Verbete: Testemunho - Definições acerca da figura do testemunho

Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ GUSTAVO MARTINELLI TANGANELLI GAZOTTO

TESTEMUNHO Verbete apresentado como avaliação parcial da disciplina de Antropologia jurídica. Curso em graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná.

CURITIBA 2015


1 JUSTIFICATIVA O testemunho é voz daquele que, de fato, viveu o momento relevante. É a tentativa de traduzir a experiência passada com sua mesma intensidade e valor. O conceito de testemunho não é simples nem óbvio, tampouco suas variadas definições, tão semelhantes à primeira vista quão díspares se bem mediadas. 2 DEFINIÇÕES Testemunho em sentido vulgar ou leigo é o relato daquele presenciou uma situação passada mas dela não participou, reproduzindo sua versão enquanto espectador da cena em questão. É, também, como aparece a figura da testemunha no direito, principalmente do direito penal, um olheiro que sobreviveu à agressão jurídica e, posteriormente, poderá proferir seu relato do acontecimento real. Este personagem tão particular da construção da acusação — ao mesmo tempo prova da violação e sujeito que a experimenta — entretanto, deve ser guiado por um método, por um procedimento positivado que lhe inibe a possibilidade de proferir uma mentira. O processo penal exigirá daquele que viveu o momento uma pretensão de distanciamento, devendo se ater aos fatos e somente a eles, evitando a qualquer custo trazer suas impressões e valores. A testemunha, portanto, limita-se a narrar o acontecimento despersonalizando-se, afastando suas comoções, no intuito de controle psíquico que priorize o racional e que possa, assim, ser utilizado para decisão do juiz.
 Outra noção do conceito de Testemunho é seu uso no espaço religioso. No cristianismo (e é preferível, aqui, limitar-se tão somente ao cristianismo), testemunhar é viver o momento profético e experimentar o milagre, ou seja, é o momento cumular em que a fé se materializa. Mas vivenciar apenas não basta, é necessário que a testemunha leve adiante a profecia e a espalhe para o restante do povo de Deus. No Velho Testamento, em Isaías, Deus, dirigindo-se a Israel, proclama: “ 'Vós sois as minhas testemunhas', diz o Senhor, 'e meu servo, a quem escolhi; para que o saibais, e me creiais, e entendais que eu sou o mesmo, e que antes de mim deus nenhum se formou, e depois de mim nenhum haverá'. (43:10)" Observa-se, portanto, que o testemunho não é apenas um momento de salvamento e redenção, mas é um novo acordo de fé em que se estreita uma obrigação; assim o povo Israel não apenas presencia a fé, mas a ela deve dar

continuidade, espalhando-a para o resto do povo. As testemunhas devem levar a palavra aos dispostos a crer, pois, segundo o evangelho, só os que crêem podem ver e ouvir — acepção comum do testemunho — ou seja, no cristianismo as testemunhas originárias devem criar novas testemunhas, ou testemunhas delegadas (vicarious witness), toda a tradição cristã se baseia nesta escala de testemunhos — testemunhas e testemunhas de testemunhas — desde o momento em que os apóstolos entraram no sepulcro vazio e que se estende até hoje. (HARTOG, 2015).
 Em Mad Max: Estrada da Fúria, filme dirigido por George Miller, temos um exemplo interessante da definição religiosa do conceito aqui trabalhado: quando a rebelde Imperatriz Furiosa sequestra as parteiras da tiranizada Cidadela, Immortan Joe convoca seu exército numa tentativa de resgatar o que é seu. Os soldados, no entanto, possuem uma veneração absoluta pelo governador que ultrapassa o mero dever de servir e atinge níveis de devoção religiosa, estão dispostos a morrer pelo comando do imortal. E de fato morrem. Ao saltarem de baixo de um caminhão na tentativa de pará-lo, detonarem uma bomba em seus corpos para obstacular

os inimigos, os devotos guerreiros exclamam aos

próximos: “Testemunhem!” E se jogam à morte. O que significa a exclamação senão o exato sentido de testemunho no sentido religioso? O mártir (vale ressaltar que a etiologia da palavra “mártir" vem do grego “martys" que é perfeitamente traduzido como “testemunha”)

pede aos sobreviventes, como seu desejo

derradeiro, que não apenas atestem seu gesto da mais absoluta fé, mas que igualmente o espalhem aos outros combates. ***** 
 De outro modo, para Agamben, o testemunho é o espaço de fala daquele que não pode falar, é “uma potência que adquire realidade mediante uma impotência de dizer” (2008, p.147). Por meio de uma testemunha, o sujeito profere a voz do morto, do mudo ou do vencido. Entretanto, o autor lembra-nos como o sobrevivente é, sempre, em alguma medida, um privilegiado, doutro modo não seriam sobreviventes. As testemunhas portanto, nunca são sujeitos integrais do evento histórico, pois não passaram pela mesma barbárie de seus

contemporâneos vencidos. Não atingiram o fundo. Ao tratar das execuções em Auschwitz, Agamben ressalta como o indivíduo que as presenciou não poderia contar a história, é que quem pôde ver a câmara de gás ou o pelotão de fuzilamento — quem de fato fitou a górgona — para lá foram encaminhados e não puderam jamais dar voz à experiência. Portanto, os libertos dos campos de concentração que conseguiram perdurar por mais alguns dias e que a contingência do tempo garantiu a permanência da vida, não são propriamente as testemunhas e, quando assumem para si a responsabilidade de narrar os acontecimentos pretéritos, devem ter em mente tal limitação, ciente de que o testemunho resta nesta zona imprecisa entre vivenciar e sobreviver. Nas suas palavras, quem assume para si o ônus de testemunhar por eles, sabe que

deve testemunhar pela impossibilidade de testemunhar. Isso, porém, altera de modo definitivo o valor do testemunho, obrigando a buscar o sentido em uma zona imprevista. (AGAMBEN, 2008,

p. 43). 3 PROPOSTA DE CONCEITUALIZAÇÃO DE TESTEMUNHO É Inegável que alguns grupos jamais puderam testemunhar sua própria história, ou melhor, nunca puderam dar o testemunho de seu tempo. São eles os vencidos, grupos socialmente excluídos: os povos colonizados pelos europeus, os negros escravizados, os negros que ainda mantêm-se na posição periférica da política, as mulheres que nunca tiveram voz atém da condição biológica como reprodutoras, os judeus, os imigrantes e todos aqueles não podem falar. Este silêncio se manifesta não apenas na historiografia, mas em demais esferas de produção cultural. Na literatura, a título de exemplo, há um abismo de popularidade entre escritores europeus e os pertencentes ao “terceiro mundo”, mesmo no Brasil, em que as publicações de mulheres negras datem 1989, nada ou quase nenhuma obra é estudada nos círculos literários. Assim, a possibilidade de romper com a figura periférica da mulher negra, a colocando em um espaço autoinscrição da experiência e expondo um novo olhar para sua situação, ainda está muito distante, mas deve, cada vez mais, ganhar o espaço social, cultural e acadêmico. (DAMASCENO, 2015, 38)

Para a indiana Gayatri C. Spivak, uma das razões para o testemunho — em especial a fala da mulher subalterna —

ser uma impossibilidade são,

justamente, as características dissonantes do padrão de saber científico, por carecer das particularidades metodológicas necessárias. À totalidade dessas características a pesquisadora retoma um termo foucaultiano conhecido como "violência epistêmica"; a saber, é a monocultura de crenças e procedimentos científicos mediante os quais o saber é produzido e que impossibilita com que toda produção divergente seja introduzida no campo acadêmico e careça de status científico, configurando nada além de um conhecimento ingênuo, não suficientemente elaborado. O mais claro exemplo disponível de tal violência epistêmica é o projeto remotamente orquestrado, vasto e heterogêneo de se constituir o sujeito colonial como o Outro. (…) Talvez não seja demais pedir que o subtexto da narrativa palimpséstica do imperialismo seja reconhecido como um 'conhecimento subjugado’ ( SPIVAK, 2010, p. 60- 61

De fato, não há violência epistêmica mais desoladora que a narrativa colonizadora. Na obra A conquista da América Latina vista pelos índios, Miguel León-Portilla (1985) traduz os relatos astecas, maias e incas e expõe a diferença abismal da produção histórica oficial e de uma produção histórica testemunhal. Percebe-se, em sua reunião de arquivos, o caráter místico das narrativas indígenas, a oralidade marcada e metafórica, que exalta as impressões pessoais do narrador, deixando viva sua comoção. É a mistura do lírico e do épico, ainda que se afaste drasticamente das estruturas clássicas. Para melhor exemplificar, eis um excerto do livro no qual os astecas ilustram o ataque à cidade de Tlatelolco:



Descrição épica da cidade sitiada: Isso tudo se passou conosco. Nós vimos, estamos estupefatos: com essa triste e lamentosa sorte nos vimos angustiados. nos caminhos jazem dardos quebrados; os cabelos estão espalhados.
 Destelhadas estão as casas, incandescentes estão seus muros. Vermes abundam por ruas e praças, e as paredes estão manchadas de miolos arrebentados. Vermelhas estão as águas, como se alguém as tivesse tingido, e se as bebíamos, eram água de salitre.

Golpeávamos os muros de adobe em nossa ansiedade e nos restava por herança uma rede de buracos. Nos escudos esteve nossos resguardo, mas os escudos não detém a desolação. Temos comido pães de colorím, temos mastigado grama salitrosa, pedaços de adobe, lagartixas, ratos e terra em pó e mais os vermes. (LEÓN-PORTILLA,

1985, p. 41)

Os versos são exemplares, mas durante toda a narrativa o caráter metafórico e carregado de imagens permanece. Em outros momentos da obra (p. 61-64), investiga-se como os maias antecipavam a chegada e a conquista dos brancos em cinco textos proféticos bastante similares em forma com o excerto acima transcrito. A razão positivista, no entanto, não concebe tal lembrança como conhecimento: o que ocorreu na história desses protagonistas não pertence ao externo ou objetivo e esperar a “neutralidade axiológica” do cientista para a veracidade do relato é impensável. Aqui, a sentimentalidade e a parcialidade diante do horror ganha espaço, pois ao testemunhar as atrocidades da colonização, não há outra forma contar a história senão trazer a dor dos que não sobreviveram, honrando-os 
 Para León-Portilla — e para a proposta deste trabalho — o testemunho é uma escolha historiográfica, um instrumento de análise com o qual se pode melhor compreender o passado, elevando a vivência no âmbito científico e, assim, desestabilizar a produção histórica oficial (história dos vencedores), ainda que enfrente a resistência de uma violência epistêmica. Quando Léon-Portilla se debruça nos relatos dos povos nativos da América e escolhe por dar voz aos vencidos, concede aos oprimidos o lugar de fala e de representação da história que lhes é própria. Assim, pensar e fazer uma historiografia testemunhal não é apenas uma ruptura metodológica, é também uma cisão responsável por criar um novo conteúdo à história. Ao dar voz aos relatos dos derrotados pelo marchar da história e da exploração (que sempre caminharam juntas e sempre se cortejaram pelos sucessos mútuos), se questiona o que antes foi dito, apresentando o lado dos explorados: A fome no lugar da fertilidade das terras tropicais, os vermes em substituição aos exóticos animais saqueados pelos europeus e a selvageria da colonização frente a civilização oficial. 


REFERÊNCIAS:
 AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2008. DAMASCENO, Janaína. Dossiê Literatura e experiência. Revista CULT. São Paulo, n. 203, jul. 2015. HARTOG, François. A presença da testemunha. In: VIII CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO, Aula magna… Curitiba: UFPR, 2015. LÉON-PORTILLA, Miguel. A conquista da América Latina vista pelos índios. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o Subalterno Falar? Ed. Belo Horizonte: UFMG, 2014

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.