USUCAPIÃO DE BEM PÚBLICO E RELATIVIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO

A USUCAPIÃO DE BEM PÚBLICO E RELATIVIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

LUIS HENRIQUE BRAGA MADALENA Paper de conclusão de semestre, apresentado ao Programa de PósGraduação em Direito da UNISINOS como requisito para aprovação na disciplina Estado e Administração do curso de Mestrado.

DISCIPLINA: Estado e Administração PROFESSORA: Dra. Têmis Limberger

São Leopoldo, julho de 2012.

O USUCAPIÃO DE BEM PÚBLICO E RELATIVIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

Luis Henrique Braga Madalena1

Resumo: O presente estudo teve como objetivo principal, a partir da observância de específico caso concreto, a verificação dos perigosos efeitos decorrentes de um sincretismo teórico no que concerne à fundamentação adotada para decisão dos processos judiciais, com especial ênfase aos desvios advindos de uma aplicação sem critérios das Teorias da Argumentação, no caso, mais especificamente da ponderação alexyana. Para isso, promoveu-se rápida abordagem da evolução da ideia de legalidade, diretamente ligada, ao menos na realidade jurídica que vivenciamos no Brasil, ao positivismo, inicialmente em seu viés exegético, também chamado de legalista e após, o de natureza normativista. Ao fim de tal abordagem, intentou-se traçar, mesmo que de forma singela, as linhas gerais do que apregoam as Teorias da Argumentação e as críticas que esta sofre, especialmente da Hermenêutica Filosófica. Por fim, partiu-se para a verificação de como a legalidade ainda deve obrigar a conduta do Estado, especialmente do Judiciário, exatamente sob o viés da Nova Crítica do Direito, desenvolvida por STRECK, com o fito de evitar que o ocupante dos cargos de agente estatal acabe por assenhorar-se do Poder, promovendo o retorno da dominação do homem pelo homem, por meio do retorno do subjetivismo às condutas estatais, tornando-as completamente sem controle. Palavras-chave: Constituição. Legalidade. Relativização. Usucapião de Bem Público.

Sumário: 1. Notas introdutórias; 2. O caso concreto a ser resolvido: é possível usucapir Bem Público?; 3. A noção hodierna de legalidade e a flexibilização empreendida pelas teorias da argumentação; 4. De como a legalidade ainda deve ser entendida como fundamento do Estado Democrático de Direito; 5. Balanço final.

1

Mestrando em Direito Público pela UNISINOS/RS. Especialista em Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito pela Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst, Advogado militante (OAB/PR). Membro do Grupo “Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos” (UNISINOS). Membro do Grupo de Pesquisa “Hermenêutica Jurídica” (CNPq). Coordenador Adjunto do Curso de Pós Graduação Lato Sensu (Especialização) em Direito Constitucional da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst. Secretário da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/PR e Membro Eleito do Instituto dos Advogados do Paraná – IAP.

1. Notas introdutórias A Constituição remanesce como máxima expressão do Estado Democrático de Direito, pelo que sempre quando relativizada, tal prática acaba por colocar em perigo todas as instituições democráticas e seculares que foram forjadas para afastar os governos tirânicos e absolutos, afastando a subjetividade do exercício do Poder, de modo a aproxima-lo da objetividade dada pela legalidade. Por meio da apresentação de específico caso concreto, onde o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por meio de sincretismo teórico quando da “escolha” da fundamentação para afirmar a possibilidade da usucapião de bem público, de forma circunstancial, acabou por afastar a vigência de expressa regra constitucional, admitindo, inclusive, hierarquia e contradições internas na Constituição. O caso acaba por ser paradigmático, vez que versa sobre a possibilidade da aquisição de bem público, ou seja do Estado, que apenas tem sua existência justificada para a busca do interesse público, onde o pêndulo da decisão acaba cedendo para o lado do indivíduo, mesmo que em contrariedade expressa ao direito, demonstrando o ranço privatista ainda presente no direito brasileiro. Passando por uma breve e singela abordagem do desenvolvimento da ideia de legalidade, diretamente ligada ao desenvolvimento das teorias da decisão, desde a Revolução Francesa, iniciando pelo Positivismo Exegético, transitando pelo Positivismo Normativista e desembocando nas Teorias da Argumentação, intenta-se mostrar como estas últimas acabam por não resolver a questão da aplicação do direito sem que se dependa da subjetividade do chamado intérprete autêntico, o julgador. Se se permanecer da dependência do julgador, estaremos sempre vivendo em um simulacro de democracia, especialmente na utilização de teorias que pretensamente afirmem que afastam o caráter volitivo da decisão judicial, de modo a torna-la completamente “científica”, utilizando-se de um axioma qualquer, a partir do qual são desenvolvidos diversos teoremas. O problema é que a escolha do axioma primevo, efetivamente trata-se de uma escolha, ou seja, totalmente decorrente da vontade.

Fazendo uso da Nova Crítica do Direito, desenvolvida por Lenio STRECK, fundada na Hermenêutica Filosófica, demonstrar-se-á como a abordagem do ordenamento, realizada com base em teorias que pretendam apropriar-se de pressupostos decorrentes de ramos científicos que nada tem que ver com as ciências humanas, acabam por falhar em seu desiderato, de modo a colocar em risco todas as conquistas da modernidade e da contemporaneidade,

quase

que

estabelecendo

um

novo

soberano,

especialmente em decisões que envolvam direito público: o ocupante do cargo de agente estatal. Por isso, reafirma-se a importância de respeitar-se a lei em seu sentido mais aberto, não na forma do positivismo exegético, nem nos moldes da ênfase semântica proporcionada pelo positivismo normativista de cariz kelseniano, mas em face dos constrangimentos hermenêuticos provocados pelo texto legal, tratado como um efetivo evento, completamente carregado de tradição, afastando-se por completo a possibilidade de relativização do direito, especialmente no que diz respeito ao direito público, uma vez que o Estado acaba por ser, mesmo que em teoria (não se desconhece o chamado interesse público secundário2), o principal meio de se alavancar o interesse público, dada que esta é sua razão de existir. 2. O caso concreto a ser resolvido: é possível usucapir Bem Público? A questão que se busca tratar neste trabalho é relacionada ao respeito à legalidade aplicada ao Direito Administrativo, ou seja, em outras palavras, se esta pode ser “flexibilizada” em nome de “ponderações” realizadas pelo Judiciário, mesmo que em contrariedade ao que posto no Ordenamento. Para tanto, em consonância com a Nova Crítica do Direito3, referencial teórico que orienta a pesquisa, reconhecidamente fundada na Filosofia Hermenêutica,

de

cariz

heideggeriano

e

a

Hermenêutica

filosófica

gadameriana, nada mais adequado do que utilizar um caso concreto para que

2

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 53-57. 3 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 179.

possamos abordar a questão teórica, inclusive sob o aspecto de sua coerência com o Direito4. O caso escolhido é bastante paradigmático, mas não excepcional. Versa sobre a possibilidade de aplicar-se o instituto da usucapião sobre bens públicos, especificamente um imóvel. Consiste em uma ação de usucapião extraordinária ajuizada por particular, em face do Município de Campinas e a Empresa Municipal de Desenvolvimento de Campinas S.A – EMDEC, que acabou por ser julgada, em primeiro grau, extinta sem julgamento de mérito, com fundamento no artigo 267, VI, do Código de Processo Civil, uma vez que considerado impossível o pedido, especificamente em face do mesmo ter sido considerado juridicamente impossível. Irresignado com tal julgamento, o particular ofereceu Apelação5 ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, insistindo na possibilidade de ocorrência de usucapião de imóvel contido em área desapropriada pela EMDEC, bem público, portanto, mesmo que desafetado para implementação do Distrito Industrial de Campinas. Assim o fez utilizando-se de argumentação na qual afirma que os artigos 183, § 3º6 e 191, § único7, ambos da Constituição, não deveriam ter sido aplicados “literalmente”, uma vez que a usucapião seria o único meio à disposição para que houvesse a aquisição dos imóveis descritos na Inicial, o que deveria ser levado em conta uma vez que a instalação no imóvel referenciado já havia ocorrido há mais de 30 (trinta) anos e que o negócio ali desenvolvido gerava mais de 300 (trezentos) empregos diretos, pelo que desempenharia relevante função social.

4

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jéferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 271-275. 5 APELAÇÃO Nº 9172311-97.2007.8.26.0000. TJ-SP. Rel. João Carlos Garcia. 6 Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. (...) § 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. (g.n.). 7 Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade. Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. (g.n.).

Uma vez que o particular apenas adentrou o imóvel público por ter participado de plano de desenvolvimento patrocinado pelo próprio Poder Público, o qual incentivava esta instalação, e que acabou por deveras desafetar o bem8 com o intuito de transferir sua propriedade de forma onerosa para o primeiro, o qual acabou por pagar pelo mesmo, não haveria motivos para o reconhecimento da prescrição aquisitiva, segundo o autor da demanda. Observe-se que todas as violações jurídicas levadas a cabo pelo Poder Público são utilizadas como argumentos circunstanciais para reforçar a pretensão da usucapião, que possui verdadeiro (pretenso – simbólico9) fundamento na função social da propriedade, a qual acabaria por justificar uma verdadeira não aplicação dos mencionados dispositivos da Constituição. Do modo como posto, a pretensão foi acolhida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, muito mais fundada nas circundantes violações propaladas pelo Poder Público, como o próprio enriquecimento ilícito ao apropriar-se dos valores pagos pelo particular em troca do imóvel e não transferir a propriedade do mesmo, do que na questão da pretensa função social que deveria informar a leitura de regra constitucional, mais do que clara. Em meio a todo este confuso raciocínio jurídico, completamente utilitarista, o qual tenta resolver o problema da forma mais “eficiente” possível, a “cereja no bolo” é a afirmação de que o imóvel em questão já não mais seria público em razão da desafetação do mesmo. Curioso é que a decisão cita diversos expoentes da doutrina de Direito Administrativo, com posicionamentos contrários a possibilidade de usucapir-se 8

O que apenas, no caso em tela, enseja mudança na classificação do bem quanto a sua destinação, não resultando em alteração da titularidade de sua propriedade, que continua sendo estatal. Incidentalmente, importante observar o que fala BANDEIRA DE MELLO acerca da temática: Imprescritibilidade – quer-se com esta expressão significar que os bens são públicos – sejam de que categoria forem – não são suscetíveis de usucapião. É o que estabelecem os arts. 102 do Código Civil e 200 do Decreto-lei 9.760, de 5.9.46, que regula o domínio público federal. Antes dele, já a tradição normativa, desde o Brasil-Colônia, repelia a usucapião de terras públicas, embora alguns insistissem em questionar este tópico. A primeira lei de terras no Brasil independente, Lei 601, de 18.9.1850, e seu regulamento, n. 1.318, de 1854, impunham tal intelecção e os Decretos federais 19.924, de 27.4.31, 22.785, de 31.5.33, e 710, de 17.9.38, também espancavam qualquer dúvida sobre isto. Hoje, a matéria está plenamente pacificada (Súmula 340 do STF). Ademais, a Constituição vigente é expressa, em seus arts. 183, § 3º, e 191, parágrafo único, ao dispor que “os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”. Assim, as normas sobre usucapião pro labore, previstas no art. 191, caput, não podem ser invocadas em relação a bens públicos. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. p. 916-917. 9 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

bem

público,

exatamente

fundados

na

prescrição

constitucional

de

impossibilidade disso, e mesmo assim segue no sentido de autorizar, no caso, por meio da ponderação entre o (pretenso) Princípio da Legalidade e a Função Social da Propriedade, prevalecendo este último, a usucapião do bem público. Ora, simplesmente admite-se a total ausência de constrangimentos epistemológicos ocasionados pela doutrina, que acaba por não mais doutrinar, mas apenas servir de fundamento, quando interessante, aos caminhos que busca o Judiciário. Prova disso é o seguinte excerto da decisão de que se fala: “Doutrina recente, interpretando a Constituição de forma sistemática e teleológica, busca nos princípios a flexibilização de normas que, interpretadas literalmente, geram injustiças em determinadas circunstâncias. Nesse sentido, argumenta-se pela possibilidade de usucapião do bem público, com base na função social da propriedade.”

Em suma, o que se coloca como aporia a ser respondida aqui, é a possibilidade de se aplicar o instituto da usucapião sobre bem público, afetado ou desafetado, pois este continua sendo público, de modo a relativizar a incidência de norma constitucional originária que proíbe tal hipótese. Importante ainda lembrar que a falada decisão afronta não apenas aos mencionados dispositivos constitucionais, mas também aos artigos 98, 99, 100, 101 e 10210, além do que disposto na Súmula 340 do STF11. 10

Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem. Art. 99. São bens públicos: I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças; II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias; III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades. Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado. Art. 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar. Art. 101. Os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei. Art. 102. Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião. Art. 103. O uso comum dos bens públicos pode ser gratuito ou retribuído, conforme for estabelecido legalmente pela entidade a cuja administração pertencerem. 11 Súmula 340 STF – Desde a vigência do código civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião.

3. A noção hodierna de legalidade e a flexibilização empreendida pelas teorias da argumentação Não há melhor forma de definir a noção de legalidade, especificamente no que diz respeito ao presente caso, do que a seguinte: o “governo das leis e não dos homens”, foi concebido como meio de afastar o arbítrio e salvaguardar a liberdade ínsita na condição humana originária.12 Indubitável que esta definição possui fundamento jusnaturalista13, ainda tendo a lei, o direito positivo, como uma verdadeira materialização da prevalência da razão humana, ou seja, a ideia de que a lei não é voluntas, mas ratio, sendo diretamente ligada à noção de justiça.14 Em outras palavras, deve-se lembrar que estamos no paradigma do positivismo exegético, no qual a principal ideia era exatamente esta, a de afastar quaisquer fundamentos da normatividade que fugissem do “controle” da razão humana, de modo a afirmar esta em detrimento de quaisquer outros poderes que pudesse possuir o soberano. A batalha era contra o acien régime, representado pelos resquícios arbitrários do Estado Absoluto15, pelo que ainda não verificadas as “deficiências” deste chamado positivismo legalista, nem mesmo a diferença ontológica entre texto e norma. Dessa forma, no destacado momento, o que se buscava era a “despolitização” do Poder Judiciário, exatamente pela tradição, tendente a favorecer o decadente ou já falecido poder monárquico absolutista.16

12

CORREIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, Coimbra: Almedina, 2003. p. 24-25. 13 Este fundamento no Direito Natural merece destaque, uma vez que, no momento ora referido, este já havia passado pelo que Simone GOYARD-FABRE chama de “antropologização”, ou seja, uma “desnaturalização” do direito natural: “(...) o direito natural, que já não é reportado à natureza das coisas desejada por Deus, está fundamentalmente ligado à ideia que se tem da natureza humana. À desnaturalização do direito natural acompanha sua antropologização; já não se procura fundar o direito nem na ordem da Natureza, nem na potência sobrenatural do divino. Porque, num mundo em que o homem se instala com uma autoridade crescente, a ideia de um fim ontologicamente definido que indicaria um horizonte de valor já não está no centro da reflexão filosófica, parece que o direito dos homens, feito para os homens, só pode fundamentar-se no homem.” GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. 2. ed. Tradução por Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 42-43. 14 Id., 15 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso – Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 28. 16 ROCA, Rafael Díaz. Teoría General del Derecho. Madrid: Tecnos, 1997. p. 36.

Deve-se frisar que esta descrição serve, eminentemente para os ordenamentos fundados na matriz jurídica europeia-continental, como é o nosso caso, que teve a via revolucionária de passagem de um estado absoluto (em profunda crise econômica e de legitimidade) para o estado liberal, conforme Rafael Diaz ROCA17. Em suma, o Estado de Direito, fundado na legalidade, surge para condicionar a atividade do Estado, fazendo com o mesmo sirva aos cidadãos e não assujeite-os como fazia na fase absolutista: Como consecuencia de todo ello, la actividad del Estado está jurídicamente condicionada, lo que implica necesariamente que el Derecho nacido en última instancia de la voluntad de la Nación y expresado fundamentalmente en la Ley y la Constitución, nunca más el capricho de un autócrata, es el único medio de acción del Estado 18 con respecto a la propia comunidad.

Tendo em vista que o Estado apenas existe para que sirva aos cidadãos, deve-se lembrar que seus bens já não mais são tidos como propriedades da figura do soberano autocrata do regime absolutista, mas do povo, o novo soberano do Estado de Direito. Por mais que pareça basilar, este ponto é chave para a resolução do caso que se discute, pois tal noção parece ter sido esquecida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Em um segundo momento do positivismo, e, no caso, também da legalidade, surgem propostas de aperfeiçoamento do rigor lógico do trabalho já desenvolvido, dado o crescente problema da indeterminação do sentido do Direito.19 No positivismo exegético ou legalista, a principal característica era, especificamente no que diz respeito ao problema da interpretação do direito, proceder com uma análise sintática das prescrições normativas, buscando uma rigorosa determinação da conexão lógica dos signos que as compõem, pois acreditava-se que isso seria suficiente para resolver a questão. Daí surgiram

17

Ibid., p. 34-35. Ibid., p. 37. 19 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e (pós)positivismo: porque o ensino jurídico continua de(sin)formando os alunos? In: ______; BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis (Orgs.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, pp. 163-186. 18

conceitos como o de analogia e princípios gerais do direito, com o intuito de construir-se um quadro conceitual rigoroso com o intuito de representar as extremamente excepcionais hipóteses de inadequação dos casos às hipóteses legislativas.20 Diante da insuficiência da solução exegética, nas primeiras décadas do século XX, Hans Kelsen chega a uma constatação importantíssima: o problema da interpretação do direito é muito mais semântico do que sintático21. É em tal sentido que ele aponta suas baterias, buscando reforçar o rigor jurídico anteriormente propalado, em oposição ao espraiamento da Jurisprudência dos Interesses e da Escola do Direito Livre, as quais promoviam argumentos políticos, psicológicos e ideológicos, na busca da solução ao “problema” da interpretação do Direito.22 Neste momento surge o chamado positivismo normativista, em que Kelsen definitivamente reduz o direito a um sistema de normas, afastando-o definitivamente do direito natural e do universo dos valores sociais comuns, com o que a autonomia epistemológica da ciência do direito passa a depender da irredutibilidade de seu objeto aos fatos sociais que disciplina. PALOMBELLA resume a situação: A ciência só pode ser “pura” e pertinente ao fenômeno ideal e normativo que o direito é; a separação entre fatos e normas decorre de uma duplicação ontológica do mundo, ou seja, de pertencerem eles, respectivamente, ao mundo do ser (Sein) e ao mundo do deverser (Sollen). Tal duplicação da realidade decorre, por sua vez, da pressuposição de que os dois âmbitos são regidos por “princípios” diferentes, mais precisamente o princípio da causalidade e o princípio da imputação. 20

Id., Isso se verifica no momento em que KELSEN admite que a indeterminação não-intencional do ato de aplicação do Direito, acaba por ser em razão de tal dificuldade: “Simplesmente, a indeterminação do ato jurídico pode também ser a consequência não intencional da própria constituição da norma jurídica que deve ser aplicada pelo ato em questão. Aqui temos em primeira linha a pluralidade de significações de uma palavra ou de uma sequencia de palavras em que a norma se exprime: o sentido verbal da norma não é unívoco, o órgão que tem de aplicar a norma encontra-se perante várias significações possíveis. A mesma situação se apresenta quando o que executa a norma crê poder presumir que entre a expressão verbal da norma e a vontade da autoridade legisladora, que se há de exprimir através daquela expressão verbal, existe uma discrepância, podendo em tal caso deixar por completo de lado a resposta à questão de saber por que modos aquela vontade pode ser determinada.” KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 246. 22 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e (pós)positivismo: porque o ensino jurídico continua de(sin)formando os alunos? In: ______; BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis (Orgs.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, pp. 163-186. 21

(...) Desde que subsista um nexo de imputação é necessário um ato humano, sem o qual não pode haver a passagem da premissa à consequência (do ilícito à sanção), ao contrário do que ocorre entre eventos ligados causalmente (Se A – ilícito –,deve ser B – sanção). Portanto, só a intervenção humana, cominadora da sanção, realiza o 23 dever-ser próprio do nexo de imputação.

Em Kelsen, a moral é indiscutivelmente extirpada do direito, de modo que este pode passar a possuir qualquer conteúdo, pois consiste em mero procedimento, que parece não implicar em si nenhuma consequência em termos de justiça, diversamente do direito oitocentista, plasmado por pressupostos de valor e conteúdo que remontam as conquistas liberais, sendo indiscutivelmente dotado de fundamento externo à ciência jurídica.24 Inobstante todo este pretenso rigor científico, acaba-se por deixar espaço para a discricionariedade do intérprete, conforme se pode observar do capítulo VIII da Teoria Pura do Direito25. Isso ocorre em razão desconsiderar-se o indivíduo, privilegiando as instituições, ou seja, dando ênfase às pessoas jurídicas em detrimento das físicas26. Tendo em vista que estas últimas configuram-se como inescapáveis ficções criadas pelas primeiras, impossível que o sistema “feche” sem passar pelos indivíduos. No caso, exatamente por quem decide e necessariamente interpreta, em sua específica condição de indivíduo, pessoa física! Veja-se o que fala o próprio KELSEN: Esta determinação nunca é, porém, completa. A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer. Se o órgão A emite um comando para que o órgão B prenda o súdito C, o órgão B tem de decidir, segundo o seu próprio critério, quando, onde e como realizará a ordem de prisão, decisões essas que dependem de circunstâncias externas que o órgão emissor do comando não previu 27 e, em grande parte, nem sequer podia prever.

23

PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 161-162. Ibid., p. 165. 25 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. p. 245-252. 26 PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofia do direito. p. 167. 27 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. p. 246. 24

É neste ambiente que surge a ideia de que o direito é uma moldura dentro da qual há várias possibilidades de aplicação, por meio da qual admitese a discricionariedade do intérprete autêntico como inescapável: Se por “interpretação” se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que - na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar- têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito - no ato do tribunal, especialmente. Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei, não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa – não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que 28 podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral.

De forma resumida, ao se tentar superar o positivismo primitivo, o exegético, especificamente por meio do caminho normativista kelseniano, acabou-se por construir uma tese voluntária-axiologista, passando da “razão” para a “vontade”.29 Diante da possibilidade de que o direito fosse tratado de forma completamente apartada da moral e da inescapável discricionariedade decisória gerada pela Teoria Pura, as quais permitiram a ocorrência de uma das maiores barbáries da história da humanidade (o holocausto), em plena conformidade com o vigente direito, o modelo positivista normativista entrou em crise. Deste

modo,

após

a

segunda

guerra

mundial,

sobrevém

a

Jurisprudência dos Valores, que consiste em uma tentativa voluntarista no que tange a interpretação e aplicação do direito, da mesma forma que o positivismo normativista kelseniano de encontrar, descobrir, além do direito escrito, os pretensos valores da sociedade. A tese teve rendoso desenvolvimento no Tribunal Constitucional da Alemanha, especificamente nos anos do pós-guerra, dada a especial condição da outorgada Lei Fundamental (Grundgesetz), possuidora de severos ares de ilegitimidade, pois buscava os “valores” da 28

Ibid., p. 247. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 122.

29

sociedade alemã por detrás das palavras da constituição, promovendo identificação entre ambos.30 Tal proficuidade foi possível em razão de uma invenção de Philipe HECK: a “Abwägung” ou ponderação.31 Tal teoria serviu de instrumento com vistas a relativizar as prescrições normativas constantes da Lei Fundamental, de modo a promover sua identificação com os valores da sociedade, os quais ganharam certa normatividade, superando a separação entre direito e moral, posta por KELSEN. Da Jurisprudência dos Valores é que nasce a Teoria da Argumentação, de ALEXY32, que busca “racionalizá-la”, dando-lhe ares de cientificidade (como se isso fosse possível).33 Este ponto é chave para a compreensão do que se diz neste trabalho, pois é com base nesta ponderação “racional” que o equívoco de relativizar-se uma Constituição com indefectível legitimidade exsurge, ou seja, a aberração é levada a cabo em razão de indevido sincretismo34 e aplicação de teorias importadas sem qualquer adequação à realidade brasileira. Tudo realizado de maneira completamente voluntarista, ao arrepio do que prega a Constituição e o necessário Estado Democrático de Direito que ela suporta e que a suporta. Com base na Teoria da Argumentação é que aparece a concepção de que os princípios constitucionais são a consagração de valores éticos e morais que o desenvolvimento social legou, imprimiu, no Direito. Em face disso, o juiz não mais poderia ficar inerte e simplesmente reproduzir o discurso legislativo, devendo valorar as circunstâncias do caso para encontrar a “melhor solução” (aqui não se trata da ideia de one right answer de DWORKIN35, nem do Direito Fundamental à obtenção de respostas corretas de que fala STRECK36) após a ponderação dos princípios colidentes.

30

Ibid., p. 123. Id. 32 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução por Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008; ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. 2. ed. Tradução por Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2005. 33 Id. 34 Id. 35 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 36 STRECK, Lenio Luiz. A Constituição (ainda) dirigente e o direito fundamental à obtenção de respostas corretas. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, número do v. 1, n. 6, p. 273-311, 2008. 31

Deste

fértil

terreno,

nos

anos

90

do

século

XX,

surge

o

“neoconstitucionalismo”, que especificamente no caso brasileiro, permitiu o fenômeno do panprincipiologismo37. Destarte, passadas duas décadas da Constituição de 1988, e levando em conta as especificidades do direito brasileiro, é necessário reconhecer que as características desse “neoconstitucionalismo” acabaram por provocar condições patológicas que, em nosso contexto atual, acabam por contribuir para a corrupção do próprio texto da constituição. Ora, sob a bandeira “neoconstitucionalista” defende-se, ao mesmo tempo, um direito constitucional da efetividade; um direito assombrado pela ponderação de valores; uma concretização ad hoc da Constituição e uma pretensa constitucionalização do ordenamento a partir de jargões vazios de conteúdo e que reproduzem o prefixo neo em diversas ocasiões, tais quais: neoprocessualismo (sic) e neopositivismo (sic). Tudo por que, ao fim e ao cabo, acreditou-se ser a jurisdição responsável pela incorporação dos “verdadeiros valores” que definem o direito justo (vide, nesse sentido, as posturas decorrentes do instrumentalismo processual).38

Diante disso, evidente que o neoconstitucionalismo nada mais é do que uma mera superação do positivismo exegético, da mesma forma que o positivismo normativista kelseniano, com o diferencial de que este último admitia o voluntarismo, ao passo que a Teoria da Argumentação não o faz, deixando-se envolver em uma fumaça de cientificidade e exatidão, de modo a legitimar tecnicamente a decisão que mais aprouver ao intérprete “legítimo”, mesmo que em flagrante contrariedade ao direito posto39. No presente caso “aplica-se” a ponderação, diretamente derivada da Teoria da Argumentação, como forma de resolver o específico problema concreto que se apresenta, posto como se um caso difícil fosse. Com base nessa premissa, qual seja, aquela de que presente caso enquadrar-se-ia como “difícil” (hard case), parte-se para a utilização do princípio da função social da propriedade, utilizando-se dele como uma metaregra40, com função de abertura da interpretação, pois este é considerado em abstrato41, como uma norma que resolve a aporia fática quando as regras não 37

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 38 Ibid., p. 124. 39 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 6. ed., São Paulo: Malheiros, 2005. 40 Ibid., p. 226. 41 Fundada em uma inescapável cisão entre direito e fato.

são capazes de realizar a “simples” subsunção, inescusavelmente levando à discricionariedade do julgador. Com base neste dogma, verdadeiro axioma, desenvolve-se todo o raciocínio relativista que acaba por afastar prescrição normativa constitucional indefectivelmente “clara”, que proíbe a usucapião de bens públicos. O primeiro dos problemas deste, é que mesmo diante de seus próprios pressupostos, ou seja, em face da distinção entre casos fáceis e casos difíceis, estabelecida no interior da Teoria da Argumentação de ALEXY, o presente não se enquadra como difícil, afinal a própria Constituição impede de forma literal que se venha a usucapir bens públicos, por meio de uma regra, ou seja, não há o que ponderar. Se feita a “ponderação”, como se fez, qualquer resposta a que se chegue será necessariamente inconstitucional, como ocorrido no caso, onde se afastou a incidência da própria Constituição em face de princípio inserto em seu próprio texto. O que se faz é exatamente o que Otto BACHOF42 propôs ainda nos idos de 1951, em seu “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”(!), tendo como base uma verdadeira ideia de supralegalidade, claramente fundada na Jurisprudência dos Valores, o que já completamente superado nos dias atuais. Em suma, como se pode notar, mesmo que de forma muito incipiente, dada a limitada envergadura da presente abordagem, é que as Teorias da Argumentação, especialmente a de cariz alexyano, flexibilizam de forma bastante “perigosa” o conceito de legalidade e toda sua tradição de ser antidiscricionário e anti-solipsista, exatamente por meio de um método, primordialmente este fundado na discricionariedade. Diante de tudo isso, calha a interrogação realizada por LIMBERGER: “Diante desta realidade posta, volta-se a pergunta: qual a decisão adequada constitucionalmente?”.43

42

BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Trad. e nota prévia de José Manuel M. Cardoso da Costa. Coimbra: Almedina, 1994. 43 LIMBERGER, Têmis. Saneamento: remédio preventivo nas políticas públicas de saúde. In: CALLEGARI, André Luís; ______; ROCHA, Leonel Severo (Orgs.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, pp. 303-317.

4. De como a legalidade ainda deve ser entendida como fundamento do Estado Democrático de Direito Diante de tudo quanto acima posto, verifica-se que a tese da ponderação alexyana, face das Teorias da Argumentação, quase que acaba por sepultar o caráter antiarbitrário da ideia de legalidade. Tal possibilidade advém da crise dos paradigmas aristotélico‑tomista e da filosofia da consciência, o que demonstra ainda estarmos reféns do esquema sujeito‑objeto.44 Exatamente isso é o que demonstra STRECK: Explicando melhor: se, de um lado, parte considerável da doutrina e jurisprudência do direito ainda sustenta posturas objetivistas (em que a objetividade do texto sobrepõe‑se ao intérprete, ou seja, a lei “vale tudo”, espécie de consolidação do “paraíso dos conceitos do formalismo” de que falava Hart), de outro, há um conjunto de posições doutrinário‑jurisprudenciais assentadas no subjetivismo, segundo o qual o intérprete (sujeito) sobrepõe‑se ao texto, ou seja, sustenta‑se que “a lei é só a ponta do iceberg, isto é, que o que vale são os valores “escondidos’ debaixo do iceberg”, com o que a tarefa “crítico‑revolucionária” do intérprete seria a de “descobrir” esses valores “submersos”! O aspecto “crítico” que o jurista estaria manejando residiria no fato de que o barco do positivismo bateria 45 contra os “valores submersos”!

Exatamente por estes valores de que fala STRECK, estarem “submersos” e o juiz ser o intérprete autêntico que os descobrirá, é que as interpretações dos textos normativos acabam muitas vezes por consistir, como no presente caso, em verdadeira reescrita destes em função do “presente” do intérprete. Segundo as Teorias da Argumentação, o intérprete não encontra um direito dado, de modo a criá-lo (com relativa liberdade), enquadrando‑o na moldura dos textos que interpreta, a qual também é por ele gestada de forma discricionária.46 O caso que ora se apresente é extremo, pois o fundamento normativo de todo o restante do sistema é posto em cheque diretamente, ao se afastar a incidência de regra constitucional, que nada mais é do que materializadora de

44

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. p. 244. 45 Id. 46 Id.

todos os princípios insertos no próprio texto da Constituição. Como dizer que uma regra constitucional desrespeita um princípio constitucional, sem admitirse a possibilidade de contradições internas da própria Constituição? Por tudo isso, indubitável que há uma urgente necessidade de se romper com esta tradição inautêntica, diretamente ligada às Teorias da Argumentação e a possibilidade por estas provida, de que o intérprete aproprie-se dos textos (considerados como eventos, dada toda a tradição47 em restam envoltos), dando-lhes o sentido que bem entender, com o que acaba por poder a até mesmo afastar sua incidência. Para que se realize este rompimento, necessário compreender o sentido (autêntico e, portanto, fundado na tradição) da ideia de Constituição. Deve-se verdadeiramente compreender que a especificidade do campo jurídico implica em entendê-lo como mecanismo prático que provoca (e deve provocar) mudanças na realidade, exatamente pela legitimidade que detém.48 Sobre o ponto, mais uma vez se mostra pertinente a contribuição de STRECK: Daí a (enorme) dificuldade de ocorrer a “angústia do 49 estranhamento” com o novo, que é o texto constitucional que estabelece um novo modelo de Direito (e de sociedade). Como diz Gadamer, ter horizonte significa não estar limitado ao que está mais próximo de nós, mas, sim, poder ver além. À evidência, essa assertiva demanda uma (nova) pergunta: o jurista está vendo além? A resposta – que parece óbvia – está na própria constatação da crise do Direito e da inefetividade da Constituição. Entretanto, como se sabe, a crise só é crise quando se tem as condições de possibilidade de significá-la, enfim, de dizê-la/nomeá-la “como” crise. Afinal, e o socorro vem novamente de Gadamer, a descoberta de um pré-juízo não é possível enquanto ele permanecer (“como”). Por isto, a tarefa primordial da hermenêutica é provocar os pré-juízos.50

47

Importante não confundir a ideia de tradição (GADAMER) com quais valores, os quais referenciados pela Jurisprudência dos Interesses. São conceitos completamente distintos, especialmente pelo fato de que a tradição apresenta-se como completamente anti-relativista, ao passo que a determinação dos valores da sociedade, os quais devem ser descobertos pelo intérprete, é completamente subjetiva. Esta última é teoria exatamente forjada para ambientes de baixa legitimidade do ordenamento, o que certamente não é o que ocorre no Brasil hodierno. 48 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. p. 345. 49 Diretamente derivada do novo paradigma (de legitimidade) constitucional, que exige o respeito dos limites semânticos do texto. 50 Ibid., STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. p. 349.

Tudo isso, conforme já dito antes, mesmo que de forma singela, deriva da noção de legalidade e de controle dos poderes estatais, onde se inclui o Judiciário, por meio desta, exatamente para que o poder não seja exercido pelo indivíduo, de forma solipsista, buscando evitar que a coletividade seja subjugada às vontades de um mandatário dotado de poderes extraordinários e sem controle. Não há dúvidas que o cerne desta ideia, de legalidade e de Estado de Direito, foi gestada no âmbito do Estado Liberal51, da mesma forma que indubitável sua aplicabilidade ao momento contemporâneo, vez que não se abandonou a "luta" pelo afastamento do poder de um soberano, a "luta" para que um homem não seja mais assujeitado por outro homem. Afinal, conforme afirma GILISSEN, a lei (ainda) é a principal fonte do direito na contemporaneidade.52 Sobre a importância da legalidade e do Estado de Direito, no sentido acima posto, cumpre observar abaixo, dada a sintetização que realiza sobre o que acima posto: Como consecuencia de todo ello, la actividad del Estado está jurídicamente condicionada, lo que implica necesariamente que el derecho nacido en última instancia de la voluntad de la Nación y expresado fundamentalmente en la Ley y la Constitución, nunca más el capricho de un autócrata , es el único medio de acción del Estado con respecto a la propia comunidad. Aquél, pues, sólo puede operar respaldado por la norma jurídica. El Estado está facultado para exigir respecto al Derecho y sancionar por incumplimiento al ciudadano, en la medida que el propio Estado está sujeto a la norma. Esta norma jurídica, además, no es el mero ropaje formal de un mandato, como muchas veces había ocurrido en el absolutismo, sino que está substantivamente determinada en su contenido (KANT), en tanto en cuanto tiene como límite los derechos civiles y como fin su promoción y conservación.53

Descumprido o direito, subvertida a regra jurídica que prevê determinada hipótese normativa, pois inexistente qualquer constrangimento semântico e hermenêutico, cai-se em inescapável nominalismo54, onde não há certezas,

51

ROCA, Rafael Díaz. Teoría General del Derecho. p. 37-38. GILISSEN, John. Introdução História ao Direito. Tradução por António Manuel Hespanha e Manuel Luís Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. p. 417. 53 Id. 54 No melhor estilo de Guilherme de Ockham, onde acaba-se por negar o “todo” universal e defende-se a tese de que só existe o indivíduo. 52

onde impera a vontade de que possui maior poder, onde o homem volta a assenhorar-se do semelhante. 5. Balanço final: A guisa de conclusão, cumpre ressaltar que mesmo com uma Constituição repleta de Direitos Fundamentais, especialmente os de cunho social, os quais certamente privilegiam a coletividade em detrimento do indivíduo, os intérpretes prosseguem na busca de “desvelar” os valores “escondidos” no texto, e que tal protagonismo acaba por converter-se em um verdadeiro desrespeito ao que prenuncia a própria Constituição55, como ocorre no caso ora abordado, onde, de forma completamente absurda, admite-se a usucapião de bem público. Isso é o que ocorre quando, fazendo uso do panprincipiologismo, utilizase os princípios para a formulação de regras aplicáveis ao caso concreto, as quais em momento algum estiveram no ordenamento, sendo integralmente derivadas do exercício da atividade interpretativa. O problema é que tais regras acabam por afastar as regras efetivamente postas na própria Constituição.56 Em suma, afasta-se uma regra constitucional com base em uma regra advinda da imaginação do intérprete. Trata-se de um retrocesso cientificamente legitimado, uma volta da arbitrariedade, desta vez devidamente legitimada pela “razão”. A prova cabal de que a decisão utilizada como exemplo para o presente texto, é que a decisão, “principiológica” sob o ponto de vista da Teoria da Argumentação, acabou por pender para o lado do particular, com base em um princípio, o da função social da propriedade, do qual se extraiu uma regra: a de que os artigos 183, § 3º e 191, § único, da Constituição, deveriam ter sua aplicação afastada, circunstancialmente. Além destes, também se afasta a aplicação dos artigos 98, 99, 100, 101 e 102, além de ignorar-se o que disposto na Súmula 340 do STF, a qual deveria servir para dar coerência ao direito, aquela buscada por DWORKIN. 55

STRECK, Lenio Luiz. Crítica hermenêutica às recepções teóricas inadequadas feitas pelo constitucionalismo brasileiro pós-1988. In: CALLEGARI, André Luís; ______; ROCHA, Leonel Severo (Orgs.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do programa de PósGraduação em Direito da UNISINOS. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, pp. 153-181. 56 Id.

Em

verdade,

acabou-se

por

realizar

um

velado

controle

de

constitucionalidade difuso, da própria Constituição. Dá-se razão a BACHOF, mesmo que em completa contrariedade ao caráter anti-individualista da Constituição, donde acaba-se por criar não apenas regras, mas reescrever os valores, os princípios da Carta! Portanto, abraçar-se em discricionariedades, mesmo que justificadas de forma pretensamente “científica” é o mesmo que abandonar as garantias fundamentais em favor de uma volta ao domínio do homem sobre o homem. Para isso, basta desconsiderar a tradição e dizer que a negativa da aquisição de bens públicos por usucapião não deve ser interpretada “literalmente”. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução por Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. _____. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. 2. ed. Tradução por Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2005. BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Trad. e nota prévia de José Manuel M. Cardoso da Costa. Coimbra: Almedina, 1994. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. CORREIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, Coimbra: Almedina, 2003. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ______. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007. GILISSEN, John. Introdução História ao Direito. Tradução por António Manuel Hespanha e Manuel Luís Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 6. ed., São Paulo: Malheiros, 2005. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ROCA, Rafael Díaz. Teoría General del Derecho. Madrid: Tecnos, 1997. STRECK, Lenio Luiz. A Constituição (ainda) dirigente e o direito fundamental à obtenção de respostas corretas. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, número do v. 1, n. 6, p. 273-311, 2008. ______. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. ______. Hermenêutica e (pós)positivismo: porque o ensino jurídico continua de(sin)formando os alunos? In: ______; BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis (Orgs.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, pp. 163-186. ______. Crítica hermenêutica às recepções teóricas inadequadas feitas pelo constitucionalismo brasileiro pós-1988. In: CALLEGARI, André Luís; ______; ROCHA, Leonel Severo (Orgs.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, pp. 153-181. ______. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. ______. Verdade e consenso – Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. LIMBERGER, Têmis. Saneamento: remédio preventivo nas políticas públicas de saúde. In: CALLEGARI, André Luís; ______; ROCHA, Leonel Severo (Orgs.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, pp. 303-317.

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