Urdidura do Vivido: Visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque de Holanda na década de 1950

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Reitora Vice-reitor

Suely Vilela Franco Maria Lajolo

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Diretor-presidente

Plinio Martins Filho COMISSÃO EDITORIAL

Presidente Vice-presidente

Diretora Editorial Editoras-assistentes

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José Mindlin Carlos Alberto Barbosa Dantas Adolpho José Melfi Benjamin Abdala Júnior Maria Arminda do Nascimento Arruda Nélio Marco Vincenzo Bizzo Ricardo Toledo Silva Silvana Biral Marilena Vizentin Carla Fernanda Fontana

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Urdidura do Vivido Visão do Paraíso e a Obra de Sérgio Buarque de Holanda nos Anos 1950

Thiago Lima Nicodemo

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Copyright © 2008 by Thiago Lima Nicodemo

Ficha catalográfica elaborada pelo Departamento Técnico do Sistema Integrado de Bibliotecas da USP Nicodemo, Thiago Lima. Urdidura do Vivido: Visão do Paraíso e a Obra de Sérgio Buarque de Holanda nos Anos 1950 / Thiago Lima Nicodemo.– São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. 248 p. : il. ; 23 cm. Inclui bibliografia. Inclui fotografias. ISBN 978-85-314-1081-9 1. Historiografia – Brasil. 2. História (Teoria). 3. Buarque de Holanda, Sérgio. I. Titulo. CDD-981.06

Direitos reservados à Edusp – Editora da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 374 6º andar – Ed. da Antiga Reitoria – Cidade Universitária 05508-010 – São Paulo – SP – Brasil Divisão Comercial: Tel. (11) 3091-4008 / 3091-4150 SAC (11) 3091-2911 – Fax (11) 3091-4151 www.edusp.com.br – e-mail: [email protected] Printed in Brazil 2008 Foi feito o depósito legal

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sumário agradecimentos prefácio

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introdução

Modernidade, Semântica do Tempo e História da Historiografia

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capítulo I

O Historiador Encontra o Crítico 47 Visão do Paraíso e a tópica de Ernst Robert Curtius 48 | Curtius e a crítica “formalista” 52 | Poesia colonial e seus motivos 56 | A história e as histórias da literatura colonial brasileira 75 | A tópica e a elaboração de Visão do Paraíso 84

capítulo II

Idade Média, Renascimento e a Escrita da História em Visão do Paraíso 103 A questão da Modernidade portuguesa e os descobrimentos na argüição de Visão do Paraíso 103 | O problema dos limites da Idade Média 113 | Uma história em “câmera lenta” 136 | Texto e contexto: o problema da fundamentação epistemológica do conhecimento histórico em Visão do Paraíso 151

capítulo III

Sentidos da Colonização 161 Um percurso convergente: Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos e Visão do Paraíso 162 | O sentido da colonização em perspectiva na obra de Sérgio Buarque de Holanda 174 | O paradigma da “história como ciência do presente” na historiografia 187 | O futuro pretérito da colônia 195

considerações finais

O Exorcismo da Nação e as Aporias do Presente no Trabalho Historiográfico 207

bibliografia citada

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obras de Sérgio Buarque de Holanda Livros 239 | Artigos em Periódicos 240 | Documentação Pessoal 243 | Correspondência Passiva 244

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agradecimentos

Não foram poucas as vezes em que me surpreendi imaginando como seriam os agradecimentos do meu primeiro livro. Claro que isso representava o desejo de ver meu trabalho concretizado, meu esforço reconhecido e, de certo modo, todo nervosismo e insegurança exorcizados. Sonhar com os agradecimentos talvez fosse também uma forma de reconhecer e agradecer o apoio das muitas pessoas que contribuíram de diversas formas para a realização deste trabalho. Em alguma medida, vejo este livro mais como uma realização coletiva do que um produto de reflexões individuais, porque meu processo criativo depende das pessoas que me circundam; para mim, uma idéia só toma alguma forma se externada a alguém. Por isso, o simples ato de agradecer é uma restituição de um crédito intelectual tão importante quanto uma nota de rodapé ou uma referência bibliográfica. Além disso, esse processo tem um certo custo ao meu interlocutor, que em momentos muitas vezes inesperados é submetido a uma sabatina prolongada, sem nem sempre saber claramente onde quero chegar. O agradecimento também é por essa paciência e compreensão. Uma das coisas mais importantes que aconteceram durante o período como pós-graduando foi a amizade com Paulo Iumatti e Nelson Schapochnik. Este trabalho é permeado pela nossa intensa interlocução. Ao Paulo sou muito grato também pela leitura dos originais deste livro, além de tantos outros em que colaborou. 9

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Jorge Grespan e Laura de Mello e Souza acompanharam-me desde a graduação e continuaram presentes em todas as etapas deste trabalho. A eles sou grato pelo carinho, atenção, conselhos, indicações bibliográficas e até empréstimos de livros. Dentre os professores do Departamento de História da USP devo ainda agradecer a solicitude e a amizade de Francisco Alambert, Maria Helena P. T. Machado, Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses, Sara Albieri e Leila Leite Hernandez. Nos últimos anos, Sara e Leila foram grandes incentivadoras de minha carreira acadêmica, gerando uma confiança fundamental para meu processo de amadurecimento; esse cuidado muito espontâneo nunca vai ser esquecido. Além delas, destaco o professor Ulpiano pelo que representa na minha formação, pois não se trata apenas de uma grande referência intelectual, mas de alguém com quem sempre me identifiquei na intensidade com que ama o seu trabalho. O fato de, passados tantos anos de vida universitária, com tantas dificuldades e frustrações, essa relação continuar forte, como que intacta, é decerto encorajador para se prosseguir. Aliás, aproveitando o momento em que falo em paixão pelo bem público e particularmente pela universidade, agradeço muito ao professor Antonio Candido pela sua receptividade e generosidade. Agradeço também aos participantes da minha banca de qualificação, Maria Odila L. S. Dias e Antonio Arnoni Prado, tendo este se tornado um importante interlocutor. Outros professores que, de diferentes formas, contribuíram para a realização deste trabalho são João Adolfo Hansen, Francisco Vidal Luna e Herbert Klein. Devo, ademais, um agradecimento especial ao professor Peter Burke, que leu cuidadosamente os originais deste livro, sugerindo correções, modificações, sempre disposto a esclarecer dúvidas e sugerir novas abordagens. Este texto foi escrito originalmente no segundo semestre de 2005 e apresentado em janeiro de 2006 como dissertação de mestrado em história social no Departamento de História da Universidade de São Paulo. A banca examinadora foi composta por Lucia Maria Paschoal Guimarães e Laura de Mello e Souza, às quais agradeço. Procurei não modificar os agradecimentos, mas não posso deixar de mencionar o apoio significativo de algumas pessoas e instituições no desenvolvi-

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Agradecimentos

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mento de meus projetos e de minha reflexão, do qual este livro talvez seja apenas um dos primeiros passos. Em primeiro lugar, gostaria de agradecer o apoio recebido na UEL – Universidade Estadual de Londrina –, em que tive a oportunidade de ser Professor Colaborador de Teoria da História no primeiro semestre de 2006. Dentre os colegas que possibilitaram uma adaptação rápida e bastante harmoniosa menciono Angelita Marques Visalli, André Luis Joanilho, Cristiano Simon, Francisco Ferraz, Marco Antonio Soares, Silvia Lens, Ana Heloísa Molina, Silvia Cristina Martins de Souza e José Miguel Arias Neto. Lembro também do inestimável apoio das secretárias Fumiko Kayano e Celina Negrão. Sou grato ainda aos meus alunos, pela forma carinhosa com que me acolheram e pela boa vontade em compreender muitas idéias ainda em gestação. Daniel Antiquera foi companhia fundamental durante esse período. Seu gesto de amizade é certamente uma das lembranças mais caras que guardarei da UEL. Roberto Vecchi merece também um destaque especial pela forma aberta e generosa com que me acolheu na Universidade de Bolonha, na Itália. A revisão deste trabalho foi realizada durante o período de trabalho sob sua orientação, projeto que formulamos desde os primeiros meses do mestrado. Muitas das mudanças efetuadas na revisão são conseqüência de nosso diálogo, o qual espero que seja ainda muito duradouro. Menciono, ainda, os colegas e amigos ligados ao Departamento de Língua e Literatura da Universidade de Bolonha, Roberto Mulinacci, Luiz Fernando Beneduzi, Anabela Ferreira e Vincenzo Russo. Os amigos pós-graduandos Danilo Ferretti, Marcos Antonio Veiga, Leandro Antonio Almeida, Juliana Rodrigues Alves, presentes desde os primeiros anos da graduação, foram cúmplices do processo de amadurecimento pessoal e intelectual que resultou nesta pesquisa. Lembro também dos amigos e agregados da sala I-2 Carlos Rovaron, Maria Ângela Raus, Marisa Deaecto, Joceley Vieira de Souza e Marly Spacachieri. A Leandro Almeida sou particularmente grato pela ajuda estratégica na revisão técnica deste trabalho, além do socorro sempre paciente com as incógnitas da informática.

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Agradeço aos funcionários do Setor de Pós-graduação, Centro de Apoio à Pesquisa em História Sérgio Buarque de Holanda (Caph) e bibliotecas da FFLCH-USP; do arquivo, biblioteca e divisão de restauro do Instituto de Estudos Brasileiros da USP (especialmente Lúcia Thomé); do Arquivo Central da Unicamp (Siarq) (especialmente Márcia Aparecida Marques Silveira e Telma Maria Murari) e do Setor de Coleções Especiais da Biblioteca Central da Unicamp (especialmente Tereza Nonnato de Carvalho). Agradeço à Edusp e, em particular, a Marilena Vizentin pela paciente e cuidadosa assistência na publicação deste livro. Não posso deixar de mencionar também a preciosa ajuda de Sérgio Buarque de Holanda Filho durante o processo de produção desta obra. Raquel Glezer foi a orientadora da dissertação e atuou de modo constante, possibilitando todas as condições para a realização de uma boa pesquisa. Sua forma de trabalho encara a atividade intelectual como apenas um dos aspectos do exercício docente de dedicação ao bem público e, com o passar do tempo, cada vez mais lhe dou razão. Devo mencionar também o apoio indispensável da Capes durante boa parte do período como pós-graduando. À minha família agradeço pelo apoio e carinho. Aos meus pais sou eternamente grato pelos constantes e custosos estímulos ao meu desenvolvimento pessoal e intelectual. Lembro também de minha irmã, Thaís, cuja cumplicidade ajudou a superar os medos e as inseguranças naturais em carreiras dedicadas à cultura. Meus amigos mais próximos talvez não tenham idéia da importância que tiveram ao longo da pesquisa. Agradeço particularmente às famílias Lembi e Schulhof pelo respeito e confiança que depositaram em mim durante toda minha formação. Além deles, agradeço a David M. Delgado, que mesmo sendo engenheiro fez um estágio compulsório nos arquivos da Unicamp em um momento em que não pude ir pessoalmente. Christina Rostworowski da Costa costumava brincar que nosso relacionamento configurava um triângulo amoroso – eu, ela e “Sérgio”. Sua brincadeira deixa transparecer o grau de comprometimento e de participação que ela teve neste trabalho. Se é verdade que meus traba-

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Agradecimentos

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lhos são obras coletivas, não posso deixar de encarar este livro como resultado de um esforço mútuo realizado em anos muito felizes.

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prefácio

Este trabalho de Thiago Lima Nicodemo foi originalmente apresentado em janeiro de 2006 para obtenção de grau de Mestre junto ao Programa de História Social da Universidade de São Paulo. Nos dois anos que medeiam a defesa e a presente publicação, o autor valeu-se de uma estadia na Itália e, ampliando a pesquisa, pôde refinar argumentos e tornar mais claras certas passagens. O que já era bom ficou melhor, apesar do risco corrido pelo jovem pesquisador ao enfrentar uma das expressões mais importantes da cultura brasileira e, talvez, a obra magna de nossa historiografia: Visão do Paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda. Está-se, aqui, diante da história de um livro, ou melhor, diante de alguns dos aspectos fundamentais para a compreensão da gênese dessa obra-prima e do contexto em que pôde desabrochar. Sérgio Buarque de Holanda tem sido bem publicado e estudado na última década e meia, os especialistas editando inéditos seus sobre história da literatura – os Capítulos de Literatura Colonial, organizados por Antonio Candido e publicados em 1991; O Espírito e a Letra, composto pelos artigos de jornal dirigidos ao mesmo assunto, minuciosamente levantados por Antonio Arnoni Prado e dados ao público em 1996 – e as novas gerações reconhecendo nele o historiador genial que, de fato, foi, mas priorizando, dentre seus escritos, o clássico Raízes do Brasil, os estudos sobre vida material e sobre a expansão paulista. Até o momento, contudo, e até onde eu saiba, ninguém se havia detido com mais vagar sobre Visão 15

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do Paraíso, excetuando-se as observações argutas mas breves de Maria Odila Silva Dias em “Sérgio Buarque de Holanda, Historiador”, de 1985; as mais demoradas de Luíz Costa Lima, em 2002, e de Ronaldo Vainfas, que, em pelo menos duas vezes – “Sérgio Buarque de Holanda: Historiador das Representações Mentais”, de 1998, e “Gilberto & Sérgio”, também de 2002, e em virtude do centenário do nascimento do autor – debruçou-se, com a competência de sempre, sobre a obra. Este Urdidura do Vivido vem, portanto, prestar um serviço inestimável à história da historiografia brasileira, em geral, e, em particular, à elucidação dos percursos que levaram Sérgio Buarque de Holanda a realizar seu grande livro, apresentado, originalmente, como tese que o habilitava à cátedra de História da Civilização Brasileira da Universidade de São Paulo, em novembro de 1958. É um estudo de história, de teoria da história, de historiografia e de sociologia da cultura, entremeando com habilidade os objetivos que norteiam esses campos, diversos mas aparentados, dentro das ciências do homem, e fazendo com que estejam presentes o tempo todo, e ao longo de todo o trabalho. Não é, portanto, um estudo sobre Visão do Paraíso, mas em torno da obra: estudo horizontal, e não vertical, preferindo as relações entre ela e outras obras; entre Sérgio e outros autores, deixando de lado a compreensão mais funda dos argumentos, os seus significados arcanos. Já no subtítulo, que é também recorte,Thiago Nicodemo explicita suas intenções:Visão do Paraíso e a Obra de Sérgio Buarque de Holanda nos anos 1950. A opção é inteligente, uma etapa preliminar e preparatória para, no futuro, talvez, escalar esse monumento que é Visão do Paraíso, espécie de gigante praticamente solitário num país pouco dado, até o momento, às investigações de erudição, e mais afeito ao ensaísmo e às especulações generalizadoras – o que registro aqui como constatação, e sem juízo de valor. Tendo como eixo teórico e metodológico a filosofia da história de Reinhart Koselleck e as tendências contextualistas de certa história intelectual contemporânea, Urdidura do Vivido traz algumas contribuições decisivas. Como leitora constante de Sérgio, e admiradora incondicional de Visão do Paraíso, sempre cogitei que o capítulo homônimo, o de

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número VIII, teria sido escrito na Itália, ao mesmo tempo em que ia elaborando boa parte dos textos sobre o Barroco, editados em 1992 nos Capítulos de Literatura Colonial. Thiago mostra muito bem que o nascedouro de todos eles foi o processo de organização da Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Colonial, que o levou a estudar a fundo, entre o final da década de 1940 e o início da de 1950, o livro então recémpublicado de Ernst Robert Curtius, Literatura Européia e Idade Média Latina (1948), e a incorporar, em chave eminentemente histórica – como já havia observado Luís Costa Lima em 2002 – a sua teoria da tópica literária.Teria sido, pois, uma tarefa de circunstância a responsável pela grande guinada intelectual de Sérgio, que, mantendo a atividade de ensaísta e jornalista, tornava-se historiador cada vez mais erudito. Daí em diante, impulsionado pela encomenda de Álvaro Lins, que organizava uma História da Literatura Brasileira na qual o volume sobre o Barroco deveria caber a Sérgio, o historiador foi crescendo sobre suas outras personas, mas sempre tendo como norte a teoria da literatura: o tema do Paraíso Terrestre e da Idade de Ouro ganhou corpo nesse contexto. A encomenda nunca foi entregue: parte do estudo sobre o Barroco foi sendo retalhada em vários escritos curtos para jornal; parte permaneceu inédita até que Maria Amélia Buarque de Holanda, sua viúva e colaboradora, delegasse a Antonio Candido a tarefa de editá-la, o que foi feito na integralidade: nos Capítulos publicaram-se também algumas das partes já antes publicadas, conforme Thiago vai mostrando em notas cuidadosas. Valendo-se de Koselleck, Thiago Nicodemo colhe bons frutos ao explorar a importância que o presente do historiador tem na sua obra. Daí, inclusive, o título, Urdidura do Vivido, baseado no “duplo significa do trabalho historiográfico – como a análise do passado surge dos debates e expectativas do presente”. É sabido que Sérgio Buarque de Holanda foi homem de seu tempo: na década de 1920, ainda muito jovem, aderiu ao modernismo; como correspondente jornalístico na Alemanha, assistiu à ascensão do Terceiro Reich; foi socialista durante toda a vida, tendo lutado contra o Estado Novo, se aposentado da Universidade de São Paulo em protesto ao AI-5 e contado entre os

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fundadores do Partido dos Trabalhadores. Para ele, o passado não era, pois, um refúgio, da mesma forma que não o foi para outros homens de sua geração ou da anterior, como Marc Bloch ou Johan Huizinga, com os quais Thiago Nicodemo o compara com muita propriedade. Para eles, a violência das duas guerras e a tragédia do holocausto subverteram a tradição iluminista e revelaram que também a razão pode produzir monstros: as bases do racionalismo científico do século XX estavam irreversivelmente abaladas, e uma solução possível – adotada, no caso, pelos três historiadores citados – era perscrutar, como contraponto, os meandros da história da religião e da consciência mítica. Se nem os acontecimentos políticos eram dotados de uma racionalidade progressiva, o que dizer dos fatos culturais? A história do tempo presente somou-se, assim, à literatura para que o historiador pudesse adensar seu objeto: as idéias e as formas mentais teriam temporalidade peculiar, e o Barroco foi ganhando contornos mais fluidos e amplos, americanizando-se junto com o mito do Paraíso Terrestre e aproximando Sérgio, talvez – e esta invocação não é de Thiago, mas minha –, de outros grandes intelectuais ibero-americanos, como Alejo Carpentier. Ainda em decorrência das preocupações contextualistas de Urdidura do Vivido, recuperam-se, aqui, dois momentos interessantíssimos e até agora pouco explorados da interlocução intelectual de Sérgio: com Eduardo d’Oliveira França, que, num caso pouco comum, argüiu em tese e por quem, depois, foi argüido; e aquela com Caio Prado Jr., acerca do sentido da colonização. Thiago credita as diferenças existentes entre os autores ao fato de Sérgio enfatizar as continuidades existentes entre Idade Média e Renascimento, ao passo que tanto França quanto Caio viam este último como fenômeno já moderno, a romper com o passado. França não poderia, pois, abraçar a idéia de Sérgio sobre a forte presença do mundo medieval na expansão portuguesa, e Sérgio jamais veria no universo mental desses marinheiros o empirismo moderno que lhes foi conferido pelo estudioso português Joaquim Barradas de Carvalho, com o qual, por certo, França tendia a concordar. Sérgio também não poderia considerar o sentido da colonização da

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mesma maneira que Caio, ou seja, carregando nas tintas da organização de uma economia já quase capitalista: o fenômeno, para ele, era mais complexo e amplo, conforme Thiago pôde verificar consultando um texto inédito e de acesso difícil, os Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos, que apresentou ao programa da Escola Livre de Sociologia e Política com vistas a obter o grau de mestre e – curiosidades de uma trajetória acadêmica incomum – pouco antes de apresentar Visão do Paraíso para o concurso de cátedra na USP. Sérgio preocupava-se sobretudo com o sentido da formação, a do Brasil em relação à da sociedade portuguesa da época, que originava colonizadores dotados de ímpeto explorador mas afeitos a formas mentais medievais: a mentalidade arraigadamente conservadora do brasileiro dos séculos posteriores poderia ser explicada pela maneira como se realizou a colonização, e conferia-lhe, por sua vez, o sentido. Se as circunstâncias que envolveram a concepção e a realização do livro maior de Sérgio Buarque de Holanda ganham consideravelmente com a análise sensível e erudita de Thiago Lima Nicodemo, há ainda muito a examinar e compreender no que diz respeito ao argumento central. Considerando-se as opções feitas, bem como os objetivos de uma dissertação de mestrado, talvez não fosse possível ir adiante, mesmo porque, nestas circunstâncias – uma dissertação de mestrado – já se foi mais longe que o habitual. Mas não resisto em lembrar que ainda não se cuidou suficientemente do aspecto comparativo de Visão, a meu ver tão essencial como o havia sido em Raízes do Brasil. Discordo dos que têm dado ênfase excessiva à busca do Eldorado americano como engodo e delírio português, a viciar, no nascedouro, a relação do colonizador com a terra. O próprio Sérgio foi um pouco responsável por essas distorções posteriores, pois escreveu, no final do livro – e o último capítulo, como bem viu Thiago, é um tanto deslocado do resto, quase uma atualização das linhas dominantes em Raízes do Brasil – que os Eldorados iriam se repetir no tempo: nas minas, no açúcar, nos gêneros agrícolas da circunstância, sempre se explorando imprevidentemente, até o limite, como se tudo fosse metal precioso. “A procissão dos milagres há que continuar assim através de todo o

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período colonial, e não a interromperá a Independência, sequer, ou a República”, concluía Sérgio, fechando o livro. Não foi, contudo, nesse sentido que montou os andaimes de seu argumento mais brilhante, contido nos capítulos centrais da obra, a meu ver os de número I, II, VI, VII, VIII e XI∗. Se falo na primeira pessoa, e em função de experiência pessoal, quase posso afirmar ter sido neles que minha geração vislumbrou a via possível para entender a nossa história sob uma perspectiva renovada, apoiada numa tradição nossa, específica e, ao mesmo tempo, universal. Ali, Sérgio Buarque de Holanda nada deixava a desejar aos grandes historiadores de seu tempo: os selecionados por Thiago, mas também outro, muito influente na historiografia brasileira da segunda metade do século XX, Lucien Febvre. Nenhuma obra da época possibilitou, como Visão do Paraíso – antes dela, o crédito cabe, sem dúvida, a Os Reis Taumaturgos, de Bloch – a compreensão daquilo que a historiografia francesa dos Annales – na segunda e terceira gerações, para usar a classificação útil e popular de Peter Burke – denominou de outillage mental. Numa análise hermenêutica e sensível, Sérgio quis mostrar que os navegadores portugueses continuavam presos aos ditames da escolástica, classificando conforme o espírito das Súmulas, manifestando um empirismo que era o do pensamento medieval e não o dos filósofos modernos. Eram homens pouco afeitos à fantasia: se isso parecia moderno, podendo dar vezo a interpretações como a de Barradas de Carvalho sobre a especificidade do renascimento português – concreto, empírico, descritivo –, a essência mostrava-se tristemente arcaica, expondo a fragilidade do pensamento incapaz de voar e criar mitos. Visão do Paraíso não é a história dos delírios edenizadores dos lusitanos, mas do seu raquitismo: das operações mentais que reduziam mitos portentosos em fantasias desbotadas, atenuando-os, desbastando-os dos conteúdos mais imaginosos e originais para darlhes fôrma rotineira e sensaborona. Os espanhóis – daí a importância ∗

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Respectivamente, “Experiência e Fantasia”; “Terras Incógnitas”; “As Atenuações Plausíveis”; “Paraíso Perdido”; “Visão do Paraíso” e “Non Ibi Aestus”.

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da chave comparativa – foram os grandes edenizadores da América: inventaram, re-elaboraram, transgrediram, mostrando que experiência e fantasia não são antagônicas, mas duas faces da mesma moeda. Por isso, o renascimento pobre e desenxabido dos portugueses – sem pintura, sem pensamento original –, e aquele outro, fulgurante, que floresceu na Espanha, fazendo escola no ocidente, em todos os ramos das manifestações do espírito. Daí, também, a pequena ressonância da América em Portugal: um ou outro índio num canto de pintura, as gramáticas jesuíticas – que aprisionavam o que era distinto para transformá-lo no mesmo –, umas poucas e tímidas discussões acadêmicas impossíveis de se sustentar quando postas ao lado de uma das polêmicas mais extraordinárias do século XVI, a que, em Valladolid, opôs Juan Ginés de Sepúlveda e Bartolomé de las Casas. Esses argumentos iam no sentido contrário ao da tradição liberal portuguesa, que tanta ressonância teve no Brasil em fins do século XIX e inícios do século XX. Não davam espaço às elucubrações sobre as causas da decadência dos povos peninsulares porque não dourava o contexto genético da colonização: Portugal não estava adiante da Europa, nem seria, então, quase capitalista e racional, mas movia-se no seio de um modelo já experimentado, o dos genoveses e venezianos. A complexidade da explicação de Sérgio ainda está por explorar, conforme procurei indicar de modo muito esquemático. Por isso, Thiago Nicodemo acertou em cheio ao colocá-lo ao lado dos grandes mestres da historiografia do século XX, e fundamentou muito bem o motivo que o levou a fazê-lo. Trouxe igualmente uma contribuição decisiva para se entender a relação de Visão do Paraíso – não raro tido como trabalho desgarrado – com o conjunto da produção de Sérgio Buarque de Holanda, mostrando o plano conseqüente sobre o qual foi construída a obra e a relação profunda que guarda com a trajetória e com a vida do historiador. Logo no início de Urdidura do Vivido, Thiago Nicodemo cita certa crônica de jornal em que Sérgio via com bons olhos o desenvolvimento de uma historiografia acadêmica no Brasil. Este trabalho ajuda a mostrar como, também nesse ponto, ele tinha razão: no departamento

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onde ensinou, fez escola e se aposentou voluntariamente, por protesto e desgosto, suas lições continuam calando fundo. Laura de Mello e Souza

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introdução

Modernidade, Semântica do Tempo e História da Historiografia

Rebatendo uma das críticas mais freqüentes ao seu livro então recém-publicado sobre as origens do historismo, o historiador alemão Friederich Meinecke reafirmava um dos eixos fundamentais de sua argumentação: a centralidade de Goethe na evolução do historismo1. Para ele, alguns de seus críticos – dentre eles um dos mais conhecidos, Benedetto Croce – estranharam essa posição, pois tinham por base a relação extremamente problemática que o poeta alemão teve com a história, manifestando algumas vezes ao longo da vida descrédito ou descontentamento com a reflexão sobre o passado. Mesmo assim, Meinecke não acreditava que isso fosse razão para invalidar a consideração de que a obra de Goethe representou o ponto nevrálgico do desenvolvimento posterior do historismo, uma vez que nele já estavam presentes praticamente todos os elementos que caracterizariam a cultura alemã durante mais de um século. O historiador alemão argumentava que seu julgamento não foi baseado apenas em um princípio científico, ou seja, no refletir sobre a formação da história como ciência, mas em um princípio de vida2. Meinecke, todavia, não procurou desmentir seus críticos; de fato, Goethe, ao longo de sua vida, avaliou e refletiu sobre a história de uma

1. Friedrich Meinecke, Senso Storico e Significato della Storia, 1948, p. 91. 2. Idem, pp. 91-92. 23

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forma negativa, chegando até a repudiá-la totalmente. No capítulo dedicado a Goethe em O Historismo e sua Gênese, o historiador dedica todo um item sobre a visão negativa da história em Goethe. Para ele, tal perspectiva evolui cada vez mais para um questionamento radical da concepção iluminista da História Universal3. A negação de um sentido geral, universal e metafísico na história (Meinecke ressalta que Goethe chegou a afirmar que a História Universal era a coisa mais absurda que existia) abria caminho para a afirmação de que a história como conjunto de fenômenos resultantes de ações humanas no tempo só poderia ser compreendida tendo em vista a especificidade desses fenômenos, isto é, a relação única que cada fenômeno humano estabelece com o tempo. Assim, não havia contradição em propor que a visão de história de Goethe tocava no centro nervoso do historismo e que, em certo sentido, ambos estavam voltados para a vida. Apesar de efetivamente exemplificativa de um dos fundamentos do historismo, a relação de Goethe com a compreensão do passado não se resume apenas à crítica à História Universal. Partindo do princípio de que a história não podia mais ser um instrumento de investigação de uma razão universal, Goethe, de modo muito fragmentário ao longo de sua obra, procurou formular uma reflexão sobre a história. Uma de suas proposições mais célebres sobre esse tema foi estabelecida em um aforismo composto provavelmente em 1821, no final de sua vida: “Escrever história é um modo de livrar-se (ou emancipar-se) do passado”4. É muito sugestivo relacionar esse aforismo com considerações presentes em algumas das suas principais obras. Mais especificamente, a ação de livrar-se do passado, ou seja, de romper violentamente com dado passado, construindo uma realidade totalmente nova em seu lugar, nos remete a uma das suas obras essenciais, o Fausto. Na década de 1820, 3. Friedrich Meinecke, Le Origini dello Storicismo, 1954, pp. 427-428. 4. No original alemão: “Geschichte schreiben ist eine Art, sich das Vergangene vom Halse zu schaffen”. Contido na obra Maximen und Reflexionen, 1976, p. 37. Na edição brasileira, o aforismo foi traduzido do seguinte modo: “Escrever história é um modo de desembaraçar-se do passado”. J. W. Goethe, Máximas e Reflexões, 2003, p. 30.

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Goethe gestava justamente a segunda parte dessa obra, na qual enfatiza abstratamente a relação entre modernidade e desenvolvimento5. O personagem principal, dotado dos poderes quase irrestritos conferidos por Mefistófeles, coloca em ação o plano de modificar radicalmente o mundo, desenvolvendo forças produtivas com fábricas, indústrias e navios, reconfigurando a dinâmica do trabalho e, enfim, eliminando a qualquer custo todos os rastros de um passado arcaico. A aproximação do mote principal do Fausto II com o aforismo mencionado sugere uma associação direta com o dilema principal da modernidade – apagar o passado, construindo algo novo e vibrante em seu lugar. Para isso, seria necessário ler a expressão “escrever história” (Geschichte schreiben) não apenas em seu sentido literal, mas também como metáfora para o ato de “fazer história”, que se realizaria destruindo o passado arcaico e propondo algo de realmente novo em substituição. De qualquer forma, essa interpretação não seria suficiente para ler adequadamente o poeta alemão. Seja em um pequeno aforismo, seja em toda uma obra como Fausto, é preciso buscar dialeticamente as origens da negação. Na sua forma original, o aforismo de Goethe conta com uma peculiaridade. A ação de livrar-se do passado é composta a partir de uma expressão idiomática típica da língua alemã: “vom Halse zu schaffen”, ou seja, “retirar do pescoço” (o passado). A impossibilidade de se traduzir uma expressão como essa da língua alemã obriga o tradutor (não só o tradutor português, a não ser que sua língua possua expressão idiomática equivalente), a traduzir apenas o sentido geral da frase e, infelizmente, perde-se uma nuança particularmente interessante. “Retirar do pescoço”, mesmo que soe estranho em português, é uma referência corpórea. Na tradução, o “livrar-se” dá ênfase unicamente à ação, enquanto no “livrar-se” da versão original sabe-se que o passado está localizado em uma região sensível, no corpo daquele que quer se livrar. Fica, portanto, um pouco mais claro a razão de livrar-se do passado: algo que está no pescoço e que se

5. Para uma interpretação do Fausto II nesse sentido, ver Marshall Berman, Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: A Aventura da Modernidade, 1986, pp. 60-70.

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deseja retirar refere-se a uma sensação de desconforto, de incômodo6. Essa agonia imobilizadora, de ser abocanhando por um cão de caça como uma presa, ganhou, com a sedimentação de um mundo urbano e industrial, uma acepção bastante metafórica. Passou a denominar uma das sensações mais características da vida moderna: o worrying, isto é, uma preocupação sem, necessariamente, motivo aparente, que provoca um desconforto contínuo. A ação de livrar-se do passado para Goethe, portanto, alude a um passado presente, contido dentro do próprio ser, que provoca uma sensação de desconforto ou agonia. Escrever história não é livrar-se de qualquer passado, é livrar-se da parcela agonizante de seu próprio passado dentro de si. Fausto, aliás, sucumbe justamente por isso: quando sua empreitada modernizadora termina e não há mais nada a ser feito, ele se dá conta de que o passado que ele fez questão de destruir de modo inescrupuloso é justamente o seu7.

Meinecke, ao desenvolver seu argumento em O Historismo e sua Gênese, não se preocupa diretamente com a questão da modernidade em Goethe. No entanto, no núcleo de sua argumentação está a capacidade de um grande intelectual como Goethe transformar em palavras sensações reais, resumindo sentimentos coletivos e, assim, acessando o universal. Simplificando um pouco a questão, podemos afirmar que Meinecke se preocupa muito mais com os resultados histórico-universais da obra de Goethe do que com o modo pelo qual sua sensibilidade expressa alguns dos dilemas de seu tempo. Para ele, Goethe conseguiu captar em o traço fundamental de sua época, superando o universalismo iluminista com uma nova forma de perceber o tempo, pautada por um senso de unicidade e individualidade dos fenômenos históricos. De qualquer modo, 6. A associação do pescoço com um lugar vulnerável, capaz de produzir uma agonia imobilizadora, não tem incidência apenas em alemão. Em inglês, do antigo vocábulo wyrgan, estrangular, derivou a forma worrien, que denominava “apresar na garganta”, ação bastante compreensível em uma cultura na qual a caça tinha um importante papel. 7. Idem, p. 70; Johann W. Goethe, Fausto (2. Parte), pp. 130-134.

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pode-se finalmente compreender porque Meinecke argumentava que seu historismo era muito mais um princípio de vida do que de ciência, algo muito mais amplo, uma nova visão de mundo que, por sua vez, eclodiria num consistente e duradouro princípio científico8. Sustentando essa perspectiva, Meinecke também reconheceu que Goethe, com alguma freqüência, confessou vivenciar a experiência provocada pela estranha indistinção entre passado e presente9, ou melhor, a sensação de uma presença do passado no presente. Essa percepção capta de um modo sensível a imagem de um mundo que sofria mudanças drásticas permanentes, no qual o contraste entre o arcaico e o moderno era crescente. A dialética fundada na idéia de livrar-se do passado que é parte de si mesmo é uma imagem nuclear da modernidade. O ímpeto modernizador e a sensação incômoda da permanência de um passado indesejado fundaram uma sensação dialética com traços claramente trágicos, de modo que a modernização pauta-se por um esgotamento de si própria. Nesse sentido, Goethe vislumbrou que a função de sua poesia era uma espécie de liberação das coisas vividas e experimentadas e, segundo Meinecke, também acreditava que a história poderia ter uma função análoga10. No que diz respeito à reflexão sobre a escrita da história, a posição de Goethe guardava outra sugestão muito radical. A idéia de que a escrita da história poderia ser um modo de livrar-se do passado de fato projeta um grande sentido positivo em um futuro e um igual sentido negativo no passado. No entanto, na interpretação de seu aforismo está contida

8. Friedrich Meinecke, Senso Storico e Significato della Storia, op. cit., p. 92; Calvin G Rand, “Two Meanings of Historicism in the Writings of Dilthey, Troeltsch, and Meinecke”, 1964, p. 509. 9. Friedrich Meinecke, Le Origini dello Storicismo, op. cit., p. 422 e pp. 444-445. Ver também Frank Ankersmit, History and Topology: The Rise and Fall of the Metaphor, 1994, pp. 207-210. 10. Nas palavras de Meinecke, refletindo sobre o mesmo aforismo de Goethe: “A poesia era o meio para liberar-se no íntimo das coisas vividas e provadas. Via na tarefa suprema da historiografia uma função análoga. Esta devia, assim como a lança de Télefo, curar as feridas por ela inflingidas, tirar o peso do passado por elas invocado: ‘escrever a história é um modo de livrar-se do passado’”. Friedrich Meinecke, Le Origini dello Storicismo, op. cit., p. 445 (tradução do autor).

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uma idéia fundamental e radical sobre a escrita da história, pois todo esse processo é operado em um lugar construído entre as ruínas do passado e a reconstrução do futuro – o presente. Ao sugerir tal função para a história, Goethe vai na contramão da moldagem que sofria a disciplina histórica no início do século XIX. Em vez de propor que o historiador, como um cientista, neutralizasse tanto quanto possível sua individualidade, a máxima de Goethe propõe que a escrita da história seja um ato consciente e fincado sobre dilemas do presente, atentando para a subjetividade e a arbitrariedade do conhecimento histórico11. Talvez por isso o aforismo de Goethe tenha sofrido apropriações interessantíssimas no século XX (a começar pela de Meinecke). Convém, no que segue, analisar mais atentamente algumas delas.

Praticamente simultâneo ao texto de Meinecke, o livro de Benedetto Croce, História: Pensamento e Ação, problematiza, em um de seus eixos, a questão da contemporaneidade da historiografia12.A proposta de Croce é estabelecer regras básicas para a compreensão de um livro de história. Na sua ótica, assim como uma poesia, uma obra histórica é composta segundo critérios muito particulares, e sua avaliação deve necessariamente levá-los em conta. Se um livro de poesia deve ser avaliado segundo sua “poeticidade”, um livro de história só pode ser avaliado segundo a sua historicidade13. Mas no que consiste a historicidade de um livro de história? Croce responde que essa historicidade reside no fato de que a obra de história é um produto de vários tipos de necessidades da vida do seu autor. Avaliar uma obra de história é pensar na relação entre a “seriedade”, ou seja, o compromisso do historiador com determinados 11. Benedetto Croce, Goethe, 1959, vol. 2, p. 205. 12. Em nota final ao seu texto, Croce esclarece, apoiado na distinção de Heródoto entre historia rerum gestarum e res gestae, que optou pelo uso do termo “historiografia” para evitar a ambigüidade semântica do termo história, enfatizando assim que por historiografia compreendia o “pensamento histórico” (grosso modo, a escrita da história) em detrimento do significado da história como conjunto de fatos ou ações (a história vivida). Benedetto Croce, História: Pensamento e Ação, 1962, p. 286. 13. Idem, p. 9.

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fatores de sua realidade, e a forma com que o passado é reconstituído em sua obra14. A verdade na obra de história não envolve necessariamente a fidelidade e a precisão da reconstituição histórica, tanto que muitos grandes livros de história contêm inúmeros equívocos. O que os torna grandes clássicos é o enraizamento nos problemas de seu presente.Assim, a verdade em um livro de história não reside na fidedignidade aos fatos históricos, mas na capacidade da obra em estabelecer uma relação viva entre passado e presente. Nesse contexto, Croce faz a conhecida e desgastada consideração de que toda história é história contemporânea15. Croce também aludia a uma sensação de indistinção entre o presente e o passado. Para ele, “nós somos produto do passado, vivemos imersos no passado, que nos pressiona por todos os lados”16. Por isso a historiografia teria um papel fundamental, uma vez que podia transformar em conhecimento impulsos e sentimentos que compõem a experiência vivida. Para explicar essa questão, Croce recorre à conhecida máxima de Goethe, que ganha um papel central neste pensamento, nas suas palavras: De igual modo se comporta sempre a humanidade frente a seu grande e vário passado. Escrever histórias – observou Goethe certa vez – é uma forma de tirar-se dos ombros o passado. O pensamento histórico o reduz a matéria sua, transfigura-o em objeto seu, e a historiografia nos liberta da história17.

O conluio paradoxal de elementos arcaicos e contemporâneos que compõe a paisagem da modernidade, sensação presente desde um de seus primeiros intérpretes, como Goethe, ganhava traços quase dra-

14. Idem, ibidem. 15. “A necessidade prática, que está no fundo de todo juízo histórico, dá a toda história o caráter de ‘história contemporânea’, porquanto, por muito e muito distantes que pareçam cronologicamente os fatos por ela referidos, a história se relaciona sempre com a necessidade e a situação presentes, nas quais aqueles fatos propagam suas vibrações.” Idem, p. 14. 16. Idem, p. 34. 17. Idem, ibidem. No texto original italiano:“Così parimenti si comporta sempre l’umanità di fronte al suo grande e vario passato. Scrivere storie – notò una volta il Goethe – è un modo di togliersi sulle spalle il passato. Il pensiero storico lo abbassa a sua materia, lo trasfigura in suo oggetto, e la storiografia ci libera della storia”. Benedetto Croce, Storia come Pensiero e come Azione, 1970, p. 35.

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máticos nos anos 1930. Croce, apoiado de modo muito perspicaz na noção de Goethe, propunha uma solução: transformar esse estranho e angustiante sentimento (como vimos em Goethe) em conhecimento, particularmente em conhecimento histórico. Em sua perspectiva, tal operação provocaria uma espécie de liberação, transformando todo o fazer histórico na tentativa da humanidade de alcançar a liberdade. Nesse momento, dois pontos aparentemente distantes de nossa argumentação se unem de modo surpreendente: o sentimento da modernidade e a semântica do presente no pensamento histórico (a contemporaneidade do fazer histórico) apresentam-se como níveis diferentes do mesmo fenômeno. Não há nada de trivial nessa associação. A funcionalidade atribuída à história sugerida por Croce procurava unir uma ciência dotada de procedimentos relativamente rígidos a uma sensibilidade dramática e, de certo modo, artística do presente. O substrato da história seria, nessa perspectiva, não o passado em si, mas as formas de sua permanência no presente. O objetivo dessa confluência era a criação de uma ferramenta crítica que permitiria uma alteração da consciência histórica do homem em relação ao seu presente, possibilitando assim a separação clara entre as ruínas e os detritos arcaicos, reapropriadas sempre em meio a um fluxo de expectativas frustradas e o presente moderno e as perspectivas de organização de uma vida social no futuro. Mas como conferir bases científicas a essa disciplina? A resposta vinha sendo elaborada quase simultaneamente ao pensamento de Croce de finais dos anos 1930 por alguém que sentia esses dilemas com uma intensidade até mais dramática. Perseguido pelo exército nazista e encarcerado, o historiador francês Marc Bloch redigia o seu famoso livro Apologia da História ou o Ofício do Historiador, obra que nunca chegaria a terminar. Para ele, a história, como ciência dos homens no tempo, deveria necessariamente voltar-se para os problemas do presente. O estudo do mundo rural medieval, por exemplo, só faria sentido com a observação e reflexão sobre a paisagem de seu presente. Na transição do mundo rural para o urbano se poderia observar a presença de vários vestígios da disposição social e geográfica medie-

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val18. Assim, o contraste entre o moderno e o antigo deveria servir de substrato para o trabalho do historiador, por meio da reflexão sobre vestígios do passado no presente. Apesar da diferença abissal entre o pensamento de Bloch e o de Croce, não se pode negar essa confluência muito significativa – a investigação histórica ganha uma materialidade apoiada na presença concreta de elementos do passado no presente. Uma das mais importantes implicações dessa concepção é a necessidade de uma tomada de consciência por parte do historiador de que sua investigação tem um sentido retrospectivo. Segundo a bela metáfora cinematográfica de Bloch: “Mas no filme por ele considerado, apenas a última película está intacta. Para reconstituir os vestígios quebrados das outras, tem a obrigação de, antes, desenrolar a bobina no sentido inverso das seqüências”19.

Mas como explicar essa coincidência de opiniões, sentimentos e, claro, da referência insistente ao aforismo de Goethe? A obra de Benedetto Croce, A História: Pensamento e Ação, foi publicada pela primeira vez em 1938; o texto de Meinecke rebatendo as críticas ao seu livro sobre as origens do historismo foi escrito logo em seguida; Marc Bloch iniciou seu livro sobre o ofício do historiador pouco tempo depois, no final de 193920. Esses homens, em diferentes graus, procuravam racionalizar no campo da sua disciplina um mal-estar provocado por uma experiência comum: a radicalização do nazismo e do fascismo que culminou com a Segunda Guerra Mundial. Nas concepções de história desses intelectuais há diferenças enormes.

18. Nas palavras de Bloch: “Em certas de suas características fundamentais, nossa paisagem rural, já o sabemos, data de épocas extremamente remotas. Mas para interpretar os raros documentos que nos permitem penetrar nessa brumosa gênese, para formular corretamente os problemas, para até mesmo fazer uma idéia deles, uma primeira condição teve que ser cumprida: observar e analisar a paisagem de hoje. Pois apenas ela dá a perspectiva de conjunto da qual era indispensável partir”. Marc Bloch, Apologia da História ou o Ofício do Historiador, 2001, p. 67. 19. Idem, ibidem. 20. Carole Fink, Marc Bloch: A Life in History, 1991, p. 210.

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O historismo de Croce e de Meinecke contém diferenças filosóficas marcantes, especialmente no que diz respeito ao conceito de individualidade, proposto por ambos como núcleo do problema da história21. Marc Bloch, por sua vez, afasta-se deliberadamente do neo-idealismo de Croce22 e indiretamente da filosofia da história de Meinecke, propondo uma história encarada como operação esvaziada de pretensões eminentemente filosóficas. Entretanto, Croce e Bloch empreendem quase simultaneamente uma tentativa de reformar a história, impedindo que ela se transforme em um instrumento ideológico de manipulação das massas. O recurso ao aforismo de Goethe, por seu turno, pode ser explicado pelo enraizamento desses intelectuais na tradição moderna, ou melhor, modernista. Como já comentamos, o aforismo de Goethe, prenunciando o elemento central do Fausto II, formula explicitamente pela primeira vez o paradoxo da modernidade: o impulso do desenvolvimento traz consigo conseqüências destrutivas, inclusive aos seus protagonistas. Vivenciando, enfim, o desenrolar dos eventos entre as duas guerras mundiais, não se poderia deixar de sentir aquela angústia imobilizadora frente à iminência de mais destruição. Do ponto de vista da produção intelectual, e particularmente historiográfica, tal angústia era ainda mais paradoxal. Não custa lembrar que a institucionalização da produção de conhecimento é uma parte importante do projeto moderno de fundação de uma nova civilização através da técnica e da ciência. No limite, a institucionalização científica de disciplinas como a história é parte importante do processo de modernização, e o intelectual um instrumento direto desse processo. Essa angústia provocava a necessidade de um exame de consciência por parte do intelectual sobre seu próprio papel, bem como o da disciplina em que militava. Fazia-se necessário um processo de conscientização

21. Robert A. Pois,“Two Poles within Historicism: Croce and Meinecke” (todo o artigo trata das diferenças entre a esfera do individual e do universal no dois autores). Sobre este tema ver também os comentários de Croce incluídos como apêndice da obra de Meinecke, Senso Storico e Significato della Storia, op. cit., pp. 114-115. 22. Stuart Hughes, The Obstructed Path: French Social Thought in the Years of the Desperation: 1930-1960, 2002, p. 19.

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de que a ciência, em particular a história, não era neutra nem imparcial e, por isso, para que fortalecesse suas bases epistemológicas deveria assumir o seu papel no presente. Evidentemente, o papel da história no processo de fortalecimento dos totalitarismos serve como um contraexemplo. Uma nova história deveria se constituir em oposição a esse modelo, devendo, portanto, ser autocrítica e desconstrutiva. A capacidade de avaliação quase que imediata dos graves efeitos da ascensão do totalitarismo pode parecer um exercício teleológico que superestima a capacidade de avaliação e de consciência histórica desses intelectuais. Respondendo a essa questão, vale a pena lembrar da obra Erbschaft dieser Zeit, ou Herança do Nosso Tempo, publicada em 1935, na qual o intelectual alemão de origem judaica Ernst Bloch procura compreender as raízes do contexto social que já havia propiciado identificação de setores da população alemã com nazismo. Na seção nuclear da obra, já escrita em 1932, dedicada à idéia de “contemporaneidade do não contemporâneo”, o autor alude ao paradoxo do mundo industrial moderno, no qual ainda estão presentes instituições e mentalidades difusas provenientes de um mundo pré-capitalista23. O nazismo se apropriava de mitos, expectativas frustradas de um passado arcaico mal resolvido, e por isso presente, se apresentando como uma alternativa conciliatória de solução desses dilemas. Ernst Bloch formula uma proposta de um modo não muito diferente em relação às leituras do aforismo de Goethe já referidas neste livro; para ele, era necessário buscar a liberação no passado de um futuro ainda possível por meio de uma superação de alguns desses elementos não contemporâneos; sendo assim, passado e futuro conviviam no presente24. 23. Em suas palavras, provenientes da edição italiana:“Objetivamente o ‘não contemporâneo’ é aquilo que é distante do presente e estranho a este; compreende portanto resíduos em via de desaparecimento e sobretudo um passado que nunca foi concretizado, que não foi ainda ‘superado’ de um ponto de vista capitalista”. Ernst Bloch, Eredità del Nostro Tempo, 1992, p. 93 (tradução do autor, grifos no original).Ver também Jeffrey A. Barash, “Review: The Heritage of our Times by Ernst Bloch”, 1993, p. 900. 24. “Ao máximo pode ser útil uma aliança que libere no passado o futuro ainda possível que este encerra, pelo único fato de que ambos se situam no presente. Na contradição disforme há portanto uma realidade que – como mostra o horrível exemplo – não pode ser imediatamente mobilizada e inserida no processo da contradição contemporânea.”

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Basta ler atentamente as obras mencionadas para encontrar várias indagações sobre a ascensão dos totalitarismos e os maus usos da história. Em Marc Bloch, escrevendo do cárcere nazista que o condenou ao fuzilamento pouco tempo depois, essa relação é patente. O exame de consciência provocado pelo mau uso da história é uma espécie de pressuposto já expresso nos dois ou três parágrafos iniciais de sua obra. Refletindo sobre a importância da história em nossa civilização, Marc Bloch alude à sensação da presença maciça de elementos passados no presente (“nossa arte, nossos monumentos literários estão carregados dos ecos do passado, nossos homens de ação trazem incessantemente na boca suas lições, reais ou supostas”), e pouco depois indaga: A história mal-entendida, caso não se tome cuidado, seria muito bem capaz de arrastar finalmente em seu descrédito a história bem-entendida. Mas se um dia chegássemos a isso, seria ao preço de uma violenta ruptura com nossas mais constantes tradições intelectuais. Por hora estamos apenas, quanto a esse assunto, no estágio de exame de consciência. Cada vez que nossas tristes sociedades, em perpétua crise de crescimentos, põem-se a duvidar de si próprias, vemo-las se perguntar se tiveram razão ao interrogar seu passado ou se o interrogaram devidamente. Leiam o que escrevia antes da guerra, o que ainda pode ser escrito nos dias de hoje: entre as preocupações difusas da época presente, escutarão, quase inexoravelmente, essa preocupação de misturar sua voz às outras. Em pleno drama, foi-me dado captar seu eco [todo] espontâneo. Era junho de 1940, no mesmo dia, se bem me lembro, da entrada dos alemães em Paris. No jardim normando, onde nosso estado maior, privado de tropas, exercitava a sua ociosidade, remoíamos as causas do desastre:“É possível acreditar que a história nos tenha enganado?”, murmurou um de nós. Assim, a angústia do homem feito ia ao encontro, com um acento mais amargo, da simples curiosidade do rapazola. É preciso responder a um e outro25.

A experiência dramática da guerra leva a um exame de consciência que cria condições para a proposição de uma nova história escrita na contramão de uma certa “história bem-entendida”. Como já menErnest Bloch, Eredità del nostro Tempo, op. cit., p. 95 (tradução do autor). No ensaio Opere Mondo, Franco Moretti também propõe uma aproximação entre a percepção de Goethe do paradoxo moderno e a idéia da “contemporaneidade do não contemporâneo” de Ernst Bloch.Ver Opere Mondo, 1994, pp. 39-40. 25. Marc Bloch, Apologia da História ou o Ofício do Historiador, op. cit, pp. 42-43.

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cionado, esse projeto tenta incorporar ao estatuto epistemológico da história um mecanismo eminentemente moderno de desconstrução. Frente ao fracasso evidente da empreitada moderna, não surpreende o recurso também recorrente à máxima de Goethe. Deve-se lembrar que o poeta pode não ter sido o primeiro a sentir o processo da modernidade nem o primeiro a expressar em palavras seus termos; foi sim talvez o primeiro, ou dos primeiros o mais célebre, que expressou poeticamente o seu dilema angustiante. Percebeu que o processo de modernização produzia um inevitável paradoxo e carregava uma potencialidade destrutiva infindável. A concepção histórica discutida nesses anos não significava apenas um encontro com os termos clássicos da modernidade em si. O que é incorporado na reflexão histórica desses anos dramáticos é a crítica interna ao paradigma moderno, que parte da constatação também histórica das tragédias e dos desenganos da modernidade. Como observou Franco Moretti, o predicado “moderno” comporta tantos significados múltiplos e paradoxais que se pode duvidar de sua eficácia como chave compreensiva de um período, de uma postura intelectual, ou de um problema teórico26. Ao contrário, a tradição da crítica à modernidade talvez tenha um percurso palpável, pois envolve um sentimento concreto de reação frente aos resultados trágicos do projeto moderno. A partir deste ponto de vista, a concepção de história debatida no final dos anos 1930 é parte de um contexto de reformulação de toda razão ocidental e da crença no progresso, do qual são célebres as formulações dos filósofos da Escola de Frankfurt. Foge dos objetivos deste texto uma análise mais detalhada da tradição filosófica de crítica da modernidade (que nos levaria também inevitavelmente a Nietzsche), mas não se pode ignorar o fato de que no final dos anos 1930 o filósofo alemão Walter Benjamin, também perseguido pelo nazismo, pretendia arquitetar uma teoria da história por meio da qual o fascismo pudesse ser percebido27. 26. Franco Moretti, op. cit., p. 4. 27. “O fascismo ocupa, evidentemente, um lugar central na reflexão histórica de Benjamin nas Teses. Para ele, não é um acidente da história, um ‘estado de exceção’, qualquer coisa impossível no século XX, um absurdo do ponto de vista do progresso: rejeitando tal

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Ele estava consciente de que, para isso, deveria aprofundar a discussão sobre os limites entre presente e passado, procurando encará-los não como planos distintos, mas como elementos convergentes, caracterizados por um jogo dialético que compunha a imagem de uma constelação28. A partir dessas reflexões, Benjamin escreveu pouco depois, em 1940, seu famoso texto – Teses sobre a Filosofia da História. O que une a reflexão de Goethe aos intelectuais de vanguarda do século XX é que todos compartilham a experiência paradoxal de serem simultaneamente protagonistas da modernidade (como intelectuais e escritores de vanguarda) e seus críticos contundentes, pois foram capazes de prever em diferentes graus suas conseqüências destrutivas. Isso explica suficientemente o recurso insistente implícito ou explícito à formulação do autor do Fausto, pois, frente à radicalização da mesma experiência fluida moderna que a linguagem teima em não dar conta, recorre-se ao arsenal disponível na tradição literária, conferindo- lhe uma nova especificidade ligada às contingências do tempo e do lugar no qual é produzida. Isso ocorreu na apropriação da máxima de Goethe no pensamento histórico do século XX.

tipo de ilusão, Benjamin reclama ‘uma teoria da história a partir da qual o fascismo possa ser percebido’, ou seja, uma teoria que compreenda que as irracionalidades do fascismo são apenas o avesso da racionalidade instrumental moderna. O fascismo leva às últimas conseqüências a combinação tipicamente moderna de progresso técnico e regressão social”. Michael Löwy,“A Filosofia da História de Walter Benjamin”, 2002, p. 204. Löwy refere-se ao seguinte trecho das notas preparatórias às Teses sobre a Filosofia da História: “{Notwendigkeit einer Theorie der Geschichte, Von der aus der Faschismus gesichtet werden kann}”.Walter Benjamin, Gesammelte Schriften, 1974, p. 1244. 28. “Nicht so ist es, dass das Vergangene sein Licht auf das Gegenwärtige sein Licht auf das Vergangene wirft, sondern Bild ist dasjenige, worin die Vergangenheit mit der Gegenwart zu einer Konstellation zusammentritt. Während die Beziehung des Einst zum Jetzt eine (kontinuierliche) rein zeiliche ist, ist die der Vergangenheit zur Gegenwart eine dialektische, sprunghafte” Idem, pp. 1242-1243. “Não é que o passado lance luz sobre o presente ou que o presente lance luz sobre o passado; mas imagem é aquilo que um instante do passado e um instante do presente unem-se em uma constelação. Enquanto a relação do outrora com o agora é puramente temporal (contínua), a relação do passado com o presente é dialética, aos saltos” (tradução do autor). Uma análise desse trecho pode ser encontrada em Giorgio Agamben, Il Tempo che Resta. Un Commento alla Lettera ai Romani, 2000, p. 131.

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Alguns anos depois, em 1950, o historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda, escrevendo no rodapé do jornal Diário Carioca, advoga que o mesmo empenho crítico do pensamento sobre a história de Marc Bloch deveria estar presente na historiografia brasileira. A consciência crítica em relação a problemas do presente ajudaria a afastar a noção de que a história serve para uma certa idolatria e louvação do passado no presente, problema particularmente perceptível na historiografia de países novos como o Brasil29. Para Sérgio Buarque de Holanda, ao contrário, o historiador tinha obrigação de “requerer que se denunciem com vigor o simples pastiche ou a vontade de se ressuscitarem monumentos e instituições de eras transatas”30. Para isso, Sérgio Buarque depositava uma grande expectativa na institucionalização da história universitária no Brasil, louvando a recém-publicada obra de José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil, e a iniciativa de um grupo de professores paulistas em fundar a Revista de História. É muito interessante que, ao introduzir seu artigo, o historiador faça referência ao aforismo de Goethe e, indiretamente, ao aparente contra-senso comentado por Meinecke, intelectual com quem havia estabelecido contato quase vinte anos antes, quando viveu em Berlim. Em suas palavras: Encerrando uma das crônicas desta seção tive oportunidade de lembrar, recentemente, a noção goetheana de que a história não é mais do que um meio de nos emanciparmos do passado. [...] Pode parecer um contra-senso que se invocasse e aprovasse essa aparente negação do passado em favor do presente ou do futuro, expressa por alguém que, sendo embora poeta e homem de gênio, mostrara por mais de uma vez

29. “E se tal atitude nasceu e frutificou notavelmente em terras de venerável tradição, não se julgue que estejam imunizados contra ela os países novos. Penso, muito ao contrário, que exatamente entre os povos sem longo passado como o nosso torna-se, por isso mesmo, freqüentemente tirânica a ambição de forjar um passado artificial e que a ‘idolatria do ser efêmero’ como chamou essa tendência o historiador britânico Arnold J.Toynbee, tende a encontrar os mais fervorosos adeptos.” Sérgio Buarque de Holanda,“Ofício do Historiador”, Diário Carioca, 16 jul. 1950, p. 5. Esse texto foi republicado dois dias depois no jornal paulista Folha da Manhã sob o título de “Apologia da História”, que, por sua vez, foi incluída na coletânea Por uma Nova História, 2004, pp. 107-110 (o trecho destacado está na p. 109). 30. Idem, ibidem.

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(no projetado prefácio de Poesia e Verdade, por exemplo, e também no ensaio sobre a contenda entre clássicos e românticos na Itália, datada de 1818) escassa simpatia pelo mister de historiador. E contra-senso, sobretudo, quando a aprovação parte de quem se dedica, por gosto pessoal, por formação intelectual e até por dever de ofício, aos estudos históricos31.

Sérgio Buarque de Holanda apropria-se da máxima de Goethe para discutir o estatuto epistemológico da história em sua atualidade; mais especificamente, o papel seminal do presente na historiografia moderna. Ao fazê-lo, a sensibilidade do historiador brasileiro relaciona, como em Croce, o dilema da modernidade (por meio da referência a Goethe) a uma nova função da história, uma função comprometida com o presente. O otimismo demonstrado por Sérgio Buarque de Holanda com a institucionalização da historiografia acadêmica no Brasil, presente também em outros comentários do período32, é muito exemplificativo de mutações que seu próprio pensamento sofria ao longo dos anos. Logo após publicar Raízes do Brasil, o historiador brasileiro passou por um processo claro de especialização historiográfica, que foi, segundo suas próprias palavras, impulsionado por experiências como a de docente na recém-criada Universidade do Distrito Federal e pelo contato intenso com professores como Henri Hauser e Henri Trouchon33. Não se pode negar que e os modelos interpretativos duais de seu 31. Sérgio Buarque de Holanda, “Ofício do Historiador”, op. cit., 1950, pp. 5 e 6. 32. Como no artigo “Missão e Profissão”, Diário de Notícias, 22 ago. 1948 (republicado em O Espírito e a Letra: Estudos de Crítica Literária, 1996, vol. 2, pp. 35-40).Também sobre o mesmo tema, “O Pensamento Histórico no Brasil durante os Últimos Cinqüenta Anos”, Correio da Manhã, 15 jul. 1951. 33. Em texto escrito no final da vida, Sérgio Buarque comentou o papel crescente dos estudos históricos em sua carreira desde a volta da viagem a Alemanha no final dos anos 1930: “Estudos que havia apurado depois no Rio de Janeiro, durante estreito convívio que ali mantive com Henri Hauser, um dos mais notáveis historiadores de seu tempo, vindo da Sorbonne na leva dos dezesseis professores convidados a ir lecionar na efêmera Universidade do Distrito Federal por iniciativa de Anísio Teixeira, organizador e primeiro reitor do estabelecimento. Esse convívio, somado às obrigações que me competiam, de assistente junto à cadeira de História Moderna e Econômica, sob a responsabilidade de Hauser, me haviam forçado a melhor arrumar, ampliando-os consideravelmente, meus conhecimentos nesse setor, e tentar aplicar os critérios aprendidos ao campo dos estudos brasileiros, a que sempre me havia devotado, ainda que com uma curiosidade dispersiva e mal educada”. Sobre a experiência de Sérgio Buarque de Holanda na Universidade do

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primeiro livro, como, por exemplo, o do “homem cordial”, ou o do “ladrilhador” e do “semeador”, são substituídos desde Monções, seu segundo livro publicado em 1945, por um método fluido, preocupado em escapar de generalizações e em captar as diversas temporalidades dos eventos34. Ao mesmo tempo, a abrangência tipicamente ensaísta de seu primeiro livro – a pretensão de abarcar como tema do livro a história de adaptação do europeu a um novo mundo35 – é substituída por recortes consideravelmente mais circunscritos, em grande consonância com a vanguarda da historiografia internacional do período, tema que será aprofundado mais adiante. Por outro lado, o recurso ao aforismo de Goethe para caracterizar o uso crítico da história sem dúvida reaproxima a obra posterior de Sérgio Buarque de Holanda ao ímpeto no qual Raízes do Brasil foi escrito. Nesse livro, a reflexão histórica serve, em grande medida, para identificar as raízes arcaicas e daninhas da nossa sociedade que bloqueiam os processos de modernização e democratização. A função da história é possibilitar uma espécie de emancipação em relação ao passado. Muitos desses processos indesejáveis (dentre os quais o mais célebre é o personalismo contido na noção de homem cordial) remontam às nossas raízes ibéricas, mais especificamente, ao processo de constituição do Portugal moderno. Na sua precocidade, o processo de constituição do Estado nacional e a conseqüente expansão marítima de Portugal conservaram vários traços medievais que estão na base de processos indesejáveis presentes na realidade brasileira. Em grande medida, o artigo sobre o ofício do historiador de 1950 situa-se em um momento de transição de sua obra, no qual o tema perseguido em Raízes do Brasil, tema eminentemente modernista de ruptura com o passado arcaico, ganha um novo revestimento técnico

Distrito Federal, ver Marcus Vinicius Corrêa Carvalho, Outros Lados: Sérgio Buarque de Holanda, Critica Literária, História e Política, 2003, pp. 181-182. 34. Maria Odila Leite da Silva Dias, “Sérgio Buarque de Holanda, Historiador”, 1985, pp. 25-26. 35. Pedro Meira Monteiro, A Queda do Aventureiro.Aventura, Cordialidade e os Novos Tempos em Raízes do Brasil, 1999, p. 47.

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e passa a ser integrado em uma concepção de história. Alguns anos depois, tal associação ganhará mais clareza e força no pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, evoluindo para uma impaciência quase agressiva em relação a certos elementos indesejáveis na sociedade brasileira que remetiam às suas raízes ibéricas conservadoras. Esclarecendo suas posturas adotadas no livro Visão do Paraíso, em prefácio à segunda edição da obra publicada em 1969, dez anos após sua primeira edição, o intelectual brasileiro escreve: Esta espécie de taumaturgia não pertence, em verdade, ao ofício do historiador assim como não pertence o querer erigir altares para o culto do Passado, desse passado posto no singular, que é palavra santa, mas oca. Se houvesse necessidade de forçar algum símile, eu oporia aqui à figura do taumaturgo a do exorcista. Não sem pedantismo, mas com um bom grão de verdade, diria efetivamente que uma das missões do historiador, desde que se interesse nas coisas de seu tempo – mas em caso contrário ainda se pode chamar historiador? –, consiste em procurar afugentar do presente os demônios da história. Quer isto dizer, em outras palavras, que a lúcida inteligência das coisas idas ensina que não podemos voltar atrás e nem há como pretender ir buscar no passado o bom remédio para as misérias do momento que ocorre36.

Partindo do princípio de que a história não deveria servir para cultuar um passado cristalizado, Sérgio Buarque propõe uma nova ciência histórica. A metáfora do taumaturgo refere-se a uma concepção tradicionalista da história na qual a reconstituição do passado produz uma espécie de modelo (muitas vezes cívico) de conduta. Essa metáfora é particularmente forte, pois a taumaturgia é uma espécie de cura mágica, o que alude a uma concepção de história no mínimo artificial, em que o passado é modificado e cristalizado compondo um conjunto de mitos e lendas a serem cultuados pela sociedade que os produz. A segunda noção proposta só faz sentido com a existência do modelo taumatúrgico. A função da história exorcista é a de desconstruir, pôr em evidência a artificialidade da história taumatúrgica.

36. Sérgio Buarque de Holanda, “Prefácio à Segunda Edição”, Visão do Paraíso, 6. ed., p. XVI.

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Ao mesmo tempo, a máxima de Goethe sofre uma nova apropriação e figura dentro de um esquema complexo e sensível profundamente desconstrutivo. Exorcizar o passado é um meio radical de livrar-se não exatamente dos resíduos arcaicos contidos no presente (como no paradigma modernista inaugurado por Goethe), mas do uso arbitrário do passado como manancial de controle cívico e ufanista voltado para o futuro. A articulação central da modernidade – livrar-se do passado contido no presente – sofre um deslocamento de sentido e é incorporada dentro de uma nova concepção de história, uma história necessariamente consciente de que é produzida no presente e que por isso deve ter um papel modificador da sociedade. A nova ciência histórica produz uma crítica interna à modernidade, anunciando-se como desconstrutiva e como um instrumento de luta contra o mau uso da história. A historiografia liberta da história, como havia anunciado Croce, ou, nos termos de Sérgio Buarque de Holanda, “afugentando do presente os demônios da história”. Há uma forte coincidência na maneira de expor sua posição teórica sobre a história tanto no artigo de 1950 como no prefácio de 1967, e talvez possamos falar em um processo de maturação de uma concepção histórica presente embrionariamente em seus primeiros escritos. Visão do Paraíso, sob esse ponto de vista, tem uma grande centralidade na obra de Sérgio Buarque de Holanda. As linhas gerais de Raízes do Brasil persistem maciçamente, mas codificadas pela opção declarada da especialização na disciplina histórica. Ambas as obras são pautadas pela iniciativa de compreender as raízes culturais ibéricas das práticas sociais e mentais estabelecidas na colônia, e que permanecem até os tempos republicanos. Muitas dessas raízes remontam ao papel da península Ibérica, especialmente de Portugal, na cultura medieval européia – seu processo precoce de centralização política, sua estrutura econômica e suas práticas sociais. A idéia da escrita da história como exorcismo faz clara referência às experiências vividas nos anos 1930 e 1940; mais especificamente, ao desfecho trágico do projeto modernizador. A própria idéia é uma referência indireta a Marc Bloch, que, no final de 1939, justamente sob o impacto do início da Segunda

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Guerra Mundial, decide escrever uma história do povo francês (que seria dedicada ao historiador Henri Pirenne37) para “exorcizar os demônios do presente”. Segundo Carole Fink, esse projeto não foi realizado totalmente, mas sua introdução acabou sendo o embrião do livro Apologia da História38. Nessa perspectiva, Visão do Paraíso contém em suas entrelinhas uma revisão do projeto modernizador idealizado por Sérgio Buarque de Holanda. Se na sua obra de estréia está muito presente a perspectiva da modernização, mesmo que constituída por meio da dissolução de algumas das nossas raízes ibéricas, o “exorcismo” de sua obra de maturidade corresponde a uma certa posição desmistificadora do processo modernizador. E a história, vista como um conjunto de técnicas acadêmicas universitárias, é o instrumento pelo qual pretende intervir na sociedade. A concepção histórica de Sérgio Buarque produz uma articulação complexa pela qual a esfera política emana dos dilemas e disjunções do tempo. Em suma, apesar de mais complexa e acadêmica no sentido da reconstituição do passado, sua obra de maturidade encerra a revisão de um projeto de intervenção do presente. Seria ingênuo pensar que quanto mais o conhecimento é produzido segundo padrões técnicos e acadêmicos, menos ele é ideológico, parcial ou datado. Os comentários anteriores sobre as apropriações do aforismo de Goethe atestam justamente o contrário, a reelaboração ao longo da primeira metade do século XX de um novo paradigma historiográfico autocrítico, preocupado em transformar o conhecimento, em particular o histórico, em fator de modificação da realidade. Sérgio Buarque de Holanda claramente se insere nessa tradição crítica de reflexão sobre a história, como, aliás, fez questão de comentar algumas vezes em seus textos, e como se pode observar pela linha de continuidade entre Raízes do Brasil e Visão do Paraíso.

37. Carole Fink, op. cit., p. 209. 38. Idem, p. 210.

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A idéia de “urdidura do vivido” tem na sua base este duplo significado do trabalho historiográfico – como a análise do passado surge dos debates e expectativas do presente. Enquanto reconstrói algo do passado, articulando e analisando gestos, hábitos, sentimentos, pensamentos – experiências do homem em relação ao tempo –, o historiador imprime no texto seus próprios dilemas e vivências. Não há nada de novo nessa consideração a não ser a idéia de que esse esquema é também histórico, isto é, a idéia de compreender o passado à luz da expectativa de intervir no presente corresponde a uma estrutura de pensamento eminentemente moderna que passa, na primeira metade do século XX, por um intenso debate, tendo em vista os desfechos trágicos do projeto modernizador, do qual ela própria, como ciência, também faz parte. Os capítulos a seguir podem ser encarados como uma investigação sobre a contribuição de Sérgio Buarque de Holanda nesse contexto. De um modo inicial e muitas vezes incompleto, procura-se constantemente compreender a relação entre articulação da técnica historiográfica (incluindo a constante mobilização de outras disciplinas para o mesmo fim) e a compreensão e expectativa de modificação de processos na realidade presente. Essa articulação dificilmente produz efeitos explícitos no desenvolver da análise do historiador; talvez a única maneira de captá-la seja nas minúcias, no modo em que o intelectual articula suas referências, em suas cartas, anotações de pesquisa ou em artigos de jornal, em pequenos comentários que deixam transparecer suas preocupações, seus interlocutores. Este livro procura compreender a obra Visão do Paraíso por meio de uma gênese do desenvolvimento de alguns de seus elementos centrais ao longo dos anos 1940 e 1950. O caráter teórico da proposição inicial desta introdução é um meio tentador de sintetizar uma parte muito importante do pensamento crítico do século XX. No entanto, a análise que segue tem um caráter tendencialmente mais concreto e minucioso. Por meio das discussões intelectuais, artigos em periódicos e textos de história e crítica literária de Sérgio Buarque de Holanda produzidos nesse período, busca-se situar alguns eixos de uma das suas principais obras.

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A abordagem do percurso intelectual do historiador foi facilitada pela publicação relativamente recente de textos inéditos ou pouco conhecidos, como o livro inacabado Capítulos de Literatura Colonial, publicado por Antonio Candido em 1991, e a reunião de artigos de crítica literária organizada por Antonio Arnoni Prado em 1996, intitulada O Espírito e a Letra. De um modo geral, esses textos reforçaram a importância da produção de Sérgio Buarque de Holanda como crítico literário e historiador da literatura, principalmente ao longo dos anos 1940 e 1950. Nos anos 1950, sua produção de crítica e história literária é praticamente simultânea à elaboração de trabalhos eminentemente historiográficos, o que abre um campo de possibilidades ainda pouco explorado para o aprofundamento de seu processo crítico de trabalho e da visão dos dilemas brasileiros dele resultante. Visão do Paraíso marca a concretização do projeto de Sérgio Buarque de Holanda de compreensão das permanências culturais ibéricas estruturantes da sociedade brasileira, enfocando principalmente os aspectos mentais, as práticas sociais, os hábitos e as vivências dos sujeitos históricos. Grosso modo, são alguns desses processos históricos ou suas trágicas conseqüências no presente que o olhar crítico do historiador tencionava exorcizar. Cada capítulo deste livro ocupa-se da análise do tema sob uma perspectiva diferente, seja na interface entre crítica literária e história desenvolvida no primeiro capítulo, seja nos debates intelectuais da primeira metade do século XX em torno da modernidade (e da inserção de Portugal nesse processo), tema do segundo capítulo, ou na reflexão sobre o sentido do processo colonizador brasileiro (e suas conseqüências drásticas) desenvolvida no terceiro capítulo.

Talvez mais do que um autor ou um livro, o objeto deste estudo seja uma estrutura histórica e seus reflexos no pensamento historiográfico. Essa estrutura é relacionada ao sentimento de mal-estar da modernidade do século XX que a análise introdutória da trajetória de apropriações do aforismo de Goethe no século XX permitiu situar. Evidentemente, o conluio da experiência dramática moderna e da expectativa de inter-

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venção social dela resultante foram vivenciadas no Brasil de um modo bastante particular em relação ao contexto europeu. Se o paradoxo da modernidade é expresso pelo sentimento agonizante da destruição do mundo de origem frente à construção de um mundo urbano, industrial, caracterizado pela fluidez das referências e velocidade das mudanças, no Brasil esse sentimento paradoxal de desenraizamento talvez seja vivenciado de forma ainda mais intensa. Na nossa tradição intelectual, o mundo moderno é inevitavelmente identificado com o mundo civilizado europeu: nossas instituições, nossa língua, nossa sociedade são resultantes da tentativa de implantar a civilização européia da Época Moderna em nosso território, como o próprio Sérgio Buarque de Holanda observou em formulação que se tornou definitiva na segunda edição de Raízes do Brasil publicada em 194839, não muito antes do aparecimento do artigo sobre o ofício do historiador. Paulo e Otília Arantes dão passos decisivos quando se propõem a encarar o dilema intelectual brasileiro como resultante de uma “experiência intelectual básica”40, mas é necessário procurar compreender mais detalhadamente como essa experiência é transposta em pensamento, formando uma espécie de paradigma ou estrutura que se dedica normalmente ao estudo do passado brasileiro tendo em vista o seu desenvolvimento futuro. Não terá sido a associação entre a experiência moderna e a intervenção social através da produção de conhecimento o paradigma responsável pelas mais célebres formulações historiográficas, presente na maioria de nossos grandes clássicos produzidos no século XX? É preciso pensar na produção de conhecimento no contexto brasileiro do século XX como uma das ramificações mais

39. “A tentativa de implantação da cultura européia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato mais dominante e rico em conseqüências.Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa própria terra.” Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 26. ed., 1995, p. 31. 40. Paulo Eduardo Arantes & Beatriz Fiori Arantes, Sentido da Formação:Três Estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa, 1997, pp. 11-12.

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complexas de nossos projetos de modernização. E por que não batizar essa estrutura histórica com o mesmo nome que seus protagonistas lhe deram – “formação”? Sob tal perspectiva, boa parte de nossa história intelectual ainda está por ser feita. O mapeamento da referência a Goethe e do dilema moderno em historiadores do século XX procurou chamar atenção para o fato de que uma certa experiência em comum produz mutações concretas no pensamento histórico. À luz das experiências no século XX, o historiador reorganiza o passado, tencionando o futuro.Apesar do ar inatual que o neoidealismo de Benedetto Croce possa ter para um leitor contemporâneo, não podemos tirar-lhe a razão quando, em sua reflexão sobre a história da historiografia, comenta que cada obra de história consiste em uma espécie de projeto. Sob essa perspectiva, ela não é um reflexo mecânico da sociedade que a produz, pois normalmente contém expectativas e desilusões sobre um mundo desejado e desejável, mas que normalmente não coincide com o real. Em meio a tantos traumas e desilusões, parte significativa da historiografia do século XX procurou conscientizar-se de que todo pensar consiste em um posicionar-se frente à sociedade e à política, e incorporou essa reflexão na própria epistemologia de sua disciplina. Uma obra de história produzida nesse contexto é, em um grau até mais intenso, incrustada no tempo e nas experiências do século XX. É notável que esse horizonte se apresente como muito distante do nosso. Olhando retrospectivamente, tais sentimentos impressos por decepções e expectativas em relação a um futuro aparentam ser impotentes e até ingênuos em suas pretensões. Na realidade, no mundo em que vivemos a guerra e os traumas estão longe de inexistirem, bem como os dilemas produzidos pela modernidade e pelo afã de modernização. Por isso, uma obra produzida nesse contexto ainda pode ser pensada como uma urdidura do vivido, e sua validade como projeto, e a autoconsciência de seu lugar no tempo, são mais importantes do que nunca.

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capítulo I

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Ao folhear Visão do Paraíso, uma das primeiras características que chama a atenção do leitor é a escolha do tema da investigação, já presente de maneira razoavelmente clara em seu subtítulo – “Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil”. Esses “motivos” são temas relacionados às descrições religiosas do paraíso contidas na cultura ocidental – principalmente de matriz cristã – que estão coincidentemente presentes nos relatos de colonizadores e viajantes nos dois primeiros séculos de colonização do continente americano e, em particular, do Brasil. Trata-se, em princípio, de um estudo comparado do tema paradisíaco em dois conjuntos de textos. Se Visão do Paraíso se resumisse a isto, poderíamos falar de um estudo eminentemente crítico-literário, um trabalho erudito de garimpo e entrecruzamento de textos produzidos em um grande recorte temporal. No entanto, não é preciso muito para concluir que a obra é pautada por uma preocupação essencialmente histórica, pois há uma relação clara entre os “motivos edênicos” e a história do descobrimento e da colonização

* Título inspirado na solução adotada por Antonio Arnoni Prado na organização dos artigos de Sérgio Buarque de Holanda dos anos 1940 e 1950. Cf. Antonio Arnoni Prado, “Notas sobre a Edição”, O Espírito e a Letra, vol. 2, pp. 17-18. As páginas iniciais deste capítulo correspondem a uma versão modificada de meu texto “Rebelião e Convenção: História e Crítica Literária na Obra de Sérgio Buarque de Holanda dos Anos 1950”, 2005. 47

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do Brasil. Em Visão do Paraíso, a análise dos “motivos” paradisíacos contidos nesses relatos tinha como objetivo a compreensão de elementos do pensamento e da visão de mundo dos colonizadores, o que permitia, em um grau mais abrangente, jogar nova luz na cultura e na sociedade formadas no processo de exploração e colonização do Novo Mundo. A ligação complexa entre a análise crítico-literária e a histórica é um dos grandes desafios na leitura de Visão do Paraíso, e talvez seja um dos seus elementos mais importantes. Neste capítulo, procuraremos aprofundar tal problema tendo em vista que a obra em questão é um ponto de confluência entre essas que foram as duas principais atividades realizadas por Sérgio Buarque de Holanda ao longo de boa parte da sua vida. Privilegiando os textos produzidos na década de 1950, tentaremos compreender mais especificamente o parentesco entre os “motivos edênicos no descobrimento e colonização” e os topoi – permanências formais literárias da cultura latina européia. Dando ênfase especial a uma de suas principais referências, o filólogo alemão Ernst Robert Curtius, realizamos uma espécie de gênese, mapeando e analisando retrospectivamente textos que atestam um processo pelo qual o autor brasileiro vai se tornando cada vez mais sensível à questão da forma na análise literária, transformando-a progressivamente em uma ferramenta de análise histórica, utilizada principalmente em Visão do Paraíso.

Visão do Paraíso e a tópica de Ernst Robert Curtius Em texto recente, o crítico Luiz da Costa Lima dedicou-se à análise da importância central da tópica de Curtius em Visão do Paraíso. Seu ponto de partida foi o comentário do próprio Sérgio Buarque de Holanda no prefácio à segunda edição do livro em questão. Nesse prefácio, escrito mais de dez anos após a primeira publicação da obra, o historiador procurou esclarecer ao público suas opções metodológicas

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e temáticas, reconhecendo a importância do conceito de Curtius na estruturação de seu livro1. A seguir reproduzimos o trecho do prefácio de Visão do Paraíso inicialmente destacado por Luiz Costa Lima: O tema deste livro é a biografia de uma dessas idéias migratórias, tal como se desenvolveu a partir das origens religiosas ou míticas (capítulos VII e VIII), até vir implantar-se no espaço latino-americano, mormente no Brasil. Para isso foi de grande serventia o recurso à Tópica, no sentido que adquiriu esse conceito, tomado à velha retórica, desde as modernas e fecundas pesquisas filológicas de E. R. Curtius onde, conservando-se como princípio heurístico, pôde transcender aos poucos o cunho sistemático e puramente normativo que outrora distinguia, para fertilizar, por sua vez, os estudos propriamente históricos2.

A tópica proposta por Curtius é um sistema de identificação e classificação de regularidades discursivas – fórmulas de construção do discurso herdadas da retórica antiga, um dos pilares da cultura latina européia3. A retórica, doutrina da construção dos discursos, foi extremamente difundida durante a Antigüidade e utilizava os topoi como elementos de adequação dos discursos às suas finalidades. Com o fim do Império Romano, a cultura latina se dissolveu e, com ela, a retórica fragmentou-se. Os topoi concebidos originalmente como fórmulas utilizadas na construção dos discursos perderam seu significado estritamente normativo e impregnaram-se nas culturas regionais. Nesse sentido, pode-se dizer que a Idade Média ganha em Curtius o status de elo de ligação entre as culturas européias nacionais. É importante lembrar que sua perspectiva sobre esse período con-

1. Luiz Costa Lima, “Sérgio Buarque de Holanda: Visão do Paraíso”, 2002. 2. Sérgio Buarque de Holanda, “Prefácio à Segunda Edição”, Visão do Paraíso: Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil, 2. ed., 1969, p. XX. O mesmo prefácio pode ser encontrado sem modificações em edições mais recentes, como a 6. edição publicada pela Brasiliense em 1996, na p. XVIII. 3. Em sua principal obra, Literatura Européia e Idade Média Latina, o filólogo e romanista alemão Ernst Robert Curtius (1886-1950) dedica um capítulo específico à questão da tópica. Ernst Robert Curtius, Literatura Européia e Idade Média Latina, 1996, pp. 121-152. Sobre a tópica ver também Alexander Gelley, “Ernst Robert Curtius: Topology and Critical Method”, 1966, pp. 579-594.

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trapunha-se à associação da Idade Média a um momento de trevas e declínio da cultura ocidental no qual a cultura clássica foi praticamente esquecida4. Por isso o filólogo alemão procurou investigar as reminiscências e mutações da cultura clássica em um cenário político de descentralização. A identificação de permanências discursivas relacionadas originalmente com a retórica antiga permitiram a reconstituição do denominador comum das literaturas nacionais européias – a cultura latina. Segundo a proposição de Sérgio Buarque de Holanda, a tópica de Curtius é, de certo modo, equivalente à busca pelos motivos edênicos estudados em Visão do Paraíso5. Nas palavras de Costa Lima: [...] foi o estudo da tópica por Curtius que serviu de principal ferramenta para que Sérgio Buarque pusesse em movimento e conseguisse um modo de articular sua imensa erudição, convertendo-a em um precioso instrumento interpretativo sobre a forma mentis dos colonizadores ibéricos6.

No entanto, o uso da tópica de Curtius em Visão do Paraíso não se resume a uma aplicação mecânica de um método ou teoria. O próprio Costa Lima reconhece que há diferenças significativas entre o conceito de E. R. Curtius e o modo em que ele foi empregado na obra de Sérgio Buarque7. Para compreender essas diferenças devemos recorrer ao contexto de produção da obra de Curtius. Ao reduzir as literaturas nacionais e regionais européias ao denominador comum da Idade Média Latina, a tese de Curtius confrontava-se diretamente com as histórias da literatura nacionais e, por extensão, com um dos princípios organizadores do Estado Nacional Moderno. Literatura Européia e Idade Média Latina pertence a um momento cultural alemão situado a partir do final da Segunda Guerra Mundial, pautado pela tomada de consciência dos desastres do nacional-socialismo. Ao 4. 5. 6. 7.

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T. E. Mommsen, “Petrarch’s Concept of the Dark Ages”,1942, pp. 226-227. Luiz Costa Lima, “Sérgio Buarque de Holanda: Visão do Paraíso”, op. cit., p. 51. Idem, p. 46. Idem, pp. 51-52.

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criar uma ferramenta que busca a relação entre as diversas culturas nacionais européias, Curtius subverte um dos princípios do nacionalismo e oferece ao pesquisador, naquele instante, a oportunidade de “desfazer a mancha negra da Alemanha e, sobretudo, de reintegrá-la no espírito do Ocidente, desde suas origens gregas e romanas”8. Segundo Costa Lima, a tópica é, portanto, um mecanismo que “neutraliza a práxis da vida histórica, pois busca o centro de gravidade do saber na origem ou na continuidade supratemporal da tradição e não no caráter atual e único dos fenômenos literários”9. Esse trecho corresponde a uma citação do livro de Hans Robert Jauss – Liteturgeschichte als Provokation der Literaturwissenschaft, ou história da literatura como provocação à ciência da literatura (ou teoria literária) –, coincidentemente publicado pela primeira vez no ano anterior ao prefácio à segunda edição de Visão do Paraíso. Nele o autor busca cultivar no campo da ciência da literatura uma semente plantada pelo seu antigo mestre Hans-Georg Gadamer no campo dos estudos filosóficos. A crítica de Jauss à tópica permite que Costa Lima formule a questão crucial de sua investigação. Afinal, se em Visão do Paraíso Sérgio Buarque de Holanda declaradamente apóia-se na tópica de Curtius, como então o historiador brasileiro teria feito para desviar-se do sentido original da tópica e utilizá-la como instrumento de investigação histórica?10 Esta

8. Idem, p. 49. 9. Idem, pp. 49-50. Citação extraída de Hans Robert Jauss, Liteturgeschichte als Provokation, 1970, p. 153. A citação de Jauss feita por Costa Lima é particularmente interessante, pois no trecho original Jauss se referia diretamente a um panorama de volta à tradição nos estudos histórico-literários ocorrida em um contexto posterior à Segunda Guerra Mundial, que inclui tendências como a Escola de Warburg (a qual será comentada no próximo capítulo). O trecho original é: “[...] die letztere neutralisiert die Lebenspraxis der Geschichte, indem sie den Schwerpunkt des Wissens im Ursprung oder in der überzeitlichen Kontinuität der Traditin nich aber in der Gegenwart und Einmaligkeit einer literarischen Erscheinung sucht”. Em nota de rodapé feita ao final deste mesmo trecho, Jauss sustenta esse cenário de maior amplitude referindo-se à crítica feita por Werner Krauss justamente à obra de E. R. Curtius, Literatura Européia e Idade Média Latina, op. cit. 10. Nas palavras de Costa Lima:“como o historiador teria, ao mesmo tempo em que apreendia a riqueza da frente que a tópica lhe apresentava, evitado que ela fosse um elemento perturbador da desejada compreensão histórica?” Idem, p. 51.

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pode ser a chave para a compreensão do caráter pessoal que Sérgio Buarque dá à tópica, e que por sua vez serve de porta de entrada para a discussão do método em Visão do Paraíso11. Partindo do questionamento crucial de Costa Lima sobre o uso da tópica em Visão do Paraíso, analisaremos a seguir o processo de apropriação desse instrumento teórico na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Veremos que as particularidades dessa apropriação decorrem do fato de que, até aparecer em Visão do Paraíso, a tópica foi gestada durante quase uma década no pensamento de Sérgio Buarque sobre literatura. O fato de a tópica ser apropriada como instrumento de investigação histórica não é isolado: ela se insere em um momento chave da obra de Sérgio Buarque em que sua reflexão em diversas áreas do conhecimento, em especial a literatura, confluem na formação do historiador.

Curtius e a crítica “formalista” Em artigo datado de 26 de novembro de 1950, Sérgio Buarque de Holanda, então crítico titular do suplemento literário do jornal Diário de Notícias, fez comentários que podem ajudar a compreender a perspectiva sobre a obra de E. R. Curtius. Nesse artigo, o historiador discute algumas obras previstas no projeto de traduções e publicações do Instituto Nacional do Livro, dirigido por seu antigo companheiro de trabalho, Augusto Meyer. Em suas palavras: Um desses livros é a obra mestra de Ernst Robert Curtius dedicada à literatura européia e a Idade Média latina, que, publicada na Suíça há apenas dois anos, já se tornou contribuição clássica nos domínios da história e da crítica. Assina11. Segundo Costa Lima, a peculiaridade de Visão do Paraíso reside na articulação do método do qual a topologia é parte fundamental. O crítico literário procura distanciar-se de uma definição rígida do significado que empresta à palavra método de modo apenas a indicar que sua reflexão preocupa-se com os instrumentos críticos desenvolvidos por Sérgio Buarque de Holanda, que hoje podemos retrospectivamente enxergar. Não se preocupa apenas com o grau de consciência do autor ao utilizá-los. Idem, p. 45. No que diz respeito ao uso da palavra “método”, podemos dizer que este livro pauta-se em posição análoga.

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lando com agudeza e erudição exemplares a continuidade da tradição literária do mundo ocidental, o ilustre romanista pôs admiravelmente em prática um dos princípios que vêm norteando há longo tempo suas investigações. Ou seja, o de que, representando embora atividades distintas, com métodos e finalidades próprios, a história e a crítica literária podem morar na mesma casa12.

Em sua primeira menção à obra de Curtius, o historiador não se refere expressamente à tópica. Na realidade, sua perspectiva parece bastante distinta da que viria a desenvolver, alguns anos depois, em Visão do Paraíso. Literatura Européia e Idade Média Latina aparece como alternativa em um debate que polarizava história e crítica literária. Nesse sentido, a leitura de Curtius é condicionada por um dos temas principais que Sérgio Buarque vinha discutindo em seus artigos de jornal durante quase toda a década de 1940. Essas discussões referiam-se significativamente à recente entrada no Brasil de tendências da crítica literária como o New Criticism, que privilegiavam análises formais das obras literárias. Sérgio Buarque de Holanda costumava referir-se genericamente a essas tendências com o termo “formalismo”. Para ele, a crítica formalista bloqueava as possibilidades de reflexão sobre a relação das obras literárias com a sociedade e o tempo em que foram produzidas13. Em certo sentido, a obra de Curtius permitia a articulação de elementos formais que ampliavam as possibilidades de análises históricas, pois identificava a “continuidade da tradição literária do mundo ocidental”. Por isso, o historiador brasileiro encontrou em Curtius uma proposta para que as disciplinas da história e da crítica literária “morassem na mesma casa”. Por outro lado, Sérgio Buarque procurava reconhecer as qualidades das análises formalistas. Para ele, tendências como o New Criticism tinham o mérito de privilegiar uma análise interna das obras, atenta particularmente à questão da criação literária. Em suas palavras: “A crítica formal, embora só tenha sido possível, a rigor, no exame da 12. “Mimesis”, Diário Carioca, 26 nov. 1950, pp. 5 e 6. Reproduzido em Sérgio Buarque de Holanda, O Espírito e a Letra, 1996, vol. 2, pp. 289-293. 13. “Universalismo e Provincianismo na Crítica”, Diário de Notícias, 7 nov. 1948, p. 1. Reproduzido em Espírito e a Letra, op. cit., p. 59.

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poesia, porque justamente na poesia os aspectos formais e técnicos são mais visíveis, traz a segura vantagem de facilitar um estudo direto da obra criticada”14. Muito provavelmente esses comentários são contemporâneos a um momento em que Sérgio Buarque de Holanda preparava a edição de uma antologia poética. Sua reflexão sobre a poesia colonial será retomada mais adiante. Por enquanto, gostaríamos de ressaltar que um “estudo direto” da obra literária significava uma perspectiva de análise na qual todos os questionamentos do crítico deveriam partir exclusivamente do texto. Em uma análise inicial, o crítico deveria evitar ao máximo interferências extratextuais na sua interpretação, em especial aquelas pautadas pela projeção de elementos históricos e contextuais nas suas análises. Do contrário, sua análise poderia ficar enviesada e anacrônica, criando uma espécie de determinismo histórico na crítica literária. Por exemplo, na análise de um texto espanhol do século XVII o crítico imputaria elementos históricos e estilísticos previamente conhecidos sobre o Barroco sem antes verificar, em uma análise autônoma do texto, se tais características são efetivamente pertinentes ao material analisado. Ou mesmo projetar na análise do texto dados previamente conhecidos do percurso biográfico do autor, como suas convicções políticas, sem antes verificar se o trecho em questão permite tal leitura. Na perspectiva de Sérgio Buarque de Holanda, os “formalismos” se contrapunham aos determinismos de toda ordem na crítica, em especial àqueles que privilegiassem explicações biográficas ou psicológicas. No entanto, deve-se reconhecer que a crítica idealizada pelo autor nunca chegaria a negar a importância de elementos históricos ou biográficos nas análises textuais. Sérgio Buarque buscava, na realidade, uma alternativa, um meio termo. Em uma análise do conjunto de escritos de Alceu Amoroso Lima, publicado quase dois anos antes do comentário a Curtius, Sérgio Buarque de Holanda situa com clareza a questão: 14. Idem, ibidem.

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Essa obra, que elevou a alturas até então nunca atingidas nossos padrões nesse ramo de literatura, funda-se em grande parte na tradição francesa, que é ainda a boa tradição, a que mais sabiamente se equilibra entre os extremos do formalismo acadêmico, de um lado, e do biografismo, do historismo, do psicologismo, do sociologismo, do moralismo, estes tão mais freqüentes nos países de língua inglesa ou alemã. Seria paradoxal o fato de os maiores arautos da crítica formalista, exclusiva de quaisquer preocupações sociais ou históricas, se encontrarem hoje justamente em países anglo-saxões, e nos Estados Unidos sobretudo, se não fosse explicável como reação aos excessos a que levam as curiosidades biográficas e as interpretações psicanalistas e marxistas, tão generalizadas nos mesmos países15.

Para Sérgio Buarque, a interpretação literária deveria partir de uma análise textual cuidadosa; no entanto, esse exercício não poderia ser excessivamente hermético, abandonando as eventuais colaborações de outras disciplinas como a história, a sociologia ou mesmo a biografia. No trecho anterior, o intelectual procura compreender essa posição radicalizada como produto histórico de seu contexto de formação. Na sua perspectiva, o New Criticism nasceu justamente como reação à forte predominância de estudos históricos e sociológicos sobre as obras de arte, e por isso precisou afirmar-se pela negação de seus pares. Em outros locais, como a França, a crítica literária encontrou mais espaço para equilibrar essas diversas correntes. Em seu discurso subjaz a reflexão sobre um modelo ideal para a crítica no Brasil. Ainda no mesmo artigo, Sérgio Buarque conclui: A crítica verdadeiramente fecunda há de considerar a obra literária não apenas na sua aparência exterior, como produto acabado e estanque, mas, se possível e se preciso, a partir do processo de formação e criação. Terá de incluir, por isso mesmo, e largamente, elementos extraídos da história (e da biografia), da psicologia, da sociologia, onde e quando se achem disponíveis, sem confundir-se forçosamente com qualquer dessas disciplinas16.

A obra mais conhecida de E. R. Curtius, Literatura Européia e Idade Média Latina, parecia coincidir, pelo menos em parte, com tais aspirações. No entanto, o pensamento do historiador brasileiro sobre a crítica 15. “Universalismo e Provincianismo na Crítica”, op. cit., p. 58. 16. Idem, pp. 59-60.

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literária teria sua fase mais atribulada nos anos seguintes, especialmente na primeira metade dos anos 1950, período no qual realizou dois grandes trabalhos sobre literatura. Muitas das questões discutidas em suas atividades jornalísticas nos anos anteriores foram incorporadas e experimentadas na realização desses livros.

Poesia colonial e seus motivos Por volta do fim da década de 1940, Sérgio Buarque de Holanda foi convidado a organizar uma antologia de textos poéticos coloniais. Esse livro faria parte de uma coleção que vinha sendo publicada desde finais da década de 1930 pelo Instituto Nacional do Livro, instituição à qual era muito ligado, pois havia sido diretor de sua Seção de Publicações17. Entre 1949 e 1951, empreendeu um trabalho de alto nível de erudição, no qual estabeleceu questões nebulosas sobre a grafia de algumas palavras, localizou alguns inéditos e discutiu a atribuição de autoria do universo de textos produzidos na América portuguesa. A Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Colonial foi publicada em 195218, quando o historiador já havia embarcado para Itália19. Além da exaustiva pesquisa em arquivos e bibliotecas, a escolha e preparação dos textos foi realizada com ajuda de vários instrumentos 17. As atividades de Sérgio Buarque no Instituto Nacional do Livro, no qual foi diretor da Divisão de Publicações entre 1939 e 1945, são importantes no seu amadurecimento como crítico, estreitando relações com um grupo de intelectuais também funcionários do Instituto como Augusto Meyer, Mário de Andrade, Américo Facó e José Honório Rodrigues. Além disso, Sérgio Buarque também trabalhou como editor de várias obras. É possível que mesmo já desligado da instituição o historiador tenha impulsionado, juntamente com A. Meyer, a publicação do Literatura Européia e Idade Média Latina. Sobre o Instituto Nacional do Livro, ver Ricardo Oiticica, O Instituto Nacional do Livro e as Ditaduras: A Academia Brasílica dos Rejeitados, 1997. Sobre o papel de Sérgio Buarque como editor, ver MarcusVinicius Corrêa Carvalho, Outros Lados: Sérgio Buarque de Holanda, Crítica Literária, História e Política, 2003. 18. Sérgio Buarque de Holanda (org.), Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Colonial, 1952-1953, 2 vols. 19. Segundo suas palavras na apresentação à segunda edição da Antologia. Sérgio Buarque de Holanda, Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Colonial, 2. ed., 1979.

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teóricos que o autor discutia em sua crítica literária. Na Antologia, o historiador mobilizou recursos como análise do ritmo, musicalidade, convenções métricas e lexicais que possibilitaram correções de palavras e o estabelecimento de textos mais fidedignos. Ao compor o livro, o historiador formulou suas respostas para questões como a dos limites da análise formal, articulando algumas de suas ferramentas mais construtivas, mas sem prescindir de suas preocupações históricas. É possível supor que sua interpretação da obra de E. R. Curtius tenha sido importante como uma alternativa analítica, tornando-se mais complexa quando posta em prática na Antologia. De qualquer modo, o que pode ser afirmado é que a sensibilidade de Sérgio Buarque em relação aos aspectos formais da literatura torna-se significativamente mais aguçada na medida em que é mobilizada na confecção dessa obra. A análise panorâmica sobre o conjunto de textos produzidos no Brasil no período colonial permitiu a identificação de inúmeras regularidades discursivas, ou lugares-comuns. Como veremos na análise de trechos da Antologia, alguns lugares-comuns aparecem em mais de um autor, de maneira que podemos supor que a organização da obra tenha sido pautada por um cuidado investigativo em relação a algumas dessas convenções. Assim, o historiador revia a obra de Curtius de modo que a tópica passava a ter um peso mais significativo em relação à primeira vez que apareceu comentada em artigo de jornal. No que segue serão analizados trechos de poemas, levando em consideração particularmente suas semelhanças estruturais e temáticas, que permitam compreender assim as opções de Sérgio Buarque de Holanda. Vejamos alguns trechos de poemas coloniais com o tema reincidente do elogio das frutas da terra. O primeiro texto é do poeta baiano setecentista Manuel Botelho de Oliveira, que, ao elogiar a Ilha da Maré, escreve: [...] O Maracujá também, gostoso e frio, Entre as fruitas merece nome e brio; Tem nas pevides mais gostoso agrado Do que açúcar rosado; É belo, cordial, como é mole, qual suave manjar todo se engole.

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Vereis os Ananases, Que para Reis são fruitas capazes; Vestem-se de escarlata Com majestade grata, Que para ter do Império a gravidade, Logram da croa verde a majestade; Mas quando tem a croa levantada De picantes espinhos adornada, Nos mostram que entre Reis, entre Rainhas Não há croa no mundo sem espinhas. Este pomo celebra toda a gente, é muito mais do que pêssego excelente, Pois lhe leva aventagem gracioso Por maior, por mais doce e mais cheiroso20. [...]

Na segunda estrofe do trecho destacado observa-se o desenvolvimento do tema do “abacaxi rei”, denominação que lhe foi atribuída por sua semelhança a uma coroa. Articulação típica de uma forma de pensar analógica, por meio da qual a narrativa configura-se pela sobreposição de imagens do mundo natural e do mundo dos homens. A associação da forma natural do ananás com uma coroa possibilita que os significados desse objeto – ligados a poder e nobreza – sejam transplantados à fruta. Tal operação pressupõe que a natureza guarda uma série de significados ocultos e transcendentais, uma vez que é criação divina e, por isso, pode revelar mensagens de seu criador. A mesma visão de mundo analógica que permite a transmissão de significados da coroa para a fruta opera também no campo da criação literária. O escritor reproduz formas na medida em que adequa seu discurso à finalidade proposta. A tópica pode constituir-se em um aparato crítico que aproxima o historiador do ritmo mental e criativo da

20. Idem, p. 115. O conteúdo das duas edições de Antologia é praticamente idêntico e, por isso, optamos pela referência às páginas da edição mais recente e acessível. É ainda importante ressaltar que, no caso de citações de obras literárias, em particular poéticas, não fizemos qualquer alteração na grafia ou acentuação das palavras, o que, em geral, ocorreu com outras citações ao longo do texto, visando a uma maior fluidez da leitura.

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sociedade que procura estudar.Vejamos a descrição da ilha de Itaparica feita pelo frei Manuel de Santa Maria Itaparica, publicada em 1768: LIV No ananás se vê como formada Uma coroa de espinhos graciosa, A superfície tendo matizada Da cor, que Citeréia deu a rosa; E sustentando a croa levantada Junto côa vestisdura decorosa, Esta mostrando tanta gravidade, Que as frutas lhe tributam Majestade21. [...] LVII Os araças diversos e silvestres, Uns são pequenos, outros são maiores: Oitis, cajás, pitangas, poragrestes, Estimadas não são dos moradores: Aos maracujás chamar quero celestes∗, Porque contêm no gosto tais primores, Que se os Antigos na Ásia os encontraram, Que era o néctar de jove imaginaram22. [...]

Descrição não muito distinta da feita por Santa Rita Durão em seu Caramuru: XLIII Das frutas do País a mais louvada, É o Régio Ananás, fruta tão boa. Que a mesma Natureza namorada

21. Idem, p. 155. ∗ Na edição original está “maracuiás” (nota de Sérgio Buarque de Holanda). (Nos casos dos trechos destacados da obra de Sérgio Buarque de Holanda em que havia originalmente notas de rodapé, optamos por preservá-las, representando-as com um asterisco e a posterior indicação entre parênteses “nota de Sérgio Buarque de Holanda”. Entendemos que a análise das fontes e referências de Sérgio Buarque de Holanda são parte do substrato dessa investigação, por isso, suas notas de rodapé não podem ser ignoradas). 22. Idem, p. 156.

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Quis como a Rei cingi-la da coroa: Tão grato cheiro dá, que uma talhada Surprende o olfato de qualquer pessoa; Que a não ter do Ananás distinto aviso, Fragrância a cuidará do Paraíso23.

Esses poemas mobilizam fragmentos originados de doutrinas clássicas sobre a elaboração dos discursos segundo suas finalidades, ou seja, da retórica. Nessa perspectiva, o discurso que embasa tais poemas é o epidítico. Segundo a tradição aristotélica com a qual freqüentemente dialogam poemas seiscentistas como esse, o gênero epidítico ou demonstrativo é um dos três gêneros do discurso, sendo os outros dois o judicial, destinado a acusar e defender, e o deliberativo, utilizado para aconselhar ou desaconselhar24. O gênero epidítico é destinado a louvar ou censurar uma pessoa25. Moldado em circunstâncias de festividades, esse gênero aproximou-se da poesia, pois as solenidades repetem-se no tempo, cristalizando lugares-comuns relativos a um discurso elevado que são progressivamente incorporados no manancial de recursos poéticos26. Por isso, o gênero epidítico foi progressivamente se relacionando com a literatura e a poesia, recebendo também influxos do gênero judicial ou forense, na medida em que os seus topoi constituem-se em um conjunto de provas ou evidências destinadas a persuadir o leitor27. O poeta preocupa-se em articular formas do discurso elevado com destreza e autoridade, mobilizando um acervo descritivo de temas tradicionais relacionados ao estilo com o qual quer dialogar. As frutas são parte da descrição das belezas naturais de determinada localidade mobilizadas com a finalidade de seu elogio. Fazem parte de um acervo descritivo que também inclui elogios às árvores, vegetais, minerais, peixes, entre outros. Freqüentemente o elogio do lugar vem associado a

23. 24. 25. 26. 27.

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Idem, p. 183. Ivan Teixeira, Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica, 1999, p. 271. Heinrich Lausberg, Elementos de Retórica Literária, 1993, p. 84. Idem, p. 85. Ernst Robert Curtius, op. cit., p. 252.

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comparações de sua paisagem com cenários ideais no tempo e no espaço, como o Paraíso Terrestre ou o mito da Idade do Ouro28, assimilando fórmulas de origem católica e pagã.Vejamos alguns exemplos da tópica do Paraíso Terrestre, primeiramente em Manuel Botelho de Oliveira: Tenho explicado as fruitas e legumes, Que dão a Portugal muito ciúmes; Tenho recopilado O que o Brasil contém para invejado, E para preferir a toda a terra, Em si perfeito quatro A A encerra. Tem o primeiro A nos arvoredos Sempre verdes aos olhos, sempre ledos; Tem o segundo A nos ares puros∗, Na tempérie agradáveis e seguros; Tem o terceiro A nas águas frias, Que refrescam o peito e são sadias; O quarto A no açúcar deleitoso, Que é do Mundo o regalo mais mimoso29.

Seguindo um princípio analógico, algumas das qualidades do Paraíso contidas nas descrições tradicionais que remontam à Idade Média são transferidas para o local elogiado. Assim, alguns topoi pertencentes a descrições medievais do Paraíso, como por exemplo o locus amoenus e suas variantes, como os “ares saudáveis ou salubres” e o correlato do “clima moderado”, são aplicados nas descrições da terra30. Ao mesmo tempo em que mobiliza convenções medievais, o poeta insere em sua descrição elementos relacionados à sua experiência específica com seu tempo e lugar, como é o caso do “açúcar deleitoso”. Esta é uma possibilidade eminentemente moderna inspirada na dualidade das modalidades de imitação previstas por Platão: a fantástica e a icástica. A imitação fantástica é universalizante, enfatiza a criação, prevendo o 28. Idem, p. 125. ∗ Na ed. da Academia vem repetido, aqui, por descuido de revisão, o sétimo verso desta estrofe, estando, assim, “primeiro” vem lugar de “segundo” e “arvoredos” em lugar de “ares puros” (nota de Sérgio Buarque de Holanda). 29. Sérgio Buarque de Holanda, Antologia..., op. cit., p. 117. 30. Jean Delumeau, O Que Sobrou do Paraíso?, 2003, pp. 76-80 e 135-147.

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verossímil mas não necessariamente o comprovável. A imitação icástica é voltada para a descrição de circunstância particular e certa, aproximando-se da história31. A mistura de elementos icásticos e fantásticos em um poema é sintomática da flexibilização da antiga doutrina da separação dos estilos baseada na existência de um gênero alto, ligado às características da imitação fantástica, e a de um baixo, ligado às características da imitação icástica. A literatura e, mais especificamente, a poesia deveriam seguir as regras do gênero alto, recorrendo aos estilos trágico e épico. A descrição de elementos concretos, como o são aqueles da vida cotidiana, seria matéria exclusiva do gênero baixo, podendo apenas ser representado por estilos como a comédia e a sátira32. A possibilidade da interação de elementos fantásticos e icásticos na poesia permite que o artista, além de mobilizar um conjunto de convenções variantes segundo a finalidade de seu discurso, também figure elementos pertencentes a seu campo de experiências. Alguns desses elementos podem ser, por exemplo, pessoas, paisagens urbanas ou vegetação características de determinado lugar, mesmo em representações de claro tom alto como cenas bíblicas, parábolas, entre outras. Isso indica uma sensibilidade em relação ao tempo bastante diferente da que conhecemos hoje na representação de episódios históricos, uma vez que a narração não depende de uma concepção linear e progressiva do tempo33, muito distanciada da consciência de uma ruptura 31. Ivan Teixeira, op. cit., p. 249. 32. O argumento central de Mimesis de Erich Auerbach diz respeito à história da flexibilização e interação entre gênero alto e baixo da Antigüidade ao modernismo da primeira metade do século XX. Erich Auerbach, Mimesis:A Representação da Realidade na Literatura Ocidental. Para um esclarecimento de seus pressupostos e objetivos ver o “Epílogo”, 4. ed., 2001, pp. 499-502. 33. Reinhart Koselleck, em análise do afresco Alexanderschlacht, que narra a batalha de Isso (333 a.C.), pintado por Albrecht Altdorfer na primeira metade do século XVI, comenta essa questão:“Não se trata de eliminar arbitrariamente a diferença temporal; ela simplesmente não se manifesta como tal. A prova disso pode ser reconhecida no próprio quadro de Alexandre: Altdorfer quis dar consistência e estatística à história [Histoire] representada, apresentando o número de participantes da batalha em dez colunas de algarismos, renunciou a um número determinado: a indicação do ano. Sua batalha não é apenas contemporânea; parece também atemporal”. Reinhart Koselleck, Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos, 2006, p. 4.

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total com o passado que caracteriza a Modernidade34. Convenções iconográficas ou textuais imemoriais misturam-se com elementos presentes na vida do artista ou em sua memória, o que aparenta ser uma espécie de eterno presente, mas na realidade significa o primado da tradição sobre a percepção. Assim, seria um erro dizer que o artista representa mecanicamente elementos de seu cotidiano na elaboração de suas obras. Figuram constantemente indivíduos já mortos ou lugares não mais existentes – a idéia contemporânea de cotidiano não poderia se aplicar neste caso pois ela pressupõe a existência da idéia de um tempo presente tal qual o conhecemos. Cada artista colabora também no processo de cristalização de imagens de lugares, tempos ou pessoas. Manuel Botelho, no trecho do poema mencionado, faz o elogio do açúcar em uma época caracterizada por sua estagnação. Aplicada a finalidade de seu discurso, a reiteração do açúcar como uma virtude da terra modifica sutilmente o princípio do elogio das riquezas naturais da terra na medida em que não se trata apenas de um elemento da vegetação, mas algo submetido a um processo produtivo. Manuel Botelho evoca todo o significado que teve o açúcar desde que passou a ser a principal razão dos lucros da coroa lusitana. Utiliza um argumento sensível à metrópole para dela mesma se distanciar; participa do processo de constituição de uma outra tópica – a do elogio do território da América portuguesa. Essa tópica mobiliza convenções medievais européias pagãs e católicas especialmente relacionadas às descrições do Paraíso, sobrepondo-as à descrições da natureza local, buscando assim um efeito elogioso.Vejamos o mesmo processo na narrativa épica do Caramuru: LXXV A oito graus do Equinócio se dilata Pernambuco, Província deliciosa, A pingue caça, a pesca, a fruta grata, A madeira entre as outras mais preciosa:

34. Jaques Le Goff, “Antigo/Moderno”, 1984, p. 373.

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O prospeto, que os olhos arrebata Na verdura das árvores frondosas, Faz que o erro se escuse a meu aviso, De crer que um dia fora o Paraíso. LXXVI Serzipe então d’El-Rei: logo o terreno De que visite a beleza e perspectiva; Nem cuido que outro visses mais ameno, Nem donde com mais gosto a gente viva: Clima saudável, céu sempre sereno Mitigada na névoa a calma ativa; Palmas, mangues, mil plantas de espessura, Não há depois do Céu mais formosura35.

A descrição de regiões como Pernambuco ou Sergipe não pressupõe, nesse texto, que estas façam parte de uma unidade anterior como a nação ou um território unitário brasileiro – elas são por si pátrias. As belezas naturais dessas regiões aparecem misturadas com topoi descritivos do Paraíso medieval, construindo um novo topos aplicado ao seu elogio e distinção. A analogia com o Paraíso nesse trecho é realizada de um modo bastante diferente em relação aos trechos de Botelho de Oliveira e Itaparica destacados anteriormente. Santa Rita Durão projeta o paraíso em um passado remoto utilizando-se do verbo “ser” conjugado no mais-que-perfeito, “de crer que um dia fora o Paraíso”. Com isso, sua separação pressupõe dois tempos distintos e definidos – um que se esgotou, pois a terra “fora um dia” algo e não é mais, e um hoje, um presente distinto do passado paradisíaco. O poeta mobiliza, assim, uma concepção de tempo eminentemente moderna, pressupondo uma ruptura total com o passado e a construção da idéia de um momento presente. Esse pressuposto temporal implica um tipo de analogia distinta do Paraíso com a terra em relação a Botelho de Oliveira ou Itaparica. Nos dois últimos, a ausência de um passado perfeito, totalmente realizado, faz com que a comparação com o Paraíso o torne uma instância presente e concreta, igualando-o ao local elogiado. A analogia consiste, nesse sentido, em 35. Sérgio Buarque de Holanda, Antologia..., op. cit., p. 176.

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uma espécie de sobreposição de coisas, a princípio distintas, de modo a igualá-las. No caso de Durão, a analogia, em vez de trazer ao presente, cria dois planos distintos preenchidos com uma distância temporal. Sua pátria é tão bela hoje que faz crer que tenha sido o Paraíso. A sedimentação do topos do sentimento da terra caminha até as vésperas da Independência, com frei Francisco de São Carlos: [...] País, quase ao desdém; até que um dia Lhe imprima destra mão nobre energia. Análogo rival, quadro imitante Do cheiroso terreno, do abundante, Que o Indo rega, morador da aurora, E o Ganges, cuja fonte em Éden mora Aqui as plantações tão lindas crescem [...]36

Nesse trecho o poeta compara os rios de sua pátria ao Indo e Ganges, mobilizando mais um topos de origem medieval fundamentado em descrições que localizam o Paraíso terrestre no estuário do Ganges ou de um grande rio como o Indo37. O topos de elogio da pátria vai sendo progressivamente mobilizado na construção da identidade nacional brasileira ao longo do século XIX. Ao organizar a Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Colonial, Sérgio Buarque instrumentalizou uma parte significativa dos temas que discutiu desde o início da década de 1940. Alguns deles mobilizados nos debates sobre o formalismo, estiveram presentes na pesquisa e seleção dos poemas. Mais do que isso, é possível que tal experiência tenha contribuído para a revisão e a complementação de vários desses pontos de vista. Provavelmente, ao selecionar textos a exemplo dos que foram aqui analisados, o historiador estivesse refletindo sobre a dinâmica das convenções literárias e suas relações com a retórica. Nesse sentido, seu ponto de vista sobre a obra de E. R. Curtius ganha dimensão distinta daquela que se observa em seus artigos de

36. Idem, pp. 412-413. 37. Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso, op. cit., pp. 9 e 62-66.

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jornal. Possivelmente Sérgio Buarque passa a dar mais importância à tópica à medida que ela o aproxima das antigas teorias de construção dos discursos. Como sugeriu Antonio Arnoni Prado, nesse período o crítico literário encontra-se com o historiador. A crítica provê ao historiador meios para que ele acesse o processo de criação das obras bem como os limites e possibilidades dos sujeitos históricos e de sua sociedade. A análise de Luiz da Costa Lima sobre Visão do Paraíso, focada na questão do uso pessoal e bastante distanciado que o historiador faz da tópica de Curtius no livro, dirige-se ao cerne da questão – a transformação de uma teoria que anula a história em um instrumento que a protagoniza. O descompasso perceptível em Visão do Paraíso pode ser compreendido melhor atentando-se ao processo de ensaio e experimentação de temas da crítica literária buarqueana de meados do século XX. Nessa perspectiva, a obra Visão do Paraíso é resultado de um processo de maturação de mais ou menos uma década, no qual o crítico encontra o historiador. É possível que o aprofundamento da leitura de Curtius em função das questões suscitadas pela elaboração da Antologia tenha significado uma aproximação de Sérgio Buarque com a retórica como possibilidade de análise formalista e histórica. Cada topos consiste em uma estrutura impregnada de tradições literárias cristalizadas pelo tempo, e que nele viajam até ganharem sentidos antes impensados em mundos distantes. Pode-se, desse modo, fazer a história de uma idéia migratória, desde suas origens européias medievais até seu processo de implantação em um outro lugar. Pode-se dizer, além disso, que o estudo abrangente e sistemático da poesia colonial lhe permitiu identificar regularidades discursivas – topoi – relacionados à descrição do território português na América. Tais descrições freqüentemente tinham finalidade elogiosa e focavam-se nas belezas naturais da terra, como aspectos de sua fauna, flora, qualidades climáticas e outras belezas naturais. A descrição dessas qualidades realizava-se através de um processo analógico, em que o poeta mobilizava convenções longamente estabelecidas na tradição

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literária européia, advindos principalmente da exegese bíblica38, e os aplicava no contexto do elogio de sua terra. Assim, o processo de composição desses poemas pautava-se pelo uso de topoi, em especial aqueles relacionados à descrição das belezas naturais do Paraíso. A reapropriação dos antigos topoi em novos discursos, somados à representação de elementos “ambientais” locais em um contexto distinto de seus locais tradicionais de enunciação, criava um novo topos – que Sérgio Buarque chamaria de “tópica do sentimento nacional nascente”39 ou “mito edênico”. A apropriação da tópica de Curtius é anterior em alguns anos à elaboração de Visão do Paraíso, e é justamente devido a esse longo período de reflexão que ela aparece desenvolvida no livro de um modo tão particular. Ademais, desde cedo ela vem associada à questão da nacionalidade. Sérgio Buarque não estava alheio ao debate sobre a formação da literatura nacional brasileira, pautado pela busca das particularidades culturais brasileiras em relação a seus referenciais, principalmente europeus. Desde seus primeiros artigos essa questão tem lugar central40, e é provável que tenha se fortalecido na elaboração da Antologia, pois ela pressupõe um critério claro sobre o que significa a idéia de “poetas brasileiros”41. Além disso, a escolha dos autores corresponde, na Antologia e, em grande medida, em seus artigos de jornal, ao cânone histórico-literário estabelecido pela tradição historiográfica brasileira do século XIX42. Escolhas semelhantes às de outros críticos dos anos 1940 e 1950, como Afrânio Coutinho e Antonio Candido. No entanto, a crítica dos três autores citados é pautada por um impulso claro de escapar do tradicionalismo das interpretações da história literária nacionalista por meio 38. Cf. Ernst Robert Curtius, op. cit., pp. 241-261 (cap. 10: “A Paisagem Ideal”). 39. Sérgio Buarque de Holanda, Capítulos de Literatura Colonial, 1991, p. 61. 40. Cf. “Originalidade Literária”, Correio Paulistano, 22 abr. 1920. Reproduzido em O Espírito e a Letra, op. cit., vol. 1, pp. 35-41. 41. Ao analisar a Antologia, pode-se perceber que Sérgio Buarque privilegia o critério da localização geográfica da produção, independentemente do lugar de origem do poeta, conforme sua justificativa, por exemplo, da inclusão do português Tomás Antonio Gonzaga. Sérgio Buarque de Holanda, Antologia..., op. cit., p. 299. 42. João Alexandre Barbosa, “A Paixão Crítica: Forma e História na Crítica Brasileira”, 1986, p. XXXV.

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da utilização de um aparato crítico originado dos debates científicos internacionais do período. Assim como ocorre na obra de Antonio Candido, na qual esse impulso aparece fixado na proposição da formação da literatura brasileira como sistema43 dotado de público e meios de difusão44, ou na aproximação de Afrânio Coutinho com o New Criticism, enfatizando a estrutura estética da obra literária e concebendo os estilos literários como estruturas históricas, a exemplo do Barroco45. A tópica consiste em uma ferramenta que se presta à identificação de convenções literárias, geralmente de origem européia. O estudo das permanências formais contrapõe-se à tendência das tradições críticas nacionalistas, pois estas têm como princípio a unicidade da cultura nacional. Segundo a perspectiva nacionalista, a cultura nacional nasce em contraposição à sua matriz européia, ou seja, quando afirma sua originalidade e peculiaridade em relação a outras culturas nacionais. A idéia de originalidade é, aliás, fundamental nessa concepção, uma vez que por meio de sua realização pode-se avaliar o nascimento de uma cultura (ou literatura) nacional. Estudando os topoi é possível perceber que a literatura produzida na América portuguesa não é mais do que o desdobramento e a extensão de sua matriz portuguesa. A idéia de originalidade estabeleceu-se definitivamente apenas no século XIX, momento no qual os padrões de produção e reprodução artística sofreram uma profunda alteração, pois, como já mencionamos, a retórica concebida como conjunto de normas compositivas praticamente sucumbiu.

43. Ver Luiz Costa Lima, “Concepção de História Literária na Formação”, 1991, pp. 149-166. 44. Segundo definição de Antonio Candido publicada pela primeira vez em 1959, a literatura como sistema depende da “existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns aos outros”. Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira, 9. ed., 2000, vol. 1, p. 23. 45. Sobre o papel do Barroco nas discussões literárias dos anos 1940 e 1950, especialmente nos três críticos citados, ver Guilherme Simões Gomes Jr., Capítulo 2: “A Tardia Admissão das Letras”, Palavra Peregrina: O Barroco e o Pensamento sobre Artes e Letras no Brasil, 1998, pp. 89-159.

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A tradição da história da literatura brasileira sofria uma crítica dirigida ao seu fundamento – a Nação46. Na perspectiva desse novo conjunto de trabalhos produzidos em meados do século XX, a história da literatura brasileira colonial não é nada mais do que a história da produção literária no território português na América e, desse modo, submete-se às regras de construção dos discursos da cultura européia. Mesmo a representação de elementos ambientais do território colonial segue um conjunto de preceitos que possibilitam sua figuração. A partir desse pressuposto, pensar a originalidade da literatura nacional é um problema datado, pois a questão da originalidade é uma ilusão da historiografia romântica do século XIX inadequada para pensar a questão da criação em períodos anteriores47. Além da questão da originalidade, a atenção aos aspectos formais da criação artística possibilitou a Sérgio Buarque um rompimento com outros conceitos fundamentais da historiografia literária nacionalista, como por exemplo a idéia de influência. Um dos vícios característicos dessa historiografia é o foco na individualidade e subjetividade do autor, de maneira que as convenções por ele adotadas eram interpretadas como a “determinação dos antepassados espirituais”48 do autor. Assim, criação literária era vista como prática imutável, teleologicamente moldada segundo os padrões contemporâneos da criação. Em suas palavras:

46. “Ora, se nos ativermos a alguns dos principais textos críticos que constituem a nossa tradição entre a segunda metade do século XIX e início do século XX, não será difícil verificar de que modo todos eles estão configurados sob uma perspectiva que eu chamaria de paixão interpretativa. Era natural: desde o começo das reflexões críticas no Brasil, mesmo as menos sistemáticas, empreendidas pelos próprios criadores entre os séculos XVII e XIX, o debate centra-se na busca de uma diferença em relação à Europa e, portanto, pela identidade nacional. Nesse sentido, a interpretação da literatura era subsidiária da preocupação maior em identificar os traços culturais que serviam de base para um definição abrangente do país.” João Alexandre Barbosa, op. cit., p. XV. 47. É interessante observar que Sérgio Buarque revia de forma vigorosa algumas de suas posições marcadas em seus primeiros escritos, como por exemplo no artigo já citado “Originalidade Literária”, no qual concebe a originalidade romântica como imperativo para a construção da identidade nacional. 48. Sérgio Buarque de Holanda, Capítulos de Literatura Colonial, 1991, p. 268.

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Não são as “influências” recebidas, através de sua evolução, por um determinado escritor, o que importa verificar num esforço dessa natureza, sem saber as razões particulares que o teriam levado a escolher este ou aquele “antecedente literário” – pois a verdade é que tais escolhas se prendiam tanto quanto possível, naqueles tempos, a convenções e padrões comumente aceitos e dependiam, em muito menor grau do que hoje, de um critério pessoal –, nem ainda chegar a um julgamento de valor49.

O dilema de Sérgio Buarque não era tão distante do dilema do próprio Curtius – em ambos a questão por trás do uso da tópica é a adoção de uma postura crítica em relação a certas formas de nacionalismo. Esse debate leva à discussão da pertinência das histórias da literatura como estruturas da compreensão e ensino de textos, discutidas pelo historiador brasileiro em alguns de seus artigos de crítica literária do período. Ainda neste capítulo retomaremos tal questão, analisando alguns desses textos. A diferença fundamental entre os dois autores reside na particularidade histórica do tipo de nacionalismo que cada qual pretende criticar. Curtius volta-se contra a ideologia nacional que construiu a identidade de cada país europeu pela negação de seu vizinho e pela afirmação das especificidades das culturas e dos povos. Através do estudo da base comum das literaturas nacionais européias – a cultura latina –, o filólogo alemão contrapõe-se ao nacionalismo reforçando uma idéia homogênea de Europa. Ao fazê-lo, Curtius anulava a pretensão social de toda modalidade de história, esquivando-se da reflexão sobre as relações sociais, conflitos e poder; por isso sua obra “neutraliza a práxis da vida histórica”, nas palavras de H. R. Jauss, sublinhadas por Costa Lima e citadas anteriormente. Por sua vez, Sérgio Buarque de Holanda utilizou a tópica como um dos possíveis instrumentos capazes de revisar aspectos da historiografia brasileira construídos sobre o paradigma da nacionalista. No campo de debates epistemológicos da história da literatura é possível afirmar que a tópica, bem como outros instrumentos de análise formal dos

49. Idem, p. 269.

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discursos, foram empregados como alternativas a estratégias interpretativas relativas à concepção de história da literatura brasileira do século XIX e início do XX, de forte viés nacionalista. Dentre esses elementos estão, por exemplo, a questão da originalidade, a idéia de influência, as explicações textuais por meio de uma relação de casualidade direta com a biografia de seu autor50, a idéia do autor como gênio “adiante de seu tempo”, o determinismo geográfico; substituídos por um trato mais cauteloso e analítico com os textos e com sua historicidade. E não será deformar o passado chamar de impulso autonômico a certas manifestações de incipiente nativismo que encontramos através de toda nossa literatura colonial? Manifestações que não exprimem, em geral, mais do que uma fidelidade instintiva ao próprio lar, à parentela, à vizinhança, à paisagem natal, e que tem seu correlativo necessário na aversão do adventício, ao que fala língua diferente ou pronuncia diversamente a mesma língua, ao que tem costumes, preconceitos e – quem sabe? – credos exóticos51.

A revisão de alguns fundamentos da história da literatura não significou, em momento algum, a negação de sua pertinência como ramificação da ciência da literatura. Em artigos publicados em jornais, concentrados entre a segunda metade dos anos 1940 e o início da década seguinte, Sérgio Buarque ocupou-se freqüentemente dessa questão. Apesar de demonstrar-se otimista em relação a inovações técnicas proporcionadas por teorias que reputava como “formalistas”, suas análises demonstram uma grande preocupação com o uso desmesurado de recentes teorias que se esquivavam da análise histórica da obra literária52. 50. Thiago Lima Nicodemo, “Gosto de Sedição: Sérgio Buarque de Holanda, Manuel Bandeira e a Autoria das Cartas Chilenas”, 2004, pp. 41-45. 51. Sérgio Buarque de Holanda, “Literatura Colonial”, Diário de Notícias, 14 dez. 1947. Reproduzido em O Espírito e a Letra, vol. 2, p. 386. 52. “Mas por outro lado, a exclusão deliberada de todo elemento histórico, ‘ambiental’, biográfico, além de limitar, com conseqüências deploráveis, o campo de observação, parte de um pressuposto redondamente falso, o pressuposto de que a obra de arte é uma espécie de aerólito, independente do mundo circundante e, de certo modo, incompatível com ele.” “Universalismo e Provincianismo na Crítica”, op. cit. Reproduzido em O Espírito e a Letra, op. cit., vol. 2, p. 59. Sobre o mesmo tema ver “Hermetismo e Crítica I”, Diário Carioca, 6 maio 1951, p. 3. Reproduzido em O Espírito e a Letra, op. cit., vol. 2, p. 377.

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Vimos anteriormente que suas primeiras impressões sobre a obra de E. R. Curtius tendiam a considerá-la uma proposta de análise literária capaz de combinar preocupações com a forma e, ao mesmo tempo, com a historicidade dos textos. O trabalho do filólogo alemão aparecia como alternativa intermediária de análise literária no quadro de uma reflexão mais ampla sobre o estatuto epistemológico da história da literatura. Mesmo se utilizando de novas formas de análise, a compreensão da obra literária depende de uma iniciativa de reflexão histórica que busque a compreensão da sociedade na qual a obra foi produzida. Não era apenas do ponto de vista teórico que o historiador pensava na viabilidade de uma história da literatura. É muito provável que suas reflexões teóricas fossem, na realidade, tentativas de resolver problemas que se apresentavam na prática da pesquisa. No início da década de 1940, o historiador foi convidado a escrever o volume sobre história da literatura colonial que seria parte da coleção História da Literatura Brasileira, sob organização de Álvaro Lins. Apesar de não haver indícios de que Sérgio Buarque o tenha efetivamente escrito nesse período, a existência de algumas reflexões sobre a literatura colonial brasileira em sua crítica sugere que o livro encomendado já estivesse em uma fase inicial de levantamento ou pesquisa53. É provável que a pesquisa que culminou com a elaboração do livro Monções, ocorrida na primeira metade dos anos 1940, tenha postergado a elaboração do livro encomendado. Apesar de adiada, a elaboração de uma história literária foi incorporada no seu horizonte de discussões teóricas. No início da década de 1950, a pesquisa para a elaboração da Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Colonial lhe fornecia material suficiente para retomar o projeto de escrever a história da literatura brasileira.Talvez por isso Sérgio Buarque tenha retomado discussões sobre a epistemologia da história da literatura. Em artigo sobre o livro então publicado, Prosa 53. Como sugere a análise em conjunto de artigos como “Literatura Colonial”, O Estado de S.Paulo,10 out. 1947, p. 6; “Sobre História da Literatura”, Diário de Notícias, 26 dez. 1948, p. 1; e a série “Literatura Jesuítica”, I, II e conclusão, Diário de Notícias, 2, 9 e 16 jan. 1949.

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de Ficção, volume XII da História da Literatura Brasileira, de Álvaro Lins, mesma coleção para qual fora convidado a contribuir, ele comenta: A quem encare a história da literatura como simples província das disciplinas históricas tomadas em seu conjunto e pretenda aplicar-lhes rigorosamente os padrões impostos para essas disciplinas, poderá parecer insuficiente a atenção dedicada pela autora [Lucia Miguel-Pereira] a romancistas e contistas menores (no sentido mais literal, não o consagrado pela expressão “poetas menores”) em confronto com o interesse minucioso e prolongado que lhe merecem nomes conspícuos. O método há de parecer plausível e, no caso, o único verdadeiramente plausível, enquanto não se recorra ao símile daqueles historiadores, que só tinham olhos para os grandes feitos políticos e guerreiros, ou para heróis que os encarnam. Pois não parece certo que desdenhando a germinação, o movimento, o crescimento, a continuidade das formas, em favor do fruto maduro, se arriscavam aqueles historiadores a abranger um aspecto muito parcial dos fatos que pretendiam estudar?54

Assim, o material reunido na elaboração da Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Colonial impulsionou a retomada do projeto de uma história da literatura brasileira colonial. Como sugere Antonio Candido, este projeto havia sido encomendado no início da década de 194055. Reflexões feitas sobre alguns autores em nota final da Antologia lhe serviram de base para o novo texto56, o que permite supor que um texto tenha sido retomado após o término do outro, provavelmente no ano de 1952.

54. Sérgio Buarque de Holanda, “História da Literatura Brasileira, 1870 a 1920”, Folha da Manhã, 7 jun. 1950, p. 4. 55. Este volume seria parte da coleção História da Literatura Brasileira, organizada por Álvaro Lins, da qual foram publicados apenas os volumes Prosa de Ficção, de Lúcia MiguelPereira, e Literatura Oral, de Luís da Câmara Cascudo, respectivamente em 1950 e 1952 pela José Olympio. Antonio Candido localizou um memorando da José Olympio que registrava adiantamentos pagos a Sérgio Buarque entre 1943 e 1945 para a realização desse livro. Cf. Antonio Candido, “Introdução”, Capítulos de Literatura Colonial, p. 9. No entanto, este é o único indício de que Sérgio Buarque tenha realmente iniciado a redação desse livro no primeiro período em que recebeu adiantamentos. 56. Como por exemplo o trecho sobre Bento Teixeira, praticamente idêntico nas pp. 492 e 493 da Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Colonial e nas pp. 40 e 41 de Capítulos de Literatura Colonial. E também, ao falar de Manuel de Santa Maria Itaparica nas pp. 60 e 61 de Capítulos, o historiador reproduz os comentários feitos no anexo à Antologia nas pp. 498 e 499.

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Simultaneamente à publicação da Antologia, no final do ano de 195257, Sérgio Buarque embarcou com sua família à Itália, onde permaneceu durante praticamente dois anos como professor da recém-fundada cátedra de Estudos Brasileiros da Universidade de Roma, por indicação da Embaixada brasileira58. Além disso, chegou a representar a Embaixada como responsável em algumas atividades culturais59. Aproveitou sua permanência no exterior para freqüentar arquivos e bibliotecas italianas, o que permitiu intensificar a elaboração de seu livro60. É provável que durante esse período o historiador tenha realizado grande parte do projeto da história da literatura brasileira. Alguns meses após seu estabelecimento no estrangeiro, Sérgio Buarque retomou a atividade de crítico titular do suplemento literário do jornal O Diário de Notícias do Rio de Janeiro61. A partir de meados de 1953, seus artigos publicados passam a ser remetidos da 57. Segundo suas próprias palavras na apresentação à segunda edição da Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Colonial. No que diz respeito à publicação da primeira edição da Antologia, vale ressaltar que, dos dois volumes em que consiste a obra, um deles foi publicado no ano de 1952 e o outro em 1953. Curiosamente, na edição consultada consta que o segundo volume precedeu o primeiro, tendo sido publicado em 1952. Cf. Sérgio Buarque de Holanda (org.), Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Colonial, op. cit. 58. Oficio de Carlos Alves de Souza, Embaixador do Brasil junto ao Governo Italiano a Raul Fernandes, Ministro das Relações Exteriores, Informando a Nomeação de Sérgio Buarque para a Cadeira Recém Criada de História da Literatura Brasileira na Universidade de Roma; Elogiando sua Atuação como Docente e Manifestando Pesar por seu Retorno ao Brasil. Roma, 22 dez. 1954. 59. O período em que o historiador esteve na Itália ainda precisa ser mais estudado e detalhado. De um modo geral, seus comentários biográficos ou autobiográficos mais conhecidos dão pouca ênfase ao período. Os Apontamentos para a Cronologia de Sérgio Buarque de Holanda, texto inédito organizado por sua mulher, Maria Amélia Buarque de Holanda, a partir de seus próprios apontamentos, por exemplo, se limitam a algumas linhas que comentam sua atividade na Universidade de Roma e listam algumas conferências que proferiu e artigos que escreveu, não comentando temas importantes que precisam ser esclarecidos, como sua estreita relação com a Embaixada brasileira em Roma. Maria Amélia Alvim Buarque de Holanda, “Apontamentos para a Cronologia de Sérgio Buarque de Holanda”, p. 440. 60. “Supondo que trabalhou menos no projeto a partir da mudança para São Paulo em 1946, acelerando de novo o ritmo na Itália, onde esteve do fim de 1952 ao fim de 1954 como professor da Universidade de Roma, e prosseguindo depois que voltou.” Antonio Candido, “Introdução”, Capítulos de Literatura Colonial, op. cit., p. 9. 61. Seus artigos eram republicados geralmente na semana seguinte no jornal paulista Folha da Manhã.

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Itália com relativa periodicidade mensal. Por algum motivo, o autor passou a enviar partes do texto de sua história da literatura brasileira para serem publicados como artigos de jornal62. Sérgio Buarque nunca concluiria a sua história da literatura brasileira. É provável que, ao voltar ao Brasil, o historiador tenha interrompido mais uma vez o projeto. Poucas vezes ainda, na década de 1950, chegaria a publicar trechos de sua história da literatura em alguns artigos de jornal63. Esse texto permaneceu “engavetado” até finais da década de 1980, quando sua mulher, Maria Amélia Buarque de Holanda, os identificou e os encaminhou a Antonio Candido. O conjunto de textos foi publicado em 1991 sob o título de Capítulos de Literatura Colonial64.

A história e as histórias da literatura colonial brasileira Antonio Candido, ao preparar a publicação de Capítulos de Literatura Colonial, organizou em três partes o conjunto de capítulos e textos esparsos originais que já possuíam títulos definidos por Sérgio Buarque 62. Segundo nossa pesquisa, são eles: “Poesia e Convenção”, Diário Carioca, 7 dez. 1952, p. 5; “Domínio Rococó”, Diário Carioca, 6 set. 1953, p. 3 (corresponde às pp. 177-181 de Capítulos de Literatura Colonial); “Metastásio e o Brasil”, Diário Carioca, 15 set. 1953, p. 3 (corresponde às pp. 120-123 de Capítulos de Literatura Colonial); “Imagens do Setecentos”, Diário Carioca, 11 out. 1953, p. 2; “Uma Epopéia Americana I”, Diário Carioca, 20 dez. 1953, p. 2 (corresponde às pp. 264-266 de Capítulos de Literatura Colonial); “Uma Epopéia Americana II”, Diário Carioca, 27 dez. 1953, p. 2 (corresponde às pp. 141-149 de Capítulos de Literatura Colonial); “Uma Epopéia Americana III”, Diário Carioca, 3 jan. 1954, p. 2 (corresponde às pp. 135-141 de Capítulos de Literatura Colonial). Também publicado como a segunda parte de “Árcades e Românticos” no livro Tentativas de Mitologia.. 63. “Sobre um Auto de Fé”. O Estado de S.Paulo, 21 dez. 1957, p. 3 (corresponde às pp. 39-40 de Capítulos de Literatura Colonial); “Glauceste Acadêmico”, O Estado de S.Paulo, 12 out. 1957, p. 4 (corresponde às pp. 238-242 e 340, 341 de Capítulos de Literatura Colonial); “Gosto Arcádico”, Revista Brasiliense, pp. 97-114, jan.-fev. 1956. Republicado em Tentativas de Mitologia, pp. 241-271. Extraído da pp. 179-199 de Capítulos de Literatura Colonial. Provavelmente os artigos “Epopéia Rococó”, O Estado de S.Paulo, 26 out. 1957, p. 1, e “Basílio da Gama e o Indianismo”, O Estado de S.Paulo, 28 dez. 1957, também são trechos extraídos de seu texto sobre história da literatura colonial, embora não tenha sido possível localizar as páginas em que eles se encontram no livro. 64. Sérgio Buarque de Holanda, Capítulos de Literatura Colonial, op. cit., p. 8.

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de Holanda. Essas partes receberam os seguintes títulos: “Poesia Épica”, “Arcadismo” e um “Apêndice”. A primeira parte contém os capítulos:“O Ideal Heróico”, “As Epopéias Sacras”,“O Mito Americano”,“A Arcádia Heróica”. A segunda parte conta com: “O Ideal Arcádico” e “Cláudio Manuel da Costa”, e o “Apêndice” é composto com um “Panorama da Literatura Colonial”65 e um texto intitulado “Antonio Vieira”. Com a exceção do “Apêndice”, toda a seqüência de capítulos que vai desde “O Ideal Heróico” até “Cláudio Manuel da Costa” tem coerência cronológica e temática, o que permite supor, segundo sugestão do próprio Antonio Candido, que se trate do esboço inacabado de sua história da literatura colonial, encomendada nos anos 1940 e realizada efetivamente no início da década seguinte66. É possível também que o texto sobre Antonio Vieira tenha sido escrito para compor a história da literatura. Entretanto, ele ainda se encontrava em fase inicial de redação, sendo apenas um fragmento de um texto concebido para ser mais longo; por isso, Antonio Candido optou por agrupá-lo no “Apêndice”. Nos textos de Capítulos de Literatura Colonial, Sérgio Buarque aprofunda reflexões sobre vários autores trabalhados na Antologia. No capítulo “Epopéias Sacras”, tenta estabelecer uma interpretação sobre o conjunto de autores proposto na Antologia que trabalham com a tópica do elogio à terra.Vejamos sua análise comparativa da poesia de frei Manuel Itaparica e Manuel Botelho de Oliveira: É verdade que, no itaparicano, toda a magia poética parece dissipar-se e, em seu lugar, vamos encontrar apenas um empenho estudioso de cronista à caça de imagens raras e adjetivos encomiásticos que lhe serviam para engrandecer as coisas de sua terra. O próprio convencionalismo de tais louvores sugere menos, aliás, um vivo sentimento da natureza do que certa complacência didática e puramente formal ante aquele pequeno mundo familiar do autor. [...] A monotonia do relato não se ameniza sequer quando a ornamentam certas imagens chavões, pois em tudo, o que se sente, opressivo, é o peso da literatura,

65. Dos capítulos, este é o único cujo título foi proposto por Antonio Candido. Cf. “Introdução”, op. cit., pp. 8-9. 66. Idem, pp. 7-8.

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da escola: os maracujás comparando-se ao “néctar de Jove”, as laranjas copiando o pomo de Atlanta, os limões como na Ilha dos Amores imitando “vírgíneas tetas”, a ponto de exaltarem a imaginação do frade poeta, que os vê depois de crespos e crescidos, “as mãos curiosas incitando”67.

É interessante observar que a esta altura o historiador procura compreender a historicidade do texto de frei Itaparica, atentando aos preceitos retóricos que envolveram sua elaboração. O texto submete-se ao gênero encomiástico, pois sua finalidade é o elogio das belezas de sua terra. A partir desse direcionamento, o autor mobiliza o acervo de convenções literárias de acordo com sua agudez e destreza. Outra observação relevante suscitada pelo trecho anterior refere-se ao interesse particular em desvendar o significado das frutas, o maracujá, o abacaxi fruto-rei, entre outras. Estas são partes de um acervo de convenções literárias empregadas no elogio das coisas da terra através de uma associação com as descrições tradicionais do Paraíso bíblico68. É compreensível que o estudo das convenções literárias leve o historiador a um questionamento sobre os limites do conhecimento histórico. Afinal de contas, as convenções são apenas formas atemporais ou sua utilização relaciona-se com a sociedade e o momento histórico de sua produção? Por vezes, no entanto, o zelo do narrador honesto consegue emancipar-se dos contorcimentos do imaginoso artífice. De modo que certas passagens do poema, onde se descreve, por exemplo, a pesca da baleia e também a fabricação do azeite de peixe, chegam a ganhar verdadeiro valor documental. Mas até mesmo onde tendem a prevalecer as cataratas de imagens ou confrontos eruditos, o esforço e a habilidade que requer semelhante ilusionismo não conseguem perdurar indefinidamente69. 67. Sérgio Buarque de Holanda, Capítulos de Literatura Colonial, op. cit., p. 57. 68. Como, por exemplo, ao comentar a obra Assunção, de frei Francisco São Carlos:“Dos cantos III ao VI, vemos transportados ao Paraíso, lugar santo, espelho dos céus, onde, como a hera, se enlaçam o rico outono e a primavera olente.Também em sua natural simplicidade, ‘que excede a arte em majestade’, à doce manga, ao caju saudável, aos jambos odoríferos, às bananas, aos maracujás, às laranjas podem associar-se, nesse mesmo deleitoso pomar e jardim, o liso abrunho, as cerejas os olmeiros e as roseiras”. Capítulos de Literatura Colonial, op. cit., p. 70. 69. Idem, pp. 57-58.

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De alguma maneira, o artista imprime em sua obra características históricas de seu lugar e de sua época e, na análise de seu discurso, o historiador pode compreendê-las. Mas não é apenas isto que garante a pertinência da história da literatura como ramo historiográfico, no sentido de que objetiva o conhecimento da produção cultural do homem em suas condicionantes sociais e temporais. A estética também é uma estrutura histórica e as opções por determinados conjuntos de convenções têm significados históricos. A montagem e escolha das convenções permitem, às vezes, a construção de um mosaico que é em si algo novo – uma nova convenção. Com a “silva” onde são relacionadas as maravilhas agrestes de sua decantada ilha da Maré, Botelho de Oliveira tinha inaugurado no Brasil a fórmula topográfica descritiva, tão explorada mais tarde pelos nossos poetas épicos, muito embora seus antecedentes possam encontrar-se em Ariosto, em Camões – na ilha de Vênus, dos Lusíadas –, no Tasso e principalmente no Cavaleiro Marino70, para não lembrar os antigos. E inaugurara na poesia, além disso, a obsessão dos grandíloquos confrontos, de onde a terra natal resulta invariavelmente favorecida71.

Assim, o recurso a temas referentes ao Paraíso, com o objetivo do elogio à terra, cria um novo topos, uma nova tradição. Estabelecida por alguns autores, esse topos constitui-se totalmente quando se distancia das circunstâncias sociais em que foi produzido, sendo dotado de outros significados, na medida em que viaja no espaço e no tempo. O historiador da literatura passa sutilmente a historiar um topos – as formas literárias possuem sua própria história, sem deixar de pertencer à sociedade e ao tempo na qual são utilizadas e reutilizadas.

70. É justamente nessa altura de Capítulos que Sérgio Buarque mobiliza referências a textos italianos do século XVII e XVIII, aos quais dificilmente teria acesso no Brasil, e que, ao tratar dos mesmos assuntos na Antologia, não mencionou, como por exemplo La Strage del’ Innocenti de Cavalier Marino, publicado em 1632 e citado precisamente da mesma p. 60 em que fala de Itaparica e Il Cannochiale Aristotelico de Emanuele Tesauro, publicado em 1675 (primeira edição de 1654), entre outros. O aparecimento repentino dessas referências em suas análises faz crer que o crítico estava ou já havia estado na Itália ao escrever a parte final do capítulo. 71. Capítulos de Literatura Colonial, op. cit., p. 54.

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Encontrada por vezes em Ariosto,Tasso, ou mesmo Camões, isto “para não lembrar os antigos”, essas fórmulas poéticas compõem um quadro cultural de referências literárias européias das quais o poeta, mesmo produzindo no território português na América, igualmente compartilha. Entretanto, o modo particular em que compõe tais convenções pode produzir algo novo. Na mobilização e reiteração do discurso do elogio das belezas da terra nasce uma nova fórmula que Sérgio Buarque chama no trecho de “silva”. O historiador conclui: No ativo de frei Manuel de Santa Maria deve, porém, inscrever-se especialmente o fato de ter ele sabido escolher e fixar em grande parte a tópica do sentimento nacional nascente, que a partir de seu livro, se incorpora a nossa tradição épica. Nesse ponto, é lícito dizer-se dos Eustáquidos que tiveram um papel histórico mais decisivo, por vários aspectos, do que o próprio Uraguai de José Basílio da Gama, impresso também em 1769. Um dos elementos dessa tópica é o já lembrado elenco das belezas e das riquezas do rincão familiar, herança de Botelho de Oliveira (e do Marino), que incluído agora num quadro épico, será retomado pelos seus sucessores, a começar por Santa Rita Durão72.

Nasce assim a tópica do sentimento nacional. Mesmo se tratando de uma forma literária, essa tópica segue seu próprio caminho de referências e apropriações, de maneira que é dotada de sua própria historicidade. Mas é importante esclarecer o significado do termo “sentimento”, e talvez mais ainda do termo “nacional”. O uso da palavra “sentimento” justifica-se, pois o autor mobiliza uma fórmula literária cristalizada – e portanto vazia – em um contexto de utilização muito claro, que é o elogio das coisas de sua terra. Apesar de afastar-se de qualquer tipo de idéia de originalidade, inspiração ou congêneres, Sérgio Buarque não perde de vista que todo o discurso teve uma finalidade ao ser elaborado e dialoga com algum contexto de difusão. Vejamos como ele próprio reflete sobre a idéia de nação nos textos seicentistas e setecentistas, em especial em frei Itaparica: São inegáveis aqui, certamente, as interferências entre a literatura e o interesse sentimental de quem quer valorizar, idealizando-o, o panorama insular com que 72. Idem, pp. 61-62.

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se familiarizara. Mas, não obstante a ilha da Maré se apresente como um resumo e “breve apodo” do Brasil inteiro, o sentimento que inspira o seu cantor é, no fundo, particularista e de uma espécie antes paroquial do que nacional. Como Santa Rita Durão, muito mais tarde, ele poderia dizer que o animara a compor seu poema o amor da pátria, mas dando à palavra “pátria”, neste caso, o significado restritivo, de simples lugar de nascimento ou residência, que ela inda guardava para seus contemporâneos73.

O significado da palavra nacional no escrito de Sérgio Buarque parece mais próximo da concepção de nação nos próprios textos dos séculos XVII e XVIII. Tanto que, ao explicar um dos elementos dessa tópica, o historiador enfatiza o “elenco das belezas e riquezas do rincão familiar”. Assim o intelectual formula sua resposta à história da literatura brasileira de orientação nacionalista. Por outro lado, a análise do trecho nos mostra algo aparentemente contraditório. Ao mesmo tempo em que se distancia do caráter teleológico da nação projetada no período colonial, o topos do sentimento nacional, da maneira em que foi elaborado, a partir de diferentes matrizes européias, surge no próprio território português na América: As reservas que se possam opor à formula descritiva inaugurada entre nós como a “silva” da ilha da Maré não devem dissimular este fato de notável significação: é através dela que a natureza brasileira, pela primeira vez, ganha de certo modo cidadania poética. Todavia, parecerá excessivo falar-se neste caso em originalidade74.

Cidadania poética significa, de um lado, que a natureza brasileira pode ser descrita segundo um acervo de convenções literárias próprias, diferentes de suas matrizes européias relacionadas especialmente com as descrições paradisíacas. De outro, significa que como topos, as descrições da natureza brasileira cristalizam-se, ganhando autonomia e sendo dotadas de sentidos diferentes ao longo de seu processo de difusão. De qualquer modo, é excessivo falar em originalidade – os topoi são formas reincidentes pertencentes a tradições literárias. Sua análise permite a historicização da idéia de originalidade como um pressuposto da 73. Idem, p. 54. 74. Idem, p. 79.

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historiografia literária do século XIX, inadequado para a produção de obras em épocas como os séculos XVI ou XVII. O topos do sentimento nacional nasceu no território brasileiro, mas isto não o torna distinto de outros topoi originários de outros lugares; de certo modo, a América portuguesa é apenas sua pátria – seu rincão de origem. Os topoi descolam-se de seu contexto original de utilização – o elogio das belezas do rincão de origem, da cidade, da ilha, da pátria. Essas belezas lentamente minguam e as convenções descritivas perdem qualquer possível correspondência com o lugar elogiado. Assim, o topos do sentimento nacional se desloca no tempo e no espaço, sendo imbuído de outros significados – ele passará progressivamente a descrever um lugar inexistente no mundo concreto, uma unidade imaginária que reconfigura anacronicamente o território português na América, dotando-lhe de uma identidade única, homogênea e a-histórica. Se é exato que, nesse e em outros passos da obra, São Carlos se revele como um namorado constante de sua terra, em particular de sua cidade, não se poderá afirmar que acrescente grande coisa às que, antecedendo-a em meio século e mais, exprimiram o mesmo sentimento. Ele as segue em tudo e principalmente onde se traduz seu encantamento diante da paisagem natural brasileira, adotando a fórmula fixada entre nós a partir de Botelho de Oliveira75.

Na aurora do século da Independência76, a tópica do sentimento nacional cristaliza-se na narrativa de poetas como Francisco de São Carlos ou Rocha Pita 77. Presenciamos a formação de uma nova tradição literária que se projetará no tempo e no espaço e receberá diversos significados, dentre os quais a própria idéia de nação brasileira, característica do século XIX. Forma-se assim o que o autor, pouco tempo depois, batizaria como “mito edênico”.

75. Idem, p. 76. 76. Segundo Sérgio Buarque, a composição do poema Assunção, ao qual se refere nos comentários ao seu autor, frei Francisco de São Carlos, deve ser pouco posterior a 1801. Idem, p. 67. 77. Ainda ao referir-se a São Carlos e o sentimento da terra: “o mesmo orgulho que, um século antes, animara os arroubos retóricos de Sebastião da Rocha Pita quando se refere à sua América Portuguesa”. Idem, p. 76.

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Do ponto de vista técnico, a tópica como método de análise permitia que a história da literatura brasileira fosse despida de uma série de preconceitos e anacronismos cunhados pela historiografia que, desde o século XIX, buscava em obras como a de Itaparica ou Botelho provas da consciência e do orgulho nacional. Sérgio Buarque dava sua contribuição ao debate sobre o nacionalismo no contexto pós-Segunda Guerra Mundial, do qual também participou uma de suas principais referências, E. R. Curtius. Nesse período, a questão da literatura e da nacionalidade, significativa desde os primeiros escritos do historiador brasileiro, ganha contornos muito específicos, respondendo a questionamentos que vinham sendo feitos desde a segunda metade dos anos 1940, quando preparava a Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Colonial: A história da literatura brasileira da fase colonial tem sido freqüentemente abordada como simples província de nossa história política. Parece natural e é até certo ponto plausível quando a estudamos, tentar elucidar a maneira pela qual os nossos escritores se teriam libertado, aos poucos, das influências coloniais ou portuguesas, e procurar um sincronismo entre esse processo e outros aspectos de nossa evolução nacional78.

A associação entre história política e história literária pode ocorrer desde que não seja de modo mecânico, impondo um sincronismo entre o processo de emancipação política em relação a Portugal e o desenvolvimento original de uma cultura e literatura nacionais. A literatura deve ser analisada como uma manifestação cultural dotada de historicidade própria, em seus procedimentos, estilos e normas. Nesse sentido, a história da literatura como ramo autônomo do conhecimento oferece as ferramentas adequadas para a análise. Parte da discussão desenvolve-se assim no plano da epistemologia da história da literatura: O método há de parecer plausível e, no caso, o único verdadeiramente plausível, enquanto não se recorra ao símile daqueles historiadores, que só tinham olhos para os grandes feitos políticos e guerreiros, ou para heróis que 78. Sérgio Buarque de Holanda, “História da Literatura Brasileira, 1870 a 1920”, Folha da Manhã, 7 jun. 1950, p. 4.

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os encarnam. Pois não parece certo que desdenhando a germinação, o movimento, o crescimento, a continuidade das formas, em favor do fruto maduro, se arriscavam aqueles historiadores a abranger um aspecto muito parcial dos fatos que pretendiam estudar?79

A história da literatura deve voltar-se para o movimento, o crescimento e a continuidade das formas, sendo com isso uma disciplina autônoma desenvolvida através de um acervo de outros conhecimentos e disciplinas, dentre os quais a história. Discutindo o método que Lúcia Miguel-Pereira empregou no volume Prosa de Ficção, o historiador reflete sobre suas próprias posturas metodológicas na articulação de sua história da literatura colonial. Não é casual que o volume citado fosse parte da mesma coleção, a História da Literatura Brasileira de Álvaro Lins, da qual a contribuição de Sérgio Buarque também faria parte. O condicionamento da história literária pela história política impõe um critério único, exclusivo e homogêneo na análise literária: Esse critério, quando exclusivo de qualquer outro, funda-se no ponto de vista de que o processo da evolução espiritual não tem unidade objetiva e, por conseguinte, é dócil a qualquer sistematização imposta de fora. Carecendo de vida própria, aceita sem relutância formas e fôrmas alheias. Ou submete-se a regras absolutas, caprichosamente forjadas, e que favorecem uma espécie de simplificação didática. Não parece difícil vislumbrar aqui o seio do pensamento empirista e positivista do século XIX, suscitado pelo excepcional prestígio que tinham adquirido as ciências da natureza80.

Como mencionamos, o desenvolvimento da tópica como ferramenta de análise literária permitiu que Sérgio Buarque contornasse várias interpretações moldadas pelo pensamento científico do século XIX. A atenção aos aspectos formais na história literária revoluciona um dos seus aspectos mais conservadores forjados pela crítica do século XIX. Com a tópica, a história da literatura não poderia ser encarada como a sucessão cronológica e evolutiva de estilos positivos – Clássico, Medieval, Renascentista, Maneirista, Barroco etc. Ao projetar o foco da análise 79. Idem, ibidem. 80. Sérgio Buarque de Holanda, “Literatura Colonial”, Diário de Notícias, 14 dez. 1947. Reproduzido em O Espírito e a Letra, op. cit., p. 384.

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à continuidade e ao vir-a-ser das formas literárias, o historiador passa a compreender a história literária como um complexo de referências fluido, pautado muito mais pelas mudanças do que pelas formas fixas e dogmáticas que a caracterizam ao longo do século XIX. Os estilos dissolvem-se no tempo, tornando-se menos dogmáticos e mais maleáveis. Passam a ser concebidos como um conjunto de referências – acervo de temas e formas – que constituem a norma de construção de discursos de um determinado lugar em certo tempo81. Esse mecanismo permitiu que Sérgio Buarque propusesse a existência de um longo período Barroco na história literária brasileira. A estética barroca permaneceria importante na maior parte da América portuguesa desde finais do XVI até, quem sabe, os últimos anos de século XVIII e o início do século seguinte. O historiador não concebia os estilos seguindo inspiração idealista, como o espírito ou a alma de uma época; para ele, os estilos são o gosto predominante em um lugar, em determinado período82.

A tópica e a elaboração de Visão do Paraíso Não é possível precisar se durante o ano de 1955, já de volta ao Brasil, Sérgio Buarque trabalhou em seu projeto da história da literatura brasileira. A publicação sistemática de trechos de seu livro em artigos de jornal, durante o período em que esteve na Itália, sugere que seus originais estavam em fase adiantada. Esse fato indica, pelo menos, uma situação de indefinição em relação à encomenda do livro. Talvez seja por isso que seu editor, José Olympio, tenha lhe enviado uma carta, datada de maio de 195583. Nela o editor tentava chegar a um acordo em relação à finalização de duas obras e a revisão de seu primeiro li81. Segundo comentário de Antonio Candido:“Talvez o critério metodológico de Sérgio fosse construir seqüências que, a julgar pelas restantes, passavam por cima da estrita cronologia e visavam sobretudo a descrever a continuidade dos conjuntos temáticos e dos estilos de época, através das obras”. Antonio Candido, “Introdução”, op. cit., p. 7. 82. Sérgio Buarque de Holanda, Capítulos de Literatura Colonial, op. cit., p. 177. 83. José Olympio Pereira Filho, Carta a Sérgio Buarque de Holanda, 6 maio 1955 (apontada por Antonio Candido na introdução de Capítulos de Literatura Colonial, op. cit., p. 9).

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vro, que Sérgio Buarque havia se comprometido a publicar. Segundo a proposta de José Olympio, a revisão feita para a terceira edição de Raízes do Brasil deveria ser entregue imediatamente, na semana seguinte. Caminhos e Fronteiras, por sua vez, deveria ser entregue até o dia 10 de junho. Já os originais da história da literatura deveriam chegar às suas mãos até 31 de dezembro. O fato de a história da literatura não ter sido publicada pode não se relacionar exclusivamente com um atraso ou desinteresse de seu autor. Do projeto encabeçado por Álvaro Lins, a História da Literatura Brasileira, apenas dois dos volumes previstos foram publicados, sendo o que último veio a público em 1952. É possível também que Sérgio Buarque não tenha finalizado o seu livro por algum problema relacionado a toda a coleção. Paralelamente, retornava à direção do Museu Paulista e à atividade docente na cadeira de História Econômica da Escola de Sociologia e Política, atividades que o ocuparam até o ano seguinte. Além disso, durante o biênio 1955-1956, o historiador planejou a publicação de seu quarto livro, Caminhos e Fronteiras, cuja base foram artigos publicados em diversos jornais e revistas entre 1947 e 195184. Ao publicarem seus livros, editores como José Olympio utilizavam-se freqüentemente da estratégia de anunciar na quarta capa os próximos lançamentos da editora. Quando possível, esforçavam-se em incluir no anúncio os livros em preparação do mesmo autor. Algumas das obras anunciadas por Sérgio Buarque nunca foram publicadas. Aliás, é curioso lembrar que em anos anteriores o historiador já havia feito um uso cômico e debochado desses anúncios divulgando obras totalmente inverossímeis, como, por exemplo: O Automóvel Adormecido no Bosque, Jesus Cristo na Intimidade, e até Rui Barbosa Nunca Existiu85. Entretanto, na medida em que os anúncios são espaços promovidos pela editora, podem revelar algo sobre seus acordos e encomendas com 84. Sérgio Buarque de Holanda, Caminhos e Fronteiras, 3. ed., 1995, pp. 10-12. E mais detalhadamente em Robert Wegner,“Os Estados Unidos na Obra de Sérgio Buarque de Holanda”, 1997, p. 1. 85. Rosemarie Érika Horch, “Bibliografia de Sérgio Buarque de Holanda”, 1988, p. 146.

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os autores. Desde a quarta capa da segunda edição de Raízes do Brasil de 1948 pode-se observar a promessa dos quinze volumes da História da Literatura Brasileira de Álvaro Lins, dentre os quais o volume “Período Colonial”, associado ao nome de Sérgio Buarque de Holanda. Ademais, na quarta capa da terceira edição de Raízes do Brasil, de 1956, aparece um novo livro,“em preparo”, que continuará sendo anunciado ao longo dos livros publicados nos três anos seguintes86, intitulado A Era do Barroco no Brasil, promessa que na primeira edição de Caminhos e Fronteiras aparece mais detalhada. O mesmo título vem acrescido de subtítulo: Cultura e Vida Espiritual nos Séculos XVII e XVIII, com previsão de três volumes87. A promessa da publicação de A Era do Barroco no Brasil pode ser um indício do estado de indefinição pela qual Sérgio Buarque de Holanda passou durante o período posterior à sua chegada da Itália no que diz respeito à publicação de seu trabalho sobre história da literatura colonial. É possível que planejasse dar continuidade ao projeto da história da literatura estudando outros aspectos da sociedade colonial, o que justificaria o subtítulo – “Cultura e Vida Espiritual”. Como mencionamos, em seus textos o historiador procurou relativizar a idéia de que a história literária fosse uma sucessão progressiva e evolutiva de estilos artísticos. Isto não significa que o historiador negasse a existência ou a pertinência dos estilos como meios de análise histórico-literária. A reflexão de Sérgio Buarque sobre os estilos em sua história da literatura colonial pautou-se pelo esforço de matizar o significado dogmático de estilos como o Barroco, ou o Arcadismo, e concebê-los como conjuntos de normas estéticas dotadas de historicidade próprias, sensíveis à fluidez do tempo e das idéias. Além disso, nos textos correspondentes à obra Capítulos de Literatura Colonial, o Barroco assume um papel central no desenvolvimento da literatura colonial. É plausível que, ao voltar da Itália, onde escreveu boa 86. Na quarta capa de 1957, da edição “fora de comércio” da tese Visão do Paraíso, de 1958, e na primeira edição do mesmo livro no ano seguinte, todos publicados pela José Olympio. 87. Segundo hipótese proposta por Antonio Candido em “Introdução”, op. cit., p. 10.

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parte desses esboços, Sérgio Buarque cogitasse ampliar sua reflexão sobre o tema, analisando outras manifestações culturais além das estritamente literárias, elaborando assim A Era do Barroco no Brasil. Desde sua nomeação como diretor do Museu Paulista e a conseqüente volta para São Paulo no ano de 1946, Sérgio Buarque passou a cultivar uma relação estreita com a Universidade de São Paulo (USP). O Museu Paulista ainda não havia sido incorporado à USP, o que viria a acontecer em 196388, mas já mantinha uma relação próxima com a universidade, sendo considerado uma “Instituição Complementar” – instância com direito de representação eletiva no Conselho Universitário da USP. Na condição de diretor do Museu Paulista, Sérgio Buarque de Holanda chegou a ser eleito representante das Instituições Complementares no Conselho Universitário da Universidade de São Paulo, em 194889. A aproximação com a USP não aconteceu apenas do ponto de vista institucional. A partir de seu retorno a São Paulo o historiador passou a participar de bancas de defesa de tese na universidade, como, por exemplo, as bancas examinadoras de concurso de cátedra de Astrogildo Rodrigues de Mello, em 1946, e de Eduardo d’Oliveira França, em 195190, além das bancas de concurso de livre-docência de Alice P. Canabrava e de Odilon Araújo Grellet, ambas em 194691. De volta de sua viagem à Itália, no final de 195492, Sérgio Buarque reintegrou-se no cargo de diretor do Museu Paulista e de docente na Escola de Sociologia e Política93, ocupações nas quais permaneceu até 1956, ao incorporar-se definitivamente nos quadros da Universidade de São Paulo. Antes de dedicar-se integralmente à Universidade de São Paulo, chegou a ministrar durante o ano de 1956 a disciplina 88. Ulpiano T. Bezerra de Meneses, “O Museu Paulista”, 1994, p. 573. 89. Oficio de Lineu Prestes Reitor da Universidade de São Paulo a Sérgio Buarque de Holanda, 16 nov. 1948. 90. Maria Regina C. R. Simões de Paula,“Teses Defendidas no Departamento de História da Universidade de São Paulo (1939-1974)”, 1975, p. 825. 91. Idem, p. 828. 92. Antonio Candido, “Introdução”, op. cit., p. 9. 93. Arlinda Rocha Nogueira, “Sérgio Buarque de Holanda, o Homem”, 1988, p. 24.

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de História do Brasil na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Sorocaba94. Sua reaproximação com a docência, em particular com a USP, culminou no convite para lecionar História do Brasil no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), atividade que iniciaria em outubro de 195695. O titular da cadeira, Alfredo Ellis Jr., havia adoecido e logo se aposentaria. Apesar de possuir certa experiência em instituições de ensino superiores, como na efêmera Universidade do Distrito Federal e na Escola de Sociologia e Política, Sérgio Buarque sempre havia relutado em seguir os passos naturais da carreira acadêmica, especialmente por nunca ter defendido uma tese ou dissertação. Para que sua condição de substituto de Alfredo Ellis Jr. como titular da cátedra de História da Civilização Brasileira fosse formalizada era necessário submeter-se a um concurso que tinha, dentre suas exigências, a defesa de uma tese96. Essa situação era ironicamente contrastante com sua condição de intelectual renomado, reconhecido até internacionalmente devido às recentes traduções de Raízes do Brasil e seu intercâmbio com universidades estrangeiras97. 94. Termo de Nomeação de Sérgio Buarque de Holanda como Professor Contratado para Ministrar Curso de História do Brasil na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de Sorocaba, 15 mar. 1956. 95. Myriam Ellis, “Concurso para Provimento da Cátedra de História da Civilização Brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da Universidade de São Paulo”, 1959, pp. 493-508. Maria Amélia Alvim Buarque de Holanda, op. cit., p. 15. 96. A tese de mestrado defendida na Escola de Sociologia e Política, em julho de 1958, aproximadamente dois meses antes da defesa de sua tese de cátedra na USP, também ocorreu pela necessidade de preenchimento dos requisitos formais para o concurso de cátedra, uma vez que Sérgio Buarque não possuía título acadêmico. No segundo capítulo trataremos mais detidamente desse trabalho.V. Comprovante de Aprovação do Exame Oral para o Grau de Mestre em Ciências Sociais – Divisão de Post-grado da Escola de Sociologia e Política, 30 jul. 1958; Comprovante de Aprovação do Exame ‘Comprehensive’ para o Grau de Mestre em Ciências Sociais – Divisão de Post-grado da Escola de Sociologia e Política, 30 jul. 1958. 97. Raízes do Brasil foi publicado em italiano em 1954 e em espanhol no ano seguinte. Cf. Alle Radici del Brasile, 1954; Raices del Brasil, 1955. Ao longo da década de 1940 e início da década seguinte, o historiador foi a congressos, proferiu palestras e cursos em diversas universidades americanas e européias, como por exemplo palestras a convite de Lewis Hanke e Willian Berrien na Universidade do Wyoming e na Universidade de Chicago em 1941, Sorbonne em 1949 e no Colóquio de Estudos

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Visão do Paraíso foi originalmente concebido como introdução para A Era do Barroco no Brasil 98, mas logo se desviou de sua concepção original com o objetivo de preencher um dos requisitos formais para o concurso na universidade. Ao mesmo tempo, os projetos da história da literatura brasileira colonial e da era do Barroco no Brasil foram provavelmente abandonados, frente às novas obrigações e preocupações do catedrático. Entretanto, alguns dos temas e ferramentas críticas desenvolvidas nos livros esboçados foram aproveitados, algum tempo depois, em Visão do Paraíso. Não é necessário procurar minuciosamente para encontrarmos em Visão do Paraíso traços das reflexões sobre crítica literária realizadas sobretudo ao longo da década de 1950. Na abordagem da Antologia dos Poetas Coloniais e dos textos correspondentes a Capítulos de Literatura Colonial, procuramos ressaltar o papel das representações da natureza nas descrições literárias que visam ao elogio de lugares comparáveis ao Paraíso na terra. Dentre as características mais notáveis dessas descrições

Brasileiros na Biblioteca do Congresso em Washington em 1950. Sobre a viagem aos EUA ver as correspondências: Rubens Borba de Moraes, Carta a Sérgio Buarque de Holanda, 1º dez. 1940; L. S. Rowe, Carta a Sérgio Buarque de Holanda, 4 jun. 1941; Walter, L. C. Laves, Carta a Sérgio Buarque de Holanda; 9 jun. 1941 e 18 jun. 1941. Para uma análise detalhada da viagem aos EUA e seu diálogo com a historiografia americana, ver Robert Wegner, A Conquista do Oeste: A Fronteira na Obra de Sérgio Buarque de Holanda, 2000, capítulo 3: “Um Outro Americanismo”, especialmente pp. 76-78. Sobre sua conferência na Sorbonne, ver Sérgio Buarque de Holanda, “Au Brésil colonial: les civilisations du miel”, 1950, pp. 78-81. Sobre o congresso em Washington em 1950, ver “As Técnicas Rurais no Brasil durante o Século XVIII”, pp. 260-266. Os dois últimos artigos citados foram desenvolvidos e incluídos na elaboração de Caminhos e Fronteiras, op. cit., 3. ed., p. 11. 98. “Visão do Paraíso era para ser uma introdução a um estudo do barroco no pensamento luso-brasileiro. Mas a introdução tornou-se maior que o tema principal. E então eu tive que apresentar uma tese na universidade. Assim, apressei-me a completá-lo com o aparato erudito, pesquisando onde tinha lido esta ou aquela referência ao tema edênico.” Richard Graham, “Uma Entrevista com Sérgio Buarque de Holanda”, 1982, p. 1179. Evidentemente, deve-se levar em conta que essa entrevista foi concedida em 1980 (originalmente publicada no periódico Hispanic American Historical Review (HAHR), Austin, vol. 62, n. 1, fev. 1982), mais de vinte anos depois do episódio nela relatado. No entanto, ela coincide com as promessas de publicação da Era do Barroco no Brasil que apareceram nos livros do historiador publicados na segunda metade da década de 1950.

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naturais, ressaltamos o papel da representação das frutas, assinalando insistentemente a reincidência de certos temas em vários autores. O seguinte trecho, extraído da tese Visão do Paraíso, é um exemplo de resultado apurado da reflexão sobre temas como esses: Ora, justamente a flora americana e brasileira oferece uma dessas imagens que tendem a representar em vivas cores o terrível mistério por onde Deus humanado, fazendo-se redentor dos homens, deu preço e valia à mortificação da vontade e dos prazeres deste mundo, à paciência nas tribulações e à humildade e brandura de coração. Certo é que as maravilhas desta flor-da-paixão não se podem alcançar à primeira vista sem preparo prévio ou, como escreve Acosta, sem “algo de piedad”. Uma vez, porém chamada a atenção sobre elas, até as fantasias menos aladas ou devotas, hão de reconhecer ali, diretamente impressas, as insígnias dos padecimentos do Senhor: cravos, colunas, açoites, coroa de espinhos, chagas, tudo disposto numa ordem que, se não espelha exatamente a dos sofrimentos de Jesus, é ainda um deleite para os olhos. Aquelas mesmas insígnias, descobriram-nas aparentemente os castelhanos na “granadilla” da Nova Espanha e outras conquistas espanholas, primeiro que as vissem os portugueses no maracujá do Brasil. E do descobrimento fizeram-se arautos tão eloqüentes, que não foi preciso muito para espalhar-se fora da Península a fama desse milagre da Natureza. Na Itália, especialmente, onde se alastrara desde cedo a simbologia das cores e das flores onde não faltou, no Seiscento [sic], quem deduzisse, por exemplo da fita verde que segura uma cabeleira loira, todo um intricado cotejo de enigmas, ou quem distinguisse um mundo de relações entre todas as flores de certo jardim de primavera e as gentilezas infinitas de alguma Doris, parecia a flor-da-paixão, ainda que a não tivessem visto os seus cantores, destinada a converter-se facilmente em um motivo poético. Não faltou, com efeito, quem, como o napolitano Genaro Grosso, se deixasse vencer pelo fascínio da flor em que se vê a paixão de Cristo. Num de seus sonetos, esse poeta que já tinha celebrado o milagre popular do santo de seu nome e de sua cidade capaz de impor-se à admiração dos mais pérfidos ateus, também celebra esse mimo da Natureza, “sacramento d’april” (que, por mandado de Deus, afugenta as ímpias serpentes. Descuidado das próprias dores e como a deliciar-se com seus tormentos e martírios, é assim que Jesus os estampa em frondes e os descreve em flores ∗). Outro “marinista”, este o bolonhês Cláudio Acchilini que, assim como no próprio Marino, alcançaria renome internacional em seu tempo, encontrando adeptos até na corte de França, também se ocupa deste “religioso abril”, glória dos “mexicanos reinos”. No soneto que lhe dedica, exalta-se o

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Cf. o soneto “Al Fior in cui si Vede la Passione del Signore”, em Opere Scelte di Giovan Battista Marino e dei Marinisti, II, p. 278 (nota de Sérgio Buarque de Holanda).

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livro da natureza, imitador gentil dos livros sacros, que entre pétalas humildes manifesta as insígnias dos tormentos de Cristo. E essas milagrosas pétalas, espera que lhe ensinem a própria salvação: assim, de funestos caracteres tiraria alentos de vida e de terrena flor, celestes frutos ∗. É interessante apontar o contraste entre o largo renome que, provavelmente por obra de castelhanos, chegaria a ganhar esta flor, e a lentidão com que entre portugueses do Brasil se vai registrar a presença nela das sagradas insígnias. Os primeiros missionários jesuítas não chegaram ainda a mencioná-las. Ao mesmo silêncio relega-as Gandavo que, no entanto, não deixa de ver nas bananas criadas na terra e originárias, em geral da Ilha de São Tomé, o que antigos viajantes já tinham observado em outras partes ∗∗: aquele sinal “à maneira de Crucifixo” que mostram, se cortadas ∗∗∗. O primeiro cronista português que alude à flor do maracujá é Gabriel Soares [...] 99

TCf.“Il Fior di Passione” na antologia organizada por Benedetto Croce, Lirice Marinisti, p. 53 (nota de Sérgio Buarque de Holanda). ** Pero de Magalhães Gandavo, Tratado da Terra do Brasil, cap. 6 (nota de Sérgio Buarque de Holanda). *** Já no século XIX, Mandeville, fundado em testemunhos anteriores, dissera da existência no Egito de certas “pommes de paradis [....] de bien bonne saueur”, acrescentando: “Et se vous coupez en pluseurs parties au trauers, tousiours au moieu la figure de la croix aparra”, Mandeville’s Travels, II, p. 254 – Com esta descrição da banana coincide exatamente a de Gandavo (nota de Sérgio Buarque de Holanda). 99. Visão do Paraíso (versão tese), 1958, pp. 258-259. A partir da segunda edição esses parágrafos foram reescritos. Ver Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso: Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil, 2. ed., 1969, pp. 228-230. É interessante notar também como o trecho destacado remete a um tema bastante desenvolvido nos textos de Capítulos de Literatura Colonial, como na seguinte passagem (p. 102): “Não é de admirar a presença aqui da ‘flor da paixão’ e causa estranheza, apenas, verificar-se que, tão celebrado dos antigos viajantes, o emblema vivo dos tormentos do Senhor, que nela viriam aqueles observadores, devesse esperar até Santa Rita Durão para ingressar, enfim, em nossa poesia. O fato é que se acha ausente dos catálogos de um Botelho de Oliveira e de um Frei Manuel de Santa Maria Itaparica, embora não deixassem eles de nomear seu fruto – o maracujá –, que o segundo chamou celeste, comparando-o ao néctar de Jove. E, no entanto, a reputação desta maravilha natural das terras americanas pudera, pelo menos desde o século XVII, inspirar mesmo a poetas europeus. Um deles o marinista Claudio Anchilini, que muito antes do nosso Botelho aludira aos seus ‘frutos celestes’ [...] não deixara de evocar o indefectível ‘livro da natureza’ a propósito dos funestos caracteres impressos em suas pétalas”. Convém sublinhar que, quando fazemos referências sistemáticas a obras raras, de acesso restrito, como é o caso da versão de Visão do Paraíso apresentada como tese, optamos por indicar entre parêntesis a página em que se encontra o respectivo trecho em uma edição mais recente, de preferência disponível no mercado, do livro em questão. *

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Esse longo trecho dedica-se à análise da associação entre a parte interna do maracujá, fruta originada do território americano, e insígnias da paixão de Cristo como o crucifixo – por isto o maracujá recebe, em diversos idiomas, a denominação de “fruta-da-paixão”. No primeiro parágrafo, Sérgio Buarque descreve tal associação e logo preocupa-se em fixar-lhe um local de nascimento, coisa que faz no início do parágrafo seguinte (“Aquelas mesmas insígnias, descobriram-nas aparentemente os castelhanos na ‘granadilla’ da Nova Espanha...”). Ainda no segundo parágrafo, o autor ilustra o processo de deslocamento da idéia que envolve a associação miraculosa entre o maracujá e a paixão de Cristo – mencionando sua difusão pela Europa até passar a ser conhecida na península Ibérica (“E do descobrimento fizeram-se arautos tão eloqüentes, que não foi preciso muito para espalhar-se fora da Península a fama desse milagre da Natureza”) chegando até a penetrar na região que corresponde atualmente à Itália. Na Itália, ainda que esta fruta não fosse concretamente conhecida pelos poetas que a declamavam (“ainda que não tivessem visto os seus cantores”), sua simbologia alastrou-se e fundiu-se na tradição literária européia. Dentre o acervo simbólico do século XVII, aparece a frutada-paixão convertida em “motivo poético” particularmente mobilizado pela tradição marinista, bastante difundida por toda Europa e suas colônias 100, e chega até a encontrar adeptos na corte francesa.Voltando ao Novo Mundo, apesar dos diversos registros da metáfora da paixão encontrados na América espanhola, apenas tardiamente, com Gabriel Soares de Sousa, o autor localiza seu emprego. Entretanto, tempos antes, em Gandavo, ressoa o mesmo motivo poético aplicado a outra fruta, a banana, na descrição de um lugar familiar – uma ilha 101. 100. Especialmente ao longo dos capítulos “O Ideal Heróico” e “As Epopéias Sacras” do livro Capítulos de Literatura Colonial, Sérgio Buarque de Holanda trabalha com o processo de difusão da tradição marinista no Brasil. 101. Os poemas da Antologia citados nesse texto de Manuel Botelho e frei Itaparica focam-se também na descrição das belezas da ilha da Maré e da ilha de Itaparica. Em várias tradições religiosas européias o Paraíso localizava-se em uma ilha em alguma parte do Atlântico, possível de ser alcançada por aquele que se aventurasse a superar as incríveis dificuldades do seu caminho. O emprego da idéia de ilha nas

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Sérgio Buarque de Holanda analisa assim a atribuição de significados originados do catolicismo a uma fruta americana, compreendendo a progressiva cristalização de uma metáfora no tempo e no espaço. Preocupa-se com o movimento, o crescimento e a continuidade das formas. Em sua análise ressoa a idéia de topoi – fórmulas literárias consagradas utilizadas para determinados fins discursivos, mas de um modo muito pessoal resultado de um longo período de maturação. Topoi como o da fruta-da-paixão fazem parte de um acervo de formas típicas que seguem padrões que o autor, sob o provável influxo de autores como Benedetto Croce e Mario Praz 102, convencionou chamar de gosto. O termo “gosto” refere-se aos códigos predominantes na poesia européia seicentista estabelecidos por poetas como Marino, Quevedo, Góngora, Shakespeare e Camões, entre outros. Esse código possui os seguintes atributos: exploração da imagem, concentração semântica, equivocidade de vocábulos e plasticidade sintática103.Além dessas características, o código se estabelece como tal pela reiteração de imagens e expressões lingüísticas intercambiáveis entre os poetas, de modo que a adesão ao “gosto” pressupõe uma articulação engenhosa do acervo de recursos lingüísticos. A palavra “engenhoso” não significa, em momento algum, originalidade ou qualquer dos seus correlatos. Significa uma espécie de virtuosismo técnico104 através do qual o poeta revela seu domínio do código que mobiliza, em relação aos idiomas mais correntes ou aos autores mais notáveis, desde os antigos até os modernos. O poeta propõe assim uma espécie de jogo em que seu papel é desafiar a tradição com a qual se dispõe a dialogar, buscando a superação de suas referências. Esse jogo é conhecido como emulação. Sérgio Buarque de Holanda, ao mobilizar referências temporais como o século XVII, geográficas como a península Itálica e lingüísti-

descrições encomiásticas pode reforçar a associação entre descrição da natureza local e Paraíso. 102. Benedetto Croce, Storia dell’età Barocca in Italia. Pensiero, Poesia e Letteratura,Vita Morale, 1957, pp. 172-179. Mario Praz, Gusto Neoclássico, 2003. 103. Ivan Teixeira, “O Engenhoso Botelho de Oliveira”, 2005, p. D6. 104. Idem, ibidem.

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cas como Giambattista Marino, torna claro que procura refletir sobre o gosto, estilo, ou, em uma denominação corrente da crítica atual, código Barroco. Referências como Marino indicam que parte dessa reflexão foi desenvolvida no período em que o historiador esteve na Itália. Isto reforça a hipótese de que, ao retornar desse país, o historiador cogitasse escrever um livro sobre a era do Barroco no Brasil. No longo trecho destacado nas páginas anteriores podemos perceber que o autor aborda o tema de dois modos complementares. Como já mencionamos, o “Barroco” recebe um tratamento técnico e passa a ser concebido como um conjunto de normas estilísticas mobilizadas em um espaço geográfico definido e durante um período específico. O historiador afasta-se vigorosamente de uma concepção de história literária pautada pela sucessão linear e progressiva de estilos. Antes de significarem conjuntos de características programáticas da história dos estilos, as convenções literárias compõem códigos dotados de historicidade própria. Por isso é possível falar em um Barroco estendido por mais de duzentos anos sem que isto anule a circulação de outras referências e a sobreposição de outros códigos. Sob essa perspectiva crítica Sérgio Buarque de Holanda procura analisar, por exemplo, a obra de Cláudio Manuel da Costa 105. A opção pelo uso de determinado código – no caso o conhecido como Barroco – relaciona-se com um complexo emaranhado de circunstâncias históricas. De certo modo ela denota uma sensibilidade perante o mundo capaz de transformar mesmo eventos que nos aparentam banais do cotidiano do homem europeu moderno em signos, parábolas ou metáforas que escondem significados sobrenaturais e maravilhosos 106. No trecho de Visão do Paraíso que fala sobre a fruta-da105. “Resumindo, pode dizer-se que, pela reiteração constante desse jogo de elementos contrários ou análogos, e ainda pelo proveito particular que dele se pode retirar para a economia geral das composições poéticas, não pelo seu uso como simples elemento decorativo, é que Cláudio se prende mais estritamente à estética do Barroco.” Sérgio Buarque de Holanda, Capítulos de Literatura Colonial, op. cit., p. 327. 106 “Se o prodígio pode, assim, implantar-se no próprio espetáculo quotidiano, se até os atos e fatos mais comezinhos chegam a converter-se em signos ou palavras, impregnando-se de significados sobrenaturais, que dizer das coisas ocultas ou

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paixão, podemos ver a forte associação entre esta articulação mental e a doutrina católica, de modo que a imagem “banal” da parte interior de uma fruta corresponde à imagem da Paixão de Cristo, o que traz à tona os desígnios do Criador em um mundo por ele criado, mas que foi preservado do contato com o homem desde então. A doutrina católica medieval prevê que todas as coisas existentes são criação divina e, portanto, carregam em si a mensagem de seu Criador 107. A natureza maravilhosa das paragens recém-descobertas não foge a essa regra e, por isso, a mensagem divina deve ser nela decodificada. A natureza deve ser lida como um exegeta lê a sagrada escritura – buscando no significado de suas metáforas o verbum divino. Nunca é demais lembrar que, segundo essa tradição, Deus criou o mundo com o verbum 108. Qualquer palavra em ação repete a articulação da palavra divina, ou seja, da criação, por meio de uma operação metonímica. A decodificação metafórica refaz assim a operação sagrada da criação revelando a mensagem do Criador. A disposição interna das sementes de uma fruta, seja ela o maracujá ou a banana, contém determinada mensagem – a da paixão – que atesta em si a presença de quem a criou. Não se trata de uma representação da maneira que concebemos contemporaneamente tal operação, segundo esse modo de pensar; por exemplo, um crucifixo feito de madeira representa a Paixão de Cristo de modo que simultaneamente reforça o significado do evento sagrado e reitera sua ausência, afinal, trata-se de um objeto material 109. O verbum é a própria presença do Deus 110.

invisíveis que apenas deixam anunciar por misteriosos indícios?” Visão do Paraíso (versão tese), p. 164 (6. ed., p. 147). 107. Ver Ernst Cassirer, A Filosofia das Formas Simbólicas, vol. II: O Pensamento Mítico, 2004, pp. 428-432. 108. Hans Georg Gadamer, Verdade e Método: Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica, 1997, pp. 608-621. 109. Ver Carlo Ginzburg, “Representação: A Palavra, a Idéia, a Coisa”, Olhos de Madeira: Nove Reflexões sobre a Distância, 2001, pp. 85-103. 110. Segundo Sérgio Buarque de Holanda, em outra passagem de Visão do Paraíso: “É indubitável que naqueles tempos, as fórmulas literárias tinham, não raro, valor literal, mais literal com certeza, do que o teriam se empregadas hoje: as próprias metáforas nem sempre eram apenas metafóricas.” Visão do Paraíso (versão tese), p. 164 (6. ed., p.

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Mas a flor-da-paixão não é a primeira em importância no acervo metafórico paradisíaco da natureza do Novo Mundo. A partir de frei Antônio do Rosário, no início do século XVIII, o ananás passa a figurar como rainha das frutas brasileiras 111, condição conferida freqüentemente devido à similitude de sua forma com a de uma coroa. O mesmo frei Antônio chega a atribuir outros significados maravilhosos, e decerto mais inusitados – o ananás seria a verdadeira metáfora do Rosário. Se cindido graficamente, produziria o som Anna Nascitur 112. Dado que quem nasceu de Santa Ana foi Maria, mãe de Deus, e Ana significa Graça, no rosário se nomeia cento e cinqüenta vezes a filha de Ana, cheia de graça, “assim, se a rosa tem coroa, púrpura, trono e guarda real para representar na cor os mistérios gozosos, nos espinhos os dolorosos e na gala os gloriosos, no mundo novo fez Deus o ananás com o mesmo estado e aparato real de coroa, cetro, púrpura, guarda (espinhos), para que no rosário de sua mãe fosse o fruto, que no mundo velho era cor” 113. Por meio de operações analógicas e imagéticas interpreta-se o cenário do Novo Mundo da mesma forma com que se lê um livro como a Bíblia. As palavras e imagens mais aparentes são interpretadas como símbolos, parábolas e metáforas para significados elevados relacionados com os ensinamentos do Criador. Frei Antonio do Rosário busca compreender os significados daquilo que vê recorrendo à tradição literária européia ligada principalmente ao catolicismo. Com o objetivo de elogiar sua terra, mobiliza as imagens mais sublimes dessa tradição, produzindo uma comparação entre aquilo que seus sentidos captam e os antigos e crista147) A partir deste momento toda referência às primeiras edições de Visão do Paraíso acompanhará uma indicação entre parênteses de sua localização em edição recente (sexta), para facilitar o acesso ao leitor. 111. “Pela primeira vez, tentava-se decifrar o simbolismo místico do ananás, essa sim, rainha das frutas brasileiras. Muitos cronistas portugueses já tinham exaltado seu sabor e aroma, ou mesmo as insígnias régias que lhe servem de ornamento. Nem faltou quem procurasse descobrir-lhe admiráveis virtudes terapêuticas. Manuel da Nóbrega chega a mandar algum em conserva, como remédio para dor de pedra” Idem, p. 261 (p. 239). 112. Idem, p. 264 (pp. 241-242). 113. Idem, p. 265 (p. 242).

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lizados motivos literários da flora paradisíaca. Mas essa operação não se reserva, apenas, à criação poética, mas é sintomática de uma determinada relação do homem com o mundo. Nas palavras de Sérgio Buarque: Participando da linguagem metafórica de que se vale o Senhor para falar aos homens, esses seres não importam só pelas suas aparências imediatamente sensíveis e inteligíveis, mas pelos outros significados que costumam os doutores distinguir nos livros do Antigo e do Novo Testamento. E não parece natural se devesse atribuir um posto de singular eminência no livro da vida, no “código vivo”, àquelas coisas que pela sua grandeza, formosura ou raridade, possam excitar nos homens a afeição, a ambição ou temor? 114

A operação pela qual um poeta submete-se a um código e articula seus topoi longamente definidos é fundamentalmente a analogia. Essa operação é similar ao modo com que opera a forma mentis do explorador português da América colonial, pois este compreende os fenômenos de seu horizonte buscando significados metafóricos estabelecidos pela tradição. Isto chega a tal ponto que sua visão pode constituir realidades praticamente apartadas daquelas que sua percepção mais imediata pode captar; eles “vêem através e apesar da natureza” 115. No período que corresponde ao Barroco, os topoi provocam sensações e constroem novas realidades, questões que Sérgio Buarque de Holanda já havia discutido em Capítulos de Literatura Colonial: A tendência, que partilha com tantos autores de sua época e, ainda mais de épocas anteriores, para conceber o mundo criado por Deus como uma espécie de código moral, de modo que as formas mais profanas da natureza se projetam num plano simbólico, quase se limita aqui às plantas. Do reino animal, só o bicho preguiça parece ter títulos suficientes para inscrever-se no “livro da natureza”, 114. Idem, p. 221 (p. 202). 115. “Não admira, nessas condições, que vicejasse facilmente entre eles um modo aparente de ver a Natureza que consiste antes em ver através e apesar da Natureza. À sua origem estaria a noção, arraigada em velhas tradições, de que mais importa o invisível do que o visível e, naturalmente, a de que o espiritual há de prevalecer sobre o carnal e o concreto. O mundo empírico, em sua baixeza, só vale na medida em que nos forneça os degraus necessários para ascendermos, dentro dos limites humanos, até ao conhecimento das coisas invisíveis e, porque invisíveis, isto é, incorpóreas ou espirituais, certamente mais dignas de estima do que as riquezas, as comodidades, as honrarias e todos os bens da terra.” Idem, pp. 252-253 (p. 230).

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comportando, até certo ponto, um significado figurado ou tropológico, não apenas imitativo, pois nela se vê “o espelho da gente que é remissa” 116.

Os topoi, nesse sentido, são utilizados de maneira bastante distinta em relação à obra de E. R. Curtius. Eles transformam-se em uma ferramenta que possibilita ao historiador uma aproximação ao modo de pensar do homem europeu moderno. Distanciam-se do sentido dogmático e, de certa forma, estático da obra de Curtius, invertendo seu foco para as experiências, os homens, os pensamentos e as sensações. Ao mesmo tempo em que são fórmulas fixas do ponto de vista da linguagem, ligam-se a uma forma específica de conceber as coisas do mundo, ao agir dos sujeitos que em diferentes circunstâncias e por diferentes razões os mobilizam. Aproximam-se da “práxis da vida histórica” 117, referindo-se ao processo de adaptação do europeu e de suas formas de pensamento no Mundo Novo. Por outro lado, o conhecimento da topologia possibilita a compreensão de outro processo – se o “gosto” de uma época determina certas reações do homem perante o mundo, nada impede que, com o tempo, essas próprias reações se cristalizem e formem novos topoi. Ao concluir sua reflexão sobre frei Antonio do Rosário, Sérgio Buarque escreve: Esses enlevos, ainda que não passem de caprichoso exercício, num gosto que não é o dos nossos dias, prolongam, no entanto, em cores carregadas, e nem por isso menos reveladoras – reveladoras, de fato, como podem ser as caricaturas – de uma tradição já duas vezes centenária naquela época, e tradição castelhana, mais do que lusitana. No traço grosso de Frei Antonio do Rosário, assim como, antes dele, no de Vasconcelos, e depois, até certo ponto, no de Sebastião da Rocha Pita, para só lembrar estes exemplos, vemos persistir, já petrificadas por vezes em convenções, algumas das reações mais características que, no adventício, pôde provocar a natureza do mundo novo 118.

116. Sérgio Buarque de Holanda, Capítulos de Literatura Colonial, op. cit., p. 104. E. R. Curtius dedica todo um capítulo do Literatura Européia e Idade Média Latina à análise dos topoi relativos à idéia de livro como símbolo, dando ênfase especial às noções de “livro da natureza”, “livro da vida” e “livro do mundo”. E. R. Curtius, op. cit., pp. 375-429. 117. Cf. Luiz Costa Lima, “Sérgio Buarque de Holanda: Visão do Paraíso”, op. cit., pp. 49-50. 118. Visão do Paraíso (versão tese), p. 266 (p. 243).

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Frente a um novo ambiente, o europeu expressa o que vê recorrendo às tradições literárias ligadas a seu imaginário religioso. Tais formulações não deixam de ser representativas de suas novas experiências; é possível pensarmos até que ponto a tradição não participa como sujeito ativo da produção dessas novas situações e sensações. Com o passar do tempo, aquelas experiências expressadas pelos topoi relativos às descrições tradicionais do Paraíso cristalizam-se e formam novos topoi. Visão do Paraíso é também um elenco dos motivos ligados a descrições da paisagem americana. O trecho anterior procura analisar a formação dos topoi edênicos na América portuguesa, sugerindo um encadeamento de autores que contribuíram para seu processo de formação. Por sua análise, percebese a formulação de um pensamento iniciado na Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Colonial e desenvolvido nos textos de sua história da literatura inacabada, Capítulos de Literatura Colonial. Autores como frei Antonio do Rosário, Rocha Pita, frei Itaparica ou Manuel Botelho são responsáveis pela cristalização dos topoi descritivos da natureza da América portuguesa relacionados com as antigas descrições do Paraíso. Os topoi da fruta-da-paixão e do ananás fruto rei são apenas algumas das variantes do mito edênico ou da expressão utilizada em anos anteriores, “topos do sentimento nacional”. A trajetória da identificação do maracujá com o episódio da Paixão de Cristo é somente um dos “motivos” que compõe o “mito edênico”. Muito distante da tópica de Curtius, a mobilização dessas formas permite a “biografia de uma dessas idéias migratórias”. Formulada a idéia de Paraíso cristão nos primeiros séculos de catolicismo 119, não tardou para que seus doutores estabelecessem a detalhada descrição de suas maravilhas. Já no século IV, em poema latino atribuído equivocadamente a Lactâncio, é possível identificar várias das atribuições paradisíacas que conhecemos até hoje 120. Mas

119. Jean Delumeau, op. cit., pp. 120-127. 120. Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso: Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil, op. cit., 6. ed. p. X.

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talvez se possa possível dizer que com Isidoro de Sevilha as descrições paradisíacas tornaram-se uma espécie de padrão. Isso ocorreu, provavelmente, devido ao prestígio que tiveram as idéias de Isidoro na cultura européia durante centenas de anos. A partir disso, as descrições edênicas passam a operar como uma espécie de manancial para poetas e prosadores de língua vulgar 121, o que permite supor um lento processo de incorporação desses padrões descritivos no mosaico da cultura européia. Assim forma-se o topos edênico ligado à imagem construída pelo europeu durante seu processo de colonização e exploração. Vejamos trecho em que Sérgio Buarque de Holanda esclarece sua tese: São sempre idênticos os elementos que, durante toda a Idade Média, se tinham apresentado como distintivos da paisagem do Éden ou que pareciam denunciar sua proximidade imediata: primavera perene ou temperatura sempre igual sem a variedade das estações que se encontra no clima europeu, bosques frondosos de saborosos frutos e prados férteis, eternamente verdes ou salpicados de flores multicoloridas e olorosas, cortados de copiosas águas (usualmente quatro rios segundo o padrão bíblico), ora em lugar elevado e íngreme, ora numa ilha encoberta em que mal se conhece a morte ou a enfermidade ou mal algum. Desses elementos, sabemos que muitos viriam encontrá-los os navegantes quando aportassem nas terras mais chegadas da linha equinocial, em particular o das folhas sempre verdes. E não lhes parecia de má filosofia o concluírem que, existindo nelas algumas dessas virtudes, não haveriam de faltar todas as mais, que pudessem completar todo o panorama edênico 122.

O europeu descreve o novo mundo que vê através do acervo da cultura literária européia medieval, apoiando-se nas descrições tradi121. Nas palavras do historiador: “A influência duradoura do santo de Sevilha sobre teólogos e eruditos, pois o que Isidoro receitava, lembrou-o um moderno romanista, será prescrito pelos ulteriores enciclopedistas, e seu saber, diretamente ou não, irá transformar-se em patrimônio comum de toda a Idade Média, já bastaria, na falta de outros motivos para justificar o extenso e longo predomínio desses esquemas. A mesma paisagem amena e viridente, a mesma eterna primavera, o non ibi frigus non aestus, que os descobridores e conquistadores renascentistas irão buscar nas terras incógnitas do outro lado do oceano, já tinha empolgado os primeiros autores latinos medievais, que a partir do século XII principiam a transmitir o tema aos poetas e prosadores de língua vulgar”. Visão do Paraíso (versão tese), p. 188 (p. 169). 122. Idem, p. 190. Trecho modificado a partir da segunda edição da obra (p. 176).

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cionais do Paraíso. É bastante possível que alguns desses temas descritivos tenham sido efetivamente encontrados nas paisagens americanas (como o das folhas eternamente verdes). A existência desses temas os levaram a acreditar que os outros elementos ligados à descrição do Éden também deveriam existir. É como se “cuidassem reconhecer, com os próprios olhos, o que em sua memória se estampara das paisagens de sonhos descritas em tantos livros e que, pela constante reiteração dos mesmos pormenores, já deveriam pertencer a uma fantasia coletiva” 123. Assim, os topoi provavelmente incorporados da leitura de E. R. Curtius perdem seu conteúdo dogmático e a-histórico e, como observou o crítico Luiz Costa Lima, são utilizados como instrumento de investigação histórica. Eles dão concretude a um determinado tipo de experiência e percepção do homem português na época dos descobrimentos que se enraizava em um gênero de mentalidade eminentemente medieval. Desse modo, A possibilidade sempre iminente de algum prodígio, que ainda persegue os homens daquele tempo, mormente em mundos apartados do seu, alheios a costumes que adquiriam no viver diário, não deixará de afetá-los, mas quase se pode dizer que os afeta de modo reflexo: através de idealizações estranhas, não em virtude de sua experiência. É possível que, para muitos, quase tão fidedignos quanto o simples espetáculo natural, fossem certos partos da fantasia: da fantasia dos outros, porém, não da própria. Mal se esperaria coisa diversa, aliás, de homens em que a tradição costumava primar sobre a invenção, e a credulidade sobre a imaginativa. De qualquer modo, raramente chegavam a transcender em demasia o sensível, ou mesmo a colori-lo, retificá-lo, complicálo, simplificá-lo, segundo momentâneas exigências 124.

As articulações literárias promovidas pelos topoi são apenas um aspecto de uma sensibilidade perante o mundo que cria novas experiências a partir do peso e da permanência da tradição. Ao mesmo tempo, essa forma analógica de representação e significação do mundo ao redor entra em choque com a percepção empírica dos fenômenos, 123. Idem, ibidem. 124. Idem, p. 3 (p. 1).

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o que promove um processo de legitimação dessas visões fantásticas até o limite do plausível – da verossimilhança. Assim, é preciso compreender que o recurso a imagens cristalizadas da tradição não consiste apenas em uma articulação literária, mas em uma articulação mental característica do homem português de finais da Idade Média e da Idade Moderna. O choque entre as imagens originadas das tradições culturais européias com um Mundo Novo percebido pelos sentidos produz uma gama de novas experiências históricas 125. Nas palavras do historiador: A mentalidade da época acolhe de bom grado alguns modos de pensar de cunho analógico, desterrados hoje pela preeminência que alcançaram as ciências exatas. Em tudo discernem-se figuras e signos: o espetáculo terreno fornece, em sua própria evanescência, lições da eternidade. A Natureza é em suma, “o livro da Natureza”, escrito por Deus e, como a Bíblia, encerra sentidos ocultos, além do literal. Até a Razão discursiva, feita para o uso diário, deixa-se impregnar, não raro, pela influência do pensamento mítico, e entre os espíritos mais “realistas” encontram-se as marcas dessa atitude, que traz no bojo um vivo sentimento de simpatia cósmica 126.

Munido de ferramentas da crítica literária, experimentadas ao longo de mais de uma década, Sérgio Buarque de Holanda foca sua análise nas mudanças e na concretude histórica por trás do uso contínuo desses temas. Enfim, “parece raro que os loci amoeni literários, derivados comumente de velhos motivos edênicos, venham a sobrepujar, no deslumbramento desses navegantes, a expressão de uma sensibilidade mais direta ao espetáculo real” 127.

125. “O deslumbramento que se apodera do navegante em face desses paraísos esquecidos entre mares ignotos, opulentos em árvores generosas, pescado, caça e água doce, achase à origem dos mais velhos e constantes temas poéticos.Temas que, depois de ganhar extraordinária força evocativa justamente na era dos grandes descobrimentos geográficos, quando se enriquecem de novos aspectos e significações, levarão a esse multiforme romantismo insular, cuja marca é visível nas obras de autores tão diferentes entre si como o são Thomas Morus e Luís de Camões, por exemplo, ou Luís de Gôngora e Daniel Defoe, e cujo fascínio ainda não se dissipou em nossos dias.” Idem, p. 304 (p. 277). 126. Idem, p. 77 (pp. 65-66). 127. Idem, p. 165 (p. 148).

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capítulo II

Idade Média, Renascimento e a Escrita da História em Visão do Paraíso Analisaremos neste capítulo um dos eixos centrais de Visão do Paraíso – a idéia de que a sucessão dos períodos Idade Média e Renascimento representa muito mais uma continuidade do que uma ruptura radical – à luz de alguns debates historiográficos sobre o tema ocorridos na primeira metade do século XX. Em um plano mais técnico, a flexibilização desses conceitos foi possibilitada pelo desenvolvimento de uma análise de múltiplas temporalidades, atenta aos pensamentos, sentimentos, crenças e ações dos diversos sujeitos históricos. Espera-se, com isso, contribuir para a compreensão dos mecanismos explicativos desenvolvidos em Visão do Paraíso relacionados com o emprego de termos como “mentalidade”, “visão de mundo” e forma mentis.

A questão da Modernidade portuguesa e os descobrimentos na argüição de Visão do Paraíso Desde os primeiros registros de sua aparição, ainda como tese acadêmica, Visão do Paraíso suscitou várias discussões, algumas delas bastante acaloradas. Em 12 de novembro de 1958, no Salão Nobre da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo ocorreu a defesa da tese Visão do Paraíso: Os Motivos Edênicos do Descobrimento 103

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e Colonização do Brasil, parte do concurso para provimento da Cadeira de História da Civilização Brasileira1. A banca foi composta por Hélio Viana e Afonso Arinos, ambos da Universidade do Brasil, José Wanderley de Araújo Pinho, da Universidade Federal da Bahia, e pelos professores da casa Eduardo d’ Oliveira França e Eurípedes Simões de Paula. As palavras dos argüidores e do candidato foram registradas, como era de costume, na Revista de História, que disponibilizava aos seus leitores uma seção dedicada à divulgação de notícias relevantes para a comunidade acadêmica como congressos, encontros acadêmicos e defesas de tese. A encarregada dessa função foi a professora Myrian Ellis, assistente da mesma Cátedra de História da Civilização Brasileira que submetia vaga a concurso e filha do recém-aposentado titular da mesma cátedra, Alfredo Ellis Jr. Com exceção do presidente da banca, Eurípedes Simões de Paula, todos os examinadores manifestaram algum tipo de estranheza em relação à forma da exposição dos argumentos do autor na tese. Para eles, Visão do Paraíso dificilmente poderia ser classificada como tese acadêmica, uma vez que se adequaria mais à denominação de ensaio. Referindo-se a essa questão, os argüidores utilizaram expressões e palavras como “extrema fluidez”, “imprecisão”, “falta de uma sucessiva ordenação dos assuntos”, “acúmulo excessivo de minúcias” etc. Ressaltavam assim a falta de uma delimitação explícita de uma idéia inicial e uma conclusiva através de um encadeamento também explícito e progressivo de idéias. Todos concordavam, entretanto, que a inadequação à estrutura notadamente rígida de uma tese era sintomática da grande qualidade de Sérgio Buarque como escritor, patente em Visão do Paraíso. O candidato Sérgio Buarque de Holanda acatou parcialmente as 1. Candidato ao concurso, Sérgio Buarque de Holanda ainda realizou no dia 10 de novembro uma prova escrita na qual teve seis horas de preparação para dissertar sobre o tema sorteado: “A conquista da paz interna e a conciliação política no Segundo Reinado”, e uma prova didática realizada no dia 14 do mesmo mês cujo tema sorteado no dia anterior foi “Técnicas rurais indígenas: a contribuição adventícia”. Cf. Myrian Ellis, “Concurso para Provimento da Cadeira de História da Civilização Brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo”.

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críticas de seus argüidores. Segundo ele, embora a tese apresentada resultasse de muitos anos de estudo, não a faria idêntica se tivesse novamente a oportunidade. Quando concebera o trabalho não tinha em mente apresentá-lo como tese em um concurso2. O argüido concluiu sua fala dizendo que, mesmo assim, acreditava que o trabalho apresentado era plenamente satisfatório como tese de concurso3. Talvez a fala mais dura tenha sido a de Eduardo d’Oliveira França, penúltimo argüidor. Seguindo a tendência dos outros examinadores, o professor iniciou a explanação afirmando que a tese apresentada mais parecia “uma coleção de belos ensaios” do que uma tese propriamente acadêmica. Em seguida, enumerou as razões da suposta inadequação acadêmica da tese; segundo ele, Visão do Paraíso deixava uma lacuna entre as “visões” e a “História”. Quando se referia a visões, Eduardo França atribuía possivelmente um sentido de conjunto de idéias, concepções, visões de mundo; ao falar de História, dava um sentido à palavra próximo do conjunto de ações humanas no tempo4. Para o examinador, o candidato estava equivocado ao supor que o colonizador português tinha uma certa atitude arcaizante em comparação com o pensamento europeu de sua época. Na aurora da Idade Moderna, em tempos de humanismo e Renascimento, o candidato procurava ver o colonizador português como um homem medieval. Eduardo França pensava o contrário – o moderno na época do Renascimento não era o humanismo que se concentrava no passado antigo; o moderno consistia, na verdade, nas novas descobertas e criações de povos como o português. Em sua tese, Sérgio Buarque havia dito que a colonização portuguesa seguia vários

2. A fala de Sérgio Buarque de Holanda reforça a questão trabalhada no capítulo anterior, de que a obra Visão do Paraíso havia sido concebida como introdução de um estudo sobre a era do Barroco no Brasil. 3. Segundo as palavras de Myrian Ellis, anotando a resposta de Sérgio Buarque de Holanda ao primeiro argüidor, Afonso Arinos de Melo Franco: “Com a palavra, o candidato afirmou que a sua tese, embora produto de muitos anos de estudo, realmente não era a que faria se tivesse visado a um concurso, o que não significa repúdio à tese como tese de concurso”. Myrian Ellis, op. cit., p. 496. 4. Idem, p. 503.

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Figura 1. Banca examinadora do concurso para a Cátedra de História da Civilização Brasileira. Da esquerda para a direita se vê Eduardo d’Oliveira França, Afonso Arinos de Melo Franco, Paulo Savoya e Eurípedes Simões de Paula. FONTE: Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Siarq/Unicamp

Figura 2. Sérgio Buarque de Holanda durante o concurso, no salão nobre da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP. FONTE: Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Siarq/Unicamp

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métodos aplicados nas repúblicas italianas. Essa afirmação parecia ao examinador contraditória, pois se a Itália é o berço do humanismo e os portugueses copiavam os italianos, como poderiam então os primeiros serem modernos e os últimos arcaizantes?5 Em grande medida o debate concentrou-se no significado e na historicidade da idéia de Modernidade. Para Eduardo França, seu significado estava relacionado diretamente com o desenvolvimento técnico, econômico e político cujo fundamento ligava-se à formação precoce do Estado-nação português em relação aos seus vizinhos europeus. Associando modernidade ao sentido das mudanças, novidades, e portanto daquilo que diferencia um momento presente de um passado, Eduardo França acreditava que tais inovações eram responsáveis pela superação do passado medieval. Como poderia admitir o contrário – que o desenvolvimento da sociedade portuguesa na época dos descobrimentos fosse ligado justamente com uma continuidade de práticas medievais? O professor falava com a autoridade de quem havia estudado em profundidade o processo de formação do Estado monárquico português e as origens de seu absolutismo em tese de doutorado defendida em 19456. Na realidade, esse debate historiográfico derivava de um problema conceitual de fundo. Afinal, perguntar se Portugal havia tido um Renascimento no século XVI implicava, além do estudo da sociedade portuguesa do período, uma definição razoavelmente clara do conceito de Renascimento e correlatos como humanismo e modernidade. Em sua argüição, o professor França utilizou o conceito de modernidade em um sentido próximo ao que ele significa nos dias de hoje, o de novidade, invenção, avanço. Dessa forma, avaliou que os portugueses, no auge de sua expansão marítima, só poderiam ser homens modernos no sentido de seus avanços técnicos e na prematuridade de sua organização política, tema em que era especialista. Sérgio Buarque de Holanda concebia a idéia de modernidade em

5. Idem, pp. 503-504. 6. Eduardo d’Oliveira França, A Realeza em Portugal e as Origens do Absolutismo, 1946.

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um sentido distinto, como o momento histórico em que o homem enxergava seu passado com distanciamento e desenvolvia uma nova sensibilidade em relação ao tempo. Segundo essa perspectiva, a modernidade forma-se em contrapartida à visão de mundo medieval. A atitude do homem português na forma de agir, pensar e perceber o tempo era muito mais próxima da visão de mundo medieval do que da moderna, e assim se explica seu rechaço à idéia de uma Modernidade ou um Renascimento português. Para compreendermos a importância desse tema, suscitado desde a argüição de Visão do Paraíso, devemos fazer alguns esclarecimentos conceituais sobre a idéia de modernidade. Inicialmente, o neologismo latino modernus teve seus primeiros registros no século VI7. Sua cunhagem está relacionada à junção de dois outros sentidos distintos que hoje parecem confundir-se. Por um lado, o sentido original de algo acontecido em um momento recente, de hoje. O segundo sentido, estabelecido durante a própria Idade Moderna, é o de novo, novidade, dotado de um viés segregativo pois constitui uma barreira estipulando uma situação anterior e uma posterior. Assim, o termo “moderno” passou a significar um conjunto de fatores caracterizados pela superação de uma situação inicial. A idéia de superação foi associada a um forte caráter positivo, enquanto a situação anterior recebeu uma conotação negativa8. Entretanto, é apenas no século XVI que esse termo teve seu uso difundido no contexto do desenvolvimento das línguas neolatinas. Sua sistematização deveu-se à afirmação e à difusão de um movimento de idéias comum. “Moderno” passou a expressar a consciência da renovação cultural proposta pelo humanismo italiano desde o século XV9. Ao mesmo tempo, para que tal positividade se afirmasse, era necessária a negação de algo indesejado e superado – assim nasceu 7. Jaques Le Goff, “Antigo/Moderno”, op. cit., pp. 374-375. 8. Erwin Panofsky, Renascimento e Renascimentos na Arte Ocidental, s/d [1981], pp. 59-60. Sobre o mesmo tema ver Laura de Mello Souza, “Idade Média e Época Moderna: Fronteiras e Problemas”, 2005, pp. 241-243. 9. David Lowenthal, The Past is a Foreign Country, 1985, pp. 77-79.

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a idéia de Idade Média como conhecemos, período associado à decadência da cultura clássica e à irracionalidade, em suma, às trevas10. O humanismo promoveu um deslocamento semântico do termo “antigo”. Segundo Erwin Panofsky, inicialmente o significado desse termo aproximava-se de algo velho ou antiquado11. Progressivamente, o termo “antigo” ganhou um sentido positivo, na medida em que se estabelece como unidade constitutiva da identidade renascentista. Foi dessa maneira que a Antigüidade passou a ser compreendida como um período específico da história, relativo ao predomínio político e cultural greco-romano12. Com o humanismo, sedimentou-se também a idéia de Renascimento, entendida como uma repetição dos ideais estéticos, filosóficos e políticos da Antigüidade. No entanto, essa idéia de repetição era ambígua, pois com o tempo os homens renascentistas passaram a buscar também a superação dos próprios modelos clássicos, em uma espécie de emulação. Este foi um dos temas que constituíram a querela dos antigos e modernos nos séculos XV e XVI13. A consciência da Modernidade implica uma nova concepção do tempo e, conseqüentemente, de história. Enunciar-se como moderno pressupõe a existência de um outro tempo esgotado – o passado. A construção da idéia de Modernidade permite a divisão da história em tempos de certo modo lineares, sendo dois positivos e um negativo. 10. T. E. Mommsen, “Petrarch’s Concept of the Dark Ages”, op. cit., p. 227. 11. Erwin Panofsky, op. cit., pp. 60-61. 12. “O Renascimento perturba esta emergência periódica do ‘moderno’ como oposto a antigo. Só assim a Antigüidade adquire de facto e definitivamente o sentido de cultura greco-romana pagã, positivamente conotada. O sentido célebre da passagem de Rabelais, que celebra o reflorescer dos estudos antigos: ‘agora todas as disciplinas foram restituídas...’ (livro II capítulo VIII). O moderno é exaltado através do antigo”. Jaques Le Goff, op. cit., p. 376. Theodor Mommsen comenta que é nesse momento que a Antigüidade deixa de ser associada com trevas, no sentido de seu afastamento do catolicismo, e a metáfora das “trevas” é associada com a idéia de Idade Média. T. E. Mommsen, op. cit., p. 228. 13. Aos poucos, a idéia de Antigüidade perde sua conotação de ideal inalcançável e ganha uma dimensão comparativa com os limites e possibilidades do presente. Nesse sentido, é possível desafiá-la e até superá-la, dimensão bastante clara para um Leonardo ou um Michelangelo. Cf. David Lowenthal, op. cit., pp. 76-77.

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A Antigüidade e a Modernidade separadas por um tempo ao qual só é atribuído algum significado por ficar entre os dois primeiros, um tempo intermediário – a Idade Média. Uma vez delineada a consciência do tempo que passou, o distanciamento entre ele e os tempos modernos possibilita que se lance um olhar curioso sobre os eventos já passados, tentando compreender suas lições. O moderno dissolve a força normativa da tradição, componente fundamental da visão de mundo medieval, através de uma sensação de distanciamento temporal e estranhamento14. Após essas considerações, é possível perceber como o debate de Sérgio Buarque com Eduardo França toca em um dos núcleos fundamentais da tese Visão do Paraíso. Sérgio Buarque procura analisar o universo mental do colonizador português como pautado pela contradição entre a força dogmática da tradição herdada da visão de mundo medieval e a consciência do novo e da Modernidade característica do Renascimento e, a partir dessa contradição fundamental, propõe o impasse do processo colonizador do Brasil. Ambos os historiadores percebiam que a chave do processo estava na compreensão da estrutura social e espiritual portuguesa anterior e contemporânea à colonização do Brasil. O trecho a seguir, extraído de Visão do Paraíso, pontua de forma clara a posição de Sérgio Buarque de Holanda no debate: Mas a própria hipótese, se fundada em melhores razões, de uma inspiração da Ordem de Cristo, quando esta se achava já empolgada pela Coroa, não pode simbolizar senão o poder de uma realeza absorvente e disciplinadora das vonta-

14. Idem, p. 80. Sobre a mesma questão, ver Reinhart Koselleck,“‘Modernidade’ – sobre a Semântica dos Conceitos de Movimento na Modernidade”, Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos, 2006, pp. 267-303. Sobre o desenvolvimento dessa questão na “escola de Warburg”, Carlo Ginzburg comenta: “Warburg observara que a adoção da Pathosformeln da Antigüidade, por parte dos artistas do Renascimento, implicava uma ruptura não só com a arte, mas com toda a mentalidade medieval. Panofsky e Saxl aprofundam essa intuição: a redescoberta do antigo e, particularmente das ‘formas’ da Antigüidade clássica, implica a consciência exata da ‘distância cultural entre presente e passado’, isto é, em suma, a fundação da consciência histórica moderna (the Discovery of the Modern ‘Historical System’) –, fundação que Panofsky, aqui e alhures, aproxima da descoberta renascentista da perspectiva linear [...]” Carlo Ginzburg,“De A.Warburg a E. H. Gombrich: Notas sobre um Problema de Método”, Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e História, 2. ed., 2002, p. 50.

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des individuais e que, por isso, deixa pouco lugar para a fantasia turbulenta dos heróis da Cavalaria. No que respeita esta afirmação decisiva do poder monárquico não há dúvida que Portugal amadureceu cedo: mais cedo do que a península hispânica e pode dizer-se que do resto da Europa. Todavia, se a unificação logo obtida e a sublevação popular e “burguesa”, que dera poder supremo à Casa de Avis, ajudaram largamente a mudar-lhe a fisionomia, reorganizando o sentido do moderno, isto é, no sentido do absolutismo, suas instituições políticas e jurídicas, além de abrir caminho para expansão no ultramar, não é menos certo que o deixaram ainda, por muitos aspectos, preso ao passado medieval. E a própria rapidez e prematuridade da mudança fora, de algum modo, responsável por esses resultados15.

E logo após definir os traços gerais do processo de constituição do Estado monárquico português, atribuindo de forma surpreendente os seus resultados justamente à prematuridade do fenômeno, especialmente no que tange à expansão marítima, Sérgio Buarque desenvolve sua posição: A verdade é que tinham ascendido novos homens, mas não ascenderam, com eles, suas virtudes ancestrais. Uma burguesia envergonhada de si, de seu antigo abatimento social, substituíra-se à velha nobreza, contentando-se com o acomodar-se, tanto quanto possível, aos padrões desta. E como sucede constantemente em casos tais, aferrara-se tanto mais às aparências quanto mais lhe faltava em substância. O resultado foi esse estranho conluio de elementos tradicionais e expressões novas, que ainda irá distinguir Portugal em pleno Renascimento, posto a serviço da pujança da monarquia. Melhor se diria, forçando um pouco a comparação, que as formas modernas respeitaram ali, em grande parte, e resguardaram, um fundo eminentemente arcaico e conservador. Moderna é, sem dúvida, aquela preponderância da Coroa, num tempo em que o poder real ainda luta, em outras terras, com maior ou menor êxito, por sobrepujar as vontades particularistas. Aqui, ao contrário, como encontrasse poucas resistências desse lado, a realeza lograra mobilizar em torno de si algumas energias ativas da população. Tratava-se, não obstante, de uma simples fachada, e que mal encobria os traços antiquados, sobretudo a forma mentis vinculada ao passado e avessa, por isso, à especulação e à imaginação desinteressadas do humanismo renascentista. No íntimo sempre mostrarão os portugueses pouco afeiçoados às transformações espirituais que, em muitos outros países, se operam simultaneamente com a grande obra dos navegadores do Reino. Seu conservantismo, nesse ponto, seria 15. Visão do Paraíso (versão tese), pp. 151-152 (pp. 133-134).

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semelhante ao do ermitão de um dos diálogos do Frei Heitor Pinto, para quem a verdadeira filosofia não consiste tanto no saber quanto no fazer e no amar∗ 16.

Na tese então apresentada, Sérgio Buarque de Holanda preocupou-se em mostrar como a força conservadora sustentada pela permanência de laços mentais e práticas medievais havia estruturado uma sociedade além-mar que reproduzia e adaptava essas mesmas estruturas. Por isso, Visão do Paraíso consiste em um trabalho voltado para a compreensão de um dos aspectos portugueses que condicionaram uma visão sobre o Brasil. Enfoca fundamentalmente o universo mental do colonizador, concentrando-se em sua faceta arcaizante. No que diz respeito à forma, ao sentido, o pensamento de Sérgio Buarque de Holanda e de Eduardo França confluíam, pois procuravam alguns fundamentos da história do Brasil na história primordial de Portugal. Ao mesmo tempo, o pensamento dos dois historiadores divergia em substância, especialmente em um ponto fundamental, que era o limite entre o medieval e o moderno na história de Portugal e, por extensão, do Brasil. Desse modo, não seria exagerado dizer que a crítica de Eduardo França volta-se ao fundamento da tese de Sérgio Buarque de Holanda, nos ajudando a enxergá-lo de forma mais clara. Além disso, a divergência entre os dois historiadores envolve um problema teórico de fundo que não deve passar desapercebido. Discutir os limites entre Idade Média e Renascimento em Portugal implica um posicionamento sobre o uso desse arcabouço conceitual, que tem uma longa e complexa história. Em outras palavras, aplicar a idéia de Idade Média ou Renascimento em um estudo histórico pressupõe um posicionamento sobre o significado geral desses conceitos. A questão da mentalidade arcaizante do colonizador português debatida por Sérgio Buarque e Eduardo França é a superfície palpável de um debate dos mais candentes na historiografia do período – o problema dos limites da Idade Média. A seguir, nos distanciaremos dos debates suscitados ∗

Frei Heitor Pinto, Imagem da Vida Cristã, I, p. 77 (nota de Sérgio Buarque de Holanda). 16. Visão do Paraíso (versão tese), pp. 151-152 (p. 134).

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pela argüição de Visão do Paraíso, nos aprofundando em uma análise textual pormenorizada da obra, levando essa questão teórica de fundo em consideração.

O problema dos limites da Idade Média Para Sérgio Buarque de Holanda, o homem português apoiou-se muito mais na força dogmática das lições do passado do que no poder da inovação. Seu ponto de partida é a idéia de que a ruptura entre Idade Média e Renascimento não é aplicável às circunstâncias históricas específicas da península Ibérica nos séculos XV e XVI. Em suas palavras: A noção de que existiria uma fratura radical entre a Idade Média e o Renascimento, e é em suma a noção básica de Burckardt17, tende a ser superada na moderna historiografia pela imagem de uma continuidade ininterrupta. Mas precisamente a teoria da continuidade vem reforçar a importância destes momentos que se diriam crepusculares, momentos, no caso, em que a tese da produtividade inexaurível quase orgiástica do homem e da Natureza é ainda, ou já é, sofreada por hesitações e titubeios18.

A concepção da história composta das três fases – Antigüidade, Idade Média e Renascimento – é fundada de modo claro pelo humanismo italiano e, com ele, irradiada pelo território europeu. Aos poucos, na medida em que a consciência do tempo foi se alterando entre os séculos XVI e XVIII, essa concepção de história tornou-se cada vez mais arraigada. No século XVIII, ela passou a ser empregada na estruturação de disciplinas como a história da literatura, da filosofia, da arte e da ciência, de modo que no século seguinte tornou-se a forma principal de periodização histórica nas diversas disciplinas19.

17. O sobrenome do historiador Jacob Burckhardt foi impresso de maneira equivocada no texto original. 18. Visão do Paraíso (versão tese), p. 205 (p. 188). 19. “O recurso dos humanistas ao modelo antigo delimitava o intervalo ‘bárbaro’ como um período próprio, levando – desde Petrarca – ao primeiro emprego da expressão ‘medium tempus’ [tempo médio], não mais referido ao final dos tempos. A expressão deveria

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Figura 3. Capa da tese apresentada ao Concurso para provimento da Cadeira de História da Civilização Brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1958.

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Figura 4. Capa da primeira edição de Visão do Paraíso, Rio de Janeiro, José Olympio, 1959.

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Esse tipo de periodização e a concepção que a acompanha desempenharam um papel importante na moldagem das ciências sociais na Alemanha do início do século XIX.Associados ao idealismo alemão, tais períodos da história humana passaram a operar nas explicações históricas como unidades explicativas metafísicas, espécie de espíritos de época, ou Zeitgeist. Através dessas entidades dotadas de individualidade própria era possível conceber o homem em toda sua relação com a sociedade. Essas unidades são os instrumentos teóricos que possibilitam ao historiador a passagem do estudo de casos isolados e individualizados a explicações generalizantes e científicas20. Além disso, essas unidades implicavam um encadeamento linear e progressivo, complementado por uma perspectiva cronológica auxiliar. Os três períodos citados (lembrando que não há propriamente um estilo medieval, mas sim o “Românico” e o “Gótico”) complementam-se com os subseqüentes Barroco (às vezes precedido pelo Maneirismo e sucedido pelo Rococó), Neoclassicismo e Romantismo. Também em concordância com os princípios do idealismo, cada período contém um conjunto de elementos antitéticos ao seu antecessor, de modo que o pensamento acadêmico alemão se apropriou da visão humanista que se contrapõe à Idade Média, aplicando a mesma lógica no estabelecimento da cadeia sucessória dos outros períodos. Um dos principais autores responsáveis pela sistematização da idéia de Renascimento e Modernidade e de sua contraposição à Idade Média ou

primeiramente, e de preferência, definir a própria posição como época. Difundiu-se mais tarde nos meios eruditos que se ocupavam com a história da literatura, da filosofia, das artes e ciências, mas sobretudo da geografia histórica. Depois de Petrarca passaramse cerca de trezentos anos até que as expressões latinas, ou seus equivalentes vernáculos, fossem empregados como conceitos que abarcavam um período. Parece não ter sido casualidade que um manual tenha levado Sellarius, em 1685, a dividir a história universal ‘in Antiquam et Medii Aevi ac Novam’ [em Antiga e da Idade Média e Nova], pois as expressões preparadas pelo humanismo continuavam bastante formais para oferecer um esquema de classificação abrangente. O conceito de Idade Média generalizou-se no século XVIII – quase sempre em sentido pejorativo – para transformar-se, no século XIX, em um topos fixo da periodização histórica.” Reinhart Koselleck, op. cit., p. 271. 20. Fritz Ringer, O Declínio dos Mandarins Alemães: A Comunidade Acadêmica Alemã, 1890-1933, 2000, pp. 105-106.

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Idade das Trevas no século XIX foi justamente o historiador suíço Jacob Burckhardt21. Suas reflexões sobre o Renascimento, impulsionadas por estudos anteriores como o de Michelet22, tornaram-se paradigmáticas, incorporando definitivamente esse tipo de periodização nas então emergentes ciências do espírito, especialmente a história da arte, da literatura e da filosofia23. No campo específico da história da arte, as propostas de Burckhardt foram levadas adiante por um de seus seguidores, Heinrich Wölfflin. Este abstraiu a proposta de seu mestre ao extremo, elaborando um esquema de interpretação da história da arte segundo a dualidade fundamental Classicismo/Barroco24. Seu sistema interpretativo se difundiu com a publicação do livro Conceitos Fundamentais da História da Arte (Kunstgeschichtliche Grundbegriffe). Nele, o esquema interpretativo baseado na dualidade Classicismo/Barroco desdobra-se em subtemas, como por exemplo: linear-pictórico, plano-profundidade, clareza-obscuridade, sempre condicionados à dualidade nuclear. Sérgio Buarque refere-se, no trecho citado, à insuficiência dessa visão antitética de Renascimento e Idade Média forjada no século XIX, a partir da própria visão dos humanistas sobre o suposto período que os antecedeu. Tal concepção da Idade Média está diretamente associada com a imagem de um período de declínio e de trevas, uma vez que a racionalidade da cultura clássica havia sucumbido. De certo modo, a flexibilização dessa dualidade pode ser considerada uma das articulações centrais de Visão do Paraíso. É relevante que o próprio historiador, no trecho em que se refere explicitamente ao assunto, explique sua posição remetendo-se à historiografia contemporânea (“a noção básica

21. Peter Burke, “Introdução: Jacob Burckhardt e o Renascimento Italiano”, 1991, pp. 10 e 14. 22. Além de um dos volumes da obra História da França de Jules Michelet, intitulado Renascimento, de 1855, o historiador Peter Burke indica como referência essencial para a construção da idéia de Renascimento em Burckhardt o livro de Georg Voigt, O Resplendor da Antigüidade Clássica, publicada em sua língua original em 1859. Peter Burke, op. cit., p. 12. 23. V. Jacob Burckhardt, A Cultura do Renascimento na Itália, 1991, pp. 139-210. 24. Heinrich Wölfflin, Renascença e Barroco: Estudo sobre a Essência do Estilo Barroco e sua Origem na Itália, 1989 (primeira edição publicada em alemão na Suíça em 1888).

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de Burckhardt tende a ser superada na moderna historiografia pela imagem de uma continuidade ininterrupta”). Buscando os seus principais interlocutores, não seria forçoso lembrar que a obra Literatura Européia e Idade Média Latina, de E. R. Curtius, questiona os significados e preconceitos que envolvem a idéia de Idade Média. Os esforços de Curtius contrapunham-se à associação desse período com a irracionalidade e com o desaparecimento da cultura clássica. Talvez por isso o livro de Curtius procure mapear as diversas formas de permanências da cultura clássica na Idade Média, o que lhe permite ir mais adiante em sua reflexão, concluindo que “Pela análise dos textos, fomos conduzidos à compreensão de que a Idade Média precisa ser vista em continuidade não só com a Antigüidade mas também com os Tempos Modernos”25. Pois, na ótica do filólogo alemão, é por meio de textos como A Divina Comédia, concebidos numa língua moderna e escritos por um “gênio” da mesma altura que um Shakespeare ou um Michelangelo, que “é superada a Idade Média, assim como a divisão de épocas de uma míope ciência da história. Há muito sua periodização estará esquecida, quando Dante ainda for admirado”26. A obra de E. R. Curtius dialoga diretamente com um conjunto de esforços datados da primeira metade do século XX de compreensão do processo de apropriação e difusão da herança clássica na cultura européia ocidental, protagonizada pelo historiador Aby Warburg e seus discípulos. Durante as duas primeiras décadas do século XX, Warburg escreveu e incentivou um conjunto de estudos dedicados a compreender o significado da influência dos antigos para a civilização do Renascimento do século XV27. Esses estudos foram realizados ainda sob o impacto e a influência intelectual de Burckhardt, de modo que não se propunham a negar ou abandonar a idéia de Idade Média28.

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Ernst Robert Curtius, Literatura Européia e Idade Moderna Latina, op. cit., p. 469. Idem, p. 464. Carlo Ginzburg, “De A. Warburg a E. H. Gombrich...”, op. cit., p. 44. Segundo Ginzburg: “De um lado formal (a representação do movimento das vestes e cabeleiras),Warburg remontou às atitudes fundamentais da civilização renascentista, vista, segundo os passos de Burckhardt, na sua oposição radical à Idade Média”. Idem, p. 45.

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Principalmente a partir dos anos 1930, os dois mais conhecidos discípulos de Warburg, Fritz Saxl e Erwin Panofsky, dirigiram especial atenção à relação entre Antigüidade clássica e Idade Média. Produzindo fora da Alemanha (Panofsky nos Estados Unidos e Saxl na Inglaterra), exilados pelo acirramento das disputas políticas e ascensão do nazismo, escreveram em conjunto o ensaio “Classical Mythology in Medieval Art”, no qual dão um passo definitivo no sentido de ampliar o recorte temporal do tema proposto por Warburg. Apesar de nunca terem abandonado a contraposição fundamental entre Idade Média e Renascimento, esses estudos permitiram desfazer alguns dos preconceitos longamente enraizados na história cultural do século XIX. A percepção de que o legado clássico havia sido profundo e complexo durante a Idade Média implicava abandonar sua associação com as idéias de “declínio”, “trevas” e irracionalismo, uma vez que estas tinham como pressuposto justamente a consideração de que a cultura clássica havia sido esquecida durante a Idade Média. Em seu estudo mais conhecido, originado de um conjunto de conferências proferidas em 1952 na Universidade de Uppsala e publicadas em inglês oito anos depois, Panofsky estabelece contornos definitivos ao conjunto do seu pensamento, problematizando a questão da herança clássica na Idade Média. Renascimento e Renascimentos na Arte Ocidental apresenta-se como solução à questão dos limites da dualidade Idade Média/Renascimento29. Por um lado, Panofsky sabia que a idéia de Idade Média como

29. “Ultimamente, porém, as discussões assumiram uma nova direção, existindo uma tendência crescente não tanto para rever como para simplesmente eliminar o conceito de Renascimento – que não somente não seria único como seria inexistente. Assim, por exemplo, numa obra de excelente qualidade mau grado a assunção tácita de que ‘medieval’ e ‘cristão’ são termos equivalentes, podemos ler:‘Sejam quais forem as reservas a que uma vasta análise nos possa levar, não modificamos nunca a conclusão principal, segundo a qual o humanismo clássico do Renascimento era fundamentalmente medieval e fundamentalmente cristão’. ‘Este período [o Renascimento] é apenas o caso mais célebre e brilhante dum renascimento cultural coincidente e paralelo à revivescência da cultura clássica; hoje, porém, está já suficientemente provado que foi permanente essa tendência de revivescência durante os últimos milênios da civilização ocidental’. ‘Ao menos isto teremos de admitir: o grande Renascimento não foi tão

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“idade das trevas” se mostrava insustentável. Por outro, discordava da idéia de que o Renascimento não representava uma ruptura com o período anterior. Assim, Panofsky não descartava a tradição interpretativa que remontava a Burckhardt e fora continuada por Warburg30. Os “renascimentos” significavam os momentos de revalorização da cultura clássica que ocorreram durante a Idade Média. Graças a eles essas tendências foram conservadas e puderam eclodir anos depois, com o grande Renascimento do século XV, principalmente nas regiões da Toscana e de Flandres. Não é casual que a obra mais conhecida de E. R. Curtius tenha sido dedicada a Aby Warburg. Em artigo publicado em 1966, Carlo Ginzburg sugere uma correspondência entre a Pathosformeln warburguiana e a topologia de E. R. Curtius31. Ginzburg afirma, entretanto, que não conhecia efetivamente bem qual seria a ligação entre os dois intelectuais alemães. O que é possível dizer é que, mesmo indiretamente, Curtius seguiu as sendas abertas por Warburg e as desenvolveu em um campo de estudos distinto, mas aparentado da história da arte – a história da literatura. Talvez Curtius se sentisse devedor de Warburg especialmente no que diz respeito ao seu papel central na revigoração dos estudos clássicos e de sua aplicação na compreensão de períodos como o Renascimento. Ademais, Curtius aproximavase no tempo e nos temas em comum com os discípulos diretos de Warburg, como Saxl e Panofsky, na medida em que estes ampliaram o quadro de reflexões do mestre, incluindo uma preocupação com a difusão e permanência da herança clássica na Idade Média. A tópica, nesse sentido, é uma ferramenta que possibilita o enfoque dos laços de continuidade entre “as luzes” e as “trevas”. único como parecia aos humanistas e aos seus discípulos modernos, já que durante a Idade Média existiram revivescências intelectuais que partilhavam das mesmas características do movimento mais conhecido do século quinze’. E, finalmente, ‘Não há nenhuma linha divisória entre a cultura ‘medieval’ e a cultura do ‘Renascimento’’”. Erwin Panofsky, op. cit., p. 25. 30. Carl Landauer, “Erwin Panofsky and the Renascence of Renaissance”, 1994, pp. 264-266. 31. Carlo Ginzburg, “De A. Warburg a E. H. Gombrich...”, op. cit., p. 45.

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Muito antes de seus discípulos procurarem ressaltar a permanência da Antigüidade na Idade Média,Warburg já havia traçado um caminho inverso, voltando à dualidade estabelecida no século XIX da “luz” e “sombra” ou, em outras palavras, do apolíneo e do dionisíaco. Enquanto seus discípulos lutavam para encontrar o que havia de apolíneo na Idade Média, o mestre dedicou boa parte de sua vida tentando decifrar o que havia de dionisíaco no Renascimento. Nessa perspectiva,Warburg aproximava-se mais de Nietzsche do que de seu amigo e colega da Universidade de Basiléia, Burckhardt, uma vez que o primeiro dedicou parte de sua obra a compreender os aspectos dionisíacos da própria Antigüidade32. Nas palavras de Ginzburg, ao comentar um perfil biográfico de Warburg elaborado por Saxl: A repentina decisão de empreender, ainda jovem, uma viagem entre os índios pueblos do Novo México – um “desvio”, aparentemente – colocou-o em contato com um mundo de emoções primitivas e violentas que, a seguir, influenciou sua interpretação sobre a Antigüidade e o Renascimento. O estudo da astrologia e da magia nos séculos XV e XVI se entrelaçou dramaticamente à loucura em que mergulhou por muitos anos – como se o esforço para dominar racionalmente estas forças ambíguas, ligadas em parte à ciência, em parte a um mundo obscuro e demoníaco, exigisse uma trágica compensação no plano biográfico33.

A viagem de iniciação nos moldes clássicos do século XIX lhe permitia um encontro com um passado europeu praticamente extinto pelo rolo compressor desenfreado da modernidade e da racionalização. Era necessário um novo batismo feito no mundo do dionisíaco, do irracional e do sombrio para compreender bem suas próprias raízes. A inserção da idéia de “dionisíaco” no pensamento europeu é um tema bastante complexo, pois sua afirmação se relaciona com a emergência das correntes irracionalistas na segunda metade do século XIX. Em muitos sentidos, ele implica o colapso da razão cartesiana e da crença nos benefícios sem par do progresso. Escrevendo nesse período, Nietzsche diagnosticou uma profunda crise no campo do conhecimento

32. V. Friedrich Nietzsche, O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo, 2001. 33. Carlo Ginzburg, “De A. Warburg a E. H. Gombrich...”, op. cit., p. 43.

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científico. Em sua reflexão, a ilusão iluminista da razão e da ciência havia tornado o conhecimento demasiadamente rígido, pouco sensível aos problemas reais da sociedade. A história, por exemplo, havia perdido seu sentido, pois, com seu afã cientificista, afastava-se da vida presente e do conhecimento crítico do passado34. Com o desenrolar da Primeira Guerra Mundial e a revelação do lado negativo do progresso e do desenvolvimento técnico, essa postura transformou-se em uma sensação difundida de declínio e insatisfação com os rumos da civilização. No campo das ciências tal situação levou a várias revisões. Nas ciências humanas, especificamente, seus desdobramentos seguiram uma tendência relativista, evitando ao máximo leis gerais e abstratas, características da estrutura epistemológica das ciências naturais. Ademais, não se poderia admitir a existência de princípios universais e, por isso, válidos em qualquer circunstância ou em qualquer lugar. Enfim, a nova epistemologia das ciências humanas deveria erigir-se contra o positivismo35. A ciência histórica teria um 34. O pensamento europeu da primeira metade do século XX elaborava sua resposta ao seguinte dilema diagnosticado por Nietzsche:“A constelação se transformou realmente e, por isso, por meio da ciência e pela pretensão de fazer da história uma ciência. E assim não é mais a vida que domina o conhecimento do passado.Todos os limites foram destruídos e tudo o que existiu outrora se precipita sobre o homem. As perspectivas se deslocam para a noite dos tempos, ao infinito, onde quer tenha existido um transitório. Nenhuma geração viu semelhante espetáculo que não pode ser dominado pelo olhar, e que nos é oferecido pela história, a ciência do ‘devenir’ universal. É verdade que ela exibe com a perigosa audácia de sua divisa: Fiat veritas, pereat vita.” Friedrich Nietzsche,“Considerações Inatuais”, p. 64. A questão proposta por Nietzsche ressoa em boa parte da historiografia de finais do século XIX e do século XX. Em uma obra paradigmática como a Apologia da História, por exemplo, esse questionamento é metaforizado numa pergunta ingênua de uma criança ao pai – “para que serve a história?”; tentando responder essa pergunta inicial o narrador constrói sua obra. Arriscando uma interpretação sobre a metáfora fundamental criada por Marc Bloch, seria interessante observar que os laços de parentesco e autoridade envolvidos num questionamento de filho para pai podem ser estendidos para a relação entre o conhecimento produzido por Bloch e os paradigmas do conhecimento no século XIX.Ver Marc Bloch, Apologia da História ou o Ofício do Historiador, op. cit., p. 41. 35. Na análise de Iggers: “No final do século XIX, a imagem positivista do homem e do próprio universo passou a ser criticada de muitas e diferentes perspectivas. Os novos psicólogos (Freud e Jung), os filósofos (Nietzsche, Dilthey, Bergson), os poetas e romancistas (Baudelaire, Dostoiévsky e Proust), todos revelaram o caráter essencialmente irracional do homem. Antes, os historiadores e cientistas sociais

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papel primordial nessa renovação. Por meio dela, se poderia compreender o caráter único e particular dos fenômenos sociais, dissolvendo qualquer tentativa de elaboração de leis gerais ou explicações mecânicas. O tempo e o caráter processual das mudanças deveriam servir de base para qualquer análise. Também é necessário lembrar que o desenvolvimento da idéia de Modernidade no século XIX foi diretamente associado ao surgimento da racionalidade. A palavra modernidade, nesse sentido, referia-se ao processo de laicização das práticas públicas e redefinição da esfera do privado que caracterizam a dinâmica das sociedades modernas36. A Idade Moderna e o Renascimento ganham assim status de berço do conjunto de mudanças próprios dos novos tempos encabeçadas pela descoberta do Novo Mundo, pela Reforma, pela formação da idéia de indivíduo, pela ciência moderna e pelo capitalismo. Assim,Warburg representava, nas primeiras décadas do século XX, uma tendência de contornos efetivamente modernistas, baseada na tentativa de estudo de fenômenos históricos não compreensíveis segundo os parâmetros da racionalidade cartesiana moderna. Essa tendência desdobrava-se no campo dos estudos históricos penetrando de forma crítica

cada vez mais orientavam seus trabalhos em relação à questão do que constituía a sociedade ou a história; agora, eles passaram a se perguntar se seria possível uma ciência da história ou da sociedade.Tendiam a encarar todo conhecimento que fosse além das construções baseadas em dados empíricos como alterados pela subjetividade humana. A solução para todas as questões finais tornou-se impossível; o abismo entre o mundo do ser e o mundo do significado estava completo. O colapso da imagem newtoniana do universo físico na virada do século (XVIII para XIX), e a construção de sistemas geométricos não-euclidianos pareciam enfatizar ainda mais as limitações do conhecimento humano. Qualquer interpretação da realidade, além da interpretação baseada na indução pura e simples, era condenada como poesia ou imaginação. Acreditava-se que a dependência pura e estrita de dados empíricos revelariam um universo essencialmente desprovido de significados. Em um certo sentido, o ataque ao positivismo levou o positivismo ao seu extremo ao destruir seus pressupostos metafísicos remanescentes.” George G. Iggers, The German Conception of History: The National Tradition of Historical Thought from Herder to the Present, 1983, pp. 124-125 (tradução do autor). Sobre a mesma questão, ver Stuart Hughes, Consciousness and Society: The Reorientation of European Social Thought, 1890-1930, 1961. 36. Jürgen Habermas, “A Consciência de Tempo da Modernidade e sua Necessidade de Autocertificação”, O Discurso Filosófico da Modernidade, 2002, pp. 3-5.

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nas especialidades clássicas – a concepção da história unitária dividida em épocas sofreu fortes abalos em contraposição a uma história plural que incorporava métodos e soluções de outras ciências sociais. Essa revisão profunda nos fundamentos epistemológicos das ciências humanas foi prenunciada pelo pensamento alemão de fins do século XIX, especialmente por Nietzsche, e desenvolvida por Wilhelm Dilthey e os neokantianos, Heinrich Rikert e Wilhelm Wildelband. A revisão historiográfica no contexto alemão espalhou-se rapidamente a seus países vizinhos, impulsionando um forte movimento de renovação nos estudos históricos. No campo dos estudos medievais, o impulso renovador foi representado por dois jovens historiadores que despontaram nos anos 1910 e publicaram seus principais livros alguns anos depois. O primeiro livro foi O Crepúsculo da Idade Média37, publicado em holandês pelo historiador Johan Huizinga em 191938. Como o próprio Sérgio Buarque de Holanda mencionou em trecho já destacado neste capítulo, Huizinga mirava um desses momentos crepusculares – o final da Idade Média, período da história européia entre os séculos XIV e XV no qual nasce uma nova sensibilidade do homem no mundo (“a teoria da continuidade vem reforçar a importância destes momentos que se diriam crepusculares, momentos, no caso, em que a tese da produtividade inexaurível quase orgiástica do homem e da Natureza é ainda, ou já é, sofreada por hesitações e titubeios”). Seu enfoque recai sobre as experiências religiosas, a imaginação, o amor, temas que costumavam passar ao largo da racionalidade

37. A tradução mais conhecida para língua portuguesa do livro de Huizinga, feita por Augusto Abelaira a partir do inglês, foi publicada em Portugal pela editora Ulisseia. No Brasil, em co-edição entre Edusp e a editora Verbo, optou-se em utilizar no lugar da palavra “crepúsculo” a palavra “declínio”, pois a tradução para língua inglesa feita sob os auspícios do próprio autor em 1924 utiliza a palavra inglesa waning, que pode significar tanto o fenômeno natural do crepúsculo quanto o movimento abstrato do declínio. A opção pela palavra “crepúsculo” se deu de acordo com a tradução que o próprio Sérgio Buarque sugere ao referir-se a “momentos crepusculares”, muito embora o original holandês utilize a palavra Herfstij, que significa literalmente “outono”. 38. Para uma aproximação entre Huizinga e Sérgio Buarque, especialmente em relação à obra Raízes do Brasil, ver Edgard S. de Decca, “Raízes do Brasil: Um Ensaio de Formas Históricas”, 2000.

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científica. Um dos núcleos da discussão de Huizinga é a questão do nascimento da Modernidade e da racionalidade. Para ele, não se pode estabelecer uma relação direta entre as reapropriações da cultura clássica e a Modernidade39. Nesse sentido, seu livro desenha o Renascimento como movimento contraditório e progressivo, procurando matizar e até negar a idéia de rompimento com a Idade Média40. O segundo jovem historiador que se destacou nesse contexto foi o francês Marc Bloch, com sua obra Les rois thaumaturges – étude sur le caractère surnaturel attribué à la puissance royale, particulièrement en France et en Angleterre, em 1924. Nesse livro, Bloch voltou-se ao estudo dos aspectos religiosos e míticos da história européia, mostrando como elementos considerados irracionais, como as crenças em torno do poder mágico dos monarcas europeus, impulsionaram ações humanas concretas, bem como a estruturação e legitimação do poder monárquico na França. Assim como nas iniciativas de Warburg, procurava-se juntar estilhaços de uma consciência histórica intangível segundo os padrões da sociedade industrial e da racionalidade ocidental.A cura das escrófulas e da epilepsia pelos monarcas era, na realidade, algo “cientificamente” impossível – “um erro coletivo”41. No entanto, acessando outros modos de conceber o mundo, universo de crenças e mitos que foram reais, talvez se pudesse “fazer história com aquilo que, até o presente, era só anedota”42. Incorporar novos temas que até então eram considerados meras anedotas era apenas um modo didático de propor uma história que não fosse apenas estruturada na racionalidade dos procedimentos científicos

39. Johan Huizinga, The Waning of the Middle Ages, 1999, pp. 306-308. 40. Um ano após a primeira edição do O Crepúsculo da Idade Média, Huizinga formula de modo definitivo sua crítica à idéia de Renascimento afirmada por oposição radical à Idade Média, como sinônimo de trevas e negatividade. Johan Huizinga,“El Problema del Renacimiento”, El Concepto de la Historia, pp. 129-155. Seria interessante estudar mais detalhadamente como a reflexão do historiador holandês, iniciada em seu livro de 1919 foi se tornando cada vez mais conceitual, chegando, no final dos anos 1920, a um questionamento dos critérios e das práticas da divisão da história em períodos como os advindos da história da arte. Cf. Johan Huizinga, “Problemas de Historia de la Cultura”, El Concepto de la Historia, 1992, pp. 71-83. 41. Marc Bloch, Os Reis Taumaturgos, 1993, p. 27. 42. Idem, p. 43.

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clássicos. A nova disciplina deveria ser flexibilizada, evitando grandes generalizações e esquemas a priori; deveria buscar na historicidade e na unicidade dos fenômenos históricos as categorias de sua intelecção. Para isso, era preciso um esforço para se despir dos valores e condicionamentos da sociedade urbana e industrial européia e penetrar no mundo dos fragmentos e vestígios de sociedades praticamente extintas. Esses vestígios poderiam estar tanto nos mais variados documentos históricos como nos redutos que ainda não haviam vivenciado intervenções radicais das sociedades industriais. Em vez de propor grandes fórmulas interpretativas, o historiador mobilizava esses vestígios, tentando ele próprio vivenciá-los, ajustando seus valores, seus condicionamentos culturais e seus sentidos ao passado. Anos depois, o próprio Bloch estabeleceria a noção de “vestígio” como um elemento fundamental do estatuto epistemológico da história. Os vestígios são dados empiricamente perceptíveis do presente que permitem uma análise regressiva do passado43; eles são uma espécie de referência dual entre o passado e o presente, como sugeriu um historiador contemporâneo na análise de uma noção análoga44. A história poderia ser concebida como uma ciência, pois seu ponto de partida são dados concretos presentes e não idealizações ilusórias de um passado imaterial. Nesse sentido, a função da viagem expedicionária no final do século XIX adquiriu a função de proporcionar um estranhamento que consiste na produção de novas experiências.Viagens que poderiam ser feitas desde no interior do próprio país de origem, como em remotos povoados na França, até no México, como fez Warburg, ou no Brasil, como fizeram Claude Lévi-Strauss e Fernand Braudel45. A vivência do viajante produzida pela diferença fundamentalmente espacial entre seu

43. Marc Bloch, Apologia da História ou o Ofício do Historiador, op. cit., pp. 72-73. 44. A noção de “artefato” trabalhada pelo historiador David Lowenthal parece ser semelhante aos “vestígios” de Bloch.Ver David Lowenthal, op. cit., pp. 239-252. 45. O papel da viagem como experiência temporal no início do século XX foi explorado por François Hartog em análise do percurso de Lévi-Strauss na introdução do livro Anciens, modernes, sauvages.

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lugar de origem e o lugar visitado metaforizaria o tempo, pois produz uma sensação de que o viajante acessa o passado de sua civilização46. Intelectuais como Huizinga, Bloch e Warburg vivenciaram o ambiente de crítica ao racionalismo e positivismo de antes da Primeira Guerra Mundial e, posteriormente, formularam concepções de história atentas a significados de um mundo pré-industrial no qual as crenças e os mitos tinham papel fundamental. Isso implicava a revisão de certos temas em comum, tais como a da idéia de Idade Média como lugar desinteressante, de trevas e de irracionalidade. No outro extremo, foi necessário rever o Renascimento como sinônimo de racionalidade e equilíbrio. De um modo geral, tais historiadores repensaram a pertinência desses conceitos e, abandonando-os ou não, procuraram ressaltar as continuidades entre os dois períodos. Warburg e parte do grupo de intelectuais que o cercava chegaram a dedicar-se, por exemplo, a esmiuçar os aspectos religiosos e míticos e a formação da ciência moderna, tema no qual se envolveu particularmente o filósofo Ernst Cassirer47. Independentemente se conheceu Warburg ou se leu neste prisma a obra de Curtius, é possível dizer que Sérgio Buarque de Holanda, ao longo de sua vida, dialoga intensamente com tal contexto historiográfico. Nos anos 1930 o historiador brasileiro teve forte contato com o pensamento acadêmico europeu, em especial o alemão. Com o acirramento das perseguições nazistas e fascistas na Europa houve um deslocamento do eixo desses debates especialmente para os países de língua inglesa48. Não custa lembrar que até a importante biblioteca de Aby Warburg foi transportada da cidade alemã de Hamburgo à Inglaterra, onde foi incorporada à Universidade de Londres49. O 46. Esse tipo de articulação tem um forte ranço imperialista pois o viajante hierarquiza a diferença entre seu lugar de origem e o local visitado em uma linha temporal evolutiva. Como observou Ginzburg, as ferramentas de domínio de uma sociedade pela outra são, ao mesmo tempo, as ferramentas cognitivas que permitem sua superação. Carlo Ginzburg, Relações de Força, 2002, pp. 132-135. Sobre o mesmo tema em estudo específico dos relatos de viagem, ver Mary Louise Pratt, Olhos do Império: Relatos de Viagem e Transculturação, 1999. 47. Como por exemplo na obra Ernst Cassirer, A Filosofia das Formas Simbólicas, op. cit. 48. Carl Landauer, op. cit., pp. 255-256. 49. Fritz Saxl, “The History of Warburg’s Library”, 1986, pp. 336-337.

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deslocamento de eixo nos debates sobre o Renascimento culminou nos anos 1950 com a fundação de associações como a Renaissance Society em 195450 e a organização de encontros e congressos internacionais, como o ocorrido no Metropolitan Museum of Art de Nova York durante o ano acadêmico de 1951-195251. Visão do Paraíso marca a posição de Sérgio Buarque de Holanda em um debate acadêmico bastante intenso que ocorria nos anos 1950, pautado pelo questionamento sobre a existência e a pertinência das categorias Idade Média e Renascimento. Como exemplo, lembramos trabalhos de intelectuais como Erwin Panofsky, Eugenio Garin, Delio Cantimori, Federico Chabod e Oscar Kristeller52. Podemos afirmar, ademais, que o historiador brasileiro aproxima-se da tendência historiográfica exemplificada pelos percursos de Warburg e seus discípulos, propondo uma visão de continuidade entre Idade Média e Renascimento, particularmente no que diz respeito à permanência de uma visão de mundo sensível ao episódico e ao mitológico; em suas palavras: Não é inteiramente justo pretender-se, e houve no entanto quem o pretendesse, que o ocultismo da Idade Média se reduz à baixa magia dos bruxedos, ao passo que a grande magia pertence de fato ao Renascimento. E todavia parece exato dizer-se que durante a era quinhentista e ao menos até Giordano Bruno e Campanella, se não mais tarde, as idéias mágicas se encontram à origem da mais conhecida literatura filosófico-teológica. Não tem mesmo faltado ultimamente quem procurasse assinalar a íntima relação existente entre as operações mágicas e a própria ciência experimental dos séculos XVI e XVII. Por mais que um Bacon, por exemplo, tivesse procurado eliminar de seu sistema, as fábulas, maravilhas, “curiosidades” e tradições, a verdade é que não logrou sustar a infiltração nele de princípios dotados de forte 50. Delio Cantimori, “La Periodizzazione dell’età del Rinascimento”, 1971, p. 555. 51. Carl Landauer, op. cit., p. 259. 52. Erwin Panofsky, “Renascimento: Autodefinição ou Autodecepção?”, Renascimento e Renascimentos na Arte Ocidental, 1981, pp. 17-68; Eugenio Garin, “Interpretazioni del Rinascimento”, 1998, pp. 85-102; Delio Cantimori, “La periodizzazione dell’età del Rinascimento”, op. cit., originalmente publicado em 1955, na ocasião do X Congresso Internacional de Ciências Históricas; Paul Kristeller, The Classics and the Renaissance Thought; Federico Chabod,“Existe un Estado del Renacimiento?”, 1990, pp. 523-548 (publicado originalmente no biênio 1957-1958).

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sabor mágico e ocultista. E embora sem poupar acres censuras à Astrologia, por exemplo, chega a admitir, não obstante, que essa arte há de depurar-se apenas de excessos e escórias, mas não deve ser inteiramente rejeitada. [...] Mas quem, como o próprio Decartes, ousou confessar sua incapacidade de discorrer sobre experiências mais raras antes de conseguir investigar ervas e pedras miraculosas da Índia, ou de ver a ave Fênix e tantas outras maravilhas exóticas, e além disso se valeu de lugares-comuns tomados da magia natural, para abordar segredos cuja simplicidade e inocência nos impedem de admirar as obras dos homens, não pode ser considerado tão radicalmente infenso a tal ou qual explicação oculta de fatos empíricos. E as causas fornecidas para as propriedades do ímã e do âmbar por um espírito como o seu, que tinha em mira dar motivos racionais e mecânicos para fenômenos supostamente ocultos, já puderam ser interpretados como de molde a animar, e não a destruir, a crença na existência de tais fenômenos∗ 53.

Por mais paradoxal que possa parecer, a ciência moderna funda-se tendo como base lugares-comuns de tradições pautadas por magia e “superstição” que remontam a permanências de uma visão de mundo de matriz medieval. Logo em seguida, Sérgio Buarque conclui: Assim, as mesmas correntes espirituais que irão desembocar a seu tempo na negação do sobrenatural, passando sucessivamente pelo naturalismo, o racionalismo, o agnosticismo e enfim pelo ateísmo sem rebuço ou temor, parecem ocupadas, num primeiro momento, em retardar o mais possível, e por estranho que pareça, em contrariar a marcha no sentido da secularização crescente da vida: meta necessária, posto que não hesitam em ataviar, idealizar ou querer superar a qualquer preço o espetáculo mundano. Propondo-se uma realidade movediça e ativa, rica em imprevistos de toda sorte, elas destoam abertamente do tranqüilo realismo daqueles que, ancorados na certeza de ditosa e perene, ainda que póstuma, consentem em aceitar o mundo atual assim como se oferece aos sentidos, e se recusam a vesti-lo de galas vãs54.

Ao estudar a continuidade das práticas medievais no século XVI português, Sérgio Buarque de Holanda não se referia a um fenô∗

Lynn Thorndike, “The Attitude of Francis Bacon and Decartes towards Magic and Occult Sciences”, Science, Medicine and History, I, pp. 451-454 (nota de Sérgio Buarque de Holanda). 53. Visão do Paraíso (versão tese), pp. 6-7 (p. 4). 54. Idem, ibidem.

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meno exclusivamente português ou ibérico. Na realidade, procurava incorporar um dos temas candentes da historiografia contemporânea em uma reflexão sobre os aspectos culturais portugueses que se enraizaram na colônia. A própria história da racionalidade científico-empírica moderna, seja em sua filosofia, biologia e sobretudo medicina, contém alguns fragmentos, rastros da magia e crenças populares, ou seja, daquilo que ela própria procurou enxergar como seu oposto (como tratam o segundo e o terceiro parágrafos do trecho mencionado anteriormente). Como observou Laura de Mello e Souza a partir de reflexão do historiador inglês Hugh Trevor-Roper, o período mais atribulado de caça às bruxas e da perseguição inquisitorial – entre a segunda metade do século XVI e as primeiras décadas do século seguinte – é contemporâneo a períodos da vida de pensadores como Bacon, Montaigne e Descartes55. Como veremos adiante, essa perspectiva busca questionar historicamente o significado das idéias de realidade e fantasia pelo prisma da experiência. Assim como em Bloch, o critério para pensar-se os limites entre o real e o maravilhoso passa a ser a consciência dos atores históricos, seus valores e horizonte mental56. Era necessário conceber o período correspondente ao final da Idade Média e o início da Moderna na perspectiva de um processo de confluência e acomodação das tradições de pensamento medievais árabes e cristãs em meio a refluxos da cultura clássica57. Constitui-se desse 55. Laura de Mello e Souza, “Idade Média e Época Moderna: Fronteiras e Problemas”, op. cit., p. 236. 56. Não é surpreendente que historiadores da primeira metade do século XX tenham escolhido a religiosidade como tema de seus estudos. Esta propiciava uma abordagem modelar em relação à reflexão sobre o novo estatuto epistemológico da história, pois pressupõe uma relação direta entre a consciência e a experiência dos atores históricos analisados e a vivência do historiador. De certa forma, o ritmo particular, vagaroso, das mudanças na sensibilidade religiosa ocidental, facilitava a transformação de fragmentos do passado em relatos de experiências ainda vivas – mesmo que em uma longínqua ilha do Atlântico ou num minguado povoado provençal. Visão do Paraíso, por sua vez, enfoca um tema eminentemente religioso; mais do que isto, bíblico. 57. “Na primavera da Idade Moderna, quando à tradição medieval árabe e cristã se alia a do mundo clássico, agora ressuscitada, povoando o céu de ‘imagens onde se transfiguram, ganhando novas forças, as crenças mitológicas da Antigüidade’, longe de chegarem

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modo um quadro flexível de integração de correntes mitológicas e de formação do racionalismo. A idéia de que a natureza consiste em um conjunto de símbolos e códigos a serem decifrados, concepção caracteristicamente medieval, segundo Sérgio Buarque persiste na Idade Moderna, uma vez que não é contraditória ao neoplatonismo humanista58. Em suas palavras: Esse modo de pensar só começará a ser completamente liquidado a partir do século XVIII, quando o mundo principia a ser interpretado, de preferência, segundo critérios fornecidos pelas Matemáticas. [...] Durante todo o Renascimento e ao longo do século XVII, a tendência para se procurarem em todas as coisas os significados ocultos, longe de construir uma especialidade hispânica e sobretudo castelhana, estava generalizada no mundo ocidental59.

Ao mesmo tempo em que as análises do historiador brasileiro representam um diálogo com temas significativos da historiografia internacional, implicam uma resposta particular a um contexto de discussões comuns a todos os historiadores citados – a crise do racionalismo científico promovida por pensadores ocidentais desde finais do século XIX. Esta crise possibilitou um distanciamento em relação ao racionalismo, transformando ele próprio em um objeto passível de análises históricas que adotavam como contraponto, de modo geral, a religião e a consciência mítica. Dentro desse quadro se poderia pensar a história de Portugal e do processo exploratório de suas colônias, que certamente guardavam uma série de especificidades. O homem português da época dos des-

a desfalecer é ao contrário um recrudescimento o que conhecem algumas dessas disciplinas.” Visão do Paraíso (versão tese), p. 4 (p. 2). 58. “Essa visão simbólica da Natureza, que já nos primeiros séculos cristãos fora largamente representada pelos padres da Igreja, não era menos familiar aos homens da era dos grandes descobrimentos marítimos ou mesmo do século XVII. Os próprios humanistas, sem embargo de sua repulsa a tantas opiniões cultivadas na Idade Média, pode dizer-se que a favoreceram, mais do que a combateram: das tendências platônicas e principalmente neoplatônicas a que se achavam filiados em sua maioria, dificilmente se poderia esperar outra coisa.” Idem, p. 216 (pp. 197-198). 59. Idem, p. 246 (p. 225).

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cobrimentos marítimos era particularmente ligado a concepções ainda medievais, desde seu universo cultural até suas práticas colonizadoras mais correntes. No que diz respeito à sua visão de mundo, o homem português privilegia fundamentalmente a experiência sensível. Segundo Sérgio Buarque de Holanda: Nada fará melhor compreender tais homens, atentos, em regra geral, ao pormenor e ao episódico, avessos, quase sempre, a induções audaciosas e a delirantes imaginações do que lembrar, em contraste com o idealismo, com a fantasia e ainda com o senso de unidade dos renascentistas, o pedestre “realismo” e o particularismo próprio da arte medieval, principalmente em fins da Idade Média. Arte que até as figuras de anjos parecem renunciar ao vôo, contentando-se com gestos mais plausíveis e tímidos (o caminhar, por exemplo, sobre pequenas nuvens, que lhe servem de sustentáculo, como se fossem corpóreas), e onde o milagroso se exprime através de recursos mais convincentes que as auréolas e nimbos, tão familiares a pintores de outras épocas∗ 60.

Desse modo, Sérgio Buarque de Holanda esclarece que o apego ao concreto, que aparentemente poderia ser interpretado como um elemento embrionário do empirismo característico da Modernidade, é, pelo contrário, um elemento arcaizante típico do momento de crepúsculo da Idade Média61. Esse “realismo pedestre” marca os mais significativos relatos de viagem sobre a nova colônia no sul do Equador e persiste em suas primeiras crônicas, desde Gandavo até pelo menos Frei Vicente do Salvador62.



Cf. Heinrich Wölfflin, Classic Art, pp. 222 e ss. – Sobre o senso de unidade introduzido pela arte renascentista em contraste com a dos fins da Idade Média, veja-se ainda, do mesmo autor Kunstgeschichtliche Grundbegriffe, a pp. 180 e ss., e passim, em particular toda quarta seção desta obra, onde são minuciosamente examinadas, segundo um critério estilístico, as “categorias” antitéticas de Multiplicidade e Unidade (nota de Sérgio Buarque de Holanda). 60. Visão do Paraíso (versão tese), p. 4 (p. 2). 61. “O que, ao primeiro relance, pode passar por uma característica ‘moderna’ daqueles escritores e viajantes lusitanos – sua adesão ao real e ao imediato, sua capacidade, às vezes, de meticulosa observação, dirigida, quando muito, por algum interesse pragmático – não se relacionaria, ao contrário, a um tipo de mentalidade já arcaizante para a sua época, e ainda submisso a padrões longamente ultrapassados pelas tendências que reanimam o pensamento dos humanistas e, em verdade, de todo o Renascimento?” Idem, p. 3 (p. 1). 62. Idem, pp. 7-8 (p. 5).

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Essa tendência portuguesa está em certo desacordo com a impactante reação dos europeus frente aos primeiros relatos de viagens ao Novo Mundo. Desde Colombo pode-se perceber uma leitura sistemática da natureza do Novo Mundo sob o prisma da maravilha e do mistério, e as notícias que chegavam à Europa serviam de grande estímulo à imaginação mítica do homem renascentista. O próprio navegador genovês demonstrava plena convicção de que a Providência lhe guiara ao Paraíso terreal63. Segundo Sérgio Buarque: A parte que cabe aos portugueses nas origens da geografia fantástica do Renascimento acha-se, realmente, em nítida desproporção com a multíplice atividade de seus navegadores. Sensíveis, muito embora, às louçanias e gentilezas dos mundos remotos que a eles se vão desvendando, pode dizer-se, no entanto, que ao menos no caso do Brasil, escassamente contribuíram para a formação dos chamados mitos da conquista. A atmosfera mágica de que se envolvem para o europeu, desde o começo, as novas terras descobertas, parece assim rarefazer-se à medida que penetramos na América lusitana. E é quando muito, à guisa de metáfora, que o enlevo ante a vegetação sempre verde, o colorido, variedade e estranheza da fauna, a bondade dos ares, a simplicidade e a inocência das gentes – tal lhes parece, a alguns, essa inocência, que dissera-o já Pero Vaz de Caminha, “a de Adão não seria maior quanto a vergonha”∗, pode sugerir-lhes a imagem do Paraíso Terrestre64.

As imagens sem par do Novo Mundo causavam no viajante português um sentimento de estranhamento, uma falta completa de capacidade de descrição daquelas novas paisagens segundo sua mentalidade pouco afeita a grandes fantasias. Para compreender e descrever essas cenas restava-lhe recorrer à força normativa de sua tradição cultural, em detrimento de seu limitado cabedal de experiências próprias. Segundo Sérgio Buarque, esse tipo específico de realismo e apego ao concreto poderia dever-se a dois fatores: ou porque a longa experiência marítima lusitana anterior à chegada ao Brasil tivesse “amortecido neles a sensibilidade para o exótico”, ou porque a atenção dos portugueses 63. Idem, p. 19 (p. 15). ∗ Jaime Cortesão, A Carta de Pero Vaz de Caminha, p. 239 (nota de Sérgio Buarque de Holanda). 64. Visão do Paraíso (versão tese), p. 10 (p. 7).

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aquela época estava demasiadamente concentrada nos negócios com o Oriente, de modo que os novos territórios na América tenham sido relegados a um segundo plano65. Assim, é possível dizer que os portugueses “podiam admitir o maravilhoso, e admitiam-no até de bom grado, mas só enquanto se achasse além da órbita de seu saber empírico”66. Além disso, para se admitir a validade das lições dos antepassados, era necessário que elas fossem sobretudo plausíveis. Mesmo que se tratassem de absolutas inverdades, a mentalidade portuguesa da época dos descobrimentos poderia aceitar como real algo que simplesmente fosse verossímil. Desse modo, a fantasia, moldada nos limites do plausível, produz experiências concretas passíveis de serem estudadas pelo historiador, como fez, por exemplo, Marc Bloch ao estudar o poder taumatúrgico dos reis franceses e ingleses. Não demoraram os portugueses, logo após a sua chegada, em buscar riquezas em ouro e diamantes no sertão do território descoberto a partir de muitas crenças e relatos que se multiplicavam a cada ano, especialmente com a chegada das notícias das minas de ouro e prata na América espanhola. Por mais que ninguém houvesse encontrado tais minas, a verossimilhança dessas informações, somada à ganância por riquezas facilmente encontráveis, era capaz de convencer até aos mais incrédulos. Nas palavras do autor, ao discutir os vários possíveis caminhos propostos em relatos de viajantes ou cronistas para as minas de ouro na América portuguesa: Todas essas aparentes precisões e clarezas lançadas sobre coisa tão turva, provinham de uma convicção originada até certo ponto em dados reais ou possíveis. Por outro lado não deixavam elas de comportar elementos fantásticos, que um lento processo de sedimentação lhes agregara no fio dos anos. Mesmo em São Paulo, sem embargo do esquecimento em que pareceu jazer ao tempo de Fernão Dias Pais, a geografia fantástica, suscitada desde cedo nas capitanias do Centro pelas vagas notícias de tesouros opulentos que andariam encobertos no fundo do sertão, tivera seus fiéis em outras épocas. Nas épocas,

65. Idem, p. 1 (p. 1). 66. Idem, p. 8 (p. 5).

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sobretudo, em que se achara a capitania sujeita ao governo de D. Francisco de Souza. Era natural, aliás, que a tentativa de mudança para aquelas partes do Sul de iniciativas oficiais de descobrimento de minas preciosas também acarretasse o deslocamento no mesmo sentido de todo arsenal de imagens miríficas que forneciam um décor apropriado ao fabuloso das riquezas esperadas ou pressentidas67.

Sérgio Buarque nomeou essa estrutura mental característica do homem português quinhentista com a expressão “atenuações plausíveis”. É possível afirmar que as “atenuações plausíveis” caracterizam todo um eixo de discussões de Visão do Paraíso particularmente dedicadas à comparação do desenvolvimento dos mitos ligados à conquista e à exploração da América portuguesa e da América espanhola. Na primeira edição do livro, publicada menos de um ano depois da defesa da tese, em 1959, o historiador criou um capítulo específico com este nome, muito embora tenha feito poucas alterações em relação ao texto original. O novo capítulo nasceu do desmembramento do capítulo “Do Eldorado à Serra do Prata” em uma disposição mais didática, com capítulos menores como “Peças e Pedras”,“O ‘Outro Peru’”,“Um Mito Luso Brasileiro” e o próprio “Atenuações Plausíveis”. Ao abordar as idéias de experiência e fantasia, Sérgio Buarque procura mostrar que, muito distante de serem termos excludentes, a experiência dos homens durante o empreendimento da colonização foi impulsionada muitas vezes por aquilo que identificamos como algo fantasioso. Desse modo, dissolve o pressuposto idealista que remete à filosofia hegeliana de igualar o racional e o real68. Muitas fantasias produziram efeitos reais na história, produziram experiências concretas. Assim o historiador brasileiro aproxima-se de fato de alguns aspectos da obra de Wilhelm Dilthey69, na medida em que dissolve os pressupostos rígidos da racionalidade científica, entendendo a compreensão da experiência

67. Idem, p. 69 (p. 59). 68. Hans Georg Gadamer, Verdade e Método: Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica, 1997, p. 338. 69. Maria Odila Leite da Silva Dias, “Sérgio Buarque de Holanda, Historiador”, op. cit., pp. 20-21; Marcus Vinicius Corrêa Carvalho, Raízes do Brasil, 1936: Tradição, Cultura e Vida, 1997.

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concreta de seres vivos no tempo, coisa que não é necessariamente passível de racionalização70. Apoiando-se na experiência como expressão do vivido, da vida, o autor foge de definições dogmáticas e apriorísticas, enfocado o fluxo e a relatividade dos fenômenos históricos71. Em Visão do Paraíso, Sérgio Buarque de Holanda dialoga com um dos problemas centrais da obra de Dilthey, o de “como a experiência histórica pode converter-se em ciência?”72 Em outras palavras, como é possível sintetizar um conjunto de experiências individuais na compreensão de processos históricos que têm um sentido necessariamente mais abrangente e abstrato?73 Visão do Paraíso é construído sob alguns conceitos estruturantes dispostos em constante tensão com a experiência histórica dos indivíduos, tornando-se cada vez mais maleáveis e produzindo sentido. Esses conceitos estruturantes consistem normalmente em termos clássicos da historiografia que possibilitam ao autor um diálogo direto com a tradição dos estudos históricos sobre os temas estudados e um efeito comunicativo mais rápido com um público leitor possivelmente habituado com esses termos. Dentre eles pode-se lembrar da disposição linear e progressiva da História em grandes conjuntos abstratos de sentido, como Antigüidade – Idade Média – Renascimento – Barroco.

Uma história em “câmera lenta” Voltando às discussões realizadas no dia da defesa da tese de cátedra Visão do Paraíso, é possível afirmar que a crítica de Eduardo d’Oliveira França concentrada na refutação de que o homem português da época dos descobrimentos tinha uma visão de mundo em certa medida medieval envolvia também uma discussão significativa em nível con70. Wilhelm Dilthey, El Mundo Historico, 1978, pp. 215-228. Ver também Hans Georg Gadamer, op. cit., p. 345. 71. Maria Odila Leite da Silva Dias, op. cit., p. 25. 72. Hans Georg Gadamer, op. cit., p. 339. 73. Idem, pp. 339-359.

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ceitual. Discussão que remetia indiretamente a outra defesa de tese ocorrida naquele mesmo local aproximadamente sete anos antes, na qual a situação estava invertida: Sérgio Buarque de Holanda argüia o candidato à cátedra de História Moderna e Contemporânea, Eduardo d’ Oliveira França. Portugal na Época da Restauração havia nascido do interesse fundamental de se compreender as relações entre o processo de Restauração da monarquia portuguesa em 1640 e a economia colonial. Entretanto, [...] faltava o homem. Ele o ponto de partida e não a economia do tempo. Não fora o açúcar brasileiro disputado pelo holandês, que deflagrara a insurreição Bragantina. Nem a diminuição da prata espanhola. Nem a perda do comércio das especiarias, mas que também vivia nos seus solares provinciais ou quintas dos arredores de Lisboa, que lia Camões e Fernão Lopes, que passeava de coche, que indagava se D. Sebastião ia voltar. Foi o homem que fez a revolução; não foram as alterações dos interesses econômicos74.

Apesar de impulsos iniciais bastante distintos, Sérgio Buarque de Holanda e Eduardo d’Oliveira França acabavam por se deparar com o mesmo problema teórico. Ambos buscavam uma solução que pudesse combinar ações individuais concretas e análises conjunturais no trabalho historiográfico. Suas propostas convergiam na busca pela compreensão do homem, desde seu pensamento até sua ação, o que lhes permitiria posteriormente a explicação de uma conjuntura político-econômica. Mas fazia-se necessário, para isso, compreender as ações humanas em conjunto, para que delas o historiador pudesse abstraí-las, produzindo conceitos. Esses conceitos passariam também por uma espécie de hierarquização.Apenas um ou dois deles se elevariam a um grau de abrangência suficiente para resumir o ânimo do homem do século XVII.“Era preciso buscar, portanto, o homem da época do barroco. A insurreição de 1640 seria como uma projeção espectroscópica para análise. Um momento de desequilíbrio do homem que se traía”75.Transparece nesse trecho a concepção de que o homem revela-se de modo claro em momentos74. Eduardo d’Oliveira França, Portugal na Época da Restauração, op. cit., p. II. 75. Idem, ibidem.

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limite. Neles, o homem despe-se de suas barreiras psicológicas e sociais e mostra-se por inteiro. Essa concepção aparentava-se diretamente com os debates candentes dos anos 1940 e início dos anos 1950, especialmente na França, no contexto do nascimento do estruturalismo. Alguns dos mais intensos debates historiográficos concentravam-se em torno da figura de Ernst Labrousse, autor do livro La crise de l’ économie française à la fin de l’Ancien Regime, publicado em 1944. Analisando momentos de crise, o historiador buscava o equilíbrio entre abstrações de inspiração sociológica ou antropológica, e “nem por isso ele deixa de permanecer no interior de um conteúdo concreto, observável, e privilegia em seu campo de estudos os fenômenos de crise como abscesso de fixação, pólos de cristalização dos fenômenos estruturais, no sentido de uma dinamização destes”76. Esse afinamento com as discussões acadêmicas francesas foi provavelmente intensificado nos corredores da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e no convívio com professores como Fernand Braudel e Jean Gagé77. Outra forma de compreender o homem de modo amplo e real seria através da análise de sua produção artística, pois nela estariam impressas suas marcas mais profundas, o que legitima a classificação de uma época segundo um estilo artístico. Esse tipo de concepção 76. François Dosse, História do Estruturalismo, vol. I: O Campo do Signo, 1945-1966, p. 212. Seria interessante aprofundar as apropriações da idéia de crise na historiografia brasileira contemporânea. É possível que o próprio Eduardo França tenha tido papel importante no desenvolvimento desses debates, especialmente em relação à história econômica de Ernst Labrousse, seguidos por alguns de seus principais discípulos, como Fernando A. Novais, que se ocupou do tema pelo menos desde finais dos anos 1950 até sua defesa de tese de doutorado, Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), em 1973. Sobre a importância de Labrousse no desenvolvimento historiográfico francês, ver Peter Burke, A Escola dos Annales 1929-1989: A Revolução Francesa da Historiografia, 1997, pp. 67-70. 77. Sobre a força das idéias e intelectuais franceses no ambiente acadêmico da Universidade de São Paulo, nos anos 1930 e 1940, capitaneados pela figura carismática do professor Jean Maugüé ver Paulo Eduardo Arantes, “Cap. 2: Certidão de Nascimento”, Um Departamento Francês de Ultramar. Estudos sobre a Formação da Cultura Filosófica Uspiana, 1994, pp. 61-87. Sobre as tendências historiográficas e a geopolítica acadêmica do Departamento de História da Universidade de São Paulo, ver Maria Helena Rolim Capelato; Raquel Glezer & Vera Lúcia Amaral Ferlini, “Escola Uspiana de História”, 1994, pp. 349-358.

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historiográfica consiste em um análise circular, que estipula constantemente uma tensão dialética entre todo e partes. Ademais, é oportuno lembrar que tal pensamento remete a um longo debate sobre a relação entre a busca pela ciência e pela verdade por meio da indagação sobre a arte e a consciência estética, fundamental nos debates das ciências do espírito, pelo menos desde Kant78. Na Fenomenologia do Espírito, Hegel lança a idéia de que a experiência estética, como manifestação da verdade, é um reflexo não só do gênio individual do artista, mas da consciência histórica de um período. Nesse sentido, o estudo da experiência estética possibilita a compreensão da Weltanschauung, ou visões de mundo relativas a cada período79. E “quanto mais alto se situa o artista, mais consistente deve ser sua exposição das profundezas do ânimo e do espírito”80. Nesse trecho podemos identificar um entrecruzamento de alguns desses eixos. O homem, por exemplo, contrapõe-se ao Barroco dialeticamente de maneira que a tensão provoca conhecimento novo sobre ambas as instâncias. No entanto, “homem” é, em si, uma abstração baseada em certo conjunto de homens concretos. Na verdade, o conceito de homem não é voltado à sua mera existência, mas, sim, às suas ações. Ações relevantes representam o que seja o homem no individual e um conjunto de ações relevantes (como uma revolução) representa o que seja o homem no coletivo. A revolução torna-se um conjunto legítimo que se choca com o “Barroco” e, numa relação de todo e partes, determinam-se mutuamente. Vale ressaltar também que nessa

78. Tema de toda a primeira parte do livro Verdade e Método, op. cit., de Hans Georg Gadamer, pp. 39-272. 79. Esse pensamento remete ao conceito de Weltanschauung moldado na Fenomenologia do Espírito de Hegel, em que o “conteúdo de verdade que há em toda experiência de arte é trazido ao reconhecimento e, ao mesmo tempo, transmitido como consciência histórica. Com isso, a estética torna-se uma história das cosmovisões (Weltanschauungen), isto é, uma história da verdade, tal qual se faz visível no espelho da arte”. Hans Georg Gadamer, op. cit., p. 170. Para uma análise da mesma questão ver Wilhelm Dilthey, “A Arte como Expressão de uma Visão do Mundo e da Vida”, Teoria das Concepções do Mundo, 1992, pp. 45-47. 80. Georg W. F. Hegel, Cursos de Estética, 2001, p. 50. ver todo item: “A Obra de Arte como Produto da Atividade Humana” (pp. 48-53).

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concepção analítica a cronologia perde espaço substancial e aparece apenas como suporte para entidades mais prenhes de significado. Segundo esse princípio de articulação do todo e das partes, é necessário pensar a história do Brasil não mais apenas em sua especificidade nacional mas como parte deste conjunto de processos ocorridos na Europa. Eduardo d’Oliveira França não era o único a perguntar Como proceder para traçar o perfil daquele homem que colonizava o Brasil? Primeiro: o homem vive numa certa época e leva a marca da atmosfera de seu tempo a qual ajuda a compor. A mentalidade do homem deriva do clima histórico. Todas as suas atividades ficam impregnadas e por isso, entre todas as suas atividades há afinidades. Cortesia, burocracia, galantaria, guerra de cerco, cabeleiras e rendas, literatura gongórica e arte barroca são folhas do mesmo galho. Há complexos de civilização e suas manifestações são aparentadas: uma curvatura de mesura cortesã é a mesma curva da coluna barroca e das sinuosidades da prosa conceitualista81.

Desde sua modernização nos anos 1920 e 1930, a tradição historiográfica francesa, encabeçada pelo grupo fundador da revista Annales d’histoire économique et sociale, publicada pela primeira vez em 1929, havia encampado o problema de analisar os fenômenos históricos dentro de contextos mais amplos e profundos da economia e da sociedade, mobilizando o conhecimento de disciplinas emergentes como a antropologia e a sociologia82. Tais esforços contrapunham-se ao que esses historiadores consideravam uma história tradicional, concentrada na narrativa de eventos político-militares83. A busca por alternativas de 81. Eduardo d’Oliveira França, Portugal..., op. cit., p. II. 82. Philippe Carrard, Poétique de la nouvelle histoire. Le discours historique en France de Braudel à Chartier, 1998, pp. 39-69. Não podemos deixar de mencionar que a iniciativa de produzir um diálogo entre a história e disciplinas como a sociologia e a psicologia haviam sido intensificadas no contexto acadêmico francês desde o início do século XX, graças ao historiador Henri Berr e ao projeto da Revue de synthèse historique. Cf. Peter Burke, A Escola dos Annales, op. cit., p. 22; François Dosse, A História em Migalhas: Dos Annales à Nova História, 2003, p. 45; Martin Siegel, “Henri Berr’s Revue de Synthèse Historique”, 1970, p. 326. 83. “Nesse combate contra o historicismo, temos como resultado o núcleo permanente do discurso dos Annales, para além de suas flutuações: a relativização ou, pelo menos, a recusa do relato factual e do relato poítico. É a partir dessa recusa que os Annales se definem como escola, superando a diversidade de seus componentes. O adversário

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interpretação que compreendessem a análise dos fenômenos humanos concretos, articulada a quadros gerais, passou a ser uma das constantes nos trabalhos de história que dialogavam com o contexto acadêmico francês. Dentre as soluções mais correntes podemos citar uma apropriação da idéia de “mentalidade” – uma espécie de palavra mágica que sem grandes discussões teóricas de fundo poderia sintetizar muito bem o confronto entre individual e coletivo nas explicações históricas84. Nas palavras de Eduardo d’Oliveira França: Impregna-se todo o fenômeno histórico do clima de seu tempo. Existem certos caracteres afins em cada época que marcam todas as suas manifestações com traços comuns. A vida política, a vida social, religiosa ou econômica. No caldo desses caracteres mergulham os fatos e neles se colorem com tonalidades constantes que permitem ao historiador rastrear o parentesco entre os fatos do mesmo tempo. Porque eles são resultantes, não apenas dos acontecimentos particulares que os antecedem, mas também das condições gerais de sua época. Não é por acaso que a burocracia administrativa, a vigilância aduaneira mercantilista, a disciplina eclesiástica da Reforma Católica, a regra das três unidades no teatro e na filosofia racionalista se juntaram no mesmo século. A mentalidade do tempo85.

Na defesa de Portugal na Época da Restauração, o então diretor do Museu Paulista, Sérgio Buarque de Holanda, fez sérias restrições ao uso de uma dessas expressões generalizantes de que se vale o historiador na tentativa de compreender seu objeto. Em sua perspectiva, Eduardo França errava o foco de sua generalização ao ver o Barroco como fenômeno fundamentalmente espanhol, pois eclipsava seu processo de difusão por toda a Europa. Cerca de um mês após sua participação nessa banca, em uma série de artigos publicados no jornal Diário Carioca, Sérgio Buarque de Holanda formula críticas mais contundentes aos postulados de Eduardo França, questionando seus fundamentos teóricos:

é sempre a historiografia dita positivista.” François Dosse, A História em Migalhas, op. cit., p. 90 (tema explorado em todo o cap. 1: “A Pré-história dos Annales”). Sobre a mesma questão ver Peter Burke, A Escola dos Annales, op. cit., pp. 17-22. 84. Peter Burke, “A História Total”, 2002. pp. 8-9. 85. Eduardo d’Oliveira França, Portugal..., op. cit., p. 3.

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Parece claro, entretanto, que para apreender numa plausível unidade as diferentes condições de existência material e intelectual dos homens deste ou daquele tempo, é forçoso ir buscar o princípio unificador e harmonizador dessas várias manifestações. O homem é, sem dúvida, o ponto de partida, mas sucede que o homem de ontem não é precisamente igual ao homem de hoje nem ao de anteontem. Cumpre, nesse caso, discernir a atmosfera especial que ajudaria a compô-lo de cada vez. A mentalidade do homem prende-se a seu clima histórico. Em 1383, este podia ser definido, em Portugal segundo ideais da burguesia ascendente e já legiferante. Duzentos e sessenta anos depois virá o momento da “mentalidade barroca”. A determinação do princípio aglutinador, que harmoniza as manifestações diferentes, mas sincrônicas, da atividade humana, – sem ela mal se conceberá a historiografia – pode acarretar, não obstante, perigos sérios. Procurando superar a espécie de nominalismo que consistia em querer dar certa coerência aos seus pensamentos, palavras e obras ele não arriscaria por vezes a cair no extremo contrário? O certo é que, uma vez fixados e definidos, essa “atmosfera”, esse “clima” do barroco, tendem não raro a erigir-se aqui em realidades que não só tiranizam os homens mas estabelecem um abismo entre seus antecessores e sucessores86.

Nessas palavras ressoa a citação que o historiador costumava fazer a Nietzsche, na qual o filósofo afirmava que todo conceito, na medida em que cristaliza um pensamento, é externo à história87. De modo geral, o comentário de Sérgio Buarque de Holanda segue uma tendência constante em sua obra, ancorada, muito provavelmente, em sua vivência vanguardista e seu contato com autores alemães de finais do século XIX e início do XX, de rechaço do racionalismo empirista nas ciências humanas. No entanto, é necessário dizer que o processo de elaboração de respostas e alternativas na reflexão e na prática historiográfica não veio de imediato e nem representa uma constante em sua obra. Tampouco nasceram da aplicação sistemática de um autor ou uma teoria. Muitas

86. Sérgio Buarque de Holanda,“Ainda o Barroco”, Diário Carioca, 27 jan. 1952. Publicado no livro Tentativas de Mitologia, 1979, pp. 162-163. 87. Como na conclusão ao seu texto sobre a obra de Leopold von Ranke, quando Sérgio Buarque cita:“Todos os conceitos em que, do ponto de vista semiótico, se congregue todo um processo, esquivam-se à definição; só o que não tem história é definível”. Sérgio Buarque de Holanda, “O Atual e o Inatual na Obra de Leopold von Ranke”, em Leopold von Ranke, Ranke, 1979, p. 61. Publicado também na Revista de História, n. 100, vol. L, t. II, ano XXV, out.-dez. 1974, pp. 431-482.

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dessas respostas foram formuladas apenas nos anos 1950 e 1960, após um longo processo de experimentação e reflexão. No momento em que um contexto previamente estabelecido “tiraniza” a ação humana, o historiador cria um quadro interpretativo no qual toda casualidade e imprevisibilidade das ações humanas são eliminadas88. Todas as ações humanas parecem seguir uma disposição de uma lei geral prévia estabelecida pelo significado do conceito de “Barroco” ou congênere. Independentemente do fato desses comentários representarem ou não uma realidade nos escritos de Eduardo d’Oliveira França89, é importante ressaltar sua relação com as preocupações de Sérgio Buarque de Holanda no início dos anos 1950, especialmente no que diz respeito ao processo de amadurecimento de suas idéias que culminou no livro Visão do Paraíso. Os comentários ao livro de Eduardo França vinham, na realidade, de alguém que se preocupava intensamente em escrever uma história da literatura brasileira, tema já tratado no capítulo anterior. Aliás, meses após a publicação dos artigos que envolvem o debate com seu interlocutor, Sérgio Buarque comenta: Os esforços tendentes a isolar do curso da História certas fases espirituais, dotando-as de significado objetivo – a do Barroco, por exemplo –, no intuito de melhor se apreciarem seus motivos dominantes e seus traços individuais, têm encontrado objeções muitas vezes consideráveis. Não corresponderiam eles a uma reedição do hábito muitas vezes denunciado, que consiste em repartir-se a história da humanidade em seções absolutamente distintas e separadas, umas das outras, por barreiras poderosas ou imobilizadas como as estátuas num museu? É inevitável, no entanto, quando se trate de melhor compreender qualquer período histórico, destacá-lo, ao menos provisoriamente, do processo onde se

88. Ver Reinhart Koselleck, “O Acaso como Resíduo de Motivação na Historiografia”, Futuro Passado, op. cit., pp. 147-160. 89. Ao contrário do que pode fazer crer a crítica de Sérgio Buarque, em Portugal na Época da Restauração é possível identificar momentos em que seu autor se esforça em delimitar o conceito de Barroco, como por exemplo no trecho:“O barroco não é, porém, uma expressão de decadentismo, nem de degenerescência do Renascimento. Também não é simplesmente o esvaziamento da arte no bizarro, no superlativo, sinônimo de mau gosto. Nem apenas o designativo de um certo momento estético na arte e na literatura”. Eduardo d’Oliveira França, Portugal..., op. cit., p. 37.

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insere, moderar-lhe mentalmente o ritmo, tentar discernir, quando possível, suas fronteiras aparentes para chegar a uma visão nítida e unitária. Há em tudo isso uma parte de artifício, mas artifício prestativo e inocente, desde que seja tido apenas como tal. Para captar a própria continuidade histórica, é forçoso introduzir-se uma pausa momentânea ou um adágio na corrente dos acontecimentos, sem o que mal se poderá notar como nela chegam a enlaçar-se as idéias, os sentimentos ou os atos dos homens. Tal recurso é comparável, no fundo, ao do observador ou árbitro que se socorre da câmara lenta para estudar com mais segurança as fases de uma contenda esportiva90.

Segundo essa perspectiva, o historiador em seu ofício deveria procurar desacelerar o tempo do imediato, do turbilhão de acontecimentos para mergulhar em um ritmo mais lento, o tempo da experiência humana em sua sensibilidade, seus valores, seus hábitos, sua educação de sentidos. Para isso, deveria recorrer a um arsenal crítico oriundo de avanços das ciências sociais desde a segunda metade do século XIX, a psicologia coletiva e seus “gêneros de vida”, a antropologia, a etnologia, a lingüística e a sociologia, no sentido de quebrar as barreiras do conhecimento segmentado e penetrar na historicidade dos fenômenos sociais. Tal concepção faz lembrar o conceito de outillage mental proposto por Lucien Febvre, no qual o autor “lança as bases da psicologia histórica, utiliza os trabalhos dos psicólogos, Henri Wallon e Jean Piaget, e apresenta, então ao historiador nova perspectiva: a do estudo da sensibilidade, da vida afetiva na história, perspectiva sem amanhã imediato mas que

90. Sérgio Buarque de Holanda, Capítulos de Literatura Colonial, op. cit., pp. 177-178. O trecho compreendido entre as páginas 177 a 181 desse livro foi publicado em setembro de 1953 como uma parte do artigo “Domínio Rococó”, o que assegura provavelmente que, a essa altura, Sérgio Buarque havia escrito boa parte (praticamente metade do conjunto que resta hoje) de sua história da literatura brasileira. “Domínio Rococó”, Diário Carioca, 6 set. 1953, p. 3. Ademais, vale ressaltar que o trecho final desse artigo, que corresponde às pp. 179-181 de Capítulos, coincide com as primeiras páginas do artigo “Gosto Arcádico” publicado na Revista Brasilense em 1956, posteriormente republicado sob o mesmo título, sem alterações substanciais, no livro Tentativas de Mitologia, e que portanto corresponde precisamente ao trecho que vai da p. 179 à 199 do Capítulos de Literatura Colonial. “Gosto Arcádico”, Revista Brasiliense, pp. 97-114, jan.-fev. 1956. Tentativas de Mitologia, pp. 241-271.

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será mais tarde retomada com muito sucesso”91. Livros, pensamentos, costumes, valores, bem como a cultura material, ganham sentido na medida em que são dialeticamente integrados no contexto social de sua produção, difusão ou mesmo apagamento. A idéia de mentalidade e seus congêneres, como outillage mental ou visão de mundo, transforma-se em uma solução eficaz à qual historiadores ocidentais dos anos 1940 e 1950 recorrem para resolver um dos questionamentos mais sérios sofridos pela ciência histórica: integrar as esferas dos fenômenos individuais e concretos com análises contextuais. No entanto, não se pode valer apenas do estudo desse contexto para explicar aspectos da obra de Sérgio Buarque de Holanda, em particular os mecanismos compreensivos desenvolvidos no livro Visão do Paraíso92. Se nos propuséssemos a estabelecer uma genealogia de seu pensamento relativo à idéia de mentalidade ou de visão de mundo, encontraríamos também, como sugere a historiografia clássica sobre sua obra93, uma intensa interlocução com o pensamento alemão do século XIX e início do XX. Os recursos teóricos de Sérgio Buarque de Holanda em seus estudos sobre “mentalidades” possuem, de fato, uma série de similitudes com a idéia historicista de Weltanschauung94, utilizada em uma acepção bastante modificada em relação ao idealismo de Hegel. O historiador não poderia focar-se em uma filosofia da história – sua busca pelas 91. François Dosse, A História em Migalhas, op. cit., p. 79. Para um comentário de Febvre sobre sua concepção de outillage mental, ver Lucien Febvre, O Problema da Descrença no Século XVI: A Religião de Rabelais, 1970, pp. 396-410 (“Utensilagem Mental”). 92. Em artigo publicado em 1998, Ronaldo Vainfas aproxima Visão do Paraíso da obra de Lucien Febvre sobre a descrença em Rabelais. No entanto, o historiador procura negar qualquer relação demasiadamente imediatista de influência ou filiação entre os autores. Ronaldo Vainfas,“Sérgio Buarque de Holanda: Historiador das Representações Mentais”, 1998, pp. 49-57. 93. Maria Odila Leite da Silva Dias, op. cit., pp. 9-11 e 17-21. 94. “Um dos princípios fundamentais do seu modo de trabalhar era a fé, que partilhava com os historistas, num tipo de conhecimento específico da História, pelo qual o historiador enquanto homem de seu tempo tornava-se observador participante dos valores de outras épocas. Cada época tinha seu próprio ‘centro de gravidade’ e cabia ao historiador detectar suas totalidades significativas, seus ‘princípios de aglutinação’, através de um processo específico de intelecção ou compreensão.” Idem, pp. 20-21.

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estruturas históricas deveria partir de uma reflexão sobre as vivências concretas dos indivíduos, e as múltiplas interações entre essas esferas, como ocorre no pensamento de Dilthey95. Analisando tema congênere (a busca pelas categorias mentais de uma época) nas obras de Marc Bloch e Lucien Febvre desse período, veríamos que, participando do mesmo contexto de discussões, suas inspirações para resolver uma questão similar são bastante distintas. Bloch dialoga intensamente com a sociologia durkheimiana, desviando seu foco do indivíduo para os fenômenos coletivos96. Febvre, por sua vez, traça um caminho quase inverso, apoiando-se principalmente na psicologia como meio para acessar a concretude de experiências individuais que lhe permitem a compreensão de seu meio e de sua época97. Não é mera casualidade que uma série de historiadores em diversos locais do globo se defrontassem com os mesmos problemas e questionamentos, desenvolvendo respostas próprias a essas indagações. Cabe ao historiador interrogar-se sobre esse fenômeno na sua dimensão social – ligado a lugar e época específicos98. Essa operação diminui a possibilidade de explicações simplórias ou demasiado mecanicistas, nas quais se indaga sobre as “influências” de autores e obras no pensamento de determinado intelectual99. Deve-se esclarecer portanto que Sérgio Buarque de Holanda não se apoiava dogmaticamente em nenhum autor específico, fosse ele Bloch, Febvre ou qualquer outro, o que reforça significativamente a importância de se conhecer a contribuição particular que deu a um contexto bastante concreto de debates científicos100.

95. Wilhelm Dilthey, Teoria das Concepções do Mundo, op. cit., pp. 111-137. Para uma análise dessa questão no pensamento de Dilthey, ver George G. Iggers, op. cit., pp. 140-141. 96. Sobre a importância da sociologia de Émile Durkheim no desenvolvimento das idéias de Bloch, ver Georg G. Iggers, New Directions in European Historiography, 1984, pp. 48-50. 97. Para uma perspectiva comparativa da questão das “mentalidades” em Marc Bloch e Lucien Febvre, ver: François Dosse, A História em Migalhas, op. cit., pp. 124-140; Georg G. Iggers, New Directions in European Historiography, op. cit., pp. 54-55. 98. Sobre essa questão ver Michel de Certeau, “A Operação Histórica”, 1976. 99. Dominick Lacapra, Rethinking Intellectual History. Texts, Contexts, Language, 1994, pp. 50-52. 100. Nas palavras de Laura de Mello e Souza, refletindo sobre uma suposta “influência” da “nova história social dos franceses” sugerida por Antonio Candido em seu prefácio seminal

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A problemática da busca da análise “em câmara lenta”, para retomar uma metáfora de Sérgio Buarque de Holanda, ou, em outras palavras, das estruturas mentais de uma sociedade, desenvolveu- se paralelamente à fase embrionária do estruturalismo na França. Há um parentesco entre as indagações sobre as mentalidades, no sentido de conjunto de valores, pensamentos e percepção do mundo (que mudam vagarosamente, de modo que o historiador necessita ativar sua “câmara lenta”) e a busca pelas estruturas profundas e imutáveis encontradas em todas as sociedades, como as religiões ou os hábitos alimentares que caracterizaram, de um modo geral, esse movimento intelectual e institucional. Ambas as indagações são creditárias das novas sendas abertas pela sociologia e pela etnologia das primeiras décadas do século XX. A distinção básica é que, pelo menos até uma certa altura, estiveram ligadas a áreas institucionais acadêmicas distintas, garantindo-lhes autonomia para que ganhassem adeptos, verbas institucionais e espaço editorial, até que o aumento de suas dimensões provocou um confronto direto por volta do final dos anos 1940 e início da década seguinte101. O confronto entre história e antropologia estrutural foi prenunciado, curiosamente, nos primeiros anos da Universidade de São Paulo, onde os jovens Fernand Braudel e Claude Lévi-Strauss frente a um novo e estranho ambiente gestaram seu pensamento102. Ao retornar definia Raízes do Brasil:“Creio ser possível detectar, mais do que influência propriamente dita, uma surpreendente afinidade e coincidência temática e metodológica entre Sérgio e os fundadores da moderna historiografia francesa, os homens dos Annales – Marc Bloch, Lucien Febvre e, já na segunda geração, Fernand Braudel. A vida material, as mentalidades, o imaginário foram objetos que se impuseram a um e aos outros na mesma época, e certamente em decorrência das leituras semelhantes que todos faziam então, combinando história, sociologia e antropologia”. Laura de Mello e Souza, “Aspectos da Historiografia da Cultura sobre o Brasil Colonial”, 2001, pp. 23-24. 101. François Dosse, História do Estruturalismo, op. cit., vol. I: O Campo do Signo. 102. “A importância que Braudel atribuiu à sua passagem por São Paulo é tema recorrente em todas as entrevistas onde tratou do processo de confrontação de seu pensamento. Aqui, em vez de complexos conceitos elaborados a partir das heranças e dos desdobramentos em que, de hábito, sustentam-se as reflexões sobre processos formadores do saber, aparecem palavras como amizade, comportamento, sentimental, etc.” Paulo Miceli, “Sobre História, Braudel e os Vaga-lumes: A Escola dos Annales e o Brasil (ou Vice-versa)”, 2001, p. 261. Essa questão foi reiterada também por LéviStrauss quando tratou do mesmo tema em Saudades de São Paulo, p. 21.

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tivamente à França, em fins dos anos 1940103, Lévi-Strauss iniciou a ofensiva definitiva da “nova antropologia” sobre a ciência histórica. No artigo Histoire et ethnologie104, publicado em 1949, o intelectual aponta para a incapacidade da história para analisar as estruturas profundas da sociedade, pois possui ferramentas voltadas apenas para os fenômenos concretos e observáveis105. Essa consideração tinha como pressuposto a existência de uma base estrutural comum e, por isso, a-histórica em todas as sociedades. Elementos universais ligados à existência do homem como espécie, os quais o tempo da história, demasiadamente preso aos acontecimentos e a conjunturas (como crises ou revoluções), não compreenderia. Em artigo publicado na revista dos Annales106, em 1958, Braudel respondeu à ofensiva, recolocando a história no centro dos debates que envolviam as ciências do homem. Para ele, os fenômenos que a antropologia considerava universais também faziam parte da história – alteravam-se em um tempo tão lento e esfumaçado que suas mutações eram praticamente imperceptíveis para os padrões humanos107. Assim, Braudel formulou, de modo claro e duradouro, aquilo que seus mestres Febvre e Bloch vinham debatendo desde as décadas anteriores. Os hábitos cotidianos, as práticas religiosas, os valores, a percepção humana eram fenômenos de longa duração, e cabia ao historiador, com o auxílio de ciências como a antropologia, compreendê-los no tempo, em perspectiva com outros ritmos, mais velozes, ligados a fatos e conjunturas. Em meio a esse debate, o problema epistemológico da relação entre fenômenos específicos e concretos e explicações conjunturais e estruturais se esgotava no momento em que o marxismo se estabelecia como núcleo dos debates acadêmicos franceses e em suas áreas de influência mais direta, como o próprio Brasil.

103. François Dosse afirma que o próprio Braudel colaborou para a volta de Lévi-Strauss, A História em Migalhas, op. cit., p. 160. 104. Idem, pp. 160-161. 105. Claude Lévi-Strauss, “História e Etnologia”, 1967, pp. 13-41. 106. Fernand Braudel, “A Longa Duração”, História e Ciências Sociais, 1982. 107. Idem, pp. 10-14.

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Sérgio Buarque de Holanda e Lucien Febvre demonstravam também uma intensa afinidade temática. Suas obras se dedicam em grande parte ao estudo da Modernidade do século XVI. Ambos tiveram contato com um mesmo conjunto de livros e revistas especializadas, bem como participaram de congressos e de meios acadêmicos que se entrelaçavam108. Entre eles havia também um personagem importante em comum. Lucien Febvre, em nota preliminar sobre o tema e o método de seu livro – O Problema da Descrença no Século XVI, o mencionou: Disseram-nos durante muito tempo: você quer, sem se afastar demasiado, reconstituir a evolução espiritual do criador de Gargântua? Desenhe primeiro a curva da sua época e releia o belo artigo que em 1897 Henri Hauser publicava na Revista Histórica. Descrevia ele, com conhecimento de causa, a evolução paralela do humanismo e da Reforma. Três tempos. Primeiro a união última das forças inovadoras contra os fantasmas da Idade Média – e os homens que renovam seu pensamento ao contato com o pensamento antigo imaginando, ingenuamente, que os primeiros reformados partilhavam os seus desejos e seguiam as suas próprias vias. – Ilusão breve; depois de 1534 e 1535, muitos “homens do Renascimento” vacilam. Em França, sob os seus olhos, as mudanças súbitas de Francisco I, as primeiras perseguições graves, a atitude hostil dos grandes, a violência de um clero combativo, excitado pelos ultras; fora de França ácidas discussões teológicas, violentos anátemas contra a pesquisa livre e a cultura... Quando frente a frente se acendem as fogueiras que queimam Servet e Dolet – estes otimistas desiludidos retiram-se de um combate cujos lances lhes são totalmente estranhos. Humanismo, Reforma: a ruptura consumara-se109.

Segundo o historiador francês, Henri Hauser foi durante muito tempo referência sobre temas relacionados com o século XVI, como o Humanismo e a Reforma. No começo do século XX, Hauser podia ser considerado um dos mais influentes historiadores franceses. Com o seu prestígio, começou a advogar a favor da nova disciplina da his-

108. Como por exemplo, a participação importante que ambos tiveram no XI Rencontres Internationales de Genève e nas comissões discussões ligadas à Unesco que precederam em alguns anos a esse encontro. Ver Sérgio Buarque de Holanda. “Le Brésil dans la vie Americaine”, em Rencontres Internationales de Genève 1954: Le nouveau monde et l’Europe, 1955. 109. Lucien Febvre, O Problema da Descrença, 1970, p. 25.

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tória econômica e, em 1927, colaborou na criação da primeira cadeira de História Econômica na Faculdade de Letras da Sorbonne110. Dois anos depois, figura como membro do Comitê de Redação (para temas do período Moderno) da nova revista, Annales d’histoire économique et sociale111, na qual aparece como constante colaborador em seus primeiros anos de existência. Foi nesse período que Hauser ganhou muito prestígio e destacou-se como um dos grandes especialistas na “Época Moderna”. Em 1930 publicou um livro onde, partindo das obras de Michelet e Burckhardt sobre a Renascença112, procurou compreender a Modernidade do século XVI. No início de 1936, Hauser inaugurava o curso de História moderna e econômica da recém-criada Universidade do Distrito Federal, em pleno território brasileiro113. Meses antes, ele havia se desligado da cadeira de História Econômica da Sorbonne, para a qual foi substituído, não por acaso, por Marc Bloch114. No ano seguinte, a Universidade do Distrito Federal contratou o jovem Sérgio Buarque de Holanda, que acabara de publicar seu livro de estréia, Raízes do Brasil. O intelectual brasileiro seria assistente nas cátedras de História Moderna e Econômica e de Literatura Comparada, cujos responsáveis eram respectivamente Henri Hauser e Henri Trouchon115. Muitos anos depois, o próprio Sérgio Buarque escreveu sobre o papel importante de Hauser na sua formação como historiador. Ao se referir ao papel crescente dos estudos históricos em sua carreira, após sua volta da Alemanha no início dos anos 1930, o historiador comenta: Estudos que havia apurado depois no Rio de Janeiro, durante estreito convívio que ali mantive com Henri Hauser, um dos mais notáveis historiadores de seu tempo, vindo da Sorbonne na leva dos dezesseis professores convidados a ir lecionar na efêmera Universidade do Distrito Federal por iniciativa de Anísio 110. François Dosse, A História em Migalhas, op. cit., p. 106. 111. Idem, pp. 76-77. 112. Henri Hauser, La Modernité du XVIe siècle, 1963, p. 14. 113. Marcus Vinicius Corrêa Carvalho, Outros Lados: Sérgio Buarque de Holanda, Crítica Literária, História e Política, op. cit., p. 181. 114. François Dosse, A História em Migalhas, op. cit., p. 74. 115. Marcus Vinicius Corrêa Carvalho, Outros Lados..., op. cit., pp. 181-182.

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Teixeira, organizador e primeiro reitor do estabelecimento. Esse convívio, somado às obrigações que me competiam, de assistente junto à cadeira de História Moderna e Econômica, sob a responsabilidade de Hauser, me haviam forçado a melhor arrumar, ampliando-os consideravelmente, meus conhecimentos nesse setor, e tentar aplicar os critérios aprendidos ao campo dos estudos brasileiros, a que sempre me havia devotado, ainda que com uma curiosidade dispersiva e mal educada116.

Segundo sua própria sugestão, é possível que o contato com Hauser tenha contribuído no processo de amadurecimento técnico que caracteriza uma nova fase de produção intelectual na obra de Sérgio Buarque de Holanda, da qual fazem parte Monções, Caminhos e Fronteiras, Visão do Paraíso117, e até as edições posteriores de Raízes do Brasil118. Mesmo suas preocupações temáticas, como é o caso da Modernidade do século XVI, podem ter relações com seu contato com Henri Hauser, tema que merece aprofundamento e extrapola os limites deste trabalho.

Texto e contexto: o problema da fundamentação epistemológica do conhecimento histórico em Visão do Paraíso As discussões de Sérgio Buarque de Holanda não se concentravam apenas no campo dos estudos historiográficos. O intelectual trabalhava sistematicamente em uma perspectiva que pode ser considerada multidisciplinar. No capítulo anterior procuramos mostrar como suas refle116. Sérgio Buarque de Holanda, Tentativas de Mitologia, op. cit., p. 14. 117. Nas palavras de Maria Odila L. S. Dias, ao referir-se aos livros Monções e Caminhos e Fronteiras: “Estes são os livros representativos da primeira fase de pesquisa sistemática das fontes na obra histórica de Sérgio Buarque de Holanda e de consolidação de um estilo narrativo muito pessoal de interpretação e reconstituição do passado. Coincidiram com sua mudança para São Paulo, com suas atividades de professor na Escola de Sociologia e Política e com seu trabalho na direção do Museu Paulista”. Maria Odila Leite da Silva Dias, op. cit., pp. 25-26. 118. Sobre as relações intelectuais de Sérgio Buarque de Holanda nos anos 1940, ver Robert Wegner, A Conquista do Oeste:A Fronteira na Obra de Sérgio Buarque de Holanda; Marcus Vinicius Corrêa Carvalho, Outros Lados..., op. cit., Thiago Lima Nicodemo, “Gosto de Sedição: Sérgio Buarque de Holanda, Manuel Bandeira e a Autoria das Cartas Chilenas”, op. cit., 2004.

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xões no campo da literatura foram instrumentalizadas nos seus estudos históricos. Para tanto, estudamos sua reflexão sobre análises formais da literatura como a tópica. É possível que sua crítica aos estilos artísticos, como critérios de periodização na história, também tenham sido fruto de uma reflexão no campo da história literária e artística nos anos anteriores à publicação de Visão do Paraíso. De muitos escritos recentes, especialmente sobre o Barroco – a literatura, a política, a civilização barrocas –, não se poderá dizer que tenham evitado constantemente um tal engano. E é bem possível que a simples sugestão de uma etiqueta cômoda, extraída da história da arte, em particular da arquitetura, ajustasse insensivelmente a reduzir o período assim batizado, a uma unidade coerente, compacta, inconfundível em todos os seus aspectos, sempre igual a si mesma e capaz de suportar confronto, por este lado, com a imagem tanto tempo associada à fase quase imediatamente anterior, ou seja, ao Renascimento119.

Para que a história literária se firmasse como ciência eminentemente histórica, deveria abandonar a rigidez esquemática da sucessão de estilos inspirada na história da arte e da arquitetura. Esse casamento, ocorrido ao longo do século XIX, havia se esgotado na medida em que oferecia apenas a comodidade das “etiquetas”, das fórmulas prontas e esquemáticas de contextos gerais que “tiranizavam” a interpretação. Era necessário que na análise o historiador suspendesse, mesmo que provisoriamente, essas grandes unidades explicativas e se voltasse às relações sociais concretas, aos sentimentos, à cultura material e às experiências do homem com o tempo. A literatura como ciência histórica ganhava assim novo fôlego, pois era concebida como um conjunto de registros com os quais se poderia acessar experiências e sentidos passados. Isto não implica pensá-la como reflexo direto entre suas fontes e realidades históricas, pois cabia ao historiador da literatura indagar-se sobre as condições específicas de sua produção e difusão120. 119. Sérgio Buarque de Holanda, Capítulos de Literatura Colonial, op. cit., p. 178. 120. Vale lembrar que o desenvolvimento de um pensamento de ruptura das fronteiras entre as ciências humanas não exclui a reflexão também profunda sobre a autonomia dessas ciências, como aconteceu freqüentemente com a literatura ao longo dos anos 1940, questão que tratamos no capítulo anterior.

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Essa consideração ajuda a compreender o papel das fontes literárias em Visão do Paraíso, pois seu uso é relacionado com um contexto internacionalizado de discussões epistemológicas no qual livros como O Problema da Descrença no Século XVI também fazem parte. Como observou Braudel, as investigações voltadas para as permanências ou sobrevivências culturais não deixavam de constituir uma maneira de se acessar fenômenos de longa duração. Isto permitiu que classificasse como “análogos” esforços como o Literatura Européia e Idade Média Latina, de E. R. Curtius, O Problema da Descrença, de Lucien Febvre, O Mito das Cruzadas, de A. Dupront, e Pintura e Sociedade, de Pierre Francastel121. A identificação das permanências culturais poderia ser a chave para ligar as experiências individuais concretas e os conceitos históricos de maior abrangência. Dentre os conceitos históricos mais abrangentes, os velhos estilos artísticos como Renascimento ou Barroco ainda poderiam desempenhar um papel significativo como entidades representativas de uma época ou de uma estrutura social. O contato do historiador com as experiências históricas concretas de sua pesquisa se confrontaria com o significado rígido dessas unidades, criando a possibilidade de um quadro explicativo flexível. O recurso a conceitos como Renascimento ou Barroco possibilitava um efeito comunicativo eficaz com um público habituado, desde sua formação escolar, com esses termos consagrados no século XIX. Ao mesmo tempo, o embate dialógico com as experiências históricas concretas garante um rigor científico, por seu caráter empírico. As permanências culturais fazem o papel de médium entre as vivências individuais e os conceitos gerais, pois, recorrendo a um procedimento científico clássico, a abstração de um modelo parte da análise de recorrências em conjuntos de dados concretos. Segundo esse princípio, os textos literários ou de viajantes passam a ser encarados como uma espécie de vestígio do passado; sua análise revela experiências concretas de homens do passado em relação com a sociedade. Em prefácio ao livro Apologia da História, o historiador Jaques Le 121. Fernand Braudel, “A Longa Duração”, op. cit., p. 15.

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Goff observou agudamente que a antipatia de Bloch no que diz respeito à fragmentação do conhecimento estava diretamente relacionada à sua convicção de que o trabalho do historiador é necessariamente construído a partir de uma diversidade de gêneros de documentos e técnicas interpretativas, capazes de dar conta da complexidade dos fenômenos humanos122. A noção de vestígio rompe as barreiras entre as ciências sociais, uma vez que qualquer elemento da sociedade atual que tenha vínculos com o passado pode ser considerado como tal – comunidades indígenas, línguas, costumes, ritos, cultura material, a memória, textos, todos são elementos que quando analisados historicamente produzem um sentido de elo compreensivo do historiador com o passado123. O historiador torna-se uma espécie de viajante que em pleno tempo presente toma contato com elementos que lhe produzem experiências diferentes, pois perdidas outrora no tempo. Vestígios, como no caso dos textos literários, podem ser analisados em relação ao tempo e à sociedade que os produziu. Para tanto, é necessário uma espécie de decodificação de sua estrutura, projetando-se na sua lógica interna e tentando extrair-lhes as categorias de cognição próprias do lugar e sociedade de sua produção. Munido dessas categorias, o historiador ou crítico esforça-se para imaginar a produção histórica por meio dos valores e concepções abstraídos pela análise. Articula-se assim um processo à margem da racionalidade científica clássica no qual o sujeito se esforça por anular-se no objeto por uma

122. Jaques Le Goff,“Prefácio”, em Marc Bloch, Apologia da História ou o Ofício do Historiador, op. cit., p. 27. 123. Noção bastante semelhante da que Antonio Arnoni Prado sugeriu analisando a visão de Sérgio Buarque sobre a casa de Balzac:“É no espaço destas convergências que o crítico interroga a coexistência da obra literária com os temas e motivos que a circundam, para daí mergulhar na paisagem transcendente a que remetem semelhantes realizações do espírito humano. Esse ângulo de entrada, na verdade uma simulação virtual na paisagem da cultura, não pertence, contudo, nem ao plano histórico nem ao plano da imaginação: é uma aventura de prospecções e vivências. Nela, configura-se uma espécie de permanência que transcende o gênero, diversificando entre as linguagens harmônicas que pertenciam ao território da crítica, entre elas a do ensaio histórico, a dos registros de memória, a dos diários, bem como da crônica e da reportagem literária”. Antonio Arnoni Prado, Trincheira, Palco e Letras, 2004, p. 282.

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noção que se tornou conhecida na hermenêutica romântica como empatia124.Vejamos, por exemplo, um trecho no qual Sérgio Buarque de Holanda analisa o processo de aclimatação da existência, em algum lugar do interior do continente americano, de uma lagoa formada pelo encontro dos dois grandes rios: Amazonas e Prata, reproduzindo a fórmula bíblica de que o Paraíso encontrava-se junto a uma lagoa formada pelo entroncamento dos rios sagrados, denominados com freqüência Nilo e Gion. Nessa lagoa, o aventureiro encontraria as maiores riquezas em ouro e pedras preciosas, como previsto nas escrituras. Esse mito esteve presente desde as primeiras expedições de descoberta da América e foi se espalhando de boca em boca até penetrar na América portuguesa. Em suas palavras: Deixa o autor [o viajante Guilherme Glimmer] de tocar, ao menos nas partes transcritas de seu roteiro, na existência ou não da lagoa fantástica, mas João de Laet não encontra dificuldade em admiti-la, no que se mostrava dócil às teorias de seu tempo. E tal crença não se pretendia fundada em engodos, mas buscava arrimar-se em razões demonstráveis e poderosas. Pois se era certo que ninguém, até então, tinha explorado as fontes e origens do São Francisco, só a presença da famosa lagoa, formada por águas que ali se juntavam, das vertentes dos Andes, e onde se dariam também as mãos o Prata e o Amazonas∗ poderia fornecer a boa explicação para certo fenômeno que, de outra forma, participaria do miraculoso125.

O historiador se despe progressivamente das categorias de razão e realidade de seu tempo e penetra na lógica interna do documento, na qual a existência de algo, por mais fantástico que fosse, poderia ser admitido por sua plausibilidade ou verossimilhança. No trecho, a frase que promove essa transição é: “E tal crença não se pretendia fundada 124. Como Sérgio Buarque de Holanda reconhece: “A evocação dos tempos idos reclama, sem dúvida, um sentimento vivo daqueles tempos, bastante vivo para criar entre o observador e o observado, entre historiador e o objeto da história, essa corrente de simpatia que há de animar toda a verdadeira compreensão”. Sérgio Buarque de Holanda, “O Senso do Passado”, Diário Carioca, 13 jul. 1952, p. 3. ∗ Cf. Simão de Vasconcelos, Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, I, p. XI (nota de Sérgio Buarque de Holanda). Esta nota segue com a citação a um trecho do livro a que fazemos referência. 125. Visão do Paraíso (versão tese), p. 72 (pp. 61-62).

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em engodos, mas buscava arrimar-se em razões demonstráveis e poderosas”, pois o historiador sabe que a crença em uma lagoa maravilhosa, na perspectiva de um contemporâneo, poderia apenas fundar-se em engodos. No entanto, seguindo a lógica interna do texto analisado, tais motivos são demonstráveis e poderosos, pois participam de uma concepção de mundo diferente, baseada em outras concepções de verdade e realidade. Munido dessas novas categorias, o historiador dá mais um passo dentro do documento assumindo esse modo de pensar como se fosse o seu: Não é inverossímil que, mesmo entre os portugueses, a tendência para situar-se o Dourado às cabeceiras do São Francisco tivesse alguma coisa a ver com sugestões edênicas provocadas pela aproximação entre esses dois rios, o do Velho e do Novo Mundo. Já não fora dito no Senegal, desde que Diniz Fernandes chegara à sua foz, que era um braço do Gion, que através deste, tinha suas origens no Paraíso Terrestre?126

De dentro do texto o historiador projeta-se, logo no parágrafo seguinte, para uma análise mais abrangente desse modo de pensar, assumindo uma distância que permite uma visão de conjunto em relação ao seu objeto: A mentalidade da época acolhe de bom grado alguns modos de pensar de cunho analógico, desterrados hoje pela proeminência que encontraram as ciências exatas. Em tudo discernem-se figuras e signos: o espetáculo terreno fornece, em sua própria evanescência, lições de eternidade. A Natureza é, em suma, “o livro da Natureza”, escrito por Deus e, como a Bíblia, encerra sentidos ocultos além do literal. Até a razão discursiva, feita para o uso diário, deixa-se impregnar, não raro pela influência do pensamento mítico, e entre os espíritos mais “realistas” encontram-se as marcas desta atitude, que traz no bojo um vivo sentimento de simpatia cósmica127.

O historiador explica a seu leitor contemporâneo esse modo de pensar, recorrendo a significados atuais de ciência e natureza que permitem ao leitor compreender por meio de uma dialética de identidade (pelos 126. Idem, ibidem (p. 65). 127. Idem, ibidem (pp. 65-66).

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nomes contemporâneos, pelos vestígios que “lembram” o modo como se pensa o mundo na contemporaneidade), aquela visão de mundo do passado. Concepção de época que pode ser confrontada com outros vestígios como, por exemplo, os sermões. Nesse sentido, cabe ao historiador fazer indagações a esses textos já munido das categorias extraídas de outras análises, buscando nos limites de sua existência e difusão a concretude dos processos históricos128: Como atinar, de outra forma, com o alcance verdadeiro de certa posições de Vieira, por exemplo, o Vieira das profecias e dos conceitos predicáveis? E não é de admitir-se, com muito mais razão, se já os primeiros europeus estabelecidos entre nós tinham buscado decifrar os segredos da terra segundo imagens e mitos ancestrais de que seriam portadores?129

Mas compreender uma forma de pensar, de visão de mundo, não é o objetivo final da análise. Tais operações servem de substrato para articulação de outras instâncias e mecanismos de compreensão histórica, circunstancialmente mais abrangentes, como esta, feita a partir de comentário à história do Brasil, de frei Vicente do Salvador: Ora, a persistência dessa maneira, ainda estremece da influência dos modelos humanísticos, em quem já escreve, todavia, na era do barroco, é tanto mais significativa quanto está bem longe de ser um caso individual. O que nela parece refletirse é o modo de sentir e é a forma mentis de toda uma sociedade que só aparentemente se despojou dos velhos padrões. Nem se pode cuidar que deva ser grande o abismo entre os homens que escrevem e os que fazem e vivem a História130.

De maneira fluida, sem propor métodos ou sistemas, Sérgio Buarque articula diversos níveis de explicações históricas por meio de vestígios de experiências concretas, modos “de sentir”. A vida fornece a chave que liga o presente do historiador ao significado perdido no tempo, o que sugere mais uma vez a noção de processo histórico e vivência do historicismo alemão. 128. Para outros momentos de questionamento da mesma natureza, ver Visão do Paraíso (versão tese), pp. 80-81 (pp. 70-71), p. 103 (p. 90), pp. 163-164 (pp. 146-167). 129. Idem, p. 77. Trecho suprimido nas edições posteriores. 130. Idem, p. 348 (p. 316).

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A mentalidade ou forma mentis tem um papel fundamental, porém muito distinto do sentido que a “história das mentalidades” ganharia principalmente a partir dos anos 1970 na historiografia de matriz francesa131. Em Visão do Paraíso, a compreensão da mentalidade não é um objetivo em si, com o qual o historiador satisfaz as propostas de suas pesquisas. Ela, na realidade, uma forma ampla pela qual se alinham categorias históricas, documentos e vestígios. Buscando aproximar-se, relacionar-se sensivelmente com essas categorias, a mentalidade permite saltos para outros graus de abrangência nas explicações históricas132. Esse movimento circular, no qual o historiador alterna momentos em que praticamente “põe-se no lugar” do outro, assumindo a linguagem e buscando a lógica do documento, e momentos em que se distancia, procurando analisar quadros gerais, são constantes em Visão do Paraíso133. 131. Ronaldo Vainfas distingue com rigor o tipo de história feito em Visão do Paraíso daquele proposto pela história das mentalidades de matriz francesa feita especialmente após os anos 1960. Ronaldo Vainfas, op. cit. 132. Ilana Blaj e Marina Maluf, em estudo sobre o livro Caminhos e Fronteiras, chegaram em resultado análogo, apontando para o movimento dialético entre as instâncias meio/sociedade/cultura como o amálgama da experiência histórica e do cotidiano na obra de Sérgio Buarque. Ilana Blaj e Marina Maluf, “Caminhos e Fronteiras: O Movimento na Obra de Sérgio Buarque de Holanda”, op. cit. 133. Por exemplo, uma passagem sobre a busca pelo Eldorado na América portuguesa de estruturação semelhante: “Por outro lado, as descrições conhecidas das refulgentes montanhas, que surgem em várias épocas nas capitanias do Centro e do Sul, oferecem entre si tais semelhanças que parecem todas dependentes, em última análise, daquelas notícias levadas a Porto Seguro, já em 1550, pelos índios do sertão, segundo a narrativa de Guillén. / Assim como este, querendo denunciar a abundância de metal amarelo, alude às gamelas que do mesmo metal fazia o gentio, para dar de comer aos porcos, o aventureiro inglês Anthony Knivet, que em 1597 se desgarra no sertão com doze portugueses de uma bandeira saída de Parati, referirá depois, entre as muitas maravilhas de sua jornada, que os índios daquelas partes se valiam do ouro para as suas pescarias, atando à extremidade da linha um granete dele. E se em seu relato o resplendor da enorme serra avistada no percurso não se mostra tão temível que dê para afugentar os índios, como acontecia com as ofuscantes montanhas da versão do espanhol, o fato é que ainda continua a apresentar dificuldades a quem procure acercar-se das encostas. Ele próprio e seus camaradas não tinham conseguido chegar-se a ela durante o dia e com o sol a pino. / Além dessas montanhas deslumbradoras, vira Knivet pedras verdes, e tinham o mesmo verde da erva do campo. Estas ou algumas das gemas brilhantes que também encontrou, brilhantes como cristal, vermelhas, verdes, azuis, brancas, de tanta formosura e galanteria que davam contentamento aos olhos, deviam aparentarse, por sua vez, às esmeraldas e outras pedras finas pressentidas por Filipe Guillém e

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Sérgio Buarque de Holanda buscou constantemente um conhecimento que perpassasse as fronteiras das disciplinas acadêmicas especializadas. Seu horizonte foi pautado pela convicção de que a história consistia na compreensão das sociedades em todos os seus aspectos, sejam eles políticos, econômicos e sociais.Tal convicção teve uma série de desdobramentos metodológicos e epistemológicos, pois, para se compreender a sociedade como um todo, se deveria instrumentalizar o conhecimento com igual abrangência. Nesse sentido, o denominador comum de toda experiência do homem com o mundo é o tempo. Por isso, as várias ciências sociais são articuladas em conjunto e, de certa forma, diluídas em um caldo analítico. Mesmo o material que possibilita o conhecimento dessas disciplinas, cultura material, práticas sociais, textos, são igualados em sua especificidade – todos eles são produtos históricos. Isto não impediu a utilização de expressões e conceitos generalizantes. Nesse sentido, a concepção da história como progressão das épocas – Idade Média, Renascimento, Barroco – não é abandonada, mas profundamente flexibilizada em meio a movimentos circulares explicativos, como o ilustrado anteriormente. A idéia de mentalidade, apesar de seu cunho fortemente antidogmático, cumpre a função central de mediação das experiências históricas concretas. Como pudemos ver, um dos modos fundamentais pelo qual Sérgio Buarque de Holanda procurou compreender a sociedade luso-brasileira em Visão do Paraíso foi através da busca pelas permanências. A compreensão de uma mentalidade significou freqüentemente a identificação de permanências culturais, fossem elas hábitos, concepções filosóficas e mesmo os topoi, tema desenvolvido no capítulo anterior. Isso não indica apenas sua interlocução com um contexto internacional de debates historiográficos. A recorrência desses temas remete também noticiadas por Gandavo. / Por estas mostras julgara-se Knivet a pouca distância de Potosi.Tomando o rumo sudoeste foi dar, porém, com os companheiros, a uma serra áspera e selvagem, depois passada esta, a um lugar de terras pardacentas, todo ele cheio de colinas, penedias e ribeiro. Aqui acharam-se de novo muito ouro, que se apresentava em fragmentos do tamanho de avelãs ou desfeito em pó. Deste pó havia grandíssima quantidade, que cobria, como se fosse areia, as beiradas de muitos riachos”. Visão do Paraíso (versão tese), pp. 46-47 (pp. 39-40).

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às suas discussões com outras disciplinas, como a história literária ou a história da arte. Não custa lembrar que quando Sérgio Buarque criticava os “formalismos”, indagava até que ponto era possível investigar as permanências formais como elementos históricos. Na medida em que o tempo as transformava em simples formas estéticas, era possível compreender como essas formas foram apropriadas, revelando novas experiências, novos meios de se descrever o real134. O deslocamento da análise para as permanências culturais, especialmente as que dizem respeito à cultura portuguesa, não consistem em novidade ou, muito menos, em proposta sem par na historiografia brasileira do período. O debate com Eduardo d’Oliveira França certamente sugere essa aproximação. Em ambos os casos, há a convicção clara de que a análise da estrutura social e econômica portuguesa é a chave para compreender-se o processo de formação da sociedade brasileira de sua época, concepção presente em estudos de muitos outros intelectuais brasileiros de destaque, como Caio Prado Jr. e Gilberto Freyre. No capítulo seguinte nos voltaremos definitivamente aos debates brasileiros nas ciências sociais.Veremos que, em uma análise ampla, o pensamento crítico brasileiro da primeira metade do século XX, impulsionado pelo debate acadêmico europeu da época, especialmente de matriz francesa e alemã, oferecia sua resposta própria ao questionamento elaborado pelo pensamento crítico europeu da segunda metade do XIX sobre a utilidade da história para a vida. A urdidura das vivências históricas tinha um sentido claro e combativo, pois a história serve à compreensão de questões da vida presente. Para isso, deve-se pensar o que estava em jogo nos inúmeros debates voltados à integração da história do Brasil colonial na história da expansão marítima portuguesa e européia, ou seja, o sentido da colonização.

134. Como sugere João A. Barbosa ao analisar a correspondência entre os principais debates internacionais e os dilemas da crítica literária em meados do século XX. João Alexandre Barbosa, “A Paixão Crítica: Forma e História na Crítica Brasileira”, op. cit., pp. XXXI-XXXII.

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capítulo III

Sentidos da Colonização A perspectiva de continuidade de elementos medievais ao longo da formação de Portugal moderno consistia em um modo de indagar-se sobre os aspectos mais conservadores e arcaicos da formação do próprio Brasil. Essa posição marca de modo muito claro as pretensões de Raízes do Brasil, no qual Sérgio Buarque de Holanda procurou identificar algumas das estruturas sociais mais prejudiciais à modernização brasileira, que estavam inegavelmente ligadas ao passado colonial e, por extensão, às estruturas e práticas sociais arcaicas de nossos colonizadores. Por trás dessa interpretação havia uma clara pretensão de intervenção no presente, na medida em que a identificação dessas estruturas poderia abrir caminho para modificações na sociedade brasileira, especialmente em relação à democratização e modernização de nossas estruturas sociais. Essa postura interpretativa não se resumiu à sua obra de estréia: em muitos aspectos Raízes do Brasil é apenas o esboço de um projeto intelectual desenvolvido obstinadamente durante muitos anos. Neste capítulo analisaremos como essa visão negativa do processo de formação do Brasil passou por um complexo processo de elaboração até desempenhar um papel central (mas não absolutamente evidente) em Visão do Paraíso. Para isso, analisaremos em perspectiva de continuidade aquelas que talvez sejam suas duas principais obras, Raízes do Brasil e Visão do Paraíso. Além delas, recorreremos ao longo da análise a uma obra inédita e muito importante de Sérgio Buarque de Holanda que 161

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pode ser enquadrada em um lugar intermediário entre as duas obras mencionadas: Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos.Veremos que a tentativa do autor de articulação de um sentido para a colonização brasileira como parte do projeto exploratório e colonizador das nações européias modernas, em especial Portugal, é parte de um processo mais amplo de rearticulação da historiografia brasileira ocorrido no século XX. É na montagem dessa explicação que encontramos uma forte e pouco explorada interlocução entre Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr., que contribui significativamente para compreender a discussão do sentido da colonização como uma inflexão fundamental da história intelectual brasileira do século XX.

Um percurso convergente: Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos e Visão do Paraíso Aproximadamente dois meses antes da defesa de Visão do Paraíso, em julho de 1958, Sérgio Buarque de Holanda apresentou a tese Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos. Esse trabalho foi defendido na Escola de Sociologia e Política, local em que havia lecionado em anos anteriores1. A razão de sua apresentação era a necessidade da obtenção de título acadêmico de pós-graduação para atender a uma formalidade do concurso de cátedra na Universidade de São Paulo2. O texto permaneceu esquecido durante muito tempo e, até o momento, não foi publicado. Algumas hipóteses podem ser formuladas sobre a origem do trabalho.Talvez suas 145 páginas tenham sido escritas especificamente para sua apresentação como tese. Por outro lado, é também possível supor 1. Sérgio Buarque de Holanda esteve vinculado à Pós-graduação da Escola de Sociologia e Política entre os anos 1956 e 1957; no entanto, a defesa do trabalho de mestrado ocorreu apenas no dia 4 de julho de 1958. A banca foi composta pelos professores Herbert Baldus, Fernando Altenfelder Silva, Odilon Nogueira de Matos, A. R. Muller e, seu orientador, Octavio da Costa Eduardo. Cf. João Ricardo C. Caldeira, “Sérgio Buarque de Holanda: Mestre em Ciências Sociais”, 1998, pp. 228-230. 2. Idem, p. 228.

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que, na urgência do preenchimento de um requisito burocrático, o historiador tenha se utilizado de um texto previamente elaborado. De qualquer maneira, a análise da obra indica uma série de semelhanças com Visão do Paraíso, o que permite supor que Elementos tenha sido escrito ou, pelo menos, significativamente reelaborado na segunda metade dos anos 1950. Como veremos mais adiante, parte do último capítulo de Visão do Paraíso, de cunho conclusivo, possui trechos idênticos ao primeiro capítulo de Elementos Formadores, o que sugere que o autor tenha utilizado o segundo como base para elaboração do primeiro. Não é objetivo deste capítulo realizar uma comparação sistemática dos dois textos, mas utilizá-los para um esclarecimento mútuo de seu significado historiográfico. Ademais, outras razões sugerem tal proximidade. O argumento central da tese é sintomático – a formação da sociedade portuguesa moderna destoa do contexto geral europeu por uma espécie de arcaísmo intrínseco ligado ainda a permanências medievais3. Durante a época dos descobrimentos, Portugal não fez mais do que reproduzir essas práticas, adaptando-as às realidades de suas colônias. Como apresentamos no capítulo anterior, esse é um dos eixos da tese que apresentaria dois meses depois, Visão do Paraíso. A diferença entre os dois textos reside principalmente no foco da investigação. Se a tese de cátedra privilegia a aclimatação das permanências medievais na colônia, Elementos Formadores volta-se à compreensão da sociedade portuguesa que a fundou.Também sob essa perspectiva, ambos os trabalhos aparentam ser complementares. Em Elementos Formadores, Sérgio Buarque analisa sistematicamente características da sociedade portuguesa de finais da Idade Média e início da Idade Moderna que se reproduziriam de modo muito semelhante na colônia. Em sua visão, tais elementos viriam a ser a base das instituições e da sociedade brasileira contemporânea. Em uma obra mais curta e, de certo modo, mais didática, seu modo de trabalho transparece de forma mais evidente. É interessante observar que o foco de sua reconstituição é, de fato, a sociedade portuguesa da época dos descobrimentos, mas 3.

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Idem, p. 145.

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praticamente todos os “elementos” analisados são aqueles estruturantes da colônia e, por extensão, da sociedade brasileira. A primeira questão que merece relevo é a semelhança do tipo de colonização adotado pelos portugueses com sua própria estrutura social. No trecho a seguir merece destaque a construção fortemente imagética produzida pelo historiador a partir de um relato de viagem do cavaleiro Leão de Rozmital, o qual descreve, ao entrar em Portugal, um território árido, inabitado, à deriva. Sérgio Buarque de Holanda escreve: Parece natural, aliás, que tão remotas paragens se espelhassem de qualquer forma alguns padrões e imagens familiares aos colonos originários de um país onde a parcela mais ativa da população se adensava junto às praias, às angras, às bocas dos rios navegáveis, entregue à faina do comércio, e também dos misteres da navegação, das pescarias do tráfego das salinas. Mesmo quando o Reino ainda não tinha principiado a despovoar-se ao cheiro da canela indiana, quem saísse por exemplo de Salamanca, e alcançasse a fronteira pelo Douro, que era transposto em simples balsas, iria deparar sobre uma desolada paisagem, com uma gente rala e miserável, vivendo em furnas, quase à maneira de trogloditas. Foi precisamente o que sucedeu em 1466 aos companheiros de Leão de Rozmital, cavaleiro da Boêmia, que chegara a atravessar o país sem achar mantimento para os homens e as bestas de transporte e carga. A razão estava nisto, que ninguém cogitava em mandar fazer ali estradas, de modo que acontecia passarem-se quatro e cinco anos consecutivos sem que viesse em toda região um único visitante. A fome, a sede, as agruras da rude jornada, só cessariam para os homens de Leão quando chegaram finalmente a Braga, cidade considerável onde os esperava melhor acolhida por parte do bispo local4.

4. Idem, pp. 9-10. Em Visão do Paraíso, pode-se encontrar um trecho quase idêntico, que aqui reproduzo: “A persistência desse tipo de colonização poderia resultar, além do exemplo italiano, de uma fidelidade aos padrões e imagens mais familiares a um país onde a parcela mais ativa da população se adensava junto às praias, às angras, às bocas dos rios navegáveis, entregue à faina do comércio, e também dos misteres da navegação, das pescarias do tráfego das salinas. / Mesmo quando o Reino ainda não tinha principiado a despovoar-se ao cheiro da canela indiana, quem saísse por exemplo de Salamanca, e alcançasse a fronteira pelo Douro, que era transposto em simples balsas, iria deparar sobre uma desolada paisagem, com uma gente rala e miserável, vivendo em furnas, quase à maneira de trogloditas. / Foi precisamente o que sucedeu em 1466 aos companheiros de Leão de Rozmital, cavaleiro da Boêmia, que chegara a atravessar o país sem achar mantimento para os homens e as bestas de transporte e carga. A razão estava nisto, que ninguém cogitava em mandar fazer ali estradas, de modo que acontecia passarem-se quatro e cinco anos consecutivos sem que viesse em toda região um único visitante.

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A presença de “gente rala e miserável”, a ausência de estradas e de visitantes, remete a uma paisagem fora do controle do Estado, de certa maneira, temporalmente deslocada, como se compusesse uma imagem medieval. Não é surpreendente que na perspectiva de Sérgio Buarque essas características de Portugal coincidissem com elementos do Brasil colonial. Não podemos esquecer que a colonização estruturada em feitorias, entrepostos estabelecidos com objetivos comercias e de defesa, segundo o historiador, foi baseada em um modelo eminentemente medieval – o dos navegadores genoveses, que utilizaram esse sistema de forte cunho comercial em locais como Chipre e Creta5. Tal processo ocorreu provavelmente pelo fato de que, desde o início do século XIV, Portugal mantinha contatos com navegadores genoveses, a tal ponto que um deles, conhecido como Manuel Peçanha, foi contratado pelo rei D. Dinis como almirante-mor de Portugal6. De qualquer forma, é interessante observar que, no trecho anterior, Sérgio Buarque ressalta que essas características marcaram durante muito tempo a própria distribuição demográfica e econômica portuguesa7. Ao explicar a continuidade da tradição marítima genovesa, Sérgio Buarque formula uma questão que se tornaria motivo de debates e polêmicas, especialmente a partir da defesa de Visão do Paraíso. Na ocasião, um dos examinadores, Eduardo d’ Oliveira França, discordou do caráter arcaizante da visão de mundo do português na época dos descobrimentos marítimos, chegando a apontar uma contradição na

A fome, a sede, as agruras da rude jornada, só cessariam de fato quando os viajantes chegassem a Braga”. Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso (versão tese), p. 365. 5. Sérgio Buarque de Holanda, Elementos Formadores..., op. cit., p. 5. 6. Visão do Paraíso (versão tese), p. 361 (pp. 328-329). 7. “Na aurora dos tempos modernos, os estabelecimentos coloniais dos portugueses compõem-se apenas de praças isoladas, situadas quase invariavelmente junto à fralda do mar, embora de longe possam lembrar um imenso império e, como tal, se façam administrar. Assim os descreveria, por volta de 1827, Leopoldo von Ranke, nas escassas linhas que dedica ao seu tratado dos príncipes e povos do sul da Europa. E a mesma idéia, com pouca diferença, é realçada, entre tantos outros, por um ilustre historiador dos nossos dias, R. H.Tawney, que apresenta esse império colonial lusitano do séc. XVI como uma simples linha de fortalezas e feitorias de dez mil milhas de comprimento.” Sérgio Buarque de Holanda, Elementos Formadores..., op. cit., p. 1.

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tese de Sérgio Buarque de Holanda – como os portugueses poderiam ser arcaizantes se sua colonização apoiava-se em práticas dos povos italianos, berço da Modernidade. Como vimos no capítulo anterior, Sérgio Buarque respondeu que isto não se tratava de contradição, pois enquanto os italianos já vivenciavam a aurora da Modernidade, os portugueses se apoiavam em noções que alguns desses povos praticavam séculos antes8. Na realidade, o que faziam os portugueses em sua empreitada colonial consistia na aplicação de uma fórmula tradicional medieval de raízes antigas9. Uma espécie de princípio conservador lusitano, diretamente ligado à sua mentalidade medieval. Na ausência de experiências concretas, predominava a aplicação da tradição, assim como sucedeu em outros domínios, como a literatura. A experiência prática fazia, nesse caso, o papel da atenuação e, quando necessário, adaptação dessas fórmulas a novas realidades. Esse impulso voltado à tradição guarda em seu âmago um forte cunho mercantil. A estrutura de feitorias, que margeavam as costas dos territórios dominados, caracterizava um tipo de colonização voltado eminentemente para sua exploração através da agricultura ou do extrativismo, seguindo o alto interesse e valor comercial desses produtos no mercado europeu. A experiência colonial portuguesa pautava-se por um complexo conluio de elementos arcaicos e medievais. Apesar das semelhanças, o modo de exploração marítima e comercial portuguesa distinguia-se em muitos aspectos de seus antecessores genoveses, pois não se pode perder de vista a longa distância temporal que separa os fenômenos. Sérgio Buarque também procurava compreender a especificidade do processo de expansão marítima portuguesa como resultante de um complexo quadro de hipertrofia do poder real, embrião de seu absolutismo monárquico. Diferentemente do que sucedeu na experiência 8. Myrian Ellis, “Concurso para Provimento da Cadeira de História da Civilização Brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo”, op. cit., pp. 503-504. 9. Sérgio Buarque de Holanda, Elementos Formadores..., op. cit., p. 9.A parte reescrita em Visão do Paraíso que coincide com esse trecho se encontra no segundo parágrafo da p. 361.

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das repúblicas italianas, o poder monárquico lusitano submeteu os interesses privados e transformou o Estado no “primeiro negociante do país”10. Em suas palavras: A verdade é que a Coroa, no que toca aos senhorios de ultramar, não renunciou, senão em termos restritos, à ação direta, e ainda assim o fez nos casos em que esta não prometesse imediatamente bom sucesso. É o que sucederá de algum modo no Brasil, cuja colonização efetiva tem inìcio, por outro lado, num momento em que a força expansiva de Portugal parece ameaçada de colapso11.

Além disso, é possível afirmar que a fórmula de colonização genovesa, baseada em feitorias e fortalezas ao longo da faixa costeira, beneficiava, em muitos aspectos, o controle do poder régio, pois, isolados, os entrepostos não conseguiriam comunicar-se entre si, mas apenas com a metrópole. O estabelecimento de nexos entre a formação moderna de Portugal e a permanência de elementos fortemente arcaicos nesse processo alimenta, em um nível mais profundo do pensamento do autor, uma reflexão sobre o sentido da formação do Brasil. O trecho a seguir consiste em um dos raros momentos em que Sérgio Buarque interrompe a sutileza que caracteriza seu estilo e estabelece vigorosamente uma linha compreensiva cuja referência é um dado de seu presente. Dispor assim da abundância de produtos apetecidos e procurados pelos estrangeiros, como o são as especiarias do Oriente, o ouro da Mina, o marfim, os escravos, de madeiras tintoriais, mais tarde, o açúcar, o tabaco, os diamantes, o café, para a troca, receber os gêneros mais necessários ao sustento diário, não é essa, em suma, a idéia que terão constantemente em mente os portugueses ao longo de sua expansão ultramarina? No Brasil especialmente é o desenvolvimento de produções altamente cobiçadas no estrangeiro, produções para exportar, o que representará desde o início e não deixa de representar até hoje a meta de nossa existência econômica. “Se vamos a essência de nossa formação”, escreve um autor recente, “veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco e alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois algodão e, em seguida café, 10. Idem, pp. 7-8. A parte reescrita em Visão do Paraíso que coincide com esse trecho se encontra na p. 363. 11. Idem, p. 9. A parte reescrita em Visão do Paraíso que coincide com esse trecho se encontra na p. 364.

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para o comércio europeu. Nada mais do que isto. É como tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem aquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileira”∗12.

Observamos assim a estruturação de uma operação compreensiva pautada pela forte continuidade entre as recorrências medievais da formação de Portugal e o processo de colonização do Brasil. Uma reflexão sobre a dependência por meio de laços econômicos da sociedade brasileira, o que é “até hoje meta de nossa existência econômica”, permite uma investigação histórica que reúne elementos explicativos de diversos níveis de profundidade. Os métodos coloniais exploratórios podem ser compreendidos articulando esferas como a estrutura colonial, a sociedade portuguesa moderna, a forma de colonização das repúblicas medievais italianas e mesmo a história dos fluxos comerciais no Mediterrâneo no período da Antigüidade. Opera-se, de certo modo, um questionamento retrospectivo no qual algo dado no presente condiciona uma investigação que aglomera vestígios do passado, estabelecendo um sentido13. Apesar de recortes diferentes, é possível pensar nas duas teses como etapas de um projeto único, muito embora a tese de cátedra demonstre um acabamento mais refinado do ponto de vista do estilo e da clareza da exposição. Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos busca o estabelecimento do sentido da formação do Brasil em relação à formação da sociedade portuguesa na Idade Moderna. Em Visão do Paraíso, por sua vez, é possível afirmar que o autor manteve o mesmo objetivo, mas deslocando o foco para o processo de colonização da América portuguesa14. ∗

Caio Prado Júnior, Formação do Brasil Contemporâneo, p. 26 (nota de Sérgio Buarque de Holanda). 12. Trecho extraído de: Sérgio Buarque de Holanda, Elementos Formadores..., op. cit., p. 1. 13. Sobre a constituição do conhecimento histórico a partir dos questionamentos presentes do historiador, ver Jacques Le Goff, “História”, 1976, pp. 162-165; Marc Bloch, Apologia da História..., op. cit., pp. 65-66. 14. Não se pode ignorar o forte viés comparativo dos diferentes modos de colonização da América portuguesa e da espanhola que estrutura Visão do Paraíso. No entanto, essa questão não será analisada minuciosamente neste texto. Sua persistência como

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Figura 5. Original mimeografado de Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos, em que Sérgio Buarque discutite o sentido da formação do Brasil, referindo-se diretamente à reflexão de Caio Prado Jr. FONTE: Fundo

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Sérgio Buarque de Holanda, Siarq/Unicamp

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Essa convergência transparece na análise do primeiro capítulo de Elementos Formadores, pois, ao que parece, ele foi a base para a redação do capítulo conclusivo de Visão do Paraíso. Se o trecho destacado anteriormente permite vislumbrar um sentido combativo para o trabalho compreensivo do historiador, que explica a faceta incômoda de seu presente de dependência econômica por meio da compreensão do caráter de nossa colonização, é justo perguntarmos qual seria então o sentido construído por Visão do Paraíso. Em sua tese de cátedra, a passagem destacada foi bastante modificada. O que chama a atenção é que, dentre os poucos elementos comuns, permanece integralmente a transcrição de um trecho de autoria de Caio Prado Júnior. A seguir, destacamos o respectivo trecho em Visão do Paraíso: Se aquela hipertrofia urbana de Lisboa é desconhecida no Brasil colonial onde o centro de gravidade se acha, ao contrário, no mundo agrário, mantém-se aqui, no entanto, e naturalmente em escala maior, a mesma espécie de extroversão econômica e social já existente no Reino, breve epítome em muitos aspectos dos mundos explorados pela sua gente. “Se vamos à essência de nossa formação”, diz um historiador brasileiro, “veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco e alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais do que isto. É como tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem aquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileira∗15.

Essa passagem integra o último capítulo da tese Visão do Paraíso. Nela, Sérgio Buarque de Holanda promove uma espécie de salto de abrangência em seu trabalho, pois até então o leitor acompanha uma argumentação estruturada em torno do processo de aclimatação de mitos europeus na consciência dos colonizadores. No trecho destacado, o autor associa tema desde os primeiros escritos de Sérgio Buarque de Holanda, ainda no início dos anos 1920, sugerem uma pesquisa à parte. Para uma análise dessa questão na obra de Sérgio Buarque de Holanda das décadas de 1930 e 1940, ver as duas primeiras partes de Robert Wegner, A Conquista do Oeste: A Fronteira na Obra de Sérgio Buarque de Holanda, op. cit. * Caio Prado Júnior, Formação do Brasil Contemporâneo, p. 28 (nota de Sérgio Buarque de Holanda). 15. Trecho extraído de Visão do Paraíso (versão tese), p. 366 (p. 333).

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diretamente o processo de aclimatação desse conjunto de permanências ao sentido exploratório da colonização do Brasil, fazendo referência ao livro de Caio Prado Jr. Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942. Essa referência tem um forte impacto no desenvolvimento do livro, uma vez que atribui um sentido geral ao seu tema central – o processo colonizador no Brasil. Ademais, ela é uma das sustentações de um capítulo de tom conclusivo, no qual o autor procura esclarecer qual é importância dos motivos edênicos no desenvolvimento da história do Brasil. Sérgio Buarque não costuma estabelecer conclusões categóricas em seus trabalhos, e a estruturação desse capítulo busca provavelmente uma adequação de Visão do Paraíso aos moldes de uma tese de concurso. A interlocução entre os dois historiadores foi pouco trabalhada pela historiografia, talvez ainda muito influenciada pelo histórico da relação pessoal entre os autores. Sabe-se que mantiveram uma relação duradoura de amizade e admiração, mas a distância entre suas concepções do trabalho intelectual pareceu impor uma limitação à sua interlocução16. Mapeando as referências a Caio Prado Jr. na obra de Sérgio Buarque de Holanda até finais dos anos 1950, encontramos apenas algumas citações, uma incluída na revisão para a segunda edição de Raízes do Brasil17 e outra em Monções18, além de referências em artigos de jornal19 e na 16. Na perspectiva de Maria Odila L. S. Dias, quando indagada sobre o relacionamento entre os dois intelectuais: “Eram muito amigos, respeitavam muito um ao outro. Caio, no fundo, achava que o professor Sérgio era um grande escritor, envolvido mais com os livros do que com a sociedade, com o que não concordo. É verdade que Caio se considerava um historiador político por excelência. Ele sempre se comparava ao professor Sérgio nesse ponto: ‘Sérgio é um esteta, tem uma memória excepcionalmente erudita e a mim só me interessam os problemas sociais!’ Os livros na sua biblioteca não eram raridades, nem sabia se eram de primeira edição; não se considerava um bibliófilo”. José Geraldo Vinci de Moraes e José Marcio Rego, Conversas com Historiadores Brasileiros, 2002, p. 190. 17. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 2. ed., p. 298 – nota à p. 258 (p. 208 – nota 4 do capítulo “Nossa Revolução”) Toda referência às primeiras edições de Raízes do Brasil acompanhará uma indicação entre parênteses de sua localização em edição recente (26.), para facilitar o acesso ao leitor. 18. Sérgio Buarque de Holanda, Monções, 2. ed., p. 113, nota 1 do capítulo “Sertanistas e Mareantes” (3. ed., p. 68). 19. Como por exemplo a série de artigos de Sérgio Buarque de Holanda intitulada “Verdade e Ideologia”, Diário Carioca, 11, 13 e 25 maio 1952.

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documentação pessoal20. Entretanto, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, ao se aprofundar no estudo de suas obras é possível encontrar uma relação intelectual intensa e, muitas vezes, convergente. O trecho de Formação do Brasil Contemporâneo destacado em Visão do Paraíso refere-se à idéia central do livro de Caio Prado Jr., cujo desenvolvimento representa a síntese de mais de uma década de estudo, pensamento crítico e militância política21. Desde a publicação de Evolução Política do Brasil, em 1933, Caio Prado Jr. elaborou uma interpretação da história do Brasil integrada na história da expansão marítima dos povos europeus modernos22. Assim como aconteceria com Sérgio Buarque de Holanda, o seu período mais intenso de debates e amadurecimento intelectual, que culminou com a produção de uma obra eminentemente historiográfica, é marcado pela aproximação com um espectro amplo de disciplinas acadêmicas, como a geografia, a filosofia e a economia. Esses debates intelectuais foram impulsionados por seus contatos com a recém-fundada Universidade de São Paulo, na qual cursou História e Geografia, e pela sua militância na Associação dos Geógrafos do Brasil. Durante esse período, Caio Prado Jr. aproximou-se definitivamente do marxismo, que lhe forneceu instrumental teórico a uma reflexão que procurava integrar a história do Brasil no movimento de expansão marítima e comercial européia, ressaltando os seus laços estruturais de dependência23. O sentido da colonização era a produção de gêneros agrícolas para o mercado mundial, através do monopólio comercial português. Além da questão do pacto colonial e do mercado exter20. O arquivo central da Unicamp guarda algumas fotos e correspondências entre os dois intelectuais. 21. Para uma análise do processo compositivo de Formação do Brasil Contemporâneo nos anos 1930-1940, ver Paulo Teixeira Iumatti, Caio Prado Júnior, Historiador e Editor, especialmente nos capítulos II (“Caio Prado Jr. e o Pensamento da Década de 1930”), III (“Tempo”) e IV (“Cultura e Estilo”). 22. Paulo Teixeira Iumatti, “O Percurso para o ‘Sentido da Colonização’ e a Dinâmica da Historiografia Brasileira nas Primeiras Décadas do Século XX”, 2001, pp. 1-2. 23. Para uma análise da aproximação entre Caio Prado Jr. e a dialética e o materialismo histórico marxista ver Bernardo Ricupero, Caio Prado Jr. e a Nacionalização do Marxismo no Brasil, 2000.

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no, o autor apropriou-se do conceito marxista de plantation system24, adaptando-o à realidade brasileira e problematizando historicamente questões como o “trabalho” e a “propriedade privada”. É interessante notar como a questão da distribuição da terra, já significativa em Evolução Política do Brasil, foi ganhando um papel fundamental em sua obra dos anos 1930, sendo tema de um texto relevante publicado em 1935 na revista Geografia25. Mais interessante ainda observar que, ao falar da transição da produção de cana-de-açúcar para o café, Sérgio Buarque de Holanda tenha incluído justamente uma referência a esse artigo na revisão à segunda edição de Raízes do Brasil, publicada em 1948. No artigo de Caio Prado Jr., a noção de sentido aparece de forma concreta e metódica – suas pesquisas apontavam para o predomínio da grande propriedade fundiária em todos os distritos do Estado de São Paulo, o que lhe permitia o estabelecimento de uma linha compreensiva com o passado, buscando as razões históricas para essa característica de seu momento atual. Caio Prado Jr. acreditava que um dos dilemas mais profundos da sociedade brasileira era o processo histórico de distribuição de terras26. 24. “Sendo um conceito bastante vago, o sistema de plantações implicava, já na obra de Marx, a comparação e identificação de traços comuns em diferentes sistemas sociais e épocas históricas. Colocava, para o pesquisador do século XX, o problema da especificidade da época moderna em relação a outras épocas, além de inúmeras outras questões que só a pesquisa empírica, em diálogo com as pesquisas em curso ou já realizadas poderia responder. As observações de Marx, assim como as de qualquer outro autor isolado, não eram suficientes. Assim, alguns aspectos fundamentais desenvolvidos por Caio Prado em seu percurso para o “Sentido da Colonização” tomaram a forma de levantamento e pesquisa sistemática da bibliografia e documentação referentes às mais variadas épocas e países, bem como às suas relações recíprocas, trazendo consigo a necessidade do procedimento comparativo e do restabelecimento das inter-ligações com o sistema mundial.” Paulo Teixeira Iumatti, “O Percurso para o ‘Sentido da Colonização’”, 2005, p. 6. 25. Caio Prado Jr., “Distribuição da Propriedade Fundiária no Estado de São Paulo”, 1935. 26. “O caráter mais profundo da colonização reside na forma pela qual se distribui a terra. A superfície do solo e seus recursos naturais constituíam, naturalmente, a única riqueza da colônia. Não éramos as Índias, um país de civilização avançada, cujo aproveitamento pelos conquistadores se pudesse fazer pelo comércio ou pelo saque – que na época se confundiam em um só conceito. Aqui, uma só riqueza: a agricultura ou pecuária, subordinadas ambas à posse fundiária. Assim um povo de comerciantes, que fazia

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Quanto a esse aspecto, Visão do Paraíso trouxe novos elementos ao tema do sentido da colonização, pois sugere a projeção retrospectiva de dilemas da sociedade brasileira na questão da permanência das práticas mentais portuguesas. Tais práticas, como tratado no capítulo anterior, eram arraigadas em uma “visão de mundo” em muitos aspectos medieval. A seguir, nos aprofundaremos na análise historiográfica do tema do sentido da colonização desde seu desenvolvimento na obra de Sérgio Buarque de Holanda até sua relação com os debates acadêmicos dos anos 1940 e 1950.

O sentido da colonização em perspectiva na obra de Sérgio Buarque de Holanda A busca dos europeus por um cenário ideal, cheio de riquezas, como ouro e diamantes, riquezas que se prestam a simples extração, é o motivo central de Visão do Paraíso. De um lado, o cenário ideal perseguido pelos colonizadores era composto de suas experiências ancestrais, mitologias e nostalgias. De outro, não seria exagerado dizer que a paisagem e as riquezas naturais dos territórios achados coincidiram, pelo menos em parte, com as imagens que queriam encontrar. A empreitada dos portugueses merece atenção especial nesse processo – “são razões menos especulativas, em geral, ou fantásticas, do que propriamente pragmáticas, o que incessantemente inspira aqueles cronistas, ainda quando, em face do espetáculo novo, chegam a diluir-se em êxtases enamorados”27. Essa visão mais prática do mundo, apegada à experiência imediata e cotidiana, é um dos principais aspectos que diferenciam os portugueses dos espanhóis em suas empreitadas coloniais. Na ótica de Sérgio Buarque de Holanda, por mais que isto se assemelhe a uma concepção mais “moderna”, um século se afastara do cultivo do solo para se dedicar de preferência à especulação mercantil, era novamente arrastado para o amanho da terra.” Caio Prado Jr., Evolução Política do Brasil, 1999, p. 14. 27. Visão do Paraíso (versão tese), p. 346 (p. 315).

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[...] é bem menos nítido do que se poderia supor à primeira vista, o contraste entre a capacidade de adesão à realidade, que distingue tantos desses homens, e um fundo singelamente crédulo. Pode dizer-se ao contrário, que seu realismo é, de fato, tributário de sua credulidade, que constitui propriamente uma forma de radical docilidade ou passividade ante o real. Não há nele, verdadeiramente, uma negação dos infinitos possíveis da Natureza, nem, evidentemente, do sobrenatural, por mais que o afetem de preferência, e espontaneamente, as formas mais visíveis, palpáveis ou apenas serviçais que o mundo oferece. O sobrenatural preserva, para eles, seus eternos direitos. Não chega, por isso, a ser um verdadeiro e excitante problema, como fora para o Humanismo do tempo, que mal os tocara, e nem era um problema falso, como é hoje para os positivismos28.

O “realismo” sempre ligado ao prático e ao imediato, essa “apatia da imaginação” em que mesmo aquelas imagens totalmente incomuns parecem fazer parte do familiar, não teria sido o segredo dos portugueses para “se adaptarem a climas, países e raças diferentes?”29 O impulso conservador em relação às correntes de pensamento da época está ligado, portanto, a um imperativo de adaptação e sobrevivência na expansão marítima portuguesa. Seguindo essa perspectiva, o autor comenta sobre o papel do descobrimento do Brasil: Surgindo com relativo atraso no horizonte das navegações lusitanas, sem o engodo de tesouros e maravilhas que, bem ou mal, tinham sido causa de tantas outras expedições descobridoras, o Brasil não oferece campo nem mesmo a essas cintilantes associações. Ainda quando vindos por livre vontade, seus antigos povoadores hão de habituar-se nele a uma natureza chã e aparentemente inerte, e aceitá-lo em tudo tal como é, sem a inquieta atração de outros céus ou de um mundo diverso. Portos, cabos, enseadas, vilas, logo se batizam segundo o calendário da Igreja, e é um primeiro passo para se batizar e domesticar a terra. São designações comparativas, como a significar que a lembrança e o costume devem prevalecer aqui sobre a esperança e a surpresa. As próprias plantas e os bichos receberão, muitas vezes, nomes inadequados, mas já familiares ao adventício, que assim parece mostrar sua vontade de ver prolongada apenas, no aquém-mar sua longínqua e saudosa pátria ancestral. Cópia em tudo fiel do Reino,“um novo Portugal”: é o que querem ver no mundo novo, e é o elogio supremo que todo ele ou alguma de suas partes pode esperar destes reinóis30.

28. Idem, p. 121 (p. 105). 29. Idem, p. 120 (p. 104). 30. Idem, p. 163 (p. 146).

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O princípio conservador da mentalidade portuguesa é diretamente ligado à sua experiência marítima colonizadora (e de seus antecessores). Trata-se de uma espécie de imperativo de sobrevivência desenvolvido pelo explorador português no Novo Mundo.Tal postura parece acompanhar um sentimento de desapego à terra. Uma sensação de que a qualquer momento pode-se retornar à metrópole, que se traduz em uma vontade de anular a distância, adaptando tudo para o mais próximo da terra natal. Por isso, a partir dos primeiros anos da colonização, diante da ausência dos tão esperados metais e pedras preciosas, ela coube a “seus colonos sempre adventícios no país, quase sempre aferrados às fraldas do mar, com um pé aqui, outro no Reino, pois todos esperam de se ir algum dia e tudo o que colhem é para lá”31. Em muitos aspectos, o Eldorado da América portuguesa foi a lavoura, capaz de oferecer lucro rápido, voltado para o mercado europeu e à metrópole. Foi o que pensou Brandônio, no Diálogo das Grandezas do Brasil, analisado nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda: Na própria réplica de Brandônio a essas razões do seu amigo (Alviano), novo na terra e ignorante nas suas grandezas verdadeiras, não se deixa notar um denodado admirador dos seus tesouros encobertos. Se o outro, duvidoso deles, dá como efeito de sua inexistência, e de serem ruins conquistadores os portugueses, o contrastarem-se estes, nesta América, com os seus açúcares, em contraste com os castelhanos, a ele, Brandônio, parece-lhe que não fez Deus pouca mercê ao Brasil com aquele desengano das minas nunca achadas, pois mostrou aos seus moradores o muito que podiam tirar da lavra das canas, dispensando-os de alargarem-se para o sertão. Essa mesma ocupação de fazer açúcares, que Alviano tinha por tão pequena, ele, ao contrário, a reputava por grandíssima e, muito maior, em realidade, do que a de cavoucar a terra atrás de minas de ouro e prata32.

No entanto, até o próprio Brandônio lamentaria o pouco proveito que fazem os portugueses da terra, ocupando apenas a faixa litorânea e não explorando seu interior, aos moldes dos castelhanos33. A propósito, Sérgio Buarque de Holanda dedica boa parte de seu livro para mostrar 31. Idem, pp. 119-120 (p. 104). 32. Idem, p. 109 (p. 95). 33. Idem, p. 366 (p. 333).

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que, especialmente a partir do século XVII, a busca pelo “Eldorado” na América portuguesa se intensificaria por meio de iniciativas tanto oficiais como particulares. As notícias das minas peruanas motivavam de tal forma esses exploradores que o que eles buscariam nem era tanto diamantes ou metais preciosos34. “Em outras palavras: o que no Brasil se cuidava encontrar era o Peru, não era o Brasil”35. Para os colonizadores da América portuguesa havia muitos indícios da existência do “Eldorado” na América lusitana. A semelhança de sua paisagem com as descrições bíblicas no Paraíso era, sem dúvida, um argumento forte, pois nessas descrições constava a existência de metais e pedras preciosas, todos passíveis de extração sem grande esforço. Não cabe indagar este propósito se aquele mundo mítico chegou a brotar espontaneamente entre os nossos povoadores ou se o suscitaram, ao contrário, fluxos externos. Estes seriam naturalmente inevitáveis, desde o instante em que os mesmos povoadores e colonos, que a princípio esperavam ver convertido o Brasil num outro Portugal, passaram, por vezes, a desejá-lo um outro Peru. O importante é que não pareceram ausentes, mas foram, em vez disso, dos fatores ativos da expansão colonizadora, quase todos os tempos formaram como que o cortejo mágico e resplendor das minas preciosas36.

Pouco a pouco o mito do “Eldorado” foi adaptado segundo os limites do plausível admitidos pela mente do colonizador de origem lusitana. Muitas das entradas e bandeiras organizadas a partir de São Paulo tiveram seus objetivos e coordenadas baseadas nesses mitos. Graças a tais iniciativas, a expansão dos limites geográficos do território lusitano na América se concretizou, resultando nas dimensões quase continentais do Brasil atual. A ausência de indícios e provas

34. “O certo é que, à medida que se vão desvendando e conhecendo os tesouros das cordilheiras, aviva-se paralelamente, na corte de Lisboa, o interesse pelos destinos da Terra de Santa Cruz ameaçada de cair em mãos de intrusos cobiçosos. Não é por acaso se, com um breve intervalo, ao descobrimento das riquezas do Peru se segue uma participação mais imediata do Estado português nos negócios do Brasil, através do governo geral: intervalo de apenas quatro anos, o suficiente para ganharem corpo e melhor se publicaram as notícias daquele achado.” Idem, p. 105 (pp. 91-92). 35. Idem, p. 118 (p. 103). 36. Idem, p. 164 (p. 147).

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mais concretas da existência das minas acabou fazendo com que os exploradores se voltassem a uma atividade mais segura e de retorno mais imediato – o apresamento de indígenas37. O que não é surpreendente, na medida em que o ânimo quase extrativista dessa atividade, a busca do lucro mais imediato possível, persiste intacto, mesmo que momentaneamente as “peças” substituam as “pedras”. Concepções que remontam ao seu livro de estréia, Raízes do Brasil, ressoam na análise de Sérgio Buarque de Holanda. Suas descrições do colonizador lusitano, em seu afã de tudo extrair visando ao lucro imediato e sem escrúpulos, lembram em muito o conceito de “aventureiro”. Em suas palavras publicadas pela primeira vez em 1936: “E essa ânsia de prosperidade sem custo, de títulos honoríficos, de posições e riquezas fáceis, tão notoriamente característica da gente de nossa terra, não é bem uma das manifestações mais cruas do espírito de aventura?”38 Espírito de aventura que contrasta com a figura do trabalhador, caracterizada pelo planejamento minucioso, e o esforço lento e constante39. É possível afirmar que muitas outras questões que persistem, e que serão desenvolvidas obstinadamente em praticamente todo o restante da obra de Sérgio Buarque de Holanda, já estão presentes nessa obra. A reflexão sobre a figura histórica típica do aventureiro é justamente o que explica o nosso tipo de exploração agrária, associação reforçada na revisão que resultou na segunda edição de Raízes do Brasil: O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho. A mesma, em suma, que se tinha acostumado a alcançar na Índia com as especiarias e os metais preciosos. Os lucros que proporcionou de início, o esforço de plantar a cana e fabricar o açúcar para mercados europeus, compensavam abundantemente esse esforço – efetuado, de resto, com as mãos e os pés dos negros –, mas era preciso que fosse muito simplificado, restringindo-se ao estrito necessário às diferentes operações40.

37. 38. 39. 40.

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Idem, pp. 64-65 (pp. 55-56). Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 1. ed., 1936, p. 24 (p. 46). Idem, p. 21 (p. 44). Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 2. ed., 1948, p. 46 (p. 49).

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Essa associação contribuiu para um acréscimo significativo na segunda edição da obra em relação ao seu argumento sobre a capacidade de adaptação dos primeiros colonos41 buscando lucro fácil e rápido; seu desapego à terra fez com que procurassem “recriar aqui seu meio de origem”42.Acréscimo sintomático para um autor que se preocupava com a exploração dessa questão no terreno da cultura material. A segunda edição de Raízes do Brasil, publicada em 1948, é praticamente contemporânea ao período compreendido entre a publicação de Monções, em 1945, e à elaboração dos artigos que seriam reunidos em Caminhos e Fronteiras. Ao longo dessas obras, o autor aprofunda uma das questões centrais de Raízes do Brasil, focando-se na história da adaptação do europeu na América portuguesa, desde sua exploração pura e simples até a fundação de uma colônia efetiva, processo que aconteceu muitas vezes à revelia do poder central. Raízes do Brasil representa, assim, a célula fundamental da visão de Sérgio Buarque de Holanda sobre a sociedade brasileira. Muitos de seus temas persistem obstinadamente em seus livros posteriores. O sentido exploratório da formação do Brasil é certamente um desses temas. Por sinal, a questão das relações desse tipo de colonização com os laços medievais portugueses, apesar de já presentes em Raízes, são certamente reforçadas e aprofundadas, como podemos ver na comparação de alguns trechos da primeira e da segunda edições da obra: Na primeira edição: A liberdade dos portugueses, em comparação com esse exclusivismo (da legislação espanhola que proibia a entrada e a prática de atividades comerciais por parte de estrangeiros), é antes uma atitude negativa, pouco definida, é que resulta principalmente de sua moral interessada, moral de negociantes. Não importa aos nossos colonizadores que seja frouxa e insegura a disciplina, fora daquilo em que os freios pudessem melhor aproveitar e imediatamente aos seus interesses43.

41. “Assim foram nossos primeiros colonos, instrumentos passivos, sobretudo, aclimatavam-se facilmente, aceitando o que lhes sugeria o ambiente, sem cuidar de impor-lhe normas fixas e indeléveis”. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 1. ed., pp. 26-27. 42. Idem, p. 25. 43. Idem, p. 81.

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Na segunda edição (mudança definitiva): Essa liberdade dos portugueses pode parecer, em comparação, uma atitude negativa, mal definida e que proviria, em parte, de sua moral interessada, moral de negociantes ainda sujeitos, por muitos e poderosos laços, à tradição medieval44.

No primeiro trecho podemos observar que as características exploratórias da colonização portuguesa são muito parecidas com as reflexões estabelecidas em Visão do Paraíso. Na comparação entre os dois trechos, a descrição do caráter exploratório é substituída por uma indicação dos “muitos e poderosos laços” medievais que sustentam tal visão de mundo. Esse aprofundamento, realizado na segunda edição de Raízes do Brasil, chega até à identificação daquela espécie de conservantismo, impulso tradicional do português. Explica-se como, por outro lado, o natural conservantismo, o deixa estar – o “desleixo” – pudessem sobrepor-se tantas vezes entre eles à ambição de arquitetar o futuro, de sujeitar o processo histórico a leis rígidas, ditadas por motivos superiores às contingências humanas. Restava, sem dúvida, uma força suficientemente poderosa e arraigada nos corações para imprimir coesão e sentido espiritual à simples ambição de riquezas45.

Na segunda edição de Raízes, a herança medieval na formação portuguesa foi conferida de um papel fundamental na montagem da explicação do sentido da colonização do Brasil. Além disso, nessa edição, as permanências mentais medievais são diretamente associadas ao processo de centralização do poder monárquico em Portugal. É interessante observar, no trecho que segue, como se articulam a esfera da “mentalidade” e da “classe”: O resultado foi que os valores sociais e espirituais, tradicionalmente vinculados a essa condição, também se tornaram apanágio da burguesia em ascensão. Por outro lado, não foi possível consolidarem-se ou cristalizarem-se padrões éticos muito diferentes dos que já preexistiam para a nobreza, e não se pode

44. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 2. ed., p. 154 (p. 108). 45. Idem, p. 170 (p. 117).

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completar a transição que acompanha de ordinário as revoluções burguesas para o predomínio de valores novos. À medida que subiam na escala social, as camadas populares deixavam de ser portadoras de sua primitiva mentalidade de classe para aderirem à dos antigos grupos dominantes. Nenhuma das “virtudes econômicas” tradicionalmente ligadas à burguesia pôde, por isso, conquistar bom crédito, e é característico dessa circunstância o sentido depreciativo que se associou em português a palavras tais como traficante e sobretudo tratante, que a princípio e ainda hoje em castelhano designam simplesmente qualquer labéu ou homem de negócios. Boas para genoveses, aquelas virtudes – diligência pertinaz, parcimônia, exatidão, pontualidade, solidariedade social... – nunca se acomodariam perfeitamente ao gosto da gente lusitana. A “nobreza nova” do Quinhentos era-lhes particularmente adversa. Não só por seu estado, como por evocarem, talvez uma condição social, a dos mercadores citadinos, a que ela se achava ligada de algum modo pela origem, não pelo orgulho. De onde seu afã constante em romper os laços com o passado lhe representava aquela origem, e ao mesmo tempo, de robustecer em si mesma, com todo ardor dos neófitos, o que parecesse atributo inseparável da nobreza genuína46.

Raízes do Brasil foi originalmente estruturado por modelos analíticos como, por exemplo, o do “homem cordial”, ou de dualidades como a do “ladrilhador” e do “semeador”. Segundo esclarecimento do próprio autor, tais conceitos não possuem existência real fora do mundo das idéias47. No entanto, eles foram elaborados a partir de um conjunto de situações historicamente concretas que juntas permitem a modelagem de um denominador comum abstrato – um tipo. Em muitos aspectos, essa articulação remete aos “tipos ideais” do sociólogo alemão Max Weber48. A existência desses modelos garante a clareza da argumentação, dada a pretensão de Raízes do Brasil de analisar a história 46. Idem, pp. 161-162 (p. 112). 47. “Entre esses dois tipos não há, em verdade, tanto uma oposição radical.Ambos participam, em maior ou menor grau, de múltiplas combinações e é claro que, em estado puro, nem o aventureiro, nem o trabalhador possuem existência real fora do mundo das idéias. Mas também não há dúvidas que esses conceitos nos ajudam a situar e a melhor ordenar nosso conhecimento dos homens e dos conjuntos sociais. E é precisamente nessa extensão superindividual que ele assume importância inestimável para o estudo da formação de nossa sociedade”. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 1. ed., p. 22 (pp. 44-45). 48. Para uma aproximação entre Raízes do Brasil e algumas concepções weberianas, ver Pedro Meira Monteiro, A Queda do Aventureiro: Aventura, Cordialidade e os Novos Tempos em Raízes do Brasil.

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de adaptação do europeu a um novo mundo. O conceito de aventureiro, dialeticamente oposto ao de trabalhador, é uma dessas importantes chaves compreensivas. No desenrolar do livro, a idéia de aventureiro cede progressivamente seu lugar a outro conceito chave, o do homem cordial, que nasce da estabilização do aventureiro na colônia: ele é o seu prolongamento em situação distinta. O trecho mencionado, resultado da profunda revisão feita para a publicação da segunda edição de Raízes49, é bastante exemplificativo do ânimo que pautou essas mudanças. Como mencionamos anteriormente, por um conjunto de razões, dentre as quais se pode destacar a docência na Universidade do Distrito Federal, Sérgio Buarque de Holanda tornou-se um historiador profissional. Esse processo de debates e aprofundamento teórico ocorreu com o intelectual entre a segunda metade dos anos 1930 e a primeira metade da década seguinte, ou seja, entre a publicação de Raízes do Brasil e a publicação de Monções. Evidentemente, Sérgio Buarque não foi o único a sofrer tais mudanças, pois tal período é marcado justamente por uma intensificação no processo de especialização das disciplinas acadêmicas e da pesquisa, processo relacionado diretamente com a fundação das primeiras universidades brasileiras50. A característica que marca essa nova fase em seu pensamento é o esforço para evitar ao máximo a rigidez de conceitos e modelos explicativos, como aqueles utilizados em Raízes do Brasil 51. Em vez disso, 49. Para conhecer outros aspectos dessa revisão, ver Robert Wegner, A Conquista do Oeste..., op. cit., pp. 52-70; João Cezar de Castro Rocha, “O (Des)leitor de Raízes do Brasil”, 2002. 50. Paulo Teixeira Iumatti, Caio Prado Júnior, Historiador e Editor, op. cit. Ver especialmente o capítulo 3 – “Cultura e Estilo”. 51. Sérgio Buarque de Holanda chegou a verbalizar em artigo publicado em 1951 sua mudança de perspectiva à aplicação do pensamento de Weber. Em suas palavras: “Nenhuma idéia, nenhuma lei, pode converter-se por si só, independentemente de condições ‘atuais’ que tornam possível seu aparecimento e seu florescimento, em força decisiva na história dos povos ou sequer na história das idéias. A ética do capitalismo não brotou da predicação ou das intenções pessoais de Calvino e ainda menos de sua simples opinião favorável, com restrições, ao empréstimo a juros. Pode dizer-se mesmo, e com razões bem melhores, que nasceu a despeito daquela predicação e daquelas intenções. Assim como na prática de negócios de especulação em terras ibéricas, e não só entre judeus e cristãos-novos, pôde prevalecer, ainda mais, talvez, do

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Sérgio Buarque passa a desenvolver um método fluido, preocupado em escapar de generalizações e em captar as diversas temporalidades dos eventos – característica perceptível em obras posteriores como Monções, Caminhos e Fronteiras e Visão do Paraíso. Ainda naquele trecho, Sérgio Buarque matiza a dialética entre trabalhador e aventureiro, remetendo à concretude do processo histórico único e irrepetível da concentração do poder monárquico em Portugal. Antes da comparação com os outros casos de formação do absolutismo político que permitiriam o estabelecimento de um modelo abstrato para o processo histórico de configuração do Estado moderno, deve-se perguntar pelas circunstâncias específicas que resultaram nessa experiência sem par em sua época. O foco do historiador é uma pergunta que vem de seu presente. O processo de centralização do poder monárquico e da emergência da burguesia comercial lusitana estabeleceu as circunstâncias históricas necessárias para os descobrimentos marítimos e a colonização do Brasil. Por isso, ele é a chave para compreensão da colonização do território português na América. A explicação realiza-se pela interação mútua de várias esferas, que vão da experiência mais concreta e sensível até contextos e conjunturas mais gerais. O acréscimo em relação ao capítulo anterior vem por conta da percepção de que esse processo ocorre de modo retrospectivo, pois, a partir de um determinado presente, o historiador ordena uma cadeia de eventos históricos – um sentido.Vejamos a articulação narrativa completa do mesmo tema em Visão do Paraíso: [...] não há dúvida que Portugal amadureceu cedo: mais cedo do que o resto da península hispânica e pode dizer-se que do resto da Europa. Todavia, se a unificação logo obtida e a sublevação popular e “burguesa”, que dera poder supremo à Casa de Avis, ajudaram largamente a mudar-lhe a fisionomia, reorganizando em sentido moderno, isto é, no sentido do absolutismo, que entre reformados, sem embargo da Igreja e das Ordenações, que os condenavam por usurários. E quando, exatamente dois séculos depois de Calvino, uma encíclica papal tornou lícitos, ou antes, regularizou, os empréstimos a juros, não consta que tenha determinado nos países católicos o famigerado ‘espírito do capitalismo’”. Sérgio Buarque de Holanda,“Vária História”, Diário Carioca, 11 dez. 1951, p. 3. Republicado no livro Tentativas de Mitologia, op. cit. sob o mesmo título, p. 209.

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suas instituições políticas e jurídicas, além de abrir caminho para a expansão no ultramar, não é menos certo que o deixaram ainda, por muitos aspectos, preso ao passado medieval. E a própria rapidez e prematuridade da mudança fora, de algum modo, responsável por estes resultados. A verdade é que tinham ascendido novos homens, mas não ascenderam, com eles, suas virtudes ancestrais. Uma burguesia envergonhada de si, de seu antigo abatimento social, substituíra-se à velha nobreza, contentando-se com o acomodar-se, tanto quanto possível, aos padrões desta. E como sucede constantemente em casos tais, aferrara-se tanto mais às aparências quanto mais lhe faltava em substância. O resultado foi esse conluio de elementos tradicionais e expressões novas que irá distinguir Portugal em pleno Renascimento, posto a serviço da pujança da monarquia. Melhor se diria, forçando um pouco a comparação, que as formas modernas respeitaram ali, em grande parte, e resguardaram, um fundo eminentemente arcaico e conservador. [...] Tratava-se não obstante, de uma simples fachada, e que mal encobria os traços antiquados, sobretudo a forma mentis vinculada ao passado e avessa, por isso, à especulação e à imaginação desinteressada do humanismo renascentista. [...] E quando, já para os fins do século XVI, mesmo esse antigo cerne se deixa corroer por todas as partes, nada de autêntico o substituirá, desfalecidas que se acham e como “burocratizadas”, as energias verdadeiramente criadoras do povo. Alarmaram-se então, e inutilmente, os moralistas, ante o gosto de novas invenções, das burlas, dos fumos da fantasia, o dar ao querer mais vela do que lastro. Em suma, ante o rápido descaimento, no Reino, de tudo quanto parecera ter produzido sua passada grandeza. Antes mesmo da catástrofe nacional que há de seguir à morte del-Rei D. Sebastião, tentara ainda Diogo do Couto apontar para o exemplo oferecido pelas nações pouco dada a mudança, como os chineses e os venezianos∗. Não estaria nesse conservantismo a causa principal das qualidades que os disting uiam, da grandeza de uns e da fama de outros? No Brasil, de qualquer forma, só aos poucos parece ir perdendo terreno, em favor de novas fumaças, aquele realismo repousado, quase ascético ou ineloqüente, que vemos refletido, por exemplo, nos escritos dos primeiros cronistas52.

O fim progressivo desse realismo implica a construção de uma nova relação do homem com a terra onde habita, assim como acontece em Raízes do Brasil, na passagem do “aventureiro” para o “homem cordial”. No trecho anterior, podemos observar uma parte significativa do processo de formação do sentido da colonização. A análise

* Diogo do Couto, o Soldado Pratico, p. 145 (nota de Sérgio Buarque de Holanda). 52. Visão do Paraíso (versão tese), pp. 151-152. (pp. 133-134).

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agrupa diversos contextos e temas de acordo com o questionamento do historiador, permitindo um aprofundamento em períodos e temas remotos. A compreensão da herança medieval e do processo de centralização do poder monárquico explica, em muitos aspectos, o sentido da colonização do Brasil. Em Visão do Paraíso, esse sentido é estudado através da questão das permanências mentais medievais no ímpeto explorador dos colonizadores portugueses. Tal mentalidade, de forte viés conservador em relação à Modernidade nascente, é resumida no trecho destacado pela metáfora “mais vela do que lastro” que, segundo observação aguda de Pedro Meira Monteiro, terá curiosa reincidência nos textos de Sérgio Buarque de Holanda53. Até em um de seus últimos livros – Da Monarquia à República, essa metáfora será empregada na análise da personalidade cautelosa de D. Pedro II. O seu emprego pode sugerir também persistência de certas preocupações de Sérgio Buarque mesmo em uma fase posterior de sua obra, em que se dedicava quase inteiramente ao estudo do século XIX, ou seja, a permanência profunda de certas atitudes mentais na cultura brasileira. Essa mentalidade conservadora está diretamente relacionada com a maneira pela qual se realizou a colonização; de certo modo, ela resume seu sentido. O sentido de nossa colonização é, portanto, a exploração inescrupulosa da terra e dos homens, visando ao enriquecimento rápido através da venda de produtos agrícolas no mercado europeu.Tal visão de mundo não foi apanágio exclusivo da colonização do Brasil; em muitos aspectos, os portugueses apenas reproduziram a sociedade na qual viviam, seguindo, aliás, o mesmo impulso de conservação. Visão do Paraíso tematiza a relação entre a mentalidade arcaizante dos colonizadores portugueses e o modo com que realizaram a colonização de seu território na América, identificando uma constante que é a exploração “sem retribuição de benefícios”. No extremo, em Visão do Paraíso, Sérgio Buarque de Holanda estuda os fundamentos profundos do sentido da colonização. 53. Pedro Meira Monteiro, op. cit., pp. 141-142.

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Mas se a operação crítica de investigação empreendida pelo historiador em busca de um sentido é voltada à explicação de algo de seu presente, como compreender a relação entre um livro que trata dos dois primeiros séculos da colonização e outro que trata de realidades muito posteriores? Uma vez identificado em suas bases de sustentação mais profundas, a linha compreensiva pode ser estendida, projetada para tempos futuros em relação àqueles estudados. Em Visão do Paraíso, essa articulação é dotada de um tom irônico que reforça o caráter negativo atribuído ao sentido identificado pelo estudo. A busca pelo Eldorado bíblico que revestiu o afã pelo lucro rápido e fácil, especialmente nas Índias de Castela, ocorrerá de um modo semelhante na história da América portuguesa. Fica mais simples compreendermos assim o prognóstico do passado desenhado no último parágrafo de Visão do Paraíso, que acaba regendo o tom de todo o livro: Teremos também os nossos eldorados. O das minas, certamente, mas ainda o do açúcar, o do tabaco, de tantos outros gêneros agrícolas, que se tiram da terra fértil, enquanto fértil, como o ouro se extrai até esgotar-se, do cascalho, sem retribuição de benefícios. E a procissão dos milagres há de continuar através de todo o período colonial, e não interromperá a Independência, sequer, ou a República54.

Evidentemente, o que o autor denomina “milagres” não parece representar algo positivo ou desejável. Por isso, o prognóstico do historiador tem um forte cunho irônico, que, de certo modo, condena eventos e processos que já ocorreram. Se voltarmos a formular a questão como um problema de estabelecimento de um sentido do passado, veremos que este “futuro pretérito”, apesar de estranhamente utilizado, é bastante coerente. A análise da formação do sentido da colonização parte do presente do historiador e reconfigura o emaranhado de acontecimentos em torno de um sentido, no caso em questão o da exploração visando ao lucro inescrupuloso55. O novo sentido que se atribui ao passado não deixa de ser em si um futuro em relação à reconstituição em foco. O 54. Visão do Paraíso (versão tese), p. 367 (p. 334). 55. Sérgio Buarque de Holanda, “Prefácio à Segunda Edição”, Visão do Paraíso, 6. ed., p. XIV.

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resultado final apresenta-se como um prognóstico de um tempo que já passou – um estranho profetismo do passado. O tom irônico da última sentença acrescenta um novo tempero às análises já escritas, criando um espaço inusitadamente novo e provocativo. Se o sentido da colonização prevalecer, o futuro da sociedade brasileira seguiria condicionado a esse sentido primordial que se alastrou, no prognóstico de Sérgio Buarque de Holanda, até os tempos republicanos. Sendo assim, qual é o efetivo papel da história? Seria ele limitado apenas à identificação fatalista desse sentido?

O paradigma da “história como ciência do presente” na historiografia No início deste trabalho comentamos sobre a importância do prefácio à segunda edição de Visão do Paraíso, publicado em 1969. Nele, Sérgio Buarque de Holanda ocupou-se em esclarecer alguns aspectos de seu livro que foram mal compreendidos ou causaram algumas polêmicas. O prefácio cumpre o papel antecipatório em relação aos questionamentos que o leitor poderá fazer ao livro, tendo como parâmetro as discussões suscitadas durante os primeiros anos de circulação de sua primeira edição. Uma boa parte do prefácio foi dedicada à explicação do tema de Visão do Paraíso – à relação entre a busca religiosa e mística do Éden e o descobrimento e colonização da América. Sérgio Buarque de Holanda justificou a escolha do tema comentando os outros vários trabalhos que foram publicados na mesma época sobre tema semelhante, especialmente no universo acadêmico de língua inglesa sobre a colonização da América do Norte56. Segundo o historiador, apoiado em Mircea Eliade, esse impulso relativamente recente poderia se relacionar com um interesse de reconstruir a “história primordial” desses países em 56. “Não cabe aqui, senão suscintamente, um tal retrospecto. Para começar lembrarei duas tentativas esboçadas com o fim de se investigarem alguns dos mitos nacionais dos EUA, onde se podem discernir variantes modernas do tema paradisíaco [...]”. Idem, pp. X-XVI.

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uma busca nostálgica do brilho e da pureza do passado perdido57. No caso da história norte-americana, tal busca reforçaria a crença inicial de origem calvinista do “povo escolhido”, formulando assim “uma teoria política completa e adequada a todas as suas necessidades futuras”58. Sérgio Buarque se referia provavelmente à justificativa da prevalência político-militar americana sobre os outros povos da América, professada por meio de políticas como o “Destino Manifesto” e a “Doutrina Monroe”. De qualquer modo, analisando abstratamente esse comentário, o historiador parece se referir à instrumentalização da história pelos interesses do Estado Nacional. Na sua opinião: Esta espécie de taumaturgia não pertence, em verdade, ao ofício do historiador assim como não pertence o querer erigir altares para o culto do passado, desse passado posto no singular, que é palavra santa, mas oca. Se houvesse necessidade de forçar algum símile, eu oporia aqui à figura do taumaturgo a do exorcista. Não sem pedantismo, mas com um bom grão de verdade, diria efetivamente que uma das missões do historiador, desde que se interesse nas coisas de seu tempo – mas em caso contrário ainda se pode chamar historiador? –, consiste em procurar afugentar do presente os demônios da história. Quer isto dizer, em outras palavras, que a lúcida inteligência das coisas idas ensina que não podemos voltar atrás e nem há como pretender ir buscar no passado o bom remédio para as misérias do momento que ocorre59.

A busca pelo sentido da colonização não se limita ao diagnóstico do sentido exploratório do passado colonial e o prognóstico da continuidade dessas práticas em relação ao futuro. A função do historiador é analisar o passado à luz dos problemas do presente, buscando suas razões. Cabe-lhe um papel ativo, de exorcista – é preciso mostrar o

57. “Tal interesse andaria associado, para Mircea Eliade, ao desejo, entre os intelectuais deste hemisfério, de voltar atrás, de encontrar a história primordial dos seus países. Denotaria também uma vontade de começar de novo, uma nostálgica ambição de reviver a beatitude e exaltação criadora das origens, em suma como uma saudade do Éden. [...] Seria possível igualmente discernir nele a aspiração de um renovamento de antigos valores e estruturas, a expectativa de uma radical renovatio, assim como é lícito interpretar a maioria das experiências recentes no campo das artes [...]”. Idem, p. XVI. 58. Idem, p. XV. 59. Idem, p. XVI.

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efeito negativo desses processos em sua existência passada para encarálos como indesejáveis e interrompê-los no presente. A utilidade da história para a vida é voltada para a construção de um novo horizonte projetado no tempo – um futuro. Tratando-se de um prefácio escrito quase dez anos após a primeira aparição da obra, poderíamos supor que o historiador carregava um pouco nas tintas, criando uma justificativa posterior mais convincente para posições não tão conscientes em relação ao momento no qual escreveu a versão original do livro. Embora bastante plausível, esse argumento contrasta com o desenvolvimento de um pensamento sobre a história, ocorrido desde os anos 1940 na obra do autor60. Em alguns artigos publicados no jornal Diário Carioca, este chegou até a referir-se à concepção da atividade do historiador como o exorcismo do passado, explicando ao leitor sua origem: Encerrando uma das crônicas desta seção tive oportunidade de lembrar, recentemente, a noção goetheana de que a história não é mais do que um meio de nos emanciparmos do passado. [...] Pode parecer um contra-senso que se invocasse e aprovasse essa aparente negação do passado em favor do presente ou do futuro, expressa por alguém que, sendo embora poeta e homem de gênio, mostrara por mais de uma vez (no projetado prefácio de Poesia e Verdade, por exemplo, e também no ensaio sobre a contenda entre clássicos e românticos na Itália, datada de 1818) escassa simpatia pelo mister de historiador. E contra-senso, sobretudo, quando a aprovação parte de quem se dedica, por gosto pessoal, por formação intelectual e até por dever de ofício, aos estudos históricos. No entanto e sem qualquer hesitação que, devendo abordar trabalhos brasileiros de historiografia, começo por inscrever novamente, à testa destes comentários, a palavra de Goethe, na convicção de que, se encerra, de fato, um paradoxo, será antes verbal do que substancial. E, se precisar defender-me ainda de suposta heresia, poderei relembrar a autorizada opinião de um dos mais ilustres historiadores de nossos dias61.

60. Ver, por exemplo, a série de artigos de sua autoria publicados no início dos anos 1950: “Ofício do Historiador”, Diário Carioca, 16 jul. 1950, pp. 5 e 6; “Para uma Nova História”, Folha da Manhã, 26 jul. 1950, pp. 4 e 5. 61. Sérgio Buarque de Holanda, “Ofício do Historiador”, op. cit., p. 5. É importante ressaltar que nesse artigo o historiador brasileiro estabelece comentários sobre a obra Apologia da História..., de Marc Bloch.

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A propósito, a opinião desse ilustre historiador sugere que “o verdadeiro historiador há de importar primeiramente o esforço para a boa inteligência da hora presente, se quiser entender o passado”62. O fato é que o historiador em questão, Marc Bloch, advogava contra o sentimento de nostalgia das coisas do passado, que redunda no seu uso apologético e ufanista. O discurso de Bloch distingue assim dois tipos de história, sendo sua intenção afirmar o caráter científico do primeiro e o falacioso do segundo, pois é sentimentalista e nostálgico. Em sua argumentação, Sérgio Buarque deixa transparecer a idéia de que Bloch não está sozinho. Na realidade, ele menciona como exemplo toda uma geração de historiadores da primeira metade do século XX responsável por reestruturar as bases da história como ciência humana. Vale lembrar que a disciplina acadêmica da história, em seu afã cientificista característico do século XIX, incorporou alguns procedimentos positivistas e cientificistas que a tornaram demasiado rígida e, desse modo, pouco sensível à complexidade dos fenômenos humanos. Desde finais da última década do século XIX, o pensamento europeu vinha questionando os padrões demasiadamente racionalistas das ciências sociais63. No início do século XX, uma nova geração de historiadores, geralmente ligados a instituições acadêmicas européias, procuraram responder a esses questionamentos epistemológicos. O modo mais adequado de restabelecer as bases epistemológicas da história era afirmar sua relação ativa com o presente. Os debates relacionados com a reformulação das bases epistemológicas da história não eram restritos apenas ao contexto acadêmico francês ou alemão. Um dos intelectuais europeus mais influentes do período, o italiano Benedetto Croce, mostrava-se, em muitos aspectos, comprometido com os mesmos ideais, dedicando todo um livro no final dos anos 1930 à reflexão sobre a relação entre a história e a “ação prática”64. Não é casual que um dos itens dessa obra trate da questão 62. Idem, ibidem. 63. Stuart Hughes,“The Decade of the 1890’s:The Revolt against Positivism”, Consciousness and Society, 1961, pp. 33-66. 64. Benedetto Croce, A História: Pensamento e Ação, 1962, pp. 9-10.

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da “historiografia como libertação da história”, no qual mostra uma forte convergência com o pensamento de outros historiadores como Marc Bloch e Sérgio Buarque de Holanda. Em suas palavras: “De igual modo se comporta sempre a humanidade frente a seu grande e vário passado. Escrever histórias – observou Goethe certa vez – é uma forma de tirar-se dos ombros o passado. O pensamento histórico o reduz a matéria sua, transfigura-o em objeto seu, e a historiografia nos liberta da história”65. A nova geração de historiadores europeus foi marcada também por duas guerras mundiais e, por isso, é natural que sua concepção historiográfica tenha uma faceta militante. A contraposição de Bloch entre uma história “ufanista” e outra voltada para os problemas do presente remete, de certo modo, ao papel ativo da história no processo de formação dos totalitarismos na Europa66. À medida que os aspectos negativos do nacionalismo aparecem, é compreensível que historiadores como Bloch empreendam um esforço para separar a história que legitima o Estado autoritário da nova ciência histórica. Podemos afirmar que a proposta de Marc Bloch destacada em artigo de jornal do início dos anos 1950 por Sérgio Buarque de Holanda é semelhante à dualidade do taumaturgo e exorcista proposta no prefácio à segunda edição de Visão do Paraíso, escrito aproximadamente oito anos depois. Em relação ao impacto dos totalitarismos é interessante observar que, ao comentar sobre a taumaturgia, Sérgio Buarque recorra ao exemplo da historiografia norte-americana, que reconstruía o passado segundo os desígnios e pretensões estratégicas do Estado americano67. 65. Idem, p. 35. 66. Deve-se lembrar que Sérgio Buarque presenciou a ascensão do nazismo no período em que esteve na Alemanha. Em seus artigos escritos no calor da hora, como correspondente dos Diários Associados, demonstra grande apreensão em relação a esse fenômeno político, chegando até a prever um conflito armado de amplas dimensões. Ver a série de artigos intitulada “Nacionalismo e Monarquismo na Alemanha”, O Jornal, 28 fev., 26 mar., 2 e 12 abr. 1930. Já a relação de Marc Bloch com os totalitarismos pode ser resumida no fato trágico de que ele próprio foi preso e fuzilado por um batalhão da Gestapo em 1944. 67. Sérgio Buarque de Holanda,“Prefácio à Segunda Edição”, Visão do Paraíso, 6. ed., p. XVI.

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No Brasil, a fundação da Universidade de São Paulo e da Universidade do Distrito Federal representou a criação de um novo espaço próprio para a disseminação dos debates universitários. Sérgio Buarque de Holanda manifestou por diversas vezes a opinião de que essas iniciativas significariam um grande ganho à historiografia brasileira. Merece destaque um extenso artigo publicado no Correio da Manhã em julho de 195168, praticamente um ano após a publicação do artigo em que discute a obra do historiador Marc Bloch. Nele, Sérgio Buarque realiza um balanço da historiografia brasileira na segunda metade do século XX. Ao analisar um de seus períodos mais produtivos, as décadas de 1930 e 1940, o historiador sugere a existência de duas correntes que a caracterizam. A primeira delas é “ocupada por escritos onde a interpretação elucidativa, e às vezes interessada e mesmo deformadora dos fatos, visa a explicar tais fatos ou a caracterizá-los em sua configuração especificamente nacional”. Dentre esses estudos, poder-se-ia destacar alguns interessantes como o Retrato do Brasil, de Paulo Prado, que, apoiado em extensa documentação, procurou mostrar como o país ainda dormia “em seu sono colonial”. Por outro lado, outros trabalhos, como a Política Geral do Brasil, de José Maria dos Santos, adotavam uma postura oposta, pois “contra os males do presente, que procura apresentar como fruto de um processo involutivo, nascido da ‘deformação republicana’69, acena sem hesitar para remédios do passado”70. Sérgio Buarque refere-se a esses estudos fortemente condicionados ao prisma da nação denominando-os estudos de “formação”. Em suas palavras: Em numerosos estudos de “formação” publicados pela mesma época encontra-se insistente o apelo àquilo que um ensaísta norte-americano denomina “passado utilizável”, para a composição de quadros empolgantes que se apresentam ao mesmo tempo como terapêutica ideal para todas as nossas mazelas. 68. Sérgio Buarque de Holanda, “O Pensamento Histórico no Brasil durante os Últimos Cinqüenta Anos”, Correio da Manhã, 15 jul. 1951, pp. 12 e 13. 69. Na versão publicada em O Estado de S.Paulo, as aspas desse trecho iniciam-se na palavra “formação” mas, por erro tipográfico, não são fechadas. Na versão traduzida em inglês as aspas são restritas à expressão “utilizable past”, o que permite uma correção precisa. Bradford Burns (ed.), Perspectives in Brazilian History, p. 192. 70. Sérgio Buarque de Holanda, “O Pensamento Histórico no Brasil...”, op. cit.

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Essas supostas reconstruções, que levadas à sua forma extrema desembocariam em manifestações totalitaristas, especialmente na doutrinação integralista, mal interessam, em sua generalidade, à pesquisa historiográfica71.

É possível que essa postura contrária ao totalitarismo se devesse, em parte, às suas experiências pessoais. Sérgio Buarque havia presenciado, por exemplo, a ascensão do nazismo quando esteve na Alemanha no início da década de 1930. Essa experiência lhe conferiu uma perspectiva privilegiada dos eventos da Segunda Guerra Mundial, pois conhecia os perigos do uso apologético da história em função dos interesses do Estado Nação e da mobilização de massas. O caso brasileiro também lhe afligia. Mesmo em um contexto posterior à Segunda Guerra Mundial, algumas correntes de orientação totalitária, como o integralismo, continuavam tendo espaço na sociedade brasileira. Vejamos a seguir sua perspectiva sobre a outra corrente marcante da historiografia brasileira, que se inicia nos anos 1930: Ao lado dos estudos de “formação” já abordados, deveria alinhar-se naturalmente o que devotou o sr. Caio Prado Júnior, à interpretação e explicação do Brasil dos nossos dias, através de sua evolução histórica, desde as vésperas da Independência. Obra opulenta e ambiciosa, pois o volume de amplas proporções já publicado quer ser o primeiro de uma série talvez considerável, poderia tomar lugar entre os vastos estudos histórico-sociológicos dos srs. Oliveira Viana, Gilberto Freyre e Fernando Azevedo. A inquirição histórica baseia-se aqui num critério interpretativo fornecido pelas doutrinas do materialismo histórico. Fiel, todavia, aos princípios teóricos que assenta, o estudo do sr. Prado Júnior focaliza muito mais diretamente os problemas mais econômicos, que lhe parecem, em última instância, os decisivos para a elucidação do passado e do presente. E essa ênfase ganha pela economia aponta para uma direção que tendem a tomar, cada vez mais, entre nós, as pesquisas históricas, abrindo-lhes territórios até aqui mal explorados72.

Novos territórios em boa medida decorrentes da fundação das Faculdades de Filosofia e da intensificação dos debates acadêmicos internacionais. Não se pretende aqui fazer uma apologia da academia nem, muito menos, supor ingenuamente que a incorporação de 71. Idem. 72. Idem.

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debates acadêmicos internacionais tenha se iniciado no Brasil apenas com a fundação dessas instituições. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e os institutos regionais, por exemplo, já realizavam, mesmo em épocas anteriores, um intercâmbio significativo com intelectuais e universidades americanas e européias73.Tampouco se pretende aqui estabelecer um quadro no qual apenas as “influências” da historiografia internacional “determinam” os avanços da historiografia brasileira. Na realidade, os posicionamentos do autor, independentemente do grau de correspondência que guardam com realidades históricas, não deixam de ser relevantes para situar e refletir sobre a relação entre a sua produção intelectual e o momento histórico de sua produção. No limite, suas opiniões sobre a historiografia européia e os avanços do conhecimento histórico no Brasil podem dizer algo sobre sua própria experiência, expressada em uma espécie de auto-avaliação do papel desses processos em sua própria inserção como intelectual no Brasil do período. Em suas palavras: A complexidade desses assuntos está a requerer cada vez mais a utilização dos métodos que se vêm desenvolvendo em países onde existe longa tradição dos estudos históricos especializados. E a preocupação de assimilar alguns desses métodos e aplicá-los a problemas brasileiros já é de hoje aspecto dominante e creio que o mais auspicioso do pensamento histórico entre nós. A esse propósito não se poderá acentuar demasiado a influência que tem cabido nos últimos anos aos mestres estrangeiros contratados para os institutos universitários. [...] No que se refere à história, inclusive à história do Brasil, em seus diferentes setores, foi certamente decisiva e continua a sê-lo, sobre as novas gerações, a ação de alguns daqueles mestres: de um Jean Gagé, por exemplo, e de um Fernand Braudel em São Paulo; de um Henri Hauser e de um Eugène Albertini, na hoje extinta Universidade do Distrito Federal. O que puseram a realizar até aqui, no sentido de sugerir novos tipos de pesquisa e suscitar problemas novos, é apenas sensível, por hora, em certo tipo de trabalhos – cursos especiais, seminários, teses de concurso – que pela sua mesma natureza hão de fugir ao alcance de um público numeroso. Não parece excessivo acreditar, entretanto, que neles já se encontre o germem de um desenvolvimento novo e promissor dos estudos históricos no Brasil74.

73. Lucia Maria P. Guimarães, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: Da Escola Palatina ao Silogeu (1889-1938), 1999. 74. Sérgio Buarque de Holanda, “O Pensamento Histórico no Brasil...”, op. cit.

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À medida que se volta aos problemas do presente, a ciência histórica passa a ser indissociável de um certo tipo de militância. A mudança na estruturação do conhecimento no Brasil, relacionada com a emergência das Faculdades de Filosofia, implica também um reposicionamento do papel do intelectual na sociedade brasileira75. Não por acaso, até os anos 1930 a concepção de que a ciência histórica deve voltar-se às questões do presente não é uma metodologia ou uma corrente historiográfica no sentido estrito, mas uma postura abrangente normalmente relacionada a debates intelectuais e acadêmicos internacionais. De qualquer modo, pode-se afirmar que a metáfora do exorcismo empregada na caracterização da história faz parte de um contexto geral da historiografia ocidental desenvolvida a partir do final do século XIX até a primeira metade do século XX. Seria incorreto afirmar que o Brasil foi simplesmente influenciado por essa conjuntura internacional. A historiografia brasileira é parte ativa desse contexto, elaborando sua resposta própria aos questionamentos sobre o sentido da história que vinham desde o século XIX. Por isso é natural que o caso de Sérgio Buarque de Holanda, um dos expoentes desse pensamento, seja comparável a outros intelectuais como Marc Bloch, Lucien Febvre ou Johan Huizinga. O debate sobre o sentido da colonização foi, em grande medida, o desdobramento no Brasil desse contexto de debates historiográficos de alcance, pelo menos, ocidental.

O futuro pretérito da colônia Procurando identificar uma tendência historiográfica geral do período pode-se dizer que uma marca praticamente constante do pensamento brasileiro é o esforço de integrar a história do Brasil à história moderna européia da expansão marítima, o que implicou, em diversos casos, um 75. Segundo sugestão original de Antonio Candido em seu texto “A Revolução de 1930 e a Cultura”, A Educação pela Noite e Outros Ensaios, 1987, pp. 181-198, e aprofundada por estudos como o de Sérgio Miceli, “Condicionantes do Desenvolvimento das Ciências Sociais”, op. cit., pp. 91-133.

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mergulho na história de Portugal76. Evidentemente, essa associação poderia evocar vários sentidos políticos e ideológicos. Para grupos intelectuais conservadores brasileiros e portugueses, por exemplo, essa associação articulada em um sentido elogioso e laudatório em relação aos avanços brasileiros significava a prova do sucesso da empreitada colonial lusitana. Tal consideração ganhava um sentido muito atual nos anos 1940 e 1950, em pleno regime ditatorial salazarista, pois reforçava e justificava os laços de subordinação das colônias africanas77. Nesse mesmo período, concepções características do ensaísmo histórico dos anos 1930, como a “democracia racial” de Gilberto Freyre ou o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, poderiam ser reapropriadas ganhando sentidos distintos, até contrários a suas concepções originais, uma vez que envolviam a ampla discussão sobre o legado ibérico no Brasil78. Por exemplo, a concepção de Gilberto Freyre de “democracia racial”, que pretendia relativizar todo o legado das teorias cientificistas e raciais 76. Como é o caso de Eduardo d’Oliveira França no livro Portugal na Época da Restauração, op. cit., e de Sérgio Buarque de Holanda na tese Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos, op. cit. 77. “De qualquer forma, do ponto de vista simbólico, a continuada presença brasileira nos fastos portugueses desempenhava a função de antídoto aos críticos que censuravam a colonização lusitana. Nas palavras de Fernando Catroga, constituía “uma espécie de prova póstuma das nossas virtudes civilizadoras”. Lucia Maria Paschoal Guimarães, Perspectivas de Construção de um Passado Comum: O Congresso Luso-Brasileiro de História (Lisboa, 1940), 2005, pp. 5-6. 78. Podemos destacar como exemplo o debate entre Sérgio Buarque de Holanda e Cassiano Ricardo suscitado por um artigo publicado na revista Colégio n. 2, em julho de 1948, no qual Cassiano Ricardo estabeleceu alguns comentários sobre Raízes do Brasil, procurando associar a idéia de cordialidade à bondade intrínseca do brasileiro. No número seguinte da mesma revista (n. 3, set. de 1948), Sérgio Buarque rechaçou energicamente a sugestão de Ricardo, procurando esclarecer que a cordialidade não significa bondade nem muito menos está associada a algum juízo ético ou intenção apologética em relação a um caráter nacional brasileiro. Essa discussão foi tão exemplificativa de parte da recepção de Raízes do Brasil que seu autor, a partir da terceira edição do livro, fez questão de anexar ambos os artigos, como se quisesse “vacinar” o leitor de seu livro contra leituras que desvirtuassem suas intenções originais. Na 26. edição a “Carta a Cassiano Ricardo” foi incorporada como nota de número 6 ao capítulo 5 – “O Homem Cordial”, Raízes do Brasil, 26. ed., 1995, pp. 204-205. Na edição comemorativa dos setenta anos, as duas cartas foram incorporadas em textos anexos, às pp. 365-392 (Cassiano) e 393-396 (Sérgio Buarque).

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do século XIX deslocando o foco da discussão para a idéia de cultura79, passava a soar mais conservadora. Seu otimismo deliberado servia à apologia de correntes diversas do ufanismo luso-brasileiro, como Lucia Pascoal Guimarães sugere ao analisar seu papel nos diversos congressos comemorativos dos descobrimentos marítimos portugueses80. Aos poucos, suas teorias foram incorporadas no ideário de ambos os governos autoritários, a ditadura varguista e a salazarista, o que fez com que seu nome aparecesse com freqüência cada vez maior em congressos, eventos institucionais e publicações oficiais portuguesas e brasileiras. Não por acaso, Gilberto Freyre aprofundou e sistematizou, a partir da segunda metade dos anos 1930, suas posições sobre o legado ibérico na formação do Brasil81. A história da adaptação do português na América poderia oferecer valiosas lições à humanidade, a começar pelos seus “aspectos humanos”, como a miscigenação82 e nossa “cordialidade”, termo provavelmente apropriado de Raízes do Brasil 83. No mesmo período, Sérgio Buarque de Holanda chegou a desenvolver certo repúdio a idéia de “homem cordial”. Desde os anos seguintes à publicação de Raízes do Brasil, o intelectual parece irritar-se cada vez mais com as associações de sua idéia ao “caráter bondoso” do brasileiro84. 79. Ricardo Benzaquen de Araújo, Guerra e Paz: Casa Grande e Senzala e a Obra de Gilberto Freyre nos Anos 30, 1994. 80. Lucia Maria Paschoal Guimarães, op. cit., pp. 15-17. 81. Carlos Guilherme Mota, “Revisitando o Mundo que o Português Criou”, 2001. 82. Gilberto Freyre, O Mundo que o Português Criou, capítulo I: “Aspectos da Influência da Mestiçagem sobre as Relações Sociais e de Cultura entre Portugueses e Lusosdescendentes”, 1940. 83. Idem, pp. 42-45. 84. Em diversos momentos de sua trajetória intelectual, Sérgio Buarque de Holanda manifesta certa irritação e repúdio às grandes generalizações de seu primeiro livro. Esse sentimento de insatisfação persistiu até o final de sua vida, como podemos observar em trecho de entrevista concedida a um grupo de intelectuais no Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS), em 1981. Respondendo uma pergunta de Ernani da Silva Bruno sobre as alterações que eventualmente faria se pudesse em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque disse: “É praticamente impossível fazer uma edição modificada. [...] Teria que mudar e desdizer muita coisa. Por exemplo: acho muito estática aquela definição do início, em que falo do personalismo, do individualismo. Não posso concordar com isso hoje. O mesmo vale para trechos sobre o ladrilhador, o semeador: acho aquilo ensaístico demais, precisaria refazer. O fato é que o livro foi concebido de

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Na verdade, em meio às investidas totalitárias no Brasil, sua avaliação historiográfica sobre o legado ibérico na formação nacional se alterava, tornando-se cada vez mais negativa. A especialização técnica, possibilitada pelo desenvolvimento das primeiras faculdades de filosofia no Brasil, foi em muitos casos a alternativa pela qual se poderia desenvolver um conhecimento, em certa medida, independente das diretrizes culturais do Estado Novo. Essa mudança de concepção de história culmina com a elaboração de livros como Monções e do conjunto de artigos que resultaria em Caminhos e Fronteiras, nos quais procura evitar o uso de conceitos estáticos e generalizantes, deslocando sua análise à fluidez e mobilidade dos processos históricos. Não por acaso, alguns anos depois, Sérgio Buarque reescreveu as primeiras linhas do parágrafo inicial de Raízes do Brasil para sua terceira edição. A primeira frase – “todo estudo compreensivo da sociedade brasileira há de destacar o fato de constituirmos o único esforço bem-sucedido, e em larga escala, de transplantação para uma zona de clima tropical e subtropical”85 – soava, algum tempo depois, totalmente descabida, pois era preciso relativizar expressões como “bem-sucedido”, bem como rever a importância de fatores como o clima na determinação de uma sociedade. Desse modo, a frase inicial do livro em questão ganhou a seguinte forma: “A tentativa de implantação da cultura européia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas a sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em conseqüências”86. Refletindo sobre essa questão podemos compreen-

outra maneira, e se fosse conceber de outra teria que fazer um livro inteiramente novo. [...] O fato é que não pensei mais nesse assunto.Tanto que as novas edições tem saído sem mudança. Só agora, que tenho falado muito naquela questão do homem cordial – eu tenho sido muito criticado por isso –, resolvi pedir que na próxima edição eles incluíssem uma parte da minha polêmica com Cassiano Ricardo. Cassiano implicava com o termo ‘cordial’. Para ele, o correto seria ‘homem bom’. Mas minha idéia não era fazer nenhuma avaliação ética”. Sérgio Buarque de Holanda,“Entrevista de Sérgio Buarque de Holanda”, Novos Estudos Cebrap, jul. 2004, p. 10. 85. Raízes do Brasil, 1 ed., p. 3. 86. Raízes do Brasil, 26. ed., p. 31.

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der melhor o significado da dualidade proposta no prefácio à segunda edição de Visão do Paraíso entre “taumaturgos” e “exorcistas”. Analisando a mesma questão podemos medir a importância e os possíveis desdobramentos da avaliação extremamente negativa que intelectuais como Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. propuseram. Pensar no sentido da colonização do Brasil como fenômeno eminentemente exploratório e, de certo modo, inescrupuloso, é desejar seu exorcismo. Mesmo que isto implique a renúncia a qualquer prognóstico racional que se possa estabelecer analisando o ritmo e o sentido dos acontecimentos no passado. Por mais paradoxal que pareça, a nova ciência histórica elaborada durante toda a primeira metade do século XX depende mais da esperança do que da razão em seu sentido clássico. O sentido da análise do historiador é a expectativa do improvável. Assim, a curta citação a Caio Prado Jr., feita na penúltima página de Visão do Paraíso, pode ser considerada nuclear em relação à historiografia brasileira de meados dos anos 1950. Muito embora se deva reconhecer que o tipo de investigação realizada em Visão do Paraíso não é exemplificativo das tendências historiográficas mais em voga à época87. De qualquer maneira, a citação à obra Formação do Brasil Contemporâneo está diretamente relacionada ao tom profético e irônico do último parágrafo de Visão do Paraíso. Os “eldorados” a que Sérgio Buarque se refere (“Teremos também os nossos eldorados. O das minas, certamente, mas ainda o do açúcar, o do tabaco, de tantos outros gêneros agrícolas,

87. No panorama acadêmico brasileiro dos anos 1950, o estudo dos hábitos, práticas e permanências mentais não era das formas mais difundidas, nas palavras de Laura de Mello e Souza: “A influência de Sérgio Buarque de Holanda no plano dos estudos de cultura talvez não se tenha feito notar de imediato. Nos finais dos anos 1950, a historiografia começava a se caracterizar por trabalhos mais econômicos, gravitando em torno das obras de Caio Prado Jr. e de Celso Furtado. Como se verá adiante, a história da cultura só começou a ganhar força no final dos anos 1970”. Laura de Mello e Souza, “Aspectos da Historiografia da Cultura sobre o Brasil Colonial”, p. 28. Isto significa, por um lado, o desdobramento de uma tendência de matriz acadêmica francesa dos anos 1930 e 1940, ligada aos esforços de historiadores como Ernst Labrousse, Henri Hauser e Marc Bloch. Por outro lado, já marca uma incorporação mais intensa do marxismo no contexto intelectual brasileiro.

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que se tiram da terra fértil, enquanto fértil, como o ouro se extrai até esgotar-se, do cascalho, sem retribuição de benefícios”) são os ciclos de exploração econômica desenhados em Formação e exemplificados pela citação na penúltima página de Visão do Paraíso. (“Se vamos à essência de nossa formação”, diz um historiador brasileiro, “veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco e alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais do que isto.”) O estabelecimento do sentido abre espaço para o prognóstico de forte tom irônico, pois prevê eventos que já sucederam – “E a procissão dos milagres há de continuar através de todo o período colonial, e não interromperá a Independência, sequer, ou a República” – jogando com a perspectiva de sua continuidade ao longo desse anunciado futuro. A ironia reforçada pela expressão “procissão dos milagres” indica a idéia de que a continuidade do processo de exploração é indesejável, muito embora a ocorrência desses “milagres” apresente-se como algo provável, seguindo a lógica do sentido estabelecido pela colonização – o “exorcismo” representa, nesse sentido, a perspectiva de interrupção desse processo. Tal articulação teórica, desenvolvida principalmente nos anos 1940 e 1950, pode ser considerada um desdobramento da tradição crítica brasileira dos estudos de formação, marcada pela busca do sentido da Nação na história88. Segundo essa tradição, a função da história seria a busca de “linhas evolutivas mais ou menos contínuas”89 que pudessem diferenciar a cultura brasileira de sua matriz européia. Deve-se ressaltar que nesse tipo de trabalho, a história da colônia atua geralmente como elemento afirmativo da nacionalidade, enquanto, em estudos como Formação do Brasil Contemporâneo ou Visão do Paraíso, a história colonial assume normalmente um papel negativo. Para dialogarmos nos termos sugeridos por Paulo Eduardo Arantes, deve-se reconhecer que a experiência intelectual básica dos anos 1930 se altera significativamente na 88. João Alexandre Barbosa, “A Paixão Crítica: Forma e História na Cultura Brasileira”, op. cit., pp. XV-XXI. 89. Paulo Eduardo Arantes e Beatriz Fiori Arantes, Sentido da Formação:Três Estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa, op. cit., p. 11.

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década seguinte. O progressivo deslocamento dos grandes esquemas interpretativos apoiados no suporte do ensaísmo dava lugar a estudos mais circunscritos e especializados, processo no qual o próprio Sérgio Buarque de Holanda foi sujeito ativo. O estudo de Antonio Candido Formação da Literatura Brasileira, publicado no mesmo ano de Visão do Paraíso, mas esboçado desde a segunda metade dos anos 1940, guarda profunda ligação com esse contexto de discussões. Nele, “o momento em que a formação se completa coincidiria com a total interiorização das pressões culturais do colonizador, refeitas pelo colonizado bem-formado no instante consagrador em que demonstra ter finalmente condições de compor uma obra nova, à altura da civilização que a determinou”90. A literatura e a cultura letrada em geral foram armas eficientes do processo de colonização, sendo, por isso, instrumentos de conformação e apaziguamento, função mantida também após a emancipação do Estado, pois passaram então a legitimar as elites dominantes91. A ausência do Barroco dos momentos decisivos da formação literária brasileira parece também significar um grito de independência em relação à tradição interpretativa da busca teleológica da identidade nacional, uma perspectiva crítica e, em certo sentido, antiufanista92. Para compreendermos o processo de alteração da sensibilidade intelectual brasileira poderíamos recorrer, mais uma vez, à obra de Sérgio Buarque de Holanda. Sua ruptura parcial com o modernismo, marcada pelo artigo “O Lado Oposto e Outros Lados”, sugeria o erro

90. Idem, p. 54. 91. Nas palavras de Paulo E. Arantes, referindo-se ao pensamento de Antonio Candido no livro Formação da Literatura Brasileira: “Resumindo brevemente (dispensando aspas) o que a falsa impressão de Aufklärung linear deixou escapar. A literatura foi de fato peça eficiente do processo colonizador; celebração direta da ordem colonial, nunca deixou de servir aos mecanismos de dominação; desfeito o antigo sistema colonial da maneira ultraconservadora que se sabe, a herança colonial portuguesa foi passando para o controle dos novos grupos dirigentes, a ponto de contribuir decisivamente para a ‘formação’ da consciência das classes dominantes locais”. Idem, p. 55. 92. Sobre a crítica de Antonio Candido ao nacionalismo brasileiro ver Carlos Guilherme Mota, Ideologia da Cultura Brasileira 1933-1974 (Pontos de Partida para uma Revisão Histórica), 1977, pp. 173-177.

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de uma construção da identidade nacional através da obsessiva busca por elementos históricos e folclóricos condizentes com uma imagem artificial do que seja brasileiro ou nacional. A identidade brasileira, na visão do autor, nasceria muito mais de nossa omissão do que de nosso afã interpretativo93. A composição de Raízes do Brasil representa, em certa medida, o desdobramento de seu mal-estar em relação ao modernismo expresso no artigo de 192694. Segundo observação de Antonio Arnoni Prado sobre os primeiros textos críticos de Sérgio Buarque de Holanda: “é que a modernidade para Sérgio não se esgotava num processo eminentemente nacional nem pressupunha, em seus limites, uma compreensão da cultura e do país unicamente determinada pelo radicalismo primitivista dos chamados futuristas de São Paulo”95. O impulso de compreender a nacionalidade às avessas, pela negação de qualquer projeto de construção sistemática, de colecionismo e sobreposição de características atemporais do Brasil ou dos brasileiros, não pautou apenas a estruturação de Raízes do Brasil. Na realidade, com certa dose de criatividade e ousadia, poderíamos imaginar esse impulso como uma característica presente em toda sua obra. Muitas de suas investidas, temáticas ou teóricas, podem ser encaradas como desdobramentos desse projeto inicial. A idéia da história como exorcismo, aliás, pode ser relacionada com o viés modernista e vanguardista do historiador, no qual o passado aparece como um fardo96. 93. “Penso naturalmente que poderemos ter em pouco tempo, que teremos com certeza, uma arte de expressão nacional. Ela não surgirá, é mais que evidente, de nossa vontade, nascerá muito mais provavelmente de nossa indiferença. Isso não quer dizer que nossa indiferença, sobretudo nossa indiferença absoluta, vá florescer por força nessa expressão nacional que corresponde à aspiração de todos. Somente me revolto contra muitos que acreditam possuir ela desde já no cérebro e tal qual deve ser, dizem conhecer todas as suas regiões, suas riquezas incalculáveis e até mesmo os seus limites e nos querem oferecer essa sobra em vez da realidade que poderíamos esperar deles.” Sérgio Buarque de Holanda,“O Lado Oposto e Outros Lados”, Revista do Brasil, 15 out. 1926. Reproduzido em O Espírito e a Letra, op. cit., vol. 1, pp. 225-226. 94. Antonio Arnoni Prado, “Raízes do Brasil e o Modernismo”, op. cit., pp. 76-79. 95. Idem, p. 76. 96. Sobre o impulso negativo em relação ao passado característico do modernismo ver Nicolau Sevcenko, Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, Sociedade e Cultura nos Frementes Anos 20, 2000, pp. 309-313.

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Muitos outros temas que o autor procurou estudar ao longo de sua vida poderiam ser analisados sob esse prisma. Nesse caso, convém retomar o argumento sobre as raízes ibéricas da formação brasileira. Não eram apenas seus aspectos econômicos e métodos exploratórios que estavam no foco do historiador nos anos 1950. Em textos como a tese inédita Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos, a herança medieval e moderna lusitana foi analisada sob outros aspectos igualmente decisivos na colonização da América portuguesa e da formação do Estado independente. No que diz respeito à escravidão negra, por exemplo, o autor observa que já era difundida em Portugal antes do início da exploração de seu território na América, sendo que os escravos serviam seus proprietários tanto na lavoura como nos afazeres domésticos97. Outro elemento chave de Portugal nesse período era o fenômeno da miscigenação98, representada em sua sociedade principalmente pela mistura entre portugueses, mouros e judeus. O autor também destaca a inoperância lusitana para o desenvolvimento de manufaturas, o que condenou a metrópole à mesma dependência de produtos manufaturados que tiveram suas colônias. Em resumo, Todos estes aspectos, por onde Portugal parece destoar do conserto europeu – o emprego em vasta escala do braço escravo; convivência e assídua mescla com povos das mais várias origens; inexistência ou inoperância da classe média como tal, vida econômica apoiada, de modo predominante, na exportação de matérias-primas e importação de artigos manufaturados; valor soberano atribuído, na produção, simples critério quantitativo –, fazem-no, já à época dos grandes descobrimentos, uma espécie de compêndio e antecipação do que hão de ser as terras do Novo Mundo, povoadas e exploradas pela sua gente99.

A herança da sociedade portuguesa na formação do Brasil apresentava na análise de Sérgio Buarque de Holanda um forte cunho negativo desde

97. Sérgio Buarque de Holanda, Elementos Formadores..., op. cit., p. 13. 98. “Acrescentando-se a uma população que já comportava tantos componentes heterogêneos, contribuíram eles para fazer do Portugal quinhentista e seiscentista um autêntico melting-pot de raças, como só seriam mais tarde certas conquistas ultramarinas e o são, ainda em nossos dias, as várias nações do Novo Mundo”. Idem, p. 138. 99. Idem, p. 145.

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Figura 6. Original mimeografado de Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos, em que Sérgio Buarque sintetiza características da formação de Portugal que destoam do contexto europeu moderno, como a ausência de uma “verdadeira classe média”, o caráter “extrovertido de sua vida econômica” e até a miscigenação da população (“autêntico meltiing-pot de raças”). Não custa lembrar que, implicitamente, o autor enumera justo as características que determinaram a formação do Brasil. FONTE: Fundo

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Sérgio Buarque de Holanda, Siarq/Unicamp.

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seu livro de estréia, Raízes do Brasil. Do ponto de vista técnico, o aprimoramento de sua maneira de analisar e articular o passado, representada por sua intensa participação nos debates acadêmicos dos anos 1940 e 1950, foi uma das formas que encontrou para desenvolver essa tendência. No que diz respeito ao tema analisado, é possível afirmar que Sérgio Buarque de Holanda foi um dos principais protagonistas de uma inflexão paradigmática na historiografia brasileira, intensificada principalmente a partir dos anos 1930. O paradigma da Nação como organizadora do discurso histórico perde força, dando lugar a perspectivas interpretativas que se concentravam nas continuidades das estruturas sociais arcaicas e medievais entre a história do Brasil e a história de Portugal. Isto não significa que os debates intelectuais passaram a se distanciar das disputas de poder e lutas identitárias. Devemos lembrar a forte presença nas discussões internacionais do período, no terreno da epistemologia da história, do tema do papel do presente na constituição desse gênero de conhecimento. Na obra de Sérgio Buarque de Holanda, a produção historiográfica desempenha um papel ativo como agente modificador do presente. Nas Considerações Finais, procuramos compreender essa questão na obra Visão do Paraíso, retomando os principais temas desenvolvidos nos capítulos anteriores. Sem pretensões estritamente conclusivas, procuramos com isso ampliar a discussão, apontando para necessidade de aprofundamento de alguns dos caminhos apresentados.

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considerações finais

O Exorcismo da Nação e as Aporias do Presente no Trabalho Historiográfico A pretensão “exorcista” da obra de Sérgio Buarque de Holanda, em particular dos anos 1950, não se limitava ao peso conservador da herança colonial. Lembremos que Visão do Paraíso trata da história da comparação da América portuguesa com o Paraíso bíblico por meio da análise sistemática das tradições literárias européias, o que sugere seu papel importante na construção simbólica e ideológica da nação brasileira, especialmente a partir da Independência1. As descrições inflamadas da América portuguesa, analisadas em Visão do Paraíso, encobriam “apetites demasiado profanos de algum especulador de terras ou engajador de braços”2. Apesar do recorte temporal de Visão do Paraíso não abranger o processo de formação da Nação e da nacionalidade, não é exagero perguntar até que ponto o próprio mito não deveria ser também exorcizado, pois era um aspecto indesejável ainda vivo no presente do historiador.

Em alguns momentos, Sérgio Buarque de Holanda chega a sugerir a continuidade implícita de seu projeto, como neste trecho do prefácio à segunda edição de Visão do Paraíso: 1. Sobre a incorporação e a persistência do mito edênico no imaginário social brasileiro, ver José Murilo de Carvalho,“O Motivo Edênico no Imaginário Social Brasileiro”, 1999, pp. 22-25. 2. Sérgio Buarque de Holanda, “Prefácio à Segunda Edição”, Visão do Paraíso, 6. ed., p. XIV. 207

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O que nele se tentou mostrar [no livro Visão do Paraíso] é até onde, em torno da imagem do Éden, tal como se achou difundida na era dos descobrimentos marítimos, se podem organizar num esquema altamente fecundo muitos dos fatores que presidiram a ocupação pelo europeu do Novo Mundo, mas em particular da América hispânica, e ainda assim enquanto abrangessem e de certa forma explicassem o nosso passado brasileiro. Em tais condições bem poderia servir estudo semelhante como introdução à abordagem de alguns fundamentos remotos da própria história do Brasil, e de outro – em que não se tocou nestas páginas –, como contribuição para a boa inteligência de aspectos de nossa formação ainda atuantes nos dias de hoje3.

A “História do Brasil”, entendida como história do Estado independente do Brasil, foi um processo que ocorreu, na melhor das hipóteses, a partir do crepúsculo do sistema colonial. No século XIX, a construção da identidade nacional brasileira foi promovida de modo deliberado pelo recém-formado Estado brasileiro de diversas formas. Uma das mais significativas foi o patrocínio e a cooptação de intelectuais e artistas, e a criação de órgãos que tiveram a tarefa de construir uma memória nacional. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 18384, foi uma das instituições importantes na realização dessa tarefa. O conhecimento científico elaborado segundo essa perspectiva serviu aos interesses de construção da nacionalidade, voltando suas atenções ao período colonial e condicionando o sentido de seus acontecimentos marcantes e de seus aspectos culturais para esses desígnios. Nesse momento, a tradição do mito edênico, ou seja, das convenções literárias de comparação de locais na América portuguesa com o Éden bíblico contidas nos relatos de viajantes e primeiras obras compostas sobre a colônia, passou a significar provas da existência de uma nacionalidade brasileira homogênea e ufanista no passado remoto da colônia5. Como 3. Idem, p. IX. 4. Manoel Luís Salgado Guimarães,“Nação e Civilização nos Trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional”, 1988, pp. 5-7. 5. Utilizando como matriz o estudo de Albert Béguin, L’Âme romantique et le rêve, Maria Sylvia de Carvalho Franco indica uma forte coincidência entre os lugares-comuns do Romantismo europeu e o conteúdo simbólico articulado em Visão do Paraíso. De certo modo, seu estudo procura mostrar o forte enraizamento do tema escolhido por Sérgio Buarque de Holanda no século XIX, o que pode corroborar a hipótese de que

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o próprio Sérgio Buarque sugeriu, o mito edênico passaria a fazer parte da história do ufanismo brasileiro6. Não é casual que, em Visão do Paraíso, “o tema do Paraíso Terreal representou em diferentes épocas, um modo de interpretar-se a história, um efeito da história e um fator da história”7. Alguns anos antes de escrever essa obra, ao discutir questões da historiografia literária brasileira, Sérgio Buarque de Holanda formula de modo claro o problema: Dessa fidelidade ao pequeno rincão de origem pode-se dizer, quando muito, que representa um patriotismo da espécie paroquial, patriotismo que, como se sabe, costuma ser tanto mais exacerbado quanto mais deliberado e consciente. É um erro de perspectiva querer equipará-lo ao que, em nossos dias, chamamos de consciência nacional. Esta pode ter surgido, em verdade, nos últimos tempos do período colonial que nos ocupa, entre certos indivíduos de exceção, e seria arriscado afirmar que chegou a cristalizar-se em alguma forma de expressão literária. É certo que não cresceu como crescem as árvores, das próprias raízes e entranhas, mas como crescem as casas, pela adição sucessiva de elementos estranhos8.

O mito edênico foi o grande manancial do mito fundador da nação brasileira9. Ele serviu aos desígnios do processo extremamente conservador de nossa constituição como Estado independente. O modo pelo qual Visão do Paraíso foi articulado sugere também que o próprio mito fosse algo de certo modo indesejável, passível de ser exorcizado. A luta de Sérgio Buarque de Holanda pela formação de um campo intelectual independente significou, em diversas oportunidades, a repulsa e a revisão

6. 7.

8. 9.

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a pretensão “exorcista” do historiador brasileiro debruçava-se sobre a gênese de um mito nos séculos XVI e XVII tendo em vista o seu estabelecimento no imaginário nacional no século XIX. Maria Sylvia de Carvalho Franco, “A Terra Reencantada”, 2002. Sérgio Buarque de Holanda, “Prefácio à Segunda Edição”, Visão do Paraíso, 6. ed., p. XXI. Sérgio Buarque de Holanda, Capítulos de Literatura Colonial, op. cit., pp. 410-411. Apesar de ter sido incluído por seu organizador, Antonio Candido, no conjunto de Capítulos de Literatura Colonial, esse trecho provém de um texto independente, concebido provavelmente para ser lido em conferência ou publicado em periódico, (batizado pelo organizador de “Panorama da Literatura Colonial”). Segundo sugestão do crítico, o texto foi escrito provavelmente antes da redação do núcleo que corresponde à inacabada história da literatura colonial brasileira. Antonio Candido, “Introdução”, p. 7. Sérgio Buarque de Holanda, Capítulos de Literatura Colonial, op. cit., p. 410. Marilena Chauí, Brasil, Mito Fundador e Sociedade Autoritária, 2000.

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de pressupostos nacionalistas, positivistas e deterministas, característicos da tradição intelectual brasileira formada no século XIX. No trecho anterior, a identificação das convenções literárias epidíticas possibilitaram a crítica de concepções da análise literária que tenderiam a uma leitura superficial, na qual o discurso do autor é entendido como verdade atemporal. Desse modo, os topoi de elogio seriam vistos como a confirmação da consciência nacional, um grande anacronismo se pensarmos segundo a perspectiva de algumas das novas correntes do pensamento histórico de meados do século XX. Que imagem exprimirá melhor, de resto, o processo histórico da formação de nossa literatura, sobretudo no período colonial? Em vez de procurar entre suas diferentes fases uma coerência íntima, procuraremos discernir a coerência existente entre cada uma delas e seu modelo ultramarino. Prolongamento da literatura portuguesa, a brasileira dos tempos coloniais não pode ser caprichosamente separada do conjunto a que pertence. Renascimento, Barroco, Neoclassicismo setecentista correspondem a formas, ou, para usar o termo consagrado entre modernos historiadores das artes plásticas, a vontades de expressão bem definidas e que se expandiriam através de todo o mundo da civilização européia. Partindo dessas formas gerais, das idéias e modos de sentir que lhe correspondem, cumpre examinar até onde puseram ser representadas no Brasil ou afetadas pelas condições de nosso meio10.

Por isso a importância de se estudar a relação entre os conceitos emprestados da história da arte e “os modos de sentir”; ou seja, experiências históricas concretas individuais, tema do segundo capítulo deste trabalho. Por trás desse esforço residia a necessidade de compreender a literatura colonial brasileira não mais como confirmação de uma nacionalidade teleológica e autoritária. A literatura brasileira deveria ser encarada como um ramo da portuguesa que, como completou Antonio Candido no mesmo período, era “galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas...”11. Da mesma forma, a história colonial deveria ser integrada

10. Sérgio Buarque de Holanda, Capítulos de Literatura Colonial, op. cit., pp. 410-411. 11. Antonio Candido, “Prefácio da Primeira Edição”, Formação da Literatura Brasileira, op. cit., p. 9.

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na história da expansão marítima lusitana, em um primeiro momento, e européia em um segundo. Muitas das “peculiaridades” da história do Brasil colonial eram, na realidade, elementos dados na formação eminentemente medieval do Estado português. Sérgio Buarque chegou a identificar como elementos históricos da sociedade portuguesa medieval originaram várias características tradicionalmente peculiares da nacionalidade brasileira – “contribuições do Brasil para a humanidade” como a escravidão ou a miscigenação. É notório que o núcleo do debate era o nacionalismo brasileiro e, no limite, projetos para a nação. Seria injusto com a complexidade da obra de Sérgio Buarque de Holanda sugerirmos aqui relações mecanicistas entre suas posições intelectuais e suas convicções políticas. Se fosse essa a proposta deste trabalho, deveríamos ter analisado de modo mais sistemático elementos de sua trajetória pessoal, especialmente ao longo dos anos 1950. No entanto, o questionamento sobre os significados de sua crítica ao anacronismo da tradição intelectual nacionalista e ao ufanismo brasileiro e, em um plano mais abrangente, as implicações políticas de seu pensamento histórico, ainda devem ser aprofundados. Neste trabalho esperamos ter contribuído para a compreensão dos aspectos técnicos e dos debates intelectuais acerca do tema. Uma chave para a compreensão desses dilemas intelectuais é a interlocução entre Sérgio Buarque de Holanda e autores como Caio Prado Jr., Gilberto Freyre e Antonio Candido12. Esta obra apontou sucintamente a importância da interlocução entre Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. no panorama intelectual brasileiro de meados do século XX por meio da análise de uma referência explícita a Caio Prado contida em Visão do Paraíso. Todavia, há muitos outros aspectos dessa relação a serem investigados, que podem transparecer na análise de material como correspondências e artigos de jornal. Ambos os historiadores foram comprometidos com a instauração das ciências sociais

12. Para uma aproximação entre Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, ver Richard Morse, “Balancing Myth and Evidence: Freire and Sérgio Buarque”, 1995; e Ronaldo Vainfas, “Gilberto & Sérgio”, 2002.

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especializadas no Brasil. No campo da história, tal militância significou o desenvolvimento da concepção epistemológica de que a história é a ciência do homem e do presente, postura que se relaciona diretamente com a investigação sobre o sentido da colonização. Grosso modo, essa postura procurava minar a idéia de nação como entidade homogênea e abstrata, revertendo o foco da análise para seu processo histórico e autoritário de construção13. Não é à toa que, depois de Visão do Paraíso, a grande maioria dos escritos de Sérgio Buarque de Holanda tenham se focado no século XIX, analisando o processo de formação da sociedade e das instituições nacionais14. É importante lembrar também que a confiança nos benefícios desse processo de especialização nunca se desassociou da sua convicção na unidade do conhecimento, o que novamente reforça a aproximação de seu trabalho com o pensamento de intelectuais da mesma geração que vivenciaram processos semelhantes, como Fernand Braudel e Caio Prado Jr.15. 13. “Um dos eixos fundamentais na obra de Caio Prado Jr. é o tema das tensões entre a sociedade e a nação, que aponta a virtualidade de um processo inacabado em nossa história: ‘A evolução brasileira de simples colônia tropical para nação, tão difícil e dolorosa e cujo processo mesmo em nossos dias ainda não se completou’. Ao analisar a oposição estrutural entre o sistema de organização da economia colonial e a construção da nacionalidade como um traço peculiar de nossa inserção no mundo, Caio Prado Júnior desfraldou a bandeira de um programa que era ao mesmo tempo uma meta política e um desafio metodológico para o historiador marxista: decifrar as contradições regionais e conjunturais do Brasil colonial para melhor decifrar o processo pendente da revolução brasileira”. Maria Odila L. S. Dias, “Impasses do Orgânico”, 1989, p. 377. 14. A mudança de recorte temporal na obra de Sérgio Buarque de Holanda foi embrionária em relação a uma alteração de eixo nos estudos historiográficos acadêmicos no Brasil que, a partir de finais dos anos 1960, passaram, em boa medida, a enfocar o século XIX. Cf.Thiago Lima Nicodemo,“A Herança Colonial: Sérgio Buarque de Holanda e a História Geral da Civilização Brasileira”, op. cit. 15. Para Sérgio Buarque de Holanda, cada ramo das ciências representava apenas uma via diferente para se compreender a complexidade das experiências humanas, muito embora uma das suas maiores preocupações tenha sido a articulação de diversos campos de especialização científica. Assim como Fernand Braudel e Caio Prado Jr., vislumbrava na história uma espécie de ambiente comum de integração das diversas ciências sociais – todo o fenômeno social é indissociável da dimensão temporal de sua produção e reprodução. Para uma análise da obra de Sérgio Buarque de Holanda no que se refere a esses aspectos, ver Maria Odila Leite da Silva Dias,“Sérgio Buarque de Holanda, Historiador”. Sobre a relação entre Caio Prado Jr. e a interdisciplinaridade

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O distanciamento histórico em relação à idéia de nação nunca implicou sua própria negação ou renúncia. Ao contrário, a compreensão do processo de constituição da nação brasileira significou uma vontade de interferência em seus rumos, vontade que se expressou em um repúdio ao ufanismo e ao otimismo exacerbado dos “milagres” dos anos 1950. Por isso a historiografia do período, representada por Sérgio Buarque e Caio Prado, tende a colocar em questão a inserção histórica do país na ordem econômica e cultural mundial, expondo suas deficiências estruturais históricas.

Em relação a essa intensa interlocução, é interessante observar a participação de Sérgio Buarque de Holanda na Revista Brasiliense, um dos empreendimentos editoriais de Caio Prado Jr. nos anos 1950. Uma das características mais importantes dessa revista foi a intenção de agregar intelectuais de diversas matrizes do pensamento de esquerda, buscando a ponte entre a reflexão teórica sobre os problemas brasileiros e a intervenção política16. Durante seus primeiros anos, Sérgio Buarque fez parte de seu conselho consultivo, tendo publicado apenas um artigo17. Além dele, o historiador também elaborou uma nota explicativa a um curioso artigo publicado sob pseudônimo que integra o n. 7 da Revista Brasiliense, referente ao bimestre set.-out. de 1956. O que confere um tom misterioso ao caso é o fato de que tal artigo consiste

ver Paulo Teixeira Iumatti, Caio Prado Júnior, Historiador e Editor, op. cit., especialmente o capítulo III – “Cultura e Estilo”. Sobre o mesmo tema em Braudel e na escola dos Annales, com uma interface interessante com o pensamento brasileiro do período (por meio da análise do caso de Gilberto Freyre), ver Peter Burke, História e Teoria Social, op. cit., pp. 28-33. 16. Sobre a Revista Brasiliense, ver Evaristo Giovanneti Netto, Uma Trincheira de Idéias: A Revista Brasiliense (1955-1964) – A Urdidura de um Pensamento de Esquerda, 1998; Paula Beiguelman,“A Revista Brasiliense e a Expressão Teórica do Nacionalismo Econômico Brasileiro”, 1989. 17. O referido artigo é “Gosto Arcádico”, Revista Brasiliense, jan.-fev. 1956, pp. 97-114. Esse artigo foi posteriormente republicado no livro Tentativas de Mitologia, op. cit., pp. 241271.Trata-se originalmente do trecho entre as pp. 179-199 do texto correspondente ao livro Capítulos de Literatura Colonial.

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em um longo poema, provavelmente a única peça literária contida nos primeiros números da revista. O poema intitula-se Novas Cartas Chilenas, fazendo referência evidente às Cartas Chilenas, sátira publicada em Minas Gerais em finais do século XVIII, pouco antes do episódio da Inconfidência Mineira. Seu foco foi a crítica às arbitrariedades cometidas por D. Luís da Cunha Meneses, governador da capitania de Minas Gerais entre 1783 e 1788, que figura satirizado no personagem do “Fanfarrão Minésio”, suposto governador do Chile18. Na nota explicativa ao texto das Novas Cartas Chilenas, Sérgio Buarque de Holanda, em um tom profundamente irônico, discute velhas polêmicas em torno das Cartas Chilenas, como a identidade de seu autor e de seus principais personagens, como o “Fanfarrão Minésio”. Posteriormente explica que, apesar de conservar o tom enigmático das primeiras Cartas, as Novas Cartas Chilenas diferenciavam-se das primeiras pois, nesse caso, autor e interlocutor aparecem amalgamados em apenas um: Doroteu-Critilo. Além disso, do ponto de vista técnico, “aqueles decassílabos sensaborões que se arrastavam numa simples monotonia cederam o passo a metros quase sempre breves e ágeis enquanto autores mudavam as perucas e rendilhados ou babados ao gosto ‘rococó’ pela indumentária um pouco mais praticável da recente e, todavia, já saudosa geração chamada de 45”19. Segundo Sérgio Buarque, o conservantismo que marcava os mais prováveis autores das Cartas Chilenas, como é o caso de Tomás Antonio Gonzaga, também havia sucumbido, assim como a figura de um único fanfarrão havia sido substituída – na realidade o general do Chile estaria “subdividido, multiplicado, em mil fanfarrões, sempre cheios de audácia e pompa vã”20. A autoria do poema foi assumida, algum tempo depois, pelo poeta e tradutor José Paulo Paes, que o integrou em uma coletânea de

18. Joaci Pereira Furtado (org.),“Introdução”, em Tomás Antônio Gonzaga, Cartas Chilenas, 1995, p. 9. Para uma análise da historiografia sobre as Cartas Chilenas: Joaci Pereira Furtado, Uma República de Leitores: História e Memória na Recepção das Cartas Chilenas (1845-1989), 1997. 19. José Paulo Paes (Doroteu Critilo), “Novas Cartas Chilenas”, 1956, p. 61. 20. Idem, p. 62.

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poemas intitulada Poemas Reunidos, publicado em 1961 pela editora Cultrix21. No entanto, há uma curiosa identificação desse poema com a obra de Sérgio Buarque de Holanda; não é à toa que o tema das Cartas Chilenas foi reincidente em seu percurso intelectual. Além de ter se dedicado algumas vezes à análise da autoria das Cartas Chilenas como crítico literário22, o próprio Sérgio Buarque, em 1963, escreveu uma paródia ao famoso poema setecentista também intitulada Novas Cartas Chilenas. Apesar de seu interesse, esse episódio ocorreu no âmbito particular – o historiador brasileiro, trabalhando como professor visitante no Chile, elaborou sua versão das Novas Cartas Chilenas como carta a um de seus melhores amigos, o poeta Manuel Bandeira. Nela, Sérgio Buarque descreve notícias de sua estadia transpostas na linguagem e na estrutura de uma sátira setecentista23. Algum tempo depois, quando já havia identificado que o provável autor do poema havia sido mesmo Sérgio Buarque, Manuel Bandeira respondeu à brincadeira à altura publicando o poema de seu amigo na coletânea Antologia dos Poetas Bissextos Contemporâneos24. Outro aspecto interessante desse episódio é que Manuel Bandeira havia sido justamente o principal interlocutor de Sérgio Buarque de Holanda nos debates em torno da autoria das Cartas Chilenas ocorrido no início dos anos 1940, debates fortemente arraigados em uma revisão da historiografia brasileira ufanista no conturbado quadro políticocultural do Estado Novo25. 21. Posteriormente integrado em sua coletânea: Melhores Poemas, pp. 79-99. 22. Sérgio Buarque de Holanda, “As Cartas Chilenas”, Diário de Notícias, 26 jan. 1941, pp. 13-14; e “Ainda as Cartas Chilenas”, Diário de Notícias, 2 fev. 1941, pp. 13-14. Esses artigos foram republicados no livro Tentativas de Mitologia, op. cit., sob o título de “As Cartas Chilenas”, pp. 221-229. 23. Texto de Sérgio Buarque de Holanda, sob pseudônimo de Critilo, intitulado “Novas Cartas Chilenas”, 1963, Fundo Sérgio Buarque de Holanda – Siarq-Unicamp, Pi, 178, P18. Antonio Candido também recebeu um exemplar do mesmo poema. Os dois intelectuais, com alguma freqüência em sua troca de correspondências, brincavam redigindo cartas em linguagem típica do século XVI, XVII ou mesmo em latim. 24. Sérgio Buarque de Holanda, “Novas Cartas Chilenas”, em Manuel Bandeira (org), Antologia dos Poetas Bissextos Contemporâneos, 1964, pp. 169-171. 25. Tema desenvolvido em Thiago Lima Nicodemo, “Gosto de Sedição: Sérgio Buarque de Holanda, Manuel Bandeira e a Autoria das Cartas Chilenas”, op. cit.

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Retomando a discussão das Novas Cartas Chilenas de José Paulo Paes, é notável que a forma adotada por Sérgio Buarque de Holanda de prólogo anexado às Novas Cartas como nota explicativa se constitui em um provocativo diálogo com a tradição. As Cartas Chilenas originais também são “encaminhadas” por meio de um prólogo por alguém que se assume como tradutor do original espanhol. Esse deslocamento da autoria tem um efeito central na composição da peça, pois permite que o leitor tome consciência de que se trata de uma paródia: o Chile é metáfora do Brasil, Espanha é metáfora de Portugal e assim por diante. Pensando dessa maneira, o autor do prólogo, aquele que encaminha a peça ao público, é também co-autor da paródia, pois o efeito irônico, em sua totalidade, depende de sua intervenção. Não é surpreendente que esse texto tenha chamado a atenção do historiador brasileiro justamente no período em que ele gestava sua obra Visão do Paraíso. De fato, pode-se perceber algumas semelhanças entre o poema de José Paulo Paes e o livro de história de Sérgio Buarque: de alguma maneira, ambos incidem sobre a questão do nacionalismo, tema candente nos anos 1950 e particularmente muito caro à Revista Brasiliense26. A leitura do poema é marcada por um forte tom irônico no qual o autor mobiliza uma série de referências relacionadas à história do Brasil, em especial no que diz respeito a temas e fontes bastante conhecidos em nossa historiografia. Tais temas são reapropriados por meio de procedimentos literários como a paródia e ironia, de modo que são submetidos a uma visão crítica e, conseqüentemente, polêmica. Enfim, as Novas Cartas Chilenas podem ser encaradas como uma grande sátira da história do Brasil. Iniciam-se com uma ode prévia dedicada à História de tom marcadamente cômico27 e, posteriormente, 26. Sobre o papel da Revista Brasiliense nos debates em torno do nacionalismo brasileiro de orientação esquerdista, ver Evaristo Giovannetti Netto, op. cit., capítulo 3: “Aquarela Brasiliense”. 27. Por se tratar de um preâmbulo poético dedicado à história, ao menos uma parte da “Ode Prévia” das Novas Cartas Chilenas merece ser destacado: “História pastora/ Dos alfarrábios./ Meretriz do Rei,/ Matrona do Sábio./ Lépida Menina,/ Múmia astuciosa, / Miasma de esgoto,/ Perfume de rosa./ [...] Musa confusa/ Bola de cristal./ Arena de luta/ Entre o bem e o mal./ [...] Estrela da manhã, / Mapa ainda obscuro./ História,

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se dividem em vários temas marcantes da história do Brasil como “Os Navegantes”, “A Carta”, “A Mão-de-Obra”, “A Partilha”, “L’Affaire Sardinha”, “A Cristandade”, “Os Nativistas”, “O Testamento”, “Palmares”, “Os Inconfidentes”, “Calendário”, “A Fuga”, “O Grito”, “O Primeiro Império”,“O Segundo Império”,“A Redenção”,“Cem Anos Depois, “Os Tenentes” e, finalmente, “Por que me Ufano”. De modo geral, o poema procura satirizar o nacionalismo exacerbado que condicionou a construção dos grandes mitos da história do Brasil e legitimou o domínio de uma pequena elite. A seguir destacamos a última parte do poema, na qual seu autor dispõe a cada estrofe temas marcantes da história do Brasil no passado e sua acomodação no presente, em seu agora: POR QUE ME UFANO

A caravela sem vela, testemunho De antigos navegantes, ora entregues À mercancia de secos e molhados. O cadáver do bugre embalsamado Em trecho d’ópera de retórica, Amainando o interesse antropológico. O escravo das senzalas na favela Batucante, pitoresca, sonorosa, A musa castroalvina estando morta. Os mamelucos malucos alistados Na milícia das fardas amarelas, Para exemplo de frágeis Fabianos. As sotainas jesuítas no cabide, Cativado o gentio e pleno o cofre Encourado da santa companhia. As monjas de Gregório, tão faceiras, Compelidas ao mister destemeroso De lecionar burguesas donzelonas.

mãe e esposa/ De todo o futuro”. José Paulo Paes (Doroteu Critilo), “Novas Cartas Chilenas”, op. cit., p. 63.

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Os bandeirantes heris, continuados Em capitães da indústria, preterindo O sertanismo pela mais-valia. Os bacharéis, cabeça de papel, Rabo de palha, talim de mosqueteiro, Salvando a pátria amada sem cobrar. Os filibusteiros na costa, em diuturna Vigília à costumeira florescência Dos capitais plantados no ultramar. Os fidalgos de prol, ensolarados, Com chancelada carta de brasão, Modorrando entre opulentos cafezais. Literatos de truz, já vacinados Contra a febre do vil engajamento, A fenestra dos tôrres-de-marfim. Os líricos donzéis, atribulados Por demos gideanos, descobrindo As primeiras delícias de Sodoma. Os camareiros eleitos, no timão Da barca da República, cuidosos À bússola de vários argentários. Mas, sal da terra, reverso de medalha, Balaidas, Praieras, Sabinadas, Palmares, Itambés, Inconfidências. Tudo ajuizado em boa aferição, O fruto podre, a rosa ainda em botão, O sol do grão, a esperança da raiz Sob o signo do Cruzeiro insobornável, Tendo em conta passados e futuros, Sempre me ufano deste meu país28.

Articulando passado e presente, o poeta compõe um quadro bastante similar ao que o historiador analisaria, especialmente, no capítulo final de Visão do Paraíso. Em ambos, a linha compreensiva que sugere

28. Idem, pp. 78-80.

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a continuidade de processos históricos autoritários e mesquinhos é expressa em tom fortemente irônico, marcado, por exemplo, pelo uso de sistemáticos adjetivos que dão um tom quase epidítico ao poema, acompanhados de referências históricas que são, em seguida, expostas ao ridículo, como os “bandeirantes heris” preterindo o sertanismo pela mais-valia; os “literatos” em suas torres de marfim, vacinados contra a febre do engajamento; ou os “camareiros eleitos” da “barca da República” cuidados à bússola “dos argentários”. O estabelecimento dessas imagens contrasta ironicamente com uma suposta declaração de ufanismo ao país, como se cada tema fosse razão de um orgulho irônico que, na realidade, encobre a vergonha e a insatisfação. Cada verso consiste na ligação entre um tema do passado em perspectiva à sua continuidade no presente. É interessante notar que todas as ligações entre as imagens articuladas têm um forte caráter negativo, como por exemplo os escravos agora nas favelas, os bandeirantes agora capitães-de-indústria ávidos pela mais-valia, os fidalgos de prol em opulentos cafezais etc. O efeito irônico produzido pela associação dessas imagens abre portas para um certo exorcismo desses processos. Respeitando as especificidades do discurso histórico e do poético, não se pode deixar de notar algo em comum entre esse efeito literário e a concepção de história amadurecida e professada por Sérgio Buarque de Holanda entre finais da década de 1940 e ao longo da década seguinte. Como vimos ao longo deste trabalho, o historiador brasileiro desenvolve uma concepção de história profundamente autocrítica e consciente de seu papel no presente; formulação muito pessoal mas ligada a uma conjuntura mais ampla de revisão das bases epistemológicas da história na primeira metade do século XX, indissociavelmente relacionada à experiência das duas guerras mundiais e da ascensão dos totalitarismos. Nesse quadro, a história é produzida a partir de campo de temas, problemas e significados existentes de alguma maneira no presente, rearticulando o passado em uma linha compreensiva. Além disso, esse direcionamento em relação ao presente contém, em alguma medida, expectativas de um futuro, espaço criado a partir da projeção de continui-

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dade ou interrupção dos processos vivenciados ao longo do tempo. Desde Raízes do Brasil, a investigação histórica visa à identificação (e possível interrupção) de processos históricos que bloqueiam a modernização da sociedade brasileira. Em Visão do Paraíso, esse esquema evolui de uma forma até mais enfática, que o autor nomearia “exorcismo” (no prefácio à segunda edição da obra). Em poucos momentos de sua obra, Sérgio Buarque deixa transparecer suas expectativas, a ligação entre passado e presente. Em Visão do Paraíso talvez o momento mais explícito seja na formulação já mencionada neste trabalho “teremos também nossos eldorados”, na qual a narrativa produz um forte efeito irônico por meio de profecias de eventos já ocorridos, de nossos ciclos econômicos, sempre marcados pela exploração “sem retribuição de benefícios”. Esse profetismo constitui-se em uma espécie de fissura no discurso historiográfico que abre espaço para a penetração de experiências e expectativas do presente. Prevendo o acontecimento de eventos no passado como se eles ainda fossem ocorrer, o historiador procura explicitar uma espécie de indignação em relação aos efeitos de alguns processos históricos. A história acaba assumindo uma espécie de papel compensatório, reorganizando os eventos a partir de uma declaração de discórdia, de indignação, o que confere um sentido irônico à reconstituição do passado, como se o historiador desejasse que alguns dos eventos que ele estuda simplesmente não tivessem ocorrido. Esse efeito constitui-se em uma provocação ao provoca o leitor, pois a análise tende a mostrar que, em uma previsão racionalizada, tais processos indesejados existem até hoje, e sua tendência é perdurarem se nada for feito. Ao mesmo tempo em que experiências e expectativas do presente rearticulam o discurso histórico incrustando-o em seu próprio tempo, o texto projeta-se em direção ao futuro, criando um espaço próprio de reflexão crítica de reinvenção da experiência moderna. O próprio leitor, na medida em que se conscientiza, é conclamado a se indignar frente às permanências arcaicas do passado em sua sociedade que bloqueiam a modernização. Na realidade, esse mecanismo irônico do texto não se volta apenas à identificação de elementos estanques do passado. Considerando que o presente está sempre em mutação, o texto incita o

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leitor à reflexão crítica sobre processos históricos indesejados contidos no seu presente, seja ele qual for. A concepção de história de Visão do Paraíso é, em alguma medida, produto da refiguração da experiência paradoxal da modernidade; o passado modernista do intelectual permaneceu presente até no desenvolvimento do historiador profissional. No limite, o tema de Visão do Paraíso é o advento da modernidade em sua excelência, bem como seu enraizamento no território americano. Não é por acaso que o livro delineia um quadro de um mundo em intensa mutação e desenvolvimento contrastante com fortes permanências do passado medieval. Assim como observou o historiador ao refletir sobre o tema Paraíso terreal, talvez a modernidade possa ser vista em seu pensamento como, ao mesmo tempo, um fator da história, um efeito da história e um modo de interpretar-se a história. Pela relação que guarda a experiência moderna, o poema Novas Cartas Chilenas pode ser comparado a um complexo livro de história como Visão do Paraíso; ambos os textos rearticulam presente, passado e futuro a partir de um esquema análogo, que confere um sentido profundamente negativo ao processo histórico de formação da nação. Nos dois casos, a articulação de um sentido trágico ao passado brasileiro contrasta com os grandes mitos nacionais, com um panorama ufanista e taumatúrgico de uma história preocupada em “erigir altares para o culto do Passado, desse passado posto no singular, que é palavra santa, mas oca”. Urdindo o passado com suas experiências e expectativas presentes, Sérgio Buarque de Holanda estabelece um sentido crítico para uma história do Brasil de exploração, dependência e injustiça, encoberta pela construção de mitos nacionais conservadores e apaziguadores como o mito edênico, diagnosticado em Visão do Paraíso. Um diagnóstico irreverente e negativo sobre o sentido da colonização sobrepõe-se a uma certa dose de esperança no conhecimento como ação, como meio de interferir em um presente que ainda não se tornou passado, e segue encobrindo o futuro.

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NOVAS CARTAS CHILENAS “Was der Fanfarron Mimetius∗ was der immer erstrebt das ging ihm unter der Hand verloren. Chile war auf seine Weise nicht zu regieren; in derlage gewesen. Die grosse Benognung der Aufklärung zu leiten, er war nicht imstande, sie völlig zu vernichten. Eswar ihm nicht gelungen, die Chilenen seinem Macht dienstbar zumachen, es war ihm nicht gelungen ihre Macht zu zerstören. Der Spieler gab sein Spiel auf, er legte still die Karten aus der Hand, Die Lage Chiles wurde dadurch hoffmungsvoller. Auch das Leben des Minetius verlöschte wie ein Meteor…” Gustav Freytag, Bilder aus der Chilianen vergangenheit, III, 5.

INTRÓITO∗∗ Não cuides Doroteu que neste Reino, Aonde alado batel me trouxe há dias Após largo adejar por sobre nuvens E altaneiras montanhas, a lembrança De amigos tão diletos se apagasse Num terno coração. Ainda agora, Olhando da janela o casario Bem ordenado∗∗∗ entre alamedas que Retilíneas se cruzam, e o perfil De airosa e encanecida cordilheira∗∗∗∗, A mim me perguntei: quanto não dera Por tê-los junto a mim neste momento!

∗ ∗∗ ∗∗∗ ∗∗∗∗

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texto ilegível (n. ed.) texto ilegível (n. ed.) Var.: dividido. Chil.: Kordliera.

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O Exorcismo da Nação e as Aporias do Presente no Trabalho Historiográfico

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Mas oh! Que vejo!? Um sortilégio raro Vos trouxe até aqui! E já vos sinto Charlando alacremente entre bons vinhos, Mariscos∗, enguias∗∗ fritas, chirimorjas∗∗∗ Num doce enlevo d’alma, alerta e ledo, Que cuidados terrenos não corrompem. Nem já o espectro de tirano atroz Que esta terra oprimiu em longas eras Mais que o fero Mapuche ou o Araucano Pode turvar o quadro que componho Formado nos refolhos da Saudade Como encontrar-te, oh déspota maligno? Minésio Fanfarrão∗∗∗∗, onde te escondes? Não sei dizer que gênio benfazejo Ou que sublime herói e venerando Borrou até seu nome das memórias: Se Gil Goncourt ou Pero de Valdívia! assim vai me enganando a fantasia Assim vos vejo, assim vos vi agora Perto e longe de mim, num desafio Ao espaço cruel que nos separa E à barreira das serras espaudadas∗∗∗∗∗! Por hoje paro aqui. Assás prolixo Haveria de ser se as mil bondades Deste reino de Chile eu vos contasse. Algum dia, Deus queira que mui cedo, Retomarei o fio desta prosa, ajudando-mo a musa inspiradora. Ingrata, esquiva musa ... Critilo

∗ ∗∗ ∗∗∗ ∗∗∗∗ ∗∗∗∗∗

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texto ilegível (n. ed.) texto ilegível (n. ed.) Gest [?] Anonaceae Der Mimetius!!!! Var.: empinadas

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obras de Sérgio Buarque de Holanda

Livros: Raízes do Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio, 1936. Monções. Rio de Janeiro, Casa do Estudante do Brasil, 1945. Raízes do Brasil. 2. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1948. Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Colonial. Rio de Janeiro, Ministério da Educação/Instituto Nacional do Livro, 1952-1953, 2 vols. (como organizador). Alle Radici del Brasile. S/l, Fratelli Bocca Editori, 1954. Raices del Brasil. México, Fondo de Cultura Económica, 1955. Raízes do Brasil. 3. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1955. Caminhos e Fronteiras. Rio de Janeiro, José Olympio, 1957. Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos. São Paulo, SP, 1958. Tese apresentada à Escola de Sociologia e Política para a obtenção do grau de Mestre em Ciências Sociais – Instituto de Sociologia e Política (mimeo.) (exemplar consultado: Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Siarq-Unicamp, Pi 175 P18). Visão do Paraíso: Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil. São Paulo, 1958. Tese apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo para obtenção da Cátedra de História da Civilização Brasileira.

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Urdidura do Vivido

Visão do Paraíso: Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio, 1959. “Novas Cartas Chilenas”. In: BANDEIRA, Manuel (org.). Antologia dos Poetas Bissextos Contemporâneos. Rio de Janeiro, Organizações Simões, 1964, pp. 169-171. Visão do Paraíso: Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil. 2. ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional/Edusp, 1969, p. XX. “O Atual e o Inatual na Obra de Leopold Von Ranke”. In: RANKE, Leopold von. Ranke. São Paulo, Ática, 1979, p. 61 (coleção Grandes Cientistas Sociais, n. 8). Publicado também na Revista de História, n. 100, vol. L, t. II, ano XXV, pp. 431-482, out.-dez. 1974. Tentativas de Mitologia. São Paulo, Perspectiva, 1979. Monções. 3. ed., São Paulo, Brasiliense, 1990. Capítulos de Literatura Colonial. São Paulo, Brasiliense, 1991. Raízes do Brasil. 26. ed., São Paulo, Cia das Letras, 1995. Caminhos e Fronteiras. 3. ed., São Paulo, Cia. das Letras, 1995. “Prefácio à Segunda Edição”. Visão do Paraíso. Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil. 6. ed., São Paulo, Brasiliense, 1996. O Espírito e a Letra: Estudos de Crítica Literária. São Paulo, Cia. das Letras, 1996, 2 vols. Por uma Nova História. São Paulo, Perseu Abramo, 2004.

Artigos em Periódicos: “Originalidade Literária”. Correio Paulistano, São Paulo, 22 abr. 1920. “O Lado Oposto e Outros Lados”. Revista do Brasil, São Paulo, 15 out. 1926. “Nacionalismo e Monarquismo na Alemanha”. O Jornal, Rio de Janeiro, 28 fev., 26 mar., 2 e 12 abr. 1930. “As Cartas Chilenas”. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 26 jan. 1941.

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Obras de Sérgio Buarque de Holanda

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“Ainda as Cartas Chilenas”. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 2 fev. 1941. “Literatura Colonial”. O Estado de S.Paulo. São Paulo, 10 out. 1947. “Literatura Colonial”. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 14 dez. 1947. “Carta a Cassiano Ricardo”. Colégio, n. 3, set. 1948. “Universalismo e Provincianismo na Crítica”. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 7 nov. 1948. “Sobre História da Literatura”. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 26 dez. 1948, p.1. Republicado em O Estado de S.Paulo, São Paulo, 22 jan. 1949. “Literatura Jesuítica I”. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 2 jan. 1949. “Literatura Jesuítica II”. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 9 jan. 1949. “Literatura Jesuítica (Conclusão)”. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 16 jan. 1949. Republicados no O Estado de S.Paulo, São Paulo, sob mesmo título nos dias 4 e 8 fev. e 1 mar. de 1949. “Au Brésil colonial: les civilizacions du miel”, Annales, 5e année, n. 1, pp. 7881, jan.-mar. 1950. “História da Literatura Brasileira, 1870 a 1920”. Folha da Manhã, São Paulo, 7 jun. 1950. “Ofício do Historiador”. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 16 jul. 1950, pp. 5 e 6. Publicado também sob o título de “Apologia da História” na Folha da Manhã, São Paulo, 18 jul. 1950, p. 4. “Para uma Nova História”. Folha da Manhã, São Paulo, 26 jul. 1950, pp. 4 e 5. “Mimesis”. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 26 nov. 1950, pp. 5 e 6. Republicado na Folha da Manhã, São Paulo, 28 nov. 1950, p. 4. “Hermetismo e Crítica I”. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 6 maio 1951. “Hermetismo e Crítica II”. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 6 maio 1951. “Hermetismo e Crítica III”. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 6 maio 1951. “As Técnicas Rurais no Brasil durante o Século XVIII”. In: Anais do Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros. Nashville, The Vanderbilt University Press, jul. 1951, pp. 260-266. “Vária História”. Diário Carioca, Rio de janeiro, 11 dez. 1951.

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Urdidura do Vivido

“O Pensamento Histórico no Brasil durante os Últimos Cinqüenta Anos”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 15 jul. 1951. Republicado na revista Ficción, Buenos Aires, n. 11, pp. 141-155, jan.-fev. 1958, e no livro de Bradford Burns (ed.). Perspectives in Brazilian History, 1967. “Ainda o Barroco”. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 27 jan. 1952. “Verdade e Ideologia I”. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 11 maio 1952. “Verdade e Ideologia II”. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 13 maio 1952. “Verdade e Ideologia III”, Diário Carioca, Rio de Janeiro, 25 maio 1952. Republicado na Folha da Manhã, São Paulo, 13 maio 1952, p. 6; 20 maio 1952, p. 4; 29 maio 1952. “O Senso do Passado”. Diário Carioca. Rio de Janeiro. 13 jul. 1952. Republicado na Revista do Brasil, Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro/Rio Arte-Fundação Rio, n. 6, ano 3, jul. 1987 (número especial dedicado a Sérgio Buarque de Holanda), pp. 82-85. E em Por uma Nova História. São Paulo, Perseu Abramo, 2004, p. 102. “Poesia e Convenção”. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 7 dez. 1952. Republicado na Folha da Manhã, São Paulo, 9 dez. 1952. “Domínio Rococó”. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 6 set. 1953. Republicado na Folha da Manhã, São Paulo, 5 set. 1953. “Domínio Rococó”. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 6 set. 1953. Republicado na Folha da Manhã. São Paulo, 5 set. 1953. “Metastásio e o Brasil”. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 15 set. 1953. Republicado na Folha da Manhã, São Paulo, 6 set. 1953. “Imagens do Setecentos”. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 11 out. 1953, p. 2. Republicado na Folha da Manhã, São Paulo, 11 out. 1953. “Uma Epopéia Americana I”. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 20 dez. 1953. “Uma Epopéia Americana II”. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 27 dez. 1953, p. 2.

“Uma Epopéia Americana III”. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 3 jan. 1954, p.

2. Republicado na Folha da Manhã, São Paulo, 17 dez. 1953, p. 6; 24 dez. 1953, p. 6; 29 dez. 1953.

“Le Brésil dans la vie Americaine”. In: Rencontres Internationales de Genève 1954: Le nouveau monde et l’europe. Neuchatel, Baconniere, 1955.

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“Gosto Arcádico”, Revista Brasiliense, São Paulo, n. 3, jan.-fev. 1956. “Epopéia Rococó”. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 26 out. 1957. “Basílio da Gama e o Indianismo”. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 28 dez. 1957. “Sobre um Auto de Fé”. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 21 dez. 1957. “Glauceste Acadêmico”. O Estado de S.Paulo. São Paulo, 12 out. de 1957, p. 4. “Entrevista de Sérgio Buarque de Holanda”. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 69, pp. 3-14, jul. 2004, p. 10. Entrevista concedida no dia 2 jun. 1981 no Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS) à Ernani da Silva Bruno, Laura de Melo e Souza, Bolívar Lamounier e Maria Tereza Petrone.

Documentação Pessoal: Oficio de Lineu Prestes Reitor da Universidade de São Paulo a Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo, 16 nov. 1948. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Siarq-Unicamp,Vp 43 P1. Oficio de Carlos Alves de Souza, Embaixador do Brasil junto ao Governo Italiano a Raul Fernandes, Ministro das Relações Exteriores, Informando a Nomeação de Sérgio Buarque para a Cadeira Recém Criada de História da Literatura Brasileira na Universidade de Roma; Elogiando sua Atuação como Docente e Manifestando Pesar por seu Retorno ao Brasil. Roma, 22 dez. 1954. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Siarq-Unicamp,Vp 62 P2. Termo de Nomeação de Sérgio Buarque de Holanda como Professor Contratado para Ministrar Curso de História do Brasil na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de Sorocaba. Sorocaba, 15 mar. 1956. Fundo Sérgio Buarque de Holanda – Siarq-Unicamp,Vp 80 P. Comprovante de Aprovação do Exame “Comprehensive” para o Grau de Mestre em Ciências Sociais – Divisão de Post-grado da Escola de Sociologia e Política. São Paulo, 30 jul. 1958. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Siarq-Unicamp, Vp 84 P2.

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Urdidura do Vivido

Comprovante de Aprovação do Exame Oral para o Grau de Mestre em Ciências Sociais – Divisão de Post-grado da Escola de Sociologia e Política. São Paulo, 30 jul. 1958. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Siarq-Unicamp, Vp 83 P2.

Correspondência Passiva: MORAES, Rubens Borba de. Carta a Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo, 1°

dez. 1940. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Siarq-Unicamp, Cp 49 P6. ROWE, L. S. Carta a Sérgio Buarque de Holanda. Washington, 4 jun. 1941. Fun-

do Sérgio Buarque de Holanda, Siarq-Unicamp, Cp 53 P6. LAVES, Walter, L. C. Carta a Sérgio Buarque de Holanda. Chicago, 9 jun. 1941.

Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Siarq-Unicamp, Cp 54 P6.

________. Carta a Sérgio Buarque de Holanda. Chicago, 18 jun. 1941. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Siarq-Unicamp, Cp 55 P6.

PEREIRA FILHO, José Olympio. Carta a Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Ja-

neiro, 6 maio 1955. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Siarq-Unicamp. Série Correspondência Passiva, n. 409.

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Título Autor Produção Projeto Gráfico e Capa Imagem da Capa Foto da Capa Imagem da Quarta Capa Editoração Eletrônica Revisão de Texto Revisão de Provas Divulgação

Secretaria Editorial Formato Tipologia Papel Número de Páginas Tiragem CTP, Impressão e Acabamento

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Urdidura do Vivido. Visão do Paraíso e a Obra de Sérgio Buarque de Holanda nos Anos 1950 Thiago Lima Nicodemo Marilena Vizentin Gustavo Marchetti Flávio de Carvalho José Carlos Araujo Ilustração extraída da edição de 1959 de Visão do Paraíso Gustavo Marchetti Marcela Souza Jonathan Busato Marilena Vizentin Marilena Vizentin Carla Fernanda Fontana Regina Brandão Cinzia de Araujo Edilena Colombo Eliane dos Santos 16 x 23 cm Bembo 11,5/15 Cartão Supremo 250 g/m2 (capa) Pólen Soft 80 g/m2 (miolo) 248 1500 Palas Athena Gráfica

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