Velhos ofícios e/ou novas profissões? Um olhar sobre a prostituição.

June 4, 2017 | Autor: A. Faria Silvestre | Categoria: Sociedade do Espetaculo
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Table Of Contents A Revista ............................................................ 3 Um estudo sobre sexualidade: história, contribuições freudianas e plasticidade do objeto das pulsões sexuais ......................................................... 4 O profissional psicanalista e a contribuição social obrigatória ....................... 13 Uma breve história da consciência: aspectos neurocientíficos e filosóficos ............... 20 O 'BEM-ESTAR' NA CIBERCIVILIZAÇÃO .................................. 25 A crise econômica mundial e os dilemas da modernidade agonizante .................. 29 O Céu de Marie ....................................................... 34 Em terapia sempre? Talvez... .............................................. 38 Pelo menos um dia ..................................................... 41 Pulsão, culpa, afeto e silêncio em "O Leitor" ................................... 42 Velhos ofícios e/ou novas profissões? Um olhar sobre a prostituição. .................. 50 AFINAL, GOSTO SE DISCUTE? .......................................... 53 Apocalypse Now, Please ................................................. 56 Psicólogo ou artista: um convite à reflexão sobre os desafios de criar a identidade profissional .. 58 O problema do "Eu" em David Hume ....................................... 66 A Tatuagem como Inscrição e Elaboração de um Luto ............................ 78

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A Revista sexta-feira, fevereiro 04, 2011 http://nucleotavola.com.br/revista/sobre/ Revista Tavola Online (ISSN 2179-5061) é uma publicação semestral, de divulgação em humanidades, ciências do cérebro e mente e cultura, dirigida à um público formado por estudantes e profissionais das áreas psicológicas, médicas e humanas. Temos a missão de oferecer profundidade e pluralidade de análise em temas relevantes e atuais em humanidades, ciência e cultura, prezando qualidade das informações, estética da forma e clareza de pensamento; incentivando o exercício de dispersão do conhecimento gerado no ambiente acadêmico.

Coordenação Geral: Luis Henrique M. Novaes Corpo editorial Editor Chefe: Luis Fernando S. Souza-Pinto ([email protected]) Humanidades: Luis Fernando S. de Souza Pinto (editor geral), Caio M. Moreira (editor associado), Caio Garrido (editor associado); Carolina Tomasi (editora associada), Taylisi de Souza C. Leite (editora associada) Ciências do cérebro e mente: Rafael N. Ruggiero (editor geral), Lézio Bueno Jr (editor associado), Cleiton L. Aguiar (editor associado), Sérgio Arthuro Mota Rolim (editor associado) Cultura: Milton V. de Ávila (editor geral), Ana Carolina Roselino (editora associada). Direção de arte: Grupo Verde ________________________________________________

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Um estudo sobre sexualidade: história, contribuições freudianas e plasticidade do objeto das pulsões sexuais terça-feira, julho 31, 2012 http://nucleotavola.com.br/revista/um-estudo-sobre-sexualidade-historia-contribuicoes-freudianas-e-plasti cidade-do-objeto-das-pulsoes-sexuais/ por Eliana Aparecida Gazola* & Flávia Calil Machado** Em razão de sexualidade ser um tema bastante amplo, optamos por apresentar um texto embasado nas obras de Kupstas [1], Foucault [2], César Nunes [3], Master’s e Johnson's [5], alusivas às definições e influências históricas referentes à sexualidade até o século XIX, e em Mezan [4], no que se diz respeito à pulsão. Abordaremos também as contribuições freudianas relacionadas à sexualidade infantil, à escolha do objeto sexual, à homossexualidade, ao fetichismo, ao sadismo, ao masoquismo, presentes em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905) [6], abordando a plasticidade do objeto sexual. Definição e explanação histórica da sexualidade até o século XIX Foucault afirma que a sexualidade é uma invenção social, pois o termo surgiu com base em uma discussão sobre o sexo, e, nesses discursos, havia a intenção de se normatizarem as regras que, a partir daquele momento histórico, serviriam ao sexo. O termo sexualidade surgiu no século XIX, marcando algo diferente do que apenas um remanejamento de vocabulário. O uso dessa palavra é estabelecido em relação a outros fenômenos, como o desenvolvimento de campos de conhecimento diversos; a instauração de um conjunto de regras e de normas apoiadas em instituições religiosas, judiciais, pedagógicas e médicas. Mudanças do modo pelo qual indivíduos são levados a dar sentido e valor a sua conduta, desejos, prazeres, sentimentos, sensações e sonhos. (Foucault, 1998, p.9) [2] Sexualidade está intimamente ligada à cultura, à educação, à personalidade e às circunstâncias emocionais do indivíduo; não envolvendo somente os órgãos genitais, mas também as zonas erógenas do corpo, os impulsos, desejos e fantasias; dessa forma, não abrange somente o ato sexual, que pode ser visto como um meio de reprodução e também como meio de comunicação, utilizado pelo impulso primitivo da reprodução e do prazer. Todo ser humano experimenta a sexualidade, e o sexo não se faz presente em toda manifestação da sexualidade, visto que esta não visa única e exclusivamente aos deleites provenientes do sexo. Segundo Telarolli: É impossível falar em sexualidade sem se lembrar da herança cultural que recebemos dos antepassados, incluindo os aspectos morais que determinaram em cada época quais os padrões de sexualidade considerados normais. (Telarolli, apud. Kupstas, 2000, p. 22) [1] Neste sentido, para compreender a sexualidade, é necessário um olhar multidimensional sobre o ser

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humano, visto que cada indivíduo possui interesses próprios, sentimentos e atitudes que são influenciados pelas percepções particulares ou coletivas do período vivido. No decorrer da história humana, a sexualidade ficou a cargo do Estado, da Igreja e das famílias. (Master’s e Johnsons’s, 1979.)[5] Na Grécia Antiga, o homem já tinha sua esposa, suas amantes e um jovem que o acompanhava nas guerras. A mulher era um bem de valor sexual e reprodutivo. A sexualidade estava voltada ao grande homem que era merecedor de um jovem companheiro, essa relação era marcada pela amizade, gratidão, lealdade e fidelidade. Com os romanos, houve uma transculturação dos gregos, foram feitas adaptações das leis gregas para unificar o povo conquistado. A orgia fazia parte desse cotidiano, não existiam regras nem limites ao prazer corpóreo. (Nunes, 1987.) [3] O cristianismo surge, trazendo a castidade como símbolo máximo, aparece para apagar da história o liberalismo sexual romano. José é casto, Maria é virgem e Jesus é o homem livre dos pecados humanos. Na era medieval, o corpo é o pecado. A sexualidade tinha de ser contida e controlada. No final do século VII, tudo sobre sexo é proibido. Sexo é o próprio demônio e deveria ser punido. Todos aqueles que geravam tentação deveriam ser queimados. Essa tortura partiu da Igreja, pois o Estado era subjugado às crenças religiosas. (Foucault, 1984.) [2] A formalização do casamento surgiu na era vitoriana, para quem tinha terras. Os pais casavam seus filhos com o objetivo de unir terras e aumentar o patrimônio. A partir desse momento histórico, os valores da burguesia foram emergindo, demonstrando, assim, que a grandeza da sociedade estava marcada pela produção e pelo trabalho. Devido a isso, a Igreja começa a estimular o sexo para procriação, pois o capitalismo necessitava de filhos. (Foucault, 1984.) [2] Desse momento, surge o amor cortês, no século XIX, em que o homem, pela primeira vez na história, respeita a mulher, sendo esta a inspiração para o amor. Há uma sublimação ao sexo pelo respeito e amor. (Foucault, 1984.) [2] Algumas contribuições de Sigmund Freud para a sexualidade Às luzes do século XX, a sexualidade passou a ser investigada com mais objetivo. Muitos cientistas levantaram hipóteses sobre o assunto, o que culminou nas teorias de Sigmund Freud (1856-1939), mudando o rumo da história e dando início a uma das grandes descobertas do século. Freud, um médico nascido em Freiberg, demonstrou a importância da sexualidade da vida humana. Embora suas teses não tenham sido aceitas de imediato, a capacidade de Freud em organizar ideias, numa síntese teórica e persuasiva, causou impacto no mundo. Juntamente com essas ideias, ele elaborou uma teoria sobre o sujeito e um método clínico, com o nome de Psicanálise, cujo método de trabalho, realizado, por meio da técnica de associação livre, é a interpretação das significações inconscientes de vocábulos, atos e criações imaginárias de uma pessoa. Para tratarmos sobre as contribuições freudianas para a sexualidade, comecemos abordando a diferença entre instinto e pulsão. Segundo Mezan: [...] Freud utiliza a palavra instinkt (instinto) apenas três ou quatro vezes em toda a sua obra; e para ele, o

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vocábulo denota um comportamento animal fixado hereditariamente e manifestado de maneira relativamente invariável em todos os indivíduos da espécie em questão. Contudo, a primeira edição dos “Três ensaios” estabelece conclusivamente que a sexualidade não pode ser concebida nestes moldes[...] (Mezan, 2006, p. 155.)[4] Em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), Sigmund Freud mostra que a sexualidade não pode ser compreendida no modelo de instinto, já que este é tido como uma conduta animal fixada de modo hereditário, apresentando-se relativamente da mesma maneira em todos os que compõem tal espécie animal; nesse sentido, a distinção entre o homem e os outros animais reside na imprevisibilidade do objeto e na flexibilidade dos modos de realização. “Três ensaios” introduzem o termo pulsão (Trieb), processo dinâmico, que é “o representante psíquico de uma fonte endossomática de estimulação que flui continuamente, para diferenciá-la do “estímulo”, que é produzido por excitações isoladas vindas de fora.” (Freud, 1905, p. 86.) [6]. No que tange ao objeto da pulsão, é explicitado que este é variável e que, por meio dele, acontece o descarregamento do acúmulo de tensão, o qual é a finalidade da pulsão. A respeito da pulsão sexual, são mostradas as pulsões parciais, sendo a maioria delas vinculada a uma zona erógena (órgão no qual, havendo excitação, a este é conferido um caráter sexual) determinada e outras podem ser definidas pela sua meta. Para que possamos verificar a plasticidade que é conferida ao objeto das pulsões sexuais, partamos, a seguir, para o que Freud escreveu, em “Os três ensaios”, sobre sexualidade infantil, escolha do objeto sexual, homossexualidade, fetichismo, sadismo e masoquismo. A sexualidade infantil As afirmações que Freud fez sobre a sexualidade infantil repercutiram profundamente nas concepções da sociedade da época, que via a criança como um ser dotado de “inocências”. Contrariando as ideias de que sexo estava somente ligado à reprodução, Freud afirma que, desde o início da vida, há uma função sexual, tendo a sexualidade papel importante desde o nascimento e que a libido é a energia das pulsões sexuais. Há erotização do corpo desde o princípio da vida deste; existindo, dessa maneira, um desenvolvimento gradual no progresso referente às formas de bonificação e de relação com determinado objeto. Vejamos as definições das fases sexuais: Fase oral (0 a 2 anos): A ação de ingestão do alimento e a excitação da mucosa dos lábios e da cavidade bucal proporcionam o prazer nessa fase, fazendo com que o alvo sexual[c] esteja na incorporação do objeto. (Freud, 1905, p. 101.) [6] Fase anal (entre 2 a 4 anos aproximadamente): O prazer está ligado ao controle das esfincteres (anal e uretral); assim a zona erógena é o ânus e o modo de relação do objeto é de "ativo" e "passivo".(Freud, 1905, p. 102.) [6] Fase fálica (de 3 a 6 anos): A erotização está no órgão sexual. A distinção que marca a oposição fálico-castrado, substituta do par atividade-passividade, é o interesse que o menino possui pelo próprio

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pênis em confronto à descoberta da ausência deste órgão na menina, para a qual tal verificação motiva o aparecimento da "inveja do pênis" e o consequente ressentimento em relação à mãe por esta não lhe ter dado esse órgão.(Freud, 1905, p. 100.)[6] Logo após, é caracterizado o período de latência, que se estende até a puberdade e, nesse tempo, há sublimação total ou parcial das atividades das pulsões sexuais. (Freud, 1905, p. 102.) [6] Fase Genital – A última fase atinge-se na adolescência, em razão de o objeto desejado estar no outro e não mais no próprio corpo; existindo uma busca de satisfação erótica e interpessoal. (Freud, 1905, p. 103.) [6] A escolha do objeto sexual Sobre a escolha do objeto sexual[d], Freud mostra, mesmo que não seja o único sinal retomado na puberdade, a afabilidade da criança pelos pais como o fator mais importante na direção da escolha do objeto sexual, visto que resquícios de tal relacionamento serão retomados na puberdade, apontando para a seleção do objeto. O primeiro momento da escolha do objeto sexual é enfatizado por alvos sexuais de caráter infantil, acontecendo por volta dos 2 a 5 anos de idade. Com a puberdade (segundo momento), as pulsões parciais são organizadas, fazendo com que as zonas erógenas se submetam à prioridade genital, dessa forma, a libido, que era, principalmente, autoerótica, procura o objeto sexual em função da libido do objeto. Essas mudanças ocorrem junto às alterações físicas da puberdade e todas as transformações ocorridas nesse período se direcionam a uma distinção sexual cada vez maior, visto que os dois sexos terão papéis diferentes. Em razão de um questionamento da dificuldade da distinção entre masculino e feminino, Freud define um e outro, como passividade (feminino) e atividade (masculino), havendo, portanto, a afirmação de que a libido é masculina, visto que a pulsão é sempre ativa. Mesmo diante de tal dificuldade de diferenciação, é-nos mostrado que a puberdade do menino e a da menina são diferentes, sendo a sexualidade desta mais afetada pelo recalcamento (desvio das pulsões sexuais para outras finalidades), ocorrendo, assim, a transferência da excitabilidade clitoriana para a vagina, enquanto a zona de excitação do homem (glande) continua sendo a da infância. Outra mudança importante ocorrida com a puberdade é a desatadura da autoridade dos pais, pois o incesto é proibido, fazendo com que o jovem não busque em seus parentes os objetos sexuais, os quais, inicialmente, são fantasiosos, como a fantasia da sedução, romance familiar etc. Freud diz: Sem dúvida, o caminho mais curto para o filho seria escolher como objetos sexuais as mesmas pessoas a quem ama, desde a infância, com uma libido, digamos, amortecida. Com o adiamento da maturação sexual, entretanto, ganhou-se tempo para erigir, junto a outros entraves à sexualidade, a barreira do incesto, para que assim se integrem os preceitos morais que excluem expressamente da escolha objetal, na qualidade de parentes consanguíneos, as pessoas amadas na infância. O respeito a essa barreira é, acima de tudo, uma exigência cultural da sociedade, esta tem de se defender da devastação, pela família, dos interesses que lhe são necessários para o estabelecimento de unidades sociais superiores, e por isso, em todos os indivíduos, mas em especial nos adolescentes, lança mão de todos os recursos para afrouxar-lhes os laços com a família, os únicos que eram decisivos na infância. (Freud, 1905, p. 116.) [6] Exposto o que Freud caracterizou como escolha do objeto sexual, sigamos para o que foi dito a respeito de

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homossexualidade. A homossexualidade Partindo dos desvios do objeto e do alvo sexuais, Freud relata que a crença na união entre o homem e a mulher é fruto da teoria popular sobre a pulsão sexual; teoria esta que se assemelha a uma fábula poética (divisão de duas metades, as quais serão unidas pelo amor). Portanto, homens e mulheres que não tenham, como objeto sexual, o sexo oposto causam estranhamento e surpresa na sociedade; assim, é iniciado um trabalho sobre a homossexualidade (denominada inversão sexual), a qual é classificada em: Invertidos absolutos: o objeto sexual é somente do mesmo sexo, não havendo pelo sexo oposto vontade sexual; este os deixa frios, ou até mesmo gera-lhes repugnância sexual. Os invertidos absolutos, com o sexo oposto, ficam incapacitados de praticar o ato sexual ou o praticam sem ter nenhum gozo. (Freud, 1905, p. 70.) [6] Invertidos anfígenos (indiferentes): o objeto sexual pertence a ambos os sexos; sendo assim, falta a exclusividade. (Freud, 1905, p. 70.) [6] Invertidos ocasionais: o objeto sexual é escolhido em razão da falta de acesso do objeto normal [e] e também em virtude da imitação; portanto, toma-se como objeto sexual uma pessoa do mesmo sexo, satisfazendo-se com esta no ato sexual. (Freud, 1905, p. 71.) [6] Quanto ao alvo sexual dos invertidos, não se tem uma uniformidade, configurando-se da seguinte maneira: a meta sexual do homem pode ser o sexo anal tanto quanto a masturbação, e na mulher, embora esta pareça privilegiar a relação com a boca, existe uma multiplicidade no que se diz respeito ao alvo sexual. A percepção da inversão pode ocorrer somente depois de determinado tempo, mesmo esta existindo de longa data; tal notabilidade sucede ou antecede a puberdade. A condição de invertido pode prevalecer por toda vida, ou acontecer uma cessação temporária, ou, ainda, pode-se ter constituído um episódio para o desenvolvimento normal e a inversão pode, até mesmo, externar-se pela primeira vez posteriormente a extenso período de atividade heterossexual. Existem casos em que advém uma alteração da libido no sentido da inversão depois de a pessoa passar por uma dolorosa experiência com o objeto sexual do sexo oposto. (Freud, 1905, p. 71.) [6] Em relação ao juízo que os invertidos mostram perante a particularidade de sua pulsão sexual, existe uma variação, visto que alguns veem a inversão como algo natural, em consonância à aceitação dos normais referente à orientação de sua libido; diante disso, os invertidos defendem de forma enérgica sua igualdade de direito com os não invertidos. Entretanto, outros se revoltam contra o fato de sua inversão e a sentem como patológica. Explanada a homossexualidade e a relação dos invertidos com seus objetos, partamos para o fetichismo. O fetichismo Segundo Freud, o fetichismo é estabelecido “quando o objeto sexual normal é substituído por outro que guarda certa relação com ele, mas que é totalmente impróprio para servir ao alvo sexual normal” (p. 79)

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[6], sendo esses substitutos, na maioria das vezes, por uma parte do corpo ou, ainda, um objeto que lembre o indivíduo substituído. Se o alvo sexual for substituído pelo fetiche e este se tornar o objeto sexual, considerar-se-á um caso patológico. Quando, ao objeto sexual, se é dado somente um condicionamento fetichista, Freud diz estar em concordância com Binet [1888] em relação à seleção do fetiche, a qual é manifestada na primeira infância, em razão do recebimento de uma impressão sexual; compara-se esta escolha à persistência do primeiro amor. Depreende-se, provavelmente, também da infância, a substituição que se caracteriza como uma ligação de símbolos, muitas vezes, imperceptível pela consciência da pessoa. Freud cita o pé como um antigo símbolo sexual. Dando sequência ao que nos propusemos relatar neste texto, vejamos, a seguir, as considerações freudianas a respeito de sadismo e masoquismo. O sadismo e o masoquismo Sadismo O sadismo e suas raízes são facilmente apontados nas pessoas consideradas normais, visto que a sexualidade de muitos homens possui a necessidade de transpor a resistência do objeto sexual sem usar como artifício o ato de tratar delicadamente; assim, o domínio é mostrado em uma mistura entre a agressão e a inclinação de submeter pela força. Portanto, uma atitude com caráter ativo ou violento em relação ao objeto sexual é conceituada, na linguagem usual, como sadismo, porém este é considerado uma perversão[f] apenas quando a sujeição do objeto sexual e maus-tratos referentes a ele são exclusivamente estabelecidos como formas de satisfação do indivíduo ativo. Masoquismo A satisfação com o sofrimento físico e psicológico, oriundos do objeto sexual, e as atitudes passivas diante da vida sexual e do objeto sexual caracterizam o masoquismo. Em similaridade com o sadismo, o masoquismo é considerado perversão quando o indivíduo é satisfeito exclusivamente através do seu próprio sofrimento. Na obra em questão, Sigmund Freud diz que o masoquismo pode ser visto, com frequência, como uma alteração do sadismo, na medida em que o sádico se põe no lugar do objeto sexual, em razão de o sadismo ter se voltado contra si; assim, é relatado não haver certeza se o masoquismo advém como acontecimento primário ou se ele surge alguma vez, por meio de uma transformação do sadismo. Freud afirma que o sadismo e o masoquismo, em virtude da oposição entre atividade e passividade (características universais da vida sexual), possuem lugar peculiar nas perversões, podendo ser encontrados em uma mesma pessoa, visto que, “Quem sente prazer em provocar dor no outro na relação sexual é também capaz de gozar, como prazer, de qualquer dor que possa extrair das relações sexuais.” (p.82.) [6]

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Considerações finais Sexualidade é um termo que foi criado no século XIX e não se reduz ao ato sexual. Logo, faze-se necessária uma visão histórico-cultural para compreendê-la, visto que as normas que colocam determinada manifestação da sexualidade como aceitável, ou não, estão atreladas a cada período e a cada cultura, como nos é possível observar na primeira parte deste texto, que, com uma abordagem histórica, mostra a trajetória da sexualidade até o século XIX, passando pela Grécia Antiga, Roma, pelas influências do cristianismo, da família e do Estado. No que se refere às contribuições freudianas para a sexualidade e à plasticidade do objeto, assinalamos que, ao escrever “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Sigmund Freud teoriza a pulsão, caracterizando o ser humano como um sujeito desnaturalizado e desejante, que busca objetos para a obtenção da descarga da pulsão; acentuando-se, também, a relação que o sujeito possui com o objeto. Reforçando, por conseguinte, que a sexualidade não compreende apenas a reprodução e as atividades e prazeres relacionados à genitália. Freud mostra-nos, ainda, que o objeto sexual possui uma variabilidade, sendo buscado de maneira diferente em cada indivíduo. Assim, pudemos verificar que, na criança, a escolha do objeto sexual é assinalada pelos alvos sexuais; inicia-se entre os dois e os cinco anos de idade e regride ou, por meio do período de latência, é sublimada. Na puberdade, a escolha objetal se submete à libido do objeto, renunciando aos objetos infantis; assim, consequentemente, muitas vezes, não há a ligação de todos os desejos em somente um objeto. Observando o que concerne ao objeto sexual nas perversões[g], vê-se o seguinte: Na homossexualidade, o objeto varia, sendo: exclusivamente do mesmo sexo (invertidos absolutos), sem exclusividade (invertidos anfígenos) ou eleito por imitação ou por ser inacessível o objeto sexual normal (invertidos ocasionais). No fetichismo, há substituição do objeto sexual normal por algo que lhe é relacionado, porém não apropriado como alvo sexual que, em muitas pessoas, é substituído pelo fetiche e este tido como objeto sexual. Somente nos casos de substituição do alvo pela parte do corpo ou objeto inanimado, o fetichismo é caracterizado patológico. No sadismo, há agressões físicas e psicológicas direcionadas a ele; entretanto, somente é caracterizado como perversão se a satisfação do indivíduo for unicamente alcançada em razão dos maus-tratos executados. Analogamente ao sadismo, o masoquismo é tido como prática perversa se o prazer for, exclusivamente, em receber do objeto sexual as agressões. Freud ressalta, ainda, que o masoquismo pode ser uma variação do sadismo, quando este se volta contra o sádico. Diante do exposto, conclui-se que comportamentos sexuais tidos como perversão também podem fazer parte da vida sexual considerada comum. Assim, o que se considera normal reside num fino limite, que todo ser humano, em determinados momentos, pode atravessar, em virtude da plasticidade que se confere ao objeto da pulsão.

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Referências bibliográficas [1]KUPSTAS, Márcia (org.). Comportamento sexual em debate. São Paulo: Moderna, 2000. [2]FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Rio de Janeiro: Graal, 1984. v.1. [3]NUNES, César. Desvendando a sexualidade. Campinas: Papirus,

1987.

[3]____________. Da filosofia do amor ao amor à filosofia: um estudo pedagógico de ética sexual. Campinas:Letras Livres, 2011. [4]MEZAN, Renato. “A dualidade das pulsões”. In: Freud: a trama dos conceitos. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. [5]MASTER'S, Willian. e JOHNSON'S, Virginia. A conduta sexual humana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. [6]FREUD, S. (1905).” Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. In: Estudos sobre a histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos. v. 7. Rio de Janeiro: Imago, 1977. [a] Michel Foucault.

[b] S. Freud.

[c] Ação para a qual a pulsão impele.( Freud, 1905, p. 70)[6]

[d]A pessoa de quem provém a atração sexual. ( Freud, 1905, p. 70)[6]

[e] Referente à norma, considerado aceitável e comum.

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[f] Ato de efetuar alteração em algo.

[g] Perversão: Ato de efetuar alteração em algo. *Eliana Aparecida Gazola é revisora gramatical, professora de Língua Portuguesa e aluna do curso de Formação em Psicanálise do Núcleo Távola. [email protected] **Flávia Calil Machado é pedagoga, filósofa e psicanalista em formação no Núcleo Távola. Trabalhou 30 anos como professora e coordenadora na Educação Infantil e Ensino Fundamental. Atualmente se dedica a escrever artigos para revistas e jornais, tratando basicamente de temas sobre Filosofia e Psicanálise. Escreve um livro de Filosofia para crianças e adolescentes. [email protected]

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O profissional psicanalista e a contribuição social obrigatória terça-feira, julho 31, 2012 http://nucleotavola.com.br/revista/o-profissional-psicanalista-e-a-contribuicao-social-obrigatoria/

por Márcio Bulgarelli Guedes* RESUMO. Adotando o método de pesquisa de gabinete, o presente trabalho é elaborado a partir de questões fornecidas por um respeitável grupo de psicanalistas a se inteirarem a respeito da Previdência Social e tem como objetivo trazer-lhes breves comentários sobre a base jurídica que sustenta o Regime Geral da Previdência Social – desde a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no ápice, até as leis infraconstitucionais, na base da pirâmide –, e explicar como o profissional psicanalista que trabalha em seu consultório particular deve contribuir a filiar-se à seguradora mais antiga e maior distribuidora de renda em nosso País. Palavras-chave: Previdência social, contribuição obrigatória e benefícios Summary. Adopting the method of desk research, this work is drawn from the questions provided by a reputable group of psychoanalysts about Social Security and aims to bring you brief comments on the legal basis supporting the Legal Framework Social Security - from the Constitution of the Federative Republic of Brazil in 1988, at the apex, until the laws under the Constitution, at the base of the pyramid and as the professional psychoanalyst who works in private practice should contribute socially to join the largest insurer and oldest distributor of income in our country

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Keywords: Social security, compulsory contributions and benefits SUMÁRIO. 1 Introdução; 2 Da finalidade e dos princípios básicos da previdência social; 3 Contribuinte individual, direitos e obrigações; 4 Dos riscos e contingências sociais: aposentadorias; 5 O que é ISS e o que é INSS? 6 Conclusão; 7 Bibliografia; 1 Introdução Dia desses, a sorte permitiu que algumas questões sobre os profissionais psicanalistas viessem à luz a mostrar que não há nada mais gostoso do que o entusiasmo pelo que é novo. Partindo da ideia de que uma boa parte dos profissionais psicanalistas trabalha em consultório particular e certo de que um grupo deles se mostra interessado em entender o que é e como funciona a Previdência Social, tenta-se trazer alguns breves esclarecimentos a respeito. As questões base são: O que é Previdência Social? O profissional psicanalista pode se inscrever na Previdência Social? Ele é considerado autônomo, contribuinte individual ou profissional liberal? Quais as obrigações e quais os direitos do segurado? A inscrição é obrigatória? Qual o tempo mínimo para a aposentadoria? Como contribuir? O que é ISS e o que é INSS? Sob lentes bidimensionais, ao mesmo tempo em que se tenta responder as questões à regularidade formal da prestação de serviços do grupo e do profissional em si (direitos coletivos e individuais homogêneos), tem-se a surpresa, recheada de curiosidade, de constatar que os psicanalistas estão distribuídos em diversas áreas de atuação além da saúde (como, p.ex., Direito, Pedagogia, Sociologia etc.), com reflexos no direito difuso da sociedade. A Portaria n. 397, do Ministério do Trabalho e Emprego, de 9-10-2002, que aprovou a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) traz a figura do “Psicanalista, Analista (psicanálise)” sob o Código n. 2515-50, alterando a Portaria n. 1.334, de 21-12-1994. De todo modo, cabe destacar que tal classificação adequada à OIT (Organização Internacional do Trabalho) não tem outra finalidade senão unificar a ocupação, e não se pode conceber a criação de uma profissão ou, ainda, de se limitar o uso dela a um âmbito profissional privilegiado. A base teórica da psicanálise é ampla e a leitura consiste na conjugação de várias formas de organização (tanto sociais quanto psíquicas). Diferentes profissões usam-na como instrumento de tratamento de várias patologias de outras áreas. Não é lícito atribuir a esta ou àquela área competência exclusiva. A ética, neste caso, aplica-se conforme o objeto que lhe é próprio. E os cursos, pelo que se pôde compreender, e espero que esteja correto pelo menos à maioria, são de Teoria da Psicanálise, embora não haja garantia acadêmica à formação da análise pessoal.

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2 Da finalidade e dos princípios básicos da previdência social Desde os primórdios da humanidade, o homem se preocupa com o dia de amanhã. Muito antes da previdência e da seguridade social, há registros de existência de associações mutualistas, no sentido de proteger os membros e de manter um regime de ajuda recíproca. No Brasil, a primeira regra positivada, a Constituição de 1824, já trazia a informação de que “garante os socorros públicos” (art. 179, XXXI). Depois, com a Constituição da República de 1891, houve maior aproximação à ideia de previdência, mas restrita aos funcionários públicos. De lá para cá, diversos diplomas foram criados. Atualmente, a Constituição de 1988 inovou no campo dos direitos sociais ao disciplinar no art. 194: “A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. A expressão “seguridade social” é o termo utilizado para descrever o sistema de proteção que abrange três programas sociais: a previdência, a saúde e a assistência social. Assim, a seguridade social é um instrumento a viabilizar os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil disciplinados no artigo 3º, como: construir sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades e promover o bem de todos. No que diz respeito à previdência social, ela funciona como um verdadeiro seguro social compulsório, de caráter contributivo, basicamente sustentado por recursos dos trabalhadores e de toda a sociedade, almejando disponibilizar renda indispensável à subsistência dos segurados e de sua família em certas contingências sociais (quando não conseguem ou não é desejável que sejam auferidos através do trabalho, por causa da invalidez, velhice, maternidade, morte etc.). No Brasil, a previdência social se dá através do Regime Geral de Previdência Social e dos regimes próprios de previdência dos servidores públicos e dos militares. Estes não serão objeto de análise, pelo menos por enquanto. Já aquele é regulado por texto infraconstitucional (Lei n. 8.213/1991) e o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS – é o responsável pela sua concretização, autarquia federal vinculada ao Ministério da Previdência Social. 3 Do contribuinte individual, direitos e obrigações Antes, os segurados eram chamados de “trabalhador autônomo”, “equiparado a trabalhador autônomo” e “empresário”, mas, a partir da Lei n. 9.876/1999, passaram a “contribuinte individual”. O contribuinte individual é aquele sujeito que exerce atividade remunerada, que presta serviço de natureza urbana ou rural, em caráter eventual, a uma ou mais pessoas, sem vínculo de emprego. Se houver remuneração, é considerado segurado obrigatório perante o Regime. O psicanalista que trabalha em consultório particular, com autonomia, sem subordinação e assumindo os riscos inerentes ao negócio, é considerado um profissional liberal, devendo se inscrever no Regime Geral da Previdência Social, na qualidade de contribuinte individual.

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O contribuinte pode se inscrever nas agências da Previdência Social, pela central de atendimento (telefone 135) ou efetuando o primeiro recolhimento em GPS, com o número do PIS/PASEP, para assegurar salários família e maternidade, aposentadorias (por idade, invalidez, tempo de contribuição e especial), auxílios doença e reclusão e pensão por morte (art. 201, da CRFB/1988). O Instituto Nacional de Seguro Social – INSS ainda dispõe de tecnologia na internet[2] a facilitar o autoatendimento dos que não tem tempo para ir até uma das agências. Basta ao contribuinte fornecer alguns dados (nome completo, sexo, data de nascimento, nome da mãe completo, grau de instrução, carteira de identidade, título de eleitor, certidão de nascimento, nacionalidade, naturalidade, CTPS, CPF, registro civil, tipo de contribuinte, código de ocupação, endereço completo, telefone e caixa postal eletrônica) para obter o número de inscrição. Alguns benefícios exigem carência, ou seja, é o período correspondente a um número mínimo de contribuições mensais para que o segurado tenha direito aos benefícios, como, por exemplo, aposentadoria por idade (180 contribuições), aposentadoria por tempo de serviço (180 contribuições), aposentadoria especial (180 contribuições) salário maternidade à contribuinte individual (10 contribuições), auxílio-doença (12 contribuições), aposentadoria por invalidez (12 contribuições), com exceção, nestes dois últimos casos, se a incapacidade for decorrente de acidente, doença do trabalho ou constante em lista especial, quando não há carência. O Instituto Nacional de Seguro Social – INSS – não exige tempo de carência – ou número de contribuições mínimas – para a concessão de: pensão por morte, auxílio-reclusão, salário-família, auxílio-acidente, salário-maternidade (doméstica, avulsa e registrada), auxílio-doença e aposentadoria por invalidez, quando decorrente de acidente, doença profissional ou especial. O segurado não perde a qualidade assim que deixa de contribuir ou quando cessa o benefício, tendo período de 12 meses a 24 meses dependendo do tempo de contribuição ininterrupta. Note-se que não há limite de prazo durante o gozo do benefício da Previdência Social. De igual sorte, aquele que deixa de exercer atividade remunerada pode se inscrever como desempregado no Ministério do Trabalho e Emprego, estendendo a cobertura por mais 12 meses. Em caso de perda da qualidade de segurado, não terá mais direito aos benefícios. Lembre-se: há necessidade de pedido de baixa em agência do Instituto Nacional de Seguro Social – INSS, podendo se inscrever como desempregado à falta de qualquer remuneração, com a conservação de todos os direitos desta condição durante o período de prorrogação. Todavia se enquanto era segurado cumpriu todos os requisitos necessários à aposentadoria, conforme lei vigente à época, tem direito adquirido ao benefício (art. 5º, XXXVI, da CRFB/1988). 4 Dos riscos e contingências sociais: aposentadorias A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 relaciona os riscos sociais a serem cobertos pelos planos de previdência em seu artigo 201, amparando o segurado e a família. Todavia, limitando-se aos parâmetros em problematização, destaque à aposentadoria por invalidez, à aposentadoria por idade, à aposentadoria por tempo de contribuição e à aposentadoria especial, disciplinadas na Seção V – Dos Benefícios, da Lei n. 8213/1991.

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Têm direito à aposentadoria por idade os trabalhadores urbanos do sexo masculino a partir dos 65 anos e do sexo feminino, 60 anos. Se trabalhadores rurais, reduz-se cinco anos (60 e 55, respectivamente). No entanto, é preciso comprovar as 180 contribuições mensais. Trata-se de benefício irreversível e irrenunciável, não podendo desistir depois de recebido. Mas o trabalhador não precisa sair do emprego para requerer (art. 48 e ss., da Lei n. 8213/1991). A aposentadoria também pode ser por tempo de serviço, integral ou proporcional. Para ter direito à aposentadoria integral, o trabalhador homem deve ter 35 anos de contribuição e a mulher, 30 anos. Já à aposentadoria proporcional, o trabalhador tem que combinar dois requisitos: tempo de contribuição (30 anos ao homem e 25 anos à mulher) e idade mínima (de 53 anos de idade ao homem e de 48 anos de idade à mulher), ressalvado o período de carência de 180 contribuições mensais aos inscritos a partir de 25 de julho de 1991 (art. 52 e ss., Lei n. 8213/1991). A aposentadoria por invalidez é concedida aos trabalhadores que, por doença ou acidente, forem considerados pela perícia médica do INSS incapacitados ao exercício do trabalho (habitual ou não). Não tem direito quem, ao se inscrever na Previdência Social, já tiver doença ou lesão, salvo se a incapacidade resultar do agravamento da enfermidade. A aposentadoria deixa de ser paga quando o segurado recupera a capacidade e volta ao trabalho. Para ter direito ao benefício, o trabalhador tem que contribuir por no mínimo 12 meses, salvo se tratar de doença profissional ou constante em lista especial de doenças (art. 42 e ss., da Lei n. 8213/1991). Além de todas as aposentadorias anteriores, tem-se a especial. É benefício concedido aquele que trabalhou em condições prejudiciais à saúde ou à integridade física. Neste caso, o trabalhador deve comprovar, além do tempo de trabalho mínimo correspondente as 180 contribuições mensais, a efetiva exposição aos agentes nocivos químicos, físicos, biológicos ou associação de agentes prejudiciais para a concessão do benefício (15, 20 ou 25 anos). A exposição aos agentes nocivos deve ser habitual e permanente, não ocasional nem intermitente, tudo através de formulário denominado Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP), preenchido com base em Laudo Técnico de Condições Ambientais de Trabalho (LTCAT) expedido por médico do trabalho ou engenheiro de segurança do trabalho (art. 57 e ss., Lei n 8213/1991). Com efeito, todos os benefícios previdenciários, e não só os relacionados aqui, visam amparar o trabalhador e seus dependentes em determinadas contingências sociais e podem ser solicitados pelos interessados por meio de agendamento prévio pelo portal da Previdência Social na internet, pelo telefone 135 ou nas agências da autarquia federal do INSS, mediante o cumprimento das exigências procedimentais e legais. Uma vez atendidos os requisitos ali expostos de forma clara e objetiva a todos os trabalhadores, o deferimento se impõe. Às vezes, contudo, em caso de recusa administrativa, é preciso recorrer ao Poder Judiciário à salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais e do Estado Democrático de Direito (art. 5º, XXXV, da CRFB/1988). 5 O que é ISS e o que é o INSS? O INSS - Instituto Nacional de Seguro Social – é autarquia federal vinculada ao Ministério da Previdência Social, e não se confunde com ISS. O ISS é a abreviação de Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, tributo de competência dos

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Municípios e do Distrito Federal, cujo fato gerador é a prestação de serviços (lista anexa à Lei Complementar 116/2003). O serviço considera-se prestado e o imposto devido no local onde se desenvolve a atividade econômica ou profissional, temporária ou permanente, sendo irrelevantes as denominações de sede, filial, agência, sucursal, posto de atendimento, escritório de representação etc. O contribuinte é o prestador de serviços. É ele quem deve recolher o imposto sobre serviços quando executar atividade remunerada em determinada localidade, sem vínculo empregatício. Para se inscrever como trabalhador autônomo, basta se dirigir ao Departamento de Tributos Mobiliário do município. A nota fiscal garante a tributação sobre a circulação de mercadorias e serviços, preservando os cofres públicos. Para emiti-la, é necessário ter CNPJ e se inscrever no Cadastro de Contribuintes Mobiliários da Prefeitura. Todavia, as pessoas físicas prestadoras de serviços não estão obrigados (como, p.ex., advogado, economista, engenheiro, contador, médico, psicanalista etc.). Ainda assim, quando não houver emissão de nota fiscal, o consumidor pode exigir recibo de pagamento a autônomo (RPA) ou Recibo de Prestação de Serviços (RPS), e, não havendo comprovação da inscrição municipal, o correto é que haja a retenção do ISS à alíquota de 5%, devendo constar no documento nome, endereço, dados do RG e do CPF e inscrição no INSS. Neste sentido, não se quer aqui senão esclarecer que INSS e ISS são siglas cujos significados são distintos. Aquela é uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Previdência Social ao gerenciamento do Regime Geral da Previdência Social. Este é um tributo de competência municipal e do distrito federal que tem como fato gerador a prestação de serviços profissionais ou econômicos, portanto remunerados. E por falar em renda, não se esqueça do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF), cujos dados estão disponíveis no sítio www.fazenda.receita.gov.br. 6 Conclusão Em linhas finais, aos profissionais psicanalistas que prestam serviços em consultórios particulares de forma remunerada, diga-se que devem contribuir ao Regime Geral da Previdência Social como contribuinte individual a se tornarem segurados perante o maior distribuidor de renda do País em casos de ocorrência de determinados riscos e certas contingências sociais tão relevantes a ponto de o Poder Constituinte inserir no corpo da Constituição de 1988 em artigo 201 os direitos sociais de 2ª geração à saúde, à previdência e à assistência social, a viabilizar em plano maior os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º), devidamente regulamentados por texto infraconstitucional Lei n. 8.213-1991. Mas, além da contribuição social, o trabalhador que aufere renda deve atentar ainda aos tributos, como o Imposto Sobre Serviços (ISS) e o Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) à regularidade fiscal. 7 Bibliografia - www.mps.gov.br - www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8213cons.htm

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- www.receita.fazenda.gov.br - AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro, 5ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2000. - BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 8ª edição. São Paulo: Malheiros, 1999. - MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da seguridade Social, 2ª edição, São Paulo: Atlas, 1993. - PINTO, Antônio Luiz de Toleto. WINDT, Márcia Cristina Vaz dos Santos. E CÉSPEDES, Lívia. Constituição da República Federativa do Brasil, 29ª edição, atualizada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2002. - ROCHA, Daniel Machado da. BALTAZAR JR., Jõao Paulo Júnior. “Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social: Lei n 8.213, de 24 de julho de 1991, 2ª Edição, Revista e Atualizada. Porto Alegre: Livraria do Advogado: Esmafe, 2002. [2]www.mps.gov.br

**Marcio Burgarelli Guedes é Mestrando em Direitos Coletivos e Cidadania pela UNAERP Universidade de Ribeirão Preto, advogado. Endereço profissional: R. Expedicionário Lellis, n. 1387 – sala 13 – Centro – Sertãozinho-SP – CEP 14750-000 Telefone: (16) 3947-8095 – (16) 911-0955 e-mail: [email protected]

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Uma breve história da consciência: aspectos neurocientíficos e filosóficos terça-feira, julho 31, 2012 http://nucleotavola.com.br/revista/uma-breve-historia-da-consciencia-aspectos-neurocientificos-e-filosofi cos/

por Zé Henrique Targino** & Sérgio Arthuro Mota Rolim* *Instituto do Cérebro - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) **Laboratório do Sono - Hospital Universitário Onofre Lopes (UFRN) Resumo Segundo Karl Pearson (1892): "In truth, the field of science is much moreconsciousness than an external world. Law in the scientific sense is thus essentially a product of the human mind and has no meaning apart from man." Desta forma, com base na importância que a consciência tem, não só para a

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neurociência mas para o pensamento científico em geral, faremos um breve apanhado histórico sobre como o ser humano desenvolveu o conceito de consciência desde os primeiros registros até o pensamento moderno. Palavras chave Consciência, filosofia da mente, neurofilosofia, história da neurociência Introdução: primeiros registros, religião e dualismo cartesiano Em termos históricos, um dos primeiros registros sobre consciência vêm de escritos Sumérios, há aproximadamente seis mil anos, onde é detalhado um estado alterado de consciência induzido pela ingestão de uma semente de ópio durante um ritual religioso (Schiff Jr, 2002). Na Grécia antiga, Demócrito já filosofava acerca da consciência: ele dizia que tudo no universo, até mesmo a mente humana, é criado por aglomerados de átomos no vazio. Para ele, a consciência era formada por átomos especiais, mas é fundamentalmente material em sua estrutura. O ser humano por muito tempo se questionou a respeito de onde estaria a consciência. Para alguns, o coração era o palco principal, afinal a percepção de medo vinha junto ao batimento cardíaco acelerado. Além disso, era evidente que o batimento do coração é condição essencial para a vida. Contudo, Hipócrates, o pai da medicina, há aproximadamente 2500 anos, afirmou que o cérebro é o órgão mais poderoso do corpo humano, e que o cérebro é o agente capaz de interpretar a consciência. Com o início e a dominação do pensamento religioso cristão na Europa, as pessoas foram induzidas a acreditar que a mente não estava mais necessariamente ligada ao corpo, ou seja, a consciência, na verdade, é o espírito (ou alma). Isso gerou uma estagnação no progresso de desenvolvimento científico: desde esta época até a idade média, acreditava-se que a convulsão era um fenômeno divino, por exemplo. Esse tipo de pensamento místico (ou metafísico) começou a mudar com Galeno, que estudou e elucidou diversos aspectos do funcionamento dos corpos dos seres vivos. De forma acidental, o que é muito recorrente na ciência, em um de seus experimentos de vivissecção de um porco, ele seccionou o nervo recorrente da laringe e imediatamente o suíno parou de esguichar, mas não de lutar. Isso não passou desapercebido, então ele investigou e descreveu minuciosamente o caminho do feixe nervoso que subia para a cabeça e que o levou ao cérebro. Ele reproduziu esse mesmo experimento em outros animais, inclusive com pássaros de pescoço longo. Após disseminada essa informação, o paradigma de que o desejo ou a vontade humana partia do espírito havia sido questionado pela maioria, e para os sábios, devidamente extinguido (Gross, 1998). Desde o início da era cristã até a idade média, entretanto, o pensamento religioso dominante ainda se dava pela explicação sobrenatural da mente. René Descartes (1641) chegou a afirmar que o espírito consciente era independente do corpo, como se fossem duas entidades completamente separadas, constituindo assim um pensamento dualista (dualismo cartesiano). Essa forma de pensamento tem perdurado até os tempos mais recentes. Assim, para Descartes, mente e corpo são coisas separadas: a mente, que pode até se abrigar no cérebro, é uma entidade não-material separada do tecido físico que se encontra dentro de nossas cabeças, ou seja, é algo além do físico e que se aproxima mais do espírito. Consciência: etimologia, definição e conceitos relacionados Etimologicamente falando, a palavra “consciência” deriva do latim antigo conscius, e tem como

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significado imediato “ter conhecimento, estar a par de”. A palavra consciência no sentido de estar ativo ou acordado (consciente) é historicamente mais recente (Online Etymology Dictionary, 2011). No português contemporâneo do Brasil, a palavra consciência também está relacionada à razão no sentido de justiça, como na expressão “as pessoas más não tem consciência”, por exemplo. Segundo Karl Pearson (1892): "In truth, the field of science is much more consciousness than an external world. Law in the scientific sense is thus essentially a product of the human mind and has no meaning apart from man." Assim, acreditamos que a consciência é consequência da integração perceptual do indivíduo com ele mesmo e com o mundo em que ele vive. Desta forma, encontrar padrões da nossa interação com o mundo é muito mais o estudo das nossas sensações e percepções do que somente do mundo externo. Abordamos a consciência em termos biológicos e filosóficos como um processo emergente de um organismo complexo, composto por diversos sistemas sensitivos que evoluíram para receber uma gama de estímulos externos diferentes e transduzi-los para uma linguagem comum ao organismo. Além disso, sabemos que esse organismo também é constituído por diversos sistemas motores que serão coordenados por essa linguagem neuronal, como resultante da integração dos processos perceptuais e cognitivos. Esta coordenação motora é necessária para que o organismo reaja com o mundo externo de forma mais eficaz para garantir a sua sobrevivência. Porém o desenvolvimento da consciência para nós humanos foi diferente do que aconteceu com a lagartixa, por exemplo, já que o tempo biológico evolutivo fez como que fôssemos constituídos de um conjunto diferente de sistemas, adaptados para um espaço-tempo específicos. Assim, acreditamos que a consciência de um outro ser humano seja mais parecida com a nossa do que com a da lagartixa; isso não quer dizer que a lagartixa não tenha consciência, apenas que é diferente da nossa, como seres de outra espécie e de outro grau de complexidade. Então poderíamos dizer que qualquer forma de vida tem consciência? Pode até ser que sim, dependendo da definição adotada para a análise. Entretanto, nesse texto, iremos abordar a consciência com ênfase na auto-consciência humana (a consciência que temos da nossa própria consciência), mas sem esquecer do processo evolutivo que aconteceu até o presente momento, ou seja, como o que chamamos hoje de consciência vem se modificando ao longo do tempo nas diferentes espécies animais. Em termos ontogenéticos, ao longo do desenvolvimento do organismo humano, onde estaria o início da consciência? Pela nossa definição, a consciência é um processo decorrente da interação do nosso cérebro em contato com nosso corpo num dado ambiente. Segundo a medicina moderna, o individuo está morto quando seu cérebro está morto, sendo este ponto bastante importante para assuntos delicados como doação de órgãos, por exemplo. Nessa mesma linha de raciocínio, poderíamos fazer uma outra pergunta: quando começa a consciência? Ou seja, quais são as menores configurações de complexidade do sistema nervoso necessárias para emergir a consciência? Esta é uma dúvida bastante importante pois ela definiria os limites que norteiam temas como aborto. Acreditamos que, se o fim da consciência é a morte cerebral, o início da consciência é o início da vida cerebral, que acontece por volta de um mês após a concepção, aproximadamente. Entretanto, o processo de formação da autoconsciência somente se iniciaria por volta dos 2-3 anos, quando o bebê começa a se reconhecer no espelho, ou seja, ter consciência dele mesmo como indivíduo único. Investigações modernas da consciência: Darwin, Freud e Husserl

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Charles Darwin, com a teoria da evolução, foi quem inicialmente passou a interpretar a consciência dos animais através do seu comportamento, buscando uma hipótese evolutiva para a consciência através da seleção natural, ou seja, como a consciência evoluiu nas diferentes espécies animais. Além dele, Sigmund Freud (1900) também tem uma enorme importância na história da consciência, mas não por falar diretamente dela, mas sim da sua ausência, o que ele chamou de inconsciente. Para Freud, muito do comportamento humano é derivado de mecanismos que estão fora do nosso universo consciente. Assim, acreditamos que a consciência é a ponta do iceberg num oceano de processos inconscientes. Filosoficamente falando, Husserl teve um papel fundamental para a investigação do que chamamos de consciência. Até a sua época, uma forte corrente filosófica iniciada por Platão postulava que havia dois mundos: o das ideias (ideal) e o das coisas (real). O mundo das ideias era produzido pelo sujeito, e no mundo das coisas encontramos os objetos. Na fenomenologia de Husserl, essa dicotomia platônico-cartesiana não mais existe: da interação de um sujeito ideal e de um objeto real surge um fenômeno, e esse é a essência da relação, ou seja, sujeito e objeto não podem ser avaliados separadamente, mas sim como um fenômeno único e completo em si mesmo. Dessa forma, dois observadores podem ver um mesmo objeto e ter duas percepções completamente diferentes da mesma coisa, já que temos dois fenômenos. Assim, se tomarmos a consciência como objeto de estudo, não podemos esquecer que a mesma está ligada a um sujeito que a está experienciando, como descrito a seguir. Conclusão e Perspectivas - Varela e Maturana: da autopoeise ao autoconhecimento Segundo o conceito de autopoiese desenvolvido por Maturana e Varela, a consciência é a propriedade que emerge de um sistema complexo auto-organizável, a partir da integração dos sistemas sensoriais (entrada), processamento dessa informação, e comportamento (ou saída). Assim, uma possível interpretação desse pensamento é que podemos usar o método científico do estudo da consciência como uma ferramenta para entendermos a nossa própria consciência, ou seja, o sujeito é o próprio cientista. Como perspectivas, acreditamos que através de técnicas como EEG e neuro-feedback podemos estudar a nós mesmos, e que isso é importante para nosso autoconhecimento como cientistas e como seres humanos. Agradecimentos: Aos Prof. Claudio Queiroz e Sergio Neuenschwander pela orientação. Referências bibliográficas Descartes, R. (1641). Meditations on First Philosophy, in The Philosophical Writings of René Descartes, trans. by J. Cottingham, R. Stoothoff and D. Murdoch, Cambridge: Cambridge University Press, 1984, vol. 2, pp. 1-62. Freud, S. (1900). The interpretation of dreams. Encyclopedia Britannica : London. Gross, C.G. (1998). Galen and the squealing pig. The Neuroscienctist (4), 216-221. Pearson, K. (1892). The grammar of science. Online Etymology Dictionary (2011) = http://www.etymonline.com/

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Schiff Jr, P.L. (2002). Opium and Its Alkaloids. American Journal of Pharmaceutical Education, 66, 186-194. _______________________________________________

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O 'BEM-ESTAR' NA CIBERCIVILIZAÇÃO sexta-feira, julho 27, 2012 http://nucleotavola.com.br/revista/o-bem-estar-na-cibercivilizacao/

por Ricardo Henrique Meloni Freud [1] em seu clássico texto O mal-estar na civilização discute a questão da felicidade dentro da civilização. Para o autor a civilização "descreve a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais", cujos intuitos são: proteção do homem em relação à natureza e o ajustamento de relacionamentos mútuos. Ou seja, a sociedade protege o indivíduo dos impulsos instintivos dos outros, mas para isso o próprio é reprimido em seus instintos, a sociedade isola o indivíduo fazendo valer suas regras e padrões de comportamento de tal forma que há punição a quem vai contra essa lei. Ou seja, para que o indivíduo não seja vítima das pulsões alheias ele precisa abrir mão das suas próprias. Assim, para Freud, o homem civilizado trocou a felicidade pela segurança. Na leitura de Bauman [2] em O mal-estar da Pós-Modernidade, a civilização descrita por Freud diz respeito à sociedade moderna, a qual já fora superada, dando espaço para a pós-modernidade. Para Bauman o homem e a mulher pós-modernos “trocaram o quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão de felicidade”. Se na modernidade o sexo era um tabu, algo que devia ser reprimido e só feito após o casamento – daí toda a questão de casar virgem, por exemplo – hoje, em oposição, o sexo tornou-se algo banalizado e de fácil acesso. Com isso tem-se a impressão de que vencemos um tabu, entretanto a verdade é que o tabu fora apenas deslocado, no caso para a morte. Tentamos desesperadamente driblar, esconder e disfarçar a morte. Quem fatura com tal tabu são as empresas de cosméticos e clínicas de cirurgia plástica com seus métodos de rejuvenescimento. Após essa pequena exemplificação, voltemos ao tema: então ocorreu uma inversão, se antes (na modernidade) o mal-estar decorria de uma restrita liberdade em troca da segurança, hoje (na pós-modernidade) o mal-estar provém de uma restrita segurança em troca de uma grande liberdade.

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No entanto, existe um espaço onde liberdade e segurança coexistem, mesmo que de forma ilusória, este lugar é o ciberespaço. Nele é possível se ter o anonimato e, em função disso, as regras sociais muitas vezes deixam de existir e as pulsões tomam formas peculiares de vazão. Desse modo aspectos das pulsões se manifestam via internet, obviamente que restrita às suas limitações. A sensação de segurança que se tem na rede diz respeito ao anonimato, ao fato de que tudo o que se faz ali não será descoberto e não acarretará em prejuízos para sua vida cotidiana e social. No que tange a pulsão de vida ou pulsão sexual existe uma gama de sites destinados a encontros virtuais entre pessoas interessadas em sexo virtual. É sabido que: quando existe oferta é sinal de que existe demanda. Logo se estes sites existem e se mantém no ar é sinal de que há consumidores deste tipo de produto. Percebe-se com isso a satisfação dos impulsos sexuais mediada pela rede, de forma imediata, em que não é preciso conversar por muito tempo com um "parceiro" e nem se deslocar para o encontro, a satisfação é rápida quando se encontra alguém que aceite, o que não é difícil, visto que há salas virtuais destinadas a este público. Desse modo o sujeito se abstém de todo e qualquer risco que uma “aventura” sexual poderia proporcionar. Em 2000 realizou-se uma pesquisa no IRC (Internet Relay Chat), na época um chat bastante utilizado para bate-papo e sexo virtual. A pesquisa foi realizada a partir de uma amostra de usuários brasileiros. Foi notado que predominam usuários do sexo masculino, entre 16 e 19 anos e que são isolados socialmente. Estes usuários entendem a internet como uma forma de suprir carências, como a de fazer amigos e de ter satisfação sexual, no entanto nenhum se declarou dependente de tal ferramenta. Todos disseram já ter se envolvido amorosamente via internet, e declaram o sexo virtual como: "É mais seguro e evita constrangimento". Esta pesquisa fora realizada no ano de 2000, de lá para cá mudanças ocorreram, mas alguns aspectos se fazem presentes ainda hoje. O que me chama atenção neste trabalho é a questão segurança que fora citada pelos próprios sujeitos da amostra. Dentro do ciberespaço se tem garantido o anonimato, a proteção da identidade, logo, o indivíduo se percebe livre para satisfazer suas pulsões de tal forma que fica livre dos julgamentos morais da sociedade, além de não precisar ter um contato direto com a outra pessoa o que poderia, como também foi mencionado pelos sujeitos, causar constrangimento. Dessa forma o sujeito contemporâneo tem à sua disposição ferramentas virtuais que lhe permitem uma satisfação sexual de tal forma que ele não precise investir tempo e tampouco afetividade naquele encontro sexual, situação ideal para uma sociedade que reduziu o outro a uma mercadoria. Dessa forma o Outro se torna um recurso que deverá estar sempre disponível quando o sujeito precisar. Claro que o Outro a que me refiro diz respeito a um leque de opções de “Outros” acessíveis em salas de bate-papo, comunidades virtuais e afins. Entretanto, eu não poderia deixar de mencionar que, apesar de eu ter descrito o sexo virtual como uma prática segura do julgamento moral, existem situações específicas em que o Ciberespaço age contra essa segurança. Existem ferramentas que capturam as imagens do ato do sexo virtual que pode, e muitas vezes é, compartilhada via internet gerando prejuízos de ordem moral e social às pessoas. Como o caso de 2010

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do casal de adolescentes que transmitiram ao vivo, via internet, cenas de sexo e que veio a repercutir no Brasil todo. Além da pulsão sexual, Freud também disserta sobre uma pulsão agressiva, a pulsão de morte, antagônica à pulsão de vida, ligada a uma tendência humana de retorno ao inorgânico, ao inanimado e à destruição. Para o autor nós somos “criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade”. Freud argumenta que a civilização exige grandes esforços a fim de "domesticar" este instinto agressivo humano, através de um mecanismo de defesa ao qual ele denomina de formação reativa, que nada mais é do que a inversão de um sentimento a fim de proteger o ego, por exemplo, o sentimento de raiva e de destruição é camuflado por um sentimento de amor ao próximo, como ainda se percebe na moral cristã. O ciberespaço, novamente, contribui para a vazão deste impulso, através do cyberbullying. Clarissa Thomé em um texto jornalístico, intitulado Humilhando colegas pela internet, para o jornal O Estado de S. Paulo traz à tona alguns casos de cyberbullying, com a exposição via internet e não autorizada de jovens em atividade sexual ou sem roupa em fotos ou vídeos, expondo totalmente a vítima à humilhação – levando, algumas vezes, ela a mudar de cidade ou apenas de escola, como descrito no texto. A demanda do bullying e do cyberbullying é tamanha que fora criado o TECA (Telefone Amigo da Criança e do Adolescente) no Rio de Janeiro, a fim de dar apoio psicológico às vítimas. Mas o cyberbullying não se caracteriza apenas por esse tipo de exposição, ela também pode ser muito mais próxima bullying tradicional, através de xingamentos e ofensas pessoais. Como é o caso descrito por Rafael Balsemão no texto Jovens enfrentam ofensas e violência no mundo virtual, também no jornal Estado de S. Paulo, ele conta que foram criadas contra Alice (nome fictício) duas comunidades virtuais no Orkut que se denominavam: ‘Eu odeio a tosca da Alice’ e outra que fazia menção ao estado de origem de sua mãe. Mediante a este fato a família decidiu mudar a filha de escola, porém o caso havia se espalhado e a solução encontrada fora mandar a filha para outro país. Casos como este não são raros. É interessante ressaltar que no cyberbullying, ao menos nos casos aqui descritos, não fora utilizados o anonimato, que zelaria pela segurança de quem o comete, entretanto, o cyberbullying é sempre praticado por um grupo, e sabemos através do conceito de inércia social, em que a responsabilidade do sujeito é dissolvida na mesma proporção do número de pessoas no grupo, logo apesar de o praticante do cyberbullying estar visível sua responsabilidade é dividida entre os membros do grupo, o que gera uma sensação de segurança individual. Meu objetivo com este ensaio não foi de modo algum fechar o tema, pelo contrário, foi abri-lo para que reflexões de diferentes naturezas sejam feitas à respeito desta problemática. Com isto eu espero ter correspondido às expectativas do leitor. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: [1] FREUD, S. O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos. v.21. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

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[2] BAUMANA, Z. O Mal-Estar da Pós-Modernidade.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. *Ricardo Henrique Meloni é Psicólogo recém formado pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP) EMAIL: [email protected]

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A crise econômica mundial e os dilemas da modernidade agonizante sexta-feira, julho 27, 2012 http://nucleotavola.com.br/revista/a-crise-economica-mundial-e-os-dilemas-da-modernidade-agonizante/

por Taylisi de Souza Corrêa Leite* "O mesmo sistema ideológico que justifica o processo de globalização, ajudando a considerá-lo o único caminho histórico, acaba, também, por impor uma certa visão da crise e a aceitação dos remédios sugeridos. Em virtude disso, todos os países, lugares e pessoas passam a se comportar, isto é, a organizar sua ação, como se tal "crise" fosse a mesma para todos e como se a receita para afastá-la devesse ser geralmente a mesma. Na verdade, porém, a única crise que os responsáveis desejam afastar é a crise financeira e não qualquer outra. Aí está, na verdade, uma causa para mais aprofundamento da crise real - econômica, social, política, moral - que caracteriza o nosso tempo." (SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal) A palavra “crise” tem origem grega, eis que usada por Hipócrates para designar o momento culminante de uma patologia. Assim, para o pai da medicina ocidental, a crise seria o ápice da doença, após o que só poderia advir a cura, a solução. Por essa razão, era o momento crucial para a tomada de decisões, para se adotar a medida adequada a uma resolução eficaz ao problema. Quando se fala em crise econômica mundial, há uma tendência alarmista por um lado, que quer propagar a idéia de que, somente agora, o caos será instalado no mundo; e, por outro, num sentido diametralmente

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oposto, há aqueles que reputam a crise como algo tolo, banal, sem grande importância. As duas idéias polarizadas estão assentadas sobre o mesmo fundamento, qual seja, o mascaramento da verdadeira razão que leva o sistema de produção capitalista a uma agonia de difícil solução. A crise, ou a doença (conforme a etimologia), é uma característica típica do capitalismo. Seguindo a dialética marxista, temos que todo sistema de produção econômica tem, necessariamente, dois elementos: está baseado na exploração de oprimidos por opressores, e sempre traz dentro de si o gérmen da sua própria destruição. Deste modo, na Antiguidade, temos, no sistema escravagista, a exploração de escravos por senhores, baseada na força bruta, no agrilhoamento; porém, quando a força se torna escassa para conter os escravos, o sistema perece, dando lugar a outro. Daí, na Medievalidade, surge uma nova forma de exploração, então, baseada na posse da terra, entre servo e senhor feudal; contudo, quando a produção agrícola é exorbitante, o excedente é comercializado pelo servo, e este deixa de depender do senhor, originando outro sistema de produção: o Capitalismo. Basicamente, e de forma bastante elementar, esta é, para Karl Marx, a lógica da evolução econômica através da história. Todo modo de produção está baseado na exploração, que reside em algum mecanismo de submissão (força, terra); todavia, o capitalismo cria uma dialética de opressão própria, fundada na dicotomia entre Capital e Trabalho. Há aqueles que possuem o capital e aqueles que não possuem – a estes últimos, só resta trabalhar, para que possam transformar o trabalho em capital e prover a sua subsistência. Por essa razão, só existe capitalismo se houver distribuição desigual de renda; assim, trata-se de um sistema que só sobrevive na desigualdade – só irá se submeter ao trabalho aquele que não possuir capital, ou seja, se todos possuíssem capital, não haveria trabalho, não haveria exploração, e, consequentemente, não haveria capitalismo. Por isso, quando o capitalismo surgiu, ele se fez acompanhar por um projeto ideológico que pudesse sustentar a desigualdade econômica. Desde seus primórdios, no Renascimento, o abandono de uma concepção teocêntrica de mundo e a organização do método científico perfizeram a ideia de que o homem poderia ter o controle de tudo, por ser dotado de razão. O racionalismo, ao lado do sistema capitalista, constitui a face ilusória da beleza e das promessas da Modernidade. A razão renascentista encontra, então, seu apogeu, no Iluminismo, e, a partir deste, erige-se todo um aparato burocrático, na figura do Estado de Direito, a fim de sustentar a dominação e a desigualdade. Entretanto, mesmo com todo o instrumental ideológico, político e jurídico, no intuito de sustentar a exploração de quem não possui capital, a base da produção econômica capitalista, por ser muito sutil, sempre guardará uma fragilidade. Não se trata mais de um elemento concreto, como a força ou a terra; a desigualdade, que sustenta o sistema, é também a responsável por sua falibilidade e é por isso que o capitalismo está em constante renovação. Assim, a crise não é estranha ao capitalismo, ao contrário, ela lhe é própria, e é através dela que o sistema se reinventa e sobrevive, comutando-se de mercantilismo em capitalismo industrial, e, deste último, em financeiro e especulativo. Esta crise do início do século XXI é a crise do capitalismo especulativo, assim como a crise de 1929 foi a crise do capitalismo industrial. Portanto, aqueles que causam alarde, passando a falsa ideia de que tais abalos são novidade, pretendem, ao mesmo tempo, negar que o capitalismo é um sistema intrinsecamente falível e crítico, e usar a tal “crise econômica” como desculpa para a redução de políticas públicas, para as demissões em massa no setor privado, e para o corte de gastos em todas as esferas. A propaganda da crise nos meios de comunicação força todo o corpo social a assimilá-la como um problema coletivo. O

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desequilíbrio econômico, pautado na dinâmica de um sistema injusto e instável, e gerado por quem detém o poder, acaba sendo suportado por todos, e, como é usual, os mais pobres são mais sensivelmente afetados e acabam saindo muito mais prejudicados desta situação. Por outro ângulo, sob o argumento verdadeiro de que a crise é natural ao sistema capitalista, há os que pretendem lhe emprestar um ar de banalidade, como se a doença fosse só uma leve gripe que logo passará, quando, na realidade, trata-se de uma patologia crônica e incurável. Reputam-se como responsáveis pela crise o inchaço do sistema de crédito imobiliário norte-americano e o abuso na especulação. Neste último caso, alguns especuladores teriam colocado em circulação papeis fictícios, sem correspondência material do valor neles consignado. Esta ideia é, por si só, fantasiosa e enganadora, pois parece que somente agora alguns indivíduos imorais teriam vendido papeis sem lastro, quando, na realidade, esta especulação (como o nome já diz) é o fundamento do próprio funcionamento do sistema. O capitalismo financeiro dispensa a correspondência entre valor especulado e riqueza material real, essa é a sua lógica interna para transformar capital em mais capital, sem usar o trabalho. Como o capitalismo, por causa da especulação, pode gerar capital prescindindo da exploração do trabalho, naturalmente, aumenta o desemprego, ainda mais com a crescente mecanização da produção, que dispensa a mão-de-obra. Então, a grande massa de trabalhadores sem ocupação cria uma lacuna no mercado consumidor – sem trabalho, não há consumo. Isso faz com que só seja possível vender através do crédito, e os sistemas de financiamento crescem, para imóveis, automóveis, eletroeletrônicos, eletrodomésticos, tudo. Nunca se comprou tanto a prazo, e em prazos tão extensos. Portanto, tanto a falência do sistema de crédito imobiliário quanto o abuso na especulação não são causas isoladas que acabaram gerando a crise, mas são produtos e desdobramentos naturais do próprio capitalismo financeiro especulativo. No entanto, se o capitalismo, como sistema de produção, está baseado na dialética entre capital e trabalho, quando se dispensa o trabalho para a produção de riqueza, recorrendo-se somente à especulação, rompe-se a base do sistema. Por isso, esta crise é profunda, e não passageira e superficial como querem alguns. Inclusive, a crise mundial atual não é somente econômica. A voracidade do sistema capitalista encontrou um limite à expansão desmedida pra a produção de lucros e o acúmulo sem fim – este limite é o próprio mundo. O planeta já não suporta as consequências da lógica capitalista, e a crise ambiental denota que os dias do sistema estão contados, se não pela falência econômica, pela impossibilidade de permanecer na Terra, após tudo o que a Modernidade fez a ela. O racionalismo, o avanço da tecnologia e a ciência moderna foram tão devastadores quanto o próprio capitalismo. E esse apego à racionalidade, que afastou qualquer concepção religiosa, moral e ética de mundo, deixou-nos sem nenhum referencial. A modernidade substituiu a fé pela razão, a crença em deuses pela crença na ciência e, agora, quando o capitalismo agoniza e a ciência destrói o planeta, quando vivemos os horrores das guerras do século XX, a fome, a desigualdade, a injustiça, não podemos mais fechar os olhos, iludidos, acreditando nas promessas iluministas de “liberdade, igualdade e fraternidade” e positivistas de “ordem e progresso”. O processo da crise é contínuo e permanente. Ora, na modernidade agonizante, a crise é global, denotada por fenômenos globais ou ocorrências locais que repercutem globalmente. E se a crise é estrutural, a busca de soluções paliativas, como novos empréstimos ou aportes de capital estatal na iniciativa privada em derrocada, gera ainda mais crise.

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Diante do estado crítico do capitalismo e do racionalismo, vemos as estruturas da Modernidade ruírem, sem que nada seja proposto em substituição. E, então, só nos restaram o desconforto e a desilusão de um mundo conturbado, sem valores morais, com um Estado falido, a natureza degradada, a economia vacilante, e nenhum lugar para a ideologia. A globalização somente pulverizou as fronteiras econômicas, mas as desigualdades locais foram mantidas e exacerbadas. Globalizamos a cultura de massas para expandir o consumismo, mas jamais construímos oportunidades globais. A crise é, portanto, total e absoluta. Não é só o capitalismo que sofre uma crise, mas a Modernidade: a razão moderna, a moral, a ciência, a economia. O Estado moderno, em todo o Ocidente, padece por falta de legitimidade quando não realiza suas premissas básicas e mantém a desigualdade, a Democracia moderna fenece ante a corrupção e a burocracia, o Direito moderno não encontra legitimidade e a lei é constantemente desobedecida, quando só há previsões formais, pelo apego excessivo à técnica, sem nenhuma efetivação dos direitos mais fundamentais. Nesse contexto, ainda haverá lugar para a militância? Ainda haverá espaço para a ideologia? Os movimentos sociais ainda fazem sentido? Como lutar por direitos se o próprio Direito padece? Como desejar inclusão se o Estado fenece? Como pretender justiça e igualdade em um sistema desigual e agonizante? Como pensar um mundo global pautado na justiça social? A falta de resposta a essas perguntas poderia nos levar à absoluta desilusão. Porém, convém lembrarmos Hipócrates, no início do texto, que cunhou a palavra “crise”. Se a crise é o apogeu de uma patologia, de um desarranjo, de um desequilíbrio, é também o momento da intervenção, o momento da solução. Contudo, esta solução não pode ser aquela imposta pelos opressores, no sentido da contemplação de seus interesses. O remédio adequado é a superação da própria lógica do sistema. Num estado de coisas em que todas as estruturas se encontram em crise, e a humanidade encara a catástrofe, não nos resta mais nada, a não ser a ação, o resgate da razão verdadeira, e a crença em um futuro melhor. No auge da doença, só nos resta administrarmos o remédio correto e perseguirmos, incansavelmente, a verdadeira cura. Bibliografia ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. ALVES, Alaôr Caffé . Representação política, democracia e globalização. Revista do Advogado (São Paulo), São Paulo, v. 22, n. 67, p. 99-101, 2002. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. (Os economistas). São Paulo: Abril Cultural, 1984. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2004. Taylisi é editora da revista tavola

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O Céu de Marie quinta-feira, julho 26, 2012 http://nucleotavola.com.br/revista/o-ceu-de-marie/

por Tatiana Almeida D’antonio de Souza* Marie parou em frente à escadaria do teatro. Ergueu a cabeça e percorreu mentalmente os degraus que haveria de subir. Deu com os olhos no céu, que, naquela noite, estava especialmente estrelado. Lembrou-se de quando era uma menina na Polônia: seu pai lhe dizia que quando crescesse, ficaria tão grande que seria capaz de alcançar as estrelas com as mãos. Usava seu único vestido de gala, de corte simples, feito de um veludo discreto e preto que escondia hematomas dispersos pelo seu corpo. Suas mãos grossas e fortes não combinavam com a impressão de fragilidade que se tinha dela à primeira vista. Era uma senhora magra, pequena e pálida. Ouviu os passos apressados de Irene que vinham detrás dela, mas não se voltou em direção à filha, manteve seu olhar fixo nas estrelas. A mocinha de cabelos desgrenhados tocou-lhe o ombro. Após um breve encontro de olhares, a mãe voltou-se novamente às estrelas, hipnotizada, enquanto a menina contemplou o vestido novo que usava. Deram-se as mãos e começaram a subir a escadaria, degrau por degrau. À frente, a mãe; depois, a filha. Marie precisou parar por um instante antes de completarem o trajeto. Respirou o mais fundo que pôde e prendeu o ar em seus pulmões. Há tempos sentia que o ar lhe faltava e o coração acelerava. Expirou lentamente e continuou a subida até chegarem ao hall de entrada do teatro.

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O local era luxuoso e pelos corredores viam-se personalidades ilustres. Marie e sua acompanhante tinham cadeiras reservadas na primeira fileira. A menina olhava com olhos úmidos e brilhantes tudo e todos que estavam ao redor. Eufórica, tentava, em vão, acalmar-se ajeitando o vestido compulsivamente. Era um momento de emoção para ela. Desde muito pequena encantava-se com o trabalho dos pais. Marie, percebendo a agitação da filha, lembrou-se de como ela própria, quando criança, ficava extasiada em ver os equipamentos da coleção científica de seu pai! As peças - barômetro, eletroscópio de folhas de ouro, tubos de ensaio, balança de precisão e minerais brutos - ficavam dispostas em uma vitrine na sala, onde ela, a futura cientista, permanecia durante horas fantasiando, observando cada detalhe e imaginando como tudo funcionava. Seu pai lhe contava que os minerais poderiam ser quebrados até chegarem a um tamanho tão pequeno, tão minúsculo que os olhos nada podiam ver, mas que lá existia algo que os pesquisadores chamavam de átomo. “—Existem coisas que meus olhos não podem ver”! No palco havia uma extensa mesa finamente decorada e sobre ela, placas de metal dispostas com inscrições de nomes e cargos. Ao centro, uma insígnia conhecida e um arranjo floral. A solenidade começou. O mestre de cerimônias chamou cada um dos membros que constituíam a banca e apresentou os quatro homenageados. — Senhoras e Senhores... Aquele era o momento de reconhecimento público pelos feitos de Marie. Lembrou-se das noites não dormidas em que elaborava mirabolantes hipóteses científicas. Pensou nos dias passados sem que percebesse o transcorrer das horas, enfurnada no laboratório. A tarefa era extenuante: enchia baldes com vinte quilos de mineral bruto, despejava o conteúdo em enormes recipientes de ferro fundido, mexia a mistura incandescente até a ebulição, fervia líquidos mal cheirosos e observava vapores. Abaixou os olhos e sua mente foi envolvida por uma cadeia de pensamentos: Polônia tragada pelo domínio russo; proibição de mulheres cursarem estudos científicos, trabalhos como governanta, camareira, babá, viagem a Paris, provas em Sorbonne, pobreza, dedicação, isolamento, solidão, anos de estudos, licenciatura em física e em matemática, doutoramento. Sentiu falta de Pierre. Seria reconfortante tê-lo aqui. Além disso, ele merecia receber o reconhecimento da classe científica. Era chefe do laboratório de Física em Sorbonne quando Marie chegara em Paris. Interessou-se por ela assim que a viu. A moça não percebeu ao certo como as coisas aconteceram, mas quando dera por si, o cientista que ela admirava era também o homem que amava. Pierre não era somente seu marido, nem apenas pai das meninas Irene e Eve. Era seu companheiro de estudos, de devaneios científicos, seu melhor amigo. Morto. Atropelado por uma carroça... uma carroça. Sem ele, os minutos tornaram-se longos, as horas intermináveis, os dias insuportáveis. Na lembrança de Marie ficou a sensação do último beijo, a imagem do último olhar, do último sorriso. Apavorou-se quando passou por sua cabeça que nunca mais se encontrariam no laboratório à noite, que não jantariam juntos nem discutiriam novas teses, que seus corpos não se tocariam e que as meninas cresceriam sem a sua presença.

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Era a primeira vez que Marie comparecia a este tipo de solenidade. Anteriormente, ela, Pierre e o amigo Becquerel foram homenageados por este grupo, porém o casal não compareceu à cerimônia porque não dispunha de recursos para chegar a Estocolmo. Marie guardou a carta: “Ao Casal Curie, Esta Academia, em reconhecimento aos extraordinários resultados obtidos por suas investigações conjuntas sobre os fenômenos da radiação descobertas por Becquerel, confere-lhes o prêmio...” O prêmio. O maior prêmio era ficar no laboratório à noite. Na completa escuridão, os cigalhos de rádio, azulados e fosforescente, reluziam enquanto flutuavam dentro dos grandes tubos de ensaio. Eram as estrelas de Marie fabricadas em laboratório. A noite e os pontos brilhantes envolviam seu corpo em uma dança cadenciada. Ela passeava pelo seu céu, envolta de estrelas acessíveis as suas mãos. “—Um cientista em seu laboratório não é um mero técnico: ele também é uma criança que confronta fenômenos naturais que o impressionam como se fossem contos de fadas”. Imersa nesta fantasia, ouviu ao longe o mestre de cerimônias: “... pela descoberta dos elementos Radio e Polônio, quatrocentas vezes mais radioativos que o Urânio, premiamos com o Nobel da Química do ano de 1911: a senhora Curie!” Sob aplausos, Marie seguiu absorta até o palco. A escada lateral parecia flutuar. Postou-se ao lado do apresentador que efusivamente anunciou: “—Para entregar a Senhora Curie a medalha e o diploma com a citação de condecoração, chamamos a Sua Majestade, o Rei Gustavo V da Suécia!” Marie olhou para a plateia, mas a cada aplauso não ouvia o som do estalar das mãos: via o reluzir de uma estrela. Diante dessa agradável confusão sinestésica, recebeu, das mãos do rei, uma medalha e um diploma. Sentiu-se feliz como há muito tempo não se sentia. Teve a impressão de que aqueles instantes desafiaram as leis da física: os segundos que constituíram aqueles minutos eram mais longos, mais fortes e a atmosfera era diferente de tudo o que já se vira no mundo. Sorriu sinceramente, abaixou o tronco do corpo em agradecimento e deixou o palco sem nada dizer. Irene encheu-se de orgulho e prometeu a si mesma ser como Marie quando crescesse. A admiração da pequena pela mãe era tanta que, dias antes da solenidade, exigira usar o mesmo modelo do vestido que Marie usaria. A costureira riu da excentricidade da menina, mas conseguiu, às pressas, copiar fielmente o modelo numa escala menor. Finda a cerimônia, deixaram o Teatro Real de Estocolmo, mas antes de descerem a escadaria, pararam. Marie fitou mais uma vez as estrelas enquanto Irene fitou a mãe. Marie teve uma sensação que não se sabe se foi desejo, inspiração ou premonição. O fato é que ela soube, naquele momento, o que faria no futuro: implantaria o uso da radiografia em hospitais, formaria enfermeiras radiotécnicas e prepararia viaturas para socorrer soldados. Criaria o Instituto de Rádio tanto na rua que receberia seu nome em Paris como em Varsóvia, a fim de incentivar jovens pesquisadores. Aplicaria a terapia de radiação para tratamento de pessoas acometidas por câncer e lúpus e desenvolveria

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a idéia do que mais tarde o mundo conheceria como radiações alfa, beta e gama, além de outras experiências principalmente no campo da medicina. Apertou a medalha recém recebida e teve forças, inclusive, para admitir a hipótese que negava há anos: a radiação estava prejudicando sua saúde. Ela e alguns cientistas que manipulavam constantemente elementos radioativos tinham sintomas como fadiga, coração acelerado, falta de ar, febre baixa, palidez e hematomas. Os sintomas iam e vinham. Era o início da doença que a mataria anos mais tarde: a leucemia. Naquela noite, Irene também construía seu futuro. Tal como a mãe, tornar-se-ia cientista do Instituto de Rádio em Paris. Casar-se-ia com um físico, muito parecido com seu pai. Um ano após a morte de Marie, subiria aquela mesma escadaria, sentar-se-ia naquela mesma plateia e sentiria a mesma emoção. Receberia o prêmio Nobel da Química de 1935 pela descoberta do nêutron e da radioatividade artificial. Morreria da mesma doença que a mãe, em decorrência da mesma paixão. *Tatiana Almeida D’antonio de Souza (Psicanalista) [email protected]

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Em terapia sempre? Talvez... segunda-feira, julho 23, 2012 http://nucleotavola.com.br/revista/em-terapia-sempre-talvez/

por Luis Fernando S. Souza Pinto* “Minha terapeuta me fez montar uma tabela de metas para 2010. Dentre elas abandonar o meu marido que estava me deixando triste*” “Cheguei até aqui porque não aguento mais psicólogos me dizendo o que devo fazer*” * Relatos de alguns fragmentos de meus casos clínicos devidamente modificados em sua forma, mas não o conteúdo, para preservar a privacidade dos pacientes

Praticamente copiei o titulo do texto que meu colega e quase xará Fernando Ferreira Fernandes traduziu do New York Times, mas com uma pequena mudança. As reticências indicam que a terapia, na visão de um psicanalista, pode ser (ou não) um processo contínuo e longo (a psicanálise é também chamada de

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“psicoterapia dinâmica de longa duração”). O verdadeiro autor do texto “In Therapy Forever? Enough Already” é Jonathan Alpert, um psicoterapeuta nova-iorquino (desculpe a sinceridade e certa ironia, cujo site pessoal mais parece uma loja de departamentos... com escritos garrafais COMPRE O LIVRO!). Vou escrever este texto sem ironias e como se estivesse conversando com o Fernando mesmo. Não espero criar nenhum tipo de embate, pois psicanalistas e cognitivos/comportamentais concebem diferentemente o ser humano e vejo as TCCs como ferramentas bastante úteis em alguns casos. Admiro e respeito Frederic Skinner e Aarom Beck. Percebe-se que alguns pacientes acusam “melhora” em poucas sessões, de 4 à 10. Mas há que se perguntar se essa melhora se estruturou de fato. Para o psicanalista o sintoma - ou o que está de fato incomodando o paciente - não é uma dor no dedão esquerdo, quero dizer, não é simples como uma dor localizada ou uma injúria, e sim um processo histórico que pode ter se desenvolvido ao longo de toda vida do paciente e se condensa numa questão simples, por exemplo: “Não aguento mais essa minha mania de maltratar as mulheres, sempre me dou mal.” Posto que o sintoma pode ser complexo e amplamente associado à outros aspectos importantes da personalidade do sujeito, a atuação do psicoterapeuta não pode ser unicamente no sentido de sugerir conselhos, métodos de atuação e dicas em um número x de passos. Mas há pessoas que desejam isso. Já chegam na entrevista inicial e pedem conselhos e dicas. Eu digo que é aí que a porca torce o rabo e, neste momento, concordo com o colega Fernando de que há muitos terapeutas de má fé por aí que são obscuros quanto aos métodos e objetivos de seu trabalho. É nesse momento que o psicanalista ou o terapeuta deve explicar exatamente como faz seu trabalho. Eu como psicanalista deixo claro que o processo pode ser longo, pode ser doloroso e que aqui não é lugar de conselhos, porque na imensa maioria dos meus pacientes (exatos 88%) vieram de psicoterapias curtas que prometiam melhora rápida de sintomas cujos terapeutas viraram uma espécie de amigo e acabavam batendo papo e aconselhando isso ou aquilo. Afinal de contas, conselhos e dicas pedimos aos nossos pais ou amigos quando não somos capazes de decidir e pensar. Na psicanálise o paciente muitas vezes pela primeira vez sai da posição de filho desamparado, dependente e incapaz de pensar por si próprio e inicia seu percurso – de fato angustiante - como um ser humano menos dependente, mais consciente de seus desejo, portanto, pensa melhor e age melhor (o que no fim a TCC busca). Um complicador das terapias pela fala é que o que o paciente diz não necessariamente é a “verdade”. Ou seja, não necessariamente representa uma verdade do ponto de vista subjetivo do paciente e sim um resultado de conflitos de outras forças e movimentos psíquicos. Muitas e muitas vezes vi em 2 meses pacientes mudarem completamente o discurso, reconhecerem que não sentiam verdadeiramente algo, mas sim “sentiam de mentira”, sentiam para agradar alguém, sentiam para conseguir algo de alguém. Utilizando o exemplo do colega Fernando: Um paciente me diz que está infeliz com seu relacionamento. Cabe a pergunta “Mas o que você está sentindo? Acho que cabe. Muitas vezes o sujeito sente-se infeliz com algo por causa direta dos pais, dos amigos, do trabalho e outras coisas relacionadas e perguntar neste momento “Como você se sente” ou simplesmente ficar em

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silêncio, faz com que o sujeito busque em sua mente os motivos pelos quais se sente infeliz, divagar sem pressa, tentando encontrar associações de fatos, ideias e pensamentos. Vi várias vezes uma infelicidade no relacionamento ser transformar em ódio ou na mais profunda admiração; o que confirma nossa idéia ou pressuposto de um psiquismo dinâmico e em boa parte inconsciente. Para finalizar. O contrato que se faz com qualquer analista ou terapeuta deve ser claro. O psicanalista (pelo menos na psicanálise que conheço) recebe o paciente, dá as regras e o trata como adulto que deve saber o que faz. Logo de início o paciente sabe que o processo pode ser longo; pode ser doloroso e pode ser interrompido a qualquer momento. A psicanálise não visa aconselhamentos ou dicas porque visa a independência do pensamento, da atitude do sujeito, e que ele aprenda a pensar e agir do seu próprio modo, em seu próprio ritmo e tempo. Crescemos seguindo regras de comportamento de nossos pais. As livrarias estão cheias de livros de autoajuda. Cada vez mais o estado interfere na vida privada. Cada vez mais a mídia dita o que fazer e o que não fazer. Ou seja, o mundo está repleto de guias e gurus que se colocam na posição de que sabem trilhar caminhos que na verdade não são tão retilíneos. No consultório de psicanálise isso não vale (não deveria valer) e muitas vezes é o único espaço que se tem para refletir sobre isso e começar a agir como adulto para amar, trabalhar e levar uma vida razoavelmente satisfatória. _ Este texto foi inspirado em um texto traduzido de Fernando Ferreira Fernandes e pode ser lido em http://www.comportese.com/2012/04/em-terapia-pra-sempre-basta.html *Luis Fernando é psicanalista e editor chefe da Revista Tavola

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Pelo menos um dia segunda-feira, julho 23, 2012 http://nucleotavola.com.br/revista/pelo-menos-um-dia/ Vimeo Video Guilherme Ruffing - [email protected] Estudou Publicidade e Propaganda - UNAERP - Formado em fotografia pela escola Bauhaus, documentarista pela Academia Internacional de Cinema. Atualmente videomaker dedicado a produção cinematografica.

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Pulsão, culpa, afeto e silêncio em "O Leitor" quinta-feira, julho 12, 2012 http://nucleotavola.com.br/revista/pulsao-culpa-afeto-e-silencio-em-o-leitor/

por Gabriela Cornelli dos Santos*

“Entre as palavras e as imagens, a verdade gosta de se esconder.” Max S. Moreira

Não é recente a descoberta das possíveis relações entre literatura e psicanálise. Como sabemos, Freud sempre levou em consideração a literatura nos seus estudos psicanalíticos e buscava inspiração em autores como Sófocles e Shakespeare. Acreditava que o escritor tinha acesso a verdades psicológicas profundas e que ambas as áreas compartilhavam objetivos semelhantes. A literatura, pois, não é apenas a forma de fazer o leitor viajar através de sua imaginação, mas é algo que lhe instiga o faro, que aguça a curiosidade dos mais atentos: Um leitor que se delicia com um poema, um conto, romance, ou outra forma de expressão literária, e que busca nas entrelinhas das palavras escritas, aquelas que ficaram ao nível do não dito, assemelha-se ao analista atento que, pinçando os significantes nas histórias de vida que lhe são contadas, capta o que não

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está sendo enunciado [1]. Freud buscava nos escritores de obras literárias conhecer a fonte do artista, isto é, de onde este retirava seu material que causava, consequentemente, emoções e prazeres aos seus leitores. Conclui, portanto, que o poeta assemelha-se à criança, que cria o seu mundo fantasioso, levando-o a sério, mas distinguindo-o da realidade. Freud ainda afirma que ao se tornarem adultas, as pessoas perdem o prazer da infância e param de brincar. Porém, trocam o brinquedo pelas fantasias, das quais se envergonham e as ocultam, por serem infantis e/ou proibidas. Logo, a obra literária torna-se o substituto do brincar infantil. O escritor exprime suas fantasias, torna-as aceitáveis e até prazerosas a outros, realizando assim seus desejos e os alheios. Em suma, a literatura é uma maneira de tornar conhecidos nossos desejos proibidos. Barthes [2] afirma que a literatura é constituída por meio do discurso e o texto literário é um tecido de significantes, por onde transitam muitos discursos de muitas áreas diferentes. Na psicanálise, o discurso do paciente, assim como um texto literário, demanda interpretação. Existe sempre um sentido manifesto e um sentido latente nos significantes que emergem do dizer do paciente, das suas reticências, etc. Tal sentido revela o caráter ambíguo e equívoco das palavras. A interpretação fornece ao paciente novas significações, como acontece quando se interpreta um texto literário. Para Beckel [3] “a psicanálise tanto é um instrumento de que o analista se utiliza para trazer à luz e interpretar o conteúdo inconsciente, quanto pode ser utilizada como lente de aumento para o entendimento em profundidade de uma obra”, pois o texto literário ultrapassa o primeiro plano que as palavras revelam. Através da obra literária também é possível encontrar características da personalidade do sujeito que a escreve. Um romance pode revelar através de seus personagens traços da vida intimista ou afetiva do autor. Porém, tais características podem ser interpretadas de várias maneiras: Como, aliás, todo o sintoma neurótico, e como o próprio sonho são possíveis de super-interpretação, que mesmo lhes é indispensável para serem exaustivamente compreendidos, assim também qualquer legítima criação poética terá nascido de mais de um motivo, de mais de um estímulo na alma do poeta, e possibilitará mais de uma interpretação. Eu aqui tentei interpretar apenas a camada mais profunda do que se passa na alma do poeta-criador [4]. Para ilustrar este trabalho, buscaremos analisar através dos conceitos psicanalíticos, a obra O Leitor, de Bernhard Schlink, escritor alemão e professor de Direito e Filosofia da Universidade Humboldt. Vale destacar que todas as obras literárias podem ser interpretadas sob o enfoque da psicanálise, pois as personagens de tais textos são representações do humano e, consequentemente, nos remetem aos nossos próprios afetos, anseios, personalidade, traumas e modos de agir. A psicanálise pode subjazer-se ao texto literário ou pode estar explícita. As verdades profundas citadas no parágrafo introdutório deste estudo são reveladas pelo artista e pelo psicanalista através das manifestações do inconsciente – elemento componente da psique humana – também chamadas de sintoma. Aquelas verdades são manifestadas de várias maneiras: por via dos sonhos, lapsos de linguagem, atos falhos, chistes e pela criação poético-artística. Surgem então os enigmas, que se associam aos sintomas e, cabe ao psicanalista e ao leitor de uma obra artística ou literária desvendá-los, o que exige muita cautela e refinamento.

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No entanto, para Freud, não é no inconsciente que se acabam as motivações que a psicanálise busca encontrar e descrever. Há algo além do inconsciente que é responsável pelas ideias e afetos e que tem por objetivo a satisfação, a qual fora obtida um dia, mas que foi interditada quando nascemos. É a pulsão. Ela: desenha o horizonte do discurso psicanalítico. Situada aquém do inconsciente e do recalque, ela escapa à trama da linguagem e da representação, marcando o limite do discurso conceitual [5]. Este aquém que ele se refere, na verdade, tem um lugar embora inacessível: “situa-se na fronteira entre o psíquico e o físico” [6]. Garcia-Roza (1986) ao comentar sobre o conceito de pulsão reafirma o que Freud já considerava, que a pulsão é ficção: Tal como os conceitos das demais ciências, o termo ‘pulsão’ não designa uma realidade existente, mas um modo de falar de existentes. [...] No entanto, não é um conceito como os demais, é portador de uma opacidade que lhe é essencial; ele recusa a si mesmo a transparência pretendida pelos conceitos das demais ciências e pela maioria dos conceitos da própria teoria psicanalítica. Assim como aponta para a teoria, ele aponta também para algo que se furta ao olhar conceitual. É por metáforas que falamos de pulsão [7]. Veremos, com a análise do livro O Leitor, alguns destes conceitos psicanalíticos como a pulsão, o afeto, o silêncio e isso será demonstrado através das ações dos personagens e de suas falas, pois sabemos que a psicanálise nos coloca no lugar da linguagem. O narrador encontra-se no presente da narração. O seu enredo consiste numa grande digressão a sua juventude, pois agora já está velho. Os eventos narrados refletiram e refletem na sua vida e a escrita funciona como analgésico, como se o aliviasse de um grande peso que trouxera consigo desde aquele tempo: Primeiro quis escrever nossa história para livrar-me dela. Mas para esse objetivo as lembranças não vieram. Então notei como a nossa história estava escapando de mim e quis recolhê-la de novo por meio do trabalho de escrever, mas isso também não destravou as memórias. Há alguns anos deixo nossa história em paz. Fiz as pazes com ela. E ela retornou, detalhe após detalhe, de uma maneira redonda, fechada e direcionada que já não me deixa triste [8]. Michael Berg tem apenas quinze anos, é portador de hepatite. Conhece Hanna, uma mulher vinte anos mais velha e apaixona-se. Ela o inicia na vida sexual e seus encontros se efetuam diariamente, às escondidas dos pais dele. Entretanto, estes encontros seguem um ritual: primeiro banham-se, depois ele lê fragmentos de Dickens, Tolstói e só então fazem amor, exigência dela. Michael nunca chega a saber muito sobre a amada, ela torna-se um enigma ao passar dos anos. Assim, quando ela desaparece de repente dando um fim abrupto àquele período de felicidade, ele se convence de que jamais a verá de novo. Anos mais tarde, todavia, ele a reencontra. Hanna é uma das acusadas por crimes de guerra e por várias mortes em um campo de concentração nazista. Michael, como estudante de Direito, acompanha o caso indeciso entre as lembranças da antiga amante e a indignação pelos crimes. Na tentativa de descobrir quem é a mulher que amou, ele gradualmente percebe que Hanna pode guardar um segredo que considera mais vergonhoso que homicídio.

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Antes mesmo de se entregar de corpo a Hanna ele a desejava muito. Seus sonhos demonstravam seu desejo incontrolável pelo corpo dela e, por conseguinte, começava a fantasiar: Eu acordava toda manhã com a consciência pesada, às vezes com a calça do pijama úmida e manchada. As imagens e cenas com as quais eu sonhava não eram boas. [...] O que não estava de todo modo certo era que, se eu não sonhava passivamente as imagens e cenas, eu as fantasiava ativamente. [...] Experimentei dia a dia que não me era possível abandonar o pensamento pecaminoso. Então queria também a ação pecaminosa [9]. Segundo a teoria freudiana o sonho é a realização de um desejo, ele é o conduto ao inconsciente. A citação acima vem a comprovar esta tese. Os sonhos de Michael, que é uma maneira de manifestar o inconsciente, tendem a ser a representação de seu desejo por Hanna. Após algum tempo de felicidade, Hanna desaparece inesperadamente. Michael passa por meses difíceis, tentando se acostumar com sua ausência e a do seu corpo, sentindo falta de ler versos à amada antes de senti-la nos seus braços. Ingressa na faculdade de Direito, casa-se com Gertrud e tem uma filha. Após cinco anos, divorcia-se. Mantém outros relacionamentos, mas a lembrança de Hanna torna impossível ter uma relação de amor sincera. Ainda quando acadêmico foi, juntamente com um professor, acompanhar um seminário onde estavam sendo julgadas cinco mulheres acusadas de homicídio em campo de concentração da Alemanha, há quinze anos atrás. Uma delas era Hanna. Fazia oito anos desde que ela o abandonara. Michael acompanhou o seminário, que durou semanas, muito concentrado e tentando descobrir algo mais daquela mulher que amara, mas que era misteriosa. Ela o percebe, mas em nenhum momento se dirigem a palavra. Michael confessa que naquele dia que a reencontrou não sentiu absolutamente nada ao vê-la. A função de Hanna no campo de concentração era a de guarda. Era acusada, no entanto, de num certo dia, ter impedido o salvamento de algumas mulheres que estavam numa igreja e que fora bombardeada. Hanna tinha a chave da igreja e a acusação era de justamente não ter aberto a porta para que elas saíssem com vida. O que complicava a situação de Hanna era que as outras quatro acusadas a culpavam por tudo o que havia acontecido. Hanna, no entanto, confessa que impediu a saída das mulheres, mas afirmou que sua função era a de não permitir a fuga, pois era responsável por elas. Surge então um relatório que foi encontrado nos arquivos da SS, o qual confirmava o relato de Hanna, e que contraria a versão das demais acusadas ao dizer que elas também estavam com Hanna no momento do bombardeio, pois elas afirmavam não estarem naquele local e, por conseguinte, não terem participado do crime. As outras acusadas então afirmam que o relatório é falso e que quem o escreveu foi a própria Hanna envolvendo-as no caso. Hanna diz que não foi ela quem escreveu, mas que as cinco guardas tinham discutido juntas o que deveria ser escrito, pois não queriam colocar a culpa nas pessoas que tinham ido embora e também não queriam que lhes acusassem de ter feito algo errado. Então o juiz sugere comparar a letra de Hanna com a letra do relatório. É nesse momento que todos são surpreendidos pela sua confissão, que até então negara tudo: “-Minha letra? [...] Os senhores não precisam buscar nenhum perito. Eu confesso que escrevi o relatório” [10]. É nesse momento que surge um dos elementos que a psicanálise mais leva em consideração ao tentar desvendar verdades profundas: o silêncio. Michael conclui que para Hanna, pior que ser desmascarada

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pelo crime de homicídio, era ser desmascarada por ser analfabeta. Então ele começa a lembrar de pequenos gestos dela dos quais ele nunca percebeu a verdadeira causa: Por isso pedia que lessem para ela em voz alta. Por isso confiara a mim, em nossa viagem de bicicleta, as tarefas de ler e escrever [...] . Por isso, para opor-se à confrontação com a perícia, confessara ter escrito o relatório [11]. Hanna foi condenada à prisão perpétua e as demais seriam reclusas por tempo determinado. Lacan também dedicou-se ao estudar o silêncio. Diz ele: “uma ética se anuncia, convertida ao silêncio, não pelo caminho do pavor, mas do desejo”. E mais: “o ato de calar-se não libera o sujeito da linguagem apesar de que a essência do sujeito culmine nesse ato” [12]. Portanto, Hanna ao silenciar não deixou de ser ela mesma, isto é, ela continuou sê-la em sua essência. Ela desejou silenciar, pois para ela era menos vergonhosa a exposição de um crime cruel do que a de uma exposição inofensiva. Ainda antes da sentença acima mencionada, a corte viajou por duas semanas a Israel. Michael acompanhou-a. Porém, ele não conseguia se concentrar nos estudos, sua mente insistia em divagar, perdia-se em imagens que só faziam-no lembrar Hanna. Michael, dessa forma, procura refugiar-se e se abrigar nos paradoxos do consciente/inconsciente, realidade/fantasia, infelicidade/felicidade. A transição por estes polos opostos faz com que ele tenha devaneios, ou seja, ao tentar buscar explicações sobre a verdadeira personalidade de Hanna e o motivo de ter se apaixonado por uma mulher tão enigmática ele oscila entre o estar consciente e a fantasia: Meus pensamentos voltavam sempre a se desviar, perdendo-se em imagens. Vi Hanna perto da igreja em chamas, com o rosto duro, uniforme negro e chicote de cavalo. [...] Vi Hanna andando pela rua do campo de concentração, entrando na barraca das prisioneiras, supervisionando o trabalho na construção. [...] Às vezes muitas prisioneiras entravam, ou corriam para um lado e outro, ou formavam filas, ou marchavam, e Hanna ficava ali no meio gritando ordens, o rosto aos berros formava uma careta medonha e ela incitava ao trabalho com seu chicote. Vi a torre da igreja chocando-se contra o telhado, lançando fagulhas, e ouvi o desespero das mulheres. Vi a igreja queimada na manhã seguinte [13]. Hanna permaneceu dezoito anos presa, pois conseguiu um indulto. Após estar oito anos na cadeia, recebe uma remessa de fitas cassete com gravações de Michael. Eram poemas, romances e assim passou-se pelos dez anos seguintes recebendo as gravações. Certo dia, ele recebe um bilhete onde Hanna comenta que uma daquelas leituras fora especialmente bonita. Michael percebe que ela aprendera a escrever na cadeia. Uma semana antes de findar os dezoito anos de pena ele vai até à cadeia, a pedido da diretora do presídio e conversa com ela. No entanto, ele a acha muito diferente: “Hanna? A mulher no banco era Hanna? Cabelos grisalhos, um rosto com rugas profundas na testa e nas bochechas, em volta da boca, e um corpo pesado” [14]. No encontro não houve nada de sentimentalismo. Afinal desde que ela partira repentinamente da cidade não mais se dirigiram a palavra. Ele nunca a visitou antes na cadeia. Mas deixaram combinado que ele a

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viria buscar no dia de sua saída. No entanto, na véspera da sua liberdade ela se suicida. A diretora então lhe conta que Hanna aprendeu a ler por causa das fitas que mandava. Ela pedia para comprarem os livros para ela e depois ouvia a gravação, acompanhando no livro palavra por palavra. Michael no presente da narração acaba por revelar-se em muitas passagens de sua escrita angustiado e culpado por tudo o que aconteceu com Hanna e que tais sentimentos perduraram por toda a sua vida, tornando-o triste: Faz dez anos que tudo isso aconteceu. Nos primeiros anos após a morte de Hanna perturbaram-me as velhas perguntas: se eu a reneguei e traí, se permaneci culpado em relação a ela, se me tornei culpado por amá-la, se e como deveria me libertar dela. Às vezes me perguntava se era responsável por sua morte. [...] O que fiz ou deixei de fazer, o que ela fez comigo – isso tornou-se simplesmente o desenrolar da minha vida [15]. O sentimento de culpa é sempre entendido por Freud como decorrente da renúncia à satisfação pulsional. Essa renúncia teria origem no medo da perda do amor do Outro de quem o sujeito é dependente. Freud denomina de superego a instância que exige renúncia. É como expressão de uma desarmonia fundamental no interior do sujeito e em sua relação com o mundo que o termo superego pode ser entendido. Na pulsão de morte veiculada por essa instância, Freud descobre uma radical impossibilidade de harmonia do sujeito com os ideais da civilização. É nesse sentido que ele descreverá o mal-estar expresso sob a forma de sentimento de culpa como intrínseco à civilização [16]. A análise sobre o sentimento de culpa explicita o problema da irredutibilidade da satisfação humana aos padrões pré-estabelecidos. Freud revela que o mal-estar sentido como culpa é engendrado pela própria tentativa de superação do mal-estar. Levando em consideração este mal-estar, desprazer ou insatisfação surge a teoria da angústia e do afeto. Apesar de estar relacionada mais fundamentalmente com o fator sexual do que os demais afetos, ela será considerada agora (em O Recalque, de 1915) um resultado do recalque. O sintoma, nesta medida, se forma para proteger o eu da representação que acompanhou o trauma, e a energia associada a esta representação transforma-se em angústia [17]. Mas, em Inibição, Sintoma e Angústia (1926) vem a contrariar sua própria tese. Agora, a angústia é a mola propulsora do recalque e não mais a consequência. Este afeto, o maior dos afetos, causa do recalque e sensação de desprazer pode ser visualizado no relato de Michael. Todo o envolvimento com Hanna firmou-se nele como um recalque, pois ao passar de longos anos ele nunca conseguiu se livrar disso e nem conseguiu estabelecer harmonia com os ideais da civilização, como por exemplo, manter relacionamentos com sentimento verdadeiro, a sombra de Hanna o perseguia. Logo, surge o sentimento de culpa, regido pelo superego e que renuncia a satisfação: De todo o modo, é o que penso quando acontece de pensar nela [Hanna]. Entretanto, quando sou magoado, as mágoas experimentadas naquela época vêm à tona, quando me sinto culpado é o sentimento e culpa de então, e na saudade e nostalgia atuais experimento a saudade e a nostalgia sentidas naquela época. As camadas tectônicas de nossa vida descansam tão apertadas umas sobre as outras, que sempre encontramos o fato anterior no posterior, não como algo completo e realizado, mas como algo presente e vivo. [...] Todavia acho difícil de suportar [18].

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A análise deste romance nos mostra o quanto a psicanálise enriquece uma interpretação de texto. O sujeito, numa análise, conta a sua verdade. Numa obra literária a verdade está subjacente à ficção. Esta verdade nos é revelada pelo dito e, principalmente, pelo não-dito. O silêncio, como vimos, é tão revelador de verdades como a fala, assim como o inconsciente é em relação ao consciente. O leitor, para tanto, deve ser sensível às entrelinhas, isto é, mergulhar além das palavras e tentar decifrar o ato poético, onde se funda a sublimação. *Graduada e Mestre em Letras, pela Universidade Regional Integrada –URI - campus de Frederico Westphalen, RS. E-mail: [email protected].

REFERÊNCIAS [1] BECKEL, Gilcia Gil. Literatura e psicanálise : qual a relação? Disponível em: http://www.elba-br.org/elb-publicacoes/pdf/literatura-psicanalise.pdf. Acesso em 20 set. 2009. [2] BARTHES, Roland. Introdução à análise estrutural da narrativa. In: Análise estrutural da narrativa. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes. 1972. [3] BECKEL, Gilcia Gil. Literatura e psicanálise : qual a relação? Disponível em: http://www.elba-br.org/elb-publicacoes/pdf/literatura-psicanalise.pdf. Acesso em 20 set. 2009. [4] SPEYER, W. S. Jonas. Freud, o desconhecido. Assis: FFCL, 1963. [5] GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Acaso e repetição em psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986. p.11. [6] Ibidem. (FREUD apud GARCIA-ROZA, p. 11). [7] GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Acaso e repetição em psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986. p.14. [8] SCHLINK, Bernhard. O leitor. Trad.: SÜSSEKIND, Pedro. 5. ed. São Paulo: Record, 2009. p. 238. [9] Ibidem, p. 24 e 25. [10] Ibidem, p. 144. [11] Ibidem, p. 147. [12] ASSIS, Elma Carolina Gomes de. A escrita como o lugar do silêncio em I Love My Husband de Nélia Piñon

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http://www.uesc.br/seminariomulher/anais/PDF/Mesas/ELMA%20CAROLINA%20GOMES%20DE%20 ASSIS.pdf. Acesso em: 19 jun. 2009. (LACAN apud ASSIS, p. 8). [13] SCHLINK, Bernhard. O leitor. Trad.: SÜSSEKIND, Pedro. 5. ed. São Paulo: Record, 2009. p. 161 e 162. [14] Ibidem, p. 213. [15] Ibidem, p. 237. [16] GASPAR, Taís Ribeiro. O sentimento de culpa e a ética em psicanálise. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2009. [17] VIEIRA, Marcus André. A ética da paixão: uma teoria psicanalítica do afeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. [18] SCHLINK, Bernhard. O leitor. Trad.: SÜSSEKIND, Pedro. 5. ed. São Paulo: Record, 2009. p. 238. _______________________________________________

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Velhos ofícios e/ou novas profissões? Um olhar sobre a prostituição. quinta-feira, julho 12, 2012 http://nucleotavola.com.br/revista/velhos-oficios-eou-novas-profissoes-um-olhar-sobre-a-prostituicao/

por Ana Carolina de Faria Silvestre Há experiências na vida que estremecem pré-conceitos, preconceitos e nos convocam a pensar criticamente. Dias atrás, por questões de trabalho, tive que ir à Holanda e passei parte do dia em Amsterdam. Viajar costuma ser bom; sair da rotina, ouvir um idioma diferente, experimentar novos sabores, observar hábitos diferentes dos nossos... tudo isso experimentei em Amsterdam (apesar do curto espaço de tempo em que lá estive). Uma amiga me emprestou um guia da cidade que continha várias sugestões de passeios - uma ferramenta efetivamente útil, que nos permite uma visão panorâmica da cidade e suas possibilidades a fim de escolher o que seremos capazes de fazer, com o tempo que dispomos. O segundo passeio que fiz, logo pelo início da manhã, foi conhecer a red light district. Esta região da cidade é particularmente famosa, especialmente pela oferta legalizada de sexo e drogas. Ao lado dos canais centrais, há incontáveis clubes noturnos, casas de prostituição, cafés e pubs onde se pode consumir erva de maneira legalizada, bem como outros tipos de drogas “mais pesadas” ou simplesmente tomar um café; simples e preto. Confesso que não me senti confortável lá. Ainda estou digerindo Amsterdam... e espero ter a oportunidade de voltar, um dia, com renovadas (resignificadas) conclusões. Durante o passeio pela red light district vi profissionais do sexo se exibindo através de vidros espessos, à espera do próximo cliente. Algumas tinham um semblante entediado; outras um olhar vidrado, talvez confuso; outras, ainda, se maquiavam mesmo ali e dessas não consegui captar um único olhar que pudesse revelar algo sobre o seu estado de espírito (ou um olhar que justificasse os meus sentimentos sobre a sua condição; confusos e contraditórios). Muitos pensamentos e sentimentos me tomaram de

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assalto durante o curto espaço de tempo em que lá estive.

Foi a curiosidade que me moveu até lá, mas eu não contava com o constrangimento que se seguiu à descoberta da primeira vitrine. Eu sabia que a prostituição era legalizada na Holanda e sempre fui partidária de que as pessoas devem ser o mais livres possível para fazer as suas escolhas; pessoais e profissionais. A consciência viva do espírito está assente na liberdade. No entanto – e na contramão de minhas convicções ideológicas - ver uma mulher se exibindo em uma vitrine me afetou negativamente. Me senti desconfortável e, em certa medida, exposta também. Não havia nada que me diferenciasse daquela mulher, parada à minha frente, e a sua nudez foi também a minha. Assumi, de imediato e instintivamente, uma postura paternalista com relação a ela; a vi triste. A coisificação emoldurada por aquela vitrine me entristecia e me envergonhava. No entanto, ainda nua, compreendi que aquele sentimento era meu; o fruto possível das influências culturais, religiosas e morais que venho recepcionando ao longo da vida e que deixaram marcar indeléveis em meu modo de ser e estar no mundo. Poderia não ser, portanto, compartilhado com aquela mulher na vitrine, nem com a turista que caminhava próxima a mim. O pensamento que se sucedeu foi mais pragmático. Começei a pensar sobre a sua condição jurídica e social. Sendo a prostituição uma profissão reconhecida na Holanda, às profissionais do sexo atribuem-se direitos trabalhistas e previdenciários. O exercício da profissão só é possível sob condições suficientes de higiene e salubridade, estabelecidas e controladas pelo poder estatal. A exposição sem pudores da mulher à minha frente ainda me desconcertava, mas agora eu via a sua face e ela me via. Nossos olhos se encontraram ainda uma última vez antes que eu deixasse a red light district, suspiraram algo... ainda não sei o que (não tenho pressa!). A prostituição é um ofício antigo - diz o ditado popular que se trataria da mais antiga das “profissões”. O reconhecimento dessa atividade enquanto ofício protegido pelas leis previdenciárias e do trabalho parece-se uma atitude corajosa, afinada com o senso pragmático de proteger os homens e mulheres que optam por comercializar o próprio corpo e aqueles que contratam os seus serviços. O tratamento do tema tem convocado, ao longo dos séculos, pensamentos e sentimentos de difícil conciliação: pecado, culpa, prazer, dor, doenças, nojo, exclusão, morte, vergonha; vida. Sentimentos tão basilares, cunhados pela história e pela cultura, que obstaculizaram, durante muito tempo, um tratamento do tema afinado com os desafios pelo tempo presente – que não tem que ser uma apologia simplista ao “progresso futuro”;

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desconectada da história e da tradição. O reconhecimento por parte do MTE brasileiro foi um importante passo rumo a inclusão social destes homens e mulheres que comercializam, por vontade, o seu corpo – quer concordemos com esta prática ou não. Um Estado democrático de direito, realizado em pleno, deve assumir a pessoa humana enquanto singularidade radical, cunhada pela liberdade, e garantir que as diferenças coexistam de maneira pacífica. Ainda me pego a pensar nas mulheres que vi na red light district... só sei que um dia, cumprindo-se o ciclo natural da vida, elas vão envelhecer e farão jus a aposentadoria – meu senso de moralidade e justiça, afinados, regozijam-se. *Ana Carolina de Faria Silvestre é Mestre e doutoranda em Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professora universitária. Co-autora das obras "Vidas à venda" e "Cidades Impossíveis". Integrante do grupo Democracia, Justiça e Direitos Humanos DJDH/NEV-USP. Autora de textos acadêmicos publicados em revistas jurídicas especializadas. EMAIL: [email protected]

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AFINAL, GOSTO SE DISCUTE? quinta-feira, julho 12, 2012 http://nucleotavola.com.br/revista/afinal-gosto-se-discute/ por Matheus Arcaro* Para Immanuel Kant, sim. Tanto é que ele dedicou uma obra inteira para as questões do gosto, a “Crítica da Faculdade de Julgar”, publicada em 1790. Para o filósofo supracitado é possível discutir o gosto porque uma discussão é diferente de uma disputa. Filosoficamente, uma disputa é uma batalha de argumentos que exigem demonstrações, a fim de que uma ideia prevaleça. Uma discussão é um processo de lapidação das opiniões, cuja finalidade é chegar a um acordo entre as partes. Assim, não se disputa sobre o belo, porém pode-se discuti-lo. Kant afirma ainda que a experiência estética é compartilhável e que a beleza é uma ideia universal da razão. Seu conteúdo e sua forma podem variar segundo circunstâncias históricas e segundo a subjetividade dos artistas, mas o sentimento de belo, fundamento do juízo de gosto, é universal. Partindo das proposições kantianas, ou seja, se o sentimento de beleza é universal e passível de partilha, por que, atualmente, vivemos uma carência de esteticidade? Hoje em dia, se perguntássemos a uma pessoa comum o que é um artista, provavelmente ela elencaria nomes de atores de televisão ou cantores populares. Escritores, pintores e escultores com quase toda certeza não seriam citados. Para este indivíduo, diferentemente da concepção Romântica, o artista não é o gênio criador, inspirado divinamente; é alguém que realiza performances. Por que esta percepção? Na contemporaneidade, a sociedade do espetáculo está intrinsecamente ligada à Indústria Cultural. Com a necessidade de fazer girar o capital, a indústria da cultura, de maneiras diversas, distorce o conceito de beleza porque sua finalidade é atingir um número grande de pessoas. "Onde as massas têm o poder de decidir, a autenticidade se torna supérflua, nociva e prejudicial", sentenciou Nietzsche. Sobre este ponto, a literatura é ilustrativa: por que livros, digamos, “palatáveis” (autoajuda, por exemplo) vendem muito mais do que livros complexos e bem escritos? Uma das respostas possíveis: a literatura genuína faz o leitor tropeçar.uma ideia universal da razão. Seu conteúdo e sua forma podem variar segundo circunstâncias históricas e segundo a subjetividade dos artistas, mas o sentimento de belo, fundamento do juízo de gosto, é universal. E não é todo mundo que está preparado para cair. Os “best sellers” são “best sellers” porque dizem o que o leitor espera. O menos preparado chama isso de “identificação” com a obra. “Puxa vida, este autor diz exatamente o que eu penso.” Não consegue perceber que o prazer da leitura está justamente em “fechar o círculo”. Este tipo de leitor jamais compreenderia Jean Paul Sartre, quando este afirmou que escrever é distanciar-se da linguagem instrumento e entrar na atitude poética, tratando as palavras como entes reais e não como símbolos estabelecidos. Seguindo o raciocínio sartreano, é lícito distinguir a linguagem: a cotidiana como “instituída” e a do escritor como “instituinte” (criadora, inventora de significações). Não é exagero afirmar que o homem médio contemporâneo perdeu a capacidade contemplativa; mais que isso, perdeu a capacidade de distinção estética, ao ponto de colocar no mesmo balaio Ivete Sangalo e Chico Buarque. As músicas (e as artes em geral) produzidas para a massa são estruturalmente muito parecidas. Isso é facilmente explicável: a Indústria Cultural desenvolve recursos técnicos para multiplicar

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aquilo que é considerado o traço mais marcante da obra de arte: ser única. (é o que Walter Benjamim define como “aura”). Diz ele em seu clássico livro “A obra de arte na era da reprodutibilidade”: “Fazerem as coisas ‘ficarem mais próximas’ é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como superar o caráter único de todos os fatos através de sua reprodutibilidade”. O anseio da modernidade em quebrar a transcendência dos objetos artísticos que provinha de sua unicidade fez esmaecer a aura. Novamente trago Nietzsche: "Quanto mais superior é uma coisa em seu gênero, tanto mais raramente ela é bem sucedida". Sob este viés, cai por terra qualquer discurso de “democratização da arte”. Mas, em contrapartida, tomando as palavras de Kant que atribuiu o status de partilhável à beleza, não seria válido dizer que a arte pode ser para todos, ainda mais se levarmos em conta o poder de disseminação da internet? Não é bem assim. Para penetrar nesse reino, o homem precisa de cultivo. Aquela pessoa cujo espírito é educado pelas artes é capaz de formular o juízo de gosto adequado; é capaz de compreender que a arte está muito além da utilidade e do prazer. Sim, é preciso que o indivíduo tenha instrumentos de julgamento; é preciso dar a ele possibilidade de escolha. Em termos simples: para que alguém afirme categoricamente que “pagode” seja o seu o gênero musical preferido, faz-se necessário o conhecimento de outros tipos de música, como a erudita. Afinal, a comparação é o princípio mais elementar de conhecimento, como nos mostra Platão em sua célebre alegoria da caverna: se se conhece somente as sombras, acredita-se que elas sejam toda a realidade existente. Talvez nosso erro esteja em querer julgar com as categorias da arte algo que, de antemão, não se propõe a ser arte, somente entretenimento. Michel Teló não quer produzir um sentimento de arrebatamento em nosso ser (a mais alta função da arte, segundo Kant). Com a Indústria da Cultura, o entretenimento invadiu o terreno da arte e a distanciou muito do cidadão comum. Isso fez com que o “relativismo estético” tomasse proporções assustadoras em nossa cultura. Todavia, trilhar o caminho oposto, ou seja, estancar os limites da arte pode ser extremamente perigoso. As consequências podem variar desde o engessamento da expressão (uma espécie de totalitarismo estético) até os mais brutais massacres como o protagonizado por Adolf Hitler. Afirmava ele: "Muito tempo atrás o homem era lindo, mas a miscigenação e a degeneração poluíram a Terra." Com a fixação de "embelezar o mundo", Hitler arquitetou seu plano de "higienização da humanidade", que culminou no holocausto. Atenuados os dois extremos (dogmatismo e relativismo), em quais veredas, então, podemos vislumbrar a arte? Obviamente, as respostas são inúmeras. Talvez a definição de artista de Merleau-Ponty nos ajude. Dizia ele que o artista é aquele que fixa e torna acessível aos demais humanos o espetáculo de que participam sem perceber. Ou a de Fernando Pessoa, que se faz ouvir pela boca de Alberto Caeiro: “o artista procura o pasmo essencial, que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras”. A arte pode e deve ser a manifestação da essência da realidade que está amortecida em nossa existência diária. Contudo isso não significar atribuir à arte um papel moralizante. A arte não deve melhorar ninguém, não deve sequer ser agradável. Theodor Adorno toca nesse ponto ao escrever em sua “Teoria Estética”: “À aceitação conformista da concepção corrente da obra de arte como bem cultural agradável, corresponde um hedonismo estético que expulsa da arte toda a negatividade para os conflitos pulsionais da sua gênese...” A arte deve, sim, mostrar a condição humana perante a vida; mostrar o humano em todas as suas possibilidades, inclusive na esfera mais trágica e horrorosa. Parafraseio novamente Nietzsche: “Só a arte pode transformar a ideia de repugnância sobre os aspectos horríveis e absurdos da existência em

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representações com as quais se torna possível viver.” E ainda: “a vida só se justifica como fenômeno estético”. Sim, amigos! Homem, concomitantemente, como artista e obra de arte. A arte é um “estado de vigor animal”, a mais visceral afirmação da vida. Talvez essa “metafísica de artista” seja utópica. Mas lançada ao horizonte, tal percepção faz com que eu me mova e, mais que isso, que eu continue a respirar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: PLATÃO. A República KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade de Julgar NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia _________________. Assim falou Zaratustra ADORNO, Theodor. Teoria Estética BENJAMIM, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade SARTRE, Jean Paul. O que é a literatura? CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia *Matheus Arcaro é formado em Comunicação Social e também em Filosofia. Diretor de Criação publicitária e professor de Filosofia e Sociologia.Atualmente faz pós-graduação em História da Arte. Além de redator, é também escritor, com artigos, crônicas e poesias publicados em diversos portais e revistas. Nas poucas horas vagas arrisca-se como artista plástico.

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Apocalypse Now, Please quinta-feira, julho 12, 2012 http://nucleotavola.com.br/revista/apocalypse-now-please/

por Léo Tavares* Sei que não foram sacerdotes mesopotâmicos que adivinharam esse meu destino até agora pouco surpreendente. É claro que quando se debruçavam sobre o fogo eles estavam mais ocupados em ver dilúvios, pragas, tremores de terra e colunas de templos a desabar sobre o mar. Civilizações inteiras desaparecendo no cosmos, e as próprias estrelas se modificando lentamente em espetáculos mais sublimes e terríveis que o meu despertar comer dormir numa cidade que ainda não viu catástrofes bíblicas. A única coisa que me remete a essas estrelas é uma certa lentidão evolutiva. Mas não me interessa a evolução física dos homens. Se todos nós ainda temos resquícios de rabo, é das coisas muito particulares que falo; coisas cujas estruturas, se é que existem, me parecem mais complexas e imutáveis do que a matéria que forma os organismos vivos. Hoje vemos o átomo. Queria poder ver os sonhos, os pensamentos, as fantasias. Seria bom poder entender porque me sinto mais eu pela minha vontade de sorriso do que pela visão do meu rosto sorrindo, porque quando eu choro eu sou mais o meu desconsolo do que uma cara patética a se contorcer e uma voz entrecortada tentando verbalizar o indizível da dor. É fácil demais ser patético através do choro, e o ridículo camufla a beleza que existe nas lágrimas, que é uma beleza que não se pode enxergar. Queria ver como são belas, às vezes, as vontades de choro. Queria saber o nome de um sentimento que me nasceu um dia e ficou até hoje. Descobrir se ele se parece remotamente com alguma coisa chamada amor ou vontade de amor, ou amargura de amor, ou ódio. Uma mão tem cinco dedos, e nenhum deles é igual ao outro. Queria saber se o amor também tem cinco dedos e se assim for, é alguma

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coisa que unge, que rasga, que afaga, que delira e que apaga, tudo ao mesmo. Se esta minha lentidão em envelhecer minha alma me torna um irmão espiritual de estrela, quando eu choro me nasce um vinco a mais e meu corpo está mais próximo de ser poeira. Hoje desisti de me olhar no espelho e fui mais eu em soluços quando enfiei a cara no travesseiro e fui entrando no escuro: cada vez mais eu, cada vez distinguindo melhor no cosmos o envelhecimento magistralmente belo das estrelas -é preciso que se dê adjetivos como esse às estrelas e às coisas de estrelas, e nesse caso até o lugar-comum e as redundâncias merecem perdão. A nós, nada de monumental. Exceto afirmar que estamos monumentalmente entediados nessa cidade. Incomensuravelmente sozinhos nesse mundo todo, e antes que possamos olhar com nosso olho bem dentro do olho de um sonho, nos desintegraremos sem alardes e sem legado. Se a nossa História comporta as adivinhações mesopotâmicas, não comporta as adivinhações da minha história, minúscula e repleta de casualidades em livrarias de esquina e outros leves sobressaltos. Mas eu não quero fazer parte dessa História maior, nem quero a pretensão de profecias às minhas pequenas vertigens diante de certos olhares alheios. Aos sacerdotes, prefiro os cineastas, e aos sumérios, prefiro os poloneses. Krzysztof, por exemplo. Esses que me incutiram no espírito um desejo não físico de olhar as coisas. Nesse sentido, ainda que incapazes de transmutar o eterno vazio em paisagem, alguns terremotos e um sem-fim de dilúvios me atravessam todos os dias, insuspeitos e ínfimos para o mundo como a morte de uma formiga. Aparentemente, a cidade continua tranquila e todos nós vamos chorar ridiculamente por algunsmilhões de anos ainda, ignorantes dos sentimentos sem nome, com nossos microscópios e átomos e tédios e vincos e resquícios de rabo. *Publicado originalmente na Revista Macondo/ edição nº 04. ** Léo Tavares é nascido em São Gabriel, RS. Há doze anos reside em Brasília, onde estuda Artes Visuais na UnB. Participou de publicações coletivas de contos e poemas, entre eles a antologia do Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio, edição 2007, e do Concurso Nacional de Poesia Cassiano Nunes, edição 2009. Foi finalista do Prêmio SESC de Literatura em 2010, com o livro de contos Os Doentes em Torno da Caixa de Mesmer. Participa de um grupo de poesia chamado Nexo Grupal. Publicações online: Blog pessoal: http://mobileazul.blogspot.com Blog do coletivo de poetas Nexo Grupal: http://nexogrupal.blogspot.com Colaborador no blog Cultura Visual cinematográficas: http://culturavisualqueer.wordpress.com

Queer,

com

críticas

E-mail para contato: [email protected]

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Psicólogo ou artista: um convite à reflexão sobre os desafios de criar a identidade profissional quinta-feira, julho 12, 2012 http://nucleotavola.com.br/revista/psicologo-ou-artista-um-convite-a-reflexao-sobre-os-desafios-de-criara-identidade-profissional/

por Murilo Moscheta Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.

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(Cora Coralina)

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A vida está em movimento. Porque eu fiquei um tempo longe da minha cidade, grande parte de minha rotina tem sido reencontrar pessoas que eu amo e que fazem parte de minha vida. Encontrei-me com uma amiga na quarta feira passada que me contou sobre seus planos de aposentar-se nos próximos anos. Outra amiga me contou sobre sua transição para uma nova cidade, na qual ela agora inicia sua carreira como funcionária pública. No mesmo dia almocei com uma amiga que entre lágrimas me falou de como tem sido difícil superar a morte inesperada de seu marido, há dois meses. Enlutada também está uma outra amiga que luta bravamente para reconstruir a vida após uma dramática separação. Meu segundo sobrinho nasceu há 3 semanas. E há 2 semanas não vejo mais meu vizinho sentado na varanda como fazia de costume, sei que está internado em alguma UTI. Minha grande amiga com quem dividi consultório por muitos anos me ligou na semana passada para me dar boas-vindas. Ela estava em um hospital aguardando sua primeira sessão de quimioterapia para tratamento de Lúpus. Nesses meus encontros, eu revejo meus amigos ao mesmo tempo que novamente me despeço deles. Estou de mudança – na terça-feira volto para Maringá, no Paraná, terra que deixei há 11 anos, quando vim estudar em Ribeirão Preto. Para muitos de meus amigos, as razões pessoais e profissionais de minha mudança não soam convincentes e eles argumentam que eu não posso deixar esta vida estável que eu arduamente construí em Ribeirão Preto com tanto trabalho ao longo de anos. E eu me pergunto, onde é que está o estável de que eles falam? Porque para todo o canto que eu olho, eu vejo a vida em seu movimento. O silêncio, a quietude e a estabilidade são ilusões temporárias. Logo a vida vem nos chacoalhar dentro seus vagões e nos lembrar que o trem não estava parado, estava apenas marchando em trecho sereno. A vida é assim – diz Guimarães Rosa – esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. A esse contínuo movimento da vida, a psicologia chama desenvolvimento. E é sobre isso que quero falar com vocês. Mas acho importante fazer uma ressalva: existem tantos desenvolvimentos quanto psicologias (é claro). Mas muitas psicologias compartilham o pressuposto de que o desenvolvimento organiza e é organizado ao redor de uma identidade que progride na medida em que o indivíduo avança em uma certa direção. Em geral essa direção é única e demanda também uma única identidade. Mas e se a identidade for múltipla? E se o desenvolvimento ao invés de progredir linearmente, acontecer em diversas direções simultaneamente? Eu penso que a noção de que nossa história se dá com uma certa linearidade decorre da nossa narrativa e não da nossa vida. Ao narramos nossa vida dentro de uma estrutura narrativa emprestamos à vida esta organização. E para fazer isso, editamos aquilo que não combina com a história: somem os becos, os atalhos, as ruas sem-saída, as hesitações, as vagueações em círculos... Fica só uma história passada a limpo. E essa história passada a limpo cria a ilusão de uma única personagem. Uma identidade. Essa a quem chamo EU. E se àquilo que chamo “SOU” for na verdade um “SOMOS”? Aqueles que vivem a chamada carreira acadêmica são frequentemente convidados a produzir uma narrativa da sua história profissional chamada Memorial. O memorial é o currículo construído em forma de narrativa. Uma amiga que prestou um concurso para a área da educação há um tempo teve que escrever seu memorial. Hoje ela pensa em prestar um outro concurso, em uma área bem diferente. Ela me contou que terá que reescrever seu memorial do modo que sua narrativa produza uma personagem que pareça atrativa para aqueles que fazem a seleção. E eu não falo personagem com nenhuma crítica. Não acho que exista um verdadeiro eu por detrás da ficção da personagem. Se nossa noção de quem somos se dá dentro de uma narrativa, e se toda narrativa é limitada e pede por uma edição, se somos sempre um pouco mais do que as histórias que podemos e sabemos contar de nós mesmos, então nossas personagens não são falsas representações de quem somos, são representações fragmentárias, sempre incompletas. Não estou dizendo que não haja falsas personagens. Talvez, uma personagem possa ser sim um impostor – ou

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seja, construída com mentiras deliberadas, programadas para iludir, tirar vantagem, explorar, oprimir e roubar o outro. Portanto, o desenvolvimento de que estou falando, se dá em múltiplas direções e compõe múltiplas possibilidades de narrar uma identidade performática e circunstancial. Este desenvolvimento não é aquisitivo, é criativo. E ele deixa de acontecer quando nos alienamos. Mas eu estou indo muito rápido... O que é desenvolvimento então? É o processo de nos tornarmos o que somos, por meio da performance daquilo que ainda não somos. Esta perspectiva de desenvolvimento é fundamentada na teoria de Lev Vygotsky. E foi desenvolvida por Fred Newman e Lois Holzman em Nova York, no East Side Institute para Terapia Social. Um exemplo: Como o bebê aprende a falar? O bebê balbucia alguns sons. Os adultos ao redor completam o sentido daqueles sons: “você quer água!” “é o cachorro!” “a mamãe”. Objetivamente o bebê não está falando nada. Ele não conhece, não domina os signos que compõem a linguagem. No entanto os adultos se relacionam com ele “como se” ele fosse um ser falante. O bebê é um “ator” que faz a performance da fala – fala que ele desconhece. Os adultos (atores coadjuvantes) completam e dão suporte à performance do bebê. Quando escutamos o bebê dizer: ããê, ããê, dizemos: “Ah, você quer a mamãe!” Não conheço ninguém que diz: vou ficar aqui olhando pra sua cara até que você aprenda a dizer corretamente o que você quer! Neste sentido, os adultos não se relacionam apenas com aquilo que o bebê é, eles incluem aquilo que o bebê está se tornando. Por meio de sua desajeitada performance de um ser-falante, o bebê torna-se um ser-falante. Ele não aprende a falar primeiro para depois começar a falar. Ele se torna o que é, por meio da performance daquilo que ainda não é. Eu gosto desta perspectiva de desenvolvimento porque me dá esperança. Muitas vezes passamos a maior parte do tempo nos relacionando com as pessoas, com nossas escolhas, com a vida como se “fossem”, e esquecemos de incluir a percepção daquilo que estão “se tornando”. E aquilo que estamos nos tornando é muitas vezes o aspecto mais importante daquilo que somos. Em um relacionamento por exemplo. A gente diz: meu marido é, minha mulher é, eu sou... E definimos o outro, e a nós mesmos, excluindo aquilo que estamos nos tornando. Quem estamos nos tornando nesta relação? E como eu posso responder a meu companheiro de modo a participar daquilo que ele está se tornando? E em um curso de psicologia? Como posso me relacionar com os alunos olhando para aquilo que eles estão se tornando? Como posso ser parceiro de meus alunos e ajudá-los a se engajar em um processo de criação, e não de aquisição, de suas identidades profissionais? Um exemplo: Quando era professor, meus alunos, às vésperas da formatura se apresentavam nas supervisões de estágio com alto nível de angústia. Eles se perguntavam e se debatiam com a escolha de que tipo de psicólogo eles seriam. E eles falavam como se houvesse um cardápio a partir do qual eles pudessem escolher. Para aqueles que desejavam exercer a psicologia clínica a escolha era bem estreita: seguiriam uma perspectiva psicanalítica ou comportamental. E esse era o estreito horizonte de suas possíveis escolhas. Muito estreito. Eu respondia: escolhe qualquer um, tanto faz, é teu ponto de partida, não de chegada. Meus alunos sofriam porque entendiam que a abordagem que escolhessem, determinaria o tipo de terapeuta que eles seriam. Pensavam que esta escolha determinava um caminho que deveriam percorrer, sem erros, até chegarem ao seu destino: o terapeuta ideal. Mas a abordagem não faz o terapeuta

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– é o terapeuta que cria, recria, transforma sua abordagem. Esta escolha – e talvez toda as escolhas que fazemos – são pontos de partida e não pontos de chegada. Escolhemos de onde começamos (e a gente está sempre no começo, até mesmo quando chegamos ao fim) mas não podemos prever aonde chegaremos. Decidimos para onde vamos e chegamos, geralmente, em algum outro lugar. Cecília Meireles fez um poema intitulado Desenho que diz: Traça a reta e a curva, a quebrada e a sinuosa Tudo é preciso. De tudo viverás. Cuida com exatidão da perpendicular e das paralelas perfeitas. Com apurado rigor. Sem esquadro, sem nível, sem fio de prumo, traçarás perspectivas, projetarás estruturas. Número, ritmo, distância, dimensão. Tens os teus olhos, o teu pulso, a tua memória. Construirás os labirintos impermanentes que sucessivamente habitarás. Todos os dias estarás refazendo o teu desenho. Não te fatigues logo. Tens trabalho para toda a vida. E nem para o teu sepulcro terás a medida certa. Somos sempre um pouco menos do que pensávamos. Raramente, um pouco mais. O perigo de nos relacionarmos com as escolhas como se fossem pontos de chegada, e não de partida, é deixarmos de nos ver como autores da história que estamos construindo e perdermos a perspectiva criativa. Na “lógica da chegada” as escolhas ganham um caráter definitivo. Viram produtos na prateleira

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da existência. O tempo e o percurso do eu-atual até o eu-desejado fica encurtado e ignorado. Quando o destino passa a valer mais que o trajeto a viagem perde a graça – ela é apenas tempo e espaço que nos separa de nosso desejo. Todo horizonte fica reduzido a este grão de sonho. Eu estou falando da diferença entre produto e processo. Meu problema com as teorias que definem identidade como algo único, razoavelmente estável e linear é que elas fazem a identidade parecer um produto. Identidade é um processo. Quando perdemos a dimensão do processo e nos relacionamos apenas na dimensão dos produtos estamos alienados. Processo, produto e alienação são termos usados por Karl Marx em sua análise da formação da sociedade moderna capitalista. O trabalhador alienado é aquele que não se reconhece naquilo que produz, porque não mais participa de todo o processo de produção. Ele aperta parafusos em uma linha de montagem, mas não participa da confecção daquele televisor (por exemplo). Ele não sabe fazer um televisor – ninguém no chão da fábrica o sabe. Ele aperta parafusos o dia todo em troca de um salário que no fim do mês, quem sabe, vai permitir que ele compre um televisor. O homem alienado é o homem consumidor. Fácil de ver no homem da fábrica de Marx... Muito mais difícil de ver em nós mesmos hoje. Mas eu vou tentar... Trabalhei muito tempo em consultório. Conheci muitos pacientes. Vi muitos homens e mulheres alienados, tentando consumir, comprar uma terapia que lhes desse uma outra identidade. Também dei aula. Vi muitos alunos alienados. Alunos que compravam um curso que depois de cinco anos lhes conferiria o direito de uma nova identidade: a de psicólogo. Alguns eram maus alunos. A eles pouco importava o que acontecia entre o primeiro e o quinto ano do curso. Eles estavam olhando apenas para o produto “psicólogo-diploma” ao qual teriam direito após pagar as cinco prestações anuais de “ser-estudante”. Mas outros alunos alienados eram bons alunos. Liam, estudavam e cumpriam diligentemente suas obrigações como estudantes. Pensavam que assim pagavam suas cinco prestações e que no final seriam possuidores de uma nova identidade. Digo alienados porque para eles ser psicólogo era fruto de um “cumprir-de-tarefas”. Abdicavam de sua possibilidade criativa e submetiam-se ao consumo de uma certificação. Poucos alunos se relacionaram com o curso de psicologia como um processo de criação daquilo que um dia eles poderiam chamar de “psicólogo”. Algumas pessoas me estimulam a terminar logo meu doutorado para que eu possa prestar concursos públicos para professor em universidades federais e estaduais. Eu entendo. Eu também sinto esta urgência muitas vezes. Mas olhar para o fim do doutorado, sobretudo pensando no “para-que-eu-possa”, torna meu doutorado um produto, e me aliena do processo pelo qual eu me torno um doutor. O que me fará doutor, se um dia eu for, não é o término do meu doutorado, mas o processo de criação daquilo que em mim, no futuro, eu chamarei de “doutor”. Aquilo que torna vocês psicólogos não é a conclusão do curso, é o processo pelo qual vocês criam o psicólogo que serão. É tão óbvio que a gente esquece. Mas sei que é ao mesmo tempo muito difícil resistir à alienação em um mundo comandado pela lei da aquisição. E o discurso do consumidor é tão sedutor que a gente o empresta para variadas dimensões da nossa vida. Relacionamentos, por exemplo, são terreno fértil para a lógica do consumo. Política também. Meu voto pode ser a moeda que compra um “produto-candidato”. Depois das eleições eu, no máximo, reclamo que o produto não corresponde à propaganda. Se política fosse processo, meu voto seria o início da criação de uma relação com o candidato. Assisti ao programa eleitoral gratuito e não vi nenhum candidato me convidar para criar algo com eles. Todos se apresentavam como produtos desejáveis (ou indesejáveis) e me pediam para adquiri-los. E suas promessas tinham o intuito de me apaziguar: “Tudo o

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que você precisa fazer é votar em mim. Depois, deixa comigo que eu cuido de você!” Qual é o candidato que te convida a fazer algo além do voto? A lógica que reduz política ao ato de votar nos aliena do processo histórico. Não fazemos história, compramos com nosso voto, homens que a farão para e por nós. E já não mais acreditamos na história que eles escreverão. Vivemos dentro de um terrível discurso de desesperança. O mundo nos é apresentado como um mundo sem futuro: previsões apocalípticas sobre o destino do planeta, descrença na capacidade humana de transformação, supervalorização da destrutividade. Essa descrença, que é sobretudo uma descrença na humanidade, demanda um desinvestimento no universo político e social. Vamos nos encolhendo, uma vez que já não nos vemos capazes de lidar e intervir na miséria ao nosso redor. Nosso horizonte de sonhos e projetos vão ficando cada vez mais individuais, autocentrados, solitários. Sem esperança de que podemos participar como criadores de uma história coletiva (essa história política e social), nos refugiamos na criação de nossa própria história individualizada, uma história que não nos ampara porque não transcende a nós mesmos. E penso que essa é a alienação que muita psicologia pode promover. A ênfase no indivíduo, no descobrir-se, aperfeiçoar-se, amadurecer-se como se a resposta para nossas insatisfações estivessem todas nesse movimento de imersão em si mesmo. Mas até que ponto você pode se desenvolver antes de esbarrar nos limites do contexto em que você vive, e de cujo desenvolvimento você não tem se ocupado? A psicologia que aliena é aquela que favorece o desligamento entre sujeito e o universo social no qual ele vive. É aquela que desencoraja o sujeito a se ver como agente de uma história maior que diz respeito a ele e a humanidade da qual ele faz parte. É aquela que promete que a mudança acontece apenas quando nos afundamos em nós mesmos e às custas de mais e mais consumo de terapia. A terapia que aliena é aquela que ao prometer transformação pessoal, não cultiva o desejo e o potencial do paciente de transformar também o mundo. A saída para a alienação está no resgate de nosso potencial criativo. É ao criarmos que reativamos nossa voz histórica e assumimos nosso lugar como autores e transformadores do mundo onde vivemos. E este tem sido meu desafio atual: desalienar-me e reativar minha capacidade criativa e autoral. Meus pais tiveram 3 filhos. Meu irmão mais velho tornou-se artista plástico. Meu irmão mais novo tornou-se ator, diretor e produtor de teatro. Eu tornei-me psicólogo. Talvez por isso eu esteja empenhado em ver a psicologia também como uma criação artística. Para mim é muito importante construir uma psicologia criativa, artística e poética. E meu desafio atual é fazer dessa arte um modo de transformação política e histórica. Qual é o seu desafio? Em que você tem se alienado e de que forma você pensa que pode reassumir a autoria da sua vida? Enquanto estudante, como você têm criado o psicólogo que você vai ser? Você cria ou consome seu curso de psicologia? Como você pode abraçar suas escolhas como pontos de partida Como você pode desenvolver um olhar para aquilo que a vida está se tornando, e não apenas para aquilo que ela é? Para terminar, eu gostaria de ler um trecho de um livro de Mia Couto. Eu queria ler este trecho para minha amiga que vai se aposentar, para aquela que começa uma carreira em nova cidade como funcionária pública, para aquela que vive o luto do marido e para a outra que recria a vida após a separação, para o meu pequenino sobrinho e para o meu vizinho internado, para minha amada amiga que convive com o Lúpus, para mim e para o meu parceiro que vamos mudar de cidade na terça feira, para vocês, alunos e professores que criam suas vidas e identidades profissionais.

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“Não chegamos realmente a viver durante a maior parte da nossa vida. Desperdiçamo-nos numa espraiada letargia a que, para nosso próprio engano e consolo, chamamos existência. No resto, vamos vagalumeando, acesos apenas por breves intermitências. Uma vida pode ser virada do avesso num só dia, por uma dessas intermitências.” Este trabalho foi: Comunicação apresentada na Semana de Psicologia das Faculdades Integradas de Bebedouro FAFIBE, Bebedouro no dia 27 de agosto de 2010. Publicado originalmente na edição nº 143 - março 2012, do Jornal/Revista Alumiar. *Murilo Moscheta é psicoterapeuta e professor de psicologia na Universidade Estadual de Maringá. É mestre e doutor pela Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto. Também trabalha como designer gráfico e está atualmente investindo em um projeto de adaptação e montagem teatral. Escreve para o portal de notícias Folha de Maringá: http://www.folhademaringa.com.br/murilomoscheta

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O problema do "Eu" em David Hume quinta-feira, julho 12, 2012 http://nucleotavola.com.br/revista/o-problema-do-eu-em-david-hume/

por Francisco de Assis Santos Sobrinho* e Ronaldo José Moraca** Resumo Inaugurando a modernidade, Descartes desvela o ‘Eu’ como substância pensante em seu cogito. Locke e Berkeley iniciam o questionamento dessa “substância pensante”, dando outros rumos para concepção do ‘Eu’ como ideia complexa. Hume, no entanto, nega que exista uma distinção entre os vários aspectos de uma pessoa e o indivíduo misterioso que supostamente transporta todas estas características. Porque no fundo, como Hume afirma, quando se começa a introspecção, notamos um grupo de pensamentos e sentimentos e percepções e tudo isso, mas nunca nos apercebemos de uma substância à qual possamos chamar de ‘Eu’. Por isso, tanto quanto podemos dizer, conclui Hume, não há nada relativamente ao ‘Eu’ que esteja acima de um grande pacote de percepções transitórias. Temos que notar que, na perspectiva de Hume, não há nada ao qual estas percepções pertencem. Para o autor do Tratado da Natureza Humana (2001), se o ‘Eu’ existisse, teria que ser uma ideia; e se fosse uma ideia, teria que derivar de uma impressão – sensação ou emoção; e se derivasse de uma impressão, esta deveria apresentar as mesmas propriedades que caracterizam o ‘Eu’. Uma delas, porém, é a identidade. Ora não há nenhuma impressão que permaneça sempre a mesma durante toda a vida da pessoa humana. Portanto, o ‘Eu’ não pode derivar de uma impressão e, não o podendo, não é uma ideia; e, não o sendo, deve relegar-se para o número das ilusões. O ‘Eu – sujeito’ nem existe como imagem que se apodera das outras mediante a memória. Vemos assim que, nesta linha do pensamento inglês, a ocultação do ‘Eu’ como ser que pensa, quer e sente, fica definitivamente consumada restando somente à concepção de um novo ‘Eu’ que resulta do conjunto de nossas percepções.

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Palavras Chaves: David Hume - Eu – Substância – Percepções – Idéias - Impressões Summary Inaugurating modernity, Descartes unveils the "Self" as thinking substance in his cogito. Locke and Berkeley took up the questioning of this "thinking substance", giving other directions for the design of the "Self" as a complex idea. Hume, however, denies that there is a distinction between the various aspects of a person and the mysterious individual who supposedly carries all these features. Because deep down, as Hume says, when the introspection begins, we can notice a group of thoughts, feelings, perceptions and all that, but never realize a substance to which we can call "Self". So far as we can tell, Hume concludes, there is nothing for the “Self” that is above a large package of transitional perceptions. We must note that in view of Hume, there is nothing that these perceptions belong to. To the author of the Treatise of Human Nature, if the “Self” existed, it would have to be an idea, and if an idea, it would have to derive from an impression - a feeling or emotion, and if it derived from an impression, it should provide the same properties that characterize the “Self”. One of them, however, is the identity. Well, there is no impression that always remains the same throughout the life of the human person. Therefore, the “Self” cannot derive from an impression, and if cannot, it is not an idea; and, failing that, should relegate to the number of illusions. The “Self-subject" does not even exist as an image that takes hold of the others by memory. Thus we see that this line of English thought, the concealment of the “Self” as a being that thinks, wants and feels, is finally consummated, only the finished design of a new 'Self' of the totality of our perceptions. Keywords: David Hume – Self – Substance – Perceptions – Ideas – Impressions Introdução O problema do ‘Eu’ em Hume é significativo na História da Filosofia e foi determinante como escolha do tema para este artigo por dois motivos: Primeiro porque aproximadamente cem anos separam o cogito cartesiano – uma revolução paradigmática no pensamento filosófico ocidental – e a concepção humeana do ‘Eu’, tido como ilusão. Ou seja, cem anos separam uma revolução paradigmática no campo ontológico e a tese que derruba os conceitos do novo edifício erigido na Filosofia Moderna. E será precisamente sobre esta contraposição entre o cogito cartesiano e o ‘Eu’ em Hume que este artigo discorrerá. O segundo motivo determinante para este artigo é o fato de que, apesar de outros pensadores empiristas haverem manifestado uma nova compreensão do ‘Eu’, lançando as bases da dissolução do conceito cartesiano, Hume foi o primeiro pensador que explicou e explicitou o desaparecimento do ‘Eu’, como será esclarecido no decorrer deste texto. Contudo, o presente artigo não se deterá apenas na contraposição entre Descartes e Hume na questão do ‘Eu’, mas se estenderá principalmente, sobre a argumentação humeana para o ‘desaparecimento do Eu’. Será necessário compreender o empirismo que determina seu sistema filosófico, missão que este texto não se furtará. E, para cumprir este objetivo – dissecar a argumentação humeana que fundamenta o ‘desaparecimento do Eu’- ainda será necessário compreender as noções de crença, percepção e ilusão em Hume. Na última parte, reservada à conclusão, resta averiguar as críticas a que está sujeita a tese humeana, inclusive as que o próprio pensador se submeteu, segundo os apêndices que apôs em seu Tratado. A ideia e o ‘Eu’

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Será na filosofia cartesiana que o ‘Eu’ se apresentará como um legítimo problema filosófico. Em sua obra Discurso do Método, mas principalmente, nas Meditações Metafísicas, René Descartes define de forma factual, em seu cogito, o res cogitans como substância pensante. Supondo que todo o seu conhecimento adquirido até então, não era mais verdadeiro que as ilusões de seus sonhos, Descartes afirma: “Mas, logo em seguida adverti que, tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava”. (DESCARTES, 1973, p.54). Essa posição em definir a “mente” como substância, separada e independente do corpo (res extensa) foi um dos fundamentos do racionalismo na filosofia moderna, posição essa que foi muito discutida ao longo da história da filosofia. O surgimento do empirismo com Locke e Berkeley fez com que a discussão sobre o problema do ‘Eu’ fosse mais intensa, uma vez que as teses defendidas por estes autores contrariavam as teses cartesianas. Locke fez uma análise da ideia de substância, limitando-a como uma ideia complexa, defendendo a tese que a ideia de continuidade da autoconsciência não envolve necessariamente a continuidade de alguma substância imaterial como sustentará Descartes. A crítica idealista de Berkeley concentra-se em seu imaterialismo. Negou a inexistência das coisas materiais e reafirmou a hegemonia da percepção sobre a matéria, defendendo a tese de que o mundo físico e seus conteúdos não podem ser compreendidos como existindo independentes da mente. Porém, foi Hume, o primeiro a tornar explícito e explicado o desaparecimento do ser do ‘Eu’ na percepção reflexiva: “Há alguns filósofos que imaginam que a todo o momento temos consciência íntima do que chamamos o nosso eu; que sentimos a sua existência e a sua continuidade na existência; e que os certos, para além da evidência de uma demonstração, da sua identidade e simplicidade perfeitas. A sensação mais forte e a paixão mais violenta, dizem eles, em vez de nos distraírem dessa visão apenas fixam mais intensamente e fazem-nos considerar a sua influência sobre o eu pela sua dor ou pelo seu prazer. Tentar fornecer uma prova mais completa disto seria enfraquecer-lhe a evidência, uma vez que nenhuma prova pode ser derivada de um fato do qual estamos tão intimamente cônscios; e não há nada de que possamos estar certos se duvidarmos deste fato”.(HUME, 2001, p.299). Nesta passagem, a referência a Descartes é clara. A atitude e o método do filósofo francês desenham-se na sua postura e nos seus passos identificadores. Nota-se, porém, uma lacuna: não é mencionada da natureza do ‘Eu’ a função ativa de quem pensa. Apenas se explicita a sua identidade e a sua simplicidade. Semelhante omissão vem condicionada pelo ponto de vista assumido por Hume, como veremos. Aquelas duas características, identidade e simplicidade, já não podem ter, por isso mesmo, conteúdo igual ao que possuem no autor das Meditações. Esta identidade e esta simplicidade não dizem respeito ao ser que age no pensamento. Limita-se a caracterizar o conteúdo objetual representado. Semelhante desvio denuncia-se logo no juízo que emite sobre tal posição: “Infelizmente todas estas afirmações positivas são contrárias a essa mesma experiência que se invoca em seu favor; e não temos nenhuma Ideia do eu da maneira que está aqui explicada. Com efeito, de que impressão poderia derivar esta Ideia? É impossível responder a esta pergunta sem manifesto absurdo e

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contradição; e, contudo é uma pergunta a que necessariamente há que responder, se quisermos que a Ideia do eu passe por clara e inteligível. Deve haver uma impressão que dê origem a toda Ideia real. Mas o eu ou pessoa não é uma impressão, mas aquilo a que se supõe que as nossas várias impressões têm referência. Se alguma impressão gerir a Ideia do eu, essa impressão deve permanecer invariavelmente a mesma em todo o curso da nossa existência, uma vez que se supõe que o eu existe dessa maneira. Ora não há uma impressão constante e invariável”.(HUME, 2001, p.299,300). A interrogação aponta para o fundamento da crítica. Segundo Hume, de fato, todas as ideias derivam de impressões. Para uma satisfatória compreensão da sua posição, há que atender à fundamentação de tal princípio e à significação de ideia e de impressão. E não poderemos obter tais esclarecimentos sem regressar ao ponto de partida do pensamento humeano. O primeiro problema posto por Hume, diz respeito à origem das ideias. A sua posição resulta do condicionamento cultural criado desde Locke. A maneira, porém, que é posto, envolve uma novidade. Para Hume, todas as percepções da mente humana, ou seja, todo nosso conhecimento, se resolve em duas distintas espécies: impressões e ideias. Ambas, impressões e ideias, correspondem às percepções, que tem origem na experiência. Contudo, as impressões, mais fortes, originam-se das emoções e sensações. Já, as ideias, mais fracas, são raciocínios e pensamentos derivados das impressões. Portanto, a problemática humeana reside no fato de que para a ideia do ‘Eu’ ser clara e inteligível, necessariamente seria derivada de uma impressão e esta, por sua vez, oriunda da percepção. O que equivale a dizer que o ‘Eu’ deveria ser percebido inalterado em todas as ocasiões. O que, de fato, não ocorre. Desta premissa decorre o conceito de que o ‘Eu’ é uma crença. A crença e o ‘Eu’ Para Hume, crença também é um modo de sentir. Ele explica que a natureza da crença consiste em ideias ligadas a uma impressão presente ou ideias que acompanham a memória. O que equivale a dizer que ‘crer’ é uma impressão imediata dos sentidos ou uma repetição dessa impressão na memória. Contudo, o filósofo investiga a ocorrência de ideias sobre as quais o sujeito não assinta. Hume afirma que quando outra pessoa lhe apresenta proposições que ele próprio não concorde, consegue, apesar da sua incredulidade, compreender completamente e formar as mesmas ideias que lhe foram apresentadas. Essa operação da imaginação demonstra que podemos conceber as mesmas ideias que outras pessoas, mesmo que não concordemos com elas. Assim, a pergunta que fica é: Como podemos acreditar ou não acreditar numa proposição? Para tentar esclarecer, Hume afirma: “A resposta é fácil em relação a proposições provadas por intuição ou demonstração. Neste caso quem dá o seu assentimento não só concebe as ideias de acordo com a proposição, mas é necessariamente determinado a concebê-las dessa maneira particular, quer imediatamente, quer por intermédio de outras ideias. Tudo o que é absurdo é ininteligível e a imaginação não pode conceber qualquer coisa contrária a uma demonstração. Mas visto que nos raciocínios causais, relativos a questões de fato, esta necessidade absoluta não pode ter lugar e a imaginação é livre de conceber ambos os lados da questão”. (HUME, 2001, p.131). Não satisfeito com sua própria resposta para questão da crença, Hume questiona em que consiste a diferença entre incredulidade e crença, sabendo que, frente a uma mesma proposição, é igualmente possível assentir (crer), quanto não crer. Isto é, não basta dizer que a incredulidade deriva do simples fato de uma pessoa não estar de acordo com uma proposição que lhe tenha sido apresentada – a despeito de

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haver concebido a proposição da mesma forma que lhe foi apresentada. Esta resposta não é satisfatória, não porque não consegue abarcar o problema, mas porque não mostra toda a verdade em si. É necessário pensar que, em todos os casos que discordamos das proposições apresentadas, acabamos de conceber ambos os lados da questão. Como devemos apenas acreditar em um, é a crença que deve estabelecer a diferença entre ambos os lados, nos mostrando qual proposição devemos acatar e qual devemos refutar. “Podemos misturar, unir, separar, confundir e variar as nossas ideias de cem maneiras diferentes, mas enquanto não aparecer um princípio que fixe uma destas diferentes situações, na realidade não temos opinião. E visto que este princípio evidentemente nada acrescenta às nossas ideias precedentes, somente pode alterar a maneira como as concebemos”. (HUME, 2001, p.132). Assim, podemos afirmar que a noção de ‘Eu’, se apresenta como uma crença derivada de nossa experiência. A percepção e o ‘Eu’ A noção de percepção não vem sem alguma filosofia anterior. Nela está a primazia e a unicidade do conhecimento adquirido pelo homem através da experiência sensível. Fora dele e para além dele não há nenhum outro. A noção do conhecimento oriundo da experiência sensível é o fundamento de tudo. E por ser assim, a origem de tais ‘percepções’ assume a urgência de primeiro problema. Dividi-las em ideias e impressões denota a intenção de evidenciar aquelas que trazem alguma dificuldade à solução do problema e essas são precisamente as ideias. As impressões não ocultam a sua imediata e atual derivação do que se passa na sensibilidade externa. Esta afirmação, porém, poderia provocar uma falsa interpretação do pensamento humeano. Deveríamos antes dizer que as impressões se apresentam como o caráter de dados primeiros, descartando por tal primariedade o problema sobre a sua origem. A atenção analítica vai assim incidir sobre as ideias, a fim de descobrir as diferenças e as semelhanças que as relacionam com as impressões. “A diferença entre estas reside nos graus de força e vivacidade com que elas afetam a mente e abrem caminho para o nosso pensamento ou consciência. Às percepções que penetram com mais força e violência, podemos chamar-lhes impressões; e nesta designação incluo todas as nossas sensações, paixões e emoções, quando fazem o seu primeiro aparecimento na alma. Por ideias entendo as imagens tênues das impressões nos nossos pensamentos e raciocínio; assim, por exemplo, todas as percepções despertadas pelo presente discurso, excetuando apenas as que têm origem na vista e no tato, e o prazer imediato ou o mal-estar que elas podem provocar”.(HUME, 2001, p.29). A única diferença notada reduz-se à intensidade e à vivacidade. As ideias são menos intensas e menos vivas, no modo como se tornam conscientes, do que as impressões. Esta diferença só por si é suficiente para caracterizar os dois grupos a tal ponto que as ideias constituem aquilo a que se denomina pensar e raciocinar; e as impressões, aquilo a que se chama: sensações, paixões e emoções. Não é que Hume não se dê conta de que de vez em quando surgem ideias tão fortes que mais parecem impressões; e impressões tão fracas que mais parecem ideias. Mas se tal acontece, não passa de casos excepcionais que uma ligeira observação reduz à insignificância. Ninguém, perante a universidade daquela diferença, terá escrúpulo, não obstante estas exceções, em qualificar sob diferentes denominações os dois grupos delimitados.

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Ora se a diferença é apenas a intensidade ou vivacidade, no suporte dela deve residir uma semelhança de fundo. Com efeito, por mais que se distinguem quanto à força, as ideias e as impressões assemelham-se quanto ao que representam ou objetivamente contém: “Após o exame mais rigoroso de que sou capaz. Atrevo-me a afirmar que a regra aqui não sofre exceções e que toda a Ideia simples tem uma impressão simples que se lhe assemelha; e toda impressão simples tem uma Ideia correspondente”; (HUME, 2001, p.31). A única dificuldade, que se interpunha a tão arrojada lei, vinha das ideias ‘complexas’ formadas pela liberdade combinatória e modificadora da imaginação. Mesmo estas, porém, se formam a partir de impressões simples e complexas. Fica implícito o postulado segundo o qual nas ideias nada mais está representado do que já estava na impressão. Pois até as ideias ‘secundárias’ não são mais do que ‘imagens das primeiras ideias’. Estas derivam imediatamente das impressões; aquelas derivam já das mesmas ideias como produtos delas. Assim são os raciocínios, que se formam sobre conceitos e juízos. Portanto, em tal círculo da representação, as ideias representam as impressões e as ideias secundárias representam as primeiras. Tão extrema atenção prestada a estas duas características das ideias, vai orbitar para sempre, como imperativo de uma fatalidade hereditária, o pensamento humeano e tudo o que dele nasceu, sobre os gonzos da representação categorial e da análise psicológica. A intensidade e a semelhança absorverão a totalidade da observação; fora delas, o intuito perceptivo não encontrará mais nada. Atendendo a estas relações e à constância, com que as ideias sempre se seguem às impressões e não vice-versa, resultará, com uma necessidade lógica, a lei fundamental: “O exame completo desta questão é o assunto do presente tratado; e, portanto contentar-nos-emos aqui com estabelecer uma única proposição geral: que todas as nossas ideias simples no seu primeiro aparecimento derivam das impressões simples que lhes correspondem e que elas representam exatamente”. (HUME, 2001, P.32). Aqui está a razão por que exige para o ‘Eu’ a derivação de uma impressão, uma vez que ele não é uma impressão, mas aquilo a que se supõe todas as impressões se referem. A ilusão do ‘Eu’ Para o autor do Tratado da Natureza Humana (2001), se o ‘Eu’ existisse, teria que ser uma ideia; e se fosse uma ideia, teria que derivar de uma impressão – sensação ou emoção; e se derivasse de uma impressão, esta deveria apresentar as mesmas propriedades que caracterizam o ‘Eu’. Uma delas, porém, é a identidade. Ora não há nenhuma impressão que permaneça sempre a mesma durante toda a vida humana. Portanto, o ‘Eu’ não pode derivar de uma impressão e, não o podendo, não é uma ideia; e, não o sendo, deve relegar-se para o número das ilusões. O único problema que se põe a Hume sobre o ‘Eu’ será explicar como surge tal ilusão. Antes, porém, de

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vir à solução, há que deixar claro a experiência do ‘Eu’ que não é ideia nem impressão nem outra coisa de real, mas sim uma ilusão. Hume fez a reflexão perceptiva com a intenção explícita de encontrar a realidade do ‘Eu’: “Quanto a mim, quando penetro mais intimamente naquilo a que chamo eu próprio, tropeço sempre numa ou outra percepção particular, de frio ou calor, de luz ou sombra, de amor ou ódio, de dor ou prazer. Nunca consigo apanhar-me a mim próprio, em qualquer momento, sem uma percepção, e nada posso observar a não ser a percepção. Quando as minhas percepções são afastadas por algum tempo, como por um sono tranqüilo, durante esse tempo não tenho consciência de mim próprio e pode dizer-se verdadeiramente que não existo. E se todas as minhas percepções fossem suprimidas pela morte, e eu não pudesse nem pensar, nem sentir, nem ver, nem amar, nem odiar depois da dissolução do meu corpo, eu ficaria inteiramente aniquilado e não concebo que mais seria necessário para fazer de mim um perfeito nada. Se alguém, após reflexão séria e sem preconceitos, pensa que tem um conhecimento diferente de si próprio, confesso que não posso mais argumentar com ele. Tudo quanto posso conceder-lhe é que ele pode estar na razão assim como eu, e que diferimos essencialmente nesse ponto. Talvez ele possa perceber algo simples e contínuo, a que chama si próprio; contudo, estou certo de que em mim não existe semelhante princípio”. (HUME, 2001. p.300-301). Não se pode duvidar da sinceridade de Hume. Ele procurou encontrar a natureza do ‘Eu’ praticando uma atenta e penetrante introspecção. Acabou por convencer-se de que ‘naquilo a que ele chama eu’ só existem percepções e nada mais. Se o sono ou a morte fizesse desaparecer por completo as percepções, o ‘Eu’ ficaria aniquilado. Notemos, entretanto, que o que ele procura ver não é o ser, mas ‘alguma coisa simples e continuada’. A sua reflexão, embora séria pelo lado da sinceridade, não está, portanto, completamente desembaraçada de pressupostos limitativos. O seu intuito encontra-se já totalmente cego para a revelação ontológica. A atmosfera de psicologismo sensista atingira no pensamento dele a saturação. A sinceridade reflexa é irrecusável. É certo, como veremos, que não se sente segura de si mesma pela imposição de algo espontâneo que ele não chega a perceber. Nessa insegurança reside a referência aos outros pensadores, que dizem ver dentro de si mesmos a realidade que ele não encontra. Por agora, o fato de não encontrar descansa-o na convicção de que se tal realidade existisse nele, também ele a veria. Portanto, o máximo que pode conceder, a tais pensadores, é que são diferentes dele em semelhante particularidade. E como não chegara a hora de percebermos os hiatos na sua doutrina, não deixa de inclinar-se a pensar que ele é que está na verdade, naquela verdade que é prerrogativa de todo homem ainda não artificializado na especulação filosófica, ou seja, aqueles que não utilizam a reflexão filosófica apenas para especular sobre assuntos tão profundos com superficialidade. Fora daquele grupo de espíritos especulativos, todo o gênero humano não saberá ser mais do que uma coleção de diferentes percepções, que se sucedem umas às outras com uma inconcebível rapidez e estão num perpétuo fluxo e movimento. Os nossos olhos não podem mover-se nas suas cavidades sem variar as nossas percepções. O nosso pensamento é ainda mais variável do que a nossa vista. Todos os nossos sentidos e faculdades contribuem para esta mudança, nem existe nenhum poder da alma que permaneça inalteravelmente o mesmo nem sequer por um momento. Este contínuo perpassar dos fenômenos psíquicos perante o olhar da consciência sugere-lhe uma imagem da mente humana, emprestada pela sociedade do seu tempo. Com efeito, a mente é uma espécie de teatro, onde várias percepções sucessivamente fazem o seu aparecimento; passam, tornam a passar, saem e misturam-se

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numa infinita variedade de posições e situações. Aí não há propriamente, nem simplicidade em qualquer momento, nem identidade na diferença, seja qual for a natural propensão que possamos ter para imaginar aquela simplicidade e identidade; Hume percebe de que a comparação pode conduzir o pensamento ao erro. A mente viria facilmente a ser entendida como um lugar onde as percepções fazem o seu aparecimento e, portanto, algo diferente delas. Por isso, apressa-se a dizer que, ao contrário do que acontece com o teatro, são as percepções que constituem a mente. Em si mesmas aparecem e nada mais há que nelas apareça. Agora surge o problema com toda a sua força: se assim é, qual será a causa de todo o homem julgar que permanece o mesmo ao logo da vida inteira sob tanta diversidade?: “O que é então que nos dá uma propensão tão grande para atribuir identidade a estas percepções sucessivas e para admitir que possuímos existência invariável e ininterrupta em todo o curso de nossas vidas?”.(HUME, 2001, p.301). Para resolver, Hume inicia por distinguir entre o ‘Eu’ enquanto respeita o nosso pensamento ou imaginação e o ‘Eu’ enquanto afetado por paixões. Esta segunda alternativa não foi considerada pelo autor, como seria de esperar, no segundo livro do seu tratado. Todo o seu esforço incidiu em resolver o problema situando-o no campo das ideias e das impressões. Sua análise da Ideia de identidade ou semelhança consiste no esforço em lidar com um objeto que permanece invariável e ininterrupto ao longo de uma suposta variação de tempo. A ela se contrapõe a Ideia de diversidade, que outra coisa não é senão a Ideia de vários objetos enquanto existem sucessivamente ligados por uma estreita relação. Ora, posto que ambas estas ideias sejam em si mesmas perfeitamente distintas e até contrárias, não é menos certo que na nossa maneira comum de pensar se encontram geralmente confundidas uma com a outra. A ação da imaginação, pela qual consideramos o objeto ininterrupto e invariável, é aquela que permite refletirmos sobre a sucessão dos objetos relacionados, são quase iguais quer no setor das ideias quer no das impressões. A relação facilita a passagem da mente de um objeto para outro tornando esta passagem tão suave como se a mente contemplasse o mesmo continuado objeto. Esta semelhança é causa de confusão e de engano, e nos faz introduzir a Ideia de identidade no lugar da de objetos relacionados. Embora a um dado momento nós possamos pensar a sucessão relacionada como variável e interrompida, estamos seguros de logo a seguir lhe atribuirmos uma perfeita identidade como se ela fosse invariável e ininterrupta. A nossa propensão para tal engano deriva da semelhança aludida, e tendemos a cair neste engano sem darmos conta. Embora nos corrijamos incessantemente por reflexão e regressemos a um modo mais acurado de pensar, não podemos por longo tempo manter a nossa filosofia imune deste viés da imaginação. O nosso último recurso é ceder-lhe e afirmar, sem receios, que estes diferentes e relacionados objetos são de fato idênticos, embora interrompidos e variáveis. Em ordem a justificar-nos a nós próprios deste absurdo, muitas vezes fingimos um ininteligível princípio, que conecta os objetos uns com os outros e descarta a sua interrupção e variação. Assim fingimos a contínua existência das percepções dos nossos sentidos para remover a interrupção, e resvalamos para as noções de alma, eu e substância. Semelhante propensão é o processo, que dá origem a todos os objetos do conhecimento humano. As

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ideias, que formamos das coisas enquanto as consideramos como todas permanentes na sua invariabilidade, resultam de tal arte. As relações, que servem de fundamento ao processo são, principalmente, três: a proporção das partes com o todo, a graduação das fases da mudança e a simpatia das partes em ordem a um fim comum. Assim, em decorrência da primeira é que uma determinada massa, por exemplo, uma montanha, parecerá continuar a mesma, embora se lhe tire uma pequena porção. Em decorrência da segunda é que uma planta ou um animal, que constantemente crescem e por isso se transformam, parecerão permanecer os mesmos. Isto ocorre, pois tais transformações acontecem de forma gradual , parecendo quase insensível. Em decorrência da terceira é que um navio ou uma casa, que são de quando em quando consertados e por isso variam, parecerão sempre os mesmos por que as partes que foram postas de novo concorrem para dar a impressão da mesma figura. Mesmo quando nos percebemos criticamente dos enganos a que este processo dá origem, processo de semelhança – relações de proporção da parte com o todo, a graduação das fases da mudança e a simpatia das partes em ordem a um fim comum – nos sentimos fortemente inclinados a forjar a Ideia de algo misterioso que por debaixo das variações, que incessantemente alteram os objetos, as sustenta e permanece idêntico e inalterável. O mesmo acontece com o ‘Eu’. Mas agora as relações, que contribuem mais para o nascimento da ilusão de identidade, são a semelhança e a causalidade. Imaginemos – diz Hume – que podíamos ver claramente dentro da consciência de outro e observar aquela sucessão de percepções, que constitui a sua mente; e suponhamos que ele conserva sempre a memória de uma considerável parte das percepções passadas. É evidente que nada poderia contribuir mais para dar uma relação de identidade a esta sucessão no meio das suas variações. A memória, com efeito, outra coisa não é senão a faculdade de suscitar as imagens das percepções já tidas. Ora, como uma imagem se assemelha sempre ao seu objeto, compreende-se que a repetição de tal semelhança concorra imensamente para a transição de um elo para outro na cadeia das percepções, de modo a levar a imaginação a fazer com que o todo pareça à continuação de um mesmo objeto. Neste particular, portanto, a memória não só descobre a identidade, mas contribui para sua produção, mediante a semelhança entre as percepções. E o caso é o mesmo quer consideremos a nós próprios quer aos outros. Com respeito à causalidade, podemos considerar que a verdadeira imagem da mente humana está em considerá-la como um sistema de diferentes percepções ou diferentes existências, que estão ligadas em conjunto pela relação de causa e de efeito, e mutuamente produzem, destroem, influenciam e modificam umas às outras. As nossas impressões dão origem às suas correspondentes ideias; e estas por sua vez produzem outras impressões. Um pensamento associa-se a outro e traz após ele um terceiro, pelo qual é expelido por sua vez. Este jogo causal, em que as percepções são equiparadas a existências independentes, sugere a Hume outra imagem, tirada como a do teatro, da sociedade em que vivia. A alma pode ser comparada, com muita propriedade, a uma república, em que os vários membros estão unidos por recíprocos laços de governo e de subordinação, e dão origem, a outras pessoas que propagam a mesma república nas incessantes mudanças das suas partes. E tal como a mesma individua república pode não só mudar os seus membros, mas as suas leis e constituições; assim, de igual modo, a mesma pessoa pode variar o seu caráter e disposição, tanto como as suas impressões e ideias, sem perder a sua identidade. Sejam quais forem às mudanças que sofre, as suas várias partes permanecem ligadas pela relação de causalidade.

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Conclusão Na perspectiva humeana a nossa identidade, com respeito às paixões, serve para corroborar a identidade com respeito à imaginação, fazendo as nossas percepções distantes influenciarem-se mutuamente e dando-nos um interesse presente pelas nossas passadas e futuras penas e prazeres. A realidade do ‘Eu’ acabava na pluralidade dos atos psíquicos e no nada de uma ilusória identidade. O problema da unidade pessoal não pode ser tratado senão como uma questão de palavras, por maior que seja o interesse que desperte e as conseqüências que possa obter no pensamento. “O conjunto desta doutrina leva-nos a uma conclusão que é de grande importância nesta matéria: as questões delicadas e sutis relativas à identidade pessoal talvez não possam ser resolvidas, e devem ser consideradas antes como dificuldades gramaticais do que como dificuldades filosóficas”.(HUME, 2001, p.311-312). Apesar de toda a sua logicidade, não tranqüilizou por completo o espírito que a tirou. O esforço reflexivo, que ela conduziu, esvaziou as palavras do senso comum do conteúdo com que o homem espontaneamente expressa a sua experiência. As relações de causalidade e semelhança ficaram reduzidas ao hábito psíquico das associações das imagens; e o ‘Eu’, a uma ficção com, que elas são expressas de um modo imperfeito. Toda a realidade quer interna ou externa, em relação à consciência humana, esvaneceu-se nas percepções e estas no seu constante fluir, o que levou Hume a um estado de espírito de uma incerteza angustiante. Na hora a reflexão crítica, o filósofo atingiu o seu paroxismo, relevado nas seguintes palavras de um apêndice corretivo, que apôs ao seu Tratado: “Eu tinha alimentado esperanças de que, por muito deficiente que fosse a nossa teoria do mundo intelectual, estaria livre daquelas contradições e absurdos que parecem acompanhar todas as explicações que a razão humana pode dar ao mundo material. Mas mediante um exame mais rigoroso da seção relativa à identidade pessoal, encontro-me envolvido em tal labirinto que tenho que confessar que nem sei corrigir as minhas opiniões anteriores, nem torná-las consistente. Se esta não for uma boa razão geral para o cepticismo, é pelo menos uma razão suficiente (se não houvesse muitas outras) para eu guardar alguma desconfiança e modéstia em todas as minhas decisões”.(HUME, 2001, p.724). E, no entanto, apesar desta confusão, a doutrina de Hume precisamente por derivar de uma evolução do pensamento coletivo na Inglaterra e nos seus domínios, transformou-se numa dominante das gerações subseqüentes. Todas as aproximações e modificações que trouxeram à posição humeana não alteraram a sua atitude fundamental. Vemos assim que, nesta linha do pensamento inglês, a ocultação do ‘Eu’ como ser que pensa, quer e sente, fica definitivamente consumada, restando somente à concepção de um novo ‘Eu’ que resulta do conjunto de nossas percepções. *Francisco de Assis Santos Sobrinho (http://lattes.cnpq.br/0576740385436411) [email protected], www.aprendendoapensar.com.br **Ronaldo José Moraca (http://lattes.cnpq.br/4306413034584634) Bibliografia:

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HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001.

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DESCARTES, René. Discurso do Método. Coleção os Pensadores – Volume XV – São Paulo: Abril, 1973. _______________________________________________

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A Tatuagem como Inscrição e Elaboração de um Luto quinta-feira, julho 12, 2012 http://nucleotavola.com.br/revista/a-tatuagem-como-inscricao-e-elaboracao-de-um-luto/

por Caio Garrido* Resumo O objetivo deste artigo visa chegar a conclusões a respeito de como a tatuagem influencia o aspecto psíquico e emocional dos indivíduos. E indo mais longe, mostrar como a tatuagem tem na maioria das vezes o papel de ajudar na elaboração psíquica de um luto, ou simbolizar certas passagens da vida. Nosso corpo é marcado por concretude e linguagem, e essa interação pode ser influenciada pela prática da Tatuagem. Palavras-chave: Tatuagem, Simbolização, Luto, Elaboração, Linguagem, Corpo. Tatuagem; “A palavra tatuagem origina-se do inglês tatoo, que por sua vez é oriunda da polinésia tatau, uma onomatopéia que significa bater.” ¹ É importante salientar que o significado do “bater” vem do comportamento desses nativos, que utilizavam um instrumento de osso para tatuar, no qual batiam com um pedaço de madeira. A arte de tatuar o corpo é um comportamento que se faz presente na cultura universal desde tempos remotos da humanidade. Sua origem remonta às primícias do desejo de um tratamento simbólico diferenciado, através da cultuação estética do corpo, com suas marcas representando os significados de um povo ou cultura ao

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longo da história. Vamos rebobinar um pouco a fita do tempo para entender melhor esse perene relacionamento entre o homem e as imagens pictóricas reproduzidas no corpo. Dos índios às civilizações antigas, como a egípcia, por exemplo, a história da tatuagem sempre teve como mote simbolizar uma transformação interior, expressando isso através de uma linguagem imagética exterior. O homem, desde os primórdios de seu surgimento, pode ter se iniciado simbolicamente através da tentativa de comunicação oral. Urros guturais na caverna provavelmente foram as primeiras formas do homem na tentativa de se comunicar. O eco produzido pelo som do próprio corpo certamente criou um relacionamento narcísico com o próprio simbolismo nesta tentativa de comunicação. Depois, provavelmente vieram as imagens pictóricas marcadas nas paredes das cavernas. Foi o início de uma expressão mais efetiva da linguagem. E daí, passar a expressar essas imagens no corpo, seria só questão de tempo e técnica para atingir tal objetivo. Segundo documentos históricos, a tatuagem já era praticada no Antigo Egito, entre 4000 e 2000 a.C., e no Japão e China há pelo menos 7 mil anos. David Azoubel Neto, psicanalista, diz que os poderosos do antigo Egito encontraram na pedra uma solução para a realização dos anseios de eternidade em suas concepções sobre a vida e a morte e, muito presos ainda a um pensamento do tipo mágico, se permitiram acreditar na imagem e no desenho como uma forma viva de representação, transmitindo ecos de uma grande parte de suas vidas. De acordo com Amana Rodrigues²: “Através da arte pré-histórica podemos encontrar vestígios da existência de povos que cobriam o corpo com desenhos. Em vários exemplares de arte rupestre, foram encontrados desenho de formas humanas com pinturas em seus corpos, assim como estatuetas com esses mesmos desenhos corporais indicando a possibilidade da existência da tatuagem nesses povos. Há uma hipótese de que, nos primórdios, marcas involuntárias adquiridas em guerras, lutas corporais e caças geravam orgulho e reconhecimento ao homem que as possuísse, pois eram expressões naturais de força e vitória.” “O homem, então, partindo da ideia de que marcas na pele seriam sinônimos de diferenciação e status, passou a marcar-se voluntariamente, fazendo ele mesmo seus ferimentos pelo corpo, que com o passar do tempo deu espaço para a criação de desenhos utilizando-se de tintas vegetais e espinhos para introduzi-las à pele. A partir daí, diversos povos, de diversas culturas começaram a usar pinturas definitivas por motivos espirituais, em rituais de várias espécies e fins, para a guerra, para marcar os fatos da vida biológica: nascimento, puberdade, reprodução e morte entre outros. No entanto, foi com a descoberta das múmias que ficou provado real e concretamente que a arte da tatuagem acompanha o homem desde o seu surgimento.” Fica claro que o principal elemento que fez nascer a ideia de se tatuar o corpo foi o elemento simbólico. E simbolizar certas passagens da vida sempre foi um dos principais apelos para a tatuagem. No que concerne a essas marcas de passagem, vinculou-se a isso a necessidade de representar a morte e seu respectivo luto, para potencializar a tarefa árdua de elaborá-lo. E não só o luto pela morte de um ente

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querido pode exemplificar esse tratamento para certas passagens da vida, mas também o luto de um ideal, de algo desgastado pelo tempo no indivíduo, e que deve sobremaneira sofrer uma transformação. De aspecto simbolizador, com o passar dos anos, a tatuagem foi adquirindo status de Arte. Poderíamos chamar a arte de se tatuar de Arte Viva? Toda forma estética tem por função representar e comunicar algo. No caso da tatuagem, por na maioria das vezes exprimir a representação de uma transformação pessoal, nada melhor em ser uma arte que, apesar de estar definitivamente impressa no corpo, também se transforma com o tempo. A luz do sol que incide na pele, a introdução de novos desenhos complementando um já existente, a transformação do próprio corpo ao longo do tempo, tudo isso pode interferir no desenho e expressão original. Para abordar um pouco mais a questão da estética e compreender porque os efeitos causados por ela são tão fortemente impressos no nosso psiquismo e em nossas emoções, recrutamos alguns olhares evocados pela beleza da arte. Um deles é a visão que Adrian Stokes tem sobre isso; segundo Adrian Stokes³: “A obra de arte, visto que é expressivamente autônoma, deve invocar em nós uma ideia semelhante à de "entidade". É como se as várias emoções tivessem sido torneadas como uma pedra.” Diz ele ainda: “Podemos sempre descobrir, partindo da experiência estética, esse sentido de homogeneidade ou fusão combinado, em diferentes proposições, com o sentido de não-identidade objetais. A par da vivida impressão de totalidades autônomas, renovamos, a instâncias da sensação estética, o sentimento "oceânico", sustentado por algumas das qualidades da "linguagem" do id.” “Visto que combina o sentido de fusão com o de não-identidade objetais, poderíamos dizer que a arte é um emblema do estado de amor; isso parece ser verdade, se destacarmos as introjeções e atitudes reparadoras infantis que são reforçadas por esse estado. Essas atitudes são a origem da Forma. Quando o artista as conjuga no processo criador, as tensões psíquicas infantis respeitantes aos dados sensoriais renovam nele uma certa frescura de visão, uma certa aptidão para enfrentar, como se fosse a primeira vez, o mundo fenomenal e a emoção que comporta.” Da estética e seus rascunhos, a tatuagem nos dias de hoje poderia ser considerada até como uma contra-estética em relação ao que antes era somente estética. Se tudo o que se procura na sociedade atual é o superficial, a aparência, o artificial, e satisfações rápidas e sem esforço, acho que a tatuagem é um modo até paradoxal (por usar a aparência como mote) de ir contra tudo isso e demonstrar a profundidade de expressão humana, já que está concretamente e simbolicamente representada na forma que é realizada: de maneira subcutânea, não-superficial, refletindo as marcas profundas de uma existência. Isso dá à tatuagem e seu símbolo, uma existência perene junto à pessoa que a carrega consigo. No tocante a significações e significantes de inscrições corporais, a potencialidade de elaboração de um luto sempre fez parte, inconsciente ou consciente, do desejo de se tatuar. A demarcação de uma passagem bem sucedida por um luto representa e reconstitui o “objeto” perdido. O trabalho do luto trata de elaborar a perda e liberar os antigos investimentos libidinais para que possam

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arquivar-se como figura enlutada, e assim escaparem em direção a novos “objetos”. Segundo Freud, em sua obra Luto e Melancolia4, “o luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante.” “Em que consiste, portanto, o trabalho que o luto realiza? Não me parece forçado apresentá-lo da forma que se segue. O teste da realidade revelou que o objeto amado não existe mais, passando a exigir que toda a libido seja retirada de suas ligações com aquele objeto.” David Azoubel Neto, em sua obra Mito e Psicanálise5, acrescenta: “Tem-se a impressão de que o processo de luto procura realizar o trabalho de conduzir o desaparecimento do indivíduo a uma forma particular de esquecimento. Trata-se, na verdade, de realizar um trabalho árduo; convencer a si mesmo a conviver com o mesmo objeto que o abandonou” Para David Azoubel Neto, narcisicamente, a perda do objeto é igual a uma perda de si mesmo, não restando outra alternativa senão substituir o amor pelo objeto por uma identificação com este. Para chegarmos à ideia “final” da elaboração de um luto por meio da realização de uma tatuagem, precisaremos de uma boa percepção a respeito da conjunção imagem-corpo. Podemos partir da própria formação da nossa identidade e da formação de nossa auto-imagem. O corpo é Forma, é identidade do “Eu”. A linguagem, no tempo, passa a fazer parte do corpo, ora se identificando com ele, ora se destituindo dele. O que vem antes, o corpo ou a linguagem? Segundo Ana Costa6, isso seria tentar “conciliar o inconciliável, subsumir o insubsumível, separar o inseparável: paradoxo incontornável que é característico do propriamente humano. Só para falar na neurose – a histeria, por exemplo – tenta fazer a junção, em uma relação de equivalência, desses dois heterogêneos; enquanto a obsessão tenta construí-los disjuntos. Assim, essa espécie de paradoxo, que é vivido como indeterminação, faz parte tanto da produção dos sintomas quanto "contamina" a própria produção em psicanálise.” Como se dá então a integração corpo e imagem no psiquismo da pessoa que se tatua para elaborar um luto? Quando amalgamadas de uma forma que poderíamos dizer, saudável, as duas instâncias (Corpo e Linguagem) fazem-nos ser o que realmente somos: seres simbólicos, construtos da cultura em que vivemos. Nada mais integrativo então do que interagir de forma direta e completa com o corpo, como fazendo um desenho no mesmo, e que além; vai fazer parte do corpo e da identidade por toda a vida, até que a morte os separe. O desenho ou a ideia conceitual de uma arte corporal, antes de fazer parte do corpo, tem de se tornar

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linguagem. Os processos psíquicos que ocorrem em um artista que cria uma obra, seja ela uma pintura, uma fotografia, um livro, uma atuação, etc., de certa forma “contamina” a pessoa que vê, utiliza ou se apropria da arte criada. Assim como Freud em seu livro Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente, nos fala que um chiste ou um ato cômico é capaz de transmitir o conteúdo e fazer outra pessoa rir, provocando nesta as mesmas emoções que ocorreram em quem inventou ou fez o chiste, acredito que um ato artístico é capaz de nos fazer admirar uma obra de arte, provocando-nos emoções parecidas das que ocorreram na pessoa que criou a obra. Então o que subjaz na pessoa que se tatua é algo relativamente parecido a um processo que acontece a um artista que cria. E se quem cria, busca reelaborar seu mundo interno, quem recebe o compartilhamento desta criação também pode reconstruir seu mundo interno. Quem nos dá uma boa visão do processo criador é Marcel Proust. De acordo com ele, um artista é compelido a criar pela sua necessidade de recuperar o seu passado perdido. Há de se citar um fragmento que exemplifica uma criação artística. Exemplificamos o caso de uma criação literária em que ele diz 7: “Um livro é um grande cemitério onde, sobre a maioria das sepulturas, já não se podem ler os nomes apagados." Uma pele tatuada também pode ser um cemitério onde já não podemos ler os nomes apagados. Isso nos habilita a empreender a seguinte liberta proposição: O que se espera criar na confecção de uma tatuagem que imprime uma ideia, uma foto, ou um conceito, é lembrar, restaurar, recriar e reparar o objeto perdido. De acordo com Hanna Segal7, “só quando a perda foi reconhecida e a mágoa sentida, a recriação pode ter lugar.” Hanna Segal vai além e ainda citando Proust, diz: “Ele revela uma percepção profunda daquilo que acredito estar presente no consciente de todos os artistas: a saber, que toda criação é realmente a recriação de um objeto outrora amado e outrora inteiro, mas que agora está perdido e destroçado, num mundo interno e um eu destroçados.” E um sujeito que se tatua na expectativa de elaborar um luto e de reintegrar-se com seu mundo interno desarranjado, precisa de um espaço limítrofe externo, sua pele, para então dizer a si mesmo o que pode entrar e o que pode sair, e além, o que pode e o que não pode se perder. Está propondo para si mesmo uma tentativa para reativar e reavivar uma ligação com um ente querido, uma parte de si perdida. Pretende com isso traduzir em imagem, a Falta, a ausência, tornando-a presente, de uma vez por todas... Para “sempre”. Notas ¹ Revista Art Book Tatoo ² Fonte (http://www.portaltattoo.com/tatuagem/historia/) ³ “A Forma em Arte”. Temas de Psicanálise Aplicada. Adrian Stokes. 1969, p. 123 4

S. Freud. Luto e Melancolia. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago. 1917, p. 249

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D. Azoubel Neto. Mito e Psicanálise. São Paulo: Editora Papirus, 1993. p. 151

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Tatuagens e marcas corporais: atualizações do sagrado. Ana Costa. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, 144p 7 “

Uma Concepção Psicanalítica da Estética”. Temas de Psicanálise Aplicada. Hanna Segal. 1969, p. 103-104 Referências Bibliográficas AZOUBEL NETO, David. Mito e Psicanálise. São Paulo: Editora Papirus, 1993. COSTA, Ana. Tatuagens e marcas corporais: atualizações do sagrado. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, 144p. FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago. 1917. FREUD, Sigmund. Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago. 1905. KLEIN, Melanie.(org.) et al. Temas de Psicanálise Aplicada. SEGAL, Hanna. Uma Concepção Psicanalítica da Estética. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969. KLEIN, Melanie.(org.) et al. Temas de Psicanálise Aplicada. STOKES, Adrian. A Forma em Arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969. REVISTA ART BOOK TATOO. São Paulo: Editora Escala Este texto fez parte de uma Comunicação realizada no I Encontro dos Alunos em Formação Psicanalítica pelo Núcleo Tavola, em 2010. - http://nucleotavola.com.br/alunos/encontro/i-encontro/ *Caio Garrido é psicanalista, e editor associado da Revista Tavola. _______________________________________________

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