solteira, que morava ali pra cima, disse Dona Otília, apontando com a mão a direção aonde ficava a casa da tal mulher. Só que o cunhado da mulher, Paulo Bucanero, também gostava dela. Por isso, ele começou a perseguir Aristides, ou seja, a importuná-lo de modo ameaçador, cercando-o em certos locais na tentativa de provocar uma briga. Em um baile, o homem pegou seu revólver, mirou e disparou três vezes no marido de Otília, mas a arma não funcionou. Aristides, contudo, não viu isso acontecer. Ficou sabendo porque um amigo lhe contou. Chegou o tempo das eleições, e a votação aconteceria em um grupo escolar42. Ao saírem de dentro da escola, Otília e Aristides viram Paulo Bucanero parado perto dos seus cavalos. Enquanto Otília subia na montaria, Aristides olhou para Paulo e perguntou: – Foi você então que me bateu o revólver três vezes? – Bati, e bato de novo – respondeu o homem.
Quando Otília viu Paulo pegando o revólver, correu com cavalo e tudo para dentro do grupo. Depois que os tiros pararam, ela saiu e viu a enorme poça de sangue no chão. Paulo estava caído, morto. O pai de Otília, que também estava na votação, correu para acudir o genro, que também estava caído no chão. Pegou Aristides nos braços, e fez ele se sentar. Esguichava sangue de sua boca, onde havia levado um tiro, além de outro na espinha. Ficou internado doze dias e conseguiu sair vivo. Um irmão de Paulo, contudo, começou a perseguir Aristides. Chegou a ir até o hospital para matá-lo, por vingança. Depois disso tudo, não dava mais para Aristides e sua família permanecerem nos Ambrósios. Quando o marido de Otília se recuperou, eles foram embora para um município vizinho. Lá, Aristides se encrencou com outro homem, que arrendava com ele o terreno de um mesmo dono, onde soltava a criação para pastar. Se 42
Grupo escolar é o nome dado às antigas escolas multisseriadas que existiam no interior, onde crianças de diferentes idades e em diferentes etapas do processo de aprendizagem dividiam a mesma sala de aula. Hoje em dia, esses pequenos grupos não existem mais. Foram “nuclearizados” em 1998, em escolas centrais, presentes somente em algumas comunidades, mas que recebem alunos de uma região mais ampla.
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encrencar, nesse caso, tem a ver com o desdobramento de uma indisposição, mais especificamente, uma discordância envolvendo o compartilhamento de um mesmo terreno. Aí o homem queria mandar mais que ele e ele não gostou. Meu marido não levava desaforo pra casa. E ele dizia que não tinha medo de nada. Embora essa seja uma forma comum de descrever os valentes, Dona Otília não coloca o marido nesses termos. Ela lembrou ainda que Aristides levava sempre consigo dois revólveres na cinta. Mesmo assim, não se livrou de ser morto com o homem com que se meteu na encrenca, por causa da criação. Quando houve esse desentendimento, Dona Otília chegou a pedir ao marido que fossem embora de lá. Mas Aristides não quis vender seu rebanho. Acabou morto em uma espera que o homem fez para ele. Há uma dimensão de proximidade nas brigas desses homens de antigamente, que também é característica das brigas do presente. Não é uma exterioridade fundante, e sim uma convivência contínua e agonística, que dá o tom dessas encrencas, resultantes de bebedeiras em festas, de disputas por mulheres, de conflitos por causa da criação. A história contada por Dona Otília explicita os modos com que essas tensões tomam conta do cotidiano e impulsionam os deslocamentos de seu marido e dela, que o acompanha e tem sua vida marcada pelas tragédias que recaem sobre seu cônjuge. Apesar dos excessos de Aristides com as mulheres, e sua bravura de homem que não leva desaforo e anda armado com dois revólveres, o tom da narrativa de Dona Otília é de respeito com o marido. Ela não fala que sofreu nas mãos dele, que ele era ruim para ela, nada disso. Os problemas dele eram com outros, por isso ela teve que deixar o lugar onde vivia, para garantir a vida do marido. Nesse sentido, a história dela é carregada das incertezas e temores trazidos pelos atos de Aristides: primeiro a briga por causa de mulher, depois o medo da vingança que os obriga a partir, e por último a encrenca com um vizinho por causa de criação. Mas ela não se coloca fora disso, ou como agente passivo perante um esposo que aprontava as suas e a obrigava a arcar com as consequências dos atos dele. Ao contrário, Dona Otília se faz presente o tempo todo, não só quando deixa claro que sabia do que o marido era capaz, mas também quando está com ele na hora em que ele é atirado e quando sugere que eles partam para evitar maiores confusões. Com a morte de Aristides, Dona Otília vendeu as terras que tinha, voltou para o Faxinal dos Caldas com seus cinco filhos, e comprou o terreno onde vive até hoje. Ela se casou novamente, com o filho mais velho de Dona Conceição, irmã de Aristides. Dona Conceição, por sua vez, já havia me apresentado a história da morte de seu irmão em outra ocasião, quando a conheci. Ao anotar a genealogia de sua família, eu perguntei sobre seus
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irmãos, seus casamentos, e onde viviam. Ela contou, então, sobre Aristides, falecido, morto em outro município. Lembrou que o irmão matou Paulo Bucanero, por causa de mulher. Por isso que Aristides foi embora para outro município, onde foi morto devido a problemas com criação em terra alheia e também porque era de fama. Quiseram matá-lo porque sabiam que ele já havia matado gente e poderia vir a matar novamente. Assim, a fama enquanto renome que se movimenta para além das pessoas e com elas, também entra em cena neste caso, em que a mudança de Aristides para outro município não é garantia de que ele estará seguro. Ele levou consigo a morte que tinha em suas costas, e também a fama de seu lugar, que se deslocou junto a ele. Nas histórias sobre as mortes que deram renome a Aristides, a Pinhão, aos homens que foram trabalhar pro Zattar e ao Faxinal dos Ambrósios, as brigas, brigas de família, encrencas e vinganças são termos que se destacam, e que remetem aos modos com que as pessoas tornam inteligíveis certas hostilidades e as mortes que são geradas através delas. O tempo, enquanto elemento trabalhado tacitamente, é um componente que distingue essas ações e sua elaboração. Briga, então, remete a uma agressão pontual, a um evento específico que se sobressai no tempo cotidiano, e que resulta na maior parte das vezes de uma discussão, provocação, insulto, disputa, bebedeira. Encrenca, por outro lado, tem uma conotação temporal distinta, na medida em que é um termo que abrange como um desentendimento ou uma briga serão retomados e inscritos no cotidiano, estendendo-se nesse tempo comum da vida, demarcando inimizades e novos atos de agressão e morte. A briga de família, em contrapartida, pode ser vista como uma grande encrenca que abarca dois coletivos familiares, a partir da morte que o membro de uma família causou na outra. Nesses casos, como nas tantas encrencas desenroladas por causa de morte, é o horizonte da vingança que invade o cotidiano e faz com que as pessoas envolvidas elaborem meios de agressão e de defesa. Essa metáfora do horizonte, daquilo que se vislumbra ao longo alcance do olhar, abarca as retaliações como procedimentos que nem sempre se completam, mas que são sempre esperados e enxergados à frente. Desse modo, não é necessariamente enquanto ato, mas muito mais como potencialidade em aberto, que a vingança toma conta da vida das pessoas e das narrativas sobre mortes. Assim como um homem pode vingar a morte de seu irmão querido, ele poderá ser consumido pela subsequente vingança do irmão daquele outro que ele matou. No entanto, nem sempre o que se vê é esse círculo vicioso. Mais comum é que as pessoas atingidas pela ameaça de vingança partam para longe ou permaneçam distantes daqueles com quem não se dão, para evitar reacender os ânimos da encrenca. Pois ela perdura, por mais que o tempo passe, e com ela persiste o fantasma da vingança.
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O tempo, além disso, é passível de apreciações, de ser percebido como expressivo de uma moralidade que se transforma através das mudanças nas formas de vida dos seres que o habitam. Assim, muito embora as pessoas sejam claras ao enfatizar que as encrencas perduram, elas também avaliam que a fama do Pinhão e dos Ambrósios foi consolidada antigamente, quando o homem que não andasse armado não era homem, briga de família era coisa comum, e muita gente morria atirada pelas estradas, bares e festas da região. Essa era a forma com que os moradores problematizavam a fama de seus lugares, estabelecendo a relação delas com esse passado, o que acarretava na produção de um distanciamento moral entre aquele que fala e aquilo de que ele fala. Nesse sentido, dizer sobre a fama era sempre se situar em relação a ela e lidar com ela, trabalhando com os elementos dessa reputação como algo que, se remete a si, é por ser uma história comum a todos, todavia distante do que se deseja ser agora. Além do tempo, a própria gente era matéria de distanciamento e diferenciação quando a fama entrava em questão. Seu Laércio, por exemplo, admitia a fama de sua gente, os Lins, porém ressaltava que os metidos em brigas eram seus primos, e não seus pais e irmãos. Essa produção de distâncias entre parentes revela que são diversas as famílias que formam uma mesma gente, e que se a fama era dos Lins, não eram todos os que se reconheciam por essa nomeação que se envolviam em mortes. Apesar disso, por ser reconhecido como gente dos Lins, Seu Laércio também era relacionado à reputação de seu avô e de seus primos quando se identificava como membro daquela coletividade. Para ele, contudo, essa vinculação à imagem de homem perigoso (corroborada ainda pelas identificações com o Pinhão e os Ambrósios frente ao cartorário guarapuavano) era motivo de riso. Nesse fazer parte mas não tomar parte, ele brincava com as ambiguidades e exageros da fama, fazendo piada do medo que poderia inspirar nos outros. Eram também esses exageros que Dona Áurea tornava risíveis, quando contava em uma anedota animada como o padre encontrara meios para lidar com fieis afamados por serem transgressores dos mandamentos divinos. Coisa dos homens de antigamente, dos valentes, dos primos distantes ou daquela gente em particular, a fama dos Ambrósios era um elemento contestado nas narrativas de seus moradores, algo que fazia parte deles e sobre o qual eles também elaboravam suas próprias perspectivas e afirmativas. Reprováveis ou aceitáveis, as histórias que fundamentavam o renome da localidade e de vários de seus membros eram sempre compreensíveis. Fosse como integrante de uma lógica distante no tempo, ou como uma forma de ser e de agir que era praticada por pessoas próximas, essa fama não era vinculada a uma marginalidade social ou a um modo alternativo de existência, mas problematizada como possibilidade real da vida.
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Sendo a proximidade imprescindível ao desenrolar das brigas e das encrencas, elas e as pessoas que nelas tomam parte são expressadas nas narrativas através de um olhar que as inclui, e que somente assim podem revelar sua faceta abominável. Por isso o valente está ao mesmo tempo dentro e fora. Ele tem coragem de fazer aquilo que ninguém teria, e isso se mostra através de seu próprio corpo e gestual, que parece gritar que ali não há como se aproximar ou conviver. O valente não tem medidas, seu clima não é o da moderação. E por isso mesmo ele pode ser valioso como amigo, para quem se arriscar. Seu perigo pode ter serventia para quem queira se fazer perigoso.
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Capítulo III ENCRENCAS DOS OUTROS Para além dos conflitos de terra, há outras encrencas, brigas e vinganças que tomam parte no cotidiano dos moradores do interior. Quando acontece uma morte ou um desentendimento passível de acabar em morte, entre pessoas conhecidas e próximas, esse evento de torna assunto de toda a comunidade. Ao conversarem sobre os fatos acontecidos e as pessoas neles envolvidas, os moradores do interior comentam sobre aquilo que viram e o que ouviram dizer, tanto quanto reproduzem suas observações sobre os últimos deslocamentos daqueles que participam de tais encrencas. Essas conversas não só permitem produzir conhecimento sobre tais situações, mas são também uma forma de discutir as transformações que elas ensejam nas relações de parentesco e vizinhança que constituem as comunidades. Por conseguinte, ao falar de uma morte matada ou de uma briga que aconteceu perto de si, as pessoas elaboram um novo mapeamento dos seus locais de moradia, daqueles que se envolvem nesses atos hostis, e de si mesmas perante tais acontecimentos. Conforme traçam essa nova topografia, elas também buscam agir sobre esses dramas, de modo a produzirem seu distanciamento frente à proximidade que possuem com os diretamente envolvidos nessas histórias. Assim, as observações e diálogos a respeito dessas situações são também reveladoras dos dilemas vividos por aqueles que, de repente, se veem enveredados nos perigos dos atos de seus vizinhos. As encrencas e mortes são incorporadas pelos locais onde aconteceram, os quais tornam-se de risco ou esquisitos. Porém, mais dos que esses lugares específicos, os próprios caminhos e trajetos se tornam perigosos, na medida em que guardam encontros inesperados com bandidos e gente encrencada. Outro tema relevante nos debates sobre esses acontecimentos é a conduta dos que matam, brigam e são mortos. Quando contam as histórias de tais sujeitos, as pessoas costumam refletir sobre as formas pelas quais eles cultivam suas condutas e seus relacionamentos com os outros. A partir dessas reflexões, elas elaboram relações de semelhança e diferenciação entre os envolvidos nessas tramas de hostilização e agressão, e os familiares mais próximos deles. A ruindade que caracteriza alguns homens e mulheres que matam é remetida à sua corporeidade, ou seja, a como seus trejeitos, gestuais e modos de se portar refletem seus humores e predisposições à maldade, que carregam dentro de si. Além disso, considerações sobre gênero e sobre a especificidade das posturas de
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mulheres que tomam parte nas encrencas e mortes entram em questão nessas formas de observar a ruindade e o desenrolar de agressões e ameaças. As conversas sobre as encrencas daqueles que vivem perto de si estão envoltas em uma série de cuidados que revelam os modos com que as pessoas conduzem a si mesmas frente a problemas que fazem parte de suas experiências, mas que não devem ser seus. Elas falam, na maioria das vezes, por meio de expressões na terceira pessoa, como diz que, tão dizendo que, o que dá a esses diálogos um tom de fuxico, algo que se diz porque é interessante mas que sabe-se que não se deve dizer de qualquer jeito, e que dá um ar de generalidade ao sujeito que fala. Por outro lado, as pessoas sempre ressaltam a importância de se manterem longe da polícia, de não denunciarem ou testemunharem, pois sabem que assim elas se tornarão diretamente envolvidas em algo do qual não querem participar. As narrativas sobre esses acontecimentos trágicos que ocorrem entre conhecidos e perto de si revelam, desse modo, que as mortes e encrencas ocorridas numa comunidade afetam de alguma maneira a todos os que lá vivem. Porém, é também conversando que as pessoas deixam claro que tais encrencas devem ser um problema somente daqueles que efetivamente morrem, matam e desejam vingança.
3.1 Morte em dia de festa: vizinhança em resguardo
A encrenca que discuto nesse ponto ocorreu na comunidade do Faxinal dos Cascatas, localidade que faz parte de uma outra grande região do município, distante dos Ambrósios. Tal como nos outros lugares do interior pinhãoense onde permaneci, nos Cascatas fui recebida na casa de uma família, a de Abel Miller, que mora com sua esposa Ângela, e com suas jovens filhas Vivian e Alessandra. No terreno familiar onde eles vivem, fica também a casa de Dona Lúcia e Seu Benedito, pais de Abel. Na manhã de segunda-feira, depois do domingo de Páscoa, Vivian, que havia pousado na casa de uma prima, chegou em casa com uma notícia estarrecedora. Ela descalçou as botas à beira da porta, entrou na cozinha, onde eu estava com Ângela, e sem dizer oi, perguntou: Tão sabendo do que aconteceu? Ângela lançou uma expressão de preocupação à filha, enquanto dizia um não reticente, que convidava Vivian a continuar sua história. – Mataram o Joãozinho no torneio. – Quem? – perguntou Ângela, assustada.
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Mas... Uns que moram bem perto de nós... Tão falando que foi o Ulrico, o Rubinho e a Jora.
Espantada, Ângela perguntou se Vivian estava no torneio, campeonato de futebol que havia ocorrido no campinho do bar do Romildo, próximo à entrada do Faxinal dos Cascatas. Mas Vivian não havia ido até lá no dia anterior, para o alívio de sua mãe. Foi um garoto que trabalha para o marido de sua prima que contou sobre a morte que havia acontecido durante a competição. Tão falando que foi briga, tavam tudo bêbado – começou a contar Vivian. A seguir, ela descreveu a cena da briga, da mesma maneira que diversas mulheres dos Cascatas fariam nos dias que sucederam a morte de Joãozinho, quando esse evento tornou-se um assunto central das prosas na vizinhança, e motivo de preocupação para toda a comunidade. Para falar sobre o ocorrido, Vivian se posicionou de uma forma que também se apresentou nos relatos de suas vizinhas sobre a briga. Esse posicionamento levava a descrever aquela morte desde dentro dos lugares onde a encrenca aconteceu, o que promovia uma aproximação entre a narradora e a cena, e mais do que isso, era como se a pessoa que contava a história estivesse presente nos lugares do acontecimento. Segundo Vivian, Joãozinho discutiu com Rubinho, Ulrico e Jora no torneio. Já eram dez horas da noite, e àquela altura, todo mundo estava bêbado, pois o campeonato havia começado pela tarde. Joãozinho, que morava em frente ao bar, estava bravo com o som alto que vinha de um carro, ao redor do qual estavam os outros três, dançando e bebendo. Ele resolveu ir até eles, reclamar. Aí se encrencaram. Joãozinho também havia bebido, e desaforou os outros. Queria que baixassem o volume do som, pois suas crianças precisavam dormir para ir para a escola na manhã seguinte. Depois da discussão, Joãozinho voltou para casa. Rubinho, Ulrico e Jora, brabos, foram atrás dele, e invadiram sua casa. Dentro dela, estavam Joãozinho, seu filho, sua filha, e Sabina Reis, tia-avó das crianças, que morava ali perto e ajudava a cuidar dos filhos de Joãozinho. Rubinho, que trazia consigo um punhal, pulou a janela. Ulrico e Jora entraram pela porta e pegaram facas que encontraram ali mesmo, na cozinha43. Joãozinho atacou Rubinho com um machado de cortar lenha, e conseguiu abrir um corte grande na cabeça do homem. Mas não pôde fazer mais do que isso, porque levou uma grande facãoada44 pelas costas. Sabina gritou para o menino de Joãozinho chamar a polícia, mas Jora o segurou e destruiu o 43
Nas casas do interior, geralmente a porta da frente se abre para um único cômodo, que agrega sala e cozinha, ambas claramente definidas pela diferenciação e organização dos móveis que as compõem, mas sem paredes que as separem uma da outra. 44 Nesse caso, facãoada representa o corte com o punhal, mas o termo é usado para falar sobretudo de cortes abertos com facão.
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telefone celular que estava em sua mão. Ela foi, então, para cima de Sabina, segurou ela pelos cabelos, machucou seu braço e jogou a senhora em cima do fogão quente. Daí, voltou a atacar Joãozinho, junto a Rubinho e Ulrico. Deu mais de trinta facadas, disse Vivian, acrescentando ainda que no corpo do homem havia muitas pontadas, que são machucados feitos com a ponta da faca de cozinha. Mas os dois cortes mais fundos, que mataram Joãozinho, foram em sua barriga e em seu coração. Tavam dizendo que foi Jora quem deu essas facadas letais. O homem morreu ali mesmo, em cima do seu sofá. Centrada na descrição da cena, a história que Vivian contou sobre a morte de Joãozinho apresenta um detalhamento preciso dos movimentos e das agressões que culminaram com o trágico fim do homem. Além disso, a história se refere a uma encrenca iniciada na frente da casa de Joãozinho, mas que se desloca para dentro da residência, colocando a própria família no foco das agressões. A invasão da casa, e o fato de a morte ter acontecido na frente de seus filhos, causava extremo horror às mulheres que comentavam o acontecimento. E agora, o que é que vai ser dessas crianças? – perguntavam-se, chocadas com o fato. Pois se brigas de bêbados são muitas vezes avaliadas como algo corriqueiro (ainda que também desastroso), aquela em particular era tenebrosa porque, além de ter ocorrido dentro de casa, foi presenciada pelos filhos de Joãozinho, um garoto de quatorze anos, e uma menina de dez. Vivian continuou a história. Ela contou que diz que foi Téia, esposa do dono do bar, quem chamou a polícia. Ângela interrompeu: mais isso é coisa que não se diz, ninguém pode saber! Tal informação comprometeria a mulher, colocando-a de certo modo na cena da morte. Téia poderia ter problemas tanto pela possibilidade de ser chamada a testemunhar, como porque os bandidos – como agora os três assassinos estavam sendo chamados – poderiam querer tirar alguma satisfação com ela. O torneio, afinal, havia sido ao lado do bar do seu marido, que é também onde fica a sua casa. Vivian ouviu, ainda, que Rubinho teria entregado o punhal, arma do crime, para Leco, dono de outro bar, que fica na estrada que leva ao terreno dos Miller. Tal como Romildo e Téia, Leco mora na mesma casa onde fica seu bar. Os bares, desse modo, são espaços simultaneamente abertos a um público mais amplo e privados/familiares. Essa divisão precisa ser produzida de forma clara na própria estrutura física do bar/casa. Às vezes os bares do interior são construídos separadamente da casa de seus donos. Porém, nos casos em questão, o bar ficava na mesma construção que abrigava a casa. O que os apartava era uma parede com uma porta que dava para os fundos do balcão do estabelecimento comercial, e cujo acesso era restrito aos membros da família. Essa parede e
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essa porta funcionam como uma espécie de isolamento material e simbólico do espaço da casa, inacessível aos que estão no balcão do bar. A porta do bar, por sua vez, é ampla e localizada na parte frontal da construção, aquela que tem a face voltada para a estrada. Ao olharmos por aquela porta, podemos enxergar todo o bar, seu balcão, e as pessoas que lá estão. A porta da casa da família que cuida do bar é localizada nos fundos de uma das paredes laterais da construção, e como todas as portas de casas, olhando por ela não podemos ver todo o interior da residência. Quando mulheres precisam comprar algo no bar, e veem que ele está cheio de homens, dirigem-se à porta da casa, de onde pedem para a esposa do dono do estabelecimento aquilo que precisam. Como os donos de bares vivem nesses locais com suas famílias, tudo o que acontece ali, inclusive os excessos dos bêbados briguentos, pode ser incorporado ao seu ambiente doméstico, como uma história que dele também faz parte, ainda que as paredes busquem afastá-la. É assim que, enquanto testemunha do ocorrido, Téia chama a polícia mas não revela seu nome, a fim de não se envolver na obrigação de dar um testemunho aos policiais. A discrição sobre o acionamento da polícia é mantida por todos os vizinhos, pois eles compreendem que o denunciante/testemunha corre riscos de ser ameaçado por quem participou da encrenca, trazendo-a, desse modo, para si mesmo. É normal que as pessoas desconfiem de onde vieram determinadas denúncias, quem foi que chamou a polícia. No entanto, isso permanece no âmbito das especulações feitas em voz baixa, porque qualquer alusão nesse sentido é tida como comprometedora, e as pessoas que participam da mesma vizinhança compartilham o ideal de que isso é coisa que não se diz. Tão falando que foi Fulano que chamou a polícia é uma fórmula comum de tecer considerações sobre a produção de denúncias, na qual não se afirma exatamente quem foi que notificou os policiais, mas se deixa claro que há um debate sobre quem seria essa pessoa. Declarações que iniciam com diz que, tão falando que, seguem um estilo semelhante ao do fazer fofoca, fuxicar, enquanto modo de produção de conhecimento válido, porque sempre tem algo a revelar sobre os atos e reputações de alguém, mas duvidoso, na medida em que falar dos outros também pode ser tido como inventar história. Essa ambiguidade, de certo modo, protege tanto a pessoa de que se fala, como aquela que está falando, que evita fazer uma afirmativa definitiva, declarando apenas uma suposição atrelada a uma evasiva terceira pessoa do plural, e não a alguém específico. Abel, pai de Vivian, apareceu na cozinha durante nossa conversa. Após ter ouvido sua filha contar o que aconteceu, ele comentou que agora alguma coisa vai mudar na nossa comunidade. Para ele, Jora, Ulrico e Rubinho provavelmente iriam embora de lá, o que
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poderia evitar futuras vinganças. A encrenca, mesmo com a morte de Joãozinho, permanecia em aberto, com a probabilidade de uma retaliação no horizonte, somada à visão de que agora Rubinho, Ulrico e Jora deixariam o local onde moravam. Esse deslocamento, por sua vez, era visto como uma mudança na comunidade, enquanto coletivo de moradores que participam das vidas uns dos outros por morarem numa mesma área, conhecerem-se mutuamente, frequentarem os mesmos locais, terem laços de parentesco, compadrio, amizades e inimizades uns com os outros. Apesar de nem todos os que vivem em uma mesma comunidade morarem perto, uma coisa é certa: todos se conhecem, sabem identificar as famílias com a qual cada um é relacionado, e onde ficam as casas onde as pessoas moram. Essa trama familiar que conforma essas localidades sustenta a rápida circulação de informações sobre o que acontece na vida dos outros, o que faz com que as novidades, sejam elas boas ou ruins, acabem sempre se tornando assunto de toda a vizinhança, e que sejam somadas ao conhecimento que os moradores possuem uns sobre os outros. As casas, nesse sentido, não são somente o local onde se desdobram as relações internas de uma família num sentido mais estrito, de “grupo doméstico”. Elas também são relacionadas a outras casas, nas quais vivem os familiares, parentes, e conhecidos mais próximos, os quais circulam por esses diferentes lares. Nesse sentido, pessoas e famílias são pensadas como parte de algo próximo ao que Marcelin (1999) chama de “configuração de casas”, enquanto conjunto de casas vinculadas por uma ideologia da família e do parentesco, dentro do qual exprimem-se processos de criação de laços entre familiares que se originam de casas diferentes. Ao expressar sua preocupação com o caso de Joãozinho, Abel considerava aquela morte como um vetor de mudanças na comunidade como um todo, que possivelmente veria alguns de seus membros partirem. Ele chamava atenção, desse modo, para como aquilo afetava os demais moradores atentos ao desenrolar da encrenca, que gerava uma expectativa comum acerca da vingança – mais, devo admitir, do que da prisão efetiva dos envolvidos. Na verdade, àquela altura, Rubinho já havia sido preso. Em virtude do grande corte de machado que levara na cabeça, ele não conseguiu ir muito longe depois de deixar a casa de Joãozinho, e a polícia o encontrou. Ele foi encaminhado ao hospital, onde permanecia sob custódia. Jora e Ulrico, por sua vez, haviam fugido. Para os Miller, um grande motivo de preocupação era a proximidade com os bandidos, reconhecidos como vizinhos, que moravam perto das extremidades de seu terreno familiar. Vivian, em particular, fez menção ao fato de Jora ser apontada como a responsável pela morte de Joãozinho, aquela que saiu da casa dele gritando pela estrada que foi ela quem mandou matá-lo. Pense! E eu que esses dias atrás fui lá cobrar a mulher! Ela havia ido até Jora para
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cobrar-lhe o valor de produtos comprados de um catálogo de maquiagem. Se soubesse que a mulher era capaz de matar alguém daquele jeito, não teria ido. Além de Vivian, Ângela e Abel também elencavam e problematizavam suas relações com os envolvidos na morte de Joãozinho, enquanto elaboravam uma série de considerações sobre a reputação do homem que morreu e a de seus algozes. Abel salientou que Joãozinho era uma pessoa controversa, que vivia arrumando briga, pois bebia demais. Ulrico, por sua vez, pagava pena em regime aberto, por ter sido pego com uma espingarda. Caçador, ele atacou e matou, junto com outros homens, três vacas dos Leão, família que vive no vale do Rio Bonito, que passa pelos fundos do terreno dos Miller. Rubinho era bêbado. Ele e Ulrico são irmãos, filhos de Josué Pereira, senhor que falecera dois anos antes. Josué é lembrado como boa gente, e era inclusive compadre dos pais de Abel. Ao falarem dos Pereira, gente de Seu Josué, Ângela e Abel lembraram dos irmãos dele, como Jacinto, que morava ali perto e que era muito bom, e Agenor, que foi casado com uma vizinha dos Miller\ e cuidava muito bem da menina dela. Pra você ver como não tem nada a ver ser da mesma família, cada um tem seu jeito – disse-me Ângela. As trajetórias dos filhos de Seu Josué, tal como descritas por Ângela, revelavam as distinções entre eles, seu pai e seus tios. Aqui, além da diferenciação entre pessoas e suas gentes, entrava em questão também outro modo particular de consideração dos outros, através do que é chamado de seu jeito. Às vezes, o jeito é acionado para fazer referência aos modos de ser que uma coletividade familiar possui em comum. Há o jeito de prosear, o jeito de andar, o jeito de fuxicar, que podem ser tidos como compartilhados pelos membros de uma família, tornando-os parecidos uns com os outros e produzindo uma certa imagem deles aos demais membros da comunidade, que reconhecem nas pessoas particularidades que as caracterizam enquanto parte de certas gentes e famílias. No entanto, Ângela estava considerando uma outra perspectiva sobre jeito, enquanto algo que particulariza cada um, ainda que as pessoas carreguem consigo aspectos das relações, substâncias e modos de ser que constituem seus familiares. É possível, nesse sentido, que pessoas como Ulrico e Rubinho sejam consideradas como portadoras de jeitos que destoam daqueles de seus familiares. Em seu estudo sobre os moradores de Terceira Margem, Dainese (2011, p.306), observa como a pessoa é constituída por dois “lados”, um “lado bom” e um “lado não tão bom”, os quais são transmitidos pelo sangue e orientados pelas “paixões”, afetos que podem levar ao “descontrole”. Se todas as pessoas possuem os dois lados, é o modo com que eles se manifestam através dos seus comportamentos que fará delas “boas” ou “ruins”. Isso possibilita também que em uma “família ruim” existam pessoas boas, e vice-versa, na medida
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em que são as maneiras de expressar tais afetos que fazem a reputação de alguém, a qual também pode mudar com o passar da vida. Essas questões constituem um interessante contraponto à perspectiva de jeito que Ângela me apresentava, em contraste ao ser da mesma família. Se há um conteúdo comum a partir do qual a reputação de uma coletividade familiar é percebida, isso não significa que seus membros em particular terão as mesmas atitudes que fazem seus parentes bons ou ruins. Vivendo juntas, as pessoas compartilham uma série de jeitos e modos de ser, mas podem possuir jeitos distintos de se conduzir umas frente às outras, mostrando mais cordialidade ou agressividade, maior disposição a conversar ou a desaforar. O que Ângela me mostrava é que são as maneiras com que se age no trato com os demais que adquirem proeminência nas formas com que alguém será considerado pelos outros. De qualquer modo, o jeito da família é também uma forma de mapear uma pessoa, através das relações que ela contém, e dos possíveis modos de ser que essas relações trazem consigo. A reputação de uma pessoa, nesse sentido, nunca para nela mesma, mas atua como um corpo de referências que atingem também aqueles que são considerados mais próximos a ela, mesmo que tais referências sejam acionadas como contraposição. Enquanto Rubinho e Ulrico eram relacionados aos seus familiares, ao falar de Jora, Ângela destacava seus deslocamentos pelo município. Ela tinha morado um tempo no Pinhão e depois voltou para os Cascatas. Antes de se casar com Ulrico, ela havia sido casada com Rubinho. Diz que enquanto ela esteve na zona urbana do município, fez amizade com os Matoso, perigoso grupo de parentes e amigos, reconhecido como gangue envolvida com roubos, tráfico de drogas, e mortes. Ao voltar para o interior, Jora não quis ir morar com sua mãe. Veio pedir para Ângela para morar no terreno dos Miller, na casa do irmão de Abel, que na época estava vazia. Ângela não deixou. Sugeriu que Jora fosse morar com a mãe, mas ela disse que não se acertava com a senhora. Dias depois Jora entrou no terreno onde construiu sua atual casa. Toda essa gente tá na droga, contou-me Ângela, referindo-se à Jora e aos dois irmãos. Toda vez que as pessoas me falavam que alguém usava droga, e eu perguntava que droga era essa, recebia maconha como resposta, e nada além disso. Ninguém jamais elaborou qualquer tipo de nomeação distinta, de debate acerca da diferenciação entre drogas, ou se aprofundou no tema comigo. De qualquer modo, a droga e a bebida eram diretamente associadas às atitudes violentas de certas pessoas. Em uma visita que eu e Ângela fizemos à sua vizinha Neide, na semana depois da Páscoa, a história da morte de Joãozinho também entrou em discussão. Neide é notória por saber da vida de todo mundo, e se isso faz com que se deva ter cuidado com o que se fala para ela, ao mesmo tempo faz com que ela seja uma ótima fonte de informações para toda a
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vizinhança e seja reconhecida como uma pessoa prosa - como na expressão ela é prosa, que significa que é bom de prosear com ela. Assim, não é a fofoca que faz a prosa ser tida como feia, ruim, estranha. Quando os moradores do interior afirmam não gostar das prosas de certas pessoas, referem-se mais aos assuntos que os sujeitos costumam levantar em suas conversas. A pessoa que só fala em doença, problemas, encrencas, ou de temas que em geral não agradam àquela com quem está conversando, é que se torna reconhecida como alguém que proseia de modo impertinente. No vai e vem da prosa, Neide nos contou das roupas que estava fazendo para os netos, tentou vender meias-calças para nós, e depois de um tanto de conversa falamos da morte de Joãozinho. Em sua história, Neide se baseava naquilo que ouviu dizer que Sabina Reis, a qual estava dentro de casa na hora em que o homem foi atacado, contara. Assim como Vivian havia feito, Neide narrava o acontecimento desde dentro do seu desenrolar, de modo que sua história se situava dentro da cozinha e da sala de Joãozinho. No caso de Neide, o estar na cozinha era mediado pela figura de Sabina, que de fato estava lá, e teria contado o que se passou para outras pessoas, que contaram a história para Neide. Ela não expressa quem foram essas pessoas que lhe disseram as palavras de Sabina, de modo que em termos da estrutura narrativa, é como se a própria Sabina tivesse falado com Neide, que apresentava a experiência daquela mulher. Em geral, a cena descrita por ela é idêntica à que Vivian havia delineado, descrevendo a entrada dos três bandidos na casa, as facadas, as agressões à Sabina e ao filho de Joãozinho. Contudo, ela terminou a história da cena da morte descrevendo uma cena repulsiva: por causa do corte profundo que o homem havia levado na barriga, as tripas ficaram caídas, penduradas pra fora do corpo. E quando a polícia chegou, um tio de Joãozinho já estava na casa para ver o que tinha acontecido. Ele mesmo disse para os policiais que isso não vai ficar assim, anunciando o desejo e a possibilidade de vingança. Na noite do ocorrido, foi visto um carro branco nos arredores da igreja, rondando como se seus passageiros quisessem encontrar Jora e Ulrico. Segundo Neide, só poderia ser gente dos Reis, pelo que ocorreu com Sabina Reis e com as crianças, que eram filhas de uma sobrinha de Sabina 45. Dias depois, Ângela comentaria novamente essa história comigo, preocupada com a possibilidade de que a família de Joãozinho perseguisse uma retaliação. Tomara que essa gente deixe nas mãos de Deus essa coisa, porque a justiça divina é a melhor de todas. Porque você veja que não é certo fazer vingança, certo é deixar nas mãos de Deus. 45
A mãe das crianças era separada de Joãozinho, mas seus filhos haviam ficado com ele. Conta-se que ela não quis mais o marido porque ele era muito ruim para ela. Ele bebia demais, e batia nela.
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Ângela trazia, nesse sentido, uma forma distinta de compreensão da vingança, como uma justiça errônea dos homens, em oposição à justiça divina. Enquanto repreendia a vingança como forma de retaliação, minha anfitriã trazia outras expectativas sobre formas de punição dos culpados, sem desconsiderar a importância que os atos vingativos assumem nas maneiras com que familiares se orientam frente às mortes de seus entes queridos. Assim, quando contavam a história da morte de Joãozinho, as pessoas colocavam em prática suas considerações sobre a repreensão dos culpados, fosse por meio da polícia, de Deus, ou das mãos daqueles sofreram diretamente os efeitos da morte. Às narrativas, eram acrescentadas perspectivas sobre quem poderia querer fazer vingança e por quê. As pessoas que tentariam, nesse sentido, levar a encrenca adiante eram as que estavam dentro da cozinha de Joãozinho, ou as que tinham relações de parentesco com a família, como o tio do homem morto, e os sobrinhos de Sabina Reis, que eram também tios das crianças que viram a morte do pai. A morte se espalhava, nesse sentido, por meio das relações familiares das próprias crianças e da senhora que participaram da cena, dando uma certa impressão de quais eram os mais fortes vínculos de solidariedade dessas pessoas, e de quem os ampararia nesse momento. Por outro lado, tal como quando Ângela me falava sobre o jeito dos irmãos envolvidos na morte de Joãozinho, Neide também contava histórias sobre os comportamentos dos envolvidos. Ela lembrou de quando Rubinho, bêbado, resolveu dar facãoada no portão da igreja evangélica, porque estava endemoniado. Tanto lutou com aquele portão, que caiu e dormiu ali mesmo. Sobre Rubinho eu também ouvi, de Abel Miller e de sua mãe, Dona Lúcia, outros relatos sobre um episódio bizarro presenciado por Aurélio, irmão de Abel. Aurélio chegou no bar do Leco e percebeu, antes de entrar, que Rubinho estava lá dentro fazendo algazarra. Resolveu, então, entrar no bar pela porta da cozinha, que é a cozinha da casa de Leco e de sua esposa Rita, por onde as visitas e membros da família entram para não terem que passar pelo bar. Aurélio é amigo de Leco, e fez isso para chegar por detrás do balcão e ajudar o dono do bar se fosse preciso partir para cima de Rubinho. Porém, ao entrar, percebeu que o homem só estava agitando, sem intenção de brigar com ninguém. Ele queria, de qualquer jeito, um litro de pinga. Leco acabou dando o litro para ele. Rubinho pegou a garrafa, mas não conseguiu abri-la. Impaciente, ele começou a tentar abrir o litro com a boca, até que quebrou o bico da garrafa com os dentes. E mastigou o vidro que caiu em sua boca. Dava para ouvir o barulho daquele vidro sendo mascado, crec crec crec. Quando Dona Lúcia me contou esse causo, ela observou que a mastigação do vidro era sinal de que Rubinho estava endemoniado. Pois não é coisa de gente mastigar vidro. Só podia ser o demônio dentro do corpo do homem.
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Jora também é considerada como uma pessoa endemoniada, que por causa da droga, vive louqueando46. Ela é tida pelas mulheres de sua vizinhança como uma pessoa muito ruim, pois deu à luz embaixo de um pinheiro, e jogou a criança ali mesmo. Pariu, levantou e partiu, ainda com as placentas saindo dela. Outras mulheres encontraram o bebê com vida, porém ele acabou morrendo na casa de uma delas. A ruindade, aqui, tem a ver com transgressões vinculadas à maternidade, como o parto solitário à céu aberto, o descarte do bebê recémnascido embaixo da árvore, a despreocupação com o próprio corpo ainda em trabalho de parto. E diz que no dia da morte de Joãozinho, Jora gritava pela estrada que foi ela quem o matou. As mulheres acreditavam que ela esfaqueou o homem por endemoniada. Entre os evangélicos da comunidade, a visão da bebida como algo que provoca o demônio, trazendo-o para dentro do corpo, ou despertando o mal que já está lá, é acompanhada por práticas de oração que visam à expulsão desse ser maligno de dentro das pessoas. Neide comentou, nesse sentido, que as orações de Olíria, sua vizinha e irmã na religião47, são muito boas pra acalmar pessoas endemoniadas. Ela já fora chamada para orar por outras três meninas que moram na vizinhança, as quais tinham bebido e se endemoniaram: andavam de quatro comendo capim e saíam correndo atrás dos outros na estrada. Mas Olíria parou de fazer suas orações, pois outro senhor, importante na hierarquia da igreja, orientou-a a não acudir gente que está endemoniada porque bebeu. A noção de endemoniamento, entretanto, era compartilhada também por mulheres católicas que contavam sobre Rubinho e Jora, e comunicava tanto as atitudes excepcionais de Rubinho, que mastiga vidro e briga com o portão da igreja, quanto as de Jora e de outras vizinhas. Falar sobre endemoniamento é lançar mão de compreensões sobre como o mal atua diretamente nos corpos das pessoas. Consiste numa visão de que elas agem segundo as vontades de um demônio, um agente externo, causador de maldades, que entra em seus corpos, fazendo com que eles se manifestem de maneiras que ultrapassam os limites do que se considera humano. Várias vezes ouvi meus conhecidos falando da impossibilidade de se compreender os atos de certas pessoas, e relacionando-os a algo sobrenatural que age sobre o corpo – tem gente que é tão ruim que parece que tem mesmo um demônio dentro do corpo. A personificação do demônio, do mal encarnado, tem a ver, portanto, com considerações sobre a própria corporalidade, compreendida também como expressão de todas as substâncias, humores e qualidades que habitam o corpo, o qual pode ainda ser tomado por potências sobrehumanas. As meninas agindo feito bichos – andando de quatro e comendo capim -, e Rubinho 46 47
Louquear é uma expressão que significa fazer loucuras, agir desmedidamente. Neide se reconhece como crente, e frequenta uma igreja evangélica pentecostal.
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mastigando e engolindo vidro, são exemplos claros disso. O demônio, por outro lado, é tido como uma força que interage com as pessoas, e que escolhe permanecer perto daquelas com quem se identifica, em especial as que têm uma natureza ruim. Essa natureza pode até ser relacionada aos laços de parentesco e território, ao descender de uma gente ruim ou ser parte de um lugar de gente ruim, mas essa conexão nem sempre é realizada. Quando me falavam na natureza da pessoa, meus interlocutores pareciam refletir mais sobre os aspectos particulares daquele de quem estavam falando, algo que se aproxima ao seu jeito de ser em particular. Natureza, assim, é algo que todos os corpos contêm em seu interior, mas que em cada um está presente de um modo único, como uma combinação específica de disposições, algumas vinculadas às múltiplas relações que atravessam o corpo (de família, território, lugar de moradia, gênero), e outras que são tomadas como intrínsecas e particulares a alguém. A ideia de natureza é acionada mais comumente para se falar de certos aspectos de uma pessoa, considerados a partir de observações sobre características de sua personalidade, expressadas através de suas atitudes, tais como calma, paciência, disposição para o trabalho, irritação, ruindade. Aquela é trabalhadeira, não para, faz mais do que os homens, é da natureza dela!; Você veja o que é a natureza da pessoa né, como pode esse pai ser tão calmo com essa meninada?; Aquele já era ruim de natureza, parecia um bicho, do jeito que andava e olhava pra gente! O corpo, nesse sentido, expressa as próprias substâncias que o compõem, inclusive a presença da ruindade ou do demônio, agente externo que instala-se no interior das pessoas e ali passa a habitar, desfigurando a humanidade dos que o contêm. É assim que os próprios atos de violência podem ser relacionados ao corpo, fora da ação violenta, enquanto composição particular de forças. Por outro lado, na medida em que esses atos são realizados, eles também serão incorporados pelas pessoas que dele participaram, tornando-se parte de sua história e das maneiras com que os outros as considerarão. Mais para o final de nossa conversa, quando tomávamos café, o marido de Neide, Seu Eliel, juntou-se a nós. Continuamos a falar de morte, mas dessa vez de uma que foi amplamente divulgada pelos meios midiáticos no ano de 2014: o caso do menino Bernardo Boldrini, que foi morto pela madrasta e por uma amiga dela, com suposta conivência do pai, e cujo corpo foi encontrado enterrado num matagal no Rio Grande do Sul. Na época em que a notícia veio à tona, os jornais insinuavam que o casal decidiu dar fim no menino por não gostarem dele, e desejarem a herança de sua mãe biológica, que possivelmente havia sido morta pelo pai do garoto. Seu Eliel comparou esse caso, que considerava resultado de ruindade, com o de Joãozinho, que é coisa que acontece. Ele delineava, nesse sentido, uma
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perspectiva distinta das mulheres, que até então vinham tentando problematizar justamente a excepcionalidade daquela morte e dos envolvidos nela. Seu Eliel não traçou observações sobre aqueles que haviam matado Joãozinho, mas concentrou-se somente em comparar sua morte com a do menino Bernardo, abrindo nesse sentido um outro ponto de vista sobre o caso, produzindo considerações sobre violência a partir das conexões entre a própria morte, os seus motivos e as relações entre os envolvidos. Para ele, era mais repugnante os pais de uma criança planejarem friamente matá-la porque não a suportavam e queriam sua herança, do que bêbados se encrencarem e se matarem porque estavam endemoniados. O que ocorreu com Joãozinho conjugava elementos comuns ao repertório das histórias de brigas que resultam em morte: festa/bar/torneio, bebida, provocação, discussão, morte. Era isso também que possibilitava sua inscrição no cotidiano como algo comum, corriqueiro, que acontece. As crianças revelam-se, desse modo, um ponto crítico na avaliação de agressões, sobretudo quando aqueles que as ferem são adultos, contra os quais os pequenos não têm a menor chance de defesa. A morte de uma criança por um adulto é intolerável, ultrapassa todos os limites, não tem como ser problematizada ou justificada nos mesmos termos que as brigas e encrencas. Ao contrário, elas escapam à linguagem cotidiana, entrando no rol do absurdo, do incompreensível, da maldade extrema. No mesmo dia da visita à casa de Neide, eu e Ângela passamos na casa de Dona Lúcia, onde novamente proseamos sobre Joãozinho. Dona Lúcia, preocupada, comentou conosco que o lugar que seu filho Beto havia escolhido para construir sua casa não é muito bom. Beto havia se casado recentemente, e o terreno em que faria sua nova moradia ficava ao lado do bar de Romildo. Além de Joãozinho, outros dois já haviam morrido ali. Uma dessas mortes ocorreu quando dois garotos estavam brincando com uma arma, que disparou. Na segunda vez, foi encontrado naquele trecho da estrada o corpo de um taxista, morto em outro lugar e jogado lá. As preocupações de Dona Lúcia se remetem à relação entre certos lugares e as mortes que eles parecem incorporar. Ingold (2000; 2011) propõe pensarmos em lugares como conformados essencialmente pelos movimentos que neles acontecem, e defende, nesse sentido, que toda paisagem, todo ambiente, diz e é uma história, ou melhor, um nó de histórias. Perceber um ambiente, nesse sentido, é engajar-se nas histórias que ele incorpora, cujo conhecimento é possibilitado pelos próprios movimentos dos habitantes ao longo de seus caminhos. O que os moradores do interior me mostravam é que, na medida em que essa incorporação se faz presente, os movimentos de pessoas também diferenciam certos lugares de outros, em virtude das atividades e histórias a eles vinculadas. Por outro lado, os
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acontecimentos ocorridos em certos locais faziam com que eles fossem qualificados de maneiras particulares, muitas vezes despertadas pelas sensações trazidas por essas histórias, que embora nem sempre sejam agradáveis, permanecem produzindo esses ambientes. O pessoal do interior me deu vários exemplos de como os lugares são habitados também pelas histórias das mortes que neles ocorreram, e de como a morte ou sua ameaça se tornam um importante marcador de certos ambientes, para além dos termos da fama de lugares e gentes. Contudo, essas histórias não são expostas a qualquer um; é preciso de fato conhecê-las para reconhecer suas marcas na paisagem. Essas marcas, por outro lado, também são concebidas de distintas maneiras, e me foram apresentadas de diferentes perspectivas. De algumas histórias, só tomei conhecimento passando por determinados lugares. Foi o que aconteceu quando Dona Áurea me apontou a água onde um homem foi morto pelo cunhado (Cf. Capítulo 2), e quando Seu Pedro me mostrou as marcas de tiros nas árvores em seu terreno, o lugar onde ficava o clube que havia no Zattar, ou os locais da estrada onde havia visagens (Cf. Capítulo 1). Dona Lúcia, agora, me indicava outro modo de relacionar um ambiente à morte, que não foi acionado no caminhar por lá, mas sim na própria prosa sobre a morte de Joãozinho, na qual a senhora incluía sua preocupação frente à relação de moradia que seu filho estava estabelecendo com um local que conjugava várias histórias trágicas, uma das quais era assunto corrente na comunidade naqueles dias. À morte de Joãozinho, Dona Lúcia somava várias outras, que poluíam aquele lugar, faziam dele um ambiente que não era muito bom, qualificação ambígua e aberta, que o transparecia como nem ruim, nem bom, mas esquisito, já que vinculado a histórias feias, que pareciam repetir-se justamente ali. Quem sabe isso não a afligiria se a morte de Joãozinho não tivesse acontecido. Talvez fosse justamente aquela história que despertava, em seu reconhecimento daquele lugar, essas outras associações. De qualquer modo, se o engajamento das pessoas com certos lugares é o que possibilita que certas recordações sobre mortes e violências venham à tona, isso não se faz das mesmas maneiras em todos os lugares e a partir de todos os que o habitam. Isso porque os conhecimentos que as pessoas produzem sobre tais lugares não é objetivo ou distanciado, mas têm a ver com as maneiras com que elas mesmas se vinculam a tais ambientes e são afetadas pelos perigos que eles encerram. A terceira conversa que tive sobre a morte de Joãozinho foi travada com Lislaine e sua irmã Edimara, ambas moradoras dos Cascatas, em uma visita que fiz à casa de Lislaine. Ela mora com a mãe, e Edimara, casada e moradora de outra casa, estava passando o dia com suas familiares. Na verdade, ela estava com medo de dormir sozinha em casa, com sua filha
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pequena48. Sabia que os bandidos envolvidos na morte de Joãozinho estavam nos matos, escondidos. E que o pessoal que ia para o local onde vivem os Pereiras, parentes de Rubinho e Ulrico, usava o terreno onde ela vive como lugar de passagem para lá. No dia anterior, pela manhã, Jora e Ulrico vieram de a cavalo, lá de baixo, passaram perto da casa de Edimara e foram para a casa deles, para pegar roupas e comida. Depois, se mandaram de novo. Por causa do medo, Edimara tinha vindo cedo para a casa de sua mãe, e só voltaria para sua própria residência no dia seguinte. Lislaine comentou, então, que tinha visto a polícia passando na estrada. Logo alguém denuncia e a polícia prende a Jora e o Ulrico, ela disse, declarando a improbabilidade de o casal continuar a viver quieto nos Cascatas, sem a vizinhança delatá-los. Seguindo nossa conversa, Lislaine lembrou de Rubinho, o outro endemoniado envolvido na morte de Joãozinho. Deu na rádio que Rubinho estava quase morrendo no hospital. No dia da morte, ele não conseguiu fugir. Por causa da cabeça machucada, ficou pelo caminho. Chegou até o bar do Leco, e foi lavar a cabeça cortada no tanque da Rita, esposa do dono do bar. O corte que Joãozinho fez na cabeça de Rubinho foi tão profundo, que tinha até miolos dele no tanque de Rita, que em volta havia ficado vermelho de tanto sangue que o homem perdeu. Aquilo fedia e deu o que ver para Rita conseguir limpar. Quando veio até o Leco lavar a cabeça, Rubinho entregou o punhal para o dono do bar e disse que se ele falasse qualquer coisa para a polícia, seria o próximo a morrer. Importante modo de conhecimento sobre o que acontece na vizinhança, as práticas de observação dos deslocamentos alheios e sua transposição narrativa nas prosas do cotidiano, realizadas durante as visitas das moradoras às casas umas das outras, também permitiam um acúmulo de informações sobre os movimentos dos próprios bandidos dentro da comunidade. Ainda assim, tudo isso era dito num tom velado, como um conhecimento necessário mas que carregava o perigo de seu próprio conteúdo, já que agora era importante, para quem vivia naquela localidade, manter-se afastado dos envolvidos na morte. Os próprios deslocamentos dos bandidos, que também eram vizinhos, tornavam essa morte e seus desdobramentos muito próximos aos moradores. E ao mesmo tempo em que a proximidade aumentava a possibilidade de que alguém denunciasse os assassinos, ela também causava uma série de constrangimentos à denúncia, pois a presença de Jora e de Ulrico não se esvaneceria com uma ação policial. Ainda que fossem presos, eles poderiam ser soltos, e seus familiares permaneceriam vivendo perto. Nesse sentido, sua ausência jamais se realizaria por completo, 48
O marido de Edimara trabalha fora, nas firmas que contratam trabalhadores em empreendimentos de construção civil, em outros municípios. Por isso ela dizia que estava sozinha.
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eles continuariam ali presentes por meio de outros, e estar na prisão não os impediria de tecer ameaças. É, portanto, a partir de uma consideração mais ampla sobre os vínculos entre pessoas que moram perto, que inscrevem-se as próprias perspectivas sobre o que e como falar de certos assuntos. Aqui, não era o silêncio que se impunha enquanto modo de lidar com a violência na comunidade, mas sim o conhecimento da cena do crime e a observação dos deslocamentos dos bandidos, que emergiam como um conjunto de informações necessária à própria proteção dos vizinhos, que evitavam os assassinos. Nesses lugares, parecia impossível que os culpados por uma morte conseguissem se esconder por completo. Eles poderiam até se esconder da polícia, mas os vizinhos sabiam onde eles estavam, e isso era importante para que os moradores dos Cascatas se esquivassem do perigo que tais bandidos representavam. Entretanto, as próprias falas sobre os movimentos de Jora, Ulrico e Rubinho adquiriam um tom de discrição, com palavras declaradas em um tom baixo e rígido, sem variações de volume e intensidade. Ao mesmo tempo em que era importante falar sobre a morte e aqueles que nela estiveram envolvidos, e que as pessoas acreditavam que alguém denunciaria os assassinos, elas se esquivavam da possibilidade de serem elas mesmas as agentes de tal denúncia. Se alguém tinha que resolver isso, eram os Reis e os parentes de Joãozinho. Era neles, enfim, que a encrenca se concentrava. Ainda assim, os assuntos e observações sobre essa morte e seus participantes demonstram que a própria violência impõe novos arranjos ao cotidiano e ao convívio entre toda uma vizinhança, para além daqueles que supostamente levariam a encrenca adiante. As mulheres comentaram ainda que, poucos dias depois da morte de Joãozinho, o terreno dele foi comprado por outro vizinho que morava ao lado. Diz que os Reis tão só esperando parar de chover pra desmancharem a casa. A família não habitaria mais aquele lugar, desgraçado por uma tragédia. Desmanchar a casa não bastava, era preciso livrar-se do próprio terreno, deixar de habitá-lo. A vida da família não poderia continuar em um local marcado pela morte terrível de um pai. O sofá onde o homem morreu ainda estava lá, do lado de fora da casa, e seria queimado. O corpo de Joãozinho foi enterrado em outra comunidade, que fica do outro lado da estrada que dá acesso aos Cascatas. As mulheres disseram que o velório foi bem rápido, com pouca gente presente. E o piá de Joãozinho jurou vingança em cima do caixão. A vingança como jura declarada no velório, pelo filho do homem, é um sinal de que a encrenca irá continuar. Mais uma vez, tornava-se claro que era sobre os familiares mais próximos, aqueles que realmente ficam de luto e que choram a morte, que recai o peso da
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vingança. Nessas histórias em que a morte acontece com um pai de família, são geralmente os filhos que declaram a vingança. A comunidade mais ampla – parentes mais distantes e vizinhos – participam da morte falando sobre ela, comentando seus detalhes e o desenrolar dos processos de fazer justiça. Tal como Gilsenan (1996, p.164) observa sobre a expectativa de vinganças entre camponeses do Líbano, uma morte por “derramamento de sangue” é um evento com poderes de gerar e de transformar, uma ferida aberta que contém potencialidades que podem se estender a um futuro muito distante no tempo, e que continuará sendo o ponto de partida de inúmeras narrativas. Por meio dos comentários dos moradores dos Cascatas, a vingança emergia como uma expectativa fundamental sobre os desdobramentos do trágico fim de Joãozinho, de modo que sua força não estava em sua realização propriamente dita, mas nas maneiras com que ela era debatida e encarada como uma sempre presente possibilidade de amenizar a dor da ferida. No fim de uma vida tirada bruscamente, abria-se um novo tempo, um novo estado de relações entre os moradores da comunidade e aqueles que participaram da morte, assim como de novos laços entre pessoas e lugares, e de novos modos de se deslocar e de observar a vizinhança. Através das prosas sobre a morte, as pessoas circunscreviam a continuidade da encrenca para dentro da trama de parentes mais próximos dos que mataram e do morto. A eles caberiam os constrangimentos das proximidades com o inimigo e seus parentes, o afastamento, o desejo de reparação ou a vontade de esconder. Porém, a morte, as brigas e encrencas em geral são vividas por toda a vizinhança. São os mais diretamente afetados pelo ato ou estado de hostilidade– o agredido, os parentes dele ou do morto, o que matou, os parentes de quem matou, os que estavam junto com o morto ou com quem matou – que formarão o circuito onde a encrenca é estendida ou controlada. Os vizinhos que não participam diretamente da cena buscam não se envolver. Eles não irão tentar tirar satisfação com alguém ou fazer algo para amenizar a situação. A eles cabe o trabalho – tenso e ambivalente, já que eles participam diretamente do fluxo de informações sobre a morte e também a vivem – de limitar o prosseguimento da encrenca e da vingança aos mais diretamente afetados por ela. Por isso também cuidam com o que falam: pode ser que alguém não goste do que ouviu por aí e os tagarelas acabem se envolvendo na encrenca. Lislaine e Edimara me chamaram a atenção para o perigo que era eu ficar andando por ali sozinha, com a minha mochilinha, com tantos bandidos à solta. Elas se referiam aos envolvidos na morte de Joãozinho, que estavam escondidos nos matos, naqueles lados para onde eu ia. E enquanto me diziam isso, falavam que se aqui nos matos tá ruim, imagine na cidade, que a gente não tem ninguém que seja por nós, ninguém que a gente conhece. De
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certo modo, a proximidade com os outros e esse conhecimento extenso que as pessoas têm de seus vizinhos, configuravam para Lislaine e Edimara uma rede de proteção, algo que na cidade, elas imaginavam que eu não teria. Onde é que eu iria buscar ajuda caso acontecesse algo comigo na rua? Ali elas sabiam que em qualquer casa seriam convidadas a entrar, e que os vizinhos se prestariam a socorrê-las. Ainda que houvesse bandidos à solta, os Cascatas ainda eram um lugar de segurança para minhas interlocutoras. Perigos quem corria era eu, enquanto moradora da cidade. Assim, ao mesmo tempo em que me assustavam e me davam uma série de recomendações sobre como e por onde andar, as mulheres insistiam que eu estava melhor por lá do que no lugar onde moro. Despedi-me de Lislaine e Edimara, e saí. Meu retorno, por outro caminho, levou-me até a casa de Dona Lúcia. Comentei com ela que eu havia passado a tarde com suas vizinhas, e que elas me alertaram para que eu não andasse mais sozinha. Dona Lúcia me falou, prontamente, que era por coisas como essa que ela havia me dito uma vez que eu era de coragem. Eu sempre havia desconfiado da ironia do elogio, mas compreendia que era também uma maneira de as mulheres me chamarem atenção para os riscos que eu corria, riscos sobre os quais não é bom estar falando. Não é bom facilitar, sempre tem um prevalecido por aí, falou-me Dona Lúcia. Dona Áurea, lá nos Ambrósios, já havia me dito a mesma coisa. Você é de coragem, sair assim sozinha, sem conhecer ninguém. Ao me falar isso, ela recomendou que eu prestasse atenção num homem que ficava na rodoviária. Ele é estuprador e ladrão. Mas se Áurea havia sido explícita, nos Cascatas as recomendações eram mais sutis. Lembrome de Dona Lúcia dizendo, quando eu ia telefonar no pasto que fica em um dos extremos do terreno familiar: essa menina não tem medo de tigre! O tigre poderia até existir, mas não era disso que ela tinha medo, afinal49. Era de gente. Segui seu conselho e não saí mais sozinha, coisa que eu havia feito até então, durante todas as vezes em que estive na comunidade. Mais para o final daquela semana, eu e Ângela fomos à casa de Belmíria, tia de Abel. Como ela não estava em casa, resolvemos ir até a casa de sua filha, Adriane, para ver se Belmíria estava lá. Para tanto, tínhamos que passar na frente da casa de Jora, que havia retornado aos Cascatas, enquanto Ulrico permanecia escondido em outro lugar. Quando estávamos caminhando, Jora, que ia saindo da casa, correu para dentro. Havia um monte de crianças ali pela frente. De repente gritou uma voz de piá : A Adriane não tá em casa, e a Belmíria tá no Lauro! Fiquei tentando encontrar onde estava onde o piá que falava, mas só via uma casa fechada à minha frente. Ângela me disse depois que o garoto estava trepado no 49
Tigre é o modo com que as pessoas se referem aos grandes felinos que habitam as matas da região, como a onça pintada e a onça parda.
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eucalipto. Essas crianças são espertas, elas enxergam tudo. Apressamos o passo e seguimos embora. Era claro que não deveríamos ficar ali. As crianças, enfim, também participavam das observações e narrações sobre os deslocamentos dos moradores da comunidade. Elas também previam para onde certas pessoas estavam indo e anunciavam o que encontrariam no seu caminho. E fazendo isso, também protegiam suas próprias famílias. Dois meses depois, houve a mesada de anjo na casa de Claudionor Reis, irmão de Sabina. Eles fazem a celebração anualmente, em homenagem ao Divino Espírito Santo. O clima dessa mesada foi muito distinto do das outras de que eu já havia participado. Afetados pela morte de Joãozinho, todos os Reis estavam muito tristes. Isso sem falar que, por causa do péssimo estado das estradas depois de toda a chuvarada que caiu dias antes, pouca gente compareceu à comemoração. Em certo momento, encontrei dentro da casa Dona Tereza Reis, irmã de Sabina e Claudionor. Ela mora com Sabina. As duas são solteiras e dedicam sua vida ao cuidado da família, sobretudo das crianças dos sobrinhos e sobrinhas. Quando pergunteilhe como estava, Tereza falou que estava mal, depois de tudo que acontecera. Mataram o pai de seus sobrinhos na frente deles e de sua irmã Sabina. Deu quarenta e duas facadas. Ela ia continuar me contando, mas sua sobrinha, Ermínia, filha de Claudionor, puxou-a para longe de mim. De certo não queria a tia comentando a morte de Joãozinho durante a mesada. Aquele não era o momento para fazer aquilo, com tanta gente e as crianças ali perto. As narrativas sobre a morte de Joãozinho, tais como as ouvi, partiam da cena no torneio, e concentravam-se dentro da cozinha da casa, onde o homem foi morto. A partir dessa cena, outras informações dos que ouviam a história iam sendo acrescentadas. Era como se cada pessoa juntasse um ponto a mais na narrativa, a cada vez que ela era contada. Esses pontos a mais iam além da morte, juntando considerações sobre as famílias dos envolvidos, seus trânsitos e trajetórias de vida, seus comportamentos e modos de ser, seus movimentos de fuga e possibilidades de captura. O tempo transcorrido desde a morte também era fundamental no modo com que as histórias eram contadas. Ouvir as pessoas falando de uma morte que havia acontecido naquela semana era muito diferente de ouvir causos de mortes que haviam ocorrido há anos. As mortes do passado invadem o presente por meio da continuidade das mágoas que deixaram, as quais podem sempre ser retomadas e gerar novos desentendimentos ou apreciações sobre pessoas e acontecimentos. Contudo, dificilmente pessoas que não são próximas do morto ou que não presenciaram a cena de morte contarão os lúgubres detalhes da quantidade de facadas, do sangue, do movimento das pessoas que participaram da cena. Nessas histórias de quem sabe mas não viu, ou não sentiu a dor daquela morte como pessoa próxima ao morto, é
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comum que a situação narrada seja sintetizada em frases como: se provocaram e um matou o outro; se acharam no torneio e brigaram; o homem tava atentando e o outro pulou em cima dele com o facão; se encrencaram por causa do som do carro; brigaram porque tavam tudo bêbado. Essas sentenças, rápidas, carregam poucos temas gerais e comuns às brigas em locais públicos, e consistem nos modos usuais com que as pessoas falam de certas mortes. A morte de Joãozinho, contudo, estava sendo vivida pela comunidade toda naquele momento. Aquele era o período de rearranjo das relações entre os envolvidos, e entre eles e seus conhecidos e parentes. Todos especulavam sobre o que estava acontecendo e o que poderia acontecer, de maneira que as narrativas sobre Joãozinho tinham um tom de fuxico, eram repletas de expressões como tão dizendo que, diz que, o que nos remete mais a um assunto em debate do que a uma forma de narrar onde o locutor tem mais ou menos certos o começo e o fim da história que irá contar. Creio que também por isso, detalhes que sumiam dos modos mais comuns de se contar causos feios apareciam nas falas e especulações sobre o trágico fim de Joãozinho. Naquele momento tão próximo da morte, era como se todos pudessem falar dessas minúcias que, com o passar do tempo, sumiriam das narrativas do público mais amplo que acompanhou tal evento. Mas os detalhes da morte de Joãozinho, próxima e recente, e ocorrida dentro de sua própria casa, foram vividos e contados por todo o Cascatas, ao menos naqueles dias depois da Páscoa. Duas semanas depois disso, fui ao Faxinal dos Caldas, e só retornei aos Cascatas no mês seguinte. Após meu retorno, já não se falava mais em Joãozinho. A única pessoa que tocou no assunto foi Tereza Reis na mesada de anjo, quando foi rapidamente interrompida por sua sobrinha. Ao descreverem a cena da morte de Joãozinho desde dentro de sua casa, as mulheres também produziam sua compreensão sobre o circuito de pessoas envolvidas na encrenca, e a partir daí delineavam certas expectativas de vingança. Pensadas como famílias referidas a determinadas casas e terrenos, essas pessoas se tornavam motivo de observação e preocupação sobre a continuidade do perigo. Se os vizinhos observavam seus deslocamentos, buscando prevenir aproximações nesse momento em que a morte se espalha como assunto e como clima de tensão pela comunidade, os envolvidos também observam os deslocamentos de seus vizinhos e prestam atenção ao que eles estão falando sobre o acontecido. Além disso, tanto os locais onde a morte se desdobrou quanto os caminhos mais comumente utilizados pelos envolvidos, em seus trânsitos de casa até o bar, de casa até a casa de parentes, entre casas, adquirem novas qualificações, a partir das diferentes pessoas que contam sobre eles. O lugar que caracteriza a confluência entre o bar onde ocorreu o torneio e a casa de Joãozinho, é compreendido por Dona Lúcia como não muito bom, já que incorpora
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histórias de mortes que ultrapassam Joãozinho. A casa dele, por sua vez, é desmanchada, e o terreno, vendido. É encerrada a continuidade do seu vínculo com um local que passa a ser significado, para sua família, como um ambiente de morte. Assim também, os lugares onde ficam as casas de Jora, e as casas dos parentes dos irmãos Rubinho e Ulrico, ganham novos contornos nesses dias que sucedem a morte, e passam a ser percebidos como ambientes que encerram os perigos daqueles que lá vivem, ou que a eles se vinculam. Contudo, essas qualificações não recaem somente sobre os próprios lugares, mas também por entre os caminhos que os unem, e por onde tanto os bandidos quanto a família que busca resolver a morte (seja por vingança, seja através da polícia) se deslocam. Ao gerarem essas novas qualificações sobre pessoas e lugares, as brigas e as mortes que delas decorrem servem como estímulos à produção de uma “topografia moral”, noção utilizada por Pandian (2009, p. 48) para refletir sobre os modos com que habitantes do Sul da Índia compreendem as diferenças entre terrenos agrários a partir das atividades que seus moradores ali desenvolvem, de maneira que o cultivo do solo se torna um ideal de vida e do cultivo de si. Percebo, nesse sentido, que os moradores do interior também produzem topografias morais no que diz respeito às brigas e mortes e aos locais aos quais elas se conectam, e que esse mapeamento refere-se ao modo com que eles mesmos se conduzem frente a esses lugares e as demais pessoas que os habitam. O cultivo de si, nos termos dos moradores do interior, vai além dos modos com que eles se vinculam materialmente ao ambiente. Diz respeito, sobretudo, às maneiras de cultivar sua natureza e seus relacionamentos com os outros, sejam parentes, vizinhos ou conhecidos. Além disso, essa “topografia moral” inspira formas diferentes de se deslocar por esses ambientes, participar deles, e de produzir as reputações de seus moradores. O relevo da vida social é, em si, algo vivo, conformado não somente por diferenciações entre lugares, mas também pelas modulações dos movimentos que neles acontecem. Como sugerem Comerford, Carneiro e Dainese (2015, p.15): Os conflitos e sua transformação em narrativas (ou vice-versa) jogam com o movimento e o deslocamento em múltiplos planos: a violação de corpos, casas ou territórios de parentesco é movimento, e resulta sempre em deslocamentos físicos e existenciais relativamente imprevisíveis, deslocamentos de relações que impelem novos mapeamentos.
Um acontecimento como uma morte, como vimos no caso de Joãozinho, também traz um novo conteúdo aos lugares, famílias e movimentos corriqueiros através das estradas dos Cascatas e das casas de seus moradores. Não é só o espaço onde as brigas ocorrem que
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adquire novas definições, mas as pessoas revisarão como conduzir-se por esses locais, a partir de tal acontecimento. Novas observações, reputações e narrativas ganharão corpo, transformando o cotidiano de toda a vizinhança e as formas de as pessoas se relacionarem umas com as outras.
3.2 Quando as brigas e encrencas dos outros chegam em casa
Era domingo e dia de festa na igreja da comunidade do Faxinal dos Silveiras, próxima ao lugar onde Dona Francisca mora, mas ninguém de sua família se animou a ir ao evento. Aquela comunidade tinha ganhado fama de perigosa. Alguns de seus moradores eram envolvidos com quadrilhas de roubos de carros. Outros, mais jovens, eram ladrões que roubavam as casas de seus vizinhos. Além disso, uma história de estupro lá ocorrida, havia alarmado todas as comunidades do entorno. Enquanto retornava da igreja por um carreiro, uma senhora idosa, foi pega por um rapaz, que estava de rosto coberto. Para completar, era comum ocorrerem brigas nas festas daquela comunidade. Por tudo isso, à medida que a semana foi passando e o evento se aproximava, cresciam a apreensão e os comentários sobre a festa, que além de ser um momento tido como ideal para o desenrolar de agressões, aconteceria em um lugar que parecia propício a confusões. A possibilidade de haver briga era muito grande nesse caso. Do jeito que estavam as coisas, ficava difícil de as pessoas quererem ir até lá. E Dona Francisca, na verdade, não participa de festas. Persiste nela o medo de encontrar alguém que faça algo de ruim para ela e sua família, devido às suas antigas inimizades com o Zattar. E ainda que alguém resolvesse ir à festa e levasse todo o pessoal, pelo menos um dos moradores da casa teria que permanecer por lá. Porque não dá para deixar a casa sozinha. Periga entrar ladrão. Por volta das sete e meia da noite, estávamos sentadas na cozinha, à beira do fogão, conversando sobre a festa na igreja dos Silveiras. Comentei com Dona Francisca que a festa devia ter dado bonita, já que até aquele momento não tinha chegado nenhuma notícia provando o contrário 50 . Meia hora depois ouvimos os cachorros acuando. De repente, escutamos passos ao redor da casa e um barulho de batidas na janela. Era Robson, genro de Francisca que vive no mesmo terreno familiar, em uma casa que fica próxima à estrada. Ele 50
Deu bonita a festa? Tava bonita a festa? - essas expressões são usualmente utilizadas para se perguntar se correu tudo bem na festa, ou seja, se não houve nenhum incidente feio, como são consideradas as brigas.
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vinha pedir pelo seu compadre Jorge, o outro genro daquela senhora, que mora na mesma casa que ela. Junto com Robson, havia um rapaz, estranho. Dona Francisca, Seu Pedro (irmão dela), Jorge, e logo depois Fátima (filha de Francisca, casada com Jorge) saíram da casa para ver o que estava acontecendo. Eu permaneci quieta na cozinha, que como em grande parte das casas do interior, não era separada da sala por paredes. De onde eu estava sentada, via a porta de entrada da casa, e as portas dos quartos, todos com saída para a sala, e com janelas voltadas para os fundos ou para a lateral esquerda da casa. A porta de entrada da casa ficava exatamente na linha que divide a sala e a cozinha. Entrando por essa porta, do lado direito havia a mesa de jantar, e do lado esquerdo, o sofá da sala. Nos fundos da cozinha, na parede lateral da casa, havia ainda outra porta, que dava para a parte de trás da casa, e nem sempre ficava aberta, ao contrário da porta da frente, que era aberta logo pela manhã, assim que Dona Francisca terminava de tomar seu café, para ser fechada depois do pôr do sol, em cuja direção ficava a frente da casa. A porta dos fundos dava para um gramado, e para o pomar, espaço cercado, onde havia vários pés de fruta. A porta da frente, por sua vez, dava para uma varanda, que delimitava a área de entrada da casa e o quintal, também coberto pela grama. Logo depois de terem saído, as mulheres entraram de volta, comentando sobre o garoto desconhecido que estava ali fora, com o nariz ensanguentado. Ele estava na festa nos Silveiras com mais dois amigos. Tinham vindo cada um em sua motocicleta, e moravam longe, na divisa de Pinhão com outro município. Depois de beberem, brigaram com rapazes dos Silveiras que estavam na festa. Na saída do evento, esses mesmos rapazes esperaram na estrada pelo garoto e seus amigos. Bateram nele com um revólver e uma espingarda, e tomaram a sua moto. Ele veio correndo pela estrada, até avistar a luz da casa de Robson, aonde foi pedir ajuda. Queria que alguém o levasse até a casa de um conhecido, perto do Zattar, onde o pai dele poderia buscá-lo, ou alguém o levaria para casa. O rapaz havia vindo de longe, e não conhecia ninguém por ali. Fátima estava nervosa, não queria que seu marido, Jorge, levasse o rapaz para parte alguma. Se fosse para saírem, ele e Robson teriam que levar o rapaz juntos, ela dizia. Pois vai saber quem é esse piá? O que ele aprontou? Com quem ele brigou? As desconfianças pipocavam. Dona Francisca mantinha-se calma, séria. Elas comentavam que o rapaz estava bêbado. E onde já se viu ficarem na festa até agora, vir lá de longe pra esse lugar, e ainda por cima brigarem! Já havia escurecido há um tempo, não era mais hora de estar em festa. Sobretudo em festa de uma comunidade onde todo mundo sabe que sempre acontecem confusões, onde vive gente perigosa. Agora o rapaz estava todo machucado e sem sua moto,
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que diz que era novinha. Apesar do trágico da situação, Francisca e Fátima se riam da estupidez do garoto, que não prestou atenção onde se metia, abusou do perigo e agora estava ali, com uma mão na frente, a outra atrás, e a cara machucada. O primeiro drama foi em torno de o rapaz querer telefonar, e de quem iria levá-lo, se é que alguém iria levá-lo, para a casa do seu conhecido. Jorge, então, entrou em casa para pegar o telefone celular para o menino ligar para o pai, e o garoto foi entrando logo atrás51. Quando vi o rosto dele me assustei. Ele era jovem, devia ter uns 18 anos, e tinha a pele muito alva, o que parecia dar maior destaque ao seu nariz, arrebentado e vermelho de sangue. Ele foi seguindo Jorge. Gabriel, filho de Fátima, de oito anos, estava na sala, assistindo televisão. Fátima deve ter feito cara feia e Jorge entendeu que o piá não deveria estar dentro de casa. Mas você não precisa entrar, o telefone pega lá fora, falou Jorge, chamando a atenção do garoto, que saiu. Jorge pegou o aparelho e o levou até a frente da casa. Todo mundo que voltava de fora para o interior da casa esboçava tensão no rosto e questionamentos sobre a situação. O que será que havia acontecido? Vai que alguém resolve vir atrás do piá? O que será que ele fez? De repente, uma moto chegou. Era o amigo do garoto machucado, que havia se escondido atrás do piquete52 do terreno de Dona Francisca e ouvido e reconhecido a voz do amigo. Ele confirmou a história, disse que conseguiu escapar e se esconder, e que o outro amigo deles havia sido jogado no rio com moto e tudo. Essas coisas eu ouvia de Dona Francisca, Fátima, e Seu Pedro, que ficavam saindo e entrando em casa o tempo todo, enquanto eu permaneci lá dentro com Gabriel. Robson e Jorge se mantinham do lado de fora, com os rapazes. Os comentários de quem entrava eram cheios de interrogações. Nossa, então eles tavam em três? Eram três motos? O que será que foi feito do outro piá? Mas ao menos agora Robson e Jorge não teriam que levar o garoto machucado embora, já que o amigo dele havia aparecido. Só que surgiu outra preocupação: o que aconteceria com eles caso fossem pegos pelos piás dos Silveiras na estrada, sozinhos? E o que fazer com o outro amigo, que foi jogado no rio? Os garotos resolveram, então, chamar o pai do que estava com o nariz quebrado, e a polícia. Dona Francisca caçoou do menino ferido, quando ele disse que se pegasse o baixinho como chamou o piá que havia tomado sua moto –, matava ele. Ela o repreendeu, séria: Que matar o quê? Matar você não mata, se fosse pra matar tinha que ter matado naquela hora! Agora você não mata mais! 51
Provavelmente o garoto achou que o telefone era conectado a uma antena, pois no interior de Pinhão é difícil obter sinal de operadoras de celular, e para o aparelho funcionar dentro de casa é preciso ter uma antena particular de telefonia. 52 Piquete é outro modo de chamar as cercas que demarcam o terreno.
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Enquanto a polícia não chegava, Fátima, Francisca e Seu Pedro permaneciam dentro de casa falando dos rapazes, bobos de terem vindo de tão longe para uma festa nos Silveiras, e ainda por cima beberem e deixarem para ir embora tarde. Também comentaram que em outra festa, lá onde esses garotos viviam, eles já haviam se desentendido com os rapazes dos Silveiras. Eles não tinham nada que vir até aqui, na casa dos piás! – dizia Fátima. Seu Pedro lembrou que eles não sabiam que os garotos com quem brigaram eram dos Silveiras, por isso vieram. No fim os meninos saíram antes de a polícia chegar e pegaram a estrada errada, que os levaria de volta aos Silveiras. Logo depois a polícia passou com a sirene apagada, para não fazer alarde, e seguiu pela mesma direção que os guris haviam tomado. Um tempo depois vimos os policiais passarem de volta. Agora só nos restava esperar até o dia seguinte para saber o que havia acontecido. Na segunda-feira corria o boato de que os policiais haviam conseguido prender os garotos que haviam roubado e agredido os meninos da outra localidade. Mas depois um outro rapaz dos Silveiras, que estava ajudando Jorge a tirar pinhão das araucárias do terreno, desmentiu a história. Disse que ninguém foi preso. O menino que havia sido jogado no rio foi encontrado no domingo à noite. Machucou-se um pouco. A moto ficou toda quebrada. O pai do menino do nariz arrebentado, que havia buscado ajuda na casa de Dona Francisca, chegou nos Silveiras botando banca com os policiais, e queria sair campeando os responsáveis pelo ocorrido com seu filho. Por isso, as mulheres e os homens ficaram caçoando do garoto que ai, o papai vem ajudar! Nesse dia, quem passou pela casa de Dona Francisca, ou estava por lá, comentou o ocorrido na noite anterior e a má fama dos Silveiras. Diversas histórias sobre roubos e agressões vinculadas àquele lugar foram relembradas. Quando contadas por homens, essas narrativas ganhavam um tom mais dramático, com eles imitando o gestual e as vozes das pessoas envolvidas nas situações, mas de um modo exagerado, jocoso, que caçoava delas. As mulheres, embora também tirassem sarro de certos sujeitos, moralizavam mais os acontecimentos, falando do que achavam bom e do que achavam ruim, e do perigo em que os rapazes haviam se metido. A nora de Dona Francisca, por exemplo, disse que Elena foi louca de ter ido lá comigo poucos dias antes da festa, quando ela me levou conhecer uma senhora que vivia no Faxinal dos Silveiras, e aproveitou para dar uma volta de carro comigo por dentro da vilinha, aglomerado de casas que ficava em volta da igreja da comunidade. Não dá pra abusar com aquela gente! E Dona Francisca ficou a repetir o que falou para o garoto: agora você não mata mais! Fátima, por sua vez, expressou que não dava para falar que foi do
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terreno deles que os meninos chamaram a polícia, pois vai que os guris dos Silveiras resolvem vir tirar satisfação? Ao mesmo tempo, Dona Francisca e Seu Pedro repetiam que ali todo mundo os respeita, ninguém mexe com sua família. Esse acontecimento traz novas nuances ao que Lislaine e Edimara me diziam quando falavam sobre a morte de Joãozinho nos Cascatas, na conversa em que comentaram sobre os hábitos dos moradores do interior, que acolhem as pessoas que aparecem em suas casas pedindo ajuda, ou que estão em perigo. Fazer isso é tomar parte em histórias que não são as suas, mas que acabam adentrando sua vida de alguma maneira, e por isso precisam ser tratadas com cautela. Diferentemente das pessoas conhecidas que chegam livremente, sem serem convidadas, e permanecem no interior da casa, um caso como esse, de um rapaz estranho que briga e aparece pedindo socorro, de noite, recebe outros tratamentos. Ele não deveria entrar na casa, eram os moradores dela que deveriam sair para atendê-lo. Não era bom que Gabriel, filho de Fátima ainda pequeno, visse a face ensanguentada do rapaz. E também não era bom deixar um garoto desconhecido, em condições como aquela, passar para dentro de casa. Se não deixariam de ajudá-lo, por outro lado, Dona Francisca e seus familiares precisavam também tecer seu distanciamento em relação ao garoto, e o limite da porta era um ponto de controle fundamental nesse sentido. Além disso, esse distanciamento estava dado no próprio desconhecimento que os moradores da casa tinham do rapaz, do lugar onde ele vivia, e de suas relações familiares. Essas considerações, portanto, revelam-se fundamentais para o estabelecimento de modalidades de ajuda, e para as próprias maneiras com que os moradores deixam ou não outras pessoas entrarem em suas casas. É preciso discernir quem são as pessoas com quem se lida, saber efetivamente quem elas são, para também saber como acolhê-las e prestar-lhes socorro. Se o garoto e seu amigo que se escondeu conseguiram acessar as casas dos terreno familiar de Dona Francisca, esse acesso se dava pelo lado de fora, através da face externa das residências. Eles não foram convidados a entrar, e não o seriam, tendo em vista que a própria situação que os havia levado até ali era a de uma briga estranha aos membros da família de Francisca, que não tinham intenções de tomar parte no episódio, mas que acidentalmente acabaram adquirindo um lugar dentro dele. Por isso também, Fátima não queria deixar seu marido levar o rapaz a parte alguma. E se o melhor a se fazer era chamar a polícia, já que havia um outro desaparecido e provavelmente muito machucado, deveria ser mantido em sigilo que o telefonema partiu dali. Para lidar com a questão, Dona Francisca e seus familiares acionavam o conhecimento que possuíam sobre os garotos dos Silveiras, com quem a briga havia acontecido. Era com
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eles que os moradores da casa não queriam encrenca, pois sabiam que não era bom mexer com tais garotos, perigosos, metidos com roubos e outros tipos de confusões. Já havia sido para evitar isso que ninguém fora à festa. Ainda assim, a briga veio até a casa. E se os garotos que vieram pedir socorro moravam longe dos Silveiras, Dona Francisca e seus familiares permaneciam perto deles em termos de vizinhança. Também por serem desconhecidos e desconhecedores de onde estavam se metendo, os rapazes que haviam vindo da comunidade longínqua eram dignos de piada por parte dos familiares de Francisca. Eles abusaram da própria sorte, ainda mais porque já haviam brigado com os mesmos Silveiras em uma festa anterior. Se não sabiam que os rapazes viviam ali, pior para eles. A gente não deve ir à festa em lugar que não conhece, e muito menos deixar para voltar para casa de noite, quando todos já estão bêbados e as brigas acontecem. Os garotos que apanharam, afinal, eram tratados como tolos, pois já tinham se envolvido em confusão com os rapazes dos Silveiras e depois vieram até a casa deles, algo que era tomado como uma grande provocação. Nesse sentido, emerge uma outra concepção de casa de alguém, referente à própria comunidade em que os garotos viviam, a qual estava celebrando uma festa na igreja, local que é representativo de seu centro. A casa adquire, por essa via, uma conotação territorial mais ampla, enquanto um espaço público representativo de uma coletividade de pessoas que habitam determinado lugar, e no qual certas pessoas de fora não são bem-vindas, mas sim hostilizadas. Dona Francisca, por outro lado, havia sido contundente ao mandar o garoto que estava com o nariz quebrado parar de dizer que iria matar o rapaz dos Silveiras. Agora ele não matava mais, precisava ter feito algo na hora. Embora essa declaração tivesse a ver com certas conotações sobre o tempo da briga, tomado de uma perspectiva mais imediatista, em que as agressões precisam ser realizadas na hora em que os ânimos estão aquecidos, a fala de Francisca era também uma espécie de conselho ao garoto. Ao dizer aquilo, ela buscava controlar a raiva dele, que fazia uma declaração de morte, estendendo a encrenca no tempo. Ele parecia não ter entendido com quem estava se metendo. Ciente disso, Francisca buscava dissuadi-lo da vontade de perseguir um acerto de contas, tentando de algum modo convencêlo de que a briga não poderia passar daquele momento, o único em que o garoto poderia ter feito algo mais drástico. Naquela semana da festa nos Silveiras, eu fui embora da casa de Dona Francisca, para voltar somente no ano seguinte. Esse acontecimento não foi mais comentado. Porém, falou-se da mesada de anjo que Francisca havia realizado recentemente em virtude de sua promessa à
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Nossa Senhora, para obter a usucapião do seu terreno. Dona Ana, que havia matado o pistoleiro Paulão a tiros (Cf. Capítulo 1), havia sido convidada para a mesada. Mas além dela, as filhas de Paulão, que andavam se estranhando com Dona Ana desde a morte do pai delas, também estariam presentes no evento. Havia um certo temor de que as mulheres resolvessem brigar durante a mesada. Inconformadas com a morte de seu pai, as filhas de Paulão também tinham planos de vingança, e não perdiam oportunidade de ameaçar Dona Ana. Dona Francisca contou-me que certa vez, Dona Ana e uma das filhas de Paulão se encontraram na igreja, ou seja, cruzaram-se uma com a outra na ocasião de um culto, ou missa. A filha do falecido pistoleiro sentou-se ao lado daquela que matou seu pai, e disse-lhe: tua hora ainda vai chegar. Dona Ana, esperta, respondeu-lhe que só Deus era quem sabia a hora dela, e que numa dessa a hora daquela mulher chegava antes que a sua. A filha de Paulo ficou com medo de Ana. Em uma ocasião diferente, outra das filhas dele encontrou Ana no ônibus que faz a linha até o Pinhão, e discutiu com ela o caminho todo, gritando, para todos ouvirem, que Ana ainda iria pagar pelo que fez ao pai da mulher. Depois disso, aquela filha que havia provocado Ana na igreja se desentendeu com a irmã, que vendeu uma casa da família em Pinhão, sem consultá-la e sem dar-lhe o dinheiro de sua parte da casa. A mulher, chateada, foi então contar para Ana que a irmã havia vendido a residência para comprar uma arma e matar aquela senhora. Desconfiada, Dona Ana questionou-a: Mas não era você que queria me matar? E agora quer me ajudar? Para Dona Francisca, a mulher delatou a irmã porque havia ficado com medo de Ana, depois do episódio da igreja. E as irmãs, que até pouco tempo estavam unidas nos atos de ameaça à mulher que matara seu pai, agora haviam se encrencado, por causa do patrimônio de sua própria família. Por tudo isso, era preocupante para Francisca e suas filhas que essas mulheres se encontrassem na mesada de anjo e resolvessem brigar. Se as brigas e encrencas geralmente parecem mais masculinas, situações como a de Joãozinho, que foi morto também por uma mulher, e de Dona Ana, que matou Paulão, revelam não só que as mulheres podem se envolver nessas questões, como que elas são sujeitas a observações, cuidados e expectativas similares às que se produzem acerca das brigas dos homens. Ao se tornarem questões de família, essas mortes se espalham também pelas mulheres, ainda que as vinganças sejam mais comumente juradas por filhos homens. E no caso de Dona Ana, que matou um homem que tinha filhas, eram justamente essas filhas que a ameaçavam e que anunciavam a vingança do pai, e não os filhos homens de Paulão. A proximidade das mulheres encrencadas era algo que dava impulso à continuidade de ameaças, realizadas em lugares de encontro de toda a vizinhança. Não só a convivência
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delas entre si era afetada, mas também a de todas as outras pessoas que reconheciam a encrenca e precisavam saber lidar com as intempéries das mulheres. Assim como os homens estão sujeitos a se encontrarem, brigarem e acertarem suas contas em locais de circulação de outras pessoas, com as mulheres acontece o mesmo, porém, de modos diferentes. Se o bar, mais reservado aos homens, não é um local frequentado por elas, as festas na comunidade ou nas casas de vizinhas, as estradas, os meios de transporte públicos e até mesmo a igreja se tornam pontos de encontros perigosos (tais como seriam também para os homens). Em alguns lugares onde as pessoas se concentram em torno de uma atividade comum, há uma divisão espacial de gênero que faz com que mulheres fiquem mais próximas umas das outras. Na igreja, por exemplo, elas costumam sentar-se na fileira de bancos da esquerda, enquanto os homens ficam na da direita. Nas festas em casa, elas permanecem juntas, em grupos, dentro ou em volta da casa, enquanto os homens ficam do lado de fora. Casais não ficam conversando juntos por muito tempo, ou o tempo todo no mesmo lugar dentro da festa, eles se dividem. Nesses locais, homens socializam com homens e mulheres com mulheres. Era nos momentos em que as casas se abriam para pessoas que não moram nelas, que se esclareciam para mim algumas questões sobre a imbricação entre as relações de gênero e o interior das moradias, e as relações entre os cômodos da casa e os níveis de intimidade entre quem frequenta a casa e seus donos. Na maioria das vezes, mulheres que se visitam permanecem na cozinha. Quando eram casais de familiares que chegavam, sozinhos, eles conversavam com os donos da casa na cozinha, lugar das conversas mais íntimas entre uma família, que ao redor do fogão, senta, toma chimarrão e fala sobre a vida. A cozinha, assim não é só o lugar das atividades femininas, mas um lugar representativo da familiaridade entre os moradores da casa e os que são recebidos na cozinha. Quando há mais homens e mais mulheres, geralmente elas ficam reunidas na cozinha, e eles na varanda, ou na sala. Em geral, é na cozinha que as pessoas contam histórias e conversam em seu convívio cotidiano. Os quartos não são lugares de permanência ao longo do dia, e são mais restritos àqueles que ali dormem, e que os usam também para trocar de roupas e guardar os seus pertences particulares. A sala é mais um lugar de descanso cotidiano, onde as pessoas se esparramam no sofá para assistirem televisão. Mas quando muita gente vem à casa, como acontece nas festas de aniversário, reuniões de família e mesadas de anjo, são as mulheres que circulam por dentro da residência. Os homens permanecem do lado de fora, e muitas vezes comem em mesas colocadas na varanda. Dona Francisca se preocupava com a presença das mulheres encrencadas em sua festa, já que elas já haviam feito cenas em outros lugares. Ainda assim, ela não poderia deixar
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de convidar as três. Não fazer isso, afinal, também acarretaria em se envolver na encrenca, e certamente seria interpretado como desaforo por uma das partes. O problema não era dela, mas era preciso garantir que ele não se explicitasse na mesada, e que as mulheres ficassem distantes uma da outra – o que se tornava talvez mais difícil tendo em vista a própria divisão de gênero do ambiente. No fim, Dona Ana e as filhas de Paulão atuaram de modo a evitar se encontrarem entre o quintal e a casa, permanecendo separadas ao longo de toda a festa. Tudo ficou bem, e minha anfitriã teve a mesada como queria. Em grande parte da literatura sobre feuds, “vendettas” e “vinganças”, predomina a tendência de se tratar esses atos como fundamentalmente masculinos e de compreendê-los do ponto de vista dos homens que neles tomam parte. Esses fenômenos são assim observados à luz dos parâmetros de sistemas patriarcais e do parentesco agnático, em que os homens são chefes de família e de territórios, e que é sua autoridade, bravura, “honra”, o sobrenome de sua família ou o nome de sua tribo, e a necessidade de se redimir o sangue masculino derramado, que motiva tais conflitos53. Nessas análises, as mulheres parecem imunes a tais procedimentos, ganhando no máximo ganham o estatuto de figurantes ou de motivadoras das brigas masculinas. Um interessante contraponto a essa literatura é trazido por Almeida (2001), que ao realizar pesquisa com “mulheres que matam” e que estão presas em uma penitenciária do Ceará, observa que a defesa da família, algo que naquela literatura sobre “vinganças” é tomado como componente da “honra masculina” ou como obrigação dos homens, é uma justificativa acionada pelas mulheres para seus crimes. A autora argumenta que, ao matarem, tais mulheres transgridem a condição de passividade e de vulnerabilidade a que são relegadas pelo código dominante. Porém, conforme argumenta Mahmood (2005), tratar a capacidade de agência somente do ponto de vista da resistência às normas não nos permite dar conta, por exemplo, de como há agência nas múltiplas formas com que essas normas são incorporadas, performadas e experienciadas. Nas histórias sobre mulheres pinhãoenses que pegam em armas, matam e ameaçam, não é a transgressão da norma, a tomada de um espaço que a princípio é proibido a elas, que dá base às suas narrativas. Elas introduzem novas nuances à problemática das encrencas, brigas e vinganças, demonstrando que, se os homens é que gostam das armas e que na maior parte das vezes declaram e efetivam mortes e ameaças, as mulheres também tomam parte em 53
Refiro-me aqui sobretudo aos autores que realizaram etnografias nas regiões do Mediterrâneo e do Oriente Médio, como Campbell (1965), Peters (1965), Black-Michaud (1965), Hasluck (1967), Bourdieu (1972) e Herzfeld (1985).
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ações desse tipo. Contudo, elas não afirmam que com isso essas mulheres se tornariam mais “masculinas”, ou tomadas por forças mais “masculinas”, ou que passariam a ocupar um papel que é dos homens. Não é nisso que falam as outras mulheres que comentam essas histórias, e também não é a excepcionalidade da participação feminina em mortes que emerge como questão a ser problematizada. Reflete-se muito mais sobre a especificidade do feminino nesses casos, o que revela que a agência das mulheres nas encrencas e brigas é distinta da dos homens. Dona Ana matou Paulão para defender suas terras e família e acabar com a vida do homem que incomodava um grande número de pessoas, em uma situação de conflito de terras que ultrapassava aquela senhora. Ela protagonizou, desse modo, uma história que é tomada como exemplar da força dos posseiros em geral, na medida em que é sintetizada pela máxima de que o prevalecido morre pela mão do mais fraco. O pistoleiro Paulão abusara da própria sorte. Por acreditar em sua força e no respeito que sua ruindade inspirava nos outros, não cogitava que sua morte pudesse partir de alguém em posição tão desigual, e ainda por cima uma mulher. Pois nessa localidade em que as histórias de brigas, vinganças e armas que deram fama ao município eram referenciadas a homens que se faziam homens por andarem armados, não seriam os tiros de uma mulher que estariam nas previsões de perigo tecidas por um jagunço. Assim, o que Dona Ana fez não é, segundo esses parâmetros, comum. Isso faz dela uma mulher de coragem, braba, alguém com quem não se pode mexer, porque ela mata mesmo. Contudo, quando as mulheres me contavam essa história, Dona Ana não emergia como exceção à regra, mas sim como um exemplo do que elas também seriam capazes de fazer a alguém como Paulão. Sua coragem, nesse sentido, era ao mesmo tempo vista como algo característico dela, e como um ímpeto disponível a todas as outras mulheres que desejassem cultivá-lo. Por ter matado Paulão, Dona Ana se tornou alvo de ameaças de vingança das filhas do homem. Chama a atenção o distanciamento próximo que elas parecem manter, e que sustenta os fiascos no ônibus e os malefícios anunciados na igreja. Nas histórias das brigas de família e das vinganças protagonizadas por homens, era sempre explicitado o perigo de inimigos se encontrarem. Quando se encontravam, era praticamente certo que alguém sairia morto. E nessas vinganças eles se perseguiam e se escondiam para esperar o alvo passar e assim atingilo de surpresa. Não havia histórias de bate boca e discussão em que a possibilidade de morte imediata não fosse levantada. Além do mais, muitas das brigas masculinas têm o bar como ponto de partida ou de final infeliz. Esses ambientes, contudo, não são comumente frequentados por mulheres, de modo que não é no bar que elas vão resolver seus problemas
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umas com as outras. No caso de Dona Ana e das filhas de Paulão, há outras nuances no modo com que a encrenca adentra o cotidiano, pois a primeira não deixou de frequentar os mesmos lugares e seguir os percursos que fazia antes. Nesses caminhos e locais, ela tem a desventura de encontrar as mulheres que a ameaçam verbalmente, na frente de todos, deixando claras as suas intenções. Dona Ana, braba, responde às ameaças com outras. Se nos casos das encrencas dos homens, parece haver menos encontros e palavras ríspidas trocadas e mais ações com a intenção efetiva de matar, no caso dessa vingança anunciada por mulheres contra outra mulher, havia muitas oportunidades de encontro que davam vazão às brigas, mas brigas enquanto agressão verbal, através das quais a distância e a hostilidade eram gritadas para todos os presentes. E assim a encrenca segue, de modo que quem assiste tem por certo que as filhas de Paulão têm um plano de vingança, ainda que não se saiba como irão efetivá-lo. A festa na casa de Dona Francisca, porém, foi um evento em que um encontro intempestivo entre as mulheres era esperado, mas não se concretizou. Elas respeitaram a mesada e sua anfitriã, e permaneceram distantes, embora cuidadosamente observadas e observadoras. O que desponta nessas histórias de brigas, encrencas e vinganças protagonizadas por mulheres não é, portanto, um caráter de exceção à norma, mas sim aquilo que há de específico em sua própria experiência. Tendo em vista todas as outras situações – que são, de fato, maioria – em que a proeminência nas agressões e mortes é masculina, alguns poderiam enquadrar as agressões e mortes realizadas por mulheres como algo residual ou fora da curva. Porém, a agência feminina nessas formas de hostilização revela outros modos pelos quais as mulheres habitam os códigos da vida social, como fazem das encrencas, brigas e vinganças assunto e prática sua. Nas narrativas sobre agressões e mortes matadas, entram em questão observações sobre como os envolvidos nessas situações cultivam suas naturezas através de seus relacionamentos com os outros. Logo que Joãozinho foi morto, a vizinhança inteira comentava a cena de sua morte e as trajetórias de seus protagonistas, abrangendo também seus deslocamentos pelas estradas e carreiros do Faxinal dos Cascatas, e reflexões sobre seu futuro. Além disso, as moradoras da comunidade falavam de Ulrico, Rubinho e Jora colocando-os em relação com as famílias às quais eram vinculados e aos lugares onde haviam crescido e vivido, observando aquilo que os diferenciava frente a seus familiares. Essa distinção era percebida sobretudo através do corpo, cujos trejeitos revelavam o jeito e a natureza daquelas pessoas. Em outras situações, o jeito e a natureza também poderiam ser vistos como algo que assemelha certos sujeitos aos seus parentes mais próximos, tendo em
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vista traços herdados e hábitos compartilhados. O corpo, enfim, mostra aquilo que as pessoas têm em comum, e aquilo que as particulariza. Ele é a manifestação da moralidade de alguém, é através dele também que se pode identificar uma pessoa boa ou ruim. Os bandidos e os valentes, por conseguinte, tinham suas facetas tenebrosas e abomináveis associadas aos seus trejeitos corporais, relacionados às substâncias, humores e a tudo aquilo que habita o corpo humano, inclusive o demônio. E se o demônio pode habitar os corpos de homens e de mulheres, tornando-se visível também com as transformações físicas que as pessoas sofrem quando abusam da bebida, há algumas expressões de ruindade particulares aos corpos femininos. Jora, a mulher que anda com homens, bebe, é endemoniada, invade a casa de um homem para matá-lo na frente dos filhos dele, e clama em voz alta que foi ela quem matou Joãozinho, era ruim não só por causa disso. Quando me falaram de sua ruindade, as mulheres da vizinhança tomavam como base o parto que Jora havia realizado no mato, depois do qual abandonara o bebê à própria sorte. Se alguns homens parecem bichos, Jora havia tido um filho como um bicho, e feito com seu filho o que nem os bichos fariam. Ao excesso da morte de Joãozinho precedia um outro, o da contravenção do corpo de mãe. Ressaltando isso, as outras mulheres tornavam visível aquilo que Jora era capaz de fazer, tomando o parto e a morte do bebê como referência para a problematização do envolvimento dela no assassinato de Joãozinho. A ruindade, nesse sentido, também é abordada segundo a gramática de gênero, e no caso de Jora, o ponto crítico estava não só nos abusos motivados pelo estado de endemoniamento, mas naquilo que somente uma mulher endemoniada pode fazer, o que levava as outras vizinhas a uma leitura da maternidade e da relação de uma mulher com seu corpo e seu bebê. Um outro ponto levantado por essas mortes e brigas que acontecem na vizinhança e cujos protagonistas moravam perto das pessoas que me receberam em suas casas, é o imperativo da proximidade com bandidos e com aqueles que estão encrencados uns com os outros. Essa proximidade se dava em vários âmbitos que não só o morar perto, mas também nas relações de parentesco, apadrinhamento e amizade que conformam as comunidades do interior. Por isso uma morte e uma encrenca se tornavam motivo de atenção geral. Era importante saber o que havia acontecido para saber como enfrentar essas tensões, e para produzir um distanciamento que garantisse uma certa neutralidade. A observação dos deslocamentos dos bandidos e das pessoas encrencadas, as conversas sobre esses deslocamentos, realizadas em voz baixa e com tom de fuxico, e a discrição com a polícia eram algumas das ações em que a fala e o conhecimento são colocados de forma ambígua, como algo que se diz porque é importante mas que se sabe que não se deve dizer, pois palavras são
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também a tomada de uma certa responsabilidade, já que produzem testemunhos. Assim, as conversas sobre as mortes, brigas, encrencas e vinganças tornavam explícitos os dilemas de quem tem que conviver com os dramas dos outros. Esse convívio, por sua vez, depende das ações dessas pessoas em busca por neutralidade, de modo que ainda que distantes, elas também agem sobre as encrencas. E muitas vezes, mesmo que não queiram, elas se veem no meio da tensão, como quando uma pessoa ferida chega em sua casa pedindo ajuda ou é preciso, convidar à sua casa pessoas que se sabe que não se dão. As mortes e encrencas, nesse sentido, espalham-se como assunto e tema de interesse para todos, porque são tidas como algo que afeta a todos. Não é à toa, então, que Abel tenha me dito que com a morte de Joãozinho, algo iria mudar na nossa comunidade. Apesar de todo seu esforço em circunscreverem as pessoas pelas quais aquele evento espalhava rancor, culpas e possibilidades de vingança, era sabido também que estava em curso a transformação do cotidiano e das relações entre os moradores dos Cascatas.
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Capítulo IV VIZINHOS: BRONCAS E DESAFOROS
O Faxinal dos Cascatas foi a primeira localidade de Pinhão onde permaneci na casa de uma família no interior de Pinhão. Lá fico na residência de Abel Miller, homem de 48 anos, filho de Dona Lúcia (70), casado com Angela (38) e pai de Vivian (20) e Alessandra (16). Essa é a família com quem mais tenho proximidade em Pinhão. Todas as vezes em que fui ao município eu passei pela casa deles, e nos primeiros períodos de meu trabalho de campo, eu ficava na casa dos pais de Abel, situada no mesmo terreno familiar. Também por isso, o Faxinal dos Cascatas é o lugar com o qual tenho maior familiaridade no interior. O Faxinal dos Cascatas compreende uma área que vai desde o asfalto da rodovia que atravessa Pinhão, até 13 km adiante para o interior, seguindo por uma estrada de chão conhecida como estrada geral. Segundo Abel, o Faxinal dos Cascatas tem cerca de 200 famílias. Localiza-se numa área de planalto, coberta de mata de araucárias. Antigamente era terra de criador, ou seja, os que lá viviam criavam seus animais à solta, em terras de uso comum. Entre os anos 1970 e 1990, os posseiros dos Cascatas tiveram que conviver com a presença dos homens de armas da madeireira Zattar, e com as interdições impostas ao seu modo de vida. Tiroteios, perseguições e esperas marcam as histórias dos conflitos deles com os jagunços e guardas, e a família Miller, também de posseiros, juntou-se aos vizinhos nessa peleia contra a empresa. Caminhando pela estrada geral do Faxinal dos Cascatas desde o asfalto, temos basicamente o seguinte trajeto: logo na entrada da estrada há algumas casas, de ambos os lados do caminho. Depois delas, desce-se uma pequena serra. No final dessa primeira descida, à esquerda, vemos várias casas que formam uma vila. Lá, os terrenos são pequenos (têm no máximo 2 hectares). Podem ser particulares, arrendados, ou de posse, e pessoas que não possuem laços de parentesco moram perto umas das outras. Ali também ficam a igreja Assembleia de Deus, bodegas e mercadinhos – que são também bares, com mesas de sinuca. Do lado direito da estrada, há várias casas, e também vários portões, indicando a entrada de estradas que ligam a distintos terrenos familiares, onde moram pessoas reconhecidas como parte de uma mesma família. Há também estradas abertas, sem portões.
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A partir da igreja Assembleia, do lado esquerdo da estrada, começam os terrenos de Osmar Keller. E de um ponto em diante, os Keller, família abastada, dominam os dois lados da estrada geral. A residência dos Miller localiza-se à direita da estrada principal, seguindo reto por uma outra estrada, menor que a geral, e onde há várias residências muito próximas umas das outras. Ali, alguns dos antigos posseiros venderam partes de suas posses a pessoas de fora, ou a seus parentes, que se estabeleceram em áreas pequenas. Por isso, Ângela me dizia que alguns desses terrenos estão se tornando vilas. Nesse sentido, as terras dos Miller, que não sofreram divisões desde a delimitação de posses realizada nos anos 1990, diferenciam-se das de seus vizinhos de estrada. Vivendo com os Miller e convivendo com os demais moradores dos Cascatas, aprendi a andar nas casas, familiarizei-me com eles e com as pessoas que vivem perto deles, e pude reconhecer a agonística do cotidiano de outras maneiras, distintas dos conflitos de terras e das encrencas, brigas e vinganças. Nas atividades de lida com a criação, e no convívio próximo com os vizinhos, eram as broncas e desaforos que expressavam os desentendimentos e aflições da família que me recebeu em sua casa. Reclamações acaloradas sobre as invasões de pessoas e bichos a locais para onde não deveriam ir, as broncas eram acompanhadas de desaforos, enquanto palavras e atitudes ofensivas, que feriam as boas práticas de convívio entre as pessoas. Ao comentarem sobre isso, os Miller colocavam em questão os vínculos e reciprocidades que esperavam de seus bons modos de visitar, conversar, ajudar e agradar, aquilo que constitui, nos termos deles, um saber viver. Por outro lado, eles promoviam reflexões sobre suas condutas e modos de reagir aos problemas com os outros, assim como sobre as condutas de seus vizinhos. Se os que vivem em uma mesma comunidade são capazes de reconhecer onde moram todos aqueles que dela participam, a quais famílias são vinculados, e quais as reputações de suas gentes, os vizinhos, por sua vez, estão em um plano mais próximo de convívio. Os Miller chamavam de vizinhos não só as pessoas que viviam nos terrenos que fazem divisa com o seu, mas também os que moravam nas proximidades das duas estradas que contornam o terreno familiar onde habitam. Era por essas terras que os animais de criação, quando ultrapassavam as cercas, transitavam. Eram também esses moradores mais próximos aqueles que conheciam e acompanhavam mais de perto os deslocamentos da família que me acolheu, e vice-versa. Enquanto estive com os Miller, eles viveram uma série de problemas devido a ataques de cães contra seus animais de criação. Em contrapartida, eles também sofriam aborrecimentos por causa de seus porcos, que passavam para os terrenos dos vizinhos,
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causando estragos nas terras dos outros. Esses momentos de bronca ou de danos causados pelos trânsitos da criação e dos cachorros eram acompanhados de uma série de declarações sobre os animais e os modos de vida de seus donos, assim como sobre a autonomia que a pessoa lesada pelos bichos tinha de agir sobre eles. Buscarei, desse modo, observar como se lida com essas broncas, levando em conta a mutualidade entre pessoas e animais. Além disso, os roubos protagonizados por crianças e jovens da vizinhança também se tornaram um foco de tensão entre a família que me recebia e os moradores que viviam perto deles. Quando estava com os Miller, sua casa foi invadida por ladrões que não levaram embora muita coisa, mas ainda assim conseguiram causar estragos, pois eram meninos que moravam nas imediações do terreno familiar. O roubo e seus desdobramentos eram recriados em narrativas, que problematizavam atos como o agrado e a ajuda, e levavam em conta a possibilidade de o roubo ser uma resposta a um desaforo. Tanto quanto nos casos de bronca e desaforo envolvendo os trânsitos dos animais, aqui também emergiam declarações sobre as reputações de pessoas e famílias, mas agora, centradas no trânsito das crianças, tidas como agentes que também movem as tensões que fazem parte do saber viver dos moradores do interior.
4.1 Criação dá muita bronca Viver no interior implica morar em lugares onde todos conhecem a todos e sabem da vida de todos. Sendo esse conhecer-se mútuo uma prerrogativa social, o reconhecimento e a cordialidade entre as pessoas são produzidos nos modos com que elas se tratam e se ocupam umas das outras cotidianamente: como se cumprimentam ao se encontrarem nas estradas, pontos de ônibus, no Pinhão; se visitam-se, se vão às festas nas casas (aniversários, chás de bebê – exclusivamente femininos – , mesadas de anjo, festas de santo); se quando em veículos motorizados, dão carona para quem encontram no caminho. Além disso tudo, o cuidado com os deslocamentos de sua criação (vacas, porcos, cabritos, carneiros) e dos seus cachorros, e o conhecimento e observação dos deslocamentos dos animais dos outros, são parte fundamental da convivência e do respeito entre vizinhos. Conforme destacado por Comerford (2014), acerca da “sistemática do vigiar e do narrar”, não só os movimentos de pessoas entre casas se tornam matéria de julgamento, de produção e ruptura de relações, mas também as movimentações dos animais podem se tornar foco de tensão, compondo as reputações dos seus donos, e incidindo sobre as relações entre famílias que habitam uma
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mesma localidade. Criação dá muita bronca, afirmam os moradores do interior. Bronca, por sua vez, é uma espécie de reclamação tumultuosa, a enunciação de um problema entre pessoas, que pode levá-las a sérias hostilidades, pois com a bronca se abre caminho para o desaforo, mensagem tida como desrespeitosa por aquele que a recebe. Os animais não ficam parados e fechados no mesmo lugar ao longo do dia, mas transitam pelas terras de seus donos. E sempre que encontram aberturas nas cercas, passam para o lado de fora do terreno, o que na maioria das vezes resulta na ida para dentro da terra de um vizinho, que pode se embrabecer com a criação estranha que ali entrou, sobretudo se o animal em questão é o porco. Além dos porcos, os cachorros, animais domésticos, também são motivo de atenção. Enquanto os porcos estragam as lavouras e reviram o solo, os cachorros matam criação. Por isso, ambos esses bichos são afamados por causar dano aos outros. É pelo dano sofrido que as pessoas lançam desaforos e criam broncas com os donos dos animais, o que pode abrir caminho para uma encrenca, culminando no rompimento de relações entre as pessoas envolvidas e em graves enfrentamentos. A relação entre a criação de gado, o governo do território e as hostilidades internas e externas a uma comunidade, é discutida por Evans-Pritchard (1940). Em última instância, a criação de gado permitiria ao antropólogo compreender aspectos da estrutura política Nuer, na medida em que o cuidado desses animais e o espaço substancial à sua criação era parte da “organização tribal” do território e de um “sentimento de comunidade” (Evans-Pritchard, 2002, p.58). Nos faxinais de Pinhão, observar as práticas em torno da criação de animais é deparar-se com a história daquele ambiente, antigamente terra de criador, onde animais como o porco movimentavam-se livremente através dos terrenos dos vizinhos, algo que hoje em dia é impensável. As técnicas de criação incluem e movem uma série de convenções sobre a propriedade da terra, as divisas dos terrenos, a manutenção das cercas. Por outro lado, a criação é elemento ativo na tessitura de uma boa relação de vizinhança. Criar animais envolve, portanto, a realização de práticas que são constitutivas das relações dos moradores com a terra, com seus terrenos, com as criações alheias e com esses outros donos. A lida com a criação, por conseguinte, promove o vínculo entre uma família e seus animais de criação, e uma moralidade que é vivida e incorporada pelas pessoas em suas formas de tratarem a criação umas das outras. Ao cuidarem dos seus animais, e dos animais dos seus vizinhos, os moradores também estão zelando seu convívio entre si. Em sua análise sobre o “mexer com a criação”, realizado pelo vaqueiro Samu no território do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, Andriolli (2011) compreende a criação
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como algo realizado “em família”, de tal modo que essa prática é por si mesma significativa enquanto vínculo familiar. Os bichos surgem como “seres sociais”, e às vezes são referenciados como parte da própria família do vaqueiro, seus “filhos”, seres modulados hierarquicamente a partir de suas atividades e relações com a casa de Samu, o qual, por sua vez, também têm vínculos afetivos com seus animais. A relação do dono com o animal vai além do valor econômico, adentrando a zona do afeto, o qual passa pelo próprio cuidado que é necessário ter para com a criação. Além disso, Andriolli argumenta que “mexer com a criação” é algo que não se restringe a um dono particular, mas que abarca a família de um modo mais amplo. Nessa esteira, gostaria de discutir como situações de conflito envolvendo o movimento da criação e de cachorros, tal como as observei no cotidiano dos Miller do Faxinal dos Cascatas, mobilizam os vínculos entre familiares que vivem em casas diferentes, porém situadas no mesmo terreno familiar, e, para além disso, os vínculos entre terrenos, casas e famílias que participam de uma mesma vizinhança. Conforme explicitei em outros exemplos, diversas famílias que me acolheram em suas casas viviam, na verdade, em terrenos familiares, onde também podem estar as casas de seus pais, avós, sogros, irmãos e irmãs, filhos e filhas, tios e tias. Nos Cascatas, os terrenos familiares são em alguns casos identificados com sobrenomes e nomes de pais de família: Miller, Reis, Oliveira, Chiquinho, Amadeu. Vamos na mesada de anjo lá nos Reis? Você vai nos Oliveira hoje? Contudo, dizer que vou nos Miller não explicita para a casa de qual moradora estou indo. No caso deles, há três casas diferentes no terreno familiar, cada qual correspondente a uma subdivisão da terra: 1) a de Dona Lúcia, senhora que vive com o marido Benedito. Na casa deles, viviam também seus filhos Aurélio e Beto, que estavam em vias de se casar, e que naquele momento trabalhavam com construção civil, em Santa Catarina e Goiás; 2) a de Abel Miller, filho de Dona Lúcia, que mora com sua esposa Ângela e as filhas Vivian e Alessandra; 3) a de Vitório Miller, irmão de Abel que mora em uma área mais urbanizada do município, e que aluga sua casa nos Cascatas para um vizinho idoso, que vive lá com sua jovem esposa. O terreno familiar, portanto, é subdividido entre três donos, dos quais dois são filhos que herdaram o patrimônio do pai. Os portões de Dona Lúcia, Abel e Vitório são diferentes, de modo que não é preciso passar por dentro do terreno de um para chegar no do outro. Os de Dona Lúcia e Vitório ficam em uma estrada, e o de Abel fica em outra. Na prosa cotidiana, uma casa pode ser relacionada ao nome de qualquer um de seus moradores, dependendo de quem está se referindo a ela. Ao dirigir-se a uma das casas do terreno dos Miller, uma mulher provavelmente falaria que vai lá na Ângela, ou na Ângela do
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Abel54, mãe da família que vive na casa. Já uma jovem diria que vai na Ângela, ou na Ale, que é o apelido da filha de Ângela com quem vai se encontrar para conversar. Um homem diria que vai no Abel, para falar que vai conversar com o pai da família da casa. Assim, dentro dos terrenos que chamo aqui de familiares, existem pessoas vinculadas a uma mesma família, num sentido mais amplo de gente e de parentes, que identificam-se por meio de relações de parentesco em vários níveis (há os parentes por parte de mãe, por parte de pai, por parte dos avós maternos e paternos, e por afinidade) e que vivem em casas distintas. Ao mesmo tempo, em um sentido mais restrito, família pode se referir a um coletivo de familiares que habitam uma mesma casa. Em geral, é a relação de moradia que é considerada quando as pessoas falam em suas próprias famílias, de modo que tal relação abrange simultaneamente uma percepção dos vínculos com quem se morou ou se mora ao longo da vida, e com os nomes e sobrenomes pelos quais o terreno familiar onde se cresceu e onde se vive atualmente são identificados. Quando uma pessoa se casa e tem filhos, ela diz que agora tem sua família. Uma nova trama de relações é acrescentada aos seus laços de parentesco a partir do casamento e das crianças, as quais são fundamentais para a consideração sobre ter família. Mas as casas comportam arranjos familiares distintos, a depender das configurações das relações entre seus membros: pode ser que um casal more com seus filhos ainda solteiros, que avós morem com seus netos, que um casal more sozinho, ou que uma mulher ou um homem more com um filho casado, mais a nora e os netos, ou que irmãos e irmãs solteiras morem juntos, ou que um casal more com uma filha e um sobrinho, ou que um casal ou uma viúva more com uma filha ou um filho de criação55, e assim por diante, de variadas maneiras. Pode ser ainda, como no caso dos Miller, que uma das casas que compõem o terreno esteja habitada por uma família que nada tem a ver com aquela com a qual aquela área é identificada56. Isso acontece em casos de aluguel, ou quando o dono de uma das partes do terreno vende um pedaço de sua terra a outra pessoa – transação muito comum nos Cascatas, onde os terrenos de posse de certas gentes têm sido cada vez mais picotados.
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Ela diria isso para diferenciar a pessoa de quem está falando, já que há outras mulheres chamadas Ângela na vizinhança. 55 De criação, criada ou criado é como se chamam crianças agregadas à família, mas que não são filhas biológicas dos donos da casa ou de um deles. 56 Nesse caso específico, o inquilino de Vitório alugava somente a casa. Ele não tinha permissão para extrair erva-mate, cortar madeira, ou criar gado no terreno. Apesar de morar no mesmo terreno, ele não vinha visitar as casas dos Miller, e os Miller também não iam até ele. O homem, com seus cinquenta anos de idade, era separado, e havia recentemente se casado com uma moça jovem. Eles restringiam suas atividades ao espaço da casa e aos seus arredores, não circulando pelo terreno familiar mais amplo.
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Considerando a totalidade do terreno familiar, os Miller possuem uma área de cerca de 40 alqueires, a qual não é documentada, mas de posse. Vinte alqueires pertencem a Seu Benedito, e os outros vinte são divididos igualmente entre Abel e Vitório. Embora cada dono tenha em mente qual é a sua parte do terreno, essas divisões não estão demarcadas por cercas. A criação pasta por toda a extensão do terreno familiar, movimentando-se entre as áreas dos diferentes donos. Há, porém, uma grande cerca que rodeia todo o terreno, exceto no trecho contíguo ao Rio Bonito, que serve como limite natural. Quanto ao zelo dela, Seu Benedito e Abel cuidam cada um da parte que diz respeito ao seu terreno particular. Mas ambos cuidam da parte de Vitório, já que ele não tem criação. Ali, Seu Benedito é responsável pelos arames e palanques, e Abel pela construção da cerca. Embaixo de toda a extensão dessa grande cerca, rente ao chão, fica o fio do choque, como é chamada a cerca elétrica, que nem sempre funciona direito. Abel possui vinte e poucas cabeças de gado bovino. Além disso, ele e seus pais dividem um rebanho de cerca de vinte carneiros, vinte porcos, e quinze cabritos. Embora a criação que habita o terreno familiar pertença a donos diferentes, a responsabilidade pelo seu cuidado recai majoritariamente sobre Abel e Ângela. Quando outros filhos de Dona Lúcia retornam dos locais onde trabalham e ficam em casa, eles também ajudam a cuidar dos animais. Seu Benedito, nos últimos tempos, passava praticamente a semana toda no Bom Jesus, localidade onde ele possui terreno e casa, e que fica a cerca de vinte quilômetros do Faxinal dos Cascatas. Ele estava fazendo isso para cuidar das terras e da residência, que andavam sendo invadidas por ladrões à procura de qualquer coisa que pudesse lhes interessar na casa, e que roubavam também a erva-mate que havia no terreno. Dona Lúcia, por sua vez, não lida mais com a criação. No máximo cuida das galinhas57, que ficam em um galinheiro localizado a uns 100 metros de sua casa. Faz isso sob protestos de suas filhas e filhos, pois há poucos anos levou um tombo dentro do galinheiro, do qual saiu muito machucada. Enquanto as criações de Abel e de Seu Benedito perambulam por todo o terreno familiar, o extrativismo de erva-mate é feito em particular, por cada um dos três donos, na parte que lhe pertence. Não fazem lavoura, mas as mulheres plantam legumes, temperos, hortaliças e remédios – como chamam plantas medicinais – em hortas próximas às suas casas. Essas hortas costumam ser cercadas. Além destas cercas, há outras internas ao terreno 57
Apesar de as galinhas também serem animais criados, elas não são chamadas de criação. A pessoa pode até criar uma galinha, expressão que significa cultivar essas aves. Entretanto, isso não significa que quem o faça tenha criação, termo que refere-se majoritariamente ao gado (bovinos), aos cabritos, carneiros e aos porcos.
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familiar, as quais apresentam finalidades distintas. Ao redor das casas de Ângela e de Dona Lúcia, há cercas que visam ao afastamento da criação dos entornos da casa. A mangueira, dentro da qual o gado é tratado, vacinado, e onde se tira leite das vacas, é uma espécie de grande cercado. Os cabritos e carneiros, à noite, são fechados em uma área na qual há uma casa, que serve para protegê-los do tempo, ou seja, do frio e da chuva. A área em que Abel planta pasto, perto do rio, para as vacas se alimentarem no inverno, também é cercada. Ele faz isso para que a criação permaneça nessa parte do terreno durante os meses mais frios, já que perto do rio a temperatura é mais amena. O bicho é do tempo, ou seja, vive ao ar livre, e é resistente às intempéries. Mas o frio judia demais. As geadas castigam o faxinal, onde os alimentos disponíveis ao gado escasseiam em demasia no inverno. As vacas ficam fracas e vulneráveis a doenças, os terneiros padecem e morrem. Por isso carece fazer o pasto e deixar os bichos lá embaixo, perto da água. Para se chegar até essa área, é preciso descer pelos carreiros entre o mato. O Rio Bonito, ali, despenca em uma grande cachoeira, cujo som dá para ouvir da casa de Dona Lúcia, quando o tempo está para chuva58. Depois, segue seu curso, formando um belo vale, onde mais adiante despencará outras vezes, em várias quedas d’água. Pedregoso e estreito, o Bonito é constantemente atravessado pela criação dos Miller e pela criação alheia, de pessoas que vivem do outro lado do curso d`água. E se o gado atravessa a água, vizinhos caçadores e seus cachorros também o fazem, trazendo uma série de prejuízos para os Miller, que já perderam muitos animais por causa desses estranhos que adentram seus terrenos. Em uma manhã, enquanto eu tomava café e Ângela proseava comigo na cozinha, Abel entrou em casa preocupado, depois de sua costumeira andada pelo terreno. Ele havia contado as criações de Dona Lúcia, e percebeu que faltavam uma carneira e dois cabritos. Ângela ouviu o marido e permaneceu em silêncio, com a face séria e preocupada. Abel estava visivelmente aborrecido. Contou os animais várias vezes, para ter certeza, e campeou (procurou) no mato, mas não encontrou os que estavam faltando. Dali a pouco ele saiu de novo procurar as criações perdidas. Fiquei em casa, até que resolvi sair para telefonar. Para conseguir o sinal de celular, eu precisava caminhar por cerca de dez minutos até outro lugar chamado de pasto, onde os Miller costumavam plantar aveia. Naquele momento, esse antigo pasto estava coberto de pequenos arbustos. Trata-se do ponto mais alto do terreno, de onde dá para ver bem o vale do Rio Bonito, com seu morros a perder de vista no horizonte, e onde os cabritos, o gado e os carneiros passam e param em alguns momentos do dia. 58
Essa é uma das formas de Seu Benedito realizar a previsão do tempo. Se o ronco da cachoeira está forte, é sinal de chuva. Se já estiver chovendo, o alto barulho da água sinaliza que vem mais chuva.
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Para chegar até o pasto é preciso atravessar o carreiro, uma trilha em meio ao mato, caminho que já está bastante batido pelo andar da criação e da turmada59 que tira erva para os Miller. Dessa vez senti algo estranho enquanto caminhava para o ponto de onde faria meu telefonema. Ouvi barulhos que pareceram de gente cortando lenha no mato, e muitos latidos, que pareciam vir de perto. Terminada a subida eu dei de cara com Bidu, o cachorrinho de Vivian e de Alessandra, à minha espera como uma estátua. Brinquei com ele e o chamei para vir comigo. O cachorrinho, porém, seguia andando um pouco atrás de mim, e parava novamente. Eu tinha que chamar ele outra vez. Imaginei que fosse porque Abel estivesse no mato, lá perto de onde eu havia encontrado Bidu. Quando chegamos ao pasto, Bidu não queria seguir adiante, foi ficando cada vez mais para trás de mim. Continuei andando em direção a onde pega o sinal do celular e avistei, no alto, Abel, com a espingarda na mão. Senti que eu não deveria estar ali, mas agora era tarde para voltar. Eu já estava caminhando em sua direção e ele já havia me visto. Quando me aproximei, Abel me disse que estava campeando a criação, e procurando para ver se achava algum cachorro. Eu pedi desculpas, disse que não sabia que ele estava ali, que havia encontrado Bidu e que havia imaginado que Abel estaria lá onde o cachorrinho começou a me acompanhar. Ele contou que Bidu havia fugido ao ouvir ele atirar. Tinha
encontrado
um
bando de cinco cachorros caçadores no mato, e conseguiu acertar dois deles. Ele tinha quase certeza de que os cães haviam vindo do outro lado do rio. Perguntei-lhe se poderia telefonar, ele disse que sim, que era para eu ficar sossegada, e se sumiu para dentro do mato enquanto eu conversava no telefone. Depois de desligar, retornei à casa e contei para Ângela e Alessandra, que estavam lidando na cozinha, o que havia sucedido. Ângela estava cabisbaixa. Não era novidade nenhuma aquilo acontecer. Ela ressaltou que os cachorros que andavam por lá eram treinados por caçadores para matar animais selvagens, e quando não encontravam veados, acabavam matando a criação. Ali no terreno dos Miller, eles já tinham matado vários cabritos e carneiros, e ultimamente estavam matando leitões. Ângela e Alessandra cogitavam que aqueles cachorros provavelmente viviam na corrente, presos, e quando soltos por seus donos, saíam à procura de caça. Haviam, afinal, sido treinados para isso. Aí dá dó de matar o bicho né, pois ele foi ensinado pra fazer assim – refletiu Ângela. Num primeiro momento, portanto, os cachorros que atacavam a criação eram tratados como cães de caçador, treinados, ensinados por gente a matar outros animais. Seus donos é que eram o problema. Por causa 59
Turmada é uma forma de se referir a turmas, enquanto grupos de pessoas, no geral.
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deles, os cachorros deveriam pagar com a própria vida, tornando-se caça nos terrenos que atravessavam causando estragos na criação alheia. Desde o início de minha convivência com os Miller, ouvia eles reclamarem de perdas da criação, dos cabritos e carneiros que apareciam mortos no mato. Essas descobertas dos cadáveres da criação, ou os comentários sobre a causa de sua morte, eram sempre subsumidos na expressão o bicho pegou. Eu perguntava para eles, então, que bicho era esse que pegava principalmente os cabritos, criação que eles viram diminuir drasticamente ao longo dos anos. Chegaram a ter quarenta e sete cabritos e a ficarem com apenas nove, devido aos ataques dos cachorros. Porém, minha pergunta permanecia sem resposta. Mas isso é algum bicho que anda nos matos, diziam-me os membros da família. Foi somente nessa nova crise de animais aparecendo mortos que entendi que o bicho significava os cachorros, que poderiam ser dos vizinhos, ou de longe, ou do outro lado do Bonito. Tanto quanto os causos feios, crise envolvendo cachorros dos outros é coisa que não se diz. Há todo um esforço para se manter discrição perante esses ataques. Não caracterizar o bicho é uma forma de não identificar o animal e seu dono, para assim poder dar fim no cão sem causar alarde na vizinhança. Pois é sabido que o cachorro que mata uma criação alheia deve ser morto, e que seus danos devem ser cobrados. Ainda assim, a morte do cão pode embrabecer seu dono. Ele pode se sentir ofendido, e depois, de algum modo, querer vir discutir ou até mesmo fazer algo de ruim para o vizinho que tirou a vida do seu cachorro. Nos Cascatas, disse-me Ângela, há muitas pessoas que matam esses animais, como os irmãos Osmar e Leôncio Keller, membros da família que detém a maior parte das terras da comunidade. Osmar tem horror aos caçadores que adentram seus terrenos, nem tanto por dó dos bichos que eles caçam, mas porque seus cachorros acabam pegando a criação. Tinha um homem que sempre ia caçar nas terras de Osmar. Ao tomar conhecimento disso, o fazendeiro foi atrás do caçador. Disse que lhe daria um leitão por semana se fosse preciso, para que o homem não caçasse mais em seu terreno. O homem, em contrapartida, se agravou. Eles ainda por cima se agravam – completou Ângela, explicitando o ultraje sentido pelo caçador, quando Osmar insinuou que se ele caçava, era provavelmente por não ter o que comer em casa. A manhã passou, e na hora do almoço Abel voltou para casa. Em sua busca no mato, encontrou uma cabrita morta. Ao longo do dia, ele não pôde achar o restante dos animais perdidos. Mais tarde, cogitou a possibilidade de os bichos estarem mortos há dias, desde uma viagem que Dona Lúcia fizera recentemente, pois ela já havia dado falta deles, e sabia que Aurélio, um de seus filhos mais novos, fecha a criação de qualquer jeito, sem contar direito sua quantidade. Ainda durante a tarde, apareceu um homem na casa de Abel, perguntando por
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uma novilha que havia sumido. Mas por ali ninguém a havia visto. O homem morava do outro lado do rio. Abel desconfiou que os cachorros pudessem ser dele, que teria usado a história do desaparecimento da vaca como desculpa para vir procurar os cães. No dia seguinte, Abel pôs veneno no mato, para tentar pegar os cachorros que andavam por lá matando as criações. Ele não se gabava de ter que fazer isso: Dá dó do bicho né, pois ele é inocente, não faz pra me prejudicar. A linguagem que Abel usa para expressar a relação do animal com seu ato, nesse sentido, invoca uma certa moralidade em que a intenção, a motivação do cachorro, é levada em conta. O cão é inocente, pois sua ação não é movida pelo desejo de prejudicar, de causar dano a Abel em particular. Contudo, a constatação de que o animal é caçador, ou seja, propositalmente ensinado por seu dono a atacar outros bichos, de certo modo polui sua inocência, que seria mais exacerbada caso o cão não fosse de alguém que o usa para caçar. Nesses casos, fala-se que é da natureza do bicho fazer isso, agir com essa sem-vergonhice, pulando na criação. Mas ainda assim, a solução considerada o certo é dar fim no cachorro. Com isso, pune-se também o dono do animal, culpado por não mantê-lo sob controle. Ao observar o tratamento dado aos cachorros que atacam a criação no Sertão dos Inhamuns, Ceará, Teixeira (2014) salienta a ambiguidade do estatuto dos cães, sejam eles “de caça” ou não. Tratam-se de seres sociais, mas cujos movimentos não se pautam pelo conhecimento ou respeito aos códigos morais que regem a vida entre humanos. Apesar de ser reconhecido que os cachorros devam estar sob o controle dos seus donos, sabe-se que eles também se movimentam por conta própria. Como em Pinhão, nos Inhamuns considera-se que depois que pega criação pela primeira vez, o cachorro continuará a fazê-lo. Não há outra solução senão matar o animal. A certeza de qual cachorro matou a criação, no entanto, é sempre uma questão delicada, acerca da qual não há resposta precisa. Por isso a discrição de Abel no uso do veneno, no atirar com uma espingarda que faz pouco barulho, e o cuidado em enterrar os bichos mortos – o ideal é enterrar a história toda, para evitar que os vizinhos espalhem o assunto, e que haja qualquer discussão com o dono do bicho ou com outros moradores próximos, que podem achar ruim ter alguém na vizinhança matando os cães que passam por seu terreno. Afinal de contas, praticamente todo mundo tem cachorro, e os cachorros saem andar pelos terrenos alheios. Condenada, a movimentação dos cães é percebida também em relação a como seus donos se portam perante sua casa e suas reponsabilidades familiares. Tem gente que tem um monte de cachorro mas nenhuma galinha pra comer - refletia Abel, condenando os caçadores que não alimentavam seus cães direito, de modo que só restaria aos bichos correr atrás de
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caça quando fossem soltos de suas correntes. Essa opinião envolve, portanto, considerações que versam sobre as desigualdades em termos das condições de vida, de sustento e de moradia das famílias de caçadores. Declarar, por outro lado, que se uma pessoa caça é porque não tem o que comer, é na verdade uma ofensa ao pai de família, e algo que se sustenta nas próprias diferenças com que as pessoas se percebem e se avaliam umas às outras. O que se desqualifica não é a atividade da caça em si mesma, mas o caçar em terreno alheio, a morte da criação por engano ou fúria dos cachorros e até mesmo para virar comida (o que também acontece), e, mais do que isso, um modo de vida vinculado a práticas perniciosas, que causam dano aos outros. Através da linguagem e das declarações acionadas por Abel e seus vizinhos para falar das broncas envolvendo criação, são elaboradas uma série de reflexões que dizem respeito a como se acredita que os seres humanos e seus bichos devem viver e conviver. Se alguns cachorros eram tidos como de caçador e de pessoas que não possuiriam condições de cuidar desses bichos, por outro lado, muitos desses animais que adentravam os terrenos eram de vizinhos que também possuem criação e que gostam de ter esses animais perto de suas casas, pois reconhecem que eles os ajudam a cuidar do lar. Grande parte deles não atacava os bichos por serem treinados, mas por ser de sua natureza. Assim, no meio de todas essas declarações sobre os cães e seus donos, havia uma tensão entre a culpa do animal e a culpa do dono, que é também punido com a morte do bicho. E se os Miller sempre davam um jeito de saber de onde vinham os tais cachorros, por outro lado, sua luta contra os bichos era feita de um modo a dissimular esse conhecimento, para evitar constrangimentos com os donos dos animais. Abel e Ângela passaram por momentos muito difíceis envolvendo a matança de criação. Numa das vezes, cachorros alheios mataram doze carneiros de uma vez só. Era carneiro morto por toda a parte no mato, lá embaixo, perto do Rio Bonito. Alguns eles tiveram que terminar de matar, pois estavam muito machucados, agonizando. Outra vez foi Ângela quem encontrou uns dez cabritos mortos na beira do lajeado que passa perto de sua casa. Ela sentou no chão e chorou, desesperada, vendo em volta de si aquele monte de cadáveres de cabritos. No mesmo dia, Artur, irmão de Abel que estava de visita na casa de Dona Lúcia, pegou os dois cachorros que estavam atacando as criações. Conseguiu matá-los. Suas donas, Neide e Palmira, duas mulheres da vizinhança, vieram reclamar. Bravas, as mulheres diziam que aquilo não era culpa dos seus cães, que não carecia Artur ter matado os bichos. Palmira, em especial, era muito apegada ao seu cachorro, que cuidava da casa para ela, ou seja, vigiava os movimentos ao redor da residência e a guardava, na ausência da dona. Mas Artur disse que não teve como deixar passar, pois havia visto os dois bichos em cima dos
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cabritos. As mulheres não puderam protestar frente a isso. Elas também não teriam condições de pagar o dano, imenso. Certa vez, quando estava lá embaixo cuidando das criações, Abel viu no mato dois cachorros, um preto e um bege, arrodeando os carneiros. Abel conseguiu acertar uma pedrada no cachorro preto, que saiu em disparada, e no bege, menor, que morreu com a pancada. Pouco tempo depois, apareceu por lá um homem que morava do outro lado do rio, e que estava procurando por uma novilha. Abel viu, junto com ele, o cachorro preto. Assim ele descobriu de onde estavam vindo os bichos que atacavam sua criação. As faces dos cachorros e os sinais na criação também são gravados pela vizinhança que os observa. Assim descobrese a filiação desses bichos, de quem se esquivar ou com quem reclamar quando eles causam danos. Para descobrir e perseguir os cachorros, Abel ouve o barulho deles, e observa seus rastros. Quando tem rastro deles no mato pode saber que eles ‘tão olhando a criação, e dali a pouco aparece criação morta. No máximo em cinco dias. Os cães não atacam a criação à noite, quando ela está recolhida (caso dos cabritos e carneiros), mas de dia, quando ela está dando sua volteada no mato. Por isso, observar o comportamento da criação é uma maneira de saber se há cachorro no mato. Se os animais passam de repente a permanecer em roda da casa, a não irem longe, é porque tem algum movimento de animais estranhos no mato. Às vezes também, pode ser o tigre ou o leão que estão rondando60. Abel chegou a pensar em desistir da criação, devido aos constantes prejuízos com as mortes de cabritos e carneiros. Embrabecido, cogitou até fazer espera no mato, para pegar os caçadores que entram em suas terras com seus cachorros. Aqui, entramos numa linguagem do conflito aberto e da produção efetiva de agressão, onde entra em questão uma alternativa típica da perseguição velada, do pegar o inimigo de surpresa. Isso não chegou a acontecer, mas o simples fato de ser encarado como possibilidade por Abel demonstra a que ponto são levadas as broncas por causa dos animais. As pessoas se ofendem e se irritam umas com as outras, e como é comum que tanto caçadores quanto perseguidores de caçadores andem armados pelo mato, não é preciso muita imaginação para se perceber o perigo que esses encontros guardam. Atividade fundamental na vida dos Miller, a lida com a criação não só garantia a estabilidade da economia familiar e consolidava seu modo de vida e sua presença na terra, como também era ligada a uma série de cuidados, que promovem a imbricação entre os 60
Assim como tigre, leão também é o nome dado aos felinos que habitam as matas do interior do município.
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animais e a família também em um plano afetivo. Enquanto se assume que os vizinhos têm liberdade e autonomia para serem o que quiserem ser, e se reconhece que seus cachorros não estão restritos ao controle dos seus donos, por outro lado, a ultrapassagem de cercas por esses animais e seus estragos nos terrenos alheios invocam também certas visões de soberania que uma família possui sobre seu terreno, e sobre as atividades que ali se desenvolvem. Era por prejudicarem a vida de seus animais de criação que Abel se ressentia com os cachorros e seus donos, vizinhos, pessoas que vivem perto. E era no terreno dele que sua luta contra esses animais e seus donos, caçadores ou não, era travada. Quem sofre danos de animais alheios dentro de seu próprio terreno, tem a liberdade de matar esses animais. Mesmo que isso seja contestado pelos donos dos bichos danosos, é sabido que assim é o certo. As pessoas reconhecem que essa é a maneira usual de proceder frente a essas situações de cachorro entrando nas terras dos outros e pegando criação alheia. Logo que os Miller pararam de se incomodar com os cachorros que estavam entrando em seus terrenos, Getúlio, primo de Abel que mora em Guarapuava, pediu-lhe um favor. Seu sogro tinha um cachorro na cidade, mas não estava mais vencendo cuidar do bicho, que era grande e requeria muitos cuidados. Como ele não dava conta do cão, que tinha raça de cão de guarda, o bicho passava o dia preso. Getúlio queria saber se Abel poderia ficar com o cachorro, crente que no mato o animal ficaria melhor, pois teria mais espaço. E para minha surpresa, em meio àquela guerra particular contra os cães alheios, e a diversos comentários de que não é bom misturar cachorro e criação, Abel aceitou ficar com o animal. Disse que não podia dizer não, pois queria muito bem o primo. Passados uns dias, o primo de Abel veio e trouxe o cão, enorme, imponente. Quando o primo foi embora, Ângela já havia tomado sua decisão: ela queria ficar com o cachorro. Planejava fazer um cercado para ele e ensiná-lo a ficar perto da criação. A princípio, ele pareceu ser de fiança, pois não havia demonstrado nenhum sinal ou tendência a pular nos outros animais. A decisão de Ângela, contudo, vinculava-se a uma outra face do cachorro: ele é também um animal que protege a casa, que late se percebe a aproximação de estranhos, e que ataca quando sente uma ameaça. E daquele cão em especial, ninguém teria coragem de se aproximar. Minha anfitriã tinha em vista, nesse sentido, um outro aspecto cotidiano e preocupante na vida dos moradores do interior: os roubos de residências, algo a que os Miller estavam sujeitos e que, como veremos mais adiante, efetivamente aconteceu. Perto de sua casa e de si mesmos, os Miller aceitavam um cachorro novo para somar com Bidu, cãozinho do qual Abel também gostava muito, pois lhe fazia companhia em suas andanças pelo terreno.
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Se os Miller tinham problemas com os cachorros dos outros, os vizinhos tinham problemas com a criação dos Miller, quando os bichos ultrapassavam as cercas do terreno familiar. Tradicionais criadores de porcos, os membros da família vivem hoje as dificuldades de manutenção desses animais no interior de suas terras. A astúcia dos suínos para ultrapassar os arames e o choque, e caminhar longe para obter alimento, rendeu aos Miller muitos desaforos e desentendimentos com os vizinhos. Na última vez em que estive por lá, Abel resolveu que iria acabar com os porcos, devido aos constantes transtornos que esses animais causam aos moradores do entorno do seu terreno e, consequentemente, a ele próprio. Por aqueles dias, ele e Ângela estavam carneando quase todos os suínos que tinham, e tanto aproveitavam a carne para si, quanto vendiam-na para vizinhos61. O porco é tido como um bicho andejo, ou seja, cuja natureza é a de caminhar bastante e o dia todo. Assim, não vê limites para os seus passos, e facilmente ultrapassa cercas. O porco fuça o solo, e enquanto o faz, deixa grandes montes de terra revirada nos lugares por onde passa. Por isso, ter porcos soltos perto de casa é também conviver com a bagunça que eles fazem na área - espaço ao redor da residência. Quando entra nas hortas e lavouras, então, o porco come tudo o que vê pela frente. Nesse sentido, quem cria porcos precisa estar sempre atento às cercas ao redor das hortas e roças. Há, porém, um paradoxo aí explícito, já que se reconhece que não existe cerca capaz de segurar o porco. Essa é uma das razões pelas quais as pessoas têm hoje tanta resistência à criação desses animais à solta, mesmo que em terrenos particulares. O porco não só destrói a horta dos seus donos, como as dos vizinhos, pois ultrapassa também as cercas que dividem as terras de diferentes moradores. Quando isso acontece e o animal causa estragos em terrenos alheios, seu dono acaba prejudicado. Há possibilidades de o suíno ser morto pelo vizinho que teve sua área invadida e suas plantas comidas, ou de o dono do bicho ser insultado particular e publicamente pelo vizinho que sofreu o dano. Espera-se que o vizinho avise pessoalmente que o porco está em seu terreno, e que peça para tirarem o animal de lá. Esse é sempre um momento delicado, em que aquele que foi prejudicado pode ofender o dono do animal, o qual, por sua vez, também se vê numa situação constrangedora, já que é responsabilidade sua manter as cercas bem vedadas e cuidar para que seus animais não passem para os terrenos dos outros. Esses conflitos em torno da criação ultrapassando cercas, que no caso de Pinhão são ainda mais
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Carnear é o termo que diz respeito ao abate de animais para a produção de carne. Nesse sentido, carnear é literalmente transformar em carne. Quando isso acontece, nunca se fala vamos matar o porco, mas sim vamos carnear.
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agudos quando o animal em questão é o porco, são eventos que permanecem gravados, tornam-se histórias de broncas contraídas, e podem ferir a reputação do dono do bicho. Dona Francisca, por exemplo, chegou a ter noventa porcos no terreno familiar onde mora. Uma vez aconteceu de um vizinho vir avisá-la que havia carneado uma porca que aparecera no terreno dele e estava causando estragos na horta. Disse-lhe que se a porca fosse dela era para Francisca ir buscar sua parte da carne. E que se soubesse que outra pessoa fosse dona do animal, que fizesse o favor de avisá-la disso. Apesar de resignada com o destino do bicho, Francisca não esconde que não gostou de terem agido assim – carnearem a porca ao invés de terem lhe pedido para tirar o animal de lá. Cansei de matarem meus porcos, ela me disse, quando explicava os motivos de ter parado com esse tipo de criação em seu terreno. Ela simplesmente carneou ou vendeu todos os suínos que tinha, e contou-me, com um tom de orgulho, que teve a mesma atitude de carnear uma porca que apareceu em sua horta depois que havia se livrado dos seus animais. Da mesma maneira que haviam feito com ela, Francisca mandou que avisassem os vizinhos, e pediu para dizerem que o dono do animal poderia ir lá buscar parte da carne, que seria sua por direito. Ninguém apareceu. A criação de porcos à solta é uma característica histórica dos faxinais, antigamente terras de uso comum. Ao contar-me sobre como o faxinal, antigamente, era terra de criador, um dos mais antigos moradores do Faxinal dos Ambrósios, Seu Conrado, abria caminho para Darci, outro morador daquela localidade, começar a falar sobre os problemas de seu pai com os porcos. Seu Conrado falava que enquanto o faxinal era destinado à criação, as lavouras eram lá embaixo, descendo a serra, na beira do rio. Trocou tudo, hoje ou as lavouras ‘tão pra cá, ou prendem o gado e mandam lá pra baixo. A lógica agora era outra. Darci, então, comentou que há poucos dias seu pai havia tido uma discussão com um dos vizinhos, que mais uma vez foi reclamar dos porcos entrarem em seu terreno. O pai de Darci se embrabeceu, achou que estava sendo desaforado. Não tinha jeito de convencer ele a se livrar dos porcos. E ele já não era um homem calmo, todo mundo sabia que tinha matado gente. Eu tenho medo, Seu Conrado – disse Darci. O homem, tranquilamente, respondeu: mas isso é que é a maior questão da gente. Tem que saber viver. O saber viver, ficava implícito naquele momento, era na verdade saber viver com os vizinhos. Era sobre esse preceito que o porco, andejo, estavam agindo, estremecendo a calma entre o pai de Darci e o outro homem, e abrindo a possibilidade do trágico tomar parte da vizinhança, já que o bicho insolente era de um dono brabo e que a bronca estava dada.
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Ângela e Abel sempre tiveram que ouvir as reclamações e desaforos dos vizinhos sobre a criação de Dona Lúcia e Seu Benedito, sobretudo quando eram os porcos que haviam passado a cerca. Mas pensa que alguém vai reclamar com eles? Nada...é só com a gente, queixava-se Ângela. Depois de ela falar para os sogros sobre o problema, eles iam atrás do reclamante para saber mais do que havia acontecido. Mas aí as pessoas já falavam outras coisas, revelavam que o estrago não havia sido tão grande assim, e baixavam a brabeza das palavras que haviam dito à Ângela por primeiro. Até porque, dificilmente alguém ergueria a voz para Dona Lúcia. Além da sua idade, que impõe respeito, Dona Lúcia, professora aposentada, alfabetizou e catequizou o Cascatas todo. Sabia conversar com o povo. Sabia o que dizer para não ser desaforada. A reputação de Dona Lúcia, que a tornava bem considerada pelos vizinhos, era também o que a protegia de ser alvo de ofensas e reclamações. Foi também por isso que Ângela parou de ouvir queixa de gente que está sofrendo com os porcos de sua sogra. Agora, manda o pessoal ir falar direto com Dona Lúcia, porque senão nós ainda ficamos de implicantes, ou seja, seus sogros acabam pensando que ela e Abel é que aumentam as queixas dos vizinhos, que são eles que não querem que os velhos criem porcos ali. A possibilidade de reclamação e de ofensa, nesse sentido, não é mecânica ou explícita, mas envolve um acúmulo de conhecimentos sobre as reputações de famílias e de sujeitos, e de seus modos de proceder frente a reclamações. Ao levarem adiante suas queixas, as pessoas também problematizam aquilo que sabem sobre a outra, e a própria estima que têm por ela. Saber viver, assim, é também saber se conduzir perante os outros, saber para quem reclamar e como conversar, enquanto boa maneira de comunicação que se contrapõe ao desaforar. Em certa ocasião, uma porca de Dona Lúcia começou a ir frequentemente ao terreno de um senhor que mora perto dos Miller, e a comer as mandiocas e batatas da horta dele. O homem, bastante incomodado, foi reclamar com Dona Lúcia, que tentou desconversar, dizendo que a porca não era dela. O problema é que a porca apareceu na frente da casa justamente na hora em que o homem estava lá. Ele então desaforou Dona Lúcia e foi até a casa de Abel reclamar do ocorrido. Depois disso, os Miller carnearam o animal. Tal como aos cachorros que pulam em criação, aos porcos que passam cercas também é a morte que surge como saída. A diferença, contudo, é que criação não se mata, se carneia. O sentido dado ao abate desses animais, portanto, é outro: eles não morrem simplesmente, mas transformam-se em carne. Outra vez foi Neide, a vizinha dona de um dos cachorros que haviam matado os cabritos, que veio reclamar. Ela chegou na casa de Ângela fazendo desaforo, porque os
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porcos de Dona Lúcia tinham entrado em sua horta e destruído suas plantas. Ângela se esquivou. Disse que não tinha nada a ver com aquilo, os bichos não eram seus, e que a mulher deveria ir reclamar pessoalmente com Dona Lúcia. Neide não foi, ficou ali desaforando Ângela, que por sua vez também acabou desaforando a vizinha, reafirmando que aquele problema não era dela, e que se ela quisesse reclamar que fosse com sua sogra, a dona dos porcos. A vizinha foi embora sem contar o ocorrido para Dona Lúcia. Saiu dizendo pela vizinhança que ia dar parte na delegacia. Agindo desse modo, Neide contrariava as boas relações com os vizinhos. Isso porque houve uma ocasião em que um porco dela entrou no terreno dos Miller, e eles o devolveram. Se uma criação tua entrar nas minhas invernadas62, eu cuido, Abel disse para Neide. Ele e Ângela também não deram muita atenção para o falatório da vizinha, já que os cachorros dela haviam anteriormente atacado os cabritos deles. Outro incidente se deu quando Abel entrou no terreno de um vizinho de cerca, atrás de uma porca que tinha sumido. Quando chegou lá, a porca estava sendo atacada por um dos cachorros do homem. Abel conseguiu salvá-la, e teve que trazê-la de volta no colo, porque a porca estava toda machucada. Ângela lembra da cena de seu marido chegando em casa com a roupa toda ensanguentada, e fala da pena que sentiu do animal, que não tem culpa de passar para terras alheias, já que andar é de sua natureza. Os criadores ficam mesmo muito sentidos quando veem seus animais machucados por cachorros, ainda que reconheçam que eles não têm culpa de atacarem os porcos – também é da natureza do bicho. E precisam se resignar, quando os ataques são buscados pelos próprios porcos, que vão para os terrenos alheios, onde há cachorro. Ao ultrapassarem as cercas, a criação e os cachorros movem não só o limite do terreno familiar dos Miller, mas provocam discussões internas ao terreno, entre os membros das casas que o habitam, sobre as responsabilidades perante os animais. Enquanto a maior parte dos porcos era do casal mais velho, o cuidado dos animais, as broncas e conciliações com os vizinhos eram assumidos por Abel e Ângela. Mesmo assim, eles não tinham autonomia para decidir o que fazer com a criação dos pais de Abel. Levaram muito tempo para convencer Seu Benedito a se livrar dos porcos e, quando finalmente conseguiram, Dona Lúcia começou a se queixar que dali a pouco ela não teria mais um porco para comer, fazer banha. O mesmo aconteceu quando Artur, irmão de Abel, levou o gado dos pais para seu terreno, para os bichos pastarem lá. Esse acordo tinha por objetivo melhorar a alimentação dos animais, livrar espaço no terreno familiar e poupar o trabalho de Ângela e de Abel, que precisam atender 62
Lugar onde as vacas pastam e repousam no interior do faxinal, a invernada é parte de um terreno particular.
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sozinhos à toda a criação. Além disso, ninguém queria Dona Lúcia perto dos bichos, correndo o risco de se machucar. Sem as vacas por perto, a senhora reclamava agora para outras filhas, quando iam visitá-la, de não ter mais leite para tomar. As broncas e desaforos envolvendo os deslocamentos dos animais de criação são interessantes para pensarmos, por um lado, em como as relações entre casas que participam de terrenos distintos de uma vizinhança são constituídas nesse interior. Em contrapartida, elas também iluminam como se produzem desentendimentos internos à família que participa de um mesmo terreno familiar, a qual divide-se ali em outras famílias, que habitam outras casas dentro desse terreno. Enquanto a questão da propriedade da terra e dos bichos parece clara para os que vivem no interior desse território, a responsabilidade sobre os animais, o cuidado deles, acaba sendo atribuída a uma casa específica, a de Abel. E para os vizinhos, o porco desaforado pode até não ser de Abel, mas vem do terreno dele, de onde jamais deveria ter saído. Esse dever, contudo, não se transmuta em autonomia para resolver sobre os animais de seus pais, mas sim em uma atribulação contínua com os bichos e com Dona Lúcia e Seu Benedito. Dos animais que aprenderam a cruzar cercas diz-se que ficaram cerqueiros. As vacas cerqueiras podem ter seus trânsitos impedidos, já que não conseguem passar por meio de fios de arame farpado com tanta facilidade quanto os carneiros e os cabritos. Deles, por sua vez, diz-se que quando se tornam cerqueiros, não há o que faça voltarem a ser como antes. Eles incorporam, em sua volteada pelo terreno, o caminho para além da cerca. Somente vendendo os animais o criador consegue se livrar desse problema. Os próprios Miller já tiveram que vender um lote de cabritos seus que havia aprendido a ir nos vizinhos, e estava causando transtornos nas hortas e jardins dos moradores ao redor. O gado bovino, em termos das atitudes que se toma em relação a ele nas ocasiões em que passa as cercas, apresenta contrapontos expressivos aos suínos e aos cabritos. Se alguém reconhece vacas dos vizinhos perambulando pelas estradas, logo dá um jeito de avisar seu dono, para ele ir buscá-las. E se for possível, aquele que encontra o animal perdido dá um jeito de fechá-lo, de prendê-lo até que o dono venha. Quando uma vaca alheia aparece no terreno de alguém, ela é cuidada por uns dias, enquanto os moradores avisam os vizinhos que o animal apareceu entre os seus. O dono do animal perdido também faz esse trabalho de perguntar aos vizinhos se alguém viu a vaca que desapareceu, e de pessoa em pessoa ele pode chegar em quem está cuidando do bicho. Aquele que encontrou a vaca deixa que ela paste junto com as suas, e caso esteja vacinando sua criação, vacina também o animal que lá apareceu.
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Esses cuidados com as vacas dos outros podem gerar obrigações entre as pessoas, no sentido de que o dono da vaca fica devendo obrigação para quem fechou seu animal e buscou avisá-lo. Assim, o cuidado com os deslocamentos da criação pode transmutar-se em cuidado da criação alheia, e produzir uma dívida moral entre o dono do animal e quem o encontrou e devolveu. Os movimentos da criação, portanto, movem também o respeito mútuo entre vizinhos, seja positivamente – como nesses casos de dever obrigação e reconhecimento dos favores prestados com o cuidado das vacas -, seja negativamente, como nas situações envolvendo os porcos, onde é muito provável que o dono seja ofendido e o bicho, carneado. Se acontecer de o dono da vaca não aparecer, o animal é colocado para fora da invernada, para que vá para outros lugares – pois não é certo ficar com o que não é nosso, como disse Ângela, quando perguntei-lhe da possibilidade de ficarem com uma vaca extraviada. Em seguida, disse-me que se mantiver o animal, você pode até ganhar algo naquele momento, contudo pode vir a perder depois. Ângela acreditava que se ficasse com o que não lhe pertencia, ela poderia ser futuramente cobrada de outras maneiras. Alguma criação sua também poderia sumir e ser tomada por outra pessoa. Ou alguém poderia ficar sabendo e sair comentando. Pois nessas localidades não é difícil cogitar quem é o dono de determinada criação. Tampouco é improvável que se reconheça seu dono – seguramente em algum momento o dono aparece, ou ao menos, é essa a certeza que move os moradores. Os animais, então, também são matéria do conhecimento mútuo gerado entre famílias, casas e terrenos familiares dessas vizinhanças do interior. Se a vaca ou o boi são de dono conhecido e estão entrando no terreno para incomodar, logo a reclamação chegará aos ouvidos do proprietário da criação, o qual terá que tomar providências. Ângela relembrou, nesse sentido, do boi que Abel havia vendido há pouco tempo, porque o bicho andava brigando com outros bois através das cercas, machucando-os com seus chifres. E também porque ele já tinha passado para o outro lado do rio, e ido brigar com o touro de um vizinho lá de baixo. Dona Lúcia é outra que teve problemas com seu boi. Toda noite ele ia incomodar lá na Rosália, vizinha que mora a uns 300 metros do seu portão. De madrugada o boi voltava, e amanhecia deitado embaixo de uma guaviroveira63, na frente da casa de Lúcia. Por isso, frente às reclamações de Rosália, Dona Lúcia dizia que não podia ser o boi dela, porque ele sempre amanhecia em casa. O bicho parece que sabe a hora de voltar para não levar bronca, eu e Ângela comentamos rindo. Rosália partia para casa brava, pois sabia que estava certa. 63
Guaviroveira, gabirobeira, guabirobeira, são todos termos usados para falar da mesma árvore, que gera pequenos frutos comestíveis, amarelados e arrendondados, as guavirovas.
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Os problemas com a criação chegaram a virar motivo de fuxico quando Abel concorreu ao cargo de vereador nas eleições municipais. Alguns de seus vizinhos faziam campanha para outro candidato, e parte de seu trabalho era convencer os moradores da comunidade de que os outros concorrentes que ali viviam não seriam bons para a vizinhança64. Durante uma das campanhas, um rapaz estava arrumando as estradas do entorno do terreno dos Miller. Com o trator, ele deixou montes de terras ao lado da cerca de Seu Benedito, tanto de um lado como de outro. As vacas subiram o monte, passaram para o outro lado, e foram parar nos vizinhos. Um deles é Altair, cuja esposa é muito amiga de Ângela. A filhas de ambas as mulheres costumavam ser amigas até o tempo da política, quando uma das meninas de Altair, então em campanha para outro candidato, falou mal das meninas de Abel para a vizinhança. Essa garota, inclusive, era afilhada de Abel e de Ângela, o que trouxe muito desgosto para o casal. Já Altair, que explicitamente fazia oposição a Abel, aproveitou para dizer que o candidato a prefeito (do mesmo partido de Abel, e ao qual o vizinho em questão também era antipático) era quem havia incentivado os Miller a soltarem as vacas na estrada, para elas irem para os vizinhos. Se o candidato a prefeito e Abel ganhassem as eleições, os Miller passariam a tomar conta de toda aquela área, e sua criação andaria por onde quisesse sem problema algum. Tais boatos são encarados por Ângela e Abel como extremamente ofensivos, ainda mais pela proximidade entre eles e a família de Altair. O tempo da política, termo usado para falar do período que vai desde as campanhas até as eleições, é aquele em que as divisões são exibidas, e em que certos conflitos, os quais em outros momentos seriam mais velados, tornam-se autorizados (PALMEIRA, 2001). Também por isso, Abel e Ângela, que apesar de não ser candidata era fundamental na campanha do marido, saíram desse período extremamente decepcionados com os vizinhos65. Dentre tudo o que falaram de ruim do casal, a criação não ficou de fora. Há quem diga que Abel perdeu a eleição por causa dos porcos de seu pai, que insistem em ir para os terrenos vizinhos. E o candidato que se elegeu, diga-se de passagem, tornou-se conhecido como o vereador dos mata-burros, pois uma de suas primeiras atitudes foi mandar construir esses estrados nas entradas dos terrenos dos seus
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Além de Abel, havia mais dois candidatos a vereador que moram no Faxinal dos Cascatas. Como esposa de candidato, Ângela teve que fazer campanha para o marido. Seu papel era visitar as casas dos eleitores da comunidade junto a Abel, e conversar majoritariamente com as mulheres. Além de pedir votos, Ângela também deveria fazer promessas de campanha, ouvindo as queixas das moradoras e comprometendo-se de algum modo a resolver seus problemas. 65
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eleitores, impedindo justamente a passagem de animais pelos portões66. Vendo Ângela triste nos meses após a política, quando recaíram sobre toda a sua família fuxicos bastante ofensivos, vindos de gente que morava perto dela e por quem ela tinha consideração, perguntei-lhe como era para ela continuar perto das pessoas que a haviam ofendido. Não tem jeito. Quando a gente vive em comunidade, tem que conviver com as pessoas. A gente conversa, se visita. Mas não quer dizer que a gente confia. A resposta de Ângela era uma reflexão sobre a comunidade enquanto forma de vida que se realiza no convívio e em trocas mútuas, como as visitas, a roda de chimarrão, as caronas, o cuidado com a criação extraviada do outro, o compadrio, a prestação de ajuda em momentos de necessidade. Isso tudo, problematizava Ângela, não é suficiente para produzir laços de confiança, no sentido de poder contar com alguém e de garantir lealdades. Como algo que qualifica relações, a confiança também incorre sobre as práticas de “mapeamento” que as pessoas realizam umas sobre as outras, expressando de modo significativo as nuances do que Comerford (2003, p.86; 2015, p.32) sintetiza na expressão “sociabilidade agonística”, dinâmica fundamental à vida social e manifestada nos modos de apresentação, confrontação e tensionamento entre pessoas/famílias, os quais produzem aproximações e distanciamentos entre elas, e são indissociáveis da palavra. As expressões de familiaridade, tal como sugeria Ângela, são também medidas de confiança e desconfiança. É por meio dos vínculos e conhecimentos gerados no conviver que surgem as palavras e informações que poderão ser levadas adiante de outras maneiras, como os fuxicos, que tanto entristeceram minha anfitriã. E apesar de as boas práticas de convivência importarem para alguém ser bem considerado pelos outros, elas não acabam com a possibilidade de broncas. Como nos lembram os próprios animais, os fluxos de seres e mensagens escapam dos circuitos de controle que as pessoas buscam produzir em torno de suas atividades, conversas e reputações. As broncas em torno dos animais, nesse sentido, também se revelam importantes momentos de problematização do saber viver em comunidade, da própria relação entre as pessoas e a terra, e do que produz obrigações ou gera problemas entre aqueles que vivem perto. Nessas histórias, cães, criação, famílias e terra são percebidos em sua mutualidade, e os animais também sustentam as boas ou más relações das pessoas com seus vizinhos. Como destacado por Leal (2014), em sua tese sobre o mercado de gado de elite, as reses corporificam o saber dos seus criadores e os seus nomes, enquanto os criadores são 66
Mata-burro é o nome dado a um estrado de madeira colocado no chão, sobre uma vala. O estrado é formado por ripas que são espaçadas umas das outras, de modo que a criação fica com medo de passar por ali, pois suas patas podem ficar presas.
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reconhecidos e prestigiados pelas qualidades de seus animais. Há, nesse caso, um trânsito de influências de mão dupla entre produtor e criação. O fato de os animais dos Miller terem sido acionados nos debates sobre em quem votar, durante a política, é representativo disso. A vida social da criação nas comunidades do interior tem a ver também com os reconhecimentos sobre seu dono, ou seja, sobre os limites do seu terreno familiar, sobre sua família que se espraia em outras famílias pelas casas de um mesmo terreno, sobre as formas com que essas pessoas cuidam de seus animais, e sobre seu saber viver como os vizinhos. Assim, não são só um animal e seu proprietário individual que se constituem reciprocamente, ao contrário, todos os membros de um terreno familiar vivem de alguma maneira os danos sofridos e causados pela criação que ali habita, e que afronta os modos com que os seres humanos delimitam a terra. Por um lado a criação pode ser vista como algo que pertence a alguém, e dessa forma será considerada no momento em que sofrer ou causar danos, os quais deveriam idealmente ser cobrados de seu dono, ou pagos por ele. No entanto, em termos práticos, essa cobrança não se realiza através de um acordo ou da mediação de um terceiro, e as pessoas não levam à delegacia suas queixas, muito embora esta seja uma possibilidade em seu horizonte. Nas narrativas e situações que envolvem os estragos causados por animais que transitam pelos terrenos, emergia, ao contrário, uma atenção à atuação de pessoas e bichos, em correspondência ao que Herzfeld (1985, p.220) chama de “justiça poética”, que se realiza na negociação e contestação dos significados morais e estéticos da performance social, na busca da retribuição a atos considerados ofensivos. Entre os moradores do interior, as mortes da criação eram respondidas com as mortes dos cachorros e sua dissimulação, esperas aos caçadores eram cogitadas, as saídas dos porcos aos terrenos alheios eram retornadas por meio de desaforos ou do carnear, os desaforos se replicavam no agravamento das relações entre as famílias envolvidas ou, nos casos em que um dos envolvidos era tido como bravo, no medo de que a bronca pudesse se estender a algo pior. Todos esses movimentos faziam simultaneamente a reputação dos bichos, dos seus donos e das pessoas que sofreram danos, e eram considerados de perspectivas múltiplas. Nessas considerações, a culpa dos envolvidos e a avaliação de suas respostas possíveis eram tratados como declarações, e temas em debate. Levava-se em conta modos mais ou menos apropriados de agir, mas os tons da culpa e do desaforo mudavam na medida em que a pessoa passava de sofredora à causadora de dano. A linguagem era a mesma, mas as responsabilidades eram outras, e também contestadas e divididas entre os atos do bicho e as casas dentro de um mesmo terreno familiar.
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4.2 Agradar e desaforar : o roubo e suas mensagens
Milena, sobrinha de Abel, filha de seu irmão Vitório, havia ganhado bebê há poucos meses, e eu ainda não conhecia a menininha. Vivian e Ângela planejavam quando poderíamos ir até a casa da avó de Milena, com quem ela estava morando. Para tanto contavam com a boa vontade de Abel, que era quem podia nos levar até lá, já que nenhuma de nós tem carteira de motorista. Abel parecia relutante em sair e deixar a casa, dava-me a impressão de que não queria ir. Finalmente, num dia, pelo final da tarde, Abel, Ângela e eu fomos de carro até a vila onde mora Milena, fora do Faxinal dos Cascatas. Ficamos lá até tarde, para na volta pegarmos, no ponto do ônibus na rodovia, Vivian, que estuda à noite67. Quando voltamos para casa, Bidu veio nos receber cabisbaixo, estranho. Entramos pela porta da cozinha, como de costume, e eu fui até o quarto onde dormia, sozinha68. A porta do quarto estava aberta, ao contrário de como a havia deixado. Quando acendi a luz, vislumbrei todo o cômodo revirado, e as portas e gavetas dos armários abertas, com tudo mexido. Minhas duas mochilas estavam abertas e bagunçadas. Em cima da cama, algumas de minhas coisas haviam sido espalhadas. Entraram na casa! – gritei, e quase que ao mesmo tempo, Abel, Ângela e Vivian gritaram a mesma coisa. Os ladrões haviam aberto a janela da sala, pulado para dentro, e bagunçado tanto o quarto onde eu dormia, que era uma espécie de quarto de hóspedes, quanto o quarto de Vivian e Ale, que ficava logo ao lado. A porta dos fundos estava aberta, indicando por onde eles haviam saído. Procuramos para ver o que havia sido levado. Para nossa surpresa, em meio àquela bagunça haviam sumido somente trinta reais em moedas, que pertenciam a Vivian e estavam em seu armário. Os invasores também haviam mexido nos vidros de perfume que Vivian vende, estragando as embalagens que estavam fechadas, e que ela deveria entregar às suas 67
É longo e sofrido o deslocamento que os jovens graduandos fazem das comunidades rurais de Pinhão até Guarapuava, que é o município mais próximo onde há instituições de ensino superior com aulas presenciais. Vivian, por exemplo, saía de casa às 16:30h, caminhava até a estrada geral, que é a estrada rural principal daquela região do município, e lá pegava carona com um ônibus escolar que transporta alunos que estudam na escola rural mais próxima. Com esse ônibus ela ia até a rodovia asfaltada, onde passa o ônibus da prefeitura de Pinhão, que leva os estudantes até Guarapuava. O trajeto até o município vizinho leva cerca de uma hora e meia. No retorno, o ônibus a deixava no asfalto, e ela pegava uma kombi, que leva os alunos que moram nos Cascatas até suas casas. Porém, com o passar do tempo um novo motorista passou a dirigir a kombi. Ele não queria mais levar os alunos até as portas de suas casas, reclamando de ter que fechar e abrir os portões. Por isso Vivian, que sempre chegava em torno de meia-noite, tinha que caminhar um trecho de 150m no escuro para chegar à residência. Para não deixarem ela vir sozinha, Abel ou Ângela iam todas as noites esperar a filha no portão. 68 Ao contrário da maior parte das casas onde fiquei, a residência de Abel e de Ângela tinha a sala separada da cozinha por uma parede, e duas portas de entrada distintas: uma que dava para a sala, e outra para a cozinha. No entanto, eles sempre recebiam seus conhecidos pela porta da cozinha, de modo que a da sala era raramente aberta. Além dessas duas portas também havia outra, que dava para os fundos da casa, utilizada exclusivamente pelos seus moradores quando eles queriam sair ou entrar desse lado do quintal.
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clientes. Levaram um iogurte, e tomaram o leite condensado que estava na porta da geladeira. Mexeram nas roupas íntimas minhas e nas de Vivian, e jogaram algumas de minhas peças no quarto dela. Relógio, rádio, máquina fotográfica, todo o resto estava no lugar. E a espingarda? – perguntou Vivian. Ângela foi checar, e viu que a arma ainda estava lá. Os membros da família comentaram que, a julgar pela bagunça na casa, era certo que os ladrões estavam atrás de dinheiro. Eles não iriam roubar nenhum equipamento ou aparelho eletrônico que não tivessem como esconder ou para quem vender. Parados nas mãos deles, esses objetos logo seriam vistos por outras pessoas da vizinhança, provando assim sua culpa na história. Também se especulava que eram crianças que haviam estado por ali, em especial pelo iogurte e o leite condensado – traquinagens que revelavam gostos e modos infantis. Abel tinha certeza que quem entrou na casa havia nos visto sair. Foi coisa dos piazinhos, cogitou Ângela, desconfiando de Felipe e sua turma de irmãos e primos, meninos de cerca de dez anos de idade, que moram perto do portão da casa de Dona Lúcia. Felipe já é famoso por seus furtos. Desde criança ele entra nas casas alheias e leva coisas embora. Não dê fiança pra ele, disse-me Dona Lúcia três anos antes, num dia em que o menino havia ido visitá-la, que foi quando o conheci. Dar fiança tem a ver com mostrar que se tem confiança na pessoa, deixando-a confortável para fazer o que quiser e à vontade para andar sozinha pela casa e pelo terreno, mostrar a ela o que se tem, deixar ela mexer em suas coisas. Esse piá gosta de roubar. Não deixe ele ver tua máquina (fotográfica). Segui o conselho de Dona Lúcia, e evitei o menino. Enquanto crescia, Felipe se tornava reconhecidamente mais perigoso. Ele chegou a agredir fisicamente uma professora na escola, durante a aula, por ter levado uma bronca. Algumas pessoas me disseram que ele cortou a professora, com um estilete, ou uma pequena faca. Por causa disso, a polícia foi ao colégio – que fica no interior, em uma comunidade próxima aos Cascatas – e Felipe foi suspenso. Logo que isso ocorreu, Felipe se tornou assunto na vizinhança. Em uma de minhas visitas à Leontina, apelidada Tina, vizinha e comadre de Ângela, falamos de Felipe e sua trajetória de pequenos roubos. Naquela tarde, fomos à casa de Dalva, irmã de Tina que mora ali perto. No caminho para lá, por um carreiro que leva até Dalva, demos de cara com Felipe, pescando traíra69 em um tanque no terreno de Leontina. Como de praxe, cumprimentamos o menino, que nos respondeu e conversou um pouco. É louco de disfarçado esse piá, diriam algumas pessoas. Disfarçada é a pessoa dissimulada, que finge ser ou querer uma coisa, mas que na verdade tem intenções escondidas, disfarçadas em sua simpatia e bons modos. Às 69
Espécie de peixe muito comum em banhados e tanques.
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vezes é bom disfarçar, sobretudo quando se quer saber de alguma coisa, ou quando se quer passar no meio de pessoas e situações que podem trazer perigos. Mas falar que uma pessoa é disfarçada é sinalizar algo de ruim sobre ela, sobre seu caráter de não confiável, falsa, mentirosa. No final da tarde, voltamos do nosso passeio com Dalva e Julinha, filha de Dalva que estuda na mesma escola que Felipe. Julinha contou que naquele dia Felipe não foi à escola porque estava suspenso, e que a polícia estava lá. A professora não queria ver o menino na frente, por causa da recente agressão. Horrorizadas, as mulheres começaram a conversar sobre outras coisas que Felipe já tinha aprontado. Uma vez ele bateu na própria mãe, deu várias pauladas na perna dela. Um tempo depois a mulher morreu, por causa de uma infecção que se espalhou após uma cirurgia de pedra na vesícula. Felipe vive hoje com o pai, a avó e os irmãos. Tina lembrou também de quando ele roubou uma aliança que sua filha, Luciana, havia emprestado de outra amiga, numa troca de anéis. Felipe foi à casa de Tina, viu as meninas brincando, e insistiu para que o pai dele o deixasse pousar na casa da dela. O pai de Felipe é irmão do marido de Tina, de modo que ela é considerada tia do garoto. Ela também pediu para que ele ficasse, pois queria bem Felipe, e viu que o menino queria muito pousar lá. Na manhã seguinte, Luciana deu falta da aliança, que havia deixado numa caixinha na estante, e chegou a cogitar que o garoto havia lhe roubado. Alguns dias depois, Tina foi à casa de Dona Deolinda, sua sogra e avó do garoto, e viu Felipe lá, com a aliança no dedo. Disse, como ela mesma descreveu, meio disfarçada: Felipe, e essa aliança no teu dedo? Você vai casar? Ele ficou sem jeito, e contou que tinha encontrado aquela aliança. Tina falou que Luciana havia perdido uma aliança, mas os pais do garoto nem deram bola. Ela chegou em casa e contou para Luciana, que foi até a casa de Felipe reclamar que aquela aliança era dela. Felipe a devolveu, mas seus pais não deram muita satisfação para a sobrinha. Na verdade, custaram a acreditar que o garoto era ladrão, e se ofenderam com as acusações. Em casa, mais tarde, comentei sobre essas histórias com Abel e Ângela. Abel disse, então, de quando Felipe roubou o celular de uma vizinha, a qual foi tentar pedir o aparelho de volta, reclamando que nele havia fotos dos netos dela. Mas ela não teve êxito. O próprio pai do menino já havia feito negócio com o celular lá no Bom Jesus. Vendeu ou trocou o aparelho por outro. Ângela, por sua vez, lembrou que uma vez Felipe roubou as chaves da casa de outra vizinha. A família dele mandou que ele fosse devolver. Ele fez que foi, falou que devolveu, mas na verdade jogou as chaves em um banhado na frente da casa da mulher.
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Assim, quando falavam de Felipe, o pessoal da vizinhança ressaltava não só o histórico de furtos e incômodos causados pelo garoto, mas também a atitude dos pais e da avó do menino frente ao seu comportamento. Acreditavam que com o falecimento da mãe, seria ainda mais difícil Felipe tomar jeito, porque sua avó já não tinha mais idade e disposição para lidar com ele, e seu pai o acobertava e acabava de algum modo se beneficiando desses roubos, como no caso do celular que ele mesmo negociara. Os problemas que o garoto trazia aos vizinhos e aos parentes eram vinculados ao que se sabia sobre o que acontecia dentro de sua casa. Mesmo se os pais do menino agissem de uma maneira tida como mais positiva, repreendendo o filho, essa relação com as pessoas que vivem em sua casa seria destacada. Mas aí, quem sabe, para dizer que esses pais sofrem com esse menino, que não importa o que façam, ele continua agindo mal. Observar e dar sentido aos atos de um, nesse sentido, era também observar e lançar mão dos conhecimentos que se tem sobre outras pessoas, a ele vinculadas. Nesse caso era a família do menino que surgia como contraponto às histórias sobre os furtos de Felipe. Além disso, entravam em questão as sutilezas de como se receber em casa uma pessoa que é sabidamente disfarçada e que gosta de roubar, pessoa que nesse caso é uma criança, cuja responsabilidade recai sobre aqueles que devem cuidar dela, que são seus pais ou os familiares que moram com ela, e que a sustentam e devem educá-la. Tanto quanto os adultos, mas de maneiras diferentes das deles, as crianças circulam pelas casas, em especial pelas casas de seus parentes e padrinhos, ou onde há outras crianças (que podem ser suas parentes ou somente amigas) para brincarem. As crianças também costumam ir às casas dos vizinhos que moram mais perto, geralmente aqueles que seus pais mais visitam, e onde sabem que ganharão algum mimo ou se entreterão com alguma atividade, como assistir televisão, ajudar a cuidar da criação, brincar com um cachorro ou com um brinquedo antigo de alguém que já não brinca mais. Indispor-se com o filho de um vizinho ou de um outro familiar, não recebêlo, reprimi-lo, ofendê-lo, tentar educá-lo, é algo que pode ofender seus pais caso eles fiquem sabendo ou vejam alguma coisa que não gostem. Diversas mães me falaram que não gostam que seus filhos fiquem muito nas casas alheias. Criança é tudo daninho. Na casa dos outros elas sempre podem aprontar alguma travessura, mexer no que não devem, aprender algo que os pais desaprovam, ou ouvir alguma coisa que não deviam e saírem falando por aí. Também não é bom deixar criança ficar ouvindo conversa de adulto. Edimara, mulher que mora nos Cascatas e cuja filha na época tinha dois anos de idade, me deu um exemplo do que a criança aprende ouvindo a conversa dos mais velhos. Um dia, a menininha chegou para ela e disse: papai outra mulher pinhão.
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Para Edimara, a filha queria dizer que o papai tem outra mulher no Pinhão. Ao longo de meu trabalho de campo, tive vários exemplos de desconfianças e traições entre maridos e esposas, e de como os próprios familiares alimentam a produção dessas desconfianças. Agora, eu percebia que mesmo as crianças eram incluídas nesses circuitos. Para Edimara, a fala da filha se devia ao fato de a menina ouvir as conversas que sua mãe tem com as visitas. Depois disso ela ligou para o marido e contou o que a garotinha disse. Ele ficou perplexo: de onde a criança tira essas coisas? Por outro lado, não se quer que os filhos criem intimidade demais com os outros, pois essa intimidade abre a porta para perigos. Júlia, filha de Dona Francisca, contou-me de quando era mais nova, e gostava muito de ir à casa de uma vizinha, que tinha uma criança pequena. Volta e meia Júlia pousava lá. Mas o marido da mulher era muito bêbado. Um dia, chegou em casa e começou a ralhar com elas, ameaçando bater nas duas. Elas saíram correndo com a criança, e foram para a casa da mãe de Júlia. Dona Francisca, depois, disse para a filha: ‘tá vendo o que dá ficar dormindo nas casas alheias? A mãe só gostava que as filhas pousassem na casa de Raquel, casada com seu irmão Diogo. Lá, sabia que as meninas estavam seguras e que seriam bem tratadas, sem passar por apuros ou constrangimentos como o que Júlia teve com o marido bêbado da vizinha. O tratamento concedido às crianças dos outros é algo que faz e desfaz boas relações de vizinhança e de parentesco, consistindo assim em uma das formas de se dar bem com parentes e vizinhos. Esse cuidado com as crianças também se espraiava pelas relações com os guardas, jagunços e pistoleiros ao longo do conflito entre posseiros e Indústrias Zattar. O senhor Sebastião, posseiro já falecido, teve de conviver com jagunços morando a poucos metros de sua casa. Ele buscava agradar os filhos desses jagunços, dando às crianças balas e doces. Para aqueles que contam a história, essa atitude de Sebastião é tomada como forma de se fazer querido pelas crianças e, consequentemente, por seus pais. Deixar seus filhos brincarem com os filhos dos jagunços também era uma maneira de produzir essas boas relações, já que crianças que brincam juntas circulam juntas por suas diferentes casas. Desse modo, vizinhos acabam cuidando não só dos seus filhos mas também dos filhos dos outros, podendo estabelecer certos afetos e respeito um pelo outro por intermédio das crianças. Tanto é que quando há uma encrenca entre vizinhos ou parentes, as crianças são constrangidas a não frequentarem mais a casa dos inimigos de seus pais. Elas ouvem e incorporam essas situações em suas próprias relações e deslocamentos, tornando visível que as encrencas influem, de modos distintos, sobre todos os que habitam uma mesma casa, e não somente um ou outro.
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Outro exemplo de situação que agrega um pistoleiro e as crianças dos posseiros é a de Sergipe, homem de armas que volta e meia estava no Faxinal dos Cascatas, no período em que o conflito de terras estava em seu auge. Acontece que Sergipe era amigo de Vitório Miller, irmão de Abel. Ele prestava serviços para Dona Lúcia e Seu Benedito, ajudando com a criação, ou carpindo e limpando o terreno. Dona Lúcia conta que ele chegava a pousar por lá, no terreno, mas que não fazia nada a ninguém, era muito querido. Porém, todo mundo sabia que ele era pistoleiro, que de vez em quando sumia, dizendo que tinha arrumado um serviço fora, e voltava cheio de dinheiro. Nos Cascatas, ele vivia agradando as crianças da família Oliveira, justamente uma das que mais sofreu com as ameaças dos homens da Zattar. Seu Damião Oliveira lembra que, sempre que passava por ali, Sergipe trazia um punhado de balas para distribuir para a criançada. Era louco de disfarçado! Para Dona Lúcia, Sergipe era um homem atormentado por uma culpa muito grande. Tanto é que, em seus momentos finais, antes de morrer matado em uma briga de bar, ele dizia para o homem que foi socorrê-lo que ele não poderia morrer daquele jeito, sem confessar. Que ele estava em dívida, que tinha feito algo de muito ruim. Dona Lúcia desconfia que Sergipe matou uma criança, por isso sua culpa e sua mania de agradar os pequenos. Para Damião, esses mimos eram um disfarce, dissimulação para se aproximar e matar alguém de sua família. Nas histórias sobre as lutas por terras e sobre as encrencas e brigas, as crianças emergiam como agentes de imposição de limites à violência, aqueles cuja presença enquanto vítimas ou testemunhas de agressões e mortes alimentavam o horror que as pessoas, em geral, sentiam em relação a determinadas situações e agentes. Era muito pelo mal causado a elas que certos homens e mulheres eram consideradas ruins e bandidos. Por isso também, para Dona Lúcia, era a possibilidade de ter matado uma criança que dava sentido, em suas especulações, à dívida do pistoleiro Sergipe. Afinal, o que um homem desses, que matava por dinheiro, poderia achar muito ruim? Ela refletia, nesse sentido, sobre esses limites, sobre que mortes são consideradas mais terríveis e, portanto, dignas de um dilema, de um sentimento de culpa, por um matador profissional. Esses casos revelam que as crianças têm agência tanto nos conflitos de terras quanto nas broncas, brigas, encrencas e vinganças entre famílias que participam de uma vizinhança. A elas, também é vinculado todo um repertório de práticas de cultivo de relações e reputações, as quais muito embora adquiram particularidades no que diz respeito ao trato com os infantes, fazem parte de um idioma comum de tratamento entre pessoas. Tanto é que as crianças também são agradadas segundo certas intenções de quem as agrada, elas também tem seus deslocamentos observados e narrados, entrando em circuitos de fuxico e de riscos
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que são mobilizados através dos seus passeios pelas casas de parentes e vizinhos. Apesar de serem tidas em geral como daninhas, algo tomado como característico dessa etapa da formação pessoal, as crianças carregam consigo as particularidades das reputações de suas famílias, e dos trejeitos de seus pais e familiares com quem mais convivem, os quais acabam tendo traços de sua corporalidade associados aos corpos das crianças: modos de rir, de andar, de conversar, de comer. As famílias, sobretudo os que vivem na mesma casa que uma criança e são tidos como responsáveis por elas (seus pais, avós, e às vezes tios, irmãos), também são observadas a partir do tratamento que dão aos seus filhos, de como os educam, se os deixam soltos demais pelas casas alheias, se tem condições de sustentar as crianças. Uma criança também pode ser vista como parte de uma gente ruim que não se quer por perto, ou ser uma pobrezinha que se quer ajudar (quando se reconhece que seus pais são bons e trabalhadores), ou uma pessoa tida como disfarçada e que pode se tornar bandida. Voltando agora a Felipe, todas as histórias anteriormente descritas sobre as armações do menino foram levantadas para assinalar traços desaprováveis do seu comportamento, que naquele contexto em particular haviam culminado na agressão de sua professora. Junto aos antecedentes de pequenos furtos e da agressão à própria mãe, esse ato fez com que as pessoas agora falassem de Felipe como alguém em vias de se tornar um verdadeiro bandido. Preocupado com isso, Abel buscava tratar bem o menino, dando-lhe muita atenção quando ele vinha à sua casa. Lembrou de quando Felipe veio ajudá-lo a tocar umas vacas para dentro da mangueira, e ele retribuiu com leite para o menino levar para casa. Abel repetiu, então, um preceito que Seu Pedro, lá perto da casa de Dona Francisca, havia me dito sobre dar carona para um rapaz dos Silveiras, que não só era vinculado a um lugar de gente ruim, como havia matado o próprio sogro: É bom agradar eles, dar carona, que assim eles não mexem com a gente. Foi com uma intenção similar que Abel comentou com Angela que é melhor a gente agradar esse piá [Felipe], pra ele não vir aprontar uma pra nós. No mesmo sentido, Dona Francisca contou-me de quando seu filho Celso foi trabalhar de guarda noturno na mesma escola em que Felipe estuda. No começo, Celso ouviu falar de garotos da vizinhança que viviam entrando na escola para roubar equipamentos, comida, coisas de lá de dentro. Ele fez amizade com esses meninos. Começou a conversar com os rapazes que roubavam a escola, os quais moravam ali no entorno, e inclusive estudavam lá. Disse para eles o ajudarem a cuidar da escola, porque a escola é como a igreja, o lugar onde a gente aprende as coisas, um lugar muito importante, pelo qual temos que zelar mais do que a casa da gente. E depois disso nunca mais houve problema com roubo, porque os meninos gostaram de Celso. Conversar é um modo de se fazer querido por aqueles com quem se fala.
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Através da fala, do ato de prosear, as pessoas revelam sua educação, seu trato com o outro, e podem fazer amizade. Dona Francisca me disse que é bom ter amizade com esse tipo de gente, porque o ladrão se ele não tiver raiva de você ele não vai te roubar. O roubo, em casos de pessoas que se conhecem, revelava-se no discurso dela como algo pessoal, um modo não só de descontar a raiva, mas de revelar publicamente um desafeto. No final de semana anterior ao roubo de sua casa, Abel havia saído. Eu e Ângela estávamos na casa de Dona Lúcia, que fica em outro lado do terreno familiar, quando um dos primos de Felipe apareceu por lá, dizendo que Felipe queria emprestar o esmeril de Abel, e que já tinha ido para a casa de Ângela, atrás do marido dela. Ela saiu na hora, correndo para casa, temerosa que o garoto fosse mexer em alguma coisa. Quando chegou, Felipe estava lá, quase dentro da garagem. Ângela disse para ele que Abel não estava, e que não poderia deixálo usar o esmeril. Por isso, ela desconfiou que Felipe já poderia estar rondando a casa, com o intuito de entrar nela para roubar algo. Ele se tornou, assim, o primeiro suspeito do roubo. Viu no que deu agradar esse piá? - disse Abel, perante a desconfiança de Ângela sobre Felipe, após o roubo de sua casa. Ele questionava se agradar um menino que era conhecido por toda a vizinhança como um ladrãozinho, havia dado certo. Problematizava, nesse sentido, a prerrogativa de que é bom agradar aqueles que são reconhecidos por serem perigosos ou causarem algum tipo de dano aos outros, para que eles passem a querer bem e respeitar quem faz o agrado. A ideia que permeia esse modo de agir é a de que o afeto poderá falar mais alto se por um acaso passar pela cabeça da pessoa fazer algum mal ou ter alguma encrenca com aquela que a agradou. Evita despertar a raiva de que Dona Francisca me falava. Agradar é como doar algo de si para o outro. É dar caronas, emprestar ferramentas e utensílios, doar alimentos que foram colhidos do terreno onde se vive (como frutas, mandioca, hortaliças, pinhão, leite, carne), trazer do Pinhão algo que uma pessoa precise. Nesse sentido, os atos de agradar são muitas vezes os mesmos que são tomados como formas de ajudar parentes ou vizinhos. O ato de agradar passa também pelo saber conversar, que tem a ver com cumprimentar, saber como ouvir e como falar, despendendo seu tempo com a pessoa a quem se agrada. Agradar, por essa via, é algo que diz respeito ao tratar alguém de modo considerado respeitoso e gentil. Por conseguinte, agradar também tem a ver com receber bem uma pessoa em casa – convidá-la para entrar, prosear, servir-lhe chimarrão, depois café com pão, oferecer fumo e palha para quem é fumante fazer seu cigarrinho, dar-lhe algum alimento que se tenha em casa para ela levar consigo. Mas esses são também os modos comuns de bom tratamento entre vizinhos, conhecidos e parentes quando se encontram e se visitam, modos
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que são postos em prática em encontros e atos que não necessariamente são compreendidos como agrados. O que parece específico do agrado, portanto, não são essas formas de acolhimento, hospitalidade e bom tratamento, que envolvem doações de objetos, alimentos e caronas, cumprimentos e conversas amistosas, ou o bem receber em casa, as quais fazem parte de um repertório mais geral de modos de cultivo das boas relações de vizinhança, parentesco e amizade. Quando esse repertório de ações surge vinculado ao termo agradar, podem entrar em questão certas expectativas que são encadeadas no agrado, em relação àquele que se agrada. Ao ser expressado como preceito do fazer uma boa convivência, agradar invoca a maneira como o que agrada conhece e enxerga o outro, e revela atitudes interessadas, das quais se espera outras em troca. Nos casos aqui descritos, por exemplo, aqueles que falavam sobre agradar pessoas tomadas como ladrõezinhos e gente perigosa esperavam que o agrado fosse retornado através do respeito. Porém, há situações em que aquele que agrada é que é o perigoso, como o pistoleiro Sergipe, que dava doces para os filhos dos posseiros. De um modo ou de outro, agradar envolve afeto, na medida em que diz respeito à produção dos sentimentos que atravessam a maneira com que se apreende o outro e se convive com ele. Além disso, o agrado tem a ver com o desejo de uma amizade interessada e, em certas situações, capaz de afastar a raiva e as más possibilidades reconhecidas no outro, nas histórias que ele carrega consigo. Esse perigo e essas relações, por sua vez, não dizem respeito a estritas díades, onde entram em cena somente o que agrada e o que recebe o agrado. Entre os moradores do interior de Pinhão, a noção de pessoa agrega relações de família, parentesco, moradia, vizinhança, amizade. São esses vínculos, incorporados, que as tornam socialmente reconhecidas. Não que a subjetividade não importe nessa qualificação social da pessoa. Como vimos anteriormente (Cf. Capítulo 2), as pessoas têm seu jeito e sua natureza, enquanto forças e disposições que nelas se combinam de modo único, fazendo com que sejam mais propensas a certos afetos e comportamentos. No entanto, a isso são somadas outras relações que ela incorpora e que a identificam e vinculam a famílias, gentes e lugares. Olhar para o outro, nesses casos, é compreendê-lo através dessas teias de relações que o atravessam: o lugar onde ele vive, as proximidades e afastamentos que se tem com esse lugar, sua família, por onde essa pessoa circula, qual sua idade, seu gênero, seu trabalho, suas atividades cotidianas, e assim por diante. É assim que ao agradar, ajudar, conversar, visitar, as pessoas cuidam de si e das outras de maneiras que produzem desdobramentos em outros níveis. Isso porque esse cuidado se estende aos demais que atravessam suas próprias relações e as relações dos outros
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– que também são suas, pois a família do outro é sua vizinha, ou mora perto, ou seus filhos vão para a escola juntos, ou sua comadre é muito amiga da esposa do homem, e assim por diante. No dia seguinte ao roubo na casa de Ângela e Abel, eu deixei Pinhão, conforme já havia planejado bem antes disso acontecer. Voltei ao Rio de Janeiro, e só retornei ao município e ao Faxinal dos Cascatas um mês depois. Fiquei com aquilo em minha cabeça. Desconfiava que os ladrões estivessem atrás do dinheiro que eu poderia ter comigo, e que a intenção deles não seria, em primeiro lugar, roubar os Miller. Mas essa minha desconfiança sempre foi dissimulada pelos moradores da casa. Por telefone, alguns dias depois, falei com Vivian. Ela me disse que era visto que aquilo ia acontecer. Já tinham entrado em vários vizinhos, e os Miller poderiam ser os próximos da fila. Mas agora nós descobrimos quem foi que entrou aqui e nas outras casas. Agora eles não vão fazer mais nada, porque se alguma coisa acontecer todo mundo já sabe que são eles – disse Vivian. O ladrão, agora, estava exposto ao público, então preparado para lidar com ele de novas maneiras. Não haviam sido Felipe e sua turma de irmãos e primos. Foi o Luiz, ela me contou. Agora ‘tão até chamando ele de Luizão. O menino ganhou um novo apelido depois do roubo. Ele era mesmo grande, reforçado. Na época tinha dezessete anos. A casa onde mora com os pais e irmãos fica bem em frente ao portão de Abel. Fiquei angustiada com essa notícia. Pois era Daiane, irmã de Luiz, de dez anos de idade, quem nos últimos tempos me fazia companhia em minhas andanças pelos Cascatas. Para eu não ficar sozinha, chamava ela para ir comigo. Algumas de minhas caminhadas para visitar o pessoal eram longas, e fugiam da estrada geral, mais movimentada, adentrando pequenas estradas secundárias e carreiros. Daiane conhecia todos os carreiros de cor. E ela não parava de falar um segundo, adorava contar histórias e falar da vida de todo mundo. Depois do roubo, Daiane não apareceu mais na casa de Ângela e Abel. Não dava mais para ela ir, com as famílias naquela situação. Eu também não poderia mais andar com ela e visitar sua casa. Poucos dias antes do roubo, eu havia estado lá, e deixado fotografias que tirei dela, de sua irmãzinha bebê, de um dos seus irmãos, de sua mãe com eles todos. Também havia dado para Daiane um estojo de lápis, para ela usar na escola, e prendedores de cabelo para a bebê. Fiquei pensando que talvez seus outros irmãos não tivessem gostado disso - essa mulher de fora que vem e não traz nada para a gente. Desconfiava cada vez mais que eu é que havia trazido o roubo para a casa, que Luiz poderia achar que eu carregava bastante dinheiro, ou talvez quisesse me pregar uma peça. Vivian, será que fui eu que fiz alguma coisa errada? Não Dibe, não é isso – Vivian disse ao telefone, e repetiu várias vezes depois que
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voltei. Ao retornar aos Cascatas, ouvi várias histórias dos Miller e de algumas vizinhas sobre esse roubo e o desenrolar das buscas e acusações de Abel. Vivian já havia me contado pelo telefone que, na manhã seguinte ao roubo, seu pai fora atrás de pistas na vizinhança para descobrir o ladrão, e que assim chegou até Luiz. O rapaz confessou em frente à sua mãe, Doraci, que ele era o culpado. Reconheceu que havia mais pessoas com ele durante o ato, mas não quis contar quem era, e nem devolver o dinheiro. Abel disse então que, já que o garoto não estava disposto a devolver o valor, ele levaria o caso para a polícia. Mas na frente do delegado, depois, Luiz negou tudo. Doraci, chamada também de Dora, fez o mesmo que o filho, negando as acusações de Abel. Dora e seu pai, Chiquinho, cuja casa é ao lado da casa dela, espalharam pela vizinhança que Abel estava mentindo, acusando Luiz de algo que ele não havia feito. Vivian contou-me ainda que, passados alguns dias do roubo, sua mãe deu por falta do seu gel de cabelo e da água oxigenada. E que Luiz exibia agora um penteado diferente: seu cabelo estava avermelhado, e com um topete estilo moicano, tal como era moda entre os rapazes jovens do interior. ‘Tá puro um pica-pau, disse Vivian, tirando sarro dele. Depois Luizão arrumou serviço com o pai de Marcelo, namorado de Vivian. Lidava lá com a criação e com carvão. Os outros rapazes que trabalhavam junto zombavam dele, perguntando se Luiz tinha passado perfume de mulher para vir para o trabalho. Todos já estavam sabendo do que havia acontecido na casa de Vivian. Abel também me contou como havia feito para descobrir quem havia entrado na casa. No dia em que parti, ele foi até a casa onde mora o primeiro menino do qual desconfiara, Felipe, e falou com o pai dele e com sua avó, Dona Deolinda. Não poderia ter sido Felipe. No dia anterior, ele havia ido para outra localidade, para ajudar um parente a tocar umas novilhas, e só voltou para casa à noite. Depois disso, Felipe veio dizer a Abel que era para ele não se preocupar. De você eu não roubo, o menino lhe falou. Eu gosto de você. O agrado, enfim, havia dado certo. Abel, então, passou no bar do Leco, que também funciona como um pequeno mercado e fica ali perto. Durante o dia, quando o bar está vazio, as crianças costumam ir até lá para comprar doces. Tendo isso em mente, Abel foi até o Leco, que confirmou que os netos de Dona Deolinda haviam estado fora no dia anterior, e só chegaram em casa à noite. Vizinhos sempre observam os outros vizinhos, de modo que sempre há como saber para onde alguém foi e a que horas. Abel disse para o dono do bar que era para ele ficar de olho se aparecesse alguém por ali com trinta reais em moedas. Leco revelou, então, que Luiz havia ido ao bar
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naquele mesmo dia, e comprado coisas. E que o garoto não parava de tirar moedas dos bolsos. Abel foi até a casa do rapaz, que confirmou o roubo em frente à mãe, Doraci. Foi quando Abel resolveu levar o caso à polícia que Dora e seu sogro, Chiquinho, passaram a negar a culpa de Luiz, e a desaforar Abel para os vizinhos. Segundo Abel, Luiz mentiu para o delegado porque assim havia sido instruído por um outro vizinho que mora ali, apelidado Leitão. Esse vizinho, na verdade, comprou um pedaço da terra de Chiquinho e foi morar perto do portão de Abel. Antes de morar lá, ele vivia no Pinhão. Há fuxicos, na vizinhança, de que Leitão foi morar nos Cascatas para se esconder da polícia, pois já teria se metido com roubos de carros, e viveria de rolos e trambiques. Leitão, a esposa, e seus filhos são conhecidos como os Leitão, uma das gentes que constituem aquela vizinhança. Assim também, Chiquinho, sua esposa e seus filhos são chamados de gente do Chiquinho. Chiquinho é um dos tantos vizinhos de Abel que mora em um terreno de posse, que não tem documentos, e se tornou terreno do Zattar quando a madeireira registrou muitas terras do Faxinal dos Cascatas em seu nome. Nas terras de Chiquinho vive seu único filho homem, casado com Dora e morador de uma casa à parte, que fica a uns 50 metros da do pai. Naquele terreno mora também uma irmã de Chiquinho, separada do marido, e a quem o irmão cedeu um pedacinho de chão para ela fazer casa. No mais, há sempre uma casa nova sendo construída por ali. Além da dos Leitão, havia mais umas três que eu conseguia ver da estrada. Um pouco antes de eu deixar o campo, falava-se na vizinhança que tinha gente dos Matoso, afamada gangue do Pinhão, indo morar no terreno de Chiquinho. Ele estava picotando seu lote e vendendo para gente de fora. Sua forma de picotar e ganhar dinheiro com o terreno era diferente da de Amadeu, tio da esposa do dono do bar, Leco. O terreno onde Leco tem o bar foi comprado de Amadeu, que picotou o lote de 10 alqueires de terra que ficou delimitado como seu, quando os posseiros dos Cascatas organizaram seus terrenos, nos anos 1990, de modo a prepararem-se para a desapropriação das terras do Zattar no INCRA (a qual ainda não aconteceu) e para garantirem a regularização de suas posses70. Amadeu, contudo, procurou vender seus terrenos entre seus irmãos e sobrinhos. Abel questionava esse picotar das antigas posses, pois para ele não havia como uma família se sustentar, ter uma criação, tirar uma erva para si de terrenos tão pequenos. Ao 70
Essa delimitação dos lotes, no caso dos posseiros do Faxinal do Cascatas, teve como base uma divisão que já existia nos terrenos familiares dessa localidade, pois as famílias já viviam naquelas terras há muitas décadas. Assim, por exemplo, no caso dos Miller, o terreno familiar de Seu Benedito ficou dividido entre três posseiros: Benedito, Abel e Vitório.
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conseguirem se sustentar com sua erva-mate (para cuja colheita empregam, inclusive, mãode-obra dos vizinhos) e sua criação sem trabalhar no alheio, pros outros, os Miller se diferenciavam de grande parte dos seus vizinhos do entorno. A gente do Amadeu sempre trabalhara pros outros, pois nunca tiveram terras onde pudessem trabalhar para si mesmos. Toda a vida haviam buscado emprego com Osmar Keller, fazendeiro do Cascatas. Moravam nas terras dele, tiravam erva, limpavam o terreno, cuidavam da criação, faziam carvão. Já as gentes que estavam vindo morar no Chiquinho eram estranhas, e corriam boatos de que seriam envolvidas com negócios escusos. Abel lembrou que, no dia da audiência com Luiz, estava em frente ao Fórum, conversando com um policial, quando Leitão chegou de carro, trazendo o garoto e Dora. O policial só disse ih, rapaz!, com uma expressão de descontente. Contou para Abel que reconhecia Leitão, e que aquele ali não era boa gente. Já tinha passado uma noite na cadeia. Abel acreditava que Leitão havia instruído Luiz e Dora a respeito do que eles deveriam dizer para o delegado. Ademais, os rapazes das famílias que vieram morar na terra do Chiquinho tinham hábitos que desagradavam aos Miller e a outros vizinhos. Eles gostavam de ouvir som alto durante o dia, e à noite, faziam festinhas na beira da estrada. Colocavam um sofá velho na frente de um dos portões do terreno, e ali faziam fogueira e ficavam bebendo. Em suma, ao falarem sobre o roubo e produzirem, nessas narrativas, as reputações sobre os envolvidos, os Miller se referiam à terra como elemento de diferenciação moral entre vizinhos. Pois ao refletirem sobre o tamanho e divisão dos terrenos, as qualidades da terra (se tem bastante pinheiros, madeira, lenha, erveiras, água, e espaço para a criação) e as atividades econômicas que nela são realizadas, os membros da família colocavam em questão a autonomia de seus vizinhos. Avaliavam em que medida essas outras pessoas tinham condições de se sustentarem a partir de seu trabalho na terra e, quando não era esse o caso, de que maneiras eles adquiriam renda. Picotar o terreno, na perspectiva de Abel, era uma forma de adquirir dinheiro rápido e de assentar outros sujeitos, familiares ou não. Esse processo de fracionamento rompia com o pressuposto do trabalho no que é seu, na própria terra, já que o picotar resulta na diminuição do espaço necessário para se sustentar. Por isso, essas pessoas tinham que trabalhar pros outros (o que nos Cascatas implica na maioria das vezes trabalhar pros Keller), ou buscar serviço fora, na construção civil, principalmente em Santa Catarina. Apesar de seu terreno familiar não ter sido exaustivamente dividido, os Miller também se diferenciavam entre si mesmos tendo em vista essa possibilidade de poderem se manter ou não exclusivamente com o trabalho na terra. Enquanto esse era o modo de vida de Abel, seus irmãos mais novos não obtinham ganhos financeiros por meio de atividades produtivas no
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terreno onde viviam, pois a erva-mate era de seu pai, e o grosso da criação também. Vivendo na casa e na terra de Seu Benedito, eles eram sujeitos à sua autoridade paterna. Para ganharem seu próprio dinheiro, eles também – como muitos de seus vizinhos que tinham pouca terra – precisavam sair buscar trabalho fora. O roubo realizado por Luiz se tornou assunto na vizinhança. Passados alguns dias do meu retorno aos Cascatas, fui à casa de Lislaine, cuja avó materna, Rosália, é irmã de Chiquinho. Chegue Dibe! - gritou Lislaine, convidando-me, da varanda de casa, a entrar. Provavelmente ela havia me enxergado pela janela. Sempre tem alguém em uma janela vendo a gente passar. ‘Tá fazendo o teu trecho? - ela me perguntou, falando em fazer trecho, enquanto a realização do percurso que compreendia as visitas que eu costumava fazer para ir às casas das pessoas que conhecia nos Cascatas. Achei curiosa essa forma de nomear minha atividade cotidiana de ir às casas, porque até então só tinha ouvido a expressão quando posseiros me explicavam a atividade dos jagunços, que viviam fazendo trecho: acordavam, encilhavam o burro, se armavam e saíam percorrer as áreas que deveriam vigiar. Hoje vim passear na tua casa, Lis! – respondi, usando um termo que, tal como visita, refere-se ao ir às casas dos conhecidos: passear nas casas71. Subi a escada da varanda da casa de Lislaine e comecei a tirar meus tênis, ainda fora da casa. Não tire, não tire! ‘Cê vai sujar toda tua meia! Eu tirei o tênis mesmo assim, todo mundo tira os sapatos para entrar nas casas. Ah, mas por que tirar o calçado? Era sempre assim ao entrar na casa de alguém. Faz-se que não é necessário tirar o sapato, mas se sabe que é preciso tirá-lo, para não sujar a casa com a lama e a poeira carregados nas solas. Entrei na casa de pés no chão, direto no cômodo que une cozinha e sala, a primeira à esquerda da porta, a segunda à direita, sem divisórias entre elas. Lislaine entrou num dos quartos e logo voltou com um par de chinelos na mão. Ó, calce pra não sujar tua meia72. Calcei os chinelos e caminhei até a beira do fogão à lenha, para onde Lislaine puxou uma cadeira para mim. Depois de algum chimarrão e de outras prosas, ela me perguntou sobre o roubo que havia ocorrido na casa de Abel. Queria saber se eu tinha ideia de quem havia sido o culpado. 71
Passear nas casas é uma expressão que também se refere ao ir às casas das pessoas da vizinhança, de modo semelhante ao visitar e ao andar nas casas, nos quais se adentra uma residência com o consentimento de quem lá mora. Porém, como bem apontam Dainese (2011) e Carneiro (2015), essas expressões que dizem respeito às movimentações de pessoas entre casas remetem a distintos modos de chegar e distintas relações entre os donos da casa e quem chega, de maneira que algumas dessas recepções podem ser mais cerimoniosas, enquanto outras são mais despojadas. Em Pinhão, andar e passear nas casas, e visitar, são termos intercambiáveis quando remetidos a pessoas que vivem perto, em uma mesma vizinhança. Parentes e amigos que moram em outros lugares, e pessoas que vêm de fora pela primeira vez, quando chegam, estão fazendo visita. Minha atividade nos Cascatas era tida como fazer trecho, andar nas casas, ficar passeando, fazer visita. 72 Essa é outra das gentilezas feitas pelos moradores com as visitas que tiram seus sapatos para entrar em casa: emprestar-lhes chinelos para que não fiquem com os pés no chão.
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Dizem que foi o Luiz, respondi. O Luizão, é. E você sabe quem que ‘tava com ele? Não, eu não sabia, mas para mim parecia que eram crianças. Não, contou-me Lislaine, era o Edemilson, filho daquela irmã de Chiquinho que comprara um pedaço do terreno dele. Depois do roubo, Edemilson sumiu, não apareceu mais. Dizem que arrumou serviço fora. Seu sumiço, para Lislaine, era sinal de que ele queria fugir de represálias. Mas o outro, ela me disse, o de maior que acobertou tudo, e que Luizão não contava de jeito nenhum o nome, era o Leitão. Mais tarde, conversando com Ângela, ela disse que não acreditava que a outra pessoa que estava com Luiz fosse um garoto de fora da casa dele, e de uma idade próxima. Se fosse assim ele ia ter que dividir o dinheiro e as coisas com o Edemilson, e pelo que Leco contou, Luiz parecia ter ficado com todas as moedas roubadas de Vivian. Para Ângela, era muito mais provável que os irmãozinhos de Luiz estivessem com ele no roubo. Isso explicaria por que ele tinha ficado com todo o dinheiro, e por que não quis contar quem estava com ele. Ainda com Lislaine, comentei o quanto estava chateada com o roubo, que minhas coisas haviam sido reviradas e minhas roupas íntimas haviam sido levadas ao quarto de Vivian. Era constrangedor, e a princípio eu ficara muito brava. Mas para mim, o pior foi que com isso eu perdi a convivência com Daiane, minha companheira de caminhada. Lislaine permaneceu séria perante meus lamentos. Explicou-me que as pessoas que roubavam das outras tinham tipo uma doença, e na hora pareceu-me que ela queria dizer que Daiane era assim, já que seus irmãos e irmãs eram assim e havia várias histórias sobre os roubos deles nas casas da vizinhança. Eles costumavam andar nas casas e tomarem o que viam por cima dos móveis: enfeites de cabelo, roupas, comida, dinheiro. Até o Chiquinho, avô das crianças, uma vez roubou uma galinha de um vizinho e depois foi na casa de outro, trocar a bichinha. Um dia o dono da galinha passou lá pela frente, viu ela e foi reclamar. O novo dono dela não sabia o que fazer, pois Chiquinho é que havia levado a galinha para ele. Mas não, Daiane nunca havia mexido nas minhas coisas. Veja Dibe, quem entra na nossa casa e fica reparando nas coisas da gente, é pessoa que já quer roubar, falou Lislaine. Era como se ela estivesse me ensinando a procurar sinais que revelassem que Daiane observava coisas minhas que pudesse tomar para ela. Lislaine passou, então, a falar de uma prima que vai à sua casa e não pode ver uma moeda, um doce, um brinco, um nada em cima da mesa, que pega para ela. O que ela me contava, e que havia sido explicitado nos comentários dos Miller e dos vizinhos sobre Felipe, Chiquinho, Doraci e suas crianças, é que é preciso tomar cuidado também com aqueles que adentram sua casa como convidados, os quais podem vir a roubar. Muitos desses pequenos furtos, como fica claro nesses exemplos,
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são praticados por pessoas aparentemente inofensivas: crianças, meninos e meninas, que por vezes não são somente vizinhos, mas parentes, sobretudo primos e sobrinhos. É também a proximidade, vinculada a práticas de observação de deslocamentos e de narrativas sobre esses deslocamentos que facilita descobrir quem são os responsáveis por certos roubos. Ademais, as maneiras com que esses os roubos são performatizados e recriados em narrativas, implicam a reflexão sobre as diferenças que compõem vizinhanças, parentes e o próprio interior de uma casa, onde vive um grupo de pessoas considerados como parte de uma mesma família. Com o termo diferenças, falo não só das condições de vida, trabalho e moradia, mas também de qualificações morais vinculadas a essas condições (ser trabalhador ou não, viver em terreno picotado, trabalhar no seu ou no alheio e pros outros) e a outras práticas, como o fuxico, o fazer trambique, as maneiras de criar os filhos, as formas de se movimentar pelas casas dos outros e o que se busca ao fazer isso. Essas diferenças também dizem respeito a gênero. Para uma mulher ter uma boa reputação, não é preciso que trabalhe para colocar dinheiro dentro de casa. É ao homem, idealmente, que cabe trazer sustento para a família. Se a mulher dele ganha dinheiro, e ele não, ele não está agindo como homem. Se ele não traz o sustento, também é mal visto e mal falado. Se é considerado pelos outros como trabalhador, melhor para ele. Significa que as pessoas o reconhecem como alguém que sustenta sua família de modo digno, pois trabalha para garantir uma boa vida para si e para os seus. Uma mulher precisa ser trabalhadeira, num sentido diferente de trabalho, vinculado agora a uma concepção de serviço feminino: saber cuidar de sua casa, saber mantê-la limpa e arrumada, saber cozinhar, fazer bom uso da lenha, ter uma horta que garanta certas verduras e remédios. Assim, quando uma mulher diz que está fazendo o serviço, é a essas atividades que ela se refere. Ao dizerem que tal moça é louca de trabalhadeira, as pessoas fazem um elogio a esse tipo de prática, e colocam a casa no centro das atividades que farão a boa reputação de uma mulher. Trabalhar pros outros, ou ter uma profissão estável, é bem visto e desejado. Várias das mulheres com quem convivo, no interior, trabalham: Vivian é professora, Elena é agente de saúde, Fátima é zeladora da escola. Os serviços vinculados à escola e a postos de saúde, nesse sentido, concentram oportunidades de empregos considerados mais femininos: aqueles vinculados ao cuidado e à educação de jovens e crianças, ao cuidado de doentes, à limpeza de estabelecimentos, ao preparo de refeições (como a merenda escolar). Mas isso não torna essas mulheres trabalhadeiras, qualidade que é vinculada ao que se considera uma boa performance das atividades femininas na casa e no terreno. Se por um acaso essas atividades forem ofuscadas pelo emprego, e elas deixarem os maridos sozinhos para saírem trabalhar, ou
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não zelarem de suas casas e filhos de um modo tido como apropriado, podem se tornar mal faladas. O cuidado das filhas é tido como uma responsabilidade da mãe. Tudo que uma filha faz cai nas costas da mãe, dizia-me Ângela, preocupada. Quando fuxicavam sobre suas meninas, os vizinhos ofendiam tanto a ela quanto a Abel, porém era Ângela quem deveria dar um jeito nas meninas, para evitar que os outros falassem delas. E como faz para não falarem de você em um lugar onde falar dos outros é uma das atividades constitutivas de vizinhanças, comunidades, lugares e gentes? Desse ponto de vista, a tarefa de Ângela era impossível. É à mãe, também, que cabe o dever de cuidar dos deslocamentos de suas crianças pela vizinhança, de deixá-las soltas ou em casa, de mantê-las limpas e alimentá-las. Na ausência da figura materna, o pai, os avós e outros parentes tidos como responsáveis pelos pequenos assumirão essa responsabilidade, tal qual o caso da família de Felipe, órfão de mãe. De todo modo, as observações e considerações que se faz sobre uma mulher passam por como ela lida com as crianças das quais deve cuidar. Ao falarem disso, os moradores do interior indicam os caminhos pelos quais uma mulher adquire respeito e proeminência em seus lares, famílias e comunidades. Era muitas vezes nesse sentido que as mulheres falavam umas sobre as outras, e que Ângela me mostrava o quanto sua vizinha Doraci lhe era familiar e, simultaneamente, estranha. Uma das filhas mais velhas de Dora havia crescido junto com Vivian e Alessandra, vivia na casa delas, brincando com as meninas. Era uma menina querida, contou Ângela, salientando que ela não roubava, como outras de suas irmãs. Porém, ninguém nunca me falou sobre roubos feitos por Daiane, que depois de uma certa idade, também vinha sempre àquela casa. Ficou sumida por uns tempos, e voltou a aparecer por lá quando eu comecei a ir. Daiane tem sete irmãos, e seu pai trabalha fora, com construção. O terreno em que eles vivem é pequeno, não dá para plantar, para tirar erva, para criar gado. A casa deles é de madeira, antiga, pequena para uma família tão grande. Dora, por sua vez, tem hábitos que parecem esquisitos aos olhos das outras mulheres da vizinhança. Não gosta de ir ao médico, não leva as crianças se vacinarem, e se deixasse ela tinha ganhado os filhos em casa. Todos os oito, que também são muitas crianças em comparação com a média de filhos que as mulheres de lá têm hoje em dia. Quando muito, elas têm quatro filhos. E ainda assim já é demais perto da maioria, que não passa de dois, três. As crianças de Dora se criaram soltas, ela não ligava que fossem para a escola ou não. Essa expressão, se criar solto, diz respeito ao modo com que os pais cuidam dos filhos. Deixar os filhos soltos é deixá-los fazerem o que quiserem, ficarem fora de casa por muito
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tempo, não ligar se saem ou com quem saem, o que estão fazendo. Dora também era afamada por ser fuxiqueira, e gostar de falar da vida alheia. Seu sogro, Chiquinho, tinha a mesma reputação. E uma das coisas que ele e Dora mais faziam era falar de Ângela, Abel e suas filhas. Muito antes do roubo, Ângela já me falava de suas dificuldades com esses vizinhos, e ficava muito brava quando sabia que estavam falando mentiras ou mal de Vivian e Alessandra. Ângela e Abel comentavam o quanto haviam ajudado Dora, seu marido e seus filhos com caronas doações de roupas e móveis, compras de remédios e de leite para as crianças quando estavam doentes. Por outro lado, chamaram Dora e o marido uma porção de vezes para trabalharem para eles. Na verdade, a primeira vez em que vi Daiane, ela estava com os pais e os irmãozinhos no terreno dos Miller. Os pais trabalhavam então tirando erva para Abel. Ajuda, tal como desponta nas falas dos moradores do interior, é uma doação que pressupõe uma certa disposição, uma sensibilidade perante as precisões do outro. No entanto, ajudar pode ser usado para falar de modalidades de troca e de doação muito diferentes entre si. Como destacado por Heredia (2010, p. 116), essa prática, que tem significado especial na vida em comunidade, “tem consequências ou implicações diferentes, segundo os parceiros de troca”. No interior de Pinhão, uma das formas de ajuda se dá entre vizinhos e parentes que se auxiliam no cuidado com a criação, no arrumar estradas, no fazer uma cerca, ou entre mulheres que cuidam dos filhos umas das outras, fazem o serviço doméstico quando a outra está impossibilitada. Esse tipo de ajuda, embora pareça desinteressada, envolve a produção de vínculos de convivência e confiança, e será devolvida através de outras ajudas como estas que descrevi, mais cotidianas e referentes às atividades corriqueiras do pessoal. São ajudas que não têm um tempo certo, depois de terem sido recebidas, para serem retornadas. Tratam-se de prestações mútuas que, apesar de não serem cerimoniosas, são observadas como parte do que se espera de uma boa convivência entre próximos, e caso sejam cortadas, ou não sejam retornadas, é sinal de que algo vai mal na relação. Todavia, o tipo de ajuda que os Miller davam à família de Dora ia além disso. Apesar de ter a ver com a solidariedade e com a produção de vínculos, o ajudar neste caso envolvia a doação de coisas que Dora e seu marido não poderiam retribuir: móveis, caronas, remédios, trabalho. Isso não só porque a retribuição não era esperada desse jeito, mas porque a ajuda em questão tinha a ver com diferenças, com bens que somente certas pessoas podem doar. Os Miller ajudavam Dora e seu marido porque eles são seus vizinhos, em primeiro lugar. Porém, além de serem vizinhos, eles ainda trabalham para os Miller de vez em quando. É também esse vínculo entre quem oferece trabalho e quem trabalha que está em jogo nesse
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tipo de ajuda. Aliás, é esperado daqueles que empregam pessoas, e com melhores condições, que doem coisas para aqueles que também os ajudam através do seu trabalho. Contudo, este não é um jogo de soma zero, pois a medida das coisas que são trocadas nessas ajudas não é a mesma. Nesse sentido, algumas modalidades de ajuda tanto não envolvem pessoas com as mesmas condições de existência, quanto não resultam em uma igualdade ideal. Ao contrário, o ajudar também pode produzir e mobilizar as desigualdades entre vizinhos e parentes, e contribuir na reprodução dessas diferenças. Depois da entrada de Luiz em sua casa, Ângela contou-me ainda de outros roubos recentemente realizados pelos meninos de Doraci. Uma vez, eles entraram na casa de um vizinho e conseguiram levar de lá uns quatrocentos reais. Foi por sorte do dono da casa que não haviam mexido em uma mochila que estava em cima do sofá, ou teriam pego mais dinheiro. Nesse dia, o dono da casa estava no culto, na igreja que fica perto de sua casa. Começou a se sentir mal, agoniado, e quis ir embora. Quando estava chegando em casa, um dos garotos, que havia ficado de vigia, avisou os outros, e todos eles saíram correndo. Além do dinheiro, eles também levaram uma mortadela e um pacote de salgadinhos. Ângela lembrou que essa não foi a primeira vez que eles fizeram isso com esse vizinho. Noutra vez, quando ele morava em outro terreno, mais perto dos Miller, esses mesmos meninos roubaram dinheiro da casa dele. Ao contrário de certos roubos mais temidos pelos moradores do interior, como os roubos seguidos de morte, os roubos de carros e motocicletas, ou roubos de casas nos quais os ladrões levam embora desde roupas de cama até eletrodomésticos e eletrônicos mais valiosos, os roubos dos meninos da vizinhança dos Cascatas sugerem considerações distintas. Ao mesmo tempo em que reconheciam que os garotos de Dora poderiam se tornar perigosos, e que era preciso ter cuidado pois eles roubavam mesmo dinheiro das casas dos outros, essas invasões de casas e furtos pareciam brincadeiras de mal gosto, coisa de malcriação de criança. Sempre se cogitava que eles poderiam ter encontrado mais dinheiro e levado embora, mas a princípio parecia que eles agiam rápido, sem se preocuparem em procurar muito pela casa, e mais em bagunçar tudo. Acabavam por levar embora guloseimas que gostavam e que não tinham em suas casas – o salgadinho, o iogurte, o leite condensado – e coisas para se enfeitarem, como o gel e a água oxigenada. Mais do que perdas materiais significativas, o roubo provocava raiva, o mesmo sentimento que Dona Francisca acreditava que o ladrão possui em relação às pessoas que rouba. Além disso, havia um outro homem, reconhecidamente perigoso e com quem Abel não se dá bem, que atravessa as justificativas e defesas de Luiz perante o roubo. Logo que
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cheguei em Cascatas, Vivian me contou que ao dar explicações sobre seu ato, Luiz disse que havia feito aquilo a pedido de outra pessoa, a quem Abel havia feito um desaforo muito grande. Mas Vivian insistia que o pai não havia desaforado ninguém, que aquilo era desculpa esfarrapada. Luiz também não contou quem era a pessoa desaforada. Tempos depois, Ângela contou-me que um dos filhos de Leitão havia ido até a casa deles numa época em que estavam carneando muitos porcos, e que pediu um tanto de carne e de banha para Abel. Mas Abel já tinha pré-vendido todos aqueles produtos para outras pessoas da vizinhança, e disse ao filho de Leitão que infelizmente, daquela vez, não poderia vender para ele. Quando fosse carnear de novo, o avisaria. Assim o fez, e Leitão acabou levando vários quilos de carne e de banha. Mas não pagou. Passado um tempo, Abel foi até lá cobrar a dívida. Novamente, o homem não pagou. Há uma série de ressalvas sobre cobrar dívida de pessoas perigosas. Elas podem não gostar e resolver fazer algo para o cobrador. No caso de Leitão, ele poderia ter ficado ofendido duas vezes: uma porque não pôde comprar a carne quando quis pela primeira vez, outra porque foi cobrado. Se esta é uma possível maneira de compreender o que seria o desaforo de que Luiz falou, por outro lado, Ângela e Abel nunca concordaram com essa possibilidade. Para eles, não havia desaforo nenhum: Luiz era o culpado, e Leitão o acobertara porque não era boa gente. Independentemente de quais eram de fato as motivações de Luiz, o fato de um roubo poder ser interpretado como uma cobrança por um desaforo vivido, ou como a raiva que o ladrão tem daquele de quem rouba, diz algo sobre como as dinâmicas entre vizinhos, e os sentimentos nelas constituídos, são levados em conta na compreensão que se tem sobre os roubos cujos participantes são conhecidos e próximos. Por outro lado, ao justificar a sua ação através da lógica do cobrar por um desaforo vivido, Luiz revela a possibilidade dos roubos serem uma forma de levar a público desentendimentos prévios. O episódio desse roubo, realizado em uma casa e reverberado nas relações de todos os que ali vivem, chama atenção para como ações ofensivas são problematizadas dentro de um discurso da boa convivência, do agrado, da ajuda, da fiança. O ladrão que te rouba é aquele que tem raiva de você. Luiz rouba para cobrar um desaforo vivido por outra pessoa. É preciso fazer amizade, saber conversar com pessoas perigosas para evitar que elas lancem mão do mal que carregam consigo. Felipe não rouba de Abel, pois gosta dele. Essa linguagem, carregada de sentimentos, ideais de reciprocidade e de produção de vínculos, comunica também os desafios éticos que as pessoas percorrem na vida umas com as outras. Ao cultivarem modos de conduta que tomam como virtuosos e apropriados no que diz respeito à
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produção de suas reputações, as pessoas buscam cultivar também no outro a vida tranquila que querem para si. Mas os caminhos da boa convivência não garantem paz. O que aproxima as pessoas é também o que produz suas desconfianças mútuas. Nem sempre dá certo o agrado. A vida está cheia de animais cruzando cercas e de bocas que não conversam, mas desaforam. As crianças da família que se ajuda são as mesmas que entram em sua casa para roubar. Diferenças morais e materiais entre vizinhos são vinculadas a essa linguagem e mostram que as pessoas não se veem como iguais umas as outras. Há certos pressupostos que orientam a convivência de todos – a conversa, a visita, o agrado, a ajuda -, e que em termos ideais estão disponíveis e preocupam a todos da mesma maneira, porém, o estar juntos e em relação envolve também a consideração sobre o que distingue as pessoas entre si, inclusive através dessas práticas de convívio. Se o roubo trouxe uma quebra da circulação de pessoas das famílias de Abel e de Chiquinho entre as casas umas das outras, por outro lado, ele não quebrava com a prerrogativa do cumprimentar-se em encontros na estrada e na frente dos portões. Ângela lembrava às filhas de que elas deveriam continuar dando adeus para Dora e para as crianças. Caminhando pela estrada com Ale, elas deram de cara com Dora e Daiane. Dora abriu um sorrisão, boa tarde! Ângela respondeu boa tarde de volta, ainda que achasse ridículo o sorriso da vizinha, como se elas tivessem motivo para sorrir uma para a outra. Ale não falou nada. Mas tem que dizer adeus, filha! - Ângela ensinava à garota, de um modo que mostrava que, apesar de tudo, era preciso manter uma conduta de respeito em relação aos vizinhos. Após Ângela ter comentado com Ale sobre a importância de dar adeus para Dora e a gente de Chiquinho, eu compreendi que deveria cumprimentá-los, mas tal qual meus anfitriões, nunca mais fui às suas casas. Dizia boa tarde de longe, enquanto passava pela estrada. Uma vez vi Daiane e seu irmão mais novo na frente de casa. Acenei para eles, que me acenaram de volta. Dias depois, encontrei a menina no ônibus escolar, numa ocasião em que eu e Vivian pegávamos carona com aquele transporte para irmos até a casa de sua madrinha. Vivian sequer olhou para Daiane. Eu a cumprimentei sorrindo, e ela me respondeu também sorridente, olhando tímida, de cabeça baixa. É preciso saber viver, tem que conviver. Os fuxicos, os cães que entram e os porcos que saem, os roubos desaforados das crianças, mostram como no cotidiano são tecidas as broncas e rupturas entre vizinhos, que nem por isso deixam de estar juntos. É assim, também, que abre-se a possibilidade de a bronca ficar para trás e de as pessoas continuarem a levar suas relações com respeito. Por isso Ângela cumprimentava Dora, continuava visitando Neide
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e Palmira, cujos cachorros haviam trucidado seus cabritos, e se dando bem com sua comadre mesmo com todos os fuxicos do tempo da política. Guardadas as reputações, a vida segue e novos traços continuarão sendo adicionados às pessoas, sobrepondo-se às maneiras com que elas são tratadas pelas outras.
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Capítulo V BRIGAS ENTRE FAMILIARES Até aqui, as encrencas, brigas, vinganças, broncas e desaforos foram diretamente relacionadas a pessoas ligadas por vínculos de vizinhança e convívio cotidiano. Num primeiro momento, eram questões de terra que moviam as violências praticadas pelos guardas do Zattar. Depois, nas narrativas sobre os valentes de antigamente, e sobre as brigas e encrencas entre vizinhos e conhecidos, surgiram outras composições de elementos, que também são mobilizados nas compreensões elaboradas sobre o Zattar. A presença das armas no cotidiano, a ruindade, a bebida, as brigas de família marcadas por vinganças consecutivas, as encrencas em torno de provocações mútuas, tornavam-se componentes ativos nas histórias de mortes na comunidade, demarcando também os modos com que vizinhos lidam com a violência em sua vida diária. A terra, contudo, foi deslocada dessas discussões, de tal modo que os problemas fundiários no interior circunscreveram-se aos conflitos envolvendo a madeireira e movimentos sociais. Ao fazer a genealogia das famílias com quem convivi em Pinhão, notei que sempre surgiam casos de parentes que haviam ido embora porque mataram alguém, ou de parentes que morreram assassinados devido a essas múltiplas questões que compõem o repertório das encrencas. Nessas tramas surgiam, mais polêmicas e transgressoras, as mortes de pessoas que foram vitimadas por seus próprios familiares, o que diferencia essas situações das brigas de família, concebidas como entre famílias diferentes. E ao contarem essas histórias, levantando o que motivara tais mortes, as pessoas traziam novamente a terra para o centro das disputas que levaram a essas tragédias. Os conflitos de terra, portanto, ganhavam agora outra dimensão, referida a pessoas que vivem ou viveram em uma mesma casa, e que possuíam vínculos de família. Levando isso em conta, procuro compreender de que modos o idioma das encrencas é acionado para se falar de potências realizadoras e destruidoras das relações familiares.
5.1 Irmãos ruins, afetos e terra Quando causada por uma pessoa de dentro da família, a morte matada é capaz de cindir um coletivo que idealmente se caracteriza por sua solidariedade, ou de aprofundar
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diferenças que já estavam, de certo modo, postas entre os sujeitos. Nem sempre, contudo, as mortes dentro da família são passíveis de vingança. Foi o que aconteceu com Seu Benedito Miller, com cuja família convivi intensamente ao longo de meu trabalho de campo em Pinhão, já que permaneci tanto na casa do próprio Benedito, quanto na de seu filho, Abel. Benedito matou seu irmão, Bernardo Miller, há cerca de quarenta anos atrás. Ele mesmo nunca falou comigo sobre isso. Dona Lúcia, sua esposa, e também seus filhos, comentavam que ele jamais conversou sobre o que havia ocorrido. Tomei conhecimento desse acontecimento por meio de Abel, em minha primeira estadia nos Cascatas. Eu vou contar antes que te contem, disse ele, preocupado. Porque você vai andar por aí e com certeza vão falar. Ele sabia que, assim que eu conhecesse seus vizinhos, alguém me contaria a história, e preferia que eu soubesse dela por meio dele. Abel revelou, então, que seu pai já havia sido preso, porque matou um homem, que era também seu irmão. Sem dar maiores detalhes, ele reconheceu que os dois irmãos não se davam, e que seu tio ameaçava seu pai. Não fosse Benedito ter matado Bernardo, o contrário aconteceria, e Abel é que teria perdido o pai. A morte entre irmãos, nesse sentido, era traçada pelo filho de Benedito como o resultado de uma hostilidade mútua e de um equilíbrio de forças, sendo ambos os irmãos reconhecidos como possíveis algozes. Abel não se estendeu em maiores justificativas para a atitude do pai. Nesse momento, e ao longo de todo o tempo de convívio com os Miller, esse evento era algo que se impunha como que para não ser questionado. Foi assim que Abel quis me falar antes que outros me falassem. Ele queria evitar o fuxico e esclarecer que uma questão bastante delicada marcava a trajetória de sua família. Os Miller são reconhecidos em sua comunidade como uma das primeiras famílias moradoras dos Cascatas. Seu Benedito, de setenta e quatro anos conta que seus avós paternos vieram de Curitiba, e adquiriram uma posse naquele faxinal. Depois que eles haviam se instalado, seus filhos também vieram morar nesse lugar. Os pais da mãe de Benedito, por sua vez, viviam perto dos Cascatas. Quando seu pai e sua mãe se casaram, eles permaneceram morando nas terras que eram do avô dele. Seu Benedito gosta muito de contar as histórias de sua família, e ao fazer isso destaca exatamente onde todos os seus tios, que chama de os antigos, moravam no terreno. Quando se casou com Dona Lúcia, ela, que vivia com seus pais em outra comunidade, veio morar nas terras dos pais do marido. O irmão de Benedito, Bernardo, por sua vez, casouse com Dona Ana Reis, cuja família vivia no Faxinal dos Cascatas. O pai de Dona Ana Reis, João Reis, era o inspetor de quarteirão que atuava naquela área do interior. Ele era
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responsável por fiscalizar as cercas que dividiam, na época, o faxinal das terras de cultura, e tinha autoridade para prender criminosos. Foi com João Reis que os gerentes e guardas das Indústrias Zattar fizeram um acordo quando adquiriram terras naquela região do município. Ele começou a trabalhar como um jagunço – caracterização colocada pelos posseiros da localidade –, buscando convencer seus vizinhos e parentes a assinarem os contratos com a empresa. Seus filhos e seu genro, Bernardo Miller, são relembrados como homens que também eram jagunços, pois vigiavam a vida dos moradores e tomavam o partido da empresa. Eles eram a favor do Zattar e, na medida em que ajudavam a madeireira consolidar seu domínio territorial e a impedir os moradores de prosseguirem com suas atividades produtivas, passavam a ser encarados como parte do corpo de homens de armas da empresa. Depois de se casar com Bernardo, Dona Ana foi morar nas terras da família Miller, com seus sogros, que ainda viviam lá. Um tempo depois, Bernardo fez casa no terreno do sogro, João Reis, para onde mudou-se com sua esposa. Nesse mesmo período, os pais e irmãos de Benedito e Bernardo, que viviam no terreno familiar dos Miller, foram morar na localidade de Bom Jesus, em áreas que estavam sendo loteadas pela Companhia Paranaense de Energia Elétrica (COPEL), para reassentar moradores afetados pela construção de uma usina hidrelétrica em Pinhão. Várias famílias tinham lavouras em terras próximas ao rio onde foi construída a barragem, as quais foram alagadas. Os loteamentos feitos no Bom Jesus visavam ao reassentamento dos afetados pela construção da usina. Diversas famílias, então, estabeleceram-se nesses terrenos. Os irmãos e os pais de Benedito foram para Bom Jesus, o que posteriormente incentivou-o a entrar em um dos lotes daquela área. Mesmo com esse novo lote, Benedito permaneceu morando nos Cascatas com sua esposa e filhos, nas terras de seu pai. Lá também permaneceu seu irmão Isidoro, já casado e com filhos. Bernardo, por sua vez, continuou vivendo nos Cascatas, porém, na terra do seu sogro. Quando Benedito matou Bernardo, portanto, um de seus irmãos, Isidoro, ainda vivia nas terras da família nos Cascatas. Depois da morte, contou-me Dona Lúcia, Isidoro, que também era tido como um homem ruim, foi embora para Curitiba. Benedito e ele nunca mais se encontraram, propositalmente. O marido de Dona Lúcia deixou, inclusive, de ir ao velório de um de seus irmãos, para não ver Isidoro. Quando finalmente foi preso, muitos anos depois de ter matado o irmão, Benedito permaneceu somente por um ano na cadeia. Os trâmites que o levaram a uma pena tão curta, mesmo passados tantos anos depois de ter matado Bernardo, não me foram explicitados. Além de evitar o irmão, por muito tempo Seu Benedito desviou-se das festas na igreja da comunidade. Depois que saiu da prisão, ele voltou a aparecer nesses
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eventos. Porém, nunca deixou de ir ao Bom Jesus ou de sair passear nos vizinhos. É uma pessoa prosa, que gosta de encontrar os outros para conversar e contar causos. Enquanto Benedito teve alguma restrição em sua circulação pelos Cascatas, seus filhos e Dona Lúcia continuaram a encontrar a esposa e os filhos de Bernardo na igreja, na escola, nas festas. Os filhos de Benedito e de Bernardo se reconhecem como primos, e foram incentivados por suas mães a se darem bem uns com os outros. Essa postura das mulheres é fundamental para se entender por que, também, não se fala em filhos tendo jurado vingança neste caso. Ana, seus pais e seus irmãos parecem não ter fomentado essa possibilidade de retaliação entre os pequenos, que um dia poderiam crescer e dar continuidade à encrenca. Os Reis também não iriam se encrencar com Benedito por causa de Bernardo, que tanto quanto o irmão, tinha fama de ruim. Não havia, entre os parentes de Ana, identificação o suficiente com Bernardo para levar-se adiante uma vingança, que em geral é realizada por familiares próximos ao morto. No caso de Bernardo, porém, seus próprios pais e irmãos não iriam incentivar uns aos outros a matarem mais um membro de sua própria família. Com a morte de Bernardo, sua prole diferenciou-se da dos Miller, tanto em termos de território quanto de convívio cotidiano. Isso aconteceu não só porque eles moram longe das terras de Seu Benedito, em outro ponto dos Cascatas, mas também porque houve uma divisão dentro da família quando a morte ocorreu. Se Isidoro foi embora do município e não pode se aproximar de Benedito, os filhos de Bernardo também se diferenciaram dos parentes de seu pai. Isso se vê pelo fato de que os filhos de Bernardo, mesmo levando o sobrenome Miller, são reconhecido pelos Miller de Benedito e por toda a comunidade dos Cascatas como gente dos Reis. Suas famílias, portanto, não são mais tidas como a mesma, e mesmo que se reconheçam e se respeitem enquanto primos, e por conseguinte, parentes, eles não são identificados com uma mesma gente. A prole de Bernardo passou a ser vinculada, portanto, à gente de sua viúva, Ana Reis. Mas é preciso conhecer essas pessoas para saber desses distanciamentos porque, no cotidiano, elas se aproximam umas das outras, já que moram na mesma comunidade, sempre se cumprimentam ao se verem e trocam palavras, participam de um circuito de conhecimento mais amplo entre vizinhos e parentes, frequentam as mesmas casas e eventos. Na primeira mesada de anjo da qual participei, na casa do irmão de Dona Ana Reis, Abel e Ângela foram quem me levaram. Ambos conversavam com todos os presentes, e tanto Dona Ana quanto seus irmãos e filhos foram muito cordiais com o casal e comigo. Abel, inclusive, participou do ritual de servir o almoço dos anjos, tarefa que é dada aos homens da comunidade, enquanto as mulheres rezam. São eles que enchem os pratos dos pequeninos que estão sentados à mesa.
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Porém, eles não se visitam, não adentram as casas uns dos outros como os vizinhos costumam fazer. E Dona Ana Reis jamais vai ao terreno dos Miller. Durante a mesada de anjo dos Reis, afastei-me de Ângela por um momento e conheci uma outra senhora, que apesar de não morar nos Cascatas, tinha amizade coma família que estava dando a festa. Respondi às suas questões sobre meu trabalho, explicitando que me interessava pelas histórias sobre as lutas dos posseiros com o Zattar, e sobre a violência nos conflitos por terras. Na hora em que disse isso, ela pareceu se animar com o assunto, e começou a me contar que ali tinha muita violência. A própria Dona Ana havia vivido momentos difíceis nesse sentido, pois o marido dela foi morto pelo irmão. Segundo a mulher, a morte foi fruto de uma encrenca em torno das terras da família. Benedito não queria dividir a herança do pai com Bernardo. A mulher então perguntou onde eu estava ficando nos Cascatas. Na época, eu ficava na casa de Dona Lúcia e de Seu Benedito. Quando lhe contei isso ela me disse, surpresa: mas foi ele mesmo que matou o irmão! Na hora, Ângela apareceu, e eu não soube o que fazer. Ela havia ouvido o que estávamos falando, e eu acabei apresentando Ângela à mulher com quem conversava, e disse que ela era nora de Seu Benedito. A mulher mudou de assunto e logo nos deixou sozinhas. No retorno da mesada, quando estávamos no carro, comentei com Ângela e Abel o que havia acontecido, e tentei explicar o conteúdo da conversa, temerosa de que eles achassem que eu estava fuxicando sobre a vida de Seu Benedito. Ângela me disse para eu não me preocupar. Que eu não deveria ter dito quem ela era, pois ela queria ouvir o que a mulher tinha a dizer. Eu não sabia o que dizer, estava profundamente envergonhada e temerosa de ter estragado minha relação com os Miller, que nem bem havia começado. Foi aí que Abel começou a me contar o que havia acontecido entre seu pai e seu tio. Eu lhe disse que a mulher havia comentado que a briga entre os dois fora por causa de terra. Abel contestou, e começou a contar que Bernardo queria matar Benedito. Quando ainda era criança, ele presenciou uma cena que esclarecia as más intenções de seu tio. Em um velório, perto de um fogo que os homens haviam feito fora da casa onde o defunto estava sendo velado, ele ouviu Bernardo e João Reis falando que iriam matar Seu Benedito naquele dia. Só estavam esperando ele se afastar para um canto, para dar o tiro. Abel foi até sua mãe e contou-lhe o que havia escutado. Dona Lúcia, que na época estava grávida, deu um jeito de tirar Seu Benedito do velório. Disse que estava passando mal, e pediu para ele levá-la para casa. Não comentou nada com o marido, pois ficou com medo que ele pegasse uma arma, voltasse para o velório, e matasse o irmão.
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Bernardo, tal qual recorda Abel, era um sujeito imprestável. Judiava de Dona Ana Reis, humilhava a esposa na frente dos outros com xingamentos que remetiam à aparência da mulher e à sua inteligência. Além disso, ele provocava todos os vizinhos. No tempo em que as criações viviam soltas pelo faxinal, ele saía procurar as dele e praguejava contra as dos outros, insultando seus donos. Nos bailes, era briguento, e não deixava as moças dançarem em paz. Num desses eventos, ele tomou o par de Abel, que ainda era menino, e estava dançando com uma moça mais velha. Bernardo veio até eles e disse ao sobrinho que já estava na hora de ele ir embora, e que Abel não deveria ficar ali, tomando o par dos outros. Bernardo perseguia essa moça, que era muito bonita. Ela tinha que andar se escapando dele nas estradas, porque ele queria pegá-la a qualquer custo. Em outra ocasião em que conversávamos sobre um outro caso de irmão que matou o irmão, Abel destacou que antigamente todo mundo tinha muito filho e todo mundo andava de cavalo, armado e bêbado, isso que era o bonito. Para Abel, as encrencas entre os irmãos surgiam porque no meio dessas famílias repletas de filhos, sempre tinha um fraco de pensamento. Ainda que fossem criados em uma mesma casa, pelos mesmos pais, e sob as mesmas condições, os irmãos jamais eram iguais uns aos outros. O fraco de pensamento, assim, é relacionado à valentia, algo que remete ao não reconhecimento de limites sobre quando e de que modos lançar mão de força bruta. Enquanto está no corpo, portanto, a ruindade também se expressa na mente. Mas se remete à subjetividade, por outro lado, essa formulação alude ao tempo em que as grandes famílias viviam, um antigamente em que andar armado era tido como precisão e demonstração do que é ser um homem pleno. Ao mesmo tempo em que Abel reconhecia que seu pai havia mudado com o passar dos anos, ele conformava o que havia acontecido entre Seu Benedito e Bernardo ao discurso sobre os valentes de outrora. Ele vinculava o evento a algo que os dois irmãos tinham em comum: ambos eram homens ruins, ferozes, que poderiam ser tomados como valentes. Assim, ao falar de seu pai, Abel realizava a mesma normalização que tantas pessoas haviam me esclarecido: as mortes aconteciam porque ser homem, antigamente, envolvia o porte de armas e a disposição de matar. Bernardo, ademais, provocava Benedito de todas as formas que podia. E Benedito, em contrapartida, não era de levar desaforo pra casa. Para Abel, se seu pai não tivesse matado Bernardo, o contrário teria acontecido. Poucos dias depois da mesada de anjo em que a mulher me contara que Benedito matara o irmão por causa de terra, Dona Lúcia me esclareceu a morte do cunhado a partir de outro ponto de vista, que era distinto do de Abel. Em uma caminhada que fizemos juntas para pegar o ônibus, ela foi me contando sobre o quanto seu casamento havia sido difícil. Seu
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Benedito costumava ser um homem ruim, e para ajudar, esteve preso por um tempo. Todo ano Dona Lúcia estava grávida, e mesmo assim não podia parar de dar aulas na escola, para garantir algum dinheiro para gastar com as crianças. O marido não cuidava dela, ou seja, não dava nada que ela precisava. Quando tinha que fazer seus cursos de professora, ela saía pedir carona nas estradas com um bebê nos braços e outro na barriga, porque Benedito não a levava para parte alguma. Eram tempos difíceis para ela, que teve que se virar sozinha para criar os onze filhos. Dona Lúcia conta que seu marido parecia um bicho, não sabia conversar, era agressivo. Ela contou-me, então, que Benedito matou o irmão por causa de mulher, mais precisamente, por causa de Dona Deolinda, sua vizinha de cerca, que permanece morando lá e tem a mesma idade de Dona Lúcia. Deolinda ficou casada por um tempo, mas se separou do marido e veio morar sozinha nesse terreno, que era do seu irmão. Depois de separada, ela namorou vários homens. Dos cinco filhos que teve, um é de Benedito, e diz que dois são de Bernardo. Outro seria filho de um irmão de Ana Reis, cunhado de Bernardo. E outro seria filho de Tião, chefe dos jagunços do Zattar por todo o interior de Pinhão73. Benedito tinha muito ciúmes de Deolinda. Chegava a ficar escondido no mato, mirando a espingarda no irmão de Dona Ana, quando via ele se aproximar da casa de Deolinda. Um dia, Benedito e Bernardo se encontraram no mato, num dos caminhos que atravessam o terreno dos Miller, levando à casa de Deolinda. Bernardo, segundo Dona Lúcia, era meio desmiolado, e resolveu provocar o irmão, dizendo algo que ofendeu Benedito. Para Dona Lúcia, ele queria provar que era melhor, se prevalecer sobre Seu Benedito. Bravo, o irmão mais velho deu um tiro em Bernardo. Em seguida, voltou às pressas para casa, e contou para Dona Lúcia o que havia acontecido. Queria voltar até lá, e socorrer o irmão. Dona Lúcia não deixou. Não vá lá, que ele vai te matar! Benedito permaneceu com a esposa. Mesmo ferido, Bernardo conseguiu voltar para casa. Foi Dona Ana Reis quem o levou para o hospital. Ele morreu três dias depois. Depois que matou o irmão, Seu Benedito, que já era reconhecidamente ruim, tornou-se um homem temido, de modo que até mesmo os jagunços das Indústrias Zattar o evitavam. Ele e Dona Lúcia lembram somente de um que vinha incomodá-los, desmanchando as cercas de Seu Benedito e impedindo-o de tirar erva-mate. Isso acontecia porque somente um pedaço do terreno dos Miller era de herança, o restante era posse, caso das terras que ficaram para Abel 73
Todos os filhos de Deolinda foram registrados com o sobrenome dela. Apesar de saber que um dos filhos da mulher é seu também, Benedito nunca o reconheceu publicamente como filho. Os filhos de Dona Lúcia sabem que o filho de Deolinda é seu irmão, mas não o tem como parte da família.
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e seu irmão Vitório. Contudo, Seu Benedito argumenta que essas áreas sempre pertenceram à sua família. Assim que organizaram-se na AFATRUP, no final dos anos 1980, os posseiros dos Cascatas se uniram para tirar erva-mate das áreas, à revelia das ordens do Zattar. Até mesmo as mulheres iam armadas para o mato, para tirar erva. Nesse período, os Miller tiveram uma carga do produto interceptada na estrada. Os jagunços pararam a pampa de Seu Benedito, onde iam Abel e Aurélio, que estavam levando a erva-mate para ser vendida a um intermediário. Conta-se que os homens da madeireira só não fizeram nada para os rapazes porque tinham medo que Seu Benedito pudesse estar à espreita no mato, e resolvesse atirar. Assim, frente à empresa e seus homens de armas, Benedito e seus familiares beneficiavam-se, de certo modo, da fama de ruim do pai de família, pois acredita-se que um homem que tem coragem de matar o próprio irmão é capaz de qualquer coisa, e nesse sentido, que não se deve mexer com ele. Era como se Benedito tivesse outro estatuto perante os jagunços da empresa, como se fosse mais valente que eles mesmos, o que naquele momento era bom, e poderia ajudar sua família e vizinhos. Porém, era da boca desses mesmos vizinhos que Abel temia que eu ouvisse algo sobre o trágico acontecimento que marcou sua família. Seu Benedito mudou de temperamento. Hoje é um homem mais calmo, admitem Dona Lúcia e as outras mulheres de sua família. Para todas elas, o marcador dessa mudança é o nascimento de Vivian, filha de Abel e Ângela. Vivian foi a primeira neta que Seu Benedito pegou no colo. Todos os netos e netas que vieram depois dela receberam não só colo, mas demonstrações de afeto e atenção do avô. Vindo de um homem que jamais pegara seus próprios filhos nos braços, aquele era um significativo sinal de transformação. Dona Ana Reis, por outro lado, também tinha sua própria versão do que havia acontecido com seu marido, morto pelo próprio irmão. Segundo ela, os irmãos haviam se desentendido por causa de terra, tal como me contara a mulher na mesada de anjo. Em uma visita à sua casa, perguntei à Dona Ana sobre visagens, tema que havia povoado algumas de minhas conversas pela vizinhança dos Miller, nos dias anteriores. Os vizinhos de Abel diziam que no portão dele ficava a visagem de uma velha, que pegava carona na garupa de quem passava de moto ou de bicicleta por ali. Ao cruzar a frente do portão, o condutor sentia seu veículo pesar, e quando olhava para trás, dava de cara com a velha sentada na garupa. Dona Ana se riu de minha história, e em seguida enrijeceu a face. Não é visagem que tem lá não! É um Satanás mesmo! Ela explicou-me, então, que o dianho gosta de morar em certos lugares, que escolhe aquele onde quer ficar. Foi no tempo em que ela e o falecido Bernardo moravam nas terras do
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pai dele, que Dona Ana teve certeza disso. Um dia, Bernardo chamou-a para ver algo que o havia assustado. Ele levou Ana até o antigo galpão, e apontou para uma das tábuas da parede, na qual havia marcas de duas mãos ensanguentadas. Na badana74 que ali estava pendurada também havia marcas de sangue. Todo mundo que morava no terreno ficou assustado com aquilo. Tentaram limpar o sangue, mas ele não saía de jeito nenhum. Era um sinal do coisaruim que vivia ali. Segundo Dona Ana, esse ser maligno só não atentava mais, hoje em dia, porque Dona Lúcia e Abel eram pessoas muito religiosas. Ela apontava, nesse sentido, para as diferentes dimensões da vida em família e das pessoas que dela participam. Se não gostava de Benedito, ela queria bem sua esposa e seus filhos, e os diferenciava do irmão de seu falecido marido. Através dessa concepção da relação entre o demônio, os lugares e os seres humanos, provocada pelo assunto das visagens, Dona Ana Reis inseria-me na problemática da morte de seu marido. O mal que morava na terra dos Miller, sintetizou Dona Ana, era Benedito, homem que desgraçou a família dela. Foi então que perguntei a ela o que havia acontecido. Segundo Dona Ana, Benedito queria tomar 5 litros75 de terras de Bernardo, uma quantia ínfima. Na época, Benedito negociava com os irmãos, para que eles desistissem das terras para ele. Na mobilidade dos familiares para os loteamentos do Bom Jesus, portanto, deve ter havido algum tipo de acordo pelo qual Benedito permaneceu nas terras da família. Geralmente, quando um parente vai embora do terreno familiar, ele vende seu pedaço para aquele que fica. Para Dona Ana, foi por não ter aceitado esse acordo que Bernardo acabou morto. Claramente enraivecida ao falar desse assunto, ela foi então buscar uma caixa de antigas fotografias para me exibir Bernardo. Mostrou-me uma foto dele em toda sua altivez, montado em um cavalo. Olha como meu marido era bonito! Bernardo, tal como gravado na fotografia, pareceu-me incrivelmente parecido com Seu Benedito. Em seguida, ela passou para outra fotografia da caixa, e assim prosseguiu, mostrando-me as lembranças de sua família, e levantando novos assuntos. Forte, o relato de Ana vinculava o que acontecera em seu passado à ação de forças malignas que habitam os lugares de que mais gostam, e que trabalham atentando quem está por perto. Essas percepções de Ana chamam atenção, por outro lado, para as ruindades despertadas no interior de uma família, através de processos de partilha de herança e de 74 75
Couro de carneiro curtido que se joga no lombo dos cavalos, para montaria. Um litro corresponde a uma área de 605 m2, enquanto um alqueire corresponde a 24.200 m2.
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negociações sobre o terreno familiar. A relação entre o mal e a terra adquirem, portanto, centralidade na forma com que aquela senhora dá sentido ao que se passou com sua família, aqui compreendida como seu marido e filhos. A transmissão de herança entre grupos camponeses é um tema clássico das etnografias que se voltam para ruralidades. A maior parte dos autores que trabalham com essa temática observa a sintonia entre noções de direitos e descendência, e chama atenção para a primazia que a manutenção da integridade do patrimônio familiar adquire nesses processos (BOURDIEU, 1962; WOORTMAN, 1990; SEYFERTH, 1985; MOURA, 1978). Há, nesse sentido, um conflito intrínseco à transmissão de herança, na medida em que à manutenção da integridade da terra se contrapõe o fato de que todos os filhos, ao menos em um plano ideal, têm direito a receber uma parcela do terreno. Sendo a divisão da terra correlativa à sua fragmentação, as famílias precisam realizar arranjos específicos para que essa repartição não seja excessiva, o que, consequentemente, faz com que somente certos filhos herdem de fato o patrimônio dos pais, e que as alianças matrimoniais sejam realizadas tendo como horizonte o processo de partilha da herança. A migração, por outro lado, adquire um lugar fundamental nessas dinâmicas, já que para a terra se manter integralmente ou o menos dividida possível, é preciso que alguns filhos saiam do terreno dos pais, seja para buscar terras em outro município ou localidade, seja para ir viver na cidade76. O que o modo com que Dona Ana explica a morte do marido aponta em termos de um possível horizonte das partilhas de herança, é o quanto a terra familiar, que supostamente une um coletivo de parentes a ela vinculado, também é motivo de conflitos intensos e de divisões, muitas vezes drásticas, entre pessoas que cresceram em uma mesma casa. A terra, nesse sentido, também é o lugar onde o mal de que Dona Ana me falava, gosta de morar. Além de mobilizarem concepções sobre direitos à herança, essas disputas dão outros sentidos à terra, que ultrapassam o âmbito jurídico, e misturam diferentes forças, humanas e sobre-humanas, unidas no esforço de permanecerem nos lugares em que habitam. A linguagem que as pessoas acionam para falar desses embates, por conseguinte, carrega diferentes conteúdos sobre a terra e a conformação do patrimônio familiar, os quais envolvem não só percepções sobre herança e negociações no âmbito dos direitos e relações entre irmãos, mas também concepções acerca 76
Palmeira (1977), chama atenção para como a própria organização da economia de grupos rurais envolve movimentos normais de população, e como o indivíduo que migra o faz apoiado “numa complexa rede de relações primárias, cujo núcleo é a família” (PALMEIRA, 1977, p.224). Em sua pesquisa com grupos de trabalhadores rurais na Paraíba, Garcia Jr. (1989), por sua vez, observa a importância das migrações para que os jovens trabalhadores consigam terras e, por conseguinte, sua autonomia. É indo para o Sul e ganhando dinheiro lá que se pode voltar à terra natal e adquirir sua propriedade, que é a condição para não se ser “sujeito”, para não se ter que trabalhar para os outros.
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de outras entidades com as quais as pessoas se relacionam. Assim, ao mesmo tempo em que faziam promessas a santos e santas para permanecerem em suas terras e terem plenos direitos sobre elas, e dedicavam festas em seus terrenos a essas divindades, as pessoas também poderiam reconhecer as influências do dianho nos processos que envolvem a definição da propriedade da terra. Foi quando toquei no assunto das visagens na estrada dos Miller, que Dona Ana trouxe a imagem daquele lugar como moralmente poluído, pois habitado por um ser maligno, que interage com as pessoas que lá vivem. Metaforicamente, ela comunicava também suas próprias mágoas com aquela terra, e com o dono dela, homem que matou seu marido. O dianho era percebido enquanto ser mundano, que trabalha junto dos seres humanos que moram nos lugares que ele gosta, mas não atua da mesma maneira sobre todos os que lá vivem. O demônio e os humanos são seres que interagem mutuamente, identificando-se um com o outro. Por isso, o dianho se torna atributo de alguns, e não de uma gente como um todo. Certas pessoas podem ser tidas como boas a ponto de afastar o maléfico, ou de mantê-lo sob controle. Outras realizam práticas que parecem justamente aproximá-las desse ser, tal qual o uso de certas substâncias, que tornam as pessoas endemoniadas e capazes de realizar atos que não fariam segundo os limites do que se considera possível a um corpo humano. Os membros das famílias de Benedito e de Bernardo traçam, desse modo, diferentes quadros sobre o que fomentou a encrenca entre os irmãos, que culminou com a morte de um deles. Independentemente de ter sido por terras, ruindade ou por causa de mulher, é a igualdade de interesses entre os dois homens, seja em termos de relacionamento amoroso ou de patrimônio familiar, e sua similitude em termos de valentia, que sustentam as declarações de seus familiares sobre essa morte. Ainda que os motivos sejam os mesmos que dão base a muitas das brigas e encrencas, o que marca o horror desse caso é o fato de que o algoz de Bernardo é seu próprio irmão, aquele que em termos ideais é o mesmo que si. Falar mal de sua família é falar mal de si mesmo, dizem os moradores do interior, demonstrando que há um pressuposto de similaridade entre os sujeitos ligados por vínculos familiares. Essa, no entanto, é uma idealização, e justamente por contrariar esse ideal é que as mortes entre irmãos trazem sentimentos de horror e incompreensão. Em termos práticos as pessoas lidam com isso de outras maneiras, que colocam em questão as semelhanças e solidariedades entre os membros de uma família, destacando aquilo que os diferencia entre si, e que move suas lutas. A terra, nesse sentido, é também um elemento pelo qual o pertencimento entre irmãos se transmuta em diferenças de poder e autoridade entre os membros de uma família, e em disputas que movem os direitos que determinados irmãos possuem ao terreno familiar.
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Acusações e julgamentos não se baseiam somente nas ações tomadas pelas pessoas, mas também na avaliação dos laços entre elas, afirma Firth (1974, p.218). Porém, além da importância da consideração sobre os laços, a postura das pessoas em relação ao que acham bom ou ruim tem a ver com como se conduzem em termos narrativos, ou seja, o que acham bom ou ruim falar, e que ênfases dão a suas experiências. Webb Keane (2010, p.78) argumenta que a “consciência ética” é fruto da existência de vozes diferentes e conflitantes, e que no caráter inerentemente dialógico de qualquer julgamento, as pessoas levam em consideração a perspectiva de outras para conformar a sua, e torná-la aceitável. É possível, nesse sentido, misturar argumentos e formas de tratamento distintas e às vezes até contraditórias em uma mesma narrativa. Isso faz parte dos próprios dilemas vividos pelas pessoas ao se expressarem perante situações que escapam delas mesmas, mas que marcam suas vidas e histórias. Nesse sentido, os relatos de Dona Ana, Abel, e Dona Lúcia são inseparáveis de seus próprios afetos em relação à morte de Bernardo, e ao modo com que concebem a interferência desse acontecimento sobre suas vidas, seus vínculos familiares e a própria reputação de suas famílias. As narrativas sobre o que aconteceu, por outro lado, eram elaboradas de modo a não serem comentadas, não só porque lidavam com o que não se diz, mas porque faziam-se para não serem contestadas. Cada familiar lidava com uma versão complicada das facetas da disputa entre os irmãos. Não havia choques de possibilidades, ou abertura para questionamentos. Dona Ana Reis, viúva que teve de criar filhos sem pai, tomava a morte do marido como motivada por disputas de terras e por visões sobre as relações com o dianho, um ser maligno que interage com as pessoas, causando destruições. Abel e Dona Lúcia tiravam a terra da questão e agregavam outros traços a cada um dos irmãos, que os tornavam parecidos, enquanto produziam suas distâncias. Ao mesmo tempo em que defendiam Benedito, e colocavam o problema nas afrontas de Bernardo e em suas atitudes descomedidas, a esposa e o filho de Benedito reconheciam as ruindades desse senhor, de perspectivas diferentes, que tinham a ver também com as defesas que faziam de si mesmos. Dona Lúcia se ressentia do caso que o marido tinha com a vizinha, que por sua vez também tinha um caso com Bernardo. Abel lembrava dos incômodos que o tio lhe inspirava e relacionava ambos os irmãos às condutas masculinas de antigamente, e aos homens bêbados, armados, e fracos de pensamento. Eram diferentes linguagens e confrontos que se estabeleciam nessas narrativas, apontando para distintos modos de se conceber uma morte dentro da família, e para como as relações entre os narradores, Benedito e o próprio terreno familiar, se tornavam matéria de problematização.
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Por fim, a morte de Bernardo gerou cisões dentro da família, mas não alimentou possibilidades de vingança. Os familiares dos irmãos não se envolveram em retaliações, Benedito continuou convivendo com seus irmãos e pais, exceto Isidoro, com quem rompeu definitivamente. Os filhos de Bernardo cresceram vinculados aos parentes maternos, e através deles são identificados hoje como gente dos Reis. Ainda que haja paz entre os primos, filhos de Benedito e de Bernardo, ela é mantida por bons modos de convivência que também atualizam as formas de lidar e de falar sobre essa morte. Mantendo-se cada um no seu canto, e sabendo viver nos encontros que a vida proporciona, eles também não mexem uns com os outros, não falam entre si sobre o que aconteceu. Entre os filhos e a esposa de Benedito, e os Reis, a paz que se apresenta é um sinal de respeito e de reconhecimento de que as mulheres e os filhos não são parte do confronto entre os irmãos. Ainda assim, as distâncias entre eles perduram. Por causa de terra, ou não, a encrenca entre Benedito e Bernardo permanece atuando na vida dos Miller, e tem como premissas justificativas distintas, que no fim levam a um mesmo lugar: ambos os irmãos eram ruins, e ambos queriam tomar algo de precioso do outro.
5.2 Mulheres e homens A terra, enquanto patrimônio que se evita fragmentar em excesso nos processos de herança, pode tornar-se um problema entre pessoas que são concebidas como pertencentes a uma mesma família. A terra é um elemento ativo nos modos com que os sujeitos compreendem, também, as hostilidades dentro de casais, as quais podem levar à morte de um dos cônjuges. Essa possibilidade, contudo, não se distribui por todas as casas da mesma maneira. Os casos de morte dentro de casais nos quais o patrimônio surgia como problema central, ocorreram, não coincidentemente, dentro de famílias tidas como ricas, e boas. Em ambos os casos de que tive conhecimento, também não por acaso, as pessoas consideradas ricas dentro do casal, aquelas pelas quais o patrimônio se agregava ao casamento, eram mulheres. E as duas eram membros da família Keller. As mortes, por sua vez, são compreendidas a partir de uma visão segundo a qual com o casamento, os maridos adquirem direitos sobre as terras das esposas77. Portanto, em ambos os casos que tratarei a seguir, foram 77
Tenho, contudo, certa precaução em declarar que esses matrimônios foram selados por acordos de comunhão universal de bens, pois não tive acesso, em meu trabalho de campo, a tais acordos. Porém, nas narrativas sobre essas mortes, era claro um viés de que os acordos de casamento dessas mulheres ricas eram de comunhão de
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os homens que adentraram as ricas famílias das esposas, e contraíram com isso privilégios às heranças delas. É a terra que é tida, por quem comenta essas histórias, como a motivadora da morte dentro da família. Em meados dos anos 1990, Julieta Keller matou o marido, Flávio Amarílio. Foi presa, e cumpriu dezessete anos de pena por seu crime. Quando falam sobre isso, as pessoas que vivem nas comunidades próximas a onde a morte ocorreu relacionam o ato de Julieta a uma questão de terra. A mulher supostamente não queria dividir sua herança com o marido. Contudo, os que se estendem um pouco mais na história, contando sobre as vidas e personalidades de ambos os cônjuges, trazem outras nuances para o que teria motivado Julieta a acabar com a vida do próprio esposo. Quando Ângela e Abel comentaram comigo sobre o feito de Julieta, lembraram que Flávio era bonitão e esperto, mas não tinha nenhum bem, nenhuma propriedade, quando se casou. Julieta é que era a rica, filha de fazendeiro. Muito trabalhador, porém, Flávio provou o seu valor, e fez dobrar o patrimônio da esposa. Mas havia um problema: ele era muito galinha, mulherengo. Quando Julieta descobriu que ele a traía, não conseguiu conter sua raiva. Em um rodeio, na frente de suas filhas, Flávio foi morto por um pistoleiro, a mando da esposa. O planejamento da morte foi elaborado, desse modo, com cuidado para que se realizasse em um evento público, um lugar onde homens supostamente bebem, brigam e se matam, e onde contas são acertadas. Eu nunca soube como descobriram que a morte foi mandada por Julieta. Ela foi processada, julgada, e passou dezessete anos na cadeia, de onde voltou para suas terras. A separação de um casal, inclusive nos casos que envolvem agressões físicas por parte dos maridos, é tida como a última solução possível para seus desentendimentos. Soube de dois casos de pais que chegaram a matar os genros, por não suportarem ver os hematomas das filhas, e com o argumento de que, se não acabassem com os maridos delas, eles é que as matariam, ou matariam os sogros. Uma das únicas mulheres divorciadas que conheci viveu um casamento com um homem que não só era agressivo, como pegava o dinheiro dela e gastava com fervos, ou seja, bebedeiras e outras mulheres78. Ele chegou a puxar o revólver para o pai dela em uma festa na igreja da comunidade. Assim, na vida de várias mulheres, o casamento era percebido como um caminho repleto de perigos, não só porque os maridos bens. Prefiro, por isso, pensar nessa prerrogativa da comunhão como ideal que atravessa os casamentos das mulheres em questão, mais do que como regra e obrigatoriedade, ou como acordo formal. 78 Fervo é uma expressão utilizada pelos pinhãoenses para falar em festas e locais de grande agitação, onde há música e bebida. Também pode ser utilizada para caracterizar discussões e conversas truculentas, como quando comentam que os piás ferveram na festa. Por outro lado, quando se quer falar que as pessoas aprontam, que são malandras e sagazes, também usam o termo fervo: essa menina ferve!
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poderiam ser agressivos com elas, mas porque através da mutualidade do parentesco, os homens traziam os perigos de suas histórias para dentro da vida de suas esposas e afins. Para as mulheres que vivem nas terras dos seus maridos, sair de um relacionamento pode ser complicado se elas não tiverem o apoio de seus familiares. Ao deixar as casas dos pais, é esperado que elas se virem sozinhas, e se acertem com os maridos, que agora devem cuidar delas. Voltar para a casa dos pais, ou pedir ajuda a eles, pode não ser uma possibilidade, ainda mais quando a família de origem vive longe. Porém, no que diz respeito a mulheres com terras, separar-se implicava, nos discursos de quem contava suas histórias, deixar seus maridos partirem com um pedaço do que era delas. Para Julieta, traída e enraivecida, separar-se não era uma opção plausível. Somada à questão da herança, estava o fato de que traição, sobretudo por parte dos maridos, não é um motivo considerado bom o bastante para que um casal se deixe. As traições masculinas são tratadas como algo corriqueiro, ainda que fomentador de fuxicos e escândalos. No caso de Julieta, a traição teria sido o estopim do desejo pela morte do marido. Mas esse não é o ponto central da maior parte das narrativas sobre esse acontecimento, as quais tomam o ato de Julieta como motivado por terra, por ela não querer dividir a herança com Flávio. A traição não é tomada pelos outros como o problema do casal. A dificuldade da situação estava na mulher não querer se separar para ver o marido traidor partir com a fortuna sobre a qual ele havia adquirido direitos com o casamento. Assim, esses direitos também emergem como algo que costura a união do casal, servindo de empecilho ao seu divórcio. Porém, quando a herança ainda não foi devidamente repartida, e as terras não estão em seu nome, a mulher pode se separar sem perder seu patrimônio. Mas nesses casos, os maridos é que podem ser contrários à separação, já que deixarão os casamentos sem nada. Em 2013, Marieta Keller foi morta a facadas pelo marido, Nereu, em sua própria casa. Soube dessa notícia por meio do jornal local, acessado pela internet, antes de ir a Pinhão. O jornal, no entanto, não comunicava os nomes dos envolvidos, somente explicitava que uma mulher havia levado um grande número de facadas, causadas pelo seu próprio marido, em uma localidade do interior que não era próxima aos Cascatas. Foi quando estava no município que perguntei a mulheres vinculadas à família Miller, reunidas na casa de Cecília, a mais nova das filhas de Dona Lúcia, sobre o ocorrido. Dona Lúcia, que estava presente na ocasião, me respondeu apreensiva que aquilo havia acontecido com uma pessoa muito próxima de sua família, e ao contrário do que o jornal havia apresentado, a falecida morava perto dos Cascatas. Marieta, disse Dona Lúcia, era parente de sua filha Hortênsia, que é casada com Saulo, irmão da vítima. Além disso, ela era mãe de uma
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grande amiga de Alessandra, neta de Dona Lúcia. Todos no Cascatas conheciam Marieta, tanto porque ela morava em uma comunidade próxima, quanto porque sua família era considerada uma boa família daquela região, na medida em que eram gente rica, abastada. Várias das pessoas que comentaram essa morte salientavam justamente as boas condições de vida dos Keller. Ninguém imagina que isso vai acontecer numa família boa. Se fosse gente pobre, iam dizer que foi por causa disso. O discurso da pobreza, enquanto algo que supostamente normalizaria certas violências sob os argumentos de carência e ignorância, era desse modo criticado por algumas pessoas que conheciam a família de Marieta. Havia, subjacente a esta, uma crítica às famílias ricas, que julgam-se moralmente superiores aos pobres. Mais forte ainda, entre algumas mulheres, era a ideia de que essas mortes precisavam acontecer com gente rica para se tornarem motivo de preocupação de todos, e encontrarem alguma solução jurídica. Enquanto os ricos tinham condições de pagar bons advogados e efetivamente serem bem sucedidos em julgamentos, os pobres não podiam arcar com esses custos, e quase nunca encontravam solução para seus problemas pela via jurídica. Depois de Dona Lúcia declarar quem era Marieta, Mariliza (nora de Dona Lúcia) e Cecília seguiram a prosa, cada uma contando e comentando um bocado sobre a morte da mulher. Diz que foi por causa de terra, começou Cecília. Marieta queria se separar do marido, Nereu, há algum tempo, pois não gostava mais dele. Ele era de outro município da região, e sua família, ao que parecia, tinha boas condições de vida. Nereu não aceitava se separar de Marieta, pois almejava as terras da esposa, e permanecia traindo-a com outras mulheres. Marieta, então, também começou a traí-lo, esperando que com isso ele a deixasse. Ainda assim, Nereu não queria se separar, pois a mulher era rica. As terras em que eles moravam eram da família dela, de modo que com a separação, ela não sairia de lá. E ele, por sua vez, não queria perder as terras da esposa. A tensão entre eles chegou a tal ponto que Nereu encheu a esposa de facadas. Dona Lúcia, expressando repulsa, lembrou que ele esfaqueou o corpo todo de Marieta, e que nas nádegas, curiosamente, ela tinha muitos cortes. A mulher chegou viva ao hospital, e resistiu à morte por cinco dias, até que faleceu. As mulheres da família Miller, que participaram do velório, ressaltaram o estado de deformidade em que ficara o corpo de Marieta, praticamente irreconhecível de tão inchada. Os agentes da funerária sequer conseguiram ajeitar os braços dela sobre o tórax, pois eles não saíam da posição reta, devido aos machucados causados pelos cortes de facão. O caixão estava lacrado, com uma abertura que permitia ver somente o busto e a face de Marieta. Mas o pior, para as mulheres, foi que o
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corpo chegou ao cemitério coberto por um mero lençol. Para elas, aquilo era extremamente desrespeitoso com a falecida. Ao comentarem a morte de Marieta enquanto experiência delas, as mulheres privilegiavam o velório, local onde elas tiveram contato com o corpo morto, e onde ouviram outras pessoas comentando sobre o que havia acontecido. A maneira com que se morre, o estado do corpo, se o caixão está aberto ou fechado, se havia bastante gente no velório, são temas que costumam ser comentados após esses eventos. A exposição do corpo é fundamental, pois diz como foi que a morte aconteceu, ou seja, se foi uma morte digna, ou uma morte que horroriza, na medida em que o corpo foi deformado e descaracterizado por um agente externo79. A quantidade de pessoas presentes, e quem são elas, também revela a proeminência da pessoa falecida em sua comunidade. Se são muitos os que dela vêm se despedir, é um sinal de que se tratava de alguém querido, membro de uma família querida, pois é aos que permanecem vivos que os presentes dirigem seus pêsames e homenagens80. Foi também no velório, conversando com outras pessoas, que as mulheres souberam como Marieta morreu. Naquele dia, ela havia saído para vender carne de gado na vizinhança. Quando voltou para casa, encontrou o marido bêbado, enraivecido. Eles deram início a uma discussão e ele pegou um facão, com o qual a atacou. Marieta lutou com Nereu e conseguiu sair de sua casa, gritando. O sobrinho dela, que morava no mesmo terreno, na casa da irmã de Marieta, ouviu os gritos e percebeu que havia alguma coisa errada. Correu para acudir a tia. Quando se aproximou, viu que Marieta estava caída de costas num buraco, e que Nereu estava esfaqueando a mulher. Assim que Nereu percebeu a aproximação do rapaz, fingiu que fazia carinho na esposa. O garoto, entretanto, percebeu o que estava acontecendo e correu pedir ajuda. A irmã da mulher esfaqueada e seu marido, mais o menino, voltaram para socorrer Marieta. Nereu permaneceu perto deles o tempo todo, conversando, como se aquilo tudo fosse corriqueiro. E a irmã da falecida, sem saber o que fazer, ficou ali conversando com o homem, receosa de que ele também pudesse tentar matá-la. Assim que Marieta foi encaminhada pro hospital, Nereu fugiu. Dias depois se apresentou à polícia, com o advogado. Naquele momento, anterior ao julgamento, ele permanecia solto. Atualmente, está preso. Mas na conversa que tive com as mulheres na casa 79
Falo, nesse sentido, não somente de mortes matadas, mas de pessoas que morrem queimadas, atropeladas, que são atingidas por raios, que morrem por causa de quedas de grandes alturas, enfim, qualquer situação em que o corpo fique em tal estado que não seja mais parecido com sua forma viva, e desse modo, com a pessoa que nele existiu. 80 É interessante que, quando comentam as mortes de jagunços e pistoleiros, os moradores do interior destacam a presença de poucas pessoas nos velórios, e sempre enfatizam o comparecimento do gerente do Zattar e de outros homens reconhecidos como grileiros, que contratavam esses homens de armas. O velório, nesse sentido, é também um evento que expressa a relação do morto com os vivos, e as pessoas com as quais ele é associado.
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de Cecília, quando fazia um mês que Marieta havia morrido, elas opinavam que a polícia não iria resolver aquele problema. Se for para resolver é o Saulo que tem que ver o que vai fazer, disse Mariliza. Ela deixava implícito, nessa formulação sobre resolver, que Saulo é que teria que fazer algo para vingar a morte da irmã. Porém, as mulheres começaram a discutir que Saulo não faria nada no sentido de buscar vingança, pois os filhos de Marieta estavam do lado do pai, e não queriam saber de resolver a situação. Tal como elaborada pelas mulheres da família Miller, a discussão sobre a vingança levantava elementos comuns à produção de processos de retaliação em torno de mortes matadas, no geral. Numa situação de morte, é aos familiares próximos ao morto que cabe a decisão por resolver o problema, ou seja, de dar a retaliação adequada – no caso, matar – aquele que matou seu ente querido. Sempre que há filhos envolvidos, sobretudo se forem filhos homens, é sobre eles que essa decisão parece pesar mais. O resolver pela vingança, nesse sentido, não é uma obrigação automática, mas algo que envolve um desejo mútuo dos parentes próximos que ficam de luto, desejo que é carregado de conteúdos emocionais em torno da morte e que é alimentado pela relação afetiva com quem foi morto. Ao mesmo tempo, o resolver se relaciona a expectativas mais amplas, que são cunhadas nas tramas de relações entre parentes, vizinhos, amigos e conhecidos, e que estão envoltas nas considerações sobre a vingança enquanto forma de punir uma morte matada. No caso de Marieta, as mulheres supunham que a polícia não daria a punição necessária a Nereu. Para resolver, mesmo, era Saulo, irmão mais velho de Marieta e pessoa relegada ao status de autoridade da família naquele momento, quem deveria colocar um plano de vingança em ação. Saulo adquiria centralidade nessa hora porque seu pai, já de idade, viúvo, e com a saúde debilitada, não era mais visto como uma pessoa em condições de força para realizar esse tipo de plano. Mas Marieta e Nereu tinham filhas com idades próximas aos dezesseis anos, e um filho homem, com mais de dezoito. Nenhum deles apoiava uma vingança contra o pai. Eles não aceitariam, após terem perdido a mãe, perderem também o pai. E sua vontade tinha proeminência sobre a do irmão da mãe, que acataria a decisão dos sobrinhos. Tanto quanto outros assassínios, os que acontecem entre membros de uma mesma família pressupõem discussões em torno do como resolver a situação, ou seja, como buscar sua retaliação, o que leva em grande parte das vezes a uma discussão sobre fazer vingança. A tessitura do como agir, entretanto, será elaborada dentro da família, não por uma pessoa ou outra, mas por várias delas, algumas tendo maior peso na decisão, segundo sua proximidade com o morto. É disso que, de certo modo, as mulheres estavam falando quando diziam que
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Saulo não ia resolver, porque os filhos estavam do lado do pai. Isso não significa, entretanto, que os filhos fossem favoráveis ao que o pai havia feito. Na verdade, eles não queriam mais derramamento de sangue em sua família, e ficar órfãos de ambos os pais. Pois se para Saulo, Nereu poderia ser tomado como alguém “de fora” da família, um homem que casou com sua irmã, mas que não era visto como alguém de sua própria casa, para os filhos de Marieta, Nereu sempre será seu pai. Em uma visita minha e de Dona Lúcia à casa de sua cunhada, Belmíria, grande parte do assunto da prosa girou em torno de Marieta. As duas senhoras comentavam que antes mesmo do esfaqueamento, Marieta já sofria agressões de Nereu. As filhas de Celina, filha mais velha de Dona Lúcia, haviam flagrado o homem batendo em Marieta dentro do carro do casal, na estrada dos Cascatas. As vizinhas, com suas observações e conversas sobre as vidas umas das outras, sempre sabem de mulheres próximas a elas que sofrem agressões de seus maridos. Contudo, isso só se abre para a conversa quando algum escândalo acontece, como quando se ouve gritos vindos de uma casa, ou quando uma mulher aparece machucada.
Na maioria das vezes, as pessoas buscam não interferir nos problemas que existem no interior dos casamentos das outras. Ao lembrar de certas mulheres da Bélgica que estiveram em sua localidade, por intermédio de uma ONG que atuava em Pinhão, Julia, filha de Francisca, disse ter estranhado elas dizerem que, na sua terra, quando uma das mulheres da comunidade está passando por alguma situação complicada – inclusive no casamento – as outras se unem para ajudá-la. Aqui não é assim, cada um cuida do seu
- disse Julia,
reprovando o modelo de intromissão das belgas. Há, portanto, uma certa ética de tratamento através da qual se pode compartilhar conhecimentos sobre aquilo que seus vizinhos e parentes vivem, mas não é apropriado tentar intervir, a não ser em casos de doença e de necessidade. Ajudar o vizinho que precisa de um remédio, de uma carona, de alimento, de trabalho, é o esperado daqueles que vivem em comunidade. Interferir nas relações pessoais no interior das famílias, por outro lado, é ultrapassar um limite, pois implica movimentar coisas que se referem à intimidade de um casal e de seus filhos, coisas que são tidas como só cabendo a eles. E na medida em que a violência também é uma questão de mutualidade, as vizinhas temem se envolverem na situação, levando-as para dentro de suas próprias casas. O conhecimento e o silêncio, portanto, caminham juntos no sentido de produzir distanciamentos entre os que vivem diretamente essas agressões, e aqueles que não participam de suas casas, mas que também acabam tocados por esses problemas e que têm medo de tomarem parte em algo que a princípio não lhes diz respeito.
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Mas não eram somente os comentários sobre as agressões de Marieta que surgiam nos fuxicos sobre a morte da mulher. As pessoas também sabiam de seu relacionamento com Potoca, homem que morava perto da casa de Belmíria. Potoca chegou até a ganhar um carro de Marieta, veículo que usou para fugir, quando ela morreu. Ele foi embora por medo, tanto de Nereu, quanto de ter que dar algum testemunho à polícia. Nereu, aparentemente, era uma pessoa calma. Mas já tinha se metido em encrenca, e ameaçado matar um homem em uma festa que estava para acontecer. Por causa disso, a polícia foi chamada para comparecer no evento, e ficar ali durante todo o seu curso. Apesar disso, poucas eram as pessoas que falavam dele quando conversavam sobre a morte de Marieta. A mulher é que se tornava a principal pessoa discutida nas narrativas das mulheres sobre o caso. Com o julgamento de Nereu, as conversas passaram também a agregar comentários sobre
a produção de testemunhos no tribunal, especialmente aquilo que o réu e suas
testemunhas alegavam em seus discursos de defesa. No que diz respeito ao julgamento do assassinato de Marieta Keller, Pedrinho Ribas, fazendeiro que havia se colocado publicamente a favor de Nereu desde a morte da mulher, surgia como testemunha polêmica. Logo depois que a mulher foi morta, Pedrinho, reconhecido como pessoa que só tem boca para falar mal dos outros, passou a tecer comentários que denegriam a reputação da mulher, referindo-se ao caso dela com Potoca. Além disso, ele defendia que ela mesma tinha se esfaqueado. No tribunal, ele clamou que Nereu agiu em legítima defesa, porque ela o traía. Você veja se isso é motivo para matar a mulher daquele jeito? – comentavam as mulheres da família Miller, assombradas com as palavras do fazendeiro. Aos poucos, portanto, a morte de Marieta se transmutaria em narrativas que mesclavam experiências pessoais com considerações sobre uma ética da boa vizinhança, fuxicos, traições, um conjunto de conhecimentos que delineavam as reputações da mulher e de seu marido, e que davam outros contornos à morte. A terra era somente um dos problemas entre o casal, que revelavam uma afinidade mais problemática, cercada por desgostos e pela ganância de Nereu, que não aceitava abrir mão do patrimônio da esposa, a rica. Assim também, as narrativas revelavam os modos com que pessoas de dentro e de fora da família lidavam com aquela situação, e a polêmica figura de Pedrinho, que passa a advogar pela legítima defesa de Nereu. As histórias de Julieta e de Marieta trazem questões distintas para a discussão sobre violência em família, se comparadas à mortes entre irmãos. Apesar de terem suas diferenças, irmãos são sujeitos que vêm de uma mesma casa, e que se distinguem uns dos outros ao longo de suas vidas, por meio de processos de herança, de seus casamentos, de seus jeitos e
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naturezas, seus desejos e deslocamentos. Com casais, entretanto, o movimento é, para usar os termos de Carsten (1997), de incorporação da diferença em uma mesma casa, que na maior parte das vezes será construída nas terras dos pais de um dos cônjuges. Esses processos, contudo, não são formatados. Há casos de mulheres que vão para as terras dos maridos, e vice-versa, o que trará diferentes implicações no que se refere à imbricação entre gênero, parentesco e território. Ambas as mulheres eram tidas como ricas. Assim, elas é que tinham proeminência sobre seus maridos que, como homens que vieram morar nas terras dos pais das esposas, estavam em uma posição de maior proximidade e responsabilidade com os parentes delas. A terra, enquanto patrimônio, era delas. Mas os maridos também detinham autoridade sobre suas famílias e sobre as terras das esposas. A terra, que supostamente daria proeminência à esposa frente ao marido, era incorporada, por meio do casamento, pelo marido. No entanto, essa é uma prerrogativa que diz respeito diretamente à salvaguarda da união do casal, que não deve se separar. Falar que uma morte foi por causa de terra, é, dessa maneira, falar também da impossibilidade de separação dos cônjuges, que deveriam permanecer juntos, e superar seus problemas, inclusive as traições. Separar-se dos maridos não era uma opção para essas mulheres. Enquanto Julieta perderia parte de sua terra, Nereu perderia a sua parte da herança de Marieta. Todas as traições, os casos amorosos que os cônjuges viviam aos olhos dos vizinhos, e que poluíam sua vida conjugal, adquiriam pouca relevância para os outros, que tomavam a terra como causa da morte de pessoas que têm relacionamentos fora do casamento. Se os cônjuges precisam permanecer juntos para que seu patrimônio não seja dividido, a terra não é só um bem, mas um construto moralizante, que sustentaria algo próximo ao que Mayblin (2010) chama de “simetria de preocupações morais” a partir da qual a relação marido e mulher é concebida. Analisando os modos com que os moradores de Santa Lúcia concebem a violência conjugal, a autora percebe que para além da distinção binária entre masculino e feminino, e dos meios diferentes pelos quais homem e mulher adquirem seu poder dentro do casamento, as preocupações morais acerca do “orgulho” e do “amor” são comuns a marido e esposa, e conduzem o casamento a alegrias ou tristezas. Nos casos que analiso, contudo, não são sentimentos que despontam nos discursos sobre a união matrimonial, mas sim a própria terra. Essa “simetria”, então, parece justamente tirar a riqueza que empoderaria a mulher perante seu marido, que vem morar nas terras da esposa, e se torna um patrimônio conjugal. É isso que essas mortes comunicam, para quem as comenta. A terra, portanto, é o que une e, ao
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mesmo tempo, traz consigo as sementes de discórdia passíveis de fazer um cônjuge destruir o outro. Enquanto se aceita a fragmentação da terra familiar entre irmãos, os cônjuges, por outro lado, devem uni-la e consolidá-la. Isso significa, por outro lado, admitir que os maridos entram em disputas de terra e autoridade com suas mulheres e seus sogros, e não simplesmente ganham o patrimônio delas através do casamento. Por aí, também entram em cena as diferenças e contestações que balançam esse ideal de “simetria” dentro dos casais. Ainda que as mortes aqui discutidas estejam relacionadas a processos de distinção e de fissão dentro das famílias, essa destruição dos vínculos familiares aparece com maior força nas decisões sobre vingança, que não ocorre nos casos de Benedito e de Nereu. Há, nesse sentido, um atravessamento entre as capacidades dos filhos e dos irmãos de decidirem sobre as possíveis retaliações, de modo que a morte dentro da família também será lidada e inserida no cotidiano por meio da “mutualidade de existências” que, nos termos de Sahlins (2011a), caracteriza os parentes enquanto membros uns dos outros, que participam de modos intrínseco de suas vidas. Por fim, na medida em que o parentesco é um processo de tornar-se parente (CARSTEN, 1997), a terra, concebida em estreita relação com os laços familiares daqueles que nela vivem, também está em contínua formação. Podemos, deste modo, pensar nas implicações que a violência tem sobre o solo que conforma o patrimônio familiar. Se admitirmos que, apesar de seu caráter destrutivo, o assassinato produz corpos, nomes e subjetividades (FAUSTO, 1999), é possível vislumbrar que, nas histórias de mortes em família, também está em jogo a produção simultânea de parentes e da terra. Esta, por sua vez, é representativa do ideal de união conjugal e entre familiares, e da autonomia e poder de uma família. É por esta via, porém, que ela pode incorporar o mal, como me esclarecia Dona Ana Reis. A violência, nesse sentido, também produz a terra e as pessoas que nela vivem, e é inscrita no território e nas tramas da vida familiar. E enquanto problema concebido em família, a questão da terra não se define somente pela autoridade do pai e de seus filhos homens, mas mobiliza também as mulheres nos arranjos referentes ao território, e consequentemente, nas mortes dentro da família. Além de trazerem perigos para a família do marido por meio dos seus próprios parentes, ou de envolverem suas próprias famílias nos perigos carregados por seus maridos, elas são fundamentais na tessitura das relações que contribuirão para a estabilidade, fragmentação e dissolução da propriedade de uma família. A terra surge como um grande divisor tanto nos conflitos dentro da família, quando no caso dos conflitos entre as Indústrias Zattar e as pessoas que vivem nas terras que a madeireira adquiriu no interior. Na tessitura desses conflitos, a terra se articula a perspectivas
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sobre propriedade, autoridade, poder, família, moradia, e relações que envolvem outros seres para além dos humanos, como os animais, as árvores, as divindades e o dianho. A terra, portanto, é compreendida em relação a uma série de outras problemáticas e elementos que se articulam de modo diferente em cada luta e disputa que nela se dão. Essa articulação, por sua vez, não acarreta num modo único de se compreender o território e os conflitos por ele, mas é feita e refeita constantemente pelas pessoas que reclamam sua relação com determinado terreno, e seus direitos sobre ele. Posto isso, retomo a seguir a temática das disputas das terras da madeireira. Depois de ter discutido a violência entre pessoas mais distantes, entre vizinhos e entre familiares, chego a um ponto em que essas tramas se unem, em terras disputadas por famílias de proprietários, guardas do Zattar, e pelas que compõem os movimentos sociais.
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Capítulo VI TERRAS E LUTAS
As terras adquiridas pelas Indústrias Zattar ao longo de sua expansão territorial pelo município de Pinhão são hoje um ambiente marcado pela presença de diversos movimentos sociais. No início dos anos 1990, pessoas que moravam em terras do Zattar, e que viviam uma série de interdições às suas atividades produtivas e ameaças contínuas dos homens de armas da empresa, organizaram-se no Movimento dos Posseiros de Pinhão. Desde então, elas conseguiram permanecer nas áreas onde viviam, e adquiriram autonomia sobre as mesmas. Hoje, contudo, há outros movimentos nas áreas da empresa, os quais estão em plena atividade de ocupações de terras, e em diálogo com os órgãos públicos na busca pela regularização de assentamentos e de Reservas de Desenvolvimento Sustentável nos antigos terrenos da madeireira, ofertados ao INCRA. Esses coletivos de luta pela terra correspondem ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), à Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses (APF), e ao Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Junto à diversidade de movimentos sociais, as terras onde essas novas ocupações foram estabelecidas apresentam também outros moradores, alguns dos quais decidiram unirse a esses coletivos, enquanto outros se contrapuseram a eles. Assim, através de meu trabalho de campo pelo município, não foram só o número de organizações de luta pela terra e a abrangência das áreas da madeireira que se tornaram visíveis. Ficava claro, também, que havia uma multiplicidade de agentes em antagonismo na disputa pelas terras da madeireira, dentre os quais famílias de proprietários de terras, e até mesmo guardas da empresa. Além disso, durante o tempo em que realizei a pesquisa, houve novas ocupações de terras organizadas pelo MST em Pinhão, as quais ocorreram em terrenos de outros proprietários que não vivem no município. Desde que iniciei meus trabalhos, houve continuidade no processo de ocupação das terras do Zattar, e nesse sentido, um aumento significativo no número de acampamentos e de acampados em Pinhão, o que não se refletiu, porém, na aceleração da regularização de assentamentos. No ano de 2015 o MST promoveu uma série de manifestações em Brasília, nas rodovias paranaenses, e na sede do INCRA em Curitiba. Em novembro daquele ano, houve uma reunião em um dos acampamentos em Pinhão, da qual participaram o Superintendente do INCRA/PR, técnicos do órgão federal, o prefeito de Pinhão, lideranças e membros do MST, da Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses, e do Movimento de
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Posseiros. Novamente, o órgão federal anunciou o início dos trabalhos técnicos para a formalização dos assentamentos nas áreas ofertadas pela empresa madeireira. Diversas são as situações de enfrentamento, agressão e ameaça que surgiram nessas ocupações de terras mais recentes. Longe de poderem ser estereotipadas em um antagonismo do tipo Zattar versus movimentos sociais, essas novas disputas trazem à tona a multiplicidade de laços entre agentes, coletivos de luta pela terra, terra, madeireira, e do mesmo modo que as situações que venho observando até aqui, abrangem os vínculos das pessoas com suas famílias e vizinhanças. A convivência entre esses diferentes agentes, suas reputações e potenciais agressivos, suas relações de moradia e parentesco, sua propensão ao estabelecimento de alianças, enfim, a mutualidade que caracteriza a vida entre próximos, emergem aqui novamente como problemática. Agora porém, essas questões modulam conflitos de terra que ultrapassam a família e os vizinhos, e adentram a esfera dos direitos individuais e coletivos de pessoas vinculadas a certas bandeiras de luta, e por conseguinte, a certos projetos políticos de reforma agrária/reconhecimento territorial. Nos termos das concepções dos moradores do interior, a casa é expressiva da presença de uma família em determinada terra e de seu direito de posse, modo de ocupação bastante expressivo no município. Por outro lado, a casa também tem algumas características jurídicas importantes, que garantem o reconhecimento de direitos sobre a terra. Para obter a usucapião, por exemplo, as pessoas precisam ter moradia habitual na área há pelo menos 5 anos, e nela exercer atividades produtivas. Tendo em vista os modos com que as agressões referentes à terra se constituem, a casa é destacada como centro das ameaças vividas por pessoas que disputam determinadas áreas. Expressão material da presença de uma família na terra, e símbolo de sua existência enquanto coletividade que habita determinada área, a casa torna-se, através desses conflitos, um lugar de inscrição de violências. Ainda que a ausência de certos lugares e encontros pessoais seja uma tática importante no repertório daqueles que vivem ameaças diretas, quando a bronca é por causa de terra, não há como evitar estar presente na área disputada. Por isso, as três situações que analisarei a seguir têm em comum não tanto a ausência, mas sim o enfrentamento direto. Nelas, as pessoas se perseguem e se provocam, expulsam as outras de suas casas, queimam moradias, armam emboscadas para matar seus inimigos, exibem armas publicamente, ameaçam diretamente seus desafetos. Aqui, também entram em questão as maneiras com que os moradores lidam com homens perigosos que vivem por perto, e como falam sobre a presença da violência em seu cotidiano acionando seu conhecimento sobre vinganças.
brigas, encrencas e
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6.1 Terra e desaforo Na região do Faxinal dos Caldas, como descrevi anteriormente (Cf. Capítulo 2), permaneci na casa de Seu Lucas Teles, que vivia no terreno familiar de seu sogro e tio, Laércio Silva. Conheci a família por intermédio de Joaquim, senhor vinculado à AFATRUP e ao Movimento de Posseiros, e que também atuava junto ao MST. Foi Joaquim quem articulou o acordo com esse movimento social, para a ocupação das terras do Zattar em Pinhão. Ele conhecia Seu Lucas, que participava de um acampamento do MST, e me levou até a casa da família desse senhor, onde eu ficaria no Faxinal dos Caldas. Por meio de Joaquim, fui apresentada também ao jovem casal Cristiano e Rafaela, membros do MST que moravam no acampamento, e que me receberam em sua casa em certos momentos, levando-me conhecer seus vizinhos acampados e seus parentes que vivem em outras terras no Faxinal dos Caldas. Cristiano nasceu e cresceu no Faxinal dos Caldas, em terras que eram de sua bisavó materna, onde hoje vive sua mãe. Rafaela era de outra comunidade, que fica em uma área de campo, fora da grande região do Faxinal dos Ambrósios, onde localiza-se o Faxinal dos Caldas. Ela se casou com Cristiano depois de ele ter construído a casa para eles morarem no acampamento81. Eles vivem uma vida dura como acampados. Em sua casa, assim como naquele acampamento, não há energia elétrica. Na casa deles também não há água encanada, de modo que Rafaela ia todos os dias até uma nascente, coletar água com baldes e galões. Cristiano trabalha para outros moradores da região, em atividades como a colheita de erva, o corte de lenha, ou roçando terrenos. Três meses antes de eu ter ido à sua casa, os acampados haviam recebido a visita de um oficial de justiça, que portava uma ordem de despejo, a qual acabou não se efetivando. Segundo Cristiano, a polícia recuou ao notar que os sem-terra viviam em casas boas, ou seja, casas de madeira, com assoalho e telhado, o que atestava sua presença na área há um tempo considerável. Vivendo na área há cerca de sete anos, sem garantias de sua regularização enquanto assentamento, os membros do MST conviviam cotidianamente com o medo de serem expulsos de lá. Cristiano e Rafaela participavam intensamente das mobilizações do MST. O envolvimento de Cristiano com os movimentos sociais teve início em 2005, quando o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), veio ao Faxinal dos Caldas para fazer uma reunião na igreja católica de sua comunidade, da qual ele e Rafaela são membros ativos, 81
É relevante, nesse sentido, que depois de alguns meses acampados em barracos, na lona, os membros dos acampamentos do MST em Pinhão tenham construído casas nas áreas que ocupam. Nesse acampamento em particular, as casas são feitas com tábuas de madeira, e seguem o formato habitual das casas do interior, em que sala e cozinha não são divididas por paredes, e os quartos, localizados na parte de trás da residência, se abrem para esse ambiente da sala/cozinha.
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participando de grupos de oração e do próprio conselho da igreja. Naquela época, o MPA planejava fazer uma ocupação nas terras do Zattar nos Caldas, projeto que não foi levado adiante. Dois anos depois, um primo de Cristiano comentou com ele que o MST iria entrar naquela área, e chamou-o para participar da ocupação. No começo, ele conta, membros de outros acampamentos, próximos à antiga Zattarlândia, vieram ajudá-los a se organizarem na terra. Porém, Cristiano só entrou nela, efetivamente, em 2008, um ano depois de o acampamento já estar consolidado. Desde então, ele passou a assumir responsabilidades dentro da organização, de modo que hoje é reconhecido como liderança daquele acampamento. Seu Lucas e Dona Áurea, por sua vez, entraram para o MST por caminhos distintos dos de Cristiano e Rafaela. Seu Lucas e seu cunhado arrendavam terras dentro da área onde hoje está o acampamento, nas quais faziam suas lavouras. Esse acordo de arrendamento fora travado com Mário Ferreira, guarda do Zattar, que era responsável por cuidar daquelas terras. Quando o Movimento entrou na área, o guarda não interferiu, e deixou de lado a vigilância de tais terrenos. Segundo Cristiano, isso aconteceu porque Mário viu que os sem-terra eram em maior número, e que não teria como ele lutar com toda aquela gente. Os membros do MST, então, convidaram Seu Lucas e seu cunhado para participarem do acampamento. O cunhado, contudo, não quis permanecer na área, pois discordou de algumas das regras impostas pelos sem-terra. Lucas e sua família permaneceram lá por um tempo, mas saíram pouco depois que nasceu Larissa, filha mais nova do casal. Mesmo assim, Seu Lucas continuou participando das reuniões do Movimento e fazendo sua roça lá embaixo, nas terras que antes arrendava e que agora eram parte do acampamento. Alguns acampados não concordaram com tal situação, e começaram a questionar a participação de Lucas no movimento, cujo ponto crítico estava no fato de ele não residir na área. Em nossas conversas sobre sua relação com o MST, Dona Áurea reclamava das insinuações desses acampados, chamando atenção para a falta de consideração que eles demonstravam perante sua família. Um dos homens que queria tirar Seu Lucas do acampamento, utilizava, em sua casa, água que vem de um olho d’água82 do terreno de Lucas, o qual havia consentido que o homem puxasse um cano de lá até sua residência. Notase, nesse sentido, que dentro do acampamento as áreas já estão delimitadas, de modo que, como nas comunidades do interior em geral, a água que as pessoas utilizam em suas casas muitas vezes não vem de seu próprio terreno, mas é puxada do olho d’água de outro vizinho. 82
Forma com que são chamadas as nascentes.
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Para que isso aconteça, é preciso haver acordo entre quem precisa da água e a pessoa em cujas terras está a nascente, que também é chamada de mina. Esse acordo, verbal, baseia-se no cuidado que os vizinhos devem ter com a manutenção da limpeza da área em torno do olho d’água, e com os canos que partem dali. Deixar que outro morador utilize a água que brota de seu terreno é algo que se espera que um vizinho faça pelo outro, mas não há obrigatoriedade em se aceitar o compartilhar da fonte. Aceitá-lo, por sua vez, é visto como ter consideração, tal como Dona Áurea postulou, ou seja, é uma ação que comunica a estima e o respeito que uma pessoa tem por outra. Era por faltar com essa ética que ela condenava quem queria tirar Lucas do acampamento. Dona Áurea lançava mão, nesse sentido, de uma linguagem da vida em comum que ultrapassa o âmbito da participação no cotidiano do movimento social enquanto acampada, e assenta as bases dos vínculos entre vizinhos em diversos elementos que materializam a solidariedade, como a água compartilhada. Chamava atenção, desse modo, para outros caminhos que faziam dela e de seu marido parte fundamental na vida daquelas terras, e que garantiam que eles permaneciam lá. Pois mesmo que residissem fora da área, aquele era também o local de trabalho de Seu Lucas, e os próprios acordos em torno da água eram um sinal de que era ele quem decidia sobre aquele lote do acampamento. Nos termos do casal, era indiscutível sua presença e permanência no acampamento. Em minha última ida ao Faxinal dos Caldas, Seu Lucas contou-me que queria conversar com Joaquim para discutir como ficaria sua situação junto ao MST e no lote em questão. Comentou que o próprio Joaquim já havia comparado o seu caso ao de um posseiro, na medida em que Seu Lucas ocupava aquela terra há anos, e que antes da entrada do movimento social na área, costumava pagar arrendo para os guardas da madeireira. Assim, de partida, é possível que as pessoas tracem identificações com movimentos sociais distintos, enquanto consideram os variados caminhos jurídicos que podem atravessar para conseguirem seu direito à terra. O processo de engajamento com os coletivos de luta pela terra e, por conseguinte, com a terra enquanto direito perseguido, emerge como dinâmico e criativo, onde entram em cena modos de se vincular ao território e com quem nele vive. Nessa dinâmica da produção de laços com a terra almejada, é preciso reconhecer-se e ser reconhecido como semterra/faxinalense/posseiro/pequeno agricultor, e participar do coletivo de luta que agrega tal nomeação. Ou seja, é preciso mobilizar uma certa categoria identitária comum, que é parte fundamental nas políticas fundiárias que são conduzidas em Pinhão, as quais exigem certos engajamentos e obrigações daqueles que nelas se inserem. Porém, há também outras facetas
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do convívio cotidiano e das dinâmicas de conhecimento/reconhecimento dos moradores do interior, que são centrais na produção da reputação de pessoas e de famílias, e de trajetórias na terra que se quer como sua. Aquilo que é preciso fazer para ter consideração de seus vizinhos e assim saber viver com eles, enfim, um amplo leque de práticas cotidianas que vão desde o trabalho na terra até o demonstrar respeito pelos outros, também são tidos como fundamentais na consolidação dos laços e reconhecimentos de certas pessoas enquanto sujeitos de direito à terra. No entanto, é preciso que haja um comprometimento com o movimento em questão para que a pessoa seja reconhecida como parte dele, e consequentemente, para que tenha direitos à terra pela mesma via que seus companheiros de luta. Em certa medida, é possível que Seu Lucas se conceba simultaneamente como posseiro e sem-terra, e ainda, como pequeno proprietário, no que diz respeito ao seu vínculo com outras terras83. No entanto, o fato de não residir permanentemente no acampamento causava estranhamento aos demais membros do MST, que passaram a questionar a própria participação de Seu Lucas no Movimento. Por outro lado, Seu Laércio, sogro de Seu Lucas, estava vivendo naquele momento relações problemáticas com o MST. Quando conheci Seu Laércio, ele perguntou-me por Joaquim, com quem não pôde se encontrar na ocasião de minha primeira ida ao Faxinal dos Caldas. Seu Laércio pedia-me que quando falasse novamente com Joaquim, eu lhe desse o recado de que eles precisavam conversar. Ele estava incomodado com uma situação que começava a se desenrolar nas terras que ele cuidava para uma viúva que mora em outro município. Apesar de cuidar dessas áreas, Seu Laércio permanecia morando em seu próprio terreno. As terras da viúva, por sua vez, estavam picadas pelo Faxinal dos Caldas, ou seja, eram áreas descontínuas, sendo que um pedaço delas fazia divisa com as terras de Laércio. Foram outros moradores do Faxinal dos Caldas, contando-me histórias sobre as famílias mais antigas que viviam naquela região, e sobre as terras da comunidade, que me disseram como os terrenos da viúva se tornaram dela. Quando vivo, seu marido havia adquirido esses terrenos de outro homem, Gumercindo, renomado grileiro84 que atuava no Faxinal dos Ambrósios, e que contratava pistoleiros para expulsarem os moradores das áreas que queria. Quando um pistoleiro foi encontrado morto com o cheque de Gumercindo no bolso, o grileiro foi embora de Pinhão, para escapar de processos na justiça. Segundo 83
Conforme salientei no Capítulo 2, Seu Lucas vive nas terras de herança de sua esposa, no terreno familiar de seu sogro. Além disso, ele possui algumas terras de herança picadas, ou seja, descontínuas, que eram de propriedade de seu pai. 84 Sujeito que se apropria de terras através da elaboração de falsa documentação.
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moradores do Faxinal dos Caldas, as terras que Gumercindo vendeu como se fossem dele constam no cartório de registro de imóveis em Guarapuava como propriedade do mais antigo morador daquela área, morto há décadas, e cujos herdeiros não trataram juridicamente do processo de inventário e de partilha dos terrenos. O senhor que comprou tais áreas era morador de outro município, e jamais chegou a morar nas terras que adquirira. Quando o dono dos terrenos faleceu, eles foram passados para sua viúva. Por isso, essas áreas são reconhecidas pela família de Laércio e pelos demais moradores dos Caldas como terrenos/terras da viúva. Depois da morte de seu marido, essa senhora pediu para Seu Laércio cuidar dos terrenos, que juntos somam mais de 200 alqueires de terras. Em contrapartida, a viúva permitia que tanto Seu Laércio quanto seus filhos e genros utilizassem essas áreas para a extração de erva-mate, e que as arrendassem para outras pessoas soltarem gado por lá. Seu Lucas também criava porcos em uma dessas porções do terreno. Em uma parte dessas terras, fica uma bodega, espécie de bar/mercadinho, cuja responsabilidade também recaía sobre Seu Laércio. Ele alugava a bodega para outros interessados que ali quisessem trabalhar. Dois homens já haviam passado por lá, mas nenhum parou. Quando a bodega ficou vazia pela última vez, Seu Laércio pensou em deixar um de seus filhos mais novos, Antônio, cuidando do local. Tudo estava se encaminhando para isso acontecer, quando Tito, primo de Seu Laércio, apareceu, precisando de um lugar para morar e interessado em cuidar do espaço. O acordo foi feito, e Tito se estabeleceu no local. No começo pagou o aluguel conforme havia sido combinado, mas depois parou. Quatro anos depois, queria ser dono de vinte alqueires do terreno. Chegou a se embrabecer quando apareceram homens contratados pela viúva, para cortarem pinus que haviam sido plantados lá. Seu Laércio, irritado com a situação, disse ao rapaz que ele não era dono da área. Tito, então, disse que já havia falado com Joaquim, que o apoiara a se apossar do terreno. Era por isso que Seu Laércio queria conversar com Joaquim, para pedir que ele não colaborasse com Tito, pois isso poderia prejudicar a confiança que a viúva tinha em Laércio, já que era ele quem cuidava do terreno, e quem havia colocado o rapaz lá. Quando comentei com Seu Lucas sobre essa situação, ele me disse que queria ter orientado o sogro a não colocar Tito para trabalhar na bodega, pois sabia que o homem já havia aprontado antes. Ele teve que sair de casa porque levou uma surra de seu próprio pai, e depois foi solicitar ajuda para outro senhor, ao qual pediu para parar em sua terra. Na hora de sair de lá, Tito quis cobrar o homem que o acolheu, como se tivesse sido empregado dele. Seu Lucas salientava, desse modo, alguns traços da reputação de Tito que tornavam possível prever que ele não era de fiança, ou seja, que não se podia contar com sua palavra. Além de
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ter sido expulso de casa por seu pai, ele se aproveitou do homem que se dispôs a ajudá-lo em um momento de precisão, frente ao qual ele deveria se portar como alguém que deve obrigação. Esses acontecimentos eram encadeados por Seu Lucas de modo a elaborar uma matriz de referências, um saber que servia como parâmetro de previsão das atribulações que o homem não só era capaz de trazer, como realmente trouxe. Um ano depois, quando retornei ao Faxinal dos Caldas, Seu Laércio e seus filhos estavam ainda mais angustiados: onze famílias haviam entrado nas terras da viúva. Além de terem se estabelecido nos arredores da bodega, os acampados também fizeram barracos nos terrenos arrendados por Seu Laércio. Segundo Dona Áurea, foram os antigos arrendatários que, tal como Tito, entraram nessas áreas, estabelecendo o acampamento. Acampados na lona, eles vieram em sua maioria de um município vizinho a Pinhão, cuja divisa é próxima do Faxinal dos Caldas. Segundo Cristiano, liderança do MST no acampamento que já existia no Faxinal dos Caldas, esses sujeitos portavam bandeiras do Movimento, mas o MST de Pinhão não tinha, a princípio, conhecimento dessa ocupação, que foi articulada por pessoas que vieram de fora do município. Cristiano teve que chamar Joaquim para ajudá-lo com essa questão. Assim, os acampamentos foram reconhecidos e articulados ao MST em Pinhão. Para Cristiano, o próprio Laércio poderia ter se beneficiado da situação, fazendo um acordo com os acampados, para garantir um pedaço de terra para si. Entretanto, a postura de Seu Laércio era a de evitar indisposições com a viúva, e de afirmação da mulher como legítima proprietária daquelas terras. Em certa medida, Seu Laércio era como um guarda dos terrenos da viúva. E era essa a posição que ele não queria comprometer, de confiança com a dona das terras. Assim, as distintas relações dos membros da família de Seu Laércio com o MST são representativas não só da ambiguidade dos posicionamentos das pessoas frente às ocupações de terra, como também dos dilemas que envolvem essas questões. Dentro da família de Seu Laércio, havia uma conjugação de modos distintos de lidar com a questão da entrada do MST em “terras improdutivas”85 ou cujo dono era ausente. Pois se por um lado Dona Áurea e Seu Lucas se consideravam parte do primeiro acampamento do MST no Faxinal dos Caldas, aquele erigido sobre as terras ofertadas ao INCRA pela madeireira, por outro, a presença do 85
O INCRA considera “improdutivos” os imóveis rurais cujo “Grau de Eficiência da Exploração” é inferior a 100%, e cujo “Grau de Utilização da Terra” é menor do que 80%. Esses graus servem como indicadores de que tal imóvel cumpre ou não sua “função social”, sendo passível de desapropriação. Segundo o Art. 186 da Constituição Federal de 1988, a “função social” é cumprida quando a propriedade rural atende aos seguintes requisitos: aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
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movimento social nas terras da viúva era uma questão que afligia diretamente a posição de Seu Laércio enquanto responsável pela integridade dos terrenos e da manutenção da propriedade de sua dona. No caso das terras da viúva, assim como de muitas terras do Zattar, entram em choque não só os novos ocupantes e proprietários, mas também outros moradores ou ocupantes que de algum modo se beneficiavam do fato destas terras encontrarem-se desabitadas e, por conseguinte, abertas ao desenvolvimento de práticas produtivas. Foi isso que beneficiou tantos guardas do Zattar que, ao serem reconhecidos como aqueles que cuidavam dessas áreas, favoreceram-se de sua exploração econômica (Cf. Capítulo 1). Ademais, isso possibilitou que pessoas que arrendavam essas terras – caso de Seu Lucas -, ou que tinham permissão dos guardas para ocuparem-nas, por exemplo, para a criação de gado (o que ocorreu tanto em terras do Zattar, como nas terras da viúva), também se apresentassem como legítimas detentoras de direitos sobre as áreas, na medida em que eram elas que produziam nesses terrenos. Essa imbricação de agentes nas terras em disputa faz com que certas famílias se posicionem simultaneamente a favor e contra os modos de atuação dos coletivos de luta pela terra, e que coloquem em questão a legitimidade dos pleitos de seus vizinhos, parentes, conhecidos, ou opositores. Porém, esse tipo de problematização pode fazer com que essas famílias se tornem mal vistas dentro do próprio Movimento do qual participam, cujos membros são capazes de tomá-las por interesseiras, que estão dispostas a se envolver na luta somente por si mesmas. Agindo desse modo, elas abalam o fundamento de “unidade da luta”, uma das grandes pilastras do MST enquanto “Organização”, para a qual o problema da terra, idealmente, deveria ser tratado como um problema “do coletivo”, o qual precede as posições individuais de seus membros (CHAVES, 2000). Em Pinhão, é possível que uma pessoa se conceba como participante simultânea de distintas frentes de luta pela terra, em virtude sobretudo da diversidade de movimentos sociais presentes no município e pelo fato de eles se constituírem em relação uns com os outros. Digo isso tanto porque é a questão das terras do Zattar que mobiliza, num primeiro momento, a constituição desses coletivos, quanto porque as pessoas que dão corpo a eles são, em grande parte, moradoras do mesmo interior, e estão em contínuo contato e discussão umas com as outras na busca pelo direito à terra. É assim que um posseiro pode se identificar com o MST e participar de um acampamento, ou que um posseiro pode se tornar um faxinalense, ou que membros do Movimento dos Pequenos Agricultores passem a se identificar como faxinalenses ou sem-terra, e assim por diante.
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Esses trânsitos, contudo, não são automáticos, ou simplesmente abertos a qualquer um, mas constituem-se através das relações que uma pessoa possui com a terra e com os membros de determinado coletivo. Há, além disso, o nível da organização dos movimentos sociais, que diz respeito à união de seus membros em torno de um propósito comum. Nesse sentido, é indispensável que o participante que se identifica com determinado movimento, e que busca o direito à terra através daquele coletivo, comprometa-se com suas regras, procedimentos formais de cadastramento, atividades políticas e demais práticas vinculadas a tal modo organizativo. Era assim que, deixando de morar no acampamento, e participando de uma família que se contrapunha abertamente à ocupação das terras da viúva, Seu Lucas e Dona Áurea poderiam ser vistos, naquele momento em particular, como pessoas em processo de afastamento dos sem-terra como todo, ainda que permanecessem apoiando o acampamento do qual participavam. O impasse de Seu Laércio se consolidou quando a ocupação chegou aos limites do seu terreno familiar, mais precisamente, ao outro lado de sua cerca. Essa área era utilizada por Dália, irmã de Áurea, que dali costumava tirar lenha e vassouras86. Além disso, esse terreno vizinho era atravessado por um carreiro, usado cotidianamente pelos membros da família de Seu Laércio em seus deslocamentos a pé pelo Faxinal dos Caldas. Segundo Dona Áurea, um dia ela estava sozinha em casa, quando um homem apelidado Quero-quero, que mora para os lados de Guarapuava mas tem conhecimento com o pessoal do Faxinal dos Caldas, chegou de moto. Quero-quero é reconhecido como um dos organizadores da ocupação das terras da viúva. Naquele dia, ele recomendou a Dona Áurea que ela não passasse a cerca dos terrenos de sua família, porque do outro lado tinha uma mulherada lá de um jeito que ele nunca tinha visto antes. Ele queria dizer que elas eram bravas, a fim de assustar Dona Áurea para que ela deixasse de passar pelo carreiro. Essas mulheres haviam se instalado naquela área com Jair, irmão de Tito, e lá fizeram uma pequena casa. Sua presença, tão próxima à cerca dos Laércio, foi tida pela família como uma grande provocação. Dona Áurea e Seu Lucas têm Jair como sujeito desaforado. Ele foi tocar fogo e roçar rente à cerca que faz divisa com o terreno de Dália, coisa que para a família de Seu Laércio é um tremendo desaforo, na medida em que era um ato perigoso de exibição por parte daqueles que queriam ser os novos donos da área. De repente, os Laércio não podiam mais usar aquele terreno, e até no carreiro queriam proibi-los de passar. Como sinal de ameaça, uma cruz apareceu no meio do caminho de passagem. Essa cruz simbolizava a morte, pois o modo com 86
Vassoura é o nome dado a algumas espécies de herbáceas que são utilizadas para a confecção de vassouras para limpar o terreiro, e para fins medicinais.
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que foi posta ali era similar à forma com que se colocam cruzes nos lugares onde pessoas foram mortas. A cruz, nesse sentido, era uma forma de mandar uma mensagem intimidadora aos que passavam pelo carreiro. Sua história, porém, era marcada por controvérsias. Enquanto os familiares de Seu Laércio diziam que Jair havia plantado o objeto no carreiro, para reiterar que eles não deveriam passar por ali, os membros do MST defendiam que foram os Laércio que puseram a cruz na estrada, como sinal do que estava por vir. Poucos meses depois de construída, a casa de Jair e da mulherada pegou fogo. Quando isso aconteceu, surgiu um boato de que havia sido o próprio Seu Laércio quem incendiara a residência. Dona Áurea comentou esse evento comigo numa tarde em que saímos juntas, enquanto passávamos justamente pelo carreiro. No trajeto, ela me mostrava o que restara da casa queimada, apontava-me o lugar do terreno onde antigamente um tio dela morava, e salientava que aquele caminho por onde pisávamos havia sido aberto por sua família, que sempre o utilizara. Ela me mostrou onde a cruz foi colocada e me disse que, no dia do incêndio, seu pai havia mesmo passado pelo carreiro. E que ela própria passou por lá um pouco depois de Seu Laércio e ouviu, perto da estrada, a voz da mulherada que vivia na casa. Elas estavam falando no celular, cujo sinal só pegava lá fora. Foi logo depois disso que a casa pegou fogo. Dona Áurea me contou que quiseram dizer que foi o pai dela quem fez aquilo. Mas imagina que o pai ia tocar fogo na casa de dia, com todo mundo lá? Em nosso caminhar, minha anfitriã me mostrava e contava sua versão do que havia acontecido. Através de suas palavras e da demarcação da história daqueles terrenos, como lugar que sempre havia estado nas mãos de sua família, Dona Áurea se posicionava em defesa de seu pai, o qual foi, junto a seus filhos, desaforado, devido à maneira com que havia sido realizada a ocupação do terreno vizinho à sua cerca. Ela reconhecia que havia um conflito, uma situação de tensão em aberto. Porém, não admitia que seu pai tocaria fogo na casa das mulheres – ao menos, não daquela maneira. Seu argumento, nesse sentido, se fundava na tática da queima de casas em conflitos de terra. Dona Áurea deixava implícito que aquele que quer queimar uma casa, não o faz de qualquer jeito. Há um momento certo para se fazer isso: com a casa vazia, e preferencialmente em um momento em que ninguém possa ver quem causou a queima, ou seja, à noite. E seu pai, ela queria me dizer, não seria bobo de deixar rastro de uma ação incendiária. Ela sabia que os membros do MST ligavam a queima ao processo de disputa de terras, e contrapunham-se à possibilidade de aquilo ter sido um acidente. Assim, era a tais acusações que ela respondia ao me mostrar o ocorrido em nossa caminhada. Dona Áurea contou-me então que a polícia chegou a fazer um laudo do incêndio, e descobriu que sua causa partiu do fogão. As mulheres haviam varrido ciscos com brasas
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para baixo do utensílio, que estava aceso, e o fogo acabou ganhando força e se espalhando pela casa. Ainda assim, Jair não se convenceu de que a queima de sua casa foi resultado de um acidente. Alguns meses depois do ocorrido, ele veio de moto até a frente da casa de Seu Lucas. Deu umas voltas, e acelerou alto a moto. Ele veio aqui me desafiar – disse Seu Lucas, comentando esse acontecimento. Se fosse de primeiro, eu reagia. Mas hoje eu já penso diferente, né? Tenho a minha família. Quando era solteiro, Seu Lucas se envolveu nas vinganças de sua família, decorridas da morte de seu irmão, realizada por homens vinculados à família Pires, da mesma localidade (Cf. Capítulo 2). Era a essa época que ele se remetia como de primeiro, enfatizando que ele tinha condições de reagir ao desafio de Jair. O desafio, por sua vez, é compreendido como a audácia do homem de aparecer na frente da casa de Seu Lucas, depois de toda a encrenca com seus familiares. Pois, se querem manter-se em paz umas com as outras, pessoas que não se dão não devem se encontrar. Jair foi até lá para mostrar que a encrenca não estava acabada. Mas em comparação ao passado, hoje Seu Lucas levanta um motivo para não tomar parte no desafio: ele tem a sua própria família, ou seja, filhos e uma esposa, dos quais ele deve cuidar. Ao se envolver em uma situação fatal com Jair, é para dentro de sua casa que ele trará a encrenca, a ameaça, e a possibilidade de futuras vinganças. A postura de Seu Lucas revela que, ao contrário de ser uma regra, a resposta a um desafio é sujeita a questionamentos e observações, os quais envolvem não só uma avaliação de relações de força, mas as próprias responsabilidades que uma pessoa têm perante sua família. Nascido em um lugar com fama de valente, e criado em uma família marcada por histórias de vingança, Seu Lucas esclarecia que tais características não faziam necessariamente a sua reputação ou permitiam prever suas reações perante os desaforos alheios. Se por um lado, é esperado que homens respondam a ofensas sofridas, por outro, essa resposta não é automática, e não se remete a um estereótipo de masculinidade, mas a responsabilidades que se relacionam à geração e autoridade familiar. É assim que o Lucas casado e pai de família tolera provocações que o Lucas solteiro e jovem não toleraria. E tanto quanto podem sustentar mortes entre familiares, ou a união de pais e irmãos em torno do propósito da vingança (caso da briga de família na qual Seu Lucas tomou parte), são também as relações de família que pode surgir como incentivo a uma postura menos reativa, e mais cautelosa, por parte de um pai. Quando deixei o Faxinal dos Caldas, a questão da continuidade do acampamento nas terras da viúva, assim como do desfecho da encrenca entre os Laércio e os irmãos Tito e Jair,
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permanecia em aberto. Mais recentemente, soube que uma grande quantidade de sem-terra entrou nos terrenos em questão, e que reocuparam, inclusive, a área vizinha às terras de Seu Laércio, onde passa o carreiro. Essa situação vivida por familiares que tomavam conta de terras ocupadas pelo MST demonstra como os conflitos de terra conjugam formas de antagonismo que envolvem vizinhança, família, e relações de força que remetem não só à autoridade familiar, ao respeito e ao prestígio que uma pessoa tem em sua comunidade, mas aos seus vínculos com agentes poderosos, instâncias institucionais, donos de terras, etc. Enquanto se aborrece por terem sido seus próprios parentes, sujeitos que ele colocou nas áreas, aqueles que levaram adiante o processo de se apossar delas, Seu Laércio também é o homem de confiança de uma senhora que agora enfrenta a ocupação de seus terrenos com advogados e ameaças de despejo. Há, portanto, um certo caráter familiar no conflito entre Seu Laércio e os sem-terra, na medida em que tanto ele quanto Dona Áurea e Seu Lucas referem-se às pessoas e episódios encadeados nesse processo de hostilização tomando como base a ética da convivência e do parentesco, através das quais as pessoas elaboram suas atitudes considerando seus vínculos e seu estar junto umas com as outras. São as broncas e desaforos do convívio cotidiano, os acordos sobre cercas, carreiros e olhos d’água, os laços familiares e a primazia por sua manutenção e bem-estar, que se misturam e se movimentam nas tramas de hostilidade que podem culminar em oposições drásticas e enfrentamentos pontuais. Contudo, não se trata de um conflito “de família”, ou “de vizinhos”, pois nele estão em jogo relações de propriedade, uso e regularização da terra que vão além do Faxinal dos Caldas, envolvendo movimentos sociais e órgãos públicos, cuja organização e atuação é realizada através de lógicas próprias. Com isso, não quero apontar para uma sobreposição de lógicas de tratamento do conflito, mas sim para o fato de que elas se misturam nas experiências das pessoas que lutam pela terra, as quais precisam lidar com essas exigências distintas ao mesmo tempo.
6.2 A expulsão do guarda Cientes de que uma boa convivência é capaz de amainar as tensões entre antigos ocupantes de terrenos e novos acampados, os movimentos sociais buscam muitas vezes realizar acordos com aqueles que já estão nas terras. No caso das terras do Zattar, é comum que os movimentos sociais encontrem antigos moradores, cujas famílias estão naquelas terras desde antes da época em que a empresa era fortemente atuante no município. Além disso,
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muitos desses terrenos ainda abrigam antigos guardas da empresa, os quais possuem seus próprios interesses sobre as áreas. É com eles também que os novos acampados precisam dialogar, a fim de buscar soluções de convívio no território. No caso que descreverei a seguir, a possibilidade de acordo com um guarda da madeireira, em uma área ocupada pelo movimento faxinalense, na localidade de Faxinal dos Camargos, não se concretizou. O homem em questão tanto ameaçou os acampados que acabou sendo expulso das terras, o que por sua vez, fez com que ele povoasse a vida dos moradores com novas e mais radicais ameaças. O Faxinal dos Camargos consiste em uma área de mais de 500 alqueires, que fora apropriada pelas Indústrias Zattar em sua expansão territorial por Pinhão e, posteriormente, ofertada ao INCRA, no mesmo pacote de terras onde estão os acampamentos do MST e os terrenos onde vivem os posseiros. Nos Camargos a madeireira também empregou guardas, que cobravam arrendo das pessoas que lá viviam, tanto por lavoura quanto por criação alta, como é chamado o gado bovino. Assim, muitos dos antigos moradores viviam basicamente da criação de porcos (para não pagar o arrendo pelo gado), e de lavouras, inevitavelmente arrendadas. Alguns desses habitantes deixaram seus terrenos, e foram morar em comunidades próximas ao Faxinal dos Camargos, para regressar anos depois, quando essas terras foram reocupadas por membros do Movimento Faxinalense de Pinhão e pelo Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Unidos aos movimentos sociais, alguns dos antigos moradores do Faxinal dos Camargos acamparam na área, e nela permaneceram. Antes disso, porém, os moradores daquela localidade já estavam envolvidos com a Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses (APF), e buscavam o reconhecimento do Faxinal dos Camargos como Área Especial de Uso Regulamentado (ARESUR), forma com que o Estado do Paraná reconhece oficialmente as porções territoriais caracterizadas pelo “sistema faxinal”. De acordo com o Decreto Estadual nº 3446, de 14 de agosto de 1997:
Art. 1º - Ficam criadas no Estado do Paraná, as Áreas Especiais de Uso Regulamentado – ARESUR, abrangendo porções territoriais do Estado caracterizadas pela existência do modo de produção denominado "Sistema Faxinal", com o objetivo de criar condições para a melhoria da qualidade de vida das comunidades residentes e a manutenção do seu patrimônio cultural, conciliando as atividades agrosilvopastoris com a conservação ambiental, incluindo a proteção da "araucaria angustifolia" (pinheiro-do-paraná). § 2º - A ARESUR, na perspectiva do desenvolvimento do Sistema Faxinal, observará as disposições legais aplicáveis às Áreas de Proteção Ambiental - APAs, no que couber.
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Desde esse Decreto, portanto, os territórios caracterizados pela existência do “sistema faxinal” são relacionados a ideais de “conservação ambiental”, que dizem respeito à floresta de araucárias, ambiente que dá lugar ao faxinal. Dez anos depois, a Lei Estadual nº. 15.673/2007 reconheceu os Faxinais e sua territorialidade específica, cuja característica mais destacada, além da “conservação dos recursos naturais, é “a produção animal à solta, em terras de uso comum”, além da “produção agrícola de base familiar”, do “extrativismo florestal de baixo impacto”, e da “cultura própria” (PARANÁ, Lei nº 15.673/2007, Art. 1º). Segundo o Art. 2º do mesmo Decreto, a “identidade faxinalense” é o critério que define os “povos tradicionais” que incorporam essa territorialidade específica. Tal identidade é reconhecida por autodefinição e certificada pelo Estado do Paraná, que por sua vez comunica a certificação à Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente. O reconhecimento dos territórios faxinalenses passa, portanto, por órgãos estaduais e federais do meio-ambiente, e o ponto final na certificação do território é a transformação da área em uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS)87. Trata-se, portanto, de um processo de regularização territorial distinto daquele perseguido pelo MST e pelos posseiros, cujas negociações são feitas com o INCRA, em prol da criação de assentamentos, divididos em lotes individuais. Em 2005, foi criada a Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses (APF), entidade cujo objetivo é contribuir para “o conhecimento e o reconhecimento dos direitos étnicos e coletivos” dos povos faxinalenses do Paraná (SOUZA, 2010, p.29). Naquele mesmo ano, iniciou-se o processo de organização e reconhecimento dos faxinais pinhãoenses, que teve como etapas a participação de integrantes das comunidades de faxinais de Pinhão em encontros estaduais promovidos pela APF, e sua inserção no Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil (PNCSA)88, através de “Oficinas de Mapas” realizadas em cada comunidade. Em 2013, o Faxinal dos Camargos foi reconhecido como ARESUR. Lá vivem vinte e oito famílias, das quais quatorze permaneciam na área na condição de acampadas e duas não 87
Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) é o nome dado a uma área de proteção ambiental onde vivem “populações tradicionais”. Nela, é permitida a exploração de recursos naturais e o cultivo de lavouras, de acordo com certas limitações legais e o “Plano de Manejo” da área. São regulamentadas de acordo com a Lei nº 9.985 de 18 de julho de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). 88 O Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil tem como principal objetivo possibilitar a “auto-cartografia” de populações “tradicionais”, que visam aos seus direitos territoriais específicos. Ele faz parte do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, idealizado pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Ao longo de sua existência, o PNCSA vem trabalhando em diferentes regiões do Brasil, com quilombolas, ribeirinhos, quebradoras de coco, faxinalenses, pescadores, cipozeiros, entre outros povos chamados de “tradicionais”.
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concordaram com a criação da ARESUR89. Como afirmei anteriormente, os acampados se estabeleceram nos Camargos em 2013, por meio de uma ação conjunta do Movimento Faxinalense e do MPA, que se identificam em suas propostas de preservação do meioambiente, uso coletivo da terra, e plantio sem o uso de agrotóxicos. Diversos acampados são descendentes de antigos moradores e ocupantes dessas terras, ou reconhecem-se como pessoas que se criaram naquele jeito, quer dizer, nos moldes tradicionais de ocupação dos faxinais, onde criava-se gado à solta, em terras de uso comum. Assim, a “identidade” “faxinalense” é concebida por eles tanto através de seus vínculos geracionais com aquelas terras, quanto por sua conformação a uma territorialidade que passa, entre outras coisas, pelo estabelecimento de áreas de uso comum onde é organizado o criador, tal como os moradores do interior chamam os “criadouros coletivos”, terras amplas onde são criados os animais de todo um grupo de vizinhos. Nos Camargos, permaneci na casa de Érico e Mariane, ambos com quarenta anos de idade, e pais de três filhos que vivem com eles. O casal se reconhecia como acampado na área, muito embora já tivesse feito sua casa. Eles haviam participado da ocupação do Faxinal, e antes disso, viviam em uma comunidade próxima, num pequeno terreno que Érico dividia com a sua irmã. Érico havia nascido no Faxinal dos Camargos, e deixou a área ainda pequeno, com toda a sua família. Mariane não só havia nascido nos Camargos, como viveu lá durante toda sua vida, saindo do lugar quando se casou. Seus pais sempre moraram naquela área, e seu pai foi inclusive um dos primeiros moradores a engajar-se na articulação faxinalense. Além disso, desde 2001 e muito antes de acamparem nos Camargos, Érico e Mariane já participavam de ocupações junto aos posseiros. Em todas as vezes foram despejados, algo que, segundo Mariane, deixou-a extremamente nervosa, fazendo com que até hoje ela tenha que tomar remédios para conseguir dormir. Apesar de já criarem o gado bovino à solta, Érico e Mariane ainda mantinham seus porcos ao redor de sua casa quando estive por lá. Mesmo com o reconhecimento da ARESUR e com o envio do ICMS Ecológico aos faxinalenses de Pinhão, a prefeitura não havia, até aquele momento, liberado essa verba para os moradores do Camargos comprarem telas e arame para vedarem sua área90. Eles não podiam deixar os porcos soltos, pois os animais iam 89
Reitero que esses números são provisórios, na medida em que representam a situação da área na última vez em que estive lá, no primeiro semestre de 2014. É muito provável que de lá para cá tenha havido mudanças na quantidade de moradores e na sua condição – de acampados para habitantes efetivos, por exemplo. 90 O ICMS Ecológico é um instrumento de política pública que trata do repasse de recursos financeiros aos municípios que abrigam em seus territórios Unidades de Conservação, mananciais, ou áreas protegidas. O município recebe do Estado do Paraná, mensalmente, parcelas referentes ao ICMS Ecológico, e decide, então, qual percentagem desse valor repassará às comunidades tradicionais que vivem em áreas protegidas. Em
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até os vizinhos de fora do território faxinalense, e lá eram cachorreados, ou seja, atacados pelos cães desses moradores. A prática de criar porcos à solta sempre foi um ponto de debate na organização dos territórios faxinalenses. Tidos como bichos andejos e incomodativos, os porcos são afamados por ultrapassarem facilmente as cercas das terras de seus donos e caminharem para longe, causando estragos nos terrenos dos vizinhos, onde comem tudo o que veem pela frente (Cf. Capítulo 3). Os transtornos causados pelo porco solto eram o principal argumento das pessoas que se contrapunham à criação de territórios faxinalenses no interior do município. Contudo, essa prática sempre teve centralidade na economia tradicional dos moradores dos faxinais pinhãoenses. Assim, para evitar encrencas com os vizinhos das ARESURs, era fundamental que os faxinalenses obtivessem a verba da prefeitura e construíssem cercas muito bem vedadas. Além da organização em torno da criação à solta, os faxinalenses dos Camargos haviam estruturado um espaço para a lavoura, cercado, em uma área de serra. Tentaram fazer dela uma lavoura de produção coletiva, mas segundo Érico, logo eles dividiriam as terras de planta entre os diferentes moradores, pois o plano de trabalho em conjunto não havia, até então, sido bem sucedido. Um dos pontos importantes para a organização do Faxinal é o estabelecimento de um Acordo Comunitário, garantido por lei municipal. Esse acordo versa sobre o tamanho dos fechos91 de cada família - 3 alqueires no máximo no caso do Faxinal dos Camargos - , marcas nos animais que pastam no criador, proibições de desmatamento, e responsabilidades das famílias sobre as cercas e criações. Ele postula ainda a quantidade máxima de animais que cada família de moradores pode ter, no caso: 3 equinos, 20 vacas, 30 suínos, 10 caprinos, 10 ovelhas. Quanto às aves, não há um limite de quantidade. Esse Acordo encontrou resistências por parte de um antigo morador, avesso a diminuir as quarenta cabeças de gado que tinha. Ele também não concordava com os termos de extração coletiva de erva-mate, tal como planejavam os faxinalenses, que pretendiam dividir igualmente, entre todas as famílias de moradores envolvidas na atividade, o valor obtido com a venda do produto. Esse homem era Mário Ferreira, antigo guarda do Zattar, que como outros, participou do tiroteio contra a Escola Rural Municipal Nossa Senhora de Lourdes (Cf. Capítulo 1) nos anos 1990, e permaneceu preso por doze anos. Ele era um dos homens de armas da madeireira que os posseiros nomeavam em seus relatos sobre as ameaças e agressões propagas pela setembro de 2014, as ARESURs faxinalenses de Pinhão enfim receberam R$ 25.000 por meio dos repasses do ICMS Ecológico, verba que foi utilizada, naquele ano, para a compra de rolos de arame e de tela. 91 Fechos são áreas cercadas dentro do criador, onde o usufruto do terreno é realizado pela família particular que lá constrói sua casa, galinheiros, cercados, e cultiva hortas e pomares.
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empresa, e que chamavam de pistoleiro e homem ruim. Depois que saiu da prisão, Mário voltou para as terras do Zattar no município, onde se estabeleceu em uma antiga casa da madeireira, logo na entrada dos Camargos. Ao longo de suas carreiras, os homens de armas consolidavam seus vínculos com a empresa e suas terras, de modo que ao deixarem a prisão, alguns retornavam aos lugares que antigamente vigiavam, e nos quais suas famílias haviam permanecido. Por outro lado, como a maioria deles nasceu e cresceu em Pinhão, eles tinham um amplo conhecimento com os moradores do interior, e também relações de familiaridade e amizade com aqueles que eram seus vizinhos e parentes. Assim, a prisão de um guarda nem sempre acarretou no fim de sua presença nas áreas que antigamente cuidava para a empresa. Ao sair da cadeia, ele poderia voltar justamente para as terras onde vivia anteriormente, e permanecer trabalhando para a empresa, tal como aconteceu com Mário. Portanto, não foi só no território faxinalense que ouvi comentários sobre as ruindades de Mário Ferreira, relembrado por muitas pessoas como um dos homens reconhecidamente perigosos que trabalhavam pro Zattar. A ruindade do guarda, por sua vez, era destacada em histórias que encontram referências comuns a outras narrativas que destacavam o lado maldoso de alguns dos agentes da madeireira, como o vício em bebida, a morte de crianças, inclusive de afilhados. Uma das histórias que ouvi sobre Mário Ferreira foi contada por uma moradora do Faxinal dos Camargos, que relembrou que o guarda, embriagado, matou sem motivos um afilhado que estava pedindo louvado92 para ele, de joelhos. Foi por bandido e por bêbado que ele fez isso! – disse-me a moradora, quando perguntei-lhe por que Mário havia feito aquilo. De um senhor, em particular, ouvi que Mário não era um homem que enfrentava os outros de frente, mas que atirava pelas costas, ou seja, era traiçoeiro. Mário, portanto, não era um simples guarda, mas sua trajetória de envolvimento com mortes e o próprio fato de ter sido preso, faziam com que ele fosse visto como bandido. Ele emergia como uma figura perturbadora, que bebia demais, e cuja hostilidade fugia a qualquer limite. Na medida em que discutiam isso, as pessoas demonstravam a falta de estima inspirada pelo guarda, ao mesmo tempo em que guardavam respeito por ele, salientando que aquele não era um homem com quem se devesse mexer. Segundo Érico, quando houve uma reunião de cadastramento dos faxinalenses dos Camargos, Mário chegou armado e não quis se cadastrar. Essa reunião contava ainda com a presença de uma equipe de profissionais responsáveis pelo estudo socioambiental e fundiário 92
Pedir louvado ou pedir a benção são expressões que sintetizam o ato de cumprimento respeitoso que afilhados dirigem a seus padrinhos e também seus avós, clamando para que os abençoem. Ao encontrarem os padrinhos e avós, eles juntam as mãos com os dedos apontados para cima, em sinal de oração, e dizem bença, padrinho! Bença, madrinha! Bença, vó! Recebem, como resposta, um Deus te abençoe.
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para a criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável, os quais Mário Ferreira não aceitou receber em sua casa. O guarda também costumava derrubar as caixas de abelha que os faxinalenses haviam montado para a produção de mel. E andava negaceando em volta das casas das pessoas, para fazer medo nelas. Uma noite, Mário veio ao terreiro de Érico, e cutucou as galinhas para que elas se mexessem e caíssem do poleiro. Érico acordou com o barulho, e foi ver o que estava acontecendo. Na hora que eu vi que as galinhas ‘tavam tudo jogadas no chão, me deu um ruim! Érico ficou assustado, pois percebeu que aquilo era coisa de gente. Rapidamente, caminhou de volta para casa, pois sabia que era Mário quem estava ali fora, rondando. Érico compreendeu que aquela havia sido uma armadilha do guarda, tanto para lhe fazer medo, quanto para quem sabe fazer com que saísse de casa, e levasse um tiro de surpresa. Sua família vivia, nesse sentido, modos de intimidação similares aos que tantos posseiros haviam percorrido quando o Zattar buscava garantir o domínio de seus territórios. A ameaça que os rondava não era distante ou de alguém desconhecido, mas de um homem que tinha nome, sobrenome, família, e que além de tudo era seu vizinho. Assim, a presença e resistência do guarda do Zattar no Faxinal dos Camargos traziam consigo uma mistura de elementos que constituem as formas de agressão, intimidação e convivência agonística que caracterizam a vida em comunidade e, simultaneamente, em terras do Zattar. Porém, a ameaça agora não era mais percebida como direcionada a certas famílias particulares de moradores. Ao contrário, ela foi tomada pelos faxinalenses como algo que contrariava seu movimento social como um todo, o que teve implicações diretas nas maneiras com que eles lidaram com essa questão. Em 2013, quando fui pela primeira vez ao Camargos, participei de uma reunião entre os faxinalenses e Joaquim, da AFATRUP, que havia ido lá justamente para discutir a questão do extrativismo de erva-mate pelos faxinalenses. Joaquim os incentivou a seguir adiante com essa atividade, e a extraírem a erva-mate mesmo que Mário Ferreira não aceitasse. Se vocês precisarem a gente vem falar com ele - disse Joaquim. Onde já se viu a essa altura a gente acatar ordens de jagunço? Joaquim lançava mão, desse modo, do vocabulário daqueles que participam dos movimentos sociais de luta pela terra e que se contrapuseram à madeireira, chamando Mário de jagunço, e não de guarda. Os faxinalenses presentes gostaram da fala de Joaquim. Era isso mesmo que a gente queria ouvir - disse Mariane, que estava na reunião. Depois disso, Mário foi chamado pelos faxinalenses para participar das tiranças de erva. Para tanto, a Associação de Moradores enviou Seu Luís e Dona Catarina, que estavam acampados no Faxinal dos Camargos, para conversarem com o guarda. Eles foram escolhidos porque Catarina é prima de Mário. Era importante, nesse sentido, que a conversa entre
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faxinalenses e o guarda fosse travada por alguém com quem ele tivesse vínculos em outros níveis, possibilitando que o diálogo fosse estabelecido de um modo mais íntimo e informal, o que não aconteceria caso outro casal da área fosse debater com o homem. Seu Luís e Dona Catarina pediram para Mário e sua esposa entrar com eles, ou seja, para concordarem com os termos dos faxinalenses, que logo começariam a extrair a erva-mate da área. Argumentavam que assim ele poderia obter ganhos econômicos com aquelas terras, que de qualquer forma já estavam ofertadas ao INCRA pela madeireira. Mário não aceitou, sob a justificativa de que aquela área era do Zattar, e que por estar morando nela há tantos anos, ele teria direito a 10 alqueires de terreno para ele. Reiterou, ainda, que o Zattar é que iria retirar o material, ou seja, extrair a erva-mate daquelas terras. Agindo assim, o guarda não só se colocava contra o projeto faxinalense, como também atuava de modo a entravá-lo. No antagonismo de Mário aos faxinalenses, o Zattar emergia como relação que sustentava tanto a presença do guarda na terra quanto sua recusa em entrar com o Movimento. Ele parecia fazer isso não tanto para defender os direitos de seu patrão sobre a área, mas sim para sustentar seus objetivos pessoais em relação ao terreno onde morava, que ele almejava para si, provavelmente por meio de um futuro processo de usucapião. Para atingir esse objetivo, ele fazia uso de seu próprio vínculo com o Zattar, que foi o que sustentou sua permanência na área. Ainda que o Faxinal dos Camargos já tivesse sido oficialmente reconhecido, e que a própria ARESUR estivesse definida, Mário não quis participar do coletivo de luta pela terra. Ao lutar pelo que queria para si, ele acionava o Zattar como seu maior aliado, tal como faziam outros guardas que queriam adquirir direitos sobre as terras da madeireira e o material vegetal nelas presente, e para tanto expulsavam ou ameaçavam expulsar outros moradores delas. Trata-se, portanto, de uma gramática antiga de relações entre madeireira, homens de armas, moradores e terra, que ainda permanece acionada nas lutas contemporâneas, estruturando os sentidos dos argumentos que as pessoas produzem em suas reivindicações fundiárias. Para os faxinalenses, era problemático lidar com um homem que era ao mesmo tempo seu vizinho, parceiro da madeireira, e interessado em ter direitos particulares sobre o terreno onde morava. Além de tudo, ele era sabidamente um homem perigoso. Mário Ferreira havia decidido enfrentar os faxinalenses, deixando isso claro em sua presença armada na reunião do movimento social, e aos olhos dos profissionais responsáveis pelo estudo da RDS. Sua reputação e o estilo de intimidação característico de um guarda do Zattar permaneciam produzindo efeitos em sua presença na terra, ainda que sua atuação esbarrasse na presença do movimento social, e na mudança de estatuto daquela área.
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Foi quando Mário disse que o Zattar viria tirar erva-mate da ARESUR que os faxinalenses decidiram reagir por meio do enfrentamento direto. Aí que deu o maior confronto – explicou-me Érico, acionando agora um termo distinto dos utilizados no idioma da encrenca, e que envolve a visão de uma ação de combate conjunta e organizada, onde os lados em oposição são bastante claros. Os faxinalenses haviam iniciado suas atividades extrativistas perto da casa de Érico, quando o guarda mandou avisá-los que o Zattar viria tirar erva, e que havia contratado uma turma de tarefeiros para isso, a qual estaria a caminho dos Camargos. Foi aí que a turmada toda foi lá pro portão pra não deixar eles entrarem93. Membros do MST e do MPA foram chamados para ajudar os faxinalenses. Houve, naquele momento, uma união entre diferentes movimentos sociais que ocupam as terras da madeireira em Pinhão, o que demonstra que, mesmo distintos e podendo ter posturas contrárias, eles têm potencial de atuação conjunta, sobretudo porque suas lutas se dão sobre as terras de uma mesma madeireira. No final das contas, a contraposição ao Zattar e a defesa da ocupação das áreas da madeireira era capaz unir todos esses coletivos em torno de ações comuns, de soma de forças. Quem contou sobre esse dia lembrou que até mesmo as mulheres ficaram em volta da casa do guarda, de facão na cinta. O pessoal começou, então, a tirar erva do entorno da residência de Mário, que não estava lá no momento. A esposa dele se embrabeceu, e pediu para não tirarem erva ali porque aquele terreno era dela. Foi aí que deu a maior confusão, disse Érico. Dentro do confronto, portanto, houve um momento em que os ânimos se tornaram mais enraivecidos, e em que as pessoas ali presentes colocaram a mulher numa posição sem saída. Mário, que estava vindo para casa de ônibus, soube do acontecimento e acabou não indo até sua casa. Partiu direto para uma comunidade relativamente próxima do Faxinal dos Camargos, mas localizada no território de um município vizinho, onde tem parentes. Ouvi histórias de que homens vinculados aos movimentos sociais teriam dado tiros por cima da casa do casal, justamente para fazer pressão neles, para irem embora. Foi supostamente por isso que a esposa de Mário deixou a casa. Nas narrativas sobre os conflitos de terras, a casa emerge como um local fundamental, para o qual potenciais de hostilidade são dirigidos. Ao concretizar relações entre pessoas e terras, a casa se torna a marca de um domínio territorial, da autoridade que uma família possui sobre as terras em que vive. Para além dos moradores, o Zattar também se espalhava, através de seus homens de armas, por casas pelo interior pinhãoense. Nesse sentido, as casas do 93
Esse portão, que conta também com a presença de um mata-burro para impedir a passagem de animais de criação, marca a entrada do Faxinal do Camargos. Ele fica na estrada que dá acesso à área e permanece aberto.
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Zattar também são vistas como construções dinâmicas, que delineiam o projeto de domínio de terras empreendido pela madeireira e servem como habitação para os guardas, responsáveis pela vigilância das áreas da empresa, e que tal como as casas, materializam em seus corpos as possibilidades de violência ensejadas pela presença madeireira. Conservadas no ambiente, e representativas de um processo histórico de expropriação e uma experiência de poder, as casas do Zattar também são uma espécie de repositório das violências do domínio madeireiro na própria paisagem do interior. No caso dos Camargos, a casa do guarda manteve-se intacta e permaneceu vazia depois que o casal a deixou. Mas ao longo de meu trabalho, ouvi histórias de pessoas que queimaram a casa de um guarda, para expulsá-lo do terreno. Depois disso, construíram sua própria casa em cima da que foi queimada, o que não só era uma forma de expressar publicamente que aquele lugar era seu, mas um modo de enfrentamento que implicava em acabar com a materialidade da presença do Zattar no terreno. Outro exemplo é o da apropriação da casa dos guardas por uma família de posseiros na comunidade de Rio Bonito. Nos anos 1990, houve um grande enfrentamento entre posseiros e jagunços em uma das estradas daquela região. Esse enfrentamento, no qual foram trocados muito tiros, culminou com a saída dos homens de armas daquela localidade do município. Um deles, que ficou muito machucado, saiu da casa onde vivia com sua família. Passados alguns meses, com a casa permanecendo vazia, uma família de posseiros que vivia nas mesmas terras onde aquela residência havia sido construída decidiu entrar nela, e morar na dita casa. Era uma forma de se reapropriarem de seu território, transformando o próprio estatuto da residência e das terras, através de sua afirmação como moradores daquele ambiente. Expulsos da casa onde viviam, Mário Ferreira e sua esposa foram morar no município vizinho para onde ele havia partido no dia do confronto, onde se assentaram em uma fazenda do Zattar94. Entretanto, a esposa do guarda continuou a frequentar a casa de seus compadres nos Camargos. Quando Érico e Mariane me contaram sobre isso, em sua casa, perguntei-lhes se, depois da mudança do guarda, eles haviam sido ameaçados de alguma maneira. Primeiro, eles ficaram quietos, o que me mostrava que eu havia falado o que não devia. Mas logo começaram a falar de uma série de acontecimentos que sucederam a saída do guarda. Logo depois que Mário Ferreira deixou os Camargos, Assis, chefe dos guardas do Zattar, veio à localidade com a esposa de Mário e com a polícia. Ameaçaram pessoas e assustaram até as crianças. Eles vieram fazer um medo pra nós – disse Érico. Fazer um medo 94
Nesse município, a madeireira também adquiriu terras e chegou a manter uma serraria, a qual, porém, não foi tão próspera e nem tão duradoura quanto as do complexo da Zattarlândia.
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é agir de modo a intimidar, a assustar, e nesse caso, o constrangimento se fazia não somente pela presença do guarda através de sua esposa, mas pela entrada da polícia na área e nas casas dos moradores. Para Érico, a mulher de Mário era mais incomodativa do que ele, que por já ser sujo, ou seja, já ter cumprido pena e ser um homem enredado em mortes, não se envolve com a polícia. Quando vinha visitar seus compadres que moravam no Camargos, a mulher pegava carona no transporte escolar, onde chegou a xingar a filha mais nova de Érico e Mariane. A esposa de Mário surgia, portanto, como alguém que poderia perpetuar a presença de seu marido no Faxinal dos Camargos, e dar continuidade às suas intimidações de modos que a ele eram interditos. Além de chamar a polícia, ela também permanecia circulando no território faxinalense, e enquanto o fazia, anunciava sua desavença com os moradores, explicitando que apesar de não morar mais lá, ela continuaria incomodando, e lembrando-os de que a confusão não pararia por aí. A mulher deu entrada em um processo contra Érico em resposta à confusão que havia ocorrido em sua casa, e que culminou com sua expulsão da área. Por causa disso, Érico respondia em liberdade por crime de ameaça, tendo de prestar serviços comunitários e pagar uma “Prestação Pecuniária” ao Fundo Municipal da Criança e do Adolescente. Diante da informação de que Érico teria uma arma de fogo, foi instaurado um inquérito policial. Segundo ele, foi em busca de armas que a polícia viera, naquele dia, revistar sua casa e as dos vizinhos, e era certo que iriam voltar. Alguns dias depois dessa conversa que tive com Érico e Mariane, o assunto das ameaças sofridas pelo casal veio novamente à tona. No retorno de uma das visitas que fiz com Mariane a uma de suas vizinhas, ela perguntou-me, em certo ponto de nossa caminhada, se eu havia ouvido alguém dizer alguma coisa, para ter perguntado aquilo (se eles haviam sido ameaçados por Mário Ferreira depois de ele ter sido expulso da área). Respondi-lhe que não, e que percebi que havia agido mal ao ter falado aquilo daquele jeito. Ela balançou a cabeça, em sinal de que concordava comigo. Expliquei-lhe que minha pergunta tinha a ver com as histórias que ouvi ao longo de meu trabalho no município, de diversas pessoas que sofreram perseguições dos homens vinculados à madeireira. Mariane pareceu mais confortável com minha resposta e disposta, agora, ao falar sobre o assunto. Estar fora de sua casa, longe da presença dos seus filhos, e caminhando comigo, corroborava para sua abertura. Ela contoume, então, que Mário Ferreira andava sim tecendo comentários ameaçadores por aí. Ela ouviu dizer que ele havia declarado que pra quem já matou não faz diferença matar mais dois, três. Mário não só reiterava sua coragem de matar, como também afirmava que não mataria
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somente um. A situação de minha anfitriã, portanto, era de medo intenso. Ela acreditava, porém, que por não beber mais, e por ser sujo com a polícia, talvez Mário refrearia suas hostilidades com a família dela. O silêncio, em situações de ameaça explícita, tal como me foi colocado num primeiro momento por Mariane e Érico, eram um sinal da continuidade do conflito e da possibilidade de violência. Configura-se uma situação próxima à que Favret-Saada (1977) discute a partir da feitiçaria, em que as próprias palavras agridem e espalham sortes, e que quem fala sobre a ameaça é também envolvido nela, não havendo espaço para interlocutores neutros, o que abrangia também a mim. Mariane desconfiou que eu soubesse de algo, pois perguntar se eles haviam recebido alguma ameaça era um sinal de que eu também teria envolvimento com sua história, que já teria ouvido algo antes. Ela tentava, evidentemente, me posicionar diante daquela situação. A ameaça é mais do que uma informação que permite que ambos os lados de um conflito prossigam com suas táticas de ataque e de defesa, mas uma declaração de poder, que será incorporada ao cotidiano em forma de medo, e que mudará as formas de as pessoas se relacionarem com seus lugares, de tecerem seus deslocamentos, e de lidarem umas com as outras. É central, nos modos com que elas trabalham com a violência em seu cotidiano, o fazer-se ausente produzindo assim a própria invisibilidade, ou os deslocamentos, a ida para longe. No entanto, fazer-se completamente ausente em uma situação de conflito de terras é um contrassenso em relação ao objetivo de tal luta, que é justamente a presença e a permanência na terra. Assim, se diversas narrativas sobre os conflitos de terras promovem uma certa continuidade entre os modos de agir dos guardas, jagunços e pistoleiros, e as brigas e vinganças de família, as brigas em bares e festas, os desaforos que desafiam o saber viver com os vizinhos, por outro lado, as formas de lidar com tais ameaças nem sempre seguem os mesmos percursos. Marques (2002), ressalta como as “questões” e “intrigas” no Sertão de Pernambuco são acomodadas por meio de afastamentos espaciais, táticas de evitação que vão desde tentativas de não se encontrar no cotidiano, até mudanças de local de moradia. Por isso, não são simplesmente os “lados” envolvidos nas “questões” e “intrigas” que têm suas relações de convívio alteradas, mas todos os outros sujeitos que com eles se relacionam também remanejarão seus modos de conviver com esses agentes em conflito. A autora chama atenção, além disso, para o fato de que “se um acordo territorial sugere que a distância espacial e social é a condição para a trégua, é porque a proximidade é a condição do conflito” (MARQUES, 2002, p.163). A introdução de um distanciamento físico entre pessoas encrencadas ou
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brigadas também surgiu, ao longo das experiências que analisei até aqui, como transformação fomentada por tais processos de hostilização. Estar longe é uma maneira de tentar evitar que a ameaça se concretize, mas não a afasta enquanto horizonte de possibilidade. Por outro lado, as encrencas e brigas, tais como as intrigas e questões, decorrem justamente desse convívio próximo e familiar, ou seja, é preciso levar a sério o fato de que as pessoas que vivem tais situações não estão separadas ou distantes em seu cotidiano, ao contrário, elas vivem muito perto umas das outras. Essas dinâmicas de proximidade/afastamento, ausência/presença, adquirem contornos mais dramáticos quando a bronca é por causa de terra, porque o local de ameaça passa a ser a própria casa onde uma família vive, de modo que não é um ou outro membro do coletivo familiar que está em perigo, mas todos os que moram naquele lugar. Mulheres e crianças, assim, adquirem centralidade nessas situações, como atesta o exemplo da esposa de Mário Ferreira falando absurdos para a filha mais nova de Érico e Mariane no transporte escolar. Isso sem falar que elas também se tornam vítimas potenciais dos atos de violência propagados nesses processos de disputas de terra. Ademais, enquanto nas encrencas e brigas que dizem respeito às querelas entre vizinhos, às discussões de bêbados, aos boatos disruptivos, é possível que uma pessoa se esquive de encontrar sua “inimiga”, nos casos dos conflitos de terras entre os moradores do interior e os guardas/o Zattar, o “inimigo” vem até sua casa. É preciso lidar com ele como manda a boa hospitalidade, evitar ao máximo perturbá-lo para que ele não faça o pior. As pessoas jogam, nesse sentido, com o modo com que percebem que o outro (guarda/Zattar) vê o morador: como uma pessoa que mora nas terras de outra e que supostamente não deveria estar ali. Essa percepção não é sinal de passividade, mas, como destaca Certeau (1998) sobre as “artes do fraco”, as “artes de fazer” populares, trata-se de uma forma de usar um conhecimento e produzir algo com ele – nesse caso, a resistência no território. Um modo enfim, de atuar nas “brechas” de um esquema de propriedade que confina as pessoas à condição de estrangeiras nas terras onde vivem. Essas artes da boa convivência, contudo, nem sempre funcionam. O mundo está cheio de homens ruins, que gostam de matar, e que também querem o deles – caso de tantos guardas que habitam ou habitaram as terras da empresa. E era através da própria madeireira, de seu laço com ela, que esses homens de armas sustentavam sua autoridade sobre seus pleitos, e tornavam-se prevalecidos em suas relações com os vizinhos. Nessa trama, portanto, sobrepunham-se as possibilidades de encrencas, broncas, desaforos, brigas e vinganças com os guardas enquanto vizinhos, e as lutas por terra e autoridade, onde mais do que lidar com a
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produção de distanciamentos, é preciso conviver com a presença continuada do medo, da ameaça. Ficar, aqui, é a arma que faz a força do “fraco”, aquilo que é capaz de dar legitimidade ao seu pleito e algum respaldo legal para sua reivindicação fundiária. São casos limite, em que não é só a vida de um ou outro que estão em jogo, mas todo o modo de vida dos moradores de tais terrenos: suas relações familiares, econômicas, de vizinhança, tudo o que eles têm e querem ter. Aqui não são as pessoas, simplesmente, em seus deslocamentos cotidianos, ou suas exposições e predisposições a certas hostilidades, que trazem perigos para dentro de casa. O perigo é também estar em casa e na terra, de modo que a própria violência se torna um elemento da produção dos ambientes onde essas pessoas moram, entre o medo e a esperança de paz. Essa paz, por sua vez, não depende só delas, mas é construída por meio dessas artes da boa convivência, da relação com Deus e os santos, que protegem e concedem graças, e com os órgãos públicos e juízes de direito, entidades capazes de fornecer os documentos.
6.3 O MST, o guarda e os Junqueira
Ao contrário do caso de Mário Ferreira e dos faxinalenses, nem sempre os guardas se recusaram a entrar com os movimentos sociais. No caso que descreverei a seguir, foi justamente o acordo com um antigo guarda da madeireira, e o fato de ele também buscar direitos sobre o terreno onde morava, que impediu que um acampamento do MST sofresse uma ação de reintegração de posse. Essa ação não foi movida pelas Indústrias Zattar, mas sim por uma família que vivia perto da área ocupada pelos sem-terra, e que havia resolvido reclamar direitos sobre ela. Assim, a situação indefinida das terras da madeireira (terras ofertadas pelas Indústrias João José Zattar S/A ao INCRA e ocupadas por famílias de posseiros, sem-terra e faxinalenses) também abria espaço para que outras pessoas, que não possuíam vínculos com os movimentos sociais, e nem com o Zattar, demandassem direitos sobre as áreas. O caso em questão ocorreu em uma das áreas ofertadas pela madeireira nos arredores da antiga Zattarlândia. Naquela região do município, eu permanecia na casa de Dona Francisca, viúva de um guarda do Zattar, que permaneceu nas terras da empresa como posseira, e após anos de luta na justiça, conseguiu a usucapião de seu terreno. Em 2007, o MST promoveu uma série de ocupações nas terras do Zattar em Pinhão, incentivados por um contato feito pela AFATRUP. Contudo, antes de efetuarem essas ocupações, os sem-terra
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acamparam nas terras de Francisca, com a concordância dela. Nessa época, contou-me Seu Pedro (irmão de Dona Francisca), alguns membros do movimento planejavam a expulsão de Lauro Barros, antigo guarda do Zattar, o qual vivia em uma das áreas que seriam ocupadas. Apesar de em alguns momentos Seu Pedro se referir a Lauro como guarda, em outros ele o chamava de pistoleiro, reconhecendo nele um dos homens de armas da madeireira que passavam por dentro dos terrenos de sua família, e que muitas vezes os intimidara. Lauro era chamado de guarda quando entrava em questão sua presença nas terras da madeireira e sua relação com o MST. No entanto, ao rememorá-lo como um dos agentes que os ameaçava diretamente, Seu Pedro chamava-o de pistoleiro, enfatizando o potencial de morte guardado nos modos com que Lauro desempenhava seu trabalho. Essas distintas nomeações indicam também as transformações que Lauro viveu ao longo dos anos. Antigamente ele trabalhava pro Zattar e era tido um dos sujeitos perigosos da empresa, mas hoje em dia ele é uma das tantas pessoas que vive nas terras da madeireira e que busca direitos sobre elas. Ele ficou como um sem-terra na área, diziam algumas pessoas que moravam perto de Lauro, referindose não só as relações que o guarda tinha com o lugar onde vivia, mas também sua proximidade ao MST. Antes de trabalhar para a empresa, Lauro já tinha uma trajetória de envolvimento em situações de violência, que o tornavam reconhecido como pessoa com quem não dá pra mexer. A entrada dele no universo das mortes ocorreu a partir de um ato destrutivo dentro de sua família. Quando jovem, ele matou o próprio irmão, por ciúmes dele, explicou-me Seu Pedro. Eles eram em vários irmãos, mas um deles, em particular, recebia mais atenção de seu pai. Era a ele que o pai queria melhor, e para quem dava as coisas, o que colocava o irmão de Lauro na posição de filho preferido. Tá vendo como não presta dar mais ganja pra um filho do que pro outro? – refletiu Seu Pedro, lançando mão da expressão dar ganja, que significa adular, considerar, fazer os gostos da pessoa. Por ter matado seu irmão, Lauro perdeu o direito à herança de seu pai. Houve, também, uma quebra de relações entre ele e o restante da família, de modo que ele se afastou dos seus pais e irmãos. Lauro, chamado também de Laurão, vivia há vários anos nas terras onde o MST almejava estabelecer acampamento. Enquanto guarda, ele havia recebido aquelas terras de seu patrão para morar e cuidar, tal como foi o caso das terras que o marido de Dona Francisca recebera, nas quais ela permaneceu após a morte dele. Entre os homens que estavam acampados nas terras dela, havia dois irmãos de Lauro. Os familiares de Dona Francisca, junto às lideranças da AFATRUP, conversaram com os irmãos do guarda, e sugeriram que convencessem o MST a não expulsar Laurão de lá. Tal como no caso de Mário Ferreira, aqui
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as negociações do movimento social também recaíram sobre pessoas que tinham algum vínculo de parentesco com o guarda. Era preciso que os sem-terra concordassem que, ao invés de expulsarem o guarda, seria mais proveitoso fazer um acordo com ele. Seu Pedro temia, nesse sentido, que entre os acampados houvesse homens que gostavam de briga, e que pudessem tentar fazer o pior para Lauro. O guarda, que não era gente com quem se deve mexer, certamente revidaria, e algo feio poderia acontecer. Além disso, havia o temor de que com morte de seu guarda, o Zattar e os vizinhos pudessem tentar um enfrentamento mais radical contra o MST, chamando a polícia para despejar os acampados, e fazendo estourar uma nova onda de agressões e mortes naquelas terras. Assim, Seu Pedro e outras pessoas envolvidas com o acampamento acreditavam que todo o processo de ocupação seria melhor para os sem-terra se eles deixassem o guarda quieto. Houve, desse modo, a articulação de um acordo com base no conhecimento prévio sobre o guarda, com o objetivo prevenir possíveis brigas, encrencas e confrontos com o homem, e evitar situações de violência entre os acampados e um possível antagonista. O acordo foi bem sucedido, os acampamentos foram levantados, Lauro permaneceu nas terras onde vivia, e não houve problemas entre ele e o MST. Diferentemente do caso de Mário Ferreira na ARESUR faxinalense, Lauro não teria seu terreno afetado pela presença do acampamento dos sem-terra. Ali, as famílias de acampados dividiram-se em lotes95, de modo que cada acampado trabalha em sua área. Apesar de haver regras de conduta comuns a todos os membros do movimento, e cuidados para garantir a boa convivência dentro do acampamento e com seus vizinhos, a proposta de ocupação da terra é distinta da faxinalense, em que o território é organizado como criador e, nesse sentido, como terras de uso comum. Para Lauro, a presença do MST não mudaria em nada sua vida na terra, a não ser pelo fato de ele ganhar uma porção de novos vizinhos. Assim, o acordo feito entre o guarda e o Movimento tem a ver com o caminho de busca por direitos proposto pelos sem-terra, e inclusive, fortaleceu a permanência de ambos no território. Com a presença do MST e o posicionamento que Laurão assumiu perante o Movimento, ele passou a ser reconhecido como alguém que ficou como um sem-terra na área, identificação que tem a ver com o próprio modo de ocupação que o guarda desempenhava sobre as terras onde vivia, as quais eram do Zattar. Laurão acabou auxiliando o Movimento quando contestou uma ação de reintegração de posse levada adiante por Carlo Junqueira, que resolveu reclamar seu direito sobre as áreas 95
Em Pinhão, 10 alqueires parece ser a medida comum entre os terrenos que passarão pelo processo de reforma agrária.
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do Zattar naquela região. Na primeira vez em que ouvi falar dos Junqueira, Carlo, pai da família, já havia falecido. O assunto, contudo, não era a ação de reintegração de posse, mas sim, os detalhes de seu curioso velório. Era Joaquim quem então me falava dos costumes, e do que chamava de a cultura do povo do Pinhão, ressaltando empolgado que lá até velório de sete dias já havia ocorrido. Contou-me que quando o velho Carlo Junqueira faleceu, seus filhos e sua esposa acreditavam que em sete dias o homem iria reviver. No interior de Pinhão, os familiares de um falecido costumam realizar o velório dentro da casa dele, sobretudo quando o corpo será enterrado em um cemitério próximo. Foi o que aconteceu com Carlo Junqueira, que foi velado na sala de sua residência. Porém, a família não enterrou o corpo, como era previsto. Mantiveram o morto no meio de sua sala por vários dias, o que gerou tamanho falatório em sua vizinhança, que até a polícia foi chamada para resolver a situação. Os policiais foram até a casa dos Junqueira, e os obrigaram a enterrar o falecido. Assim fizeram os familiares de Carlo, entretanto, houve quem dissesse que depois disso eles o desenterraram e continuaram a cuidar do seu corpo, no qual passavam panos quentes, crentes de que o homem retornaria à vida96. Diz que o corpo do defunto já estava até esfolado, devido ao esfregar repetitivo dos panos. No sétimo dia, o velho Carlão, como o chamavam seus vizinhos, não viveu. Seus familiares acabaram por enterrá-lo ali mesmo, embaixo da casa, algo considerado sinistro e digno da reputação que os Junqueira (ou os Carlão, como também são chamados) adquiriram na região, enquanto gente ruim. Outras pessoas que me contaram sobre o velório de sete dias salientavam duas facetas desse evento. De um lado, a família não acreditava na possibilidade de seu chefe morrer, o que era tomado por aqueles que ouviram o causo como uma espécie de loucura conjunta, de pessoas que estavam fora do juízo. Por outro lado, o fato de acreditarem nisso, e de terem passado tantos dias com o morto no meio da sala, suportando o mal cheiro que o corpo exalava, e que atraía urubus para os arredores da residência, era interpretado como atitude de pessoas envolvidas com algo maligno. Havia qualquer coisa de muito esquisita nesses Junqueira, que os tornava pessoas com quem não se deve mexer. Mas mexer com os Junqueira é perigoso também por outros motivos. Um dos filhos do falecido Carlão vive escondido no terreno da família, foragido da justiça. Conta-se que ele matou um homem em outra cidade, e fugiu para não ser preso. Agora, ele não sai mais do terreno familiar. Além disso, ouvi uma história segundo a qual os Carlão mataram, numa 96
Essa prática de passar panos quentes nos corpos de pessoas que sofrem desmaios e espasmos, e que são dadas por mortas, é tida como um costume dos antigos, e me foi relatada em outras histórias sobre pessoas que estavam à beira da morte, e retornaram à vida.
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emboscada, há bastante tempo, um homem que era antigo vizinho deles, por causa de uma encrenca que se iniciou com um desentendimento em torno de uma mina d`água. A reputação de gente ruim que a família recebeu resulta, assim, tanto da trajetória de alguns de seus membros, envolvidos com mortes, quanto de feitos extraordinários e tidos como absurdos, como o velório de sete dias, espetáculo considerado macabro e digno de pessoas que mexiam com coisas ruins. Os Junqueira são considerados por seus vizinhos como pequenos proprietários, que habitam as mesmas terras há gerações, antes mesmo da entrada da madeireira na região. No início da organização dos acampamentos, quando Carlão ainda era vivo, um de seus filhos participou do MST, mas não por muito tempo. Após deixar o acampamento, ele, seus irmãos e seu pai resolveram ser donos de 500 alqueires de terras naquela região do município. Foi então que Carlo Junqueira entrou com uma ação de reintegração de posse contra o MST. No entanto, as áreas que reivindicava como suas, sob o argumento de que se tratavam de antigas terras de herança de sua família, eram reconhecidas não só como pertencentes ao Zattar, mas englobavam terras de herança de outros antigos proprietários da região. Assim, ao construir o argumento de defesa dos acampados, o advogado do MST teve de tomar uma série de cuidados para que não parecesse que ele estava defendendo a própria madeireira. A ação de Carlo era vista como uma ameaça por praticamente todos os habitantes daquela vizinhança, tanto porque o tamanho da terra que ele clamava como sua era absurdamente desproporcional aos olhos do restante dos moradores, quanto porque agindo assim ele colocava em risco não só a permanência do MST na área, mas a de um número maior de famílias. Ninguém tinha conhecimento de que as terras reivindicadas houvessem sido ocupadas pelos antepassados dos Junqueira, que sempre foram identificados com uma única porção de terras, justamente aquela onde a família de Carlo morava. Além disso, os processos levados adiante por Carlo Junqueira na justiça eram tratados, pelos moradores das terras em questão, e dos seus entornos, como uma ação da família Junqueira enquanto coletividade. Quando referiam-se a essa questão, e às próprias ações que corriam na justiça, os moradores da região nunca falavam em Carlo, mas sim nos Junqueira, e nos Carlão. Esse modo de compreensão vai além da questão de que os filhos de Carlo herdaram sua ação, já que ele faleceu antes de ela ser julgada. Mais do que isso, há uma ideia de que existe uma família interessada nas terras, e que os filhos de Carlão agiam junto com ele para sustentar aquela reivindicação exagerada. Afirmando seu suposto direito sobre os terrenos, a família não se restringiu à ação de reintegração de posse sobre a área, mas também expulsou à força os sem-terra que ali viviam,
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tocando fogo nos seus barracos. Quando contou-me isso, após falar do velório de Carlo, Joaquim afirmou que aquilo não iria ficar assim, e que ainda haveria muita coisa feia por lá. Porque a pessoa quando sai quieto não deixa as coisas assim, completou Joaquim. Essa máxima previa que por trás da aceitação de uma situação de agressão, novas tramas serão aos poucos desenvolvidas com o objetivo de produzir uma retaliação. Dessa maneira, o espectro da vingança também se inscrevia nos ajustes organizados pelos membros dos movimentos sociais. Porém, eu não soube de nenhuma ação organizada pelo MST contra os Junqueira. Na verdade, com a ação de reintegração de posse, a família adquiriu novos inimigos na região, um dos quais, inclusive, era o antigo guarda, Laurão. A ação dos Junqueira foi contestada por duas pessoas que viviam nas terras que a família reclamava para si. Uma delas foi uma senhor que residia no local há mais de quinze anos, e que alegava que a área pertencia às Indústrias João José Zattar. Em sua argumentação à juíza que cuidou do caso, essa senhora salientava a existência de um processo administrativo entre o INCRA e a madeireira, cujo conteúdo versava sobre a aquisição do imóvel pelo órgão federal para fins de assentamento. Outro dos moradores que contestou a ação de reintegração foi justamente o antigo guarda do Zattar, Lauro Barros, que afirmou que era residente na área há mais de vinte anos, e apresentou à juíza um contrato de comodato entre ele e as Indústrias Zattar. Por isso, o guarda acabou contribuindo com a causa do MST, que contava com vinte e cinco famílias morando na área em questão. Dois anos após a morte de Carlo Junqueira, foi marcada uma audiência para decidir sobre a ação de reintegração de posse. Alguns meses antes do julgamento, Lauro sofreu um atentado quando passava de carro pela estrada. Atiraram no carro dele, mas não o atingiram. A passageira que ia com ele de carona, uma senhora do MST, acabou levando um tiro no braço. Depois disso, Lauro foi até a polícia para dar parte do ocorrido, mas relatou que não sabia quem havia armado a emboscada contra ele. No próprio julgamento da ação de reintegração de posse, as pessoas que estavam presentes, e que depois contaram para os vizinhos o que havia se passado no tribunal, disseram que Lauro não falou nada sobre o tiroteio. No fim, os Junqueira não ganharam sua causa, que eles mesmos não haviam conseguido defender perante o juiz. Segundo Elena, filha de Dona Francisca que me contou essa história, diz que as testemunhas que os Junqueira escolheram a seu favor não sabiam falar direito. Quando questionado pela juíza se os Junqueira moravam nas mesmas terras que estavam reivindicando, um dos homens que deveria ter falado em prol deles respondeu negativamente. E afirmou que não sabia se um dia os Junqueira, ou seus antepassados, haviam morado lá.
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Essa testemunha de defesa, portanto, era vista como alguém que acabou por prejudicar a ação de reintegração de posse. Outro dos defensores dos Junqueira era um grande proprietário de terras na região, que teria feito um acordo com aquela família, por meio do qual ficaria com alguns dos alqueires reivindicados na reintegração de posse. Figura controversa, esse proprietário denunciava os integrantes do MST à Força Verde 97 . Para se vingarem, os acampados tocaram fogo na propriedade do homem. A figura desse proprietário indica que não eram só os Junqueira que percebiam a abertura das terras da empresa como uma oportunidade de adquirir um patrimônio maior para si. A família havia contraído alianças com outros moradores da região, que também tinham interesses sobre as terras do Zattar. Poucos dias antes de eu deixar Pinhão, soube, por intermédio de uma senhora que participa de um dos acampamentos do MST, que havia ocorrido um novo tiroteio na área reivindicada pelos Junqueira, e a queima do barraco de um acampado. Lauro e mais dois homens saíram atirados. Um desses homens, contudo, estava sendo tratado em casa, pois não podia sair de lá, disse-me a senhora, sem dar grandes detalhes. Imaginei que o homem em questão poderia ser o filho de Carlo Junqueira, justamente aquele que está foragido, e que não pode deixar as terras de sua família. Meses depois, por intermédio de colegas que também desenvolvem trabalhos em Pinhão, soube que esse tiroteio foi extremamente tenso, e que havia até crianças no meio, que acabaram levando tiros. As áreas da madeireira novamente eram palco de situações de violência, as quais, voltadas para a questão da terra e tendo também como característica a proximidade das pessoas em disputa, são levadas adiante por meio de emboscadas, queimas de casas e tiroteios que colocam as crianças no foco do perigo. Um ano depois disso, o MST entrou em peso nas áreas do Zattar ao redor da antiga Zattarlândia. Ocuparam uma extensão maior de terras, e acamparam novamente em uma antiga fazenda que haviam concordado com a madeireira em abandonar, anos antes. Em pouco tempo, a polícia apareceu e realizou o despejo desses novos acampados, tocando inclusive fogo em seus barracos. Mas isso não adiantou, pois os sem-terra voltaram para as áreas, e permanecem lá. O conflito de terras nas áreas das Indústrias Zattar em Pinhão emerge como dinâmico e inacabado, como algo que atravessa diversas gerações e vizinhanças inteiras, e que permanece em aberto, enquanto os documentos que o MST e os posseiros desejam, não são obtidos. Os faxinalenses, por sua vez, tiveram maior agilidade no reconhecimento do território, mas ainda vivem conflitos com outras pessoas que nele habitam e podem inclusive 97
Polícia Ambiental do Paraná.
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sofrer ameaças de despejo. Surgem, nas áreas do Zattar, diferentes situações em torno da garantia da terra: alguns posseiros, antigos moradores, parecem seguros em suas áreas, onde há muito a madeireira não os incomoda. Persiste, em alguns deles, o medo de que o Zattar possa voltar. E certas áreas habitadas por posseiros vêm sofrendo, nos últimos anos, ações de reintegração de posse por parte da empresa. Os faxinalenses, que aparentemente estariam seguros em suas ARESURs já reconhecidas, também não têm garantias de que aquelas terras efetivamente se tornarão Reservas de Desenvolvimento Sustentável, ou seja, que deixem de ser terras do Zattar. Os antigos acampamentos dos sem-terra permanecem em efervescência, com suas famílias já instaladas em casas, e em ativo movimento de pressão junto ao INCRA. Enquanto isso, novos acampamentos estão sendo formados no interior do município, inclusive em terras que ultrapassam as da madeireira, como é o caso das terras da viúva no Faxinal dos Caldas. Se observar o conflito de terras a partir de um quadro que toma como ponto de partida a existência desses movimentos sociais distintos é uma possibilidade de análise, as experiências de luta dos moradores do interior me sugeriram uma abordagem distinta. Quando consideramos as trajetórias de seus membros, seus pontos de vista particulares sobre seus confrontos, e suas inserções distintas nas terras que almejam, as fronteiras entre esses coletivos se tornam mais enevoadas, e as relações entre os agentes em luta ganham proeminência frente a definições estereotipadas de “coletivo”, “movimento social”, ou “unidade”. Não que isso não exista ou que não tenha eficácia. No enfrentamento dos faxinalenses ao guarda Mário Ferreira, a união entre eles e com outros movimentos sociais foi fundamental para a expulsão do homem de armas daquelas terras. De modo parecido ao que Palmeira & Heredia (2010, p.173) discutem no caso das facções políticas, aqui os movimentos sociais se produzem enquanto unidade e lado contrário à madeireira e seus agentes, em razão do conflito. Nesse caso, é produtivo levar o enfrentamento ao limite, até mesmo para tornar efetiva a unidade formada por aqueles que lutam pela terra. Assim também, os movimentos e suas lideranças exigem certos comprometimentos de seus membros, pois é a visão de sua força enquanto coletivo que sustenta suas reivindicações perante os órgãos responsáveis pela reforma agrária. Em um plano mais cotidiano, contudo, as pessoas se movimentam entre diferentes possibilidades de relação com os coletivos de luta, podendo inclusive transitar através dessas diferentes esferas. Além disso, homens que poderiam ser tidos como aliados do Zattar podem se identificar com a causa dos movimentos sociais, como foi o caso de Lauro Barros. E pessoas que são desvinculadas da madeireira ou dos coletivos, poderiam também tomar parte
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na disputa por terras, como é o caso dos Junqueira, em aliança com outro proprietário de terras. O conflito de terras, assim, ultrapassa limites de definição, deixando de ser uma disputa entre dois lados, mas nem por isso deixando de existir (Figurelli, 2012). Tal como é vivido pelos agentes cotidianamente, ele vai além de fronteiras de tempo, espaço e definição de grupos, para ramificar-se em novas disputas de terras, em que pessoas que um dia foram aliadas se tornam antagonistas, e vice-versa. É também levando em consideração que a disputa por terras se divide entre múltiplos agentes, e seu próprio posicionamento nesse emaranhado de relações, que os moradores do interior vivem a violência enquanto desdobramento desses conflitos.
Em termos de
experiência, os atos de agressão relacionados à terra são compreendidos a partir da convivência cotidiana, dos desaforos, e de um conhecimento acumulado sobre as presenças de certos moradores nas terras, suas reputações, com quem não se deve mexer, como buscar acordos.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vinganças No horizonte das narrativas sobre as mortes causadas por brigas e encrencas, a produção de vinganças emergia como elemento de reflexão, como uma possibilidade sempre presente, ainda que algumas vezes contestada como sendo um modo falho de buscar justiça. Se por um lado as questões postas por meus interlocutores encontram ressonâncias em modelos mais clássicos de concepção de vingança como “sanção” socialmente aprovada, ou “troca de mortes”, por outro, as pessoas que me falavam sobre isso iam muito além da formalização da vingança. Suas experiências me levaram a pensar no potencial criativo e destrutivo de relações entre pessoas que está em jogo nesse termo, que não é tomado como um simples modo de proceder, de levar adiante a morte daquele que matou seu ente querido, mas a abertura de um tempo de novas condutas entre pessoas, novos distanciamentos, aproximações, observações, narrativas e medos. A morte, nesse sentido, imbricava-se à vida e se tornava tema de atenção de pessoas para além daquelas ao qual a vingança era circunscrita, também através do trabalho narrativo. Porém, havia algo, nessas experiências, que não fechava o circuito da “troca”. Mais do que um processo que se efetivava enquanto morte, a vingança contaminava a vida, revolvida agora por medos, ameaças e retraçar de caminhos. Pois enquanto promovia a criação de uma exterioridade entre as pessoas, e de discussões sobre quem poderia ou não realizá-la, a vingança se estendia como hostilidade duradoura que mexia com o que está dentro e perto. As vinganças estão no centro da fama de valente de Pinhão e do Faxinal dos Ambrósios, relacionadas a um antigamente em que homens se reuniam para enfrentar seus inimigos no espaço público. A fama de valente de Pinhão teria sido atribuída a uma história que remete aos primórdios do município, quando um grande número de homens juraram vingança no velório de um fazendeiro e foram até Guarapuava na tentativa de encontrar e buscar o homem que o havia matado. Nesse sentido, a vingança era também um modo socialmente aprovado e combinado de se fazer justiça com as próprias mãos. Ela não se realizou, mas a fama de Pinhão ganhou destaque. Foi enquanto matéria de “direitos”, que a “vingança” foi tratada, por exemplo, por Radcliffe-Brown (1973, p.257), que dá o exemplo de “sociedades” em que a morte de um membro dá direito ao seu “grupo” de obter a retaliação por meio da morte do assassino ou de
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um membro do seu próprio “grupo”. A relação entre “vingança”, “grupo”, e “direitos”, de modos distintos, reverbera através de uma multiplicidade de trabalhos sobre o tema. EvansPritchard (1940), por exemplo, nota como a possibilidade de um “homicídio” se transformar em “vendeta” depende das relações estruturais entre as pessoas nele envolvidas, e salienta a produção de acordos de conciliação entre os nuer. De um modo parecido, Peters (1965) e Black-Michaud (1965) propõem distinguir diferentes formas de “violência” e “homicídio” a partir da definição das unidades sociais envolvidas, tomando como base sua presença em “sociedades segmentares”. Por essa via, a “vendeta”, de caráter obrigatório, se distinguiria de feuds e de guerras, na medida em que concentra-se em um nível social específico de segmentaridade. Verdier (1980, p.15), por sua vez, constrói um quadro em que a ofensa pode ser provocada por alguém de “fora” ou de “dentro” do “grupo”, o que no primeiro caso acarretaria na solidarização dos seus membros face a uma agressão externa, e no segundo, uma “sanção penal”, onde o grupo ofendido por um de seus membros se des-solidariza. A ideia de vingança enquanto penalidade, enquanto modo de resolver, também é bastante presente nas narrativas dos pinhãoenses. No entanto, há um conteúdo performático na vingança que vai além dessa linguagem da “sanção”, e que se torna matéria de narrativas e de produção de famas. Muitas vezes, a vingança se torna uma ameaça e não uma retaliação concreta, de modo que ela adentra o cotidiano das pessoas de maneira obscura, como um medo que as acompanha. Em outros casos, ela efetiva perseguições e a produção de emboscadas, de modo que as pessoas precisam rever seus trajetos e, por vezes, ir embora de suas terras para escapar de seus inimigos. Além disso, não me parece possível tomar como ponto de partida, nos casos que analisei, uma definição do que seria o “dentro”, o “fora”, e o “grupo”. As mortes se realizavam em distintas tramas de relação entre pessoas (família, gente, comunidade, lugar, terra, Zattar) e eram incorporadas a um ideal de vingança que também produzia esses coletivos, e quem poderia ou não ser o vingador e o vingado. As declarações de vingança, feitas em cima do caixão do morto, são um conteúdo expressivo das narrativas, demarcando uma espécie de abertura ao público para o tempo da vingança. O velório, desse modo, é um evento que se apresenta com diferentes minúcias nas histórias sobre mortes, adquirindo centralidade na forma com que as pessoas refletem sobre o que levou uma pessoa a tal fim. Detalhes sobre o estado do corpo e sobre sua exposição no caixão, que pode estar mais ou menos aberto, ou fechado, são explicitados. Esses detalhes são acionados pelas pessoas para falarem daquilo que as horroriza na maneira com que a pessoa morreu ou foi morta, sendo a
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deformidade do corpo, que deforma também a imagem da pessoa que o habitou, algo que torna tal morte algo feio e de dura compreensão. Nos velórios, são prestadas homenagens e solidariedade aos familiares do morto, e não só a quantidade de pessoas presentes, mas também suas relações com o morto e sua gente, são tema de comentários. Falar que o velório estava cheio é explicitar o prestígio de tal pessoa e de sua família, e contribuir na produção de sua reputação de pessoas boas e valorosas. Ao salientar que um velório estava vazio, por outro lado, as pessoas se remetem também à pressa com que ele foi realizado, e às relações que o público presente possui com o morto. É significativo, dessa forma, que ao comentarem as mortes de certos jagunços, as pessoas que tinham problemas com eles e com o Zattar declarem a presença de pouca gente nos velórios, e salientem ainda a participação de outros funcionários da madeireira, de possíveis contratantes dos serviços dos homens de armas, e dos gerentes da empresa. Isso revela, também, quem gostava dessa pessoa, e torna visível as tramas de relações que fazem seu renome e dentro das quais sua morte será sentida. Falar sobre quem sente a falta daquela pessoa que se foi é também expressar os gostos e desgostos que se tem com ela e com aqueles que a homenageiam. Por outro lado, o velório também é o momento em que as pessoas conversam sobre a morte, colocando em questão não só os motivos que levaram uma pessoa a tal fim, mas espalhando histórias sobre como aquela vida foi acabada, as feridas no corpo do morto, os movimentos das pessoas que realizaram tais feridas. Isso tudo é reelaborado em novas e posteriores narrativas, nas quais as pessoas problematizam esse conhecimento e declaram suas próprias avaliações sobre a morte. Nessas avaliações, o envolvimento não tem a ver somente com relações entre o morto e a pessoa que conta sua história, mas com a própria experiência que a pessoa tem dessa morte, ou seja, como a morte aconteceu e que afetos ela provoca. As problematizações sobre os velórios e as pessoas nele presentes também são uma maneira de expressar por quais vidas aquele que morreu continuará presente. Nesse sentido, quando falam em declarações de vingança, as pessoas se remetem diretamente ao velório e ao enterro, através da expressão jurar vingança em cima do caixão. Presentes nas narrativas, essas declarações são tomadas como partindo de certas pessoas que alimentam o desejo de retaliação por aquele que matou seu ente querido, desejo que é alimentado pelo público presente no velório e que também sofre com a morte. Mais do que isso, as juras de vingança são também uma forma de reconhecimento público sobre uma postura de retaliação, de querer resolver, enquanto modo de conduta que participa dos horizontes de possibilidades de agir sobre a morte. A vingança, tal como colocada nas narrativas, não tem um caráter obrigatório,
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mas se apresenta como um conteúdo propositivo, aberto ao debate sobre a continuidade da morte na vida das pessoas, sobre as transformações que a morte matada gera em suas maneiras de estarem umas com as outras, e sobre o que é capaz de fechar as suas feridas. Geralmente, as declarações de vingança são pronunciadas pelos filhos, irmãos, e pelo pai do morto. Assim, as vinganças são mais frequentemente tomadas como algo de família, o que também abrange diferentes formas de conceber família, segundo o vingador que adquire proeminência na trama. No Faxinal dos Ambrósios, a fama de lugar de gente ruim, ou de valente, era vinculada nas narrativas dos seus moradores a um passado de brigas de famílias, chamadas também de vinganças de família, cujos protagonistas eram os homens vinculados por laços familiares e de moradia. As mortes eram seguidas por vinganças em que o pai, os irmãos e os filhos do morto se uniam para produzir suas retaliações, o que acarreta em diferentes conformações de família e de quem se envolve nessas tramas de mortes. A hostilidade tinha continuidade entre as famílias do morto e daquele que o matou, de modo que as vinganças poderiam recair sobre todos os familiares. Referidos aos homens de antigamente, que andavam armados e bêbados pelas estradas, esses processos se estendiam no tempo, sendo passíveis de gerar sempre novas mortes. Nesse sentido, uma possibilidade comum de escapar de vinganças era ir embora, partir para longe, e não encontrar mais a família com quem se tem inimizade. Essas histórias sobre o passado apresentam algumas semelhanças aos modos com que as vinganças são acionadas nas narrativas sobre acontecimentos mais recentes. Em diversos casos, um filho do morto jurava vingança em cima do caixão. Em outros, eram seus irmãos que anunciavam tal possibilidade, através de fórmulas como isso não vai ficar assim. Também poderia haver uma sobreposição de declarações realizadas pelos filhos e pelos irmãos do morto. A vingança, assim, produzia certos sentidos de família no plano de discursivo. Conforme as pessoas nomeiam, em suas narrativas, quem são os familiares que dão materialidade ao desejo de retaliação, elas deixam entrever quais são os vínculos mais significativos que aquele que será vingado possui em termos de proximidade e semelhança. Essas declarações, contudo, não concedem automaticamente a fama de vingativas ou valentes a pessoas e gentes/famílias. Esperas, perseguição, a continuidade da declaração através de palavras ameaçadoras lançadas ao público, que chegarão aos ouvidos do inimigo como recados do que está por vir, as trajetórias dessas pessoas em mortes anteriores, tudo isso, enfim, contará para o desenrolar da hostilidade e para a consolidação do renome daqueles que se envolvem em vinganças.
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Quando uma morte é realizada por alguém de dentro da família, a vingança adquire outras problematizações, envolvimentos, e transformações nos vínculos das pessoas que se consideram parentes e família. Essas mortes são tomadas como mais transgressoras e desoladoras do que outras, na medida que as pessoas que nela tomam parte são tomadas idealmente como o mesmo, como seres que se fazem mutuamente, um através do outro. Por outro lado, elas também colocam em questão aquilo que diferencia os membros de uma mesma família, e nesse sentido, aquilo que torna seu jeito mais parecido, ou que os une, é também o que abre caminho para divergências e disputas. As narrativas sobre mortes dentro da família concentraram-se, nos casos que observei, em perspectivas segundo as quais a terra motivava as encrencas e mortes entre irmãos e cônjuges. No entanto, as questões iam além da terra da família, somando-se às disputas sobre as terras do Zattar, às brigas por causa de mulheres, às traições, e a considerações sobre ruindade e jeito das famílias e das pessoas especificamente. As mortes dentro da família geram antagonismos e novos reagrupamentos familiares, de modo que nem sempre a vingança entra em questão. No caso de Benedito, que matou seu irmão Bernardo, houve um distanciamento da viúva e de seus filhos, e também de um dos irmãos, com o qual se reconhece a existência de uma inimizade. Com os outros irmãos, porém, Benedito continuou convivendo. No caso de Marieta, que foi morta pelo marido, a possibilidade de vingança foi afastada pelos próprios filhos, que não queriam a morte do pai. Assim, ao mesmo tempo em que se coloca como uma possibilidade em vista, como algo que sempre é considerado nesses casos de morte matada, a vingança surge como a vontade de certos familiares, os quais adquirem maior peso na declaração da retaliação. Mas as narrativas dos vizinhos sobre uma morte matada também são modos de agir sobre a encrenca dos outros e sobre a ideia de vingança. Nos dias posteriores à morte de Joãozinho, esse acontecimento era assunto de conversas e relatos que descreviam a cena da morte e acompanhavam os passos dos bandidos pelas estradas e carreiros do Faxinal dos Cascatas. As possibilidades de denúncia eram carregadas de reflexões sobre a ameaça, sobre os assassinos virem querer tirar satisfações com seus denunciantes. Ao passo que davam suas opiniões e teciam seus sentimentos a respeito da morte de Joãozinho, as mulheres estendiam a morte e sua possibilidade de vingança às pessoas que estavam na casa do homem, no momento em que ela foi invadida e que ele foi morto. Nesse sentido, o filho de Joãozinho, seu irmão, e os tios das crianças e sobrinhos da senhora Sabina, que também estava lá e foi agredida, formavam nas narrativas uma trama de pessoas através da qual a morte do homem poderia se estender através do desejo de vingança.
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Todavia, enquanto traçavam essas relações entre o morto e seus familiares, essa trama de controle do envolvimento na questão, as pessoas não deixavam de reconhecer que elas também eram atingidas por isso. Elas tinham seus próprios sentimentos de revolta e perspectivas de retaliação, tanto quanto discutiam sobre a vingança ser ou não a melhor forma de reagir a esse tipo de situação. Seus trânsitos também eram revistos, considerando o perigo próximo a elas. Não havia lugar para a indiferença ou o afastamento em relação à morte de Joãozinho. Eram as próprias narrativas que tratavam de circunscrever esse problema como “dos outros” e de tecer os distanciamentos, porém fazer isso era também admitir-se próximo ao problema, e considerá-lo dessa perspectiva. O saber viver em comunidade, assim, implicava também saber viver com essas mortes e hostilidades, que se abriam a todos e assim permaneciam, como um conhecimento com o qual é preciso lidar para poder permanecer vivendo bem e em paz no meio de perigos. A ideia de que a “vingança” consiste em transações que envolvem tempo, e que abre um novo estado de relações entre coletividades, também é amplamente trabalhada na literatura sobre o tema, e abre questões sobre a finitude ou a permanência da vingança. Se a vingança tem como ponto de partida produzir uma resposta a uma morte vivida, podendo em certa medida ser percebida enquanto uma troca recíproca, o intervalo de tempo que se dá entre a morte e a vingança é o que a torna “diferida e diferente” da primeira ofensa, e que mantém seu desfecho em aberto enquanto a sequência não está terminada (BOURDIEU, 2002, p.232233). Porém, parece que em muitos casos, a sequência realmente não se fecha. Hasluck (1967), observa os feuds albaneses enquanto estado de inimizade entre famílias, acarretado pelo assassinato de um de seus membros, podem se estender por gerações através de consecutivas vinganças. Evans-Pritchard (1940), relembra que para os nuer, mesmo após cerimônias de reconciliação, uma vendeta é percebida como algo que jamais termina, pois o estado de hostilidades pode a qualquer momento irromper novamente. Marques (2002), por sua vez, observa que as “intrigas” no Sertão de Pernambuco são consideradas como eternas, pois ainda que a perpetuação das “vinganças” não se efetive, elas inauguram e qualificam uma relação que nasce de um conflito. Há algo nas “vinganças”, portanto, que vai além da “troca” de mortes, e que torna certas hostilidades duradouras e consideradas, por todos os que as conhecem e delas participam, um problema sério, com o qual não se deve mexer. Em Pinhão, essa hostilização que se demarca na declaração de vingança, nos comentários sobre ela, na problematização de sua justiça falha ou aceitável, também me levam a pensar as vinganças para além da morte e do ser morto. Apesar de isso de fato acontecer, e de as ameaças se transformarem em um
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medo constante entre famílias envolvidas em encrencas e brigas, as vinganças surgem nas narrativas como problemática a ser considerada sempre que alguém foi morto pelas mãos de outro. Isso mostra o peso que a vingança tem nesse imaginário das mortes matadas, enquanto modo de lidar com a violência, seja nas histórias do passado ou nos acontecimentos do presente. É também através de considerações sobre vingança que as pessoas se envolvem nas narrativas sobre a vida dos outros, e tecem considerações sobre formas de viver que incluem o matar e o ser morto. Assim, a vingança é parte criativa das próprias histórias sobre o saber viver entre as hostilidades de quem narra e das de quem se torna presente na narrativa, e enquanto a tornam matéria de cuidado, as pessoas refletem sobre seus modos de se relacionarem com os perigos que guardam.
Jagunços e valentes Nas narrativas sobre mortes, fossem elas referidas às encrencas entre vizinhos, às brigas de bar, ou ao Zattar, as pessoas expressavam não só seus cuidados com certas relações, mas esclareciam o que acreditam ser uma pessoa boa ou ruim. A pessoa gente boa é aquela que sabe viver. Ela conversa, cumprimenta, dá carona, visita, ajuda, enfim, ela sabe tratar as pessoas como elas compreendem o que é ser bem tratado. Aquele que sabe fazer isso, encontra elogios dos outros. Por outro lado, havia a ideia de família boa, que tem a ver com riqueza, patrimônio, mas não necessariamente no reconhecimento de tais pessoas como gente boa. Ser bom é questão de como a pessoa se conduz frente às outras, e não uma qualidade que vem de berço ou de bolso. Por isso também, se algumas famílias são gente boa, é possível reconhecer que no meio delas haja alguém que se diferencie por ser ruim. E da mesma maneira, entre famílias reconhecidas como de gente ruim, há aqueles que se salvam. Todas as pessoas têm seu jeito e sua natureza, acreditam os moradores do interior. Enquanto as famílias eram tratadas como portadoras de certos jeitos, a ideia de natureza, por outro lado, não parecia reverberar em gentes enquanto coletivos, mas sim nas pessoas em si mesmas. Seria interessante, nesse sentido, traçar comparações entre os modos com que se fala da natureza das pessoas, e da natureza dos bichos. Mas eu não teria condições de ir tão longe agora. Pelo adiantado da hora, lembro apenas que, pelo que dizia o pessoal, certas pessoas parecem bichos. E isso, para elas, é sinal de ruindade.
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A ruindade remete a certas disposições de fazer mal aos outros. Há pessoas que são prevalecidas, judiam das que estão em posição mais fraca, ou de menor autoridade. Outras interagem com o demônio ou o dianho, tomado como ser que habita corpos e lugares, e que fica perto daqueles de quem ele gosta. Ele é despertado, também, através da bebida, substância que adquire centralidade nas ideias de ruindade. Nem todo bêbado é ruim ou endemoniado, mas a bebida é um tema sempre presente nas brigas em bares e festas. A ruindade, nesse sentido, é percebida a partir das expressões corporais das pessoas, e se reflete em outras experiências pautadas nessa performance corporal. É assim que a ruindade de Jora, por exemplo, refletia-se no modo com que ela pariu seu bebê, sozinha no meio do mato, e deixou o pequenino largado embaixo de um pinheiro. Ali, não era sua face endemoniada que se mostrava, mas algo mais profundo, que dizia respeito às forças dela própria. Os valentes são também uma expressão de ruindade. Tomados como homens brutos, predispostos à confusão pelo modo com que se portam frente aos outros, os valentes não têm limites para agredir e chamar briga. Eles gostam disso. E têm coragem de matar. Quando me contaram histórias de valentes, Dona Ana Reis e Dona Francisca falaram não só da atitude deles frente a homens, mas referiram-se também aos modos com que tratavam suas esposas. A agressividade do valente, nesse sentido, pode dirigir-se também para dentro da família. Mas a maior parte de histórias que ouvi sobre homens valentes diziam respeito a antigamente, e traziam imagens de homens que saíam de casa montados em seus cavalos e com pelo menos um revólver na cinta, e iam para os bares beber e brigar. Das brigas e mortes vinham as vinganças e as famas, que acabavam se estendendo às suas famílias e seus lugares. Logo, alguns deles se tornavam renomados matadores de gente. Temidos, mas ao mesmo tempo valorizados por isso, eles encontravam quem os queria bem e precisava de seus serviços. Muitos guardas, jagunços e pistoleiros eram tratados como valentes. Porém, alguns eram gente boa. Moradores de casas do Zattar, esses homens eram inseridos de outros modos nas vizinhanças onde moravam, onde já eram ou se tornavam conhecidos, e onde geralmente viviam com suas famílias. Isso, por sua vez, tornava possível que suas esposas e filhos convivessem com as esposas e filhos dos posseiros. Muitas dessas famílias se tornavam amigas e estabeleciam vínculos de compadrio. Para além dos jagunços vizinhos, havia também os que vinham nas casas. Alguns deles conversavam, entravam, tomavam chimarrão, às vezes nem cobravam o arrendo. Esses são tidos como os que não incomodavam. As pessoas costumam dizer que aquele era o trabalho deles, que eles estavam naquela vida pelo salário, e não pra fazer mal. Havia, nesse sentido, considerações sobre a conduta desses homens de armas que iam além da madeireira, e que os tornavam tão próximos quanto
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qualquer vizinho a quem se quer bem. Outros deles, sabidamente ruins, também são relembrados como pessoas com as quais certos posseiros conseguiam conviver com tranquilidade. Mesmo valentes, eles também conversavam. E na conversa, faziam-se as boas relações. Era preciso saber viver com eles também. Mas nem sempre era assim. Vários desses jagunços eram tidos como homens valentes, que estavam naquele serviço para matar os posseiros. Esses não estavam naquele trabalho porque precisavam do salário, mas porque gostavam. Muitas vezes não era possível ficar bem com esses homens de armas por perto. Porque alguns deles são lembrados como sujeitos que estavam lá não simplesmente para atender, mas sim para expulsar os moradores de suas terras. Muitas pessoas que tinham medo de terem suas casas queimadas, ou de sofrerem emboscadas nas estradas. Para além disso, para os posseiros era um aperto viver sem poder tirar nada da terra e ainda ter que pagar arrendo para os guardas. Eles pagavam o que o Zattar pedia, e depois viam as bolsas de feijão e de milho largadas nas estradas, apodrecendo. Era uma judiação. Seu Camilo Oliveira, morador do Faxinal dos Cascatas, foi uma das pessoas que sofreu tendo de conviver com jagunços morando perto de sua casa e passando em seu terreno. Em uma entrevista gravada ainda quando eu estava começando a conhecer Pinhão, ele contou de um episódio ameaçador que viveu: Então daí nós se vimos apertados, não podia cortar uma taquara, não podia cortar uma vara, quase nem lenha podia haver. [...] E cortando aquelas taquara, fiz o feixinho de taquara, amarrei, feixotinho de taquara, assim. De repente escutei um estralo, ele fez um estralo pra mim olhar. Eu olhei ele com uma espingarda calibre 20 armada em eu assim. Diz: – Faz dia que eu acho roubo aqui - falou assim. Faz dias que eu acho roubo aqui. Não era só eu que cortava, outros também cortavam escondido né? Tinha que se esconder, porque os jagunços não deixavam cortar aquela taquara. Então daí, com aquilo, quando eu atendi aquele estralinho, tava ele e o outro filho do homem que parava com ele aqui também, eram dois jagunços que tavam aqui. Só gente perigoso, gente que fazia e desfazia. E eu atendo aquele estralinho, aquela espingarda, diz: – Achei o ladrão de taquara! Meu Deus do céu, que vale eu! – Vocês aí são isso, são aquilo, achei o ladrão de taquara! Faltava só ele atirar. A espingarda pronta, o revólvão pronto [...]. Daí o que é que eu havia de fazer? Concordei com ele! Vendo que ele atirava. Daí ele conversou um bom tanto, me insultou barbaridade. Aí, o que é que eu vou fazer? Disse pra ele: – Então não me deixa levar a taquara? – Não, não posso deixar, senão meu patrão me dá a conta. Daí a gente já tava orientado de alguma coisa. Eu perguntei: – O qual é que é teu patrão? – É o Tião. Pois o Tião era empregado do Zattar. Daí ele já me tratou diferente, já disse: – Você, o senhor, já é mais velho do que eu - disse. Concorde comigo, você devia de pedir pra cortar taquara, nós ali se enxergando. Eu disse:
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– Pra cortar taquara nunca pedi licença pra ninguém. Tava brotando a taquara assim, então onde tem a taquara mais velha tava brotando outras. Daí eu disse: pois é, e essa que eu cortei, olha aqui, brotando. Mas daí ele: – Ainda tem o que me responder? Mas não podia responder nada... Concordei de novo, pois é, mas tá brotando, eu tiro essa e. – Não me fale nada! Não podia, mas daí ele disse pra mim: – Você concorde comigo que eu arrumo um jeito bom pra você. Concorde comigo. Você veja, uma corda, uma corda pode ser comprida como for, tem um lugar que ela é rucidinha. Onde é que arrebenta essa corda, é lá onde é forte ou é aqui onde é fraco? E eu não respondi ele. Diz ele: – Pode ver, arrebenta ali onde é fraco. Os patrão lá são bem, e vocês de uma fraqueza aí, quem é que perde essa questão? É vocês, não é arrebentar onde é forte a corda, arrebenta ali onde é fraco, vocês são pobre, são precisado. Você concorde comigo que eu dou um jeito pra vocês. Eu disse: Não posso concordar! Daí eu arreminei! - ri Seu Camilo. – Não posso! Nós não tamos pra brigar com vocês, nenhum de nós posseiros. Nós tamos correndo pelos nossos direitos. Eu não to pra brigar com ninguém, nunca briguei, não quero brigar, e tenho até medo dessas coisas. Mas quando me agridem, o que é que eu vou fazer? Mas me levem, se eu não presto pra vocês me levem lá onde eu vou levar, porque eu vou levar vocês lá! Ah, daí ele foi amoderando, amoderando. Daí cheguei aqui na boca da noite, tava indo buscar um milho verde ali na planta, trouxe aquele milho verde e vim. Não me deixou levar a taquara! Não me deixou, de tipo nenhum. E disse: – Se você é tanta coisa se abaixe pegar essa taquara, se abaixe ligeiro, pegue essa taquara - com a espingarda pronta. Eu ia ser bobo? – ri Seu Camilo.
Isso aconteceu no início dos anos 1990, quando os posseiros do Faxinal dos Cascatas foram bastante ameaçados pelos homens de armas da madeireira. O relato de Seu Camilo, permeado pelo bate-boca dele com o jagunço que apontou-lhe uma arma ao vê-lo tirando taquara do mato, chamou-o de ladrão, de fraco, e ameaçou-o, agrega diversos elementos que faziam parte do cotidiano dos posseiros que viviam nas terras que a empresa havia adquirido. O homem queria obediência, mas ele também justificava sua ação como ordem do patrão, que aqui não surge como o Zattar, mas sim Tião, homem que era jagunço e mais tarde se tornou o chefe dos jagunços em Pinhão. Seu Camilo, bravo que ficou, disse que não estava para brigar com ele, mas ameaçou levar o homem para onde ele queria levá-lo, ou seja, até a delegacia. Era a esse tipo de situação que os moradores das terras do Zattar estavam expostos. Nesse sentido, se falar em guardas, jagunços e pistoleiros é também relacioná-los aos conhecimentos que se tem sobre suas famílias e as reputações de seus membros, e encará-los de perto, como homens desaforados, por outro lado, eles eram também mais do que isso. Vinculados ao Zattar, e recebendo ordens de gerentes e de outros guardas, eles também eram inimigos das pessoas a quem vigiavam. Os homens de armas eram a expressão de um domínio territorial de uma empresa que se fazia presente em uma multiplicidade de agentes, e que também era considerada enquanto família, mas cujo poder e prestígio a tornavam perigosa e
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temida de outras maneiras. A grandeza do empreendimento madeireiro, a riqueza da Zattarlândia e a grande quantidade de trabalhadores que lá viviam, o domínio territorial que se expandiu por quase todo o município, e o uso de força armada para vigilância e expropriação de seus terrenos faziam do Zattar uma entidade com a qual não havia como tratar em termos iguais. E esse poder se transmutava em seus homens de armas. Se todas as pessoas que matam são poderosas e temidas, os homens valentes que trabalhavam para a empresa agregavam outras potências às suas ruindades. Eles não eram só bêbados e homens ruins que agiam por si ou por suas famílias. Eles eram homens ruins que recebiam ordens de alguém que os tornava poderosos. Isso não deixava de ser considerado pelas pessoas que viveram agressões e ameaças dos homens da madeireira. No entanto, suas ações também eram pensadas como desaforos, encrencas, broncas, brigas, vinganças. As mortes e ações que realizavam enquanto homens da empresa eram problematizadas por meio desses termos, mas adquiriam outras características, na medida em que não eram vistas como partindo somente deles, mas de outra fonte de autoridade que era mediada por eles. Tomando a força de seus patrões também como a sua, eles esparramavam suas ruindades às pessoas a quem vigiavam. Por outro lado, era também isso que os tornava potencialmente perigosos uns para os outros, e que faz com que haja histórias de jagunços que se mataram entre si, em brigas em bares. E quando falam sobre eles, em geral, as pessoas destacam também sua força e coragem perante esses homens, sua própria condição de enfrentá-los. Atualmente, contudo, os guardas inspiram outros problemas, não por receberem ordens do Zattar, mas por reclamarem direitos sobre as terras da empresa que estão ofertadas ao INCRA. Considerados como pessoas que permaneceram em certos locais por conta de suas próprias relações com a empresa, e observados também enquanto família, esses homens ainda guardam suas reputações de pistoleiros, valentes, pessoas com quem não dá pra mexer. É observando tudo isso que os membros dos movimentos sociais planejam como fazer acordos com esses homens, os quais às vezes davam lugar a vínculos profícuos e novos aliados, e em outras descambam em enfrentamentos e novas ameaças.
Narrativa e envolvimento Prestando atenção aos modos com que as pessoas falavam sobre os guardas, jagunços e pistoleiros do Zattar, compreendi que suas experiências do conflito de terras eram
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expressadas através de uma linguagem que ia além da violência, e adentrava outras problemáticas que se impunham ao convívio com essa madeireira que se desdobrava em uma multiplicidade de agentes, os quais muitas vezes viviam bem perto, ou até mesmo na mesma casa, que as pessoas que me contavam suas histórias. Que os jagunços não são todos iguais, que alguns são bons e outros ruins, e que essas qualificações diziam respeito à própria postura que as pessoas que me contavam suas histórias assumiam perante esses homens de armas, já era claro para mim quando iniciei o projeto de pesquisa que culminou com essa tese. O que eu me perguntava, porém, era se esses modos de conceber esses homens de armas tinham alguma relação com os tratamentos dados a outras experiências de mortes em brigas, encrencas e vinganças, que importam às pessoas com quem convivo em Pinhão. Foi buscando as tensões e aproximações nas maneiras com que as pessoas contavam histórias sobre essas diferentes situações, que me dediquei a escrever esse trabalho. Para além da forma dessas narrativas, das diferenças entre os causos e as conversas sobre brigas recentes, dos fuxicos e das denúncias, atentei para as problematizações que se colocavam nas maneiras com que meus interlocutores falavam sobre mortes, ameaças e situações de enfrentamento. Nesse sentido, não eram só as relações com as pessoas que compunham tais histórias – que na maior parte das vezes eram os próprios narradores ou seus familiares e conhecidos – e com aquelas que as ouviam que importavam. Por entre essas histórias, havia uma série de considerações sobre o que é bom ou ruim, o que leva uma pessoa a cometer certos atos, quais as forças que compõem seu jeito e sua natureza, como ela se porta, como ela procede com seus atos de convívio com as outras: se sabe conversar, se sabe cumprimentar, como desempenha seu trabalho, como vive com seus familiares. As histórias de violência, nesse sentido, não paravam nas mortes, ou produziam julgamentos estanques. Elas tinham um potencial criativo, aberto, que abria espaço para as pessoas falarem daquilo que esses acontecimentos agregam e rompem em famílias, lugares, e a respeito da própria terra. O que é destrutivo também é considerado de perto, e não como algo exterior ou particular ao “outro”, e em certa medida, todos estão sujeitos a se enveredarem em encrencas ou a terem suas vidas afetadas por pessoas próximas que contraíram hostilidades com outras. Morrer e matar eram temas feios, mas faziam parte das pessoas com quem convivi, e tinham modos e momentos considerados mais propícios para serem comentados. Falar sobre o que era ruim, sobre pessoas ruins e endemoniadas, sobre homens valentes, sobre a bebida e as festas, era também dizer sobre o bem que se espera das pessoas, e sobre o saber viver, ainda mais com aqueles que inspiram perigos.
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Ao ouvir narrativas sobre aquilo que é feio, sobre a morte matada, eu também passava por um processo de aprendizagem sobre aquilo que importa para as pessoas em seu estar umas com as outras, os conhecimentos que elas produzem e conduzem sobre como lidar com a presença da morte e da ameaça, e com as broncas que fazem parte de sua vida social. Aprendia como me portar perante elas e como me deslocar em meus próprios caminhos pelo interior. E era mapeada a partir das famílias e casas onde eu permanecia. Evidentemente, isso abria um série de escutas e de ausências para mim. Tal como todas as pessoas que vivem perto umas das outras, eu também tinha meus deslocamentos observados e recriados em narrativas. E ficava um pouco perturbada quando via que gente que eu tinha acabado de conhecer já sabia exatamente o que eu havia falado em outra casa, no dia anterior. Muito do que as pessoas me falaram sobre o tempo do Zattar, sobre as histórias de suas famílias e sobre as vidas de homens valentes e perigosos era concebido por elas como contar causo. Nessas histórias sobre eventos que já estavam bem estabelecidos, surgiam formas de se relacionar com o passado e com os outros, que eram também declarações sobre o presente e as identificações com as pessoas de que se falava. As maneiras com que as pessoas eram caracterizadas tinha a ver com posturas assumidas sobre certos vínculos. Falar de valentes ou de pistoleiros implicava quase sempre falar de alguém que não faz parte da família ou de um circuito de relações mais íntimas do narrador, alguém com quem o narrador ou narradora não se reconhece. E quando essas pessoas eram relembradas da perspectiva daqueles que gostavam delas, abria-se espaço para o questionamento de suas atividades, em contraposição àquilo que tais pessoas apresentavam ser em outros momentos. Alguns pistoleiros e valentes eram percebidos como pessoas que só ficavam ruins perto de outras, que também agiam desse modo. A bebida os deixava valentes. Outros, ninguém entendia porque haviam seguido a carreira de matadores profissionais. Eram pessoas gente boa, que conversavam, e cujos pais eram queridos por todos. Assim, contar essas histórias levava muitas vezes a situar aqueles de quem se falava em termos de família e do lugar onde viviam, em inseri-los numa narrativa mais ampla sobre os vínculos que os compunham. A violência e as mortes provocadas por essas pessoas eram incorporadas também a esses laços, que precisavam ser considerados pelos narradores. Contar histórias sobre os outros, nesse sentido, também era falar das pessoas próximas a eles, e uma forma de o narrador dizer algo sobre si mesmo. É também sobre esse ponto que o se envolver ou não se envolver emergia nas narrativas, como uma escolha que se colocava sobre levar o assunto adiante ou se esquivar dele. Eu não me envolvo era uma expressão que eu ouvi diversas vezes quando perguntava
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para as pessoas sobre os conflitos com o Zattar. Ao fazer essa declaração, contudo, elas afirmavam seu conhecimento sobre o mesmo assunto, e me mostravam que contar uma história é também ser parte daquilo que se diz, como uma lembrança de algo que se viu e se viveu, um estar dentro que pode ser tomado como a produção de um testemunho. Saber por si só já é perigoso. Mas dizer o que se sabe é se envolver. Em outras situações, eu não me envolvo também é uma fórmula para se desviar do caminho para onde a prosa está levando. Como quando Seu Lucas me falava sobre seu irmão, Nilton, que foi guarda do Zattar e acabou sendo preso por mortes que cometeu atuando para a madeireira. Ele sabia do que o irmão fazia, sabia atrás de quem ele estava, e chegou a ficar de caseiro em uma casa do Zattar a pedido de Nilton. Só que eu não me envolvia, disse ele. Era uma forma de Seu Lucas declarar que o que acontecia no trabalho de Nilton não era problema dele, e que ele não iria me falar sobre os atos de seu irmão, pessoa que, para além do fato de ser família, ele valorizava por todo o auxílio que havia lhe prestado. Às vezes, eu voltava a encontrar pessoas que, tempos antes, haviam me dito eu não me envolvo, e elas mudavam o tom de suas preocupações. Diziam-me agora frases como eu vou te contar agora, mas isso é coisa que não é bom estar dizendo, ou não te contei daquela vez porque isso não é coisa que se conte de primeiro. Isso aconteceu nas vezes em que eu fazia perguntas sobre os homens de armas da madeireira e o conflito de terras. Se num primeiro encontro as pessoas não me falavam nada, após terem me conhecido um pouco mais, elas me permitiam uma certa abertura, não sem antes considerar por que não haviam me falado daquilo antes. Então elas me ensinavam que eu deveria ser mais cuidadosa com minhas perguntas, que alguns assuntos não são bons mas isso não significa que eles sejam inacessíveis. Significa que as pessoas refletem não somente sobre as maneiras de falar sobre essas coisas feias, mas também sobre o tempo de falar sobre elas para os outros. Algumas coisas se estendem como segredos, caso da morte do marido de Dona Francisca. Ela aconteceu, mas seu motivo permanece oculto. Os silêncios, nesse sentido, são também uma modalidade de estar com aqueles sobre os quais uma história se concentra, e produzem a possibilidade de continuar a conviver com tais pessoas e com os atos que afetam não só a elas, mas também a quem narra histórias e troca conversas. A desconfiança e o medo não fazem com que as pessoas deixem de estar próximas umas das outras, o que as leva a tomarem diversas atitudes para se ausentarem de certas possibilidades de encontro com o perigo, e das responsabilidades sobre o que sabem sobre ele.
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Por outro lado, o silêncio também emerge como uma maneira de esperar o outro lançar a primeira mensagem, para definir atos posteriores. Foi isso, por exemplo, que Dona Francisca fez após os guardas atirarem contra sua casa. Ao saber quem estava falando sobre o que aconteceu, ela soube também quem havia feito aquilo, quem estava junto. Contudo, esse “quem” também é uma questão em aberto em diversas narrativas sobre o conflito de terras, que utilizam o pronome eles, ou remetem certas ações a o Zattar, mas não definem exatamente quem foi que as realizou. Isso se tornava problemático quando as pessoas precisavam denunciar certas ações – como os tiros e as queimas de casas – mas não tinham os nomes dos bandidos. O delegado não aceitava que fosse prestada queixa contra o Zattar, ele queria nomes, queria testemunhas. Algumas histórias só surgem ou se abrem para a conversa a partir de outras modalidades de encontro com elas. Caminhar com as pessoas, passar de carro com elas nas estradas, avistar no meio do caminho gente conhecida e com reputação de ruim foram momentos em que meus interlocutores me contaram coisas que não teriam falado espontaneamente, em uma prosa dentro de casa. Isso demonstra, também, que se histórias de mortes e de ameaças são incorporadas a lugares e pessoas, elas não estão simplesmente lá, mas requerem outros engajamentos com esses agentes para serem contadas. Por outro lado, certas declarações sobre pessoas e lugares que inspiram perigos só vêm à tona quando acontece algo que novamente mobiliza esse perigo. Logo que certas brigas e mortes acontecem, elas adentram a prosa do cotidiano de um jeito mais detalhado do que nas histórias sobre acontecimentos de um passado que já foi incorporado ao presente, no sentido de que já foi mais ou menos estabilizado nas relações entre pessoas, famílias, casas e lugares. O trabalho do tempo e com o tempo produz diferenças entre essas narrativas e aquelas que dizem sobre algo que acabou de acontecer, e que adentra os dias que se sucedem como algo que continua acontecendo. A forma com que a morte de Joãozinho foi comentada pelo Faxinal dos Cascatas nos dias imediatamente após esse acontecimento tornaram isso claro para mim. A cena da morte era narrada com uma precisão peculiar sobre os movimentos dos assassinos dentro da casa da vítima, as facadas, o estado do corpo, algo que em geral não acontecia nas outras histórias sobre eventos que já haviam acontecido há bastante tempo, as quais atentavam mais para as relações entre narradores e pessoas de quem se falava, a certos encontros e possíveis motivos que culminaram com a morte, e para a produção de enunciados sobre as reputações dos envolvidos.
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Para além dos detalhes, do descrever a cena da morte desde dentro da cozinha onde ela havia se desenrolado, as narrativas sobre o trágico fim de Joãozinho também se desdobravam em comentários que têm o mesmo tom dos fuxicos, repletos de notações sobre o passado e o possível futuro dos envolvidos, e de expressões como diz que, ‘tão dizendo que, as quais guardam um tom de impessoalidade típico de formas de fofoca, em que o conteúdo da informação é mediado pelas declarações das pessoas que sabidamente participaram da cena, ou de pessoas que estiveram perto dela mas permanecem ocultas pelos narradores, que tomam cuidados para não nomear quem é que estava por lá e viu tudo. As prosas que acionavam essas informações, logo após a morte, também relatavam os deslocamentos dos bandidos por entre as casas e estradas da comunidade. As conversas, nesse sentido, agiam como um importante modo de as pessoas se orientarem levando em conta a possibilidade perigosa de verem e serem vistos pelos envolvidos no assassinato de Joãozinho, dentre os quais havia uma mulher. Enquanto os causos de morte matada permanecem contados como coisa que não se diz, as narrativas sobre a morte de Joãozinho e os deslocamentos dos bandidos eram importantes de serem compartilhados naquele momento. O silêncio, agora, se impunha sobre a expectativa de denúncia e os telefonemas feitos à polícia no dia do crime. A denúncia e o testemunho são também narrativas e parte das narrativas, e desse modo, também são observadas e recontadas no cotidiano das comunidades. As pessoas tinham grande receio de denunciar vizinhos para a polícia, pois a própria proximidade entre elas torna possível saber ou ao menos especular de onde partem os telefonemas aos policiais. Para elas, esse era também um modo de se envolver em uma encrenca que não era a sua, e de produzir responsabilidades que poderiam ser transformadas em hostilidades com os denunciados, caso eles resolvessem vir tirar satisfações. Assim, a produção de denúncia, ainda que necessária e muitas vezes realizada, era em contrapartida silenciada perante os outros e pelos outros, tendo em vista a percepção de que também era uma mensagem que carregava os perigos contidos nas relações com essas pessoas. Delatá-las não era tratado como algo que simplesmente acarretaria em sua prisão, mas como a inauguração de um novo estado de relações hostis que se manteria e se espalharia em outras, já que as pessoas não são consideradas em si mesmas, mas também pelos vínculos familiares que possuem nos lugares onde vivem. A prisão de uma, nesse sentido, não impede que os membros de sua família enfrentem quem fez a denúncia. Além disso, as pessoas que deliberadamente decidiam denunciar um ato ou alguém, tinham de enfrentar uma série de outros constrangimentos. Depois de Francisca ter tido sua casa alvejada pelos guardas do Zattar, ela recolheu as balas, como provas do ocorrido, e foi
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até a delegacia prestar queixa. O delegado não queria registrar a denúncia dela. Era do lado do Zattar, e não aceitava o argumento da mulher de que foi o Zattar quem fez aquilo para ela. Desaforou Francisca, dizendo que aquilo era bronca de algum namorado de suas filhas. E Abel, depois de ter denunciado Luiz pelo roubo em sua casa, teve de encarar a mudança de discurso do garoto, que havia admitido o roubo, mas na frente do delegado, negou tudo, supostamente orientado por outro vizinho, com quem Abel não se dava, e que se assumia perante a comunidade como o mandante do roubo, que teria sido uma resposta a um desaforo recebido. A denúncia, em ambos os casos, é um momento em que se abrem também contestações sobre a vida e a pessoa daqueles que denunciam. Tanto sua conduta dentro de casa quanto em relação a outros vizinhos, que podem intervir na defesa dos denunciados, impõe-se agora como uma base de produção de contra-argumentos em relação aos denunciantes. No caso de Francisca, era o próprio delegado que se colocava em defesa da madeireira e se encarregava de acusá-la. No caso de Abel, eram um vizinho que vivia nas terras do avô do ladrão, que estabelecia o argumento do desaforo para justificar o roubo. Assim, ao tornarem públicas suas queixas por meio de instituições como a polícia, as pessoas se colocavam ao crivo de opiniões e julgamentos tanto oriundos de seus próprios vizinhos e conhecidos, como também dos agentes de “justiça”. Mas enquanto o delegado não é próximo, não vive perto, os vizinhos permanecem ao redor, elaborando novos fuxicos e discussões sobre aquilo que acontece na vida dos outros, e promovendo novos questionamentos e opiniões sobre acusados, acusadores, e a situação como um todo. Esses assuntos e associações de pessoas que se formam em torno desses acontecimentos (como no caso do vizinho que se assume comparsa do ladrão), produzem certos afastamentos e rupturas mais amplas, que não dizem respeito somente ao ladrão e ao dono da casa, ou no caso de Francisca, a certos guardas e sua família. Ao contrário, eles reverberam por um amplo leque de pessoas próximas, consolidando novas opiniões e vínculos que podem trazer maiores inquietações à vida e ao convívio. Uma outra possibilidade de envolvimento com as narrativas diz respeito a mim mesma e às perguntas que eu fazia em campo, sobretudo quando as questões que eu colocava às pessoas diziam respeito ao Zattar. Edimara, uma das pessoas de quem mais fiquei próxima no Faxinal dos Cascatas, comentou que de primeiro sua sogra, que havia passado por muitas situações difíceis com os homens de armas da madeireira, perguntou-se se eu não seria do Zattar, por isso não havia me dado abertura para falarmos sobre o assunto. Lislaine, irmã de Edimara que estava conosco naquele dia, olhou para ela e falou: mas aí o Abel ia saber, pois
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ele é posseiro! Lislaine, assim, lançava mão do meu vínculo com Abel e com a família Miller para contestar a especulação da sogra de Edimara. Mas como é que a gente ia saber, pois ninguém conhecia ela! – respondeu Edimara. Frustrada com essa possibilidade de ser tomada como alguém vinculada à madeireira, compreendi que tal suposição tinha a ver com aquilo que eu buscava conhecer, com as perguntas que fazia às pessoas, as quais não me tomavam como uma pesquisadora neutra, mas como alguém de certo modo envolvida naquele tópico sobre o qual perguntava. Para além de suposições sobre minha relação com a empresa madeireira, também ouvi as pessoas dizerem que achavam que eu era do INCRA, ou que trabalhava para algum político vinculado aos movimentos sociais de luta pela terra. Ângela Miller me disse que várias vezes teve de deixar claro para as pessoas que eu não era da política, mas estava lá fazendo um estudo. Para alguns isso era motivo de estranhamento e de incompreensão. Era como se de algum modo eu tivesse que estar envolvida e ter interesses próprios em relação às terras, para falar daqueles assuntos. Com o passar do tempo e minhas idas e vindas ao município, estar dentro das casas das famílias, conviver com elas, e visitar seus vizinhos, trouxeram-me aberturas para outros temas e para novos modos de me relacionar com os outros. Com o tempo, eu já não fazia mais perguntas sobre o Zattar, mas conversava com as pessoas sobre vários assuntos que não tinham nada a ver com a madeireira. A Dibe é nossa amiga – elas diziam, agora, quando me apresentavam a outras pessoas. Você já é dos nossos – diziam os membros das famílias em cujas casas fiquei. Outros vínculos se tornavam possíveis, portanto, através de minha familiarização. E a partir deles, produziam-se outras possibilidades de ruptura, na medida em que eu também estava ali convivendo e indo de casa em casa prosear com as pessoas, e que meus deslocamentos e assuntos também poderiam mobilizar fuxicos e produzir minha própria reputação. No Faxinal dos Cascatas, a morte de Joãozinho e o roubo à casa onde eu estava afetaram significativamente meus trânsitos pela vizinhança e minhas relações com a família do ladrão, de cuja irmã eu havia ficado bastante próxima. Minha familiarização e minhas amizades, nesse
sentido,
levavam-me
também
a
participar
da
“sociabilidade
agonística”
(COMERFORD, 2003) que compõe o saber viver em comunidade. O envolvimento, enquanto ter conhecimento de algo, colocava-se em questão nas próprias conversas que eu tinha, e de algum modo me era cobrado. Foi o que aconteceu quando perguntei a Mariane e a Érico se eles haviam sofrido alguma ameaça do guarda Mário Ferreira, depois de sua expulsão do Faxinal dos Camargos. Enquanto naquele momento o casal desviou-se de Mário para falar dos atos ameaçadores da esposa dele, em outra ocasião,
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quando eu andava com Mariane pela vizinhança, ela me questionou se eu sabia de alguma coisa, para ter colocado aquela questão. Foi nesse momento que ela me contou que sim, o antigo guarda estava dizendo coisas ameaçadoras por aí. Se eu não tivesse perguntado, quem sabe ela não teria me contado. Mas minha própria pergunta levantava desconfianças, na medida em que não era tomada como uma questão posta por alguém distanciado, mas por uma pessoa que potencialmente conhecia e tinha algo a dizer sobre o assunto. Se isso tudo trazia uma série de dificuldades, gafes e confusões em meu convívio cotidiano, por outro lado, foi também assim que pude tentar compreender como as pessoas lidam com suas próprias encrencas, broncas, desaforos e as ameaças vividas, em sua proximidade umas com as outras. Por fim, ao fazerem suas considerações sobre encrencas, brigas, vinganças e violência, as pessoas vinculavam essas expressões a pessoas, concebidas também enquanto gente, família, lugar, e o Zattar. Envolver-se, nesse sentido, era também relacionar o conhecimento dessas situações às perspectivas dessas outras pessoas, e sobre elas. Se as vinganças tornavam os Ambrósios um lugar de gente ruim, do qual saíram vários pistoleiros do Zattar, chegando lá, compreendi que dentro desse lugar havia vários outros, tomados como comunidades, e que se as pessoas assumiam que o passado de suas gentes e famílias era marcado por mortes, por outro lado, elas também promoviam afastamentos dessas relações. Nesse sentido, o tempo era um marcador fundamental de distância entre os matadores de gente e a vida que as pessoas levam hoje. Os homens ruins eram questão de antigamente. Além disso, enquanto admitiam as famas de suas gentes, pessoas como Seu Laércio me deixavam explícito que seus tios e primos é que brigavam. Ele não se envolvia. Gente, nesse sentido, era uma expressão que, como família, poderia ser acionada para descrever distintos níveis de parentesco entre pessoas vinculadas por esses lados, de modo que em certos momentos a gente de Seu Laércio eram tomada como os Lins, sobrenome do seu avô materno, em cujas terras Seu Laércio nasceu e cresceu, e em outros, como a gente do Laércio, tomando ele como referência para a nomeação de sua própria gente, aquela que se consolida por meio de seu casamento e de seus filhos, que hoje moram ao seu redor. Família também era um termo que adquiria diferentes sentidos no plano discursivo, e que tal como gente, era relacionada ao idioma das encrencas. Briga de família, nesse sentido, era uma modalidade de briga diretamente relacionada a vinganças, realizadas por um pai e seus filhos, que buscavam a retaliação da morte de um deles (do pai, ou de um dos seus filhos), e que compreendiam essa morte como ação realizada por um pai e de seus filhos. Assim, no que diz respeito a vinganças, família ganhava novos contornos, relacionados aos
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vínculos de parentesco considerados mais próximos. Por outro lado, a família emergia às vezes como um impeditivo para que certas pessoas levassem adiante suas encrencas, na medida em que sabiam que esses atos contaminariam também seus familiares. Essas formas que as pessoas usam para conduzir-se frente ao mundo e, por conseguinte, em suas narrativas, as quais levam em contra seus vínculos, os vínculos das outras pessoas que tomam parte nas histórias, e a produção de declarações sobre seus modos de ser e os dos outros, revelam que brigas, encrencas, vinganças e violência são termos que apontam não só para relações, mas para as diferentes vozes que compõem uma história e os modos com que os narradores tomam posições perante elas. Reelaboradas com o tempo, essas narrativas ganharão novas nuances quando forem ouvidas novamente, outros silêncios, preocupações, formulações, vínculos e pessoas tomarão parte nessas histórias, nesses envolvimentos.
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