Vénus Erótica ou Nin no país das maravilhas: um entendimento do erotismo no feminino.

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Vénus Erótica ou Nin no país das maravilhas


um entendimento do erotismo no feminino


Clara Games

Vénus Erótica ensaia todas as fantasias do sexo numa perspectiva
supostamente feminina. Porém, há quem ache a obra pouco mais do que uma
reprodução do erotismo masculino, sobretudo na imagem passiva que Anaïs Nin
dá da mulher.

Violação, incesto, necrofilia, pedofilia, tortura, frigidez, exibicionismo,
homosexualidade e droga são alguns dos condimentos de Vénus Erótica, Delta
of Venus no original, a compilação de contos eróticos de Anaïs Nin,
escritos nos anos 40 mas só publicados em 1977, pouco antes da sua morte.
Um inventário das extravagâncias do desejo que resultou da incursão da
escritora pelo país das maravilhas do sexo.
Anaïs Nin conta no seu Diário (tomo III), a Dezembro de 1940, como estes
contos chegaram à existência. Um coleccionador de livros propôs a Henry
Miller que escrevesse histórias eróticas a um dólar por página para um seu
velho e abastado cliente. O escritor começou entusiasmado mas acabou por
não se querer desfazer dos escritos que queria incluir na sua escrita
«séria», como diz Nin. A escritora tomou para si essa tarefa e com ajuda de
outros poetas de Greenwich Village e de leituras do Kama Sutra tornou-se a
«patroa de uma snob casa de prostituição literária», cujos rendimentos são
usados para ajudar os seus pobres amigos artistas. Todas as manhãs Anaïs se
dedica a esta empresa em que se propõe reinventar a escrita erótica no
feminino. Segundo conta no mesmo diário, nunca verá o dito coleccionador
que recusa alguns contos por serem demasiado surrealistas ou terem
floreados a mais. «Menos poesia. Seja concisa», são mensagens que lhe
envia. Nin insiste que sem emoção não há beleza no sexo e acaba por
escrever uma carta ao coleccionador a recusar mais encomendas.
Na realidade, e segundo um dito de Miller, o coleccionador não passaria de
um mito inventado por Nin, como aliás muitos outros factos dos diários, um
mito que lhe teria servido para evocar sem culpabilidade os seus fantasmas
sexuais.
A autora de Uma Espia na casa do Amor e A Casa do Incesto tinha, segundo
alguns biógrafos, um apetite patológico pela mistificação. A invenção do
coleccionador serviu para nos fazer crer que não escrevia histórias
eróticas por prazer mas sim de má vontade, para pagar contas, e no fundo
restringia a vergonha de as escrever.


Erotismo feminino ou reprodução do masculino?


Anaïs Nin é tida não só como o expoente mas também como a iniciadora da
literatura erótica no feminino. E isso sim, é uma grande falsidade.
Se é verdade que nos EUA, e mesmo na cultura anglo-saxónica, não havia uma
tradição de literatura erótica - «era tudo mal escrito, atamancado, obras
de autores de segunda classe», como ela própria escreve no diário - o mesmo
não se pode dizer da Europa, nomeadamente da França, que tinha «uma
tradição de literatura erótica de estilo elegante e requintado». E nessa
tradição encontram-se várias mulheres dedicadas ao género, pelo menos desde
o Renascimento, como o comprova qualquer boa história da literatura.
No entanto, Nin dá-se a si própria como a iniciadora dos relatos sexuais no
feminino visto que «apesar da diferença fundamental entre a atitude da
mulheres e a do homem acerca de tais questões, nós não dispúnhamos ainda de
uma linguagem que o exprimisse», como escreve no Post Scriptum de Vénus
Erótica. Também aí Anaïs afirma que durante muito tempo julgara que o seu
estilo era mais ou menos copiado das obras sobre o assunto escritas por
homens, comprometendo a sua verdadeira feminilidade. «Ao relê-los muitos
anos mais tarde dou-me conta de que a minha própria voz não foi
completamente abafada, empreguei de um modo intuitivo em inúmeras passagens
a linguagem de uma mulher, descrevendo as relações sexuais do ponto de
vista feminino», escreve. Para ela essa visão feminina reside no facto de
as mulheres nunca separarem «o acto sexual do sentimento e do amor pelo
homem, todo ele».
Porém alguns críticos dizem que ela nada mais faz que reproduzir os modelos
masculinos da literatura anterior, em que uma mulher passiva é violentada
e, ainda por cima, agradece.
David MacDonald, na tese de licenciatura em Literatura Inglesa «The erotic
minds of Anaïs Nin and Afhra Behn» da University of Prince Edward Island,
tenta provar com exemplos de Venus Erótica e Passarinhos (compilação de
outras 13 novelas eróticas, publicada postumamente, em 1979) que as
mulheres de Nin são idealizadas como objectos de desejo passivos, como tal
reproduzindo os modelos da literatura erótica vitoriana.
Por exemplo, para Nin, a agressividade numa mulher é uma distorção da
feminilidade, como se vê através de Hilda ( Hilda e Rango em Passarinhos)
que tem um amante pouco activo e «sonhava ter um homem que impusesse a sua
vontade, reinasse sobre a sua sexualidade, liderasse».
Para a escritora, uma mulher que não seja penetrada é uma mulher
incompleta, como se vê em Elena: «É como o amor entre mulheres, então. Não
há preenchimento, posse a sério». Segundo a sua biógrafa Deirdre Bair,
Anaïs só teve uma experiência lésbica com uma mulher, nos anos 40, e não
gostou ( e não teve qualquer relação com a mulher de Miller, ao contrário
do que o filme Henry and June deixa entender).
Para ela só a brutalidade masculina consegue satisfazer uma mulher. Leva
essa violência ao extremo em Mallacora, em que Maria é 'violada' de costas,
quando vai nadar no mar, por um jovem que ela deixa aproximar porque toma
por uma americana «porque estas têm voz de rapaz e não têm seios» ( na
altura ainda não havia silicone...). Maria acaba por agradecer ver-se livre
da sua castidade.
O autor da tese de licenciatura compara esta história à novela vitoriana
Raped on the Railway em que o herói galantemente se desculpa por ter
violado uma mulher, visto que o fizera apenas devido à sua grande beleza, e
esta lhe agradece por ele lhe ter dado tanto prazer.
Segundo McDonald, Nin perante a citação do seu diário «Ser violada é talvez
uma necessidade na mulher, um desejo erótico secreto», afirmou, numa
entrevista, que a mulher violada se sente libertada da sua culpa sexual,
não levando em conta a quantidade de mulheres que são realmente violadas e
não gostam...
McDonald pega ainda no que chama de 'tortura', no conto O Basco e Bijou -
em que esta é rapada entre pernas e exibida para o amigos daquele - e na
necrofilia de Pierre - em que este tem sexo com o cadáver de uma mulher
atirado ao rio - para evidenciar a objectificação que Nin faz da mulher,
não muito distante da pornografia vitoriana ou da «crueza
rabelaisiana»(palavras da própria Nin) do seu amigo Miller que prefere
substituir a palavra 'mulher' por cunt.
Quanto a O Aventureiro Húngaro - que numa cena de pedofilia brinca com duas
meninas que lhe afagam o sexo por cima da colcha julgando ser um dedo e que
acaba por violar as suas próprias filhas e filho - McDonald diz ser um
conto provindo do próprio abuso de que a pequena Anaïs terá sido vítima por
parte do pai e com quem teve uma aventura sexual incestuosa já na idade
adulta.
Para o estudante de literatura, foram este factos da sua vida que a fizeram
dar uma imagem distorcida da mulher como um ser passivo, que a princípio de
sente humilhada com o abuso mas descobre mais tarde que é disso mesmo que
gosta. A autora de A casa do Incesto seria assim apologista das relações
sado-masoquistas, não existindo nos seus contos relações saudáveis. Para
McDonald, esqueceria também o que realmente poderia dar uma visão feminina
do erotismo: uma dimensão psicológica das suas personagens. «O problema é
que tais possibilidades, em tal profundidade matariam a ambiência erótica
que tais escritores querem tão desesperadamente criar. Não seria mais
erotismo, seria literatura», diz o licenciado americano com o que me parece
um óbvio e muito americano preconceito anti-erotismo.

Ficção autobiográfica

As quinze novelas de Vénus Erótica são em parte autobiográficas: O
Aventureiro Húngaro é uma transposição do seu pai, o Don Juan que abandona
o lar, tal como Artistas e Modelos reflecte o triângulo Nin/Miller/June.
Por outro lado são produto de uma escritora fascinada com o movimento
surrealista que emprega um estilo preponderantemente onírico que predomina
nalgumas cenas em que as personagens estão drogadas ou na descrição dos
próprios órgãos sexuais como flores, sempre com um sentido da beleza e da
elegância moral nas perversões, que no fundo a afastam dos relatos crus dos
escritores masculinos do género.
Algumas das histórias são retratos ouvidos em confidência ou puros produtos
da imaginação desenfreada de uma mulher frígida, como Nin o era, e que,
como tal, tinha ideias extraordinárias e exageradas sobre o prazer sexual,
segundo observa Alexandrian na sua História da Literatura Erótica.
Para o referido historiador os contos eróticos são também a chave da sua
obra romanesca. Esta tem o mesmo género de personagens, o mesmo clima, mas
é expurgada do erotismo directo que as novelas cruamente contam. Escadas de
Incêndio, por exemplo, parece uma ampliação dos seus contos com as mesmas
heroínas em busca do orgasmo: a dançarina Djuna, a frígida Lilian e a
flamejante mitómana Sabina, o seu alter ego.
Na minha opinião só nestas curtas histórias eróticas Nin se aproximou da
verdadeira estrutura do romance, talvez porque, como diz a biógrafa Deirdre
Bair, o facto de escrever anonimamente, para a gaveta de um coleccionador
(ou para a sua, se este era uma invenção) a libertasse do grande medo que
tinha de ser descoberta pelas suas transgressões.
Os contos de Venus Erótica e Passarinhos podem ser pouco originais na
representação da mulher e até politicamente incorrectos, para além de serem
fruto da mente de uma escritora que, apesar do mito, não era uma mulher
independente e corajosa (sempre teve um marido rico por trás) mas não
deixam de ser excelentes histórias eróticas onde a fantasia é levada ao
extremo e em que Anaïs Nin, mais diarista que romancista, conseguiu levar
mais longe a ficção.
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