Urbanismo e saneamento integrados na década de quarenta: o plano do Escritório de Saturnino de Brito para Águas de São Pedro

May 23, 2017 | Autor: Ricardo Trevisan | Categoria: Trajetória Profissional, História Do Urbanismo
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URBANISMO E SANEAMENTO INTEGRADOS NA DÉCADA DE QUARENTA: O PLANO DO ESCRITÓRIO DE SATURNINO DE BRITO PARA ÁGUAS DE SÃO PEDRO TREVISAN, Ricardo (1); SILVA, Ricardo Siloto da (2) (1) Arquiteto, Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Engenharia Urbana da UFSCar e-mail: [email protected] (2) Professor Doutor no Programa de Pós-graduação em Engenharia Urbana da UFSCar e-mail: [email protected] – Rod. Washington Luís, km 235 – CEP: 13560-970 – UFSCar – São Carlos – SP Tel +55 16 260-8262 ramal 227 RESUMO Este trabalho busca identificar como o plano urbanístico de uma cidade nova – Águas de São Pedro – foi projetado, na primeira metade do século vinte no interior paulista, articulando princípios sanitaristas e conceitos da concepção urbanística de Cidade-Jardim. Historicamente, o início do processo de urbanização do território de Águas de São Pedro remete-se a década de 30 quando, pelo intuito de determinados empresários em aproveitar inúmeros poços de águas medicinais existentes na região, ocorreu a instalação do primeiro balneário medicinal e a implantação em 1937 do plano urbano desenhado pelo engenheiro e urbanista Jorge de Macedo Vieira, defensor da utilização dos conceitos de Cidade-Jardim no projeto da cidade. A partir de 1939, visando a preparação da área pela correção dos corpos d´água existentes, o saneamento de áreas pantanosas e a instalação das redes sanitárias, o projeto contou com a participação do escritório carioca do engenheiro sanitarista Saturnino de Brito. Desta parceria entre o modelo urbanístico adotado, Cidade-Jardim, e as técnicas sanitárias utilizadas surge uma cidade singular. Na Estância Hidromineral de Águas de São Pedro pode-se verificar como a preocupação de seus projetistas, ao elaborar o plano segundo preceitos inovadores da época, proporcionou o desenvolvimento de uma cidade de modo menos impactante sobre o meio ao qual foi implantada. ABSTRACT This work shows how a New Town – Águas de São Pedro – have been planned in the first half of last century combining sanitary engineer principles and Garden-City concepts. Historically, the town planning process begun in Águas de São Pedro´s territory about 30´s when some lucid businessmen had interesting to improve a high amount of mineral water fountains, existent in that location, through disease treatment places and, forward, in a Watering-town. In 1937, the project was implanted drawn by the engineer and urban design Jorge de Macedo Vieira, a defender of Garden-City concepts. In 1939, for planning the local area, correcting small rivers, drain swamp areas and protecting specific zones, had been contracted the office of sanitary engineer Saturnino de Brito. From this association between the urban planning solution adopted, Garden-City, and the sanitary techniques applied was created a singular town. In Águas de São Pedro watering-town can be observed the preoccupation from it creators, using new proposes for that time, resulting in a urban development with reduced numbers of impacts for it environment. INTRODUÇÃO A Estância Hidromineral de Águas de São Pedro, projetada e construída a partir do final da década de 30 do século passado, tornou-se atualmente referência nacional pela sua “excelente qualidade de vida” (Buchalla, 2000). Fruto capitalista de uma pequena elite, este balneário atrai turistas de várias partes do Brasil, principalmente provenientes da grande São Paulo, quadruplicando sua população em finais de semana, feriados prolongados e férias escolares. A qualidade terapêutica das águas minerais, que jorram de suas três principais fontes – Gioconda, Juventude e Almeida Salles –, a paisagem campestre e a tranqüilidade oferecida no ambiente deste balneário estabelecem os atrativos principais para pessoas que buscam fugir do cotidiano estressante das grandes cidades, revitalizando suas energias.

Mas nem sempre foi assim. As terras onde este núcleo urbano se encontra configuravam-se, em fins da década de 20, como vastos campos de plantação de café, que nessa época já apresentava sinais de enfraquecimento tanto por problemas na economia de exportação quanto pelo desgaste sofrido pelo solo com este tipo de produção. Impulsionado pela busca de petróleo, como um dos produtos a substituir o café no contexto econômico nacional, a região do município de São Pedro sofreu as primeiras inspeções tendo, porém, como resultado apenas a obtenção de águas minerais em grande quantidade (Rodrigues, 1985). A idéia de transformar a área desses poços em balneários medicinais e posteriormente numa cidade balneária coube a uma sociedade formada por empresários e donos de terras locais, da capital paulista e da cidade de Santos, liderados por Antônio Joaquim de Moura Andrade e por Octávio de Moura Andrade. A criação em 1935 da empresa Águas Sulphídricas e Thermaes de São Pedro S/A por este restrito grupo representava uma forma de aplicar o “grande excedente de capital”, gerado no auge da economia cafeeira, em novas oportunidades seguramente rentáveis. Neste sentido, além de fatores já explicitados (a produção de café sendo desestimulada pelo governo federal e a busca por novos produtos a substitui-lo no cenário econômico), outros aspectos apontavam para a consolidação lucrativa deste empreendimento. De um lado, a existência de balneários como os de Poços de Caldas e de Araxá, ambos no estado de Minas Gerais, erguidos com finalidades terapêuticas, atraiam inúmeros turistas de diversos estados, inclusive de São Paulo, que para lá se dirigiam em busca de lazer e que por lá deixavam suas reservas econômicas em hospedagem, banhos termais, jogos de azar, restaurantes, etc. Por outro lado, os incentivos fornecidos pelo governo federal, na época sob o comando de Getúlio Vargas, promoviam a colonização e ocupação do interior brasileiro através da implantação de novas cidades e instigavam a criação de atividades de lazer, como a abertura de cassinos, em todo o território nacional (Neiva, 1942). Portanto, traçado o perfil do empreendimento a partir de bases economicamente viáveis e rentáveis, bastava a empresa colocá-lo em prática. Para a elaboração do projeto urbanístico desta nova cidade, com fins terapêuticos e recreativos, foi contratado em 1937 o engenheiro e urbanista Jorge de Macedo Vieira, responsável por planejar loteamentos residenciais nas cidades de São Paulo, Campinas e Atibaia e desenhar Cidades Novas – Maringá e Cianorte – no norte do estado do Paraná, todos permeados pelos conceitos do ideário urbanístico inglês de Cidade-Jardim. Sendo assim, segundo o Memorial Descritivo da Estância (1938), “foi a cidade de águas projetáda com o careteristico de cidade de repouso, do tipo ralo, com abundancia de espaços livres, e dividida em duas unicas zonas: a comercial, muito pequena, e a residencial.”. A criação do balneário deveria seguir os moldes propostos por Octávio de Moura Andrade, o qual pretendia implantar uma Estância modelo para a América do Sul, e disponibilizar para seus freqüentadores, atraídos pela terapia termal, um conjunto de infra-estrutura de lazer complementar como hotéis, cassino e atividades de lazer em geral. Porém, também foi de fundamental importância para a concretização positiva do projeto a requisição feita pela empresa Águas Sulphídricas e Thermaes de São Pedro S/A, no ano de 1939, ao Escritório de Engenharia Civil e Sanitária do Rio de Janeiro para a execução do plano de saneamento da nova cidade. Este escritório foi fundado em 1920 pelo célebre engenheiro sanitarista Francisco Saturnino Rodrigues de Brito (falecido em 1929) e tinha seu filho, Saturnino de Brito Filho, na liderança em 1939. Tratava-se do escritório de saneamento com produções para mais de centena de cidades brasileiras, que dispunha das técnicas sanitárias mais modernas e, principalmente, articulava de forma integrada a obra de saneamento com o planejamento urbano proposto. Com o rápido histórico descrito acima é possível perceber o trabalho cuidadoso dedicado à elaboração da Estância de Águas de São Pedro. Todavia, estaremos aqui fazendo um recorte específico para estudo e análise: como foi articulado princípios sanitaristas e conceitos da concepção urbanística de Cidade-Jardim pelo escritório de Saturnino de Brito, apontando as qualidades resultantes de tal integração através do projeto de Águas de São Pedro. Para isso, primeiramente, buscaremos demonstrar a possível relação existente entre os pressupostos defendidos por este escritório e os conceitos urbanísticos de Cidade-Jardim utilizados pelo engenheiro Jorge Vieira. Neste sentido, faremos um breve paralelo entre as características de tal modelo urbano e as diretrizes norteadoras que guiavam o engenheiro Saturnino de Brito em sua produção e, consequentemente, serviram após seu falecimento de referência aos profissionais de seu escritório. Num segundo momento, a integração do plano de saneamento com o modelo urbanístico adotado será analisada através de elementos que compõem o projeto da cidade de Águas de São Pedro. Estes elementos serão selecionados de acordo com sua importância na composição geral da infra-estrutura urbana. Por fim, avaliaremos como a articulação entre saneamento e urbanismo atribuiu uma qualidade espacial positiva à Estância. O URBANISMO SANITARISTA E O URBANISMO CIDADE-JARDIM: ORIGEM

A relação saneamento e urbanismo permeia a história da construção física das cidades, buscando harmonizar a sociedade e o meio no qual vive em vista, principalmente, da saúde coletiva e da sustentabilidade ambiental. Uma preocupação presente desde a Grécia antiga e retomada nas cidades renascentistas, foi a partir da segunda metade do século XIX que ela recebe maior atenção. Modelos urbanísticos, que incorporaram tal relação, foram propostos como resposta à situação de crescimento autoderrotador na qual as cidades dos países industrializados se encontravam. A Revolução Industrial, originária na Inglaterra, transformou a cidade existente até então. O surgimento das fábricas nas cidades, criando inúmeras oportunidades de emprego, e as más condições de vida no campo fizeram com que a migração campo-cidade se tornasse uma das características marcantes do cenário urbano inglês e europeu no século XIX. Porém, a infra-estrutura urbana não foi compatível com o número de habitantes que esta recebia. O rápido crescimento das cidades acarretou sérios problemas de saneamento, falta de moradia e aumento da poluição do ar (Creese, 1992). A cidade transformou-se repentinamente, no local das mais novas e diversificadas relações econômicas, políticas, sociais e culturais. E como uma mistura de ingredientes diferenciados, a incorporação dos mais diversos agentes e elementos dentro do cenário urbano se deu de forma conflituosa e desarmônica. A cidade industrial como objeto empírico foi observada e refletida por inúmeros profissionais de diversas áreas que utilizaram métodos diferenciados. Havia aqueles que utilizavam-se de dados estatísticos isolados para analisar a cidade de forma quantitativa. Outros, principalmente médicos e higienistas, abordavam temas como a má condição de vida do proletariado urbano. Também, eram presentes os “pensadores políticos” que associavam os problemas existentes na vida urbana aos problemas sociais, políticos e econômicos (Choay, 1997). A necessidade de se criar cidades-modelos, para responder ao caos da cidade industrial, possibilitou a abertura de propostas urbanísticas, projetadas e construídas, e fez da virada do século XIX para o XX um período singular na criação de novas concepções urbanísticas, dentre elas o urbanismo Sanitarista e o modelo Cidade-Jardim. O planejar a cidade através de técnicas sanitárias não era restrito a um único modelo urbanístico. Inserido, com maior ou menor intensidade, nas diversas elaborações de cidades ideais da época – as Company Towns inglesas, a Cidade de Linear do espanhol Arturo Soria y Mata, a Cidade Industrial do francês Tony Garnier, a CidadeJardim de Ebenezer Howard, a Cidade Modernista para 3 milhões de habitantes de Le Corbusier, etc –, este pensamento limitava-se ao espaço intra-urbano. Consistia em ações higienistas direcionadas a melhorar as condições de vida dos habitantes das cidades a fim de excluí-los de moléstias e epidemias, que freqüentemente castigavam estes núcleos, e garantir um uso mais adequado do meio e de seus recursos naturais. Estas ações tinham como doutrina o movimento Higienista disseminado na Europa no século XIX. Tratava-se de um movimento sobretudo de reforma da vida cotidiana dos habitantes da cidade. A partir da domesticação de certos costumes, do impedimento da estagnação dos elementos do meio, como o ar e a água, e do controle dos fluxos de toda natureza pretendia-se diminuir situações de contágio de moléstias diversas (Andrade, 1992). No plano urbanístico, as principais introduções feitas por este movimento remetem-se ao sanear a cidade, livrá-la de seus miomas e torná-la salubre. Para isso, entre as técnicas inovadoras e correntemente utilizadas por profissionais (sanitaristas, engenheiros, arquitetos e urbanistas) estavam desde a introdução do banheiro no interior das habitações com devido cuidado de captar e levar o esgoto para redes coletoras até o isolamento da residência no lote com recuos e limitações verticais para garantir ventilação e insolação em seu interior, a instalação de redes de abastecimento de água e de captação de esgoto, o controle sobre os corpos d´água que atravessam as áreas urbanas e o zoneamento urbano separando áreas industriais de áreas residenciais e comerciais. Contemporaneamente ao urbanismo Sanitarista, surgia na Inglaterra um modelo urbanístico de concepção distinta das demais: a concepção de Cidade-Jardim. Elaborado pelo taquígrafo inglês Ebenezer Howard, este ideário ganhou o conhecimento público a partir de 1898 com a publicação do livro To-morrow: A Peaceful Path to Real Reform (Para o Amanhã: Um Caminho Tranqüilo para a Reforma Autêntica), reeditado em 1902 com o título Garden Cities of Tomorrow (Cidades-Jardins de Amanhã). Este documento tornou-se ícone para o urbanismo moderno ao apresentar um novo modelo urbano; uma cidade diferenciada em seus aspectos físicos e em sua organização econômica, política e social. Nesta obra, Howard reuniu propostas, ensaios, soluções e intervenções práticas que abordavam o tema cidade sob determinado foco de interesse e que, todavia, encontravam-se dispersas. Entre estas, a solução dos problemas sócio-culturais da cidade industrial estaria no retorno do homem ao campo; o contato do homem com a natureza seria capaz de manter seu bem-estar físico e moral. Condensando este ideal, a concepção howardiana apresentouse como o mais adequado plano de construção do espaço Eutópico (lugar aprazível). Longe da cidade gigante vitoriana e seus problemas – poluição, cortiços e especulação imobiliária –, Howard propunha um agrupamento de cidades de pequena e controlada dimensão no interior da Inglaterra, habitadas por pessoas vindas da capital ou de outras cidades com as mesmas dificuldades (Hall, 1988).

Em termos gerais, a proposta de Howard foi fundada na junção das qualidades existentes no campo com as qualidades existentes na cidade, como o próprio autor expõe em sua obra Cidades-Jardins de Amanhã: "A questão é universalmente considerada como se agora fosse (e assim devesse permanecer para sempre) completamente impossível para os trabalhadores viver no campo e apesar disto dedicar-se a atividades outras que não a agricultura; como se cidades superpovoadas e malsãs fossem a última palavra em ciência econômica e como se fosse necessariamente permanente nossa atual forma de produção, na qual linhas cortantes separam as atividades agrícolas das industriais. Essa falácia é aquela muito comum de ignorar por completo a possibilidade de outras alternativas além daquelas apresentadas à mente. Na verdade, não há somente duas alternativas, como se crê - vida urbana ou vida rural. Existe também uma terceira, que assegura a combinação perfeita de todas as vantagens da mais intensa e ativa vida urbana com toda a beleza e os prazeres do campo, na mais perfeita harmonia". Com isso, o autor pretendia criar uma comunidade beneficiada simultaneamente por pontos positivos presentes tanto no campo como na cidade e calcada em parâmetros auto-sustentáveis e de crescimento controlado. Howard propôs uma pequena cidade para 32 mil habitantes, sendo circundada por um Cinturão Verde com função de abastecer com produtos agrícolas o consumo interno e impedir a expansão urbana. A forma de gestão desta cidade, a aquisição e a posse da terra, a produção de bens industrializados, o modo de ocupação e os habitantes que ocupariam este novo núcleo também foram analisados e indicados pelo visionário inglês para que não houvesse a ocorrência das vicissitudes inerentes às cidades da época. Estruturalmente, a cidade ideal de Howard foi apresentada através de sugestões esquemáticas, representadas em diagramas, nas quais estabelecia a disposição setorial dos componentes urbanos (área residencial, centro cívico, áreas verdes, área comercial, zona industrial e áreas de circulação, incluindo a presença da ferrovia). Embora esquemáticos, Howard deixou claro que as Cidades-Jardins a serem construídas deveriam levar em conta a adaptação do plano à geografia local e a incorporação da vegetação nativa ao projeto. O sonho howardiano foi concretizado em Letchworth, a primeira Cidade-Jardim, projetada na Inglaterra em 1903 pelos arquitetos Raymond Unwin e Richard Barry Parker. A construção deste primeiro exemplar serviu não apenas como referência para demais profissionais da área, que trabalharam os conceitos deste modelo em diversos planos urbanísticos na Europa, na Ásia e na América, como deu-se início às reformulações em algumas das bases howardianas. A mais importante delas foi a alteração da escala de Cidade-Jardim para SubúrbioJardim, realizada por Unwin em 1907 no projeto para o bairro residencial de Hampstead em Londres. Embora com dimensões diferenciadas, Unwin introduziu os conceitos provenientes deste pensamento na escala de loteamento residencial, mantendo o bucolismo das vias residenciais, a introdução em grande quantidade de massa verde nos lotes e vias, a adequação do traçado viário à topografia local e a utilização da arquitetura campestre inglesa (cottage) no desenho das casas. Assim, foi através desta nova configuração dimensional que o ideário Cidade-Jardim difundiu-se amplamente por diversos países, inclusive no Brasil, tornando-se um dos modelos urbanísticos mais adotado no século passado. O URBANISMO SANITARISTA E O URBANISMO CIDADE-JARDIM NO BRASIL A recorrência a modelos urbanísticos estrangeiros para pensar, planejar e projetar as cidades brasileiras e seus espaços advém de longo tempo (período colonial) e tornou-se, habitualmente, uma ação reflexiva e imediata, por parte de nossos acadêmicos e profissionais, em aplicar a receita sem contextualizá-la. Porém, alguns casos excepcionais contrariam tal prática. A ação puramente repetitiva foi deixada de lado para que a contextualização do elemento externo às necessidades locais particularizasse o modelo urbanístico importado. Neste sentido, tanto o urbanismo Sanitarista quanto o modelo Cidade-Jardim tiveram em solo nacional uma aplicabilidade diferenciada de seus locais de origem; diferenciação esta decorrente, em grande parte, da atuação de profissionais extremamente disciplinados e preocupados com o agir sobre a cidade de forma coerente e correta. No início do século XX, o planejamento urbano brasileiro foi marcado por obras direcionadas ao embelezamento e melhoramento do espaço intra-urbano. Os governantes, manobrados por interesses especulativos da classe dominante, centravam suas políticas urbanas na ação de embelezar e harmonizar a cidade, principalmente o centro, remodelando a antiga cidade colonial. Para isso, entre as medidas adotadas estavam: o melhoramento das condições de higiene, a extinção de cortiços nas áreas centrais, a abertura de praças e largas avenidas, a elaboração de zoneamentos primário, etc (Villaça, 1999). Como exemplos de intervenção deste período estão o Plano de Embelezamento e Saneamento da Cidade (1903) de Pereira Passos para o Rio de Janeiro e o plano de Bouvard para o Vale do Anhangabaú em São Paulo. Porém, um caso em particular destaca-se no cenário de planejamento deste período: as ações sanitaristas aplicadas pelo engenheiro Francisco Saturnino Rodrigues de Brito em diversos planos elaborados para cidades espalhadas no território nacional.

A atuação deste profissional consagrou-o como o mestre da Engenharia Sanitária no Brasil. Inovações e técnicas aprimoradas nas obras de implantação de redes de esgotamento sanitário e de abastecimento de água somavamse a sua atitude singular de pensar e projetar o espaço urbano de forma global (Ferreira, 2001). Como referências teóricas, Brito se inspirou e absorveu de princípios da Cidade como obra de arte conceituada pelo austríaco Camillo Sitte, dos conceitos da Cidade-Jardim howardiana e das idéias de embelezamento provenientes do urbanismo nascente francês. Ao planejar o conjunto da cidade e prever sua expansão, o sanitarista considerava como diretrizes norteadoras do projeto a topografia sanitária, a geologia local, a planta do traçado existente, a tendência de expansão, o clima, a salubridade das edificações (relação edifício/lote, ventilação e iluminação natural), a população e a infraestrutura existente. Na prática, os elementos utilizados no novo desenho urbano foram: a adaptação do traçado viário à geomorfologia local, a concepção de quarteirões com vielas sanitárias, a presença de ruas particulares (cul-de-sacs) com jardins e praças arborizadas em seu interior, o repúdio às ruas retas e demasiadamente compridas, intercedendo seus cruzamentos com estações elevatórias, jardins e mictórios públicos, a instalação de bacias de esgotamento, o aproveitamento da energia gravitacional no transporte dos efluentes líquidos, a proposição de diversos instrumentos jurídicos para a legislação urbanística e a introdução de um novo elemento na composição da cidade: o canal margeado por avenidas arborizadas (Ferreira, 2001). Saturnino de Brito realizou inúmeros trabalhos para prefeituras e empresas privadas do setor imobiliário, dentre eles os planos de saneamento e melhoramento para as cidades de Vitória (1896), Santos (1905) e Recife (1909). Sua concepção de cidade como um produto manufaturado a ser produzido prossegue por quase três décadas, atendendo satisfatoriamente dezenas de cidades no Brasil, até 1929, ano de seu falecimento (Andrade, 1992). A partir daí, seu filho, Saturnino de Brito Filho, assumiu o controle do Escritório de Engenharia Civil e Sanitária (fundado por seu pai em 1920 na cidade do Rio de Janeiro) com intuito de dar prosseguimento ao ideário sanitarista. Neste sentido, Brito Filho estipulava que o escritório deveria atender toda a área a ser planejada segundo as técnicas de higiene, promover entre os municípios a instalação de serviços de saneamento urbano e solucionar problemas envolvendo a saúde pública através de obras de saneamento. O trabalho continua por mais de duas décadas, ressaltando entre eles o pedido feito pela empresa Águas Sulphídricas e Thermaes de São Pedro S/A para o plano de saneamento da Estância Hidromineral de Águas de São Pedro, interior de São Paulo. Paralelamente à história desta tipologia urbanística adotada no início do século passado, outros modelos estrangeiros adentraram no cenário de criação do espaço urbano brasileiro e criam raízes. Um em particular destacou-se pela aproximação conceitual e formal com as obras de Saturnino de Brito: o modelo Cidade-Jardim. Embora já explícito como parte do repertório projetual do engenheiro sanitarista, a entrada desta tipologia em solo nacional deu-se de maneira mais intensa a partir de 1917 quando o arquiteto inglês Richard Barry Parker (idealizador de Letchworth, a primeira Cidade-Jardim) veio a São Paulo a convite da Companhia City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company. Entre 1917 e 1919, o arquiteto e urbanista inglês realizou, a pedido da Companhia City (detentora na época de grandes quantidades de terra da capital paulista), inúmeros projetos de loteamentos residenciais. Nas obras paulistas de Barry Parker encontram-se o Parque do Trianon, o Jardim América e o Jardim Pacaembú, todas permeadas pelos conceitos de Cidade-Jardim e Subúrbio-Jardim. Em sua produção, o britânico não somente utilizou-se dos instrumentos urbanísticos adotados nas Cidades-Jardins e Bairros-Jardins ingleses como também projetou algumas das residências destas áreas segundo a plástica da arquitetura campestre inglesa (Andrade, 1998). A partir deste momento, pela repercussão das obras de Parker ou pela difusão dos conceitos howardianos por meios de comunicação, congressos internacionais ou viagens profissionais, os princípios de Cidade-Jardim começam a ser adotados por engenheiros, arquitetos e urbanistas brasileiros em projetos e planos para bairros e cidades novas. Os exemplos nacionais de Cidade-Jardim, uma resposta ao caos da cidade colonial ou ao modelo quadriculado regularmente adotado na maioria dos projetos implantados, podem ser vistos desde bairros e loteamentos (implantados em diversas áreas da cidade de São Paulo e no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro) até cidades com fins turísticos (Águas de São Pedro, Estância do Barreiro, em Araxá), fins empresariais (Monlevade e Eldorado, em Minas Gerais), fins de colonização (Maringá e Cianorte) e fins administrativos (Goiânia e Brasília). Dentre os profissionais que articularam os conceitos de Cidade-Jardim no planejamento urbano, a figura do engenheiro Jorge de Macedo Vieira tem relevância particular. Formado em 1918 pela Escola Politécnica de São Paulo, numa turma composta por outros profissionais urbanistas como Francisco Prestes Maia e Góes Sayão Filho, o engenheiro estagiou por dois anos (a partir de 1917) no escritório de planejamento da Companhia City. Esta experiência possibilitou-o de ter contato com as idéias e os trabalhos do inglês Barry Parker e, principalmente, de ter conhecimento sobre os princípios howardianos da Cidade-Jardim.

Em suas obras, posteriores a este período, nota-se a forte influência que este ideário exerceu na formação de seu repertório teórico. Exemplos desta assimilação podem ser verificados nos bairros, por ele projetado, para as cidades de Campinas (Cambuí e Nova Campinas), Atibaia, Campos do Jordão (Vila Inglesa) e São Paulo (Jardim da Saúde, Vila Nova Manchester, Chácara da Mooca, etc) e nos planos urbanos para as cidades novas de Águas de São Pedro (1937), Maringá (1947), Cidade balneária de Pontal do Sul (não executado, de 1951) e Cianorte (1955). Todos apresentando um rigoroso detalhamento de desenho dos elementos que compõem o espaço (vias, quadras e lotes) e uma preocupação em adequar o assentamento ao local estabelecido. Assim, a atuação de profissionais (Saturnino de Brito e Jorge de Macedo Vieira) com preocupações semelhantes para com a cidade e o alto nível qualitativo de seus planos tiveram grande repercussão na área de planejamento da época e, hoje, são foco de análises feitas por estudiosos no meio acadêmico. Porém, através de um caso específico: o plano para a Estância Hidromineral de Águas de São Pedro é possível a nós analisarmos a integração entre o urbanismo Cidade-Jardim de Vieira e as técnicas sanitárias de Brito. O PROJETO DE ÁGUAS DE SÃO PEDRO A elaboração do projeto desta estância balneária teve início em 1937 pelas mãos do engenheiro Jorge de Macedo Vieira. Contratado pela empresa Águas Sulphídricas e Thermaes de São Pedro S/A, o engenheiro seria responsável em planejar o assentamento para 10 mil habitantes e setorizar toda a infra-estrutura necessária para atender o balneário e suas atividades específicas (lazer). O local de implantação já havia sido pré selecionado pela Empresa, inserindo-se no território do município de São Pedro com 3 km quadrados de área total e próximo as três fontes de águas minerais (Juventude, Gioconda e Almeida Salles). Os limites do sítio eram dados pelo topo de um espigão, que compreendia o terreno na forma de uma ferradura, e pelo rio Araquá, fazendo o fechamento desta ferradura. Ao centro, o vale era perpassado pelo córrego Bebedouro, que em sua jusante ia de encontro ao rio. Desta topografia irregular Vieira tomou partido para implantar seu projeto, intensamente permeado pelos conceitos de Cidade-Jardim. Em 1939, somaram-se aos esforços de Vieira a contribuição do Escritório de Engenharia Civil e Sanitária de Saturnino de Brito Filho, que seria responsável pelo “projeto completo de saneamento das termas e abastecimento de água potável, assim como os de adução das águas das fontes Gioconda e Almeida Salles à ‘buvette’ projetada e a secção de engarrafamento” (S/N, 1939). Tanto no Memorial Descritivo de 1939 como no desenho do projeto pode-se observar as medidas tomadas em conjunto por Vieira e pelo escritório de saneamento carioca na concepção de um plano único na história do urbanismo brasileiro. Um dos dados que primeiro salta ao olhar do observador é que 60% da área total foi destinada aos parques e jardins públicos e os 40% restantes serviram à implantação do loteamento e do arruamento. A disposição espacial do assentamento obedeceu a um zoneamento urbanístico, estabelecido conforme os usos diferenciados propostos: residencial, comercial e serviços, industrial, lazer, saneamento e circulação. Na montante do córrego Bebedouro foi reservada uma ampla gleba de terra para a construção do parque municipal, do Grande Hotel, do cassino e do balneário. Nesta área, a recuperação da vegetação nativa, extinta pela lavoura cafeeira, foi de fundamental importância para preservar a nascente do córrego e compor um ambiente de lazer para os moradores e visitantes da cidade. Primeiramente, plantou-se milhares de mudas de eucaliptos que, posteriormente, possibilitaram o crescimento de uma flora local. Curiosamente, o traçado do percurso para pedestres no interior deste parque foi dimensionado para que seus usuários conseguissem, ao percorrê-lo em sua totalidade, atingir resultados benéficos a sua saúde física. Após esta área, o córrego Bebedouro foi canalizado segundo as técnicas de Brito, com o canal aberto e avenidas arborizadas laterais. A primeira tentativa de retificação do córrego foi feito com tubulações fechadas de 1,60 m. de diâmetro, que romperam com as primeiras chuvas. Nesta região setorizaram-se o comércio, os serviços, os hotéis menores e a indústria de engarrafamento da água. Em sua jusante, este córrego foi limitado por um parque linear (park-way), rebaixado em relação ao nível das avenidas periféricas para evitar possíveis inundações no ponto próximo a sua junção com o rio Araquá. Os loteamentos residenciais foram dispostos nas encostas dos morros adequando-os da melhor forma possível ao desnível do terreno. Simultaneamente, o sistema viário foi traçado atentando-se para que as inclinações das vias não excedessem um patamar que incomodasse o caminhar dos pedestres. Com isso, as quadras ganharam conformações irregulares e diferenciadas entre si, porém seus lotes obedeciam ao padrão de 300 m. quadrados de área. A ocupação de cada lote deveria ser feita segundo normas pré estabelecidas pelos projetistas para impedir altas taxas de adensamento e respeitar medidas higienistas da época. À área livre dos lotes, reservadas aos jardins e hortas particulares, adicionavam-se pequenas praças resultantes das quinas angulosas das quadras. Os talvegs,

região de grande confluência de águas pluviais, receberam um tratamento paisagístico a fim de evitar processos erosivos no solo arenoso do local, criando-se mais praças e jardins públicos. Por fim, o sistema de esgotamento sanitário das quadras residenciais foi pensado para diminuir os custos de sua implantação e se beneficiar da energia gravitacional para transportar seus efluentes. Além disso, em determinadas áreas articulou-se a passagem destas vielas com a passagem para pedestres, facilitando o percurso a pé. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho não procurou questionar o caráter empreendedor deste projeto e seus objetivos para atender determinada classe social. O intuito maior deste foi apontar apenas os pontos positivos que a escola urbanística brasileira adquiriu com a elaboração e execução deste projeto. Buscou-se mostrar a concretização de um plano urbano, iniciado a partir de situações precárias, utilizando-se ao mesmo tempo de recursos técnicos modernos e formulações urbanísticas singulares, regidas por maestros preocupados em harmonizar o espaço e seu ocupante. Como resultado temos uma cidade com pouco mais de sessenta anos e que, estatisticamente, revela sua condição de melhor município paulista em qualidade de vida (Buchalla, 2000). Os esforços em Águas de São Pedro aplicados por seus idealizadores e projetistas, materializado pelas técnicas do escritório de Saturnino de Brito e pelos conceitos de Cidade-Jardim habilmente manipulados por Jorge de Macedo Vieira, mostram-nos que acima do caráter empreendedor do projeto existia uma preocupação em recuperar a área degradada e criar um ambiente propício ao desenvolvimento menos impactante entre a comunidade e seu habitat. Exemplo disso foi reservar mais da metade da área total da cidade à disposição de parques, praças e jardins, o que demonstrava, já naquela época, a preocupação em guarnecer os recursos naturais (fontes, rios e solo) de uma proteção, evitando assim sua degradação progressiva. Porém, não havia apenas respeito ao meio no qual esta cidade se desenvolveria. Os moradores e seus visitantes também foram contemplados por este projeto urbanístico. Nota-se que o plano privilegiava os pedestres com suas alamedas de inclinação suave e arborizadas, como também apresentava uma infra-estrutura eficiente com sistema de esgotamento sanitário, abastecimento de água e escoamento de águas pluviais que ainda hoje funcionam perfeitamente, mesmo com o acréscimo de uma população flutuante. Assim, o presente trabalho apresentou-se como um agente de resgate no passado de um exemplo urbanístico planejado para contribuir positivamente tanto ao homem como ao meio ambiente. A incorporação de modelos estrangeiros mostrou-se, neste caso, como uma ação plausível e coerente de ser realizada se contextualizada e sabiamente colocada em prática pelos profissionais competentes. Por fim, a integração entre urbanismo e saneamento existente no plano da Estância não apenas revela a ligação entre as técnicas higienistas do começo do século e os princípios de Cidade-Jardim como, num contexto mais amplo, aponta para a importância de pensarmos, analisarmos e projetarmos a cidade segundo o conjunto de suas estruturas.

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