V SENALIT FURG - Texto Completo - AQUI A HISTÓRIA ACABA E A LITERATURA PRINCIPIA: o escritor-personagem e os intertextos literários e históricos em O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago

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AQUI A HISTÓRIA ACABA E A LITERATURA PRINCIPIA: o escritor-personagem e os
intertextos literários e históricos em O Ano da Morte de Ricardo Reis, de
José Saramago

Iarima Nunes Redü – UFPel[1]



A presente pesquisa tem como objetivo geral analisar a articulação
entre intertextos literários e intertextos históricos mediante a presença
de escritor-personagem na construção do romance saramaguiano O Ano da Morte
de Ricardo Reis. Especificamente, tenciona-se determinar quais são e de que
maneira apresentam-se os intertextos literários e os intertextos históricos
e relacionar tais intertextos aos escritores-personagens presentes no
romance, Ricardo Reis e Fernando Pessoa.

Momentos decisivos da construção de Portugal como nação foram
recorrentes na produção romanesca de José Saramago, que os tratou de forma
crítica e questionou a possibilidade de visões diferentes acerca de tais
acontecimentos históricos – a produção ficcional de Saramago procura
recontar a história de Portugal (ABDALA JUNIOR, 2007, p.70). Além dos
grandes temas históricos, abundam nos romances de Saramago referências
intertextuais, especialmente a Fernando Pessoa, Luís de Camões e Eça de
Queirós.

Em O Ano da Morte de Ricardo Reis essas duas características da obra
de Saramago se inter-relacionam através da presença de escritores-
personagens situados em dado momento histórico, articulando literatura e
história ainda mais intimamente: recuperando-se como personagem um escritor
que, de fato, existiu, recuperam-se a literatura que produziu e o tempo
histórico em que transitou.

Assim, Saramago entrecruza o discurso histórico e o discurso
literário de maneira indissolúvel quando insere o heterônimo pessoano
marcado pela máxima "Sábio é aquele que se contenta com o espetáculo do
mundo" (PESSOA, 2007, p.259) na tumultuada realidade europeia imediatamente
anterior à Segunda Guerra Mundial, com o avanço dos regimes totalitários na
Itália e na Alemanha, o início da Guerra Civil Espanhola e a consolidação
salazarista em Portugal – conforme afirma Roani, "o universo ficcional do
romance promove o confronto da personagem Ricardo Reis e da sua prática
poética, a que se desinteressava (...) com um tempo e uma realidade
cultural que não tem nada a ver com ele" (ROANI, 2006, p.181-182).

A análise empreendida na pesquisa foi qualitativa e a metodologia
utilizada foi bibliográfica. A perspectiva teórica que enquadrou a análise
do romance foi fornecida por textos teóricos da área da crítica literária,
da crítica cultural e da teoria da historiografia.

O objetivo principal da pesquisa foi relacionar discurso literário e
discurso histórico, problematizados pela presença de escritores-personagens
na malha romanesca. Considerando a articulação entre literatura e história,
que tem sido debatida desde a Poética de Aristóteles, é evidente que grande
parte do aporte teórico utilizado para subsidiar a análise de O Ano da
Morte de Ricardo Reis relaciona-se justamente às fronteiras entre tais
discursos.

Retomando Aristóteles, para quem o historiador conta o que de fato
aconteceu, ao passo que o poeta narra o que poderia ter acontecido,
afirmando que, enquanto o texto do historiador seria regido pelas leis da
verdade, o texto do poeta responderia à verossimilhança (ARISTÓTELES, 1987,
p. 209), percebe-se uma clara cisão entre literatura e história – cisão que
se perpetuou até o século XX.

A divisão nítida entre literatura e história pregada por Aristóteles
manteve-se relativamente inalterada até o século XIX – período de
florescimento e consolidação tanto do romance, quanto da historiografia. O
romance se consolidou como gênero literário da burguesia em uma sociedade
marcada pela afirmação do capitalismo como o modo econômico dominante,
retratando a trajetória de heróis individuais, cujos destinos casuais
comovem os leitores. A historiografia se concretizou enquanto área do
conhecimento mediante a identificação com o positivismo e passou a se
ocupar dos grandes fatos políticos, que eram investigados com rigor
científico e escritos com a pretensão da absoluta objetividade e
neutralidade.

Nesse século, literatura e história passaram a dialogar de maneira
mais definida a partir do surgimento do romance histórico, gênero narrativo
visto por Esteves (2010, p. 30) como híbrido, nascido de um processo de
combinação entre história e ficção, em que a história é utilizada como tema
pela literatura. Esse gênero narrativo teve sua gênese no início do século
XIX, no Romantismo, mediante a obra do escritor britânico Walter Scott
(1771-1832), que estabeleceu um esquema para o romance histórico que se
tornou uma espécie de arquétipo para o gênero, e foi extensamente estudado
pelo teórico húngaro Gÿorgy Lukács (2011, p. 33-113) em O Romance
Histórico.

A ficcionalização da história feita por romancistas como Walter Scott
em certa medida coincide com a historiografia do início do século XIX.
Identificando-se com o positivismo, historiadores novecentistas como
Leopold Ranke identificavam o conceito de verdade absoluta com os grandes
fatos históricos por eles estudados. A história era vista como algo
intocável, uma relíquia perdida no tempo cujo resgate cabia ao historiador.
O historiador, por sua vez, era visto como um ser neutro, sem qualquer
influência ideológica, que trazia de volta o fato histórico, exatamente
como acontecera, através de uma narrativa inteiramente isenta.

A partir do início do século XX, no entanto, tanto os conceitos de
romance, quando os de historiografia passaram por modificações profundas.
Enquanto, a partir das Vanguardas Literárias do início do século, o romance
tornava-se progressivamente autorreflexivo, sem necessariamente preocupar-
se com as relações de referencialidade que o marcaram durante o romantismo
e o realismo-naturalismo, a historiografia se libertava do positivismo com
a Escola dos Annales, que exortava uma maior ligação entre a historiografia
e as demais áreas de conhecimento humano, especialmente as ciências humanas
e sociais e, mesmo, as artes. Com os Annales, a identificação unívoca entre
fatos históricos e verdade é enfraquecida.

Posteriormente às vanguardas modernas e ao estabelecimento dos
Annales, articulação entre literatura e história atingiu um nível sem
precedentes na cultura pós-moderna. Teóricos da cultura como Linda Hutcheon
e historiadores como Hayden White passam a rever o estatuto das duas áreas
e, ao invés de separá-las, enfatizam suas aproximações. O seguinte excerto
de Hutcheon traduz exatamente de que maneira esses dois discursos serão
analisados pela presente pesquisa:

O que a escrita pós-moderna da história e da literatura
nos ensinou é que a ficção e a história são discursos, que
ambas constituem sistemas de significação pelos quais
damos sentido ao passado ('aplicações da imaginação
modeladora e organizadora'). Em outras palavras, o sentido
e a forma não estão nos acontecimentos, mas nos sistemas
que transformam esses 'acontecimentos' passados em 'fatos'
históricos presentes. (HUTCHEON, 1991, p. 122)




O que interessa a esta pesquisa é a aproximação entre literatura e
história enquanto discursos que se interpenetram e condicionam. Ainda de
acordo com Hutcheon:

Considera-se que as duas [história e ficção] obtêm suas
forças a partir da verossimilhança, mais do que a partir
de qualquer verdade objetiva; as duas são identificadas
como construtos linguísticos, altamente convencionalizadas
em suas formas narrativas, e nada transparentes em termos
de linguagem ou de estrutura; e parecem ser igualmente
intertextuais, desenvolvendo os textos do passado com sua
própria textualidade complexa. (HUTCHEON, 1991, p. 141)

Do ponto de vista da historiografia, Hayden White enfatiza o status
eminentemente narrativo da escrita da história e, especialmente, o papel do
historiador nessa escrita. O principal conceito de White para esta pesquisa
é o de urdidura dos fatos históricos em um enredo que segue uma estrutura
prototípica. Para White, historiador escolhe como vai urdir os fatos para
que sejam compreendidos pelos leitores. A seguinte citação esclarece o que
foi anteriormente dito:

(...) nenhum conjunto dado de acontecimentos históricos
casualmente registrados pode por si constituir uma
estória; o máximo que pode oferecer ao historiador são os
elementos de estória. Os acontecimentos são convertidos em
estória pela supressão ou subordinação de alguns deles e
pelo realce de outros, por caracterização, repetição do
motivo, variação do tom e do ponto de vista, estratégias
descritivas alternativas e assim por diante - em suma, por
todas as técnicas que normalmente se espera encontrar na
urdidura do enredo de um romance ou de uma peça. (WHITE,
2001, p. 100)



Outro historiador que refletiu sobre o estatuto da escrita
historiográfica e de sua relação multívoca com o passado foi o britânico
Keith Jenkins. Jenkins discute, em A História Repensada, a teoria e a
prática dos historiadores, questionando algumas verdades universais da
historiografia e aproximando-a mais da arte do que da ciência. Jenkins
separa os conceitos de passado e de historiografia e afirma que aquele só é
passível de um resgate parcial através dos vestígios que deixou – vestígios
estes eminentemente textuais:

O passado já aconteceu. Ele já passou, e os historiadores
só conseguem trazê-lo de volta mediado por veículos muito
diferentes, de que são exemplo os livros, artigos,
documentários etc. (...) a história está, muito
literalmente, nas estantes das bibliotecas e de outros
lugares. (JENKINS, 2010, p. 25)




Evidentemente, o romance histórico, gênero literário híbrido de ficção
e história, passou por uma grande reformulação também. A partir da segunda
metade do século XX, as narrativas de extração histórica passaram a fazer
releituras críticas do passado, a problematizar os processos de escrita
tanto da literatura quando da história, a retratar as grandes figuras como
seres ex-cêntricos, a dar voz a personagens excluídos dos registros
históricos mais tradicionais. Esse novo tipo de romance histórico tem sido
chamado de metaficção historiográfica por teóricos como a canadense Linda
Hutcheon (1991) e utiliza-se da carnavalização e da paródia como formas de
apropriação e transmutação dos discursos históricos e literários.

A metaficção historiográfica é um gênero marcado pelo hibridismo e
pelas fronteiras esgarçadas entre o discurso literário e o histórico. Nela
coexistem a autorreferencialidade da narrativa romanesca moderna e as
preocupações com as lacunas da história. Romances que questionam os
processos de escrita da ficção e da história, bem como contemplam
criticamente a história oficial, podem ser enquadrados nesse gênero
híbrido.

Na metaficção historiográfica, a história é removida do estatuto de
pano de fundo temático que o romance histórico tradicional lhe reservava e
é alçada ao status de elemento estruturante do romance, tão importante
quanto a própria ficção. Essa relação íntima entre as duas áreas dá-se, nos
romances, através do uso da intertextualidade, que, nas metaficções
historiográficas, recupera tanto textos literários, quanto históricos. A
intertextualidade funciona como maneira de retomar textos literários e
históricos e, ao mesmo tempo em que enriquece o texto novo de novas
interpretações, modifica a maneira com que os textos antigos eram
compreendidos, questionando, assim, noções unitárias como a de "centro" e
de "verdade absoluta".

O termo intertextualidade foi oficialmente cunhado por Julia Kristeva
em dois artigos publicados primeiramente na revista "Tel Quel" em 1966 e
1967 e posteriormente reunidos em sua obra de 1969 Séméiotikè: Recherches
pour une sémanalyse: no artigo de 1966, o termo foi apresentado e, no de
1967, foi definido nos seguintes termos: "Cruzamento num texto de
enunciados tomados de outros textos." (KRISTEVA, 1969, apud SAMOYAULT,
2008, p. 15).

Sem desconsiderar essa noção, mas devido à necessidade de um conceito
mais restrito de intertextualidade, a pesquisa nortear-se-á pelos conceitos
de intertextualidade e hipertextualidade, apresentados por Gérard Genette
em Palimpsestes: La Litterature au Second Degré[2] e retomados por Tiphaine
Samoyault em A Intertextualidade.

Para Genette, a intertextualidade e a hipertextualidade são práticas
textuais que se inserem na mais ampla transtextualidade, que ele define
como "tudo que o coloca em relação, manifesta ou secreta, com outros
textos" (GENETTE, 2010, p. 11). O teórico francês determina, então, cinco
tipos de relações transtextuais, que não são absolutamente estanques e se
interpenetram (a intertextualidade, a paratextualidade, a metatextualidade,
a hipertextualidade e a arquitextualidade). Interessam à análise de O Ano
da Morte de Ricardo Reis a intertextualidade e a hipertextualidade, a
seguir detalhadas:

a) Intertextualidade: definida como uma relação de co-presença entre
dois ou mais textos; a presença efetiva de um texto dentro de outro
(GENETTE, 2010, p. 12). Constituem práticas intertextuais a citação
(marcada tipograficamente ou não), a alusão, a referência (a qual foi
apresentada como prática intertextual por Samoyault, mas não foi arrolada
no texto de Genette consultado) e o plágio;

b) Hipertextualidade: definida como toda relação que une um texto B
(chamado por Genette de hipertexto) a um texto anterior A (hipotexto, para
Genette) do qual ele "brota" de outra maneira que não a do comentário
(GENETTE, 2010, p. 16). O hipertexto transforma o hipotexto sem uma relação
de co-presença necessária. São práticas hipertextuais a paródia e o
pastiche.

Interessaram, como dito anteriormente, à pesquisa principalmente os
conceitos de intertextualidade e hipertextualidade, que serão aplicados na
análise do romance saramaguiano O Ano da Morte de Ricardo Reis. O uso de um
conceito restrito na análise das apropriações que Saramago fez de outros
textos permitirá uma maior compreensão dos movimentos de absorção,
ressignificação e questionamento dos discursos literário e histórico e sua
atuação no romance. Não se perderão de vista os conceitos mais abrangentes
de intertextualidade, como o de Julia Kristeva, ou o conceito de
interdiscursividade apresentado por Linda Hutcheon.

O uso da intertextualidade relaciona-se, também, com outro objetivo da
pesquisa: determinar de que maneira a articulação entre ficção e história
em "O Ano da Morte de Ricardo Reis" se relaciona com os escritores-
personagens do romance, Ricardo Reis (heterônimo) e Fernando Pessoa
(ortônimo).

A presença de escritores-personagens na malha ficcional tensiona
literatura e história uma vez que, quando o personagem é um escritor, ele
carrega para dentro da diegese todo o sistema literário em que estava
inserido e sua produção ficcional, bem como os dados de sua existência de
homem empírico, inserido em uma realidade histórica e socialmente
demarcada. O escritor-personagem é mais um traço híbrido dentro das
metaficções historiográficas, ainda mais quando se lembra o que afirmam os
historiadores pós-modernos em relação ao resgate do passado:

(...) o sujeito que fala no romance além de ser
essencialmente social, historicamente concreto e definido,
é também representante de um 'dialeto' individual: o
estilo artístico que inaugura. Este dado configura objeto
especial, na medida em que o personagem é, ao mesmo tempo,
sujeito empírico e eu-lírico/narrador, inscrito em
discurso social e literário particular, assumindo toda a
carga que isso representa. (SANTOS, 2009, p. 59)

Portanto, em relação à noção de escritor-personagem e à maneira como
ele articula, mais intimamente, sistema literário e existência empírica e
historicamente demarcada, foram utilizados aspectos trabalhados na tese de
Doutorado "A imagem, o rosto, a assinatura: escritores como personagens na
obra de Ana Miranda", de Cinthya Costa Santos, que versa sobre os
escritores-personagens na obra da escritora brasileira Ana Miranda.

Santos aponta uma deliberada confusão entre eu-lírico e eu-empírico
dos escritores-personagens de "Boca do Inferno", "Dias & Dias", "A Última
Quimera" e "Clarice", que instaura a indissolúvel ligação entre sistema
literário e momento histórico, entre real e discursivo, na diegese dos
citados romances:

O verniz referencial concorre, paradoxalmente, para a
relação assimétrica entre o real e o discurso ao se
observar que, em Boca do Inferno, recorre-se, para impor
lastro de legitimidade, à confusão entre eu-lírico e eu-
biográfico. O real não é 'restituído' a partir de dados
empíricos, mas de textos literários. A interpretação dada
à leitura do mundo e dos textos esconde-se nas brechas da
narrativa, fundando o estranhamento, a desfamiliarização
do real. (SANTOS, 2009, p. 43)

Essa confusão entre mundo empírico e universo literário corrobora as
imbricações entre discurso histórico e discurso literário, e o elemento da
narrativa que mais explicitamente liga esses dois mundos é o escritor-
personagem. Considerando que a literatura dialoga explicitamente consigo e
com sua memória através das práticas intertextuais e que a historiografia
só pode recorrer aos vestígios textuais do passado para "reconstruí-lo",
essa intertextualidade dupla marcada pela presença de ambíguos escritores-
personagens torna o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis um labirinto de
ecos do mundo literário e do mundo histórico.

A pesquisa demonstrou que, em termos de escritor-personagem, em "O Ano
da Morte de Ricardo Reis" ficção e história se condicionam mutuamente
através da presença de Ricardo Reis e de Fernando Pessoa, escritores que
são literária e historicamente marcados.

Considerando o exposto acerca da metaficção historiográfica de
Hutcheon, bem como dos conceitos relativos à urdidura de enredo propostos
por White, é possível dizer que o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis
encaixa-se nessas duas categorias teóricas citadas. O romance saramaguiano
relaciona-se com o passado luso-europeu do ano de 1936 não de maneira
destrutiva, mas irônica – em conformidade, portanto, com o que afirma
Umberto Eco em Pós-Escrito a O Nome da Rosa "A resposta pós-moderna ao
moderno consiste em reconhecer o passado, já que não pode ser destruído
porque sua destruição leva ao silêncio, deve ser revisitado: com ironia, de
maneira não inocente." (ECO, 1985, p. 56-57).

O romance O Ano da Morte de Ricardo Reis pode ser enquadrado como uma
metaficção historiográfica uma vez que tal termo, que se refere aos dois
aspectos mais salientes da produção ficcional do pós-modernismo – ao
caráter autorreferencial e à reflexividade na abordagem da temática
histórica –, pode ser aplicado ao que acontece na diegese do romance
analisado: que, como outros romances de Saramago, problematiza o
conhecimento que se tem da historiografia oficial, justapondo a essa
problematização a reflexão acerca do processo de escrita da literatura.
Como afirma Helena Kaufman em "A metaficção historiográfica de José
Saramago":

O jogo entre o fictício e o real (histórico), juntamente
com a exploração da intertextualidade e da multiplicidade
de discursos que compõem tanto a História como a Ficção,
intensificam-se em O Ano da Morte de Ricardo Reis, que
ainda menos se deixa caracterizar como romance histórico.
(KAUFMAN, 1991, p. 125).

Em relação à urdidura do enredo, Saramago procede, no romance
analisado, como os historiadores: escolhendo 1936 como o ano do
desenvolvimento da diegese, trazendo para o romance justamente Ricardo Reis
– o heterônimo pessoano mais a-histórico –, e questionando a veracidade e a
liberdade, através da instância narrativa, das notas jornalísticas
apresentadas ao longo do texto, Saramago escolhe um lado da história e
narra esse lado através das escolhas que fez.

Considerando, também, o fundamental uso da intertextualidade tanto
pela metaficção historiográfica, quanto pela escrita da história, pode-se
afirmar que a presença da intertextualidade e da hipertextualidade é
abundante em diversos níveis, sendo:

Intertextuais

o Citação direta – que acontece quando o texto original
apresenta-se tipograficamente marcado (SAMOYAULT, 2008, p.
49): as três epígrafes do romance são exemplos de citação
direta:



Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo.

Ricardo Reis

Escolher modos de não agir foi sempre a attenção e o
escrupulo da minha vida.

Bernardo Soares

Se me disserem que é absurdo fallar assim de quem nunca
existiu, respondo que também não tenho provas de que
Lisboa tenha alguma vez existido, ou eu que escrevo, ou
qualquer cousa onde quer que seja.

Fernando Pessoa



o Referência – que não expõe o texto citado, mas remete a ele
por um título, nome de autor, de personagem ou de alguma
situação específica (SAMOYAULT, 2008, p. 50): Ao longo do
romance são citados muitos escritores – excetuando-se os
personagens Ricardo Reis e Fernando Pessoa. Os mais
referidos, entretanto, são Luís de Camões e Eça de Queirós.
Citar-se-ão trechos em que há referências, sem, no entanto,
a pretensão de trazer para o presente relatório todos os
trechos do romance em que há a prática intertextual da
referência:

Ricardo Reis pára diante da estátua de Eça de
Queirós, ou Queiroz, por cabal respeito da ortografia que
o dono do nome usou, ai como podem ser diferentes as
maneiras de escrever, e o nome ainda é o menos, assombroso
é falarem estes a mesma língua e serem, um Reis, o outro,
Eça, provavelmente a língua é que vai escolhendo os
escritores de que precisa, serve-se deles para que
exprimam uma parte pequena do que é, quando a língua tiver
dito tudo, e calado, sempre quero ver como iremos nós
viver. (grifos meus) (SARAMAGO, 2010, p. 58)

Ricardo Reis saiu, eram três menos um quarto, tempo
de ir andando, atravessou a praça onde puseram o poeta,
todos os caminhos portugueses vão dar a Camões, de cada
vez mudado consoante os olhos que o vêem, em vida sua
braço às armas feito e mente às musas dada, agora de
espada na bainha, cerrado o livro, os olhos cegos, ambos,
tanto lhos picam os pombos como os olhares indiferentes de
quem passa. (SARAMAGO, 2010, p. 179)

É como todas as coisas, as más e as boas, sempre
precisam de gente que as faça, olhe o caso dos Lusíadas,
já pensou que não teríamos Lusíadas se não tivéssemos tido
Camões, é capaz de imaginar que Portugal seria o nosso sem
Camões e sem Lusíadas (...) (SARAMAGO, 2010, p. 182)

Fernando Pessoa levantou-se, entreabriu as portadas
da janela, olhou para fora, Imperdoável esquecimento,
disse, não ter posto o Adamastor na Mensagem, um gigante
tão fácil, de tão clara lição simbólica, Vê-o daí, Vejo,
pobre criatura, serviu-se o Camões dele para queixumes de
amor que provavelmente lhe estavam na alma, e para
profecias menos do que óbvias, anunciar naufrágios a quem
anda no mar, para isso não são precisos dons divinatórios
particulares, Profetizar desgraças sempre foi sinal de
solidão, tivesse correspondido Tétis ao amor do gigante e
outro teria sido o discurso dele. (SARAMAGO, 2010, p. 228-
9)



o Alusão – que não marca tão fortemente o texto original,
podendo ser exclusivamente semântica ou remeter antes a uma
constelação de textos do que a um texto preciso. O
desvendar ou não da alusão não interfere tão profundamente
na interpretação do texto derivado (SAMOYAULT, 2008, p. 50-
51): Saramago faz uso de alusões ao longo do romance. Serão
citados dois exemplos, um relativo a um personagem e livro
referidos no conto "Exame da obra de Herbert Quain",
presente no livro "Ficções" de Jorge Luis Borges, e outro
relativo à figura do monstro Adamastor, mítico gigante
baseado na mitologia greco-romana, tendo sido referido por
Luís de Camões em "Os Lusíadas", por Bocage no soneto
"Adamastor cruel!... de teus furores", por Fernando Pessoa
no poema "O Monstrengo", entre outros autores portugueses e
estrangeiros:

Pôs o livro na mesa-de-cabeceira para um destes dias
o acabar de ler, apetecendo, é seu título The god of the
labyrinth, seu autor Herbert Quain, irlandês também (...)
(SARAMAGO, 2010, p. 19)

Se a manhã está agradável sai de casa, um pouco
soturna apesar dos cuidados e desvelos de Lídia, para ler
os jornais à luz clara do dia, sentado ao sol, sob o vulto
protector de Adamastor, já se viu que Luís de Camões
exagerou muito, este rosto carregado, a barba esquálida,
os olhos encovados, a postura nem medida nem má, é puro
sofrimento amoroso o que atormenta o estupendo gigante,
quer ele lá saber se passam ou não passam o cabo as
portuguesas naus. (SARAMAGO, 2010, p. 266)



Hipertextuais

o Paródia – que transforma uma obra precedente, seja para
caricaturá-la, seja para reutilizá-la, transpondo-a e
sempre exibindo, independente de sua transformação ou
deformação, um liame direto com a literatura anterior
(SAMOYAULT, 2008, p. 53): Há inúmeros exemplos de paródia
em "O Ano da Morte de Ricardo Reis", especialmente no que
diz respeito aos versos de Fernando Pessoa (ortônimo e
heterônimos) que são integrados, absorvidos e
ressignificados na malha textual e a versos de outros
poetas, eminentemente Luís de Camões:

Aqui o mar acaba e a terra principia . Chove sobre a
cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há
cheia nas lezírias. (SARAMAGO, 2010, p.7)

O trecho acima grifado, que abre o romance, é uma paródia do verso
"Onde a terra se acaba e o mar começa" (CAMÕES, 2010, p.103), presente na
vigésima estrofe do terceiro canto de "Os Lusíadas".

Se somente isto sou, pensa Ricardo Reis depois de
ler, quem estará pensando agora o que eu penso, ou penso
que estou pensando no lugar que sou de pensar, quem estará
sentindo o que sinto, ou sinto que estou sentindo no lugar
que sou de sentir, quem se serve de mim para sentir e
pensar, e, de quantos inúmeros que em mim vivem, eu sou
qual, quem , Quain, que pensamentos e sensações serão o
que não partilho por só me pertencerem, quem sou eu que
outros não sejam ou tenham sido ou venham a ser.
(SARAMAGO, 2010, p. 20)

O trecho grifado da citação anterior é uma paródia da seguinte estrofe
da ode de Ricardo Reis datada de 13/11/1935:

Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa (PESSOA, 2007, p. 291).



o Pastiche – que deforma o hipotexto imitando sua forma,
remetendo ao estilo marcante de determinado autor ou gênero
(SAMOYAULT, 2008, p. 55): Os pastiches em O Ano da Morte de
Ricardo Reis foram observados nos momentos em que o
protagonista Ricardo Reis lê os jornais lisboetas a fim de
se informar acerca do país ao qual acabara de retornar
depois de um exílio voluntário de 26 anos:

Causou dolorosa impressão nos círculos intelectuais a
morte inesperada de Fernando Pessoa, o poeta do Orfeu,
espírito admirável que cultivava não só a poesia em moldes
originais mas também a crítica inteligente, morreu
anteontem em silêncio, como sempre viveu, mas como as
letras em Portugal não sustentam ninguém, Fernando Pessoa
empregou-se num escritório comercial, e, linhas adiante,
junto do jazigo deixaram os seus amigos flores de saudade.
Não diz mais este jornal, outro diz doutra maneira o
mesmo, Fernando Pessoa, o poeta extraordinário da
Mensagem, poema de exaltação nacionalista, dos mais belos
que se têm escrito, foi ontem a enterrar, surpreendeu-o a
morte num leito cristão do Hospital de S. Luís, no sábado
à noite, na poesia não era só ele, Fernando Pessoa, ele
era também Álvaro de Campos, e Alberto Caeiro, e Ricardo
Reis , pronto, já cá faltava o erro, a desatenção, o
escrever por ouvir dizer, quando muito bem sabemos, nós,
que Ricardo Reis é sim este homem que está lendo o jornal
com os seus próprios olhos abertos e vivos, médico, de
quarenta e oito anos de idade, mais um que a idade de
Fernando Pessoa quando lhe fecharam os olhos, esses sim,
mortos, não deviam ser necessárias outras provas ou
certificados de que não se trata da mesma pessoa(...)
(SARAMAGO, 2010, p. 31-2)



Conclui-se que a presença de relações intertextuais e hipertextuais
na construção do romance "O Ano da Morte de Ricardo Reis" é marcante não só
em um nível puramente literário (através da retomada da obra pessoana e das
alusões a outros canônicos escritores lusitanos), mas também em um nível
histórico (através das notícias de jornais da época, abundantes no
romance).

As relações intertextuais (citação direta, referência e alusão),
conforme se tem observado, relacionam-se diretamente com o universo
literário canônico, especialmente de literaturas em português e em espanhol
– citações de Pessoa ortônimo, Reis heterônimo e Soares semi-heterônimo;
diversas referências a Eça de Queirós e a Luís de Camões; alusão ao
universo ficcional do escritor argentino Jorge Luis Borge mediante o livro
lido por Reis através de todo o romance e também ao monstro Adamastor.

Já as relações hipertextuais ligam-se tanto ao universo literário –
paródia de versos imbricados na malha textual –, quanto ao histórico –
pastiche com notícias de jornal da época, especialmente dos jornais "O
Século" e "Diário de Notícias", publicadas entre 1935 e 1936. É, cabe
ressaltar, através das notícias de jornal que as informações históricas
apresentam-se de maneira mais evidente no romance, constituindo os
intertextos históricos buscados pela pesquisa.



Referências Bibliográficas



ABDALA JUNIOR, Benjamim. Literatura, história e política: literaturas de
língua portuguesa no século XX. Cotia, SP: Ateliê Editoria, 2007.

ARISTÓTELES, Poética. (trad. Eudoro de Souza) São Paulo: Nova Cultural,
1987.

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ECO, Umberto. Pós-escrito a "O nome da rosa". Rio de Janeiro: Nova
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[1] Esta pesquisa, vinculada ao grupo "Testemunho, violência, trauma,
catástrofe e guerra nas literaturas de língua portuguesa", é orientada pelo
prof. Dr. Aulus Mandagará Martins (UFPel). É preciso mencionar o nome do
orientador desta pesquisa, devido ao seu trabalho inestimável ao longo de
todo o processo nela percorrido. A ele, meus sinceros agradecimentos.

[2] O livro, cujo título foi citado em francês, foi utilizado na pesquisa
através da tradução de excertos feita por alunas da pós-graduação em Letras
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A referência do livro, bem
como o nome das tradutoras, encontra-se na seção de Referências
Bibliográficas do artigo.
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