Vida e Obra de Ernst Abbe, fundador da óptica moderna

July 25, 2017 | Autor: Ademir Xavier | Categoria: Optical Engineering, Optics, Astronomia, Telescopio
Share Embed


Descrição do Produto

Vida e Obra de Ernst Abbe, fundador da óptica moderna Por H Volkmann (Traduzido do original “Ernst Abbe and His Work” por Ademir Xavier. ([email protected]), Applied Optics, 5, n. 11, 1966)

Embora as invenções do telescópio e do microscópio datem dos séculos XVI e XVII através das contribuições de eminentes cientistas como Galileu, Huygens e Newton, o desenho desses instrumentos não se estabeleceu antes do começo do século XIX. Até esta época, ingleses e franceses eram considerados os melhores fabricantes de instrumentos ópticos da Europa, orgulhosos de seu artesanato e do sucesso de seus métodos baseados em tentativa e erro. Seus desenvolvimentos, entretanto, não iam além das limitações naturais de seus métodos, independentemente de suas habilidades. De forma alguma se pensava em recorrer à Ciência em busca de idéias e novos avanços. Tais métodos eram tudo menos científicos [1]. Por exemplo, se um óptico quisesse desenvolver uma objetiva de um microscópio, procurava uma oficina onde existisse um sistema óptico de qualidade comprovada e aceita, cujo desenho estivesse o mais próximo possível da objetiva em mente. Então, copiava a objetiva o mais semelhantemente possível. Entretanto, as propriedades ópticas do vidro à disposição nem sempre eram as mesmas da original. Além disso, as curvaturas dos elementos, assim como as distâncias entre eles, diferiam freqüentemente daquela da objetiva modelo, por causa da inexistência ou má qualidade dos instrumentos de aferição. Assim sendo, o produto final e a qualidade da imagem resultavam diferentes da objetiva original. Se a cópia fosse de fato muito pior do que a original, um procedimento de correção mais ou menos sistemático era posto em prática, fazendo-se

alterações proporcionais nas dimensões, curvatura ou distâncias entre lentes individuais, assim como experimentando outros tipos de vidro. Havia um conjunto de regras estabelecidas pela experiência para esse tipo de correção que eram mantidas a sete chaves por cada oficina. A obtenção de vidros apropriados era muito difícil. Na época, a produção das poucas vidrarias existentes era dirigida segundo as exigências dos grandes fabricantes de vidro em geral, e não segundo necessidades específicas de fabricantes de instrumentos ópticos. Esses últimos dependiam muito da sorte de alguma vidraria produzir um pedaço de vidro com qualidade adequada. Acima de tudo, ópticos e físicos não se davam conta da existência de relações que permitissem compreender o desempenho geral dos instrumentos ópticos e as propriedades dos elementos ópticos neles contidos. Essa situação mudou no século XIX quando dois homens, trabalhando independentemente um do outro, iniciaram no campo da óptica uma cooperação sistemática entre ciência e artesanato com impressionante sucesso. Estes homens foram Joseph Fraunhofer (1787-1826) em Benediktbeuren próximo a Munique e Carl Zeiss (1816-1888) em Jena. Em um seminário em 1887 na ocasião do centenário de nascimento de J. Fraunhofer, Ernst Abbe [2] (1840-1905) enumerou os problemas cujas soluções Fraunhofer reconhecera como as mais essenciais e referiu-se a elas como o “método de Fraunhofer”. A tarefa em mãos para resolver esses problemas podia ser resumida na seguinte forma: 1) desenvolvimento e

Vida e Obra de Ernst Abbe, fundador da Óptica Moderna. Trad. Ademir Xavier (Março 2015)

aperfeiçoamento de métodos técnicos de manufatura, 2) pesquisa extensiva e formulação de teorias básicas, 3) melhoria nos materiais brutos. Fraunhofer [3] reconheceu que, se aberrações cromáticas tinham que ser eliminadas de sistemas ópticos, um novo tipo de vidro precisava ser descoberto. Tal vidro teria que produzir relações de dispersão definitivamente diferentes daquelas conseguidas com os únicos tipos de vidro conhecidos até então: o crown e o flint. Desenvolveu também um método de medida de índices de refração e foi capaz de estabelecer uma relação entre índices refrativos para linhas espectrais individuais, por exemplo, (ng-nd), usando linhas escuras do espectro solar que ele mesmo havia observado pela primeira vez, e muitas das quais havia redescoberto. Assim, Fraunhofer foi capaz de comparar índices de refração de diferentes materiais para os mesmos, embora desconhecidos, comprimentos de onda. Alguns anos mais tarde (1823), conseguiu fabricar uma rede de difração com 4000 sulcos em apenas 1,3 cm e medir comprimentos de onda. Por causa das aplicações práticas dessas descobertas, sua oficina tornou-se líder na Europa, principalmente com a construção de instrumentos astronômicos. Tal posição foi perdida rapidamente com a morte de Fraunhofer aos 39 anos, e pelo fato de sua oficina ter caído nas mãos de sucessores inescrupulosos e sem visão. É muito característico desse período e dos contemporâneos de Fraunhofer que competidores franceses e ingleses não tenham continuado na mesma linha de pesquisa contínua e sistemática. Nas décadas seguintes à morte de Fraunhofer, um ou outro dos três de seus

2

princípios foi aplicado. Como exemplo, J. M. Petzval (1807-1891) resolveu matematicamente o problema do feixe de raios de imagens com grande abertura. Infelizmente, tais cálculos nunca foram publicados. H. A Steinheil (1823-1893) aplicou o segundo dos princípios de Fraunhofer. Nenhum deles, entretanto, tentou com o terceiro princípio: a melhoria da qualidade dos vidros. O primeiro a aplicar os três princípios foi Carl Zeiss. Depois de completar o ginásio em Weimar, tornou-se aprendiz de mecânico universitário1, Friederich Körner (1778-1847) em Jena. Este foi o mesmo Körner que, em colaboração com o astrônomo von Münchow (1778-1836), tentou sem sucesso desenvolver grandes telescópios na mesma época de Fraunhofer e melhorar a qualidade dos vidros. Zeiss conseguiu permissão na universidade para fazer os cursos que precisava para melhorar sua educação, assistindo aulas de matemática elementar, física aplicada, mineralogia, óptica e outras matérias. Concluído seu aprendizado, Zeiss buscou mais educação teórica e prática de óptica em oficinas de fabricantes de instrumentos em Stuttgart, Darmstadt, Vienna e Berlin. Aos 30 anos estabeleceu-se em Jena como mecânico e, mais tarde, tornou-se mecânico universitário como seu mestre. Seguindo uma sugestão do biólogo J. Schleiden (1804-1881), Zeiss começou a fabricar microscópios. Começara pelo único método conhecido até então, o da tentativa e erro. Buscava 1

A posição de mecânico universitário não deve ser confundida com aquela dos mecânicos de hoje em dia. No caso, Körner dava aulas na universidade e foi autor de uma série de trabalhos sobre a construção de instrumentos científicos.

Vida e Obra de Ernst Abbe, fundador da Óptica Moderna. Trad. Ademir Xavier (Março 2015)

que os empregados de sua oficina produzissem objetivas cujos elementos ópticos fossem trabalhados da maneira mais uniforme e precisa possível. Com essa meta, conseguiu desenvolver um método de teste (feito também por Fraunhofer independentemente antes) que foi empregado várias vezes, usando lentes padrão e o princípio dos anéis coloridos de Newton. De acordo com Schleiden [4], sua oficina teve enorme sucesso em pouco tempo. Como referência, Carl Zeiss recebeu uma medalha de prata em 1857 e uma de ouro, como primeiro prêmio em 1861. Na exibição industrial da Turíngia consta que o prêmio foi por instrumentos “pertencentes a mais excelente classe dos produzidos em toda Alemanha” e cujo “sistema de lentes se sobressaem particularmente por causa das imagens nítidas, brilhantes e perfeitas produzidas”. Entretanto, Zeiss tornou-se logo bastante cético com esses sucessos, conforme contou mais tarde a Abbe. Percebeu que, como iniciante na área, a ele faltavam a tradição e a experiência dos fabricantes de microscópios mais antigos e bem estabelecidos. Por isso, já em 1850 iniciou uma investigação sobre a possibilidade de tratamento matemático do sistema óptico de microscópios. Dessa maneira, imaginava que um óptico teria apenas que seguir as instruções de um matemático o mais precisamente possível. Após várias tentativas infrutíferas de estabelecer uma formulação matemática, Zeiss percebeu que lhe faltavam também suficiente conhecimento. Procurou, então, auxílio do matemático Barfuss (1809-1854) que trabalhara com Körner, o que não produziu resultado algum. Zeiss, porém, não desanimou. Em 18662, ele se 2

Por essa época Zeiss e seus operários haviam produzido até então quase mil microscópios em sua pequena fábrica.

3

aproximou de outro cientista, Ernst Abbe, então aluno na universidade de Jena, propondo estabelecer as bases científicas da construção de microscópios. Enquanto cálculos matemáticos eram aceitos na época na construção de máquinas e telescópios simples, o microscópio era considerado um instrumento muito complexo para o mesmo procedimento. Os cientistas concordavam universalmente que, anda que uma fórmula matemática pudesse ser encontrada, sua aplicação não seria possível do ponto de vista prático. Por causa do diminuto tamanho das lentes e do grande número de pequenas partes que compõem um microscópio, imaginavam que seria impossível confeccionar todas as partes segundo tal fórmula. Melhoramentos no método de manufatura e precisão de instrumentos ópticos. Nos primeiros anos da colaboração com Zeiss, Abbe introduziu procedimentos mais eficientes na confecção dos componentes ópticos e inventou vários testes e equipamentos de controle. A fim de melhorar a qualidade, uniformidade e velocidade de fabricação dos acromatas – produção desde 1861 – Abbe e Zeiss iniciaram uma divisão de funções de trabalho na oficina de óptica. Dessa forma, lentes foram cuidadosamente baseadas em especificações exatas, sem deixar que o trabalhador influenciasse individualmente sua forma. O método industrial inglês (que era prática comum na época) não somente tolerava isso como também exigia tal influência individual. Abbe também inventou uma série de instrumentos para medir constantes de lentes com suficiente precisão e rapidez. O focímetro (1867), para medir distâncias focais de uma objetiva ou de suas partes individuais, foi um deles. O refratômetro veio depois, em uso desde 1869, que

Vida e Obra de Ernst Abbe, fundador da Óptica Moderna. Trad. Ademir Xavier (Março 2015)

tornou possível a determinação de índices de refração de amostras de vidro ou líquidos, através da medida do ângulo limite de reflexão total. Logo depois o espectrômetro de Abbe foi desenvolvido para medir (muito mais rapidamente do que com o método de Fraunhofer) propriedades de vidros, índices de refração e dispersão segundo princípio de autocolimação. Em 1870 Abbe introduziu o apertômetro, para determinação numérica de abertura de objetivas de microscópios. Um instrumento especial veio depois, para testar materiais com “schlieren”, estrias e rachaduras. Finalmente desenvolveu uma série de instrumentos de medida para determinação das dimensões físicas de sistemas ópticos, i. e., o esferômetro para medir espessuras e alturas e o comparador. Tais instrumentos de medição tornaram-se particularmente importantes na década de 1870, quando a produção de objetivas de acordo com as especificações de Abbe exigiu que os materiais usados, a forma, o tamanho dos elementos (as lentes) e a distância entre eles correspondessem, dentro de tolerâncias dadas, às relações matemáticas. Naqueles anos seus operários tiveram que aprender novos meios de produzir, em quantidade, diminutas lentes de microscópios dentro de tolerâncias especificadas. Somente com esses novos instrumentos foi possível controlar as tolerâncias tão precisamente e tão próximo às especificações de forma a garantir uma qualidade uniforme de imagem. Novas ideias sobre leis que regem a formação de imagens em um microscópio. Usando os métodos empíricos de produção até a década de 1860, Carl Zeiss falhou, não obstante todas as tentativas, em fabricar objetivas de imersão aquática da mesma qualidade das vendidas desde 1859 por E. Hartnack (1824-1891) em Paris. Zeiss temia que, em longo prazo, não conseguisse permanecer no ramo por causa dos competidores estrangeiros. Essa talvez tenha sido a razão porque Abbe, em fevereiro de 1869 e a pedido de Zeiss, iniciou cálculos extensivos visando

4

o desenvolvimento de fórmulas que predeterminassem o comportamento óptico de todas as lentes. Tais relações resultariam em métodos de produção de objetivas de microscópios muito mais econômicos que aqueles baseados em tentativa e erro. Abbe partiu da suposição de que os métodos da óptica geométrica – em essência aqueles desenvolvidos por Sir David Brewster – eram suficientes para o cálculo das objetivas. De acordo com essa teoria, a imagem em um microscópio se forma da mesma maneira como em uma câmera fotográfica, i. e., o processo de formação de imagem obedece às leis da projeção central. A lei estabelece que a imagem formada por um instrumento (desde que os raios convirjam próximos a um ponto) deve ser estritamente similar a do objeto, com magnificação arbitrária. Dessa forma Abbe inicialmente calculou e construiu objetivas com pequena abertura angular. Supunha que essas teriam, ao menos teoricamente, uma correção muito melhor que as objetiva com abertura angular maior. Contrariamente às expectativas de Abbe, o novo sistema óptico produzido por Zeiss, estritamente segundo suas especificações, mostrou-se inútil do ponto de vista prático. Não obstante a enorme melhoria na correção esférica e cromática, as imagens resultaram muito menos brilhantes e com menor resolução do que aquelas produzidas com o velho sistema baseado em objetivas menos corrigidas e com maior abertura. Abbe então realizou uma série de experimentos para encontrar as razões para o melhor desempenho das objetivas de grande abertura e da falha inesperada. Primeiramente investigou o papel da refração da luz produzida nos detalhes dos espécimes. Seus experimentos, para determinar precisamente o efeito da refração sobre a deflexão da luz, mostraram conclusivamente que o ângulo de abertura não influencia a qualidade da imagem via refração. Logo, foi obrigado a abandonar a idéia de que a refração no canto das lentes dos microscópios desempenhava o mesmo papel como nos telescópios. Na época, o feixe formador da imagem nunca preenchia

Vida e Obra de Ernst Abbe, fundador da Óptica Moderna. Trad. Ademir Xavier (Março 2015)

completamente a abertura total da objetiva. Do ponto de vista geométrico, o feixe de imagem representava uma extensão do feixe iluminador. Para Abbe, a questão se colocava da seguinte forma: “Por que uma objetiva de grande abertura resulta em uma imagem mais brilhante e com maior resolução do que objetivas de menor abertura, não obstante o cone de luz proveniente da fonte de luz preencher somente uma pequena porção da abertura, deixando o resto aparentemente inutilizado como espaço escuro? O espaço escuro foi provado como sendo útil experimentalmente, mas por quê?” [5] No fim admitiu: “Finalmente encontrei na difração a única explicação, depois de eliminar todas as outras, para o mistério do espaço escuro”. Depois de muitos experimentos, Abbe descobriu que a influência da abertura angular resulta da difração causada por espécimes cujas dimensões são comparáveis ao comprimento de onda da luz, sendo os ângulos de difração tão grandes que a luz preenche, na verdade, o espaço escuro. Abbe percebeu que sua assunção básica, a de que a formação de imagens em microscópios segue as mesmas leis da óptica geométrica, não podia ser válida. Tenho reconhecido isso, desenvolveu sua teoria de formação de imagem que, até hoje, representa a base de toda explicação para o processo de formação de imagem em microscópios em termos de ondas de luz. Com essa nova idéia, Abbe terminou confiante o cálculo para uma nova série de objetivas – dessa vez com grande abertura angular. Mais uma vez, a oficina de Zeiss produziuas com extremo cuidado e a um custo considerável. Embora Abbe tenha dado ênfase especial à correção da aberração e, assim sendo, na melhor qualidade de imagem possível, testes mostraram novamente que esses sistemas falharam em relação ao esperado. A revisão subsequente de seus cálculos revelou que imagens nítidas de elementos superficiais perpendiculares ao eixo só são possíveis sob condições específicas. Até aquela época, Abbe limitara-se a calcular a formação de

5

imagens perfeitas de pontos no plano objeto localizados sobre o eixo em correspondência axial com pontos no plano imagem. Agora, reconhecia que seu método não era adequado para tratar imagens de elementos superficiais perpendiculares ao eixo, mesmo se próximos ao eixo óptico. Para todos os pontos de tal elemento superficial, a ampliação de diferentes zonas da objetiva deve ser igual, de outra forma, não se consegue impressão de imagem uniforme. Assim sendo, deveria haver uma relação unívoca entre ângulos de raios de um feixe arbitrário do lado objeto e aqueles correspondentes raios do lado imagem. Para pontos conjugados, Abbe encontrou que a razão entre o seno de dois ângulos deve ser constante sobre toda abertura do sistema, se toda zona da objetiva deve formar imagem do mesmo tamanho. Somente o cumprimento dessa relação adicional, assim chamada condição de seno de Abbe, produziria um sistema óptico capaz de formar a imagem de um ponto axial sem aberração esférica, com a capacidade adicional de projetar pontos de uma pequena superfície perpendicular ao eixo sem a aberração assimétrica chamada coma. Com essa nova descoberta, Abbe estabeleceu a base teórica para o desenho de objetivas aplanáticas, que são livres tanto de aberração esférica como coma3. Depois de revisar sua teoria básica, um cálculo puramente trigonométrico de acromatas foi feito rapidamente, embora Abbe tivesse que trabalhar nos cálculos extensivos completamente sozinho. Formulou regras práticas para o desenho correto de microscópios e limites teóricos para o poder de resolução, isto é, da distância mínima entre dois pontos no objeto que pode ser resolvida na imagem. O poder de resolução é limitado pelo comprimento de onda da luz usada para produzir a imagem, pela abertura angular 2 da objetiva e pelo índice de refração do meio que preenche o espaço entre o espécime e a objetiva. Como unidade de medida disso, estabeleceu a abertura 3

Logo depois disso, e independentemente de Abbe, Helmholtz desenvolveu a condição de seno como resultado de considerações fotométricas, sem chegar a conclusões sobre o cálculo matemático de sistemas de lentes.

Vida e Obra de Ernst Abbe, fundador da Óptica Moderna. Trad. Ademir Xavier (Março 2015)

numérica N = n sin. Os inúmeros e custosos experimentos realizados sob sugestão de Abbe, que se estenderam por um período de vários anos, foram um grande peso financeiro para a pequena oficina e seus vinte empregados, quase os levando à falência. Carl Zeiss nunca pensou, porém, em abandonar seu objetivo. De fato, as primeiras objetivas construídas de acordo com as especificações de Abbe eram inferiores àquelas construídas com métodos empíricos, porque a multiplicidade e complexidade dos novos requisitos só foram descobertas gradualmente ao longo dos anos. Entretanto, no final, conseguiram satisfazer completamente as expectativas teóricas, o que se traduziu como a sonhada qualidade de imagem. A partir de 1872, todas as objetivas de microscópio produzidas por Zeiss eram calculadas e comercializadas. No começo da década de 70, as realizações de Abbe deram a pequena oficina uma vantagem decisiva sobre outros competidores. Os negócios aumentaram consideravelmente, o que levou Carl Zeiss em 1871 a dividir os lucros com Abbe e, em 1875, a fazê-lo seu sócio. Pesquisa básica sobre instrumentos ópticos.

a

eficiência

de

A seguir Abbe dirigiu seu talento científico e incansável curiosidade aos problemas gerais da óptica geométrica. Não estava satisfeito em ter encontrado a base teórica para o desenho de microscópios. Continuou a procurar por leis básicas que governassem a eficiência de instrumentos ópticos, i. e., a dependência do comportamento de um sistema óptico com a forma de seus componentes individuais e relação espacial entre eles. Perguntava-se: “Qual a característica essencial de toda formação de imagem óptica sem consideração a como ela ocorre? ”. Indo além dos achados de Gauss (1777-1855), Listing (18081882), Helmholtz (1821-1894) e Neumann (18321925), reconheceu essa característica como sendo a relação colinear entre o espaço imagem e o espaço objeto no sentido da óptica geométrica, quer dizer, na relação não ambígua entre pontos e linhas retas

6

nos dois espaços. Uma vez estabelecida essa relação, a formação da imagem fica predeterminada em todos os aspectos. Gauss, Helmholtz e outros fizeram um número excessivo de suposições desnecessárias na derivação da maioria dos resultados. Em sua teoria geral de formação de imagem, Abbe foi o primeiro a claramente definir aquelas características da imagem óptica que são governadas por princípios gerais de formação de imagem e aquelas outras que dependem de características particulares. Mais tarde, Abbe trouxe contribuições a outras questões interessantes, tais como a teoria geral de formação de imagens anamórficas. Enquanto que as propriedades geométricas dos traçados de raios já tinham sido tratadas extensivamente por Gauss e seus sucessores, as leis básicas para o cálculo de diferentes aberrações tornaram-se conhecidas por meio de Seidel. Ninguém antes de Abbe tinha tratado a teoria básica da intensidade de luz em instrumentos ópticos [6]. Os princípios que estabeleceu, com respeito ao comportamento geral de um feixe de luz no espaço imagem, como determinado por sistemas ópticos, levaram-no a desenvolver sua teoria de limitação de feixe de luz por pupilas. De acordo com essa teoria, pode-se pensar na luz no espaço imagem como proveniente da imagem da fonte de luz, ou alternativamente, considerar a pupila de saída como uma superfície auto iluminada. Na análise final de Abbe, o efeito real de um sistema óptico é governado pela posição, tamanho e forma dos diafragmas que possui. Tais diafragmas selecionam, a partir de uma multiplicidade de raios, aqueles necessários para um efeito específico e evitam que outros passem pelo sistema para a imagem ou olho do observador. É verdade que o efeito de diafragmas não era segredo para alguns cientistas antes de Abbe, sendo que alguns deles os utilizaram em seus experimentos. Destaca-se, entre outros, algumas considerações feitas por J. Petzval e H. Helmholtz. Mas, essas foram meras dicas se comparadas à complexa teoria de pupilas que limitam feixes de luz, o que tornou possível compreender as leis

Vida e Obra de Ernst Abbe, fundador da Óptica Moderna. Trad. Ademir Xavier (Março 2015)

subjacentes ao funcionamento de instrumentos ópticos. Abbe mostrou conclusivamente que somente pelo conhecimento exato do comportamento da luz através de um sistema óptico é que se podia ter controle sobre os fatores decisivos que influenciariam o desempenho de um instrumento óptico. A intensidade de luz e o grau de visibilidade de imagens com relação à espessura e profundidade, o grau de semelhança dessas imagens com os objetos verdadeiros (distorção), a maneira como objetos tridimensionais são projetados em superfícies planas (projeção) e mesmo seus tamanhos aparentes subjetivos, são determinados pela posição e tamanho de diafragmas nos sistemas ópticos. Da teoria das pupilas, Abbe deduziu posteriormente consequências para a perspectiva e efeitos ortoscópicos e pseudoscópicos que ocorrem em microscópios binoculares. O problema da correção apocromática. No começo da década de 1870, Abbe convenceu-se que seus cálculos para as lentes acromáticas forneciam a correção ideal ao alcance dos recursos da época. Tinha a certeza, porém, que não havia feito tudo possível. O cálculo de Abbe para os acromatas não eliminou o espectro secundário nem, como assim ele colocou “as aberrações cromáticas causadas pelos inúmeros feixes de raios inclinados dentro da abertura angular”, também conhecido como erro de Gauss. Já em 1873, Abbe afirmava que [7] “enquanto aberrações (primárias e secundárias) usuais são eliminadas inteiramente ou, ao menos, ficam despercebidas em um sistema corretamente desenhado, o conhecimento técnico no estágio presente não dispõe de materiais capazes de eliminar a segunda fonte de erro – a diferença cromática da aberração esférica” , como ele assim denominou mais tarde. Os vidros tipo crown e flint, disponíveis à época, não produziam dispersão proporcional ao comprimento de onda da luz, o que era essencial para eliminar o segundo espectro. A dispersão diferente entre os dois tipos de vidro em

7

objetivas acromáticas tornou possível juntar somente dois comprimentos de onda em um mesmo foco, deixando como resíduo o espectro secundário. Além disso, o vidro com maior índice de refração tinha um poder dispersivo maior. Esse acoplamento entre a dispersão e a refração do vidro evitava (ao menos Abbe entendia assim na época) a eliminação da diferença cromática da aberração esférica, que era especialmente preocupante a grandes ângulos de abertura. Abbe resumiu tal problema de correção e suas idéias com relação à solução da seguinte forma: “Essas aberrações podem ser quase ou completamente compensadas se houvessem materiais ópticos que combinassem um índice de refração relativamente baixo com alta dispersão, ou um índice de refração alto com dispersão relativamente baixa”. Através de uma combinação ideal de tais materiais com os vidros crown e flint padrão, seria possível eliminar parcialmente as aberrações cromáticas e esféricas independentemente uma da outra e, portanto, satisfazer às exigências básicas para eliminação da diferença cromática. Tal fato resulta na conclusão de que as deficiências das objetivas presentes – no que diz respeito a aberrações cromáticas e esféricas – são causadas por propriedades dos materiais brutos disponíveis atualmente. Assim sendo, a perfeição da qualidade óptica dos microscópios parece depender primariamente do progresso na arte de vidraria e produção de vidros ópticos, que possam resultar em proporções de dispersão parcial a eliminar o assim chamado espectro secundário, pelos quais a relação entre dispersão e índice médio de refração seja diferente dos vidros de hoje em dia.” [8] Zeiss e Abbe reconheceram as implicações dessa situação logo cedo. Mesmo assim, hesitaram em iniciar experimentos visando produzir novos tipos de vidro. Conheciam muito bem as inúmeras dificuldades materiais e financeiras relacionadas com esse tipo de

Vida e Obra de Ernst Abbe, fundador da Óptica Moderna. Trad. Ademir Xavier (Março 2015)

empreendimento. Abbe escreveu: “Em qualquer coisa que fizéssemos, essa idéia permanecia em nossas mentes e afetava enormemente nossos trabalhos. Por muitos anos estivemos engajados não somente em problemas de óptica, mas um tipo de óptica utópica, na qual trabalhávamos com desenhos incorporando vidros inexistentes e hipotéticos. Discutíamos novos desenvolvimentos que só se tornariam realidade se conseguíssemos convencer os fabricantes de vidro das várias possibilidades da óptica. Sabíamos, entretanto, que eles não se dobrariam.”[9] Para conseguir novos avanços teóricos, Abbe construiu objetivas com lentes líquidas, batizadas de “objetivas poliópticas”. Como substituto de vidros inexistentes, Abbe usou fluidos para preencher o intervalo entre lentes côncavas muito próximas. O fluido era uma mistura de óleo de cássia e anil. Por esses experimentos, ele e Zeiss tentaram novas possibilidades. Abbe também usou esse novo método para correção de lentes, a assim denominada eliminação de erro independente. Por esse método, nem todas as superfícies cimentadas deveriam compensar tanto a aberração cromática quanto a esférica. Ao menos uma superfície não produzia correção de cor alguma ou mesmo gerava o efeito oposto. Como resultado da diminuição obtida na diferença cromática da aberração esférica, uma imagem com extraordinária correção de cor era produzida. Sua qualidade era comparável àquelas resultantes das lentes apocromáticas desenvolvidas posteriormente e que permitiram, como esperado, uma ampliação maior na ocular. A primeira objetiva polióptica em 1876, seguiu-se uma segunda, a objetiva de imersão constituída por uma lente líquida feita de puro aldeído cinâmico. Em ambas objetivas, a aberração esférica para as linhas B e F de Fraunhofer eram quase que completamente compensadas e a aberração cromática residual ficava reduzida a tal ponto que os raios paraxiais correspondentes às linhas C, E e G eram levados

praticamente ao mesmo foco. Naturalmente tais objetivas não estavam à venda, já que estrias poderiam se desenvolver, o que inutilizava as correções. Entretanto, tais experimentos tornaram-se úteis mais tarde, quando novos tipos de vidro foram encontrados. Vários anos depois, em 1879, Abbe desenvolveu outro método para redução do erro de Gauss, mesmo sem novos tipos de vidro. Exigia um desenho complexo de objetiva: um elemento inicial cromaticamente subcorrigido, em combinação com um elemento posterior compensatório ao primeiro e separado dele por um espaço de ar. A diferença cromática de ampliação resultante poderia ser facilmente compensada nas oculares. Melhoria em materiais brutos. Logo após a invenção de J. Dollond da objetiva acromática de telescópio por volta de 1758, A C. Clairaut (1713-1765) e R. G. Boscovich (1711-1787) reconheceram as diferenças nas proporções de dispersão parcial no espectro visível entre os vidros crown e flint. Por volta de 1791, R. Blair tentou eliminar o espectro secundário das objetivas acromáticas usando lentes líquidas. Não somente havia objeções ao uso de lentes líquidas, como também faltavam a Blair as relações matemáticas e um método para medir o defeito. Esse poderia ser medido apenas aproximadamente, até que Fraunhofer resolvesse o problema. Do método que havia desenvolvido para medir índices de refração, Fraunhofer foi capaz de encontrar valores numéricos que expressassem propriedades ópticas de vários tipos de vidro necessários para compensar a aberração cromática em objetivas de telescópios, usando uma combinação própria de diferentes tipos de vidro. Testes de fusão realizados por Fraunhofer para obter um vidro que corrigisse o espectro secundário foram tecnicamente inúteis, pois não eram duráveis e, portanto, não poderiam ser aceitos comercialmente. Depois da

8

Vida e Obra de Ernst Abbe, fundador da Óptica Moderna. Trad. Ademir Xavier (Março 2015)

morte de Fraunhofer em 1827, tais investigações foram abandonadas. O conhecimento adquirido por Fraunhofer e P. L. Guinand (1748-1824) na produção de vidros livres de estrias4 foi mais tarde usado largamente nos trabalhos de vidraria por Feil em Paris e Chance em Birmingham, ao ponto de monopolizarem a produção de vidros ópticos em toda a Europa. Os tipos de vidro comuns, crown e flint, produzidos por volta da metade do século XIX, eram muito mais puros, mais homogêneos e incolores do que aqueles produzidos quarenta anos antes. Entretanto, o índice de refração sempre flutuava. Assim, de acordo com Abbe, o índice de refração np de vidros feitos sob idênticas especificações poderiam diferir em mais de 0.0006, mesmo para os vidro ingleses que, na época, eram os melhores. Na primeira metade do século XIX, a tecnologia disponível não produziu nenhum novo tipo de vidro. Abbe tentou convencer vidreiros franceses e ingleses a fabricar novos tipos, mas não obteve sucesso por causa dos altos custos envolvidos. Então, em 1879, bons ventos levaram Abbe a conhecer Otto Shott (1851-1935). Shott, nascido em Witten (Vestefália), era filho de um proprietário de uma fábrica de chapas de vidro. Estudou química, graduando-se em 1875 e sua dissertação discorreu sobre falhas no processo de manufatura de janelas de vidro. Em 1879 conseguiu produzir um novo tipo de vidro no qual substituiu o sódio ou potássio por lítio. Desconhecendo o interesse de Abbe por novos tipos de vidro, Shott escreveu a ele em 1879 4

Os vidros crown de Guinand (fracamente dispersivos) tinham a seguinte composição: 72% de sílica, 18% de potássio ou soda e 10% de limo. Os vidros flint (fortemente refrativos e dispersivos) tinham: 45% de sílica, 12% de potássio e 43 % de óxido de chumbo.

perguntando sobre as propriedades ópticas do vidro de lítio. A investigação de Abbe mostrou que o novo vidro diferia dos tipos existentes em seu índice de refração e dispersão, não produzindo resultados na forma desejada. Tal evento estabeleceu, entretanto, contato entre Zeiss, Abbe e Schott. Abbe escreveu a Schott na época: “Considero um grande sucesso que o Sr. tenha sido capaz de obter testes de fusão em tão pequenos aglomerados, e de tal qualidade que permitam uma análise completa do produto. Feil em Paris, que é bem conhecido vidreiro, não conseguiu fornecer tais testes dos quais eu teria sido capaz de fazer determinações aproximadas de dispersões médias, muito menos uma determinação confiável da dispersão parcial, da mesma forma como eu obtive com suas amostras. Parece-me que o mais importante quesito no progresso da produção de vidros seja a capacidade de produzir testes de fusão disponíveis para medidas ópticas, porque somente dessa maneira é possível a experimentação metódica. Sendo necessário produzir amostras em quantidades de 60 a 80 libras, apenas para se obter um prisma utilizável em testes de laboratório, é impossível considerar testes sistemáticos com novas combinações.” Depois de transpostas várias dificuldades, um pequeno laboratório conjunto foi estabelecido em Fevereiro de 1882 que, em 1884, se tornou o “Jenär Glaswerke Schott und Genossen”. Otto Schott conseguiu produzir novos tipos de vidro por um estudo sistemático de diferentes álcalis e ácidos presentes em compostos vitrificáveis. Era característico de sua mente metódica que não começasse experimentando com todos os tipos de combinações. Ao invés disso, seu gênio invariavelmente concentrava-se nas numerosas propriedades de minerais que servissem as suas necessidades. Desta forma conseguiu encontrar a forma mais direta de produzir novos tipos de vidro com propriedades ópticas específicas. Embora esse procedimento não resultasse

9

Vida e Obra de Ernst Abbe, fundador da Óptica Moderna. Trad. Ademir Xavier (Março 2015)

diretamente em explicações completas sobre questões complexas envolvendo o grande número de elementos que podiam ser usados na fabricação de vidros ópticos, muito cedo Schott foi capaz de apresentar resultados concretos. Depois de apenas um ano, setecentos testes de fusão foram feitos e, por volta de 1866, quarenta e quatro tipos de vidro, em sua maioria novos, foram lançados no mercado. Para manter o vidro livre de bolhas e estrias, era necessário agitar o vidro fundido cuidadosamente. Fácil como isso parece ser a primeira vista, as dificuldades técnicas são de fato numerosas. Primeiramente deve-se encontrar um material suficientemente resistente para o misturador, que não seja destruído pelo calor da fusão e que não acrescentasse impurezas à massa vítrea. Por sua vez, a massa de vidro em fusão tem que estar bastante líquida para que as propriedades ópticas não sejam afetadas. Finalmente, é necessário construir vasos que suportem as altas temperaturas do vidro fundido, com duração suficiente para não ser alterado pelo vidro. A composição do vidro, principalmente na superfície, pode ser influenciada por reações químicas de constituintes individuais das partes fundidas e dos gases em combustão. Escolhendo apropriadamente o combustível e os vasos de fusão, Schott resolveu esses problemas sem criar também estrias no vidro durante o processo de esfriamento. [10] Os novos tipos de vidro tornaram possível o cálculo e a produção das lentes apocromáticas. Uma lente cristalina feita de fluorspar tinha que ser acrescentada ao sistema óptico a fim de obter apocromatas perfeitos. Sua fórmula, Abbe a obteve após intermináveis cálculos que, mais uma vez, foram feitos sem nenhuma assistência e representam a culminância de suas experiências e descobertas por mais de quinze anos de trabalhos árduos. A correção de cor das objetivas estendia-se por todo espectro visível e era de tal qualidade que, mesmo sob iluminação extremamente

10

oblíqua, a imagem apresentava tão boa correção de cor quanto com iluminação direta. Somente a diferença cromática de ampliação não era corrigida na objetiva. Essa, entretanto, foi eliminada com as oculares especiais de Abbe, as assim chamadas oculares de compensação. Nas novas oculares de imersão em água e óleo, Abbe conseguiu aumentar substancialmente a abertura numérica, apresentando em 1889 sua obra de mestre, a objetiva de imersão monobromonafitálica com NA de 1,60. Com suas novas lentes apocromáticas, foi capaz de alcançar o limite do poder de resolução, calculado de acordo com sua teoria de difração. Logo em 1879, Abbe escreveu profeticamente: “Talvez no futuro a mente humana seja capaz de encontrar processos e conquistar forças naturais que abrirão novas e importantes chances de eliminação das dificuldades que agora parecem intransponíveis a nós. Acredito nisso firmemente. Mas também acredito que as ferramentas que auxiliarão a humanidade a explorar os últimos elementos da matéria, muito mais efetivamente que o microscópio como o conhecemos hoje, não terão, provavelmente, nada mais além que seu nome em comum”. Para se entender o significado de suas descobertas, é preciso considerar que a pesquisa de microorganismos, que começara na época nos campos da biologia e bacteriologia, não teria sido possível sem os microscópios dentro dos limites teóricos do poder de resolução. Para melhorar a eficiência dos microscópios, Abbe ainda desenvolveu novos acessórios. Devemos aqui mencionar o iluminador de subestágio de Abbe. Foi primeiramente introduzido em 1869 e logo se tornou um acessório popular. Esse iluminador concentra a luz sobre o espécime dentro de qualquer abertura angular de  90o. Manipulando-se simplesmente um diafragma em íris, foi possível eliminar quaisquer raios indesejáveis no plano focal anterior do condensador e, assim, obter rapidamente e facilmente a iluminação oblíqua desejada. A teoria das pupilas de Abbe resultou

Vida e Obra de Ernst Abbe, fundador da Óptica Moderna. Trad. Ademir Xavier (Março 2015)

posteriormente no desenvolvimento de um dispositivo para desenhos. Finalmente, deve-se também mencionar a câmara para contagem de sangue desenvolvida por Abbe.

11

observatório da Universidade de Jena, que sofria com a falta de recursos financeiros. Conseguiu restaurá-lo tanto quanto possível e, mais tarde, doou recursos para o estabelecimento de um observatório novo e mais bem equipado.

O interesse de Abbe pela Astronomia. Outros inventos. Um ano depois de ter obtido seu doutorado, Abbe sugeriu que o desenho de círculos meridianos fosse alterado [11]. Desejava separar o telescópio do aparelho de medição, se possível, de forma que telescópios com maiores aumentos pudessem ser utilizados sem que os instrumentos de medição interferissem. Seguindo uma recomendação de Steinheil, o eixo do telescópio não deveria ficar a ângulos retos com a direção leste-oeste do eixo de rotação como de costume, mas sim paralelo a tal direção. A luz deveria ser refletida por um espelho colocado em frente ao telescópio. O grande interesse de Abbe em astronomia se concentrava no desenvolvimento de métodos de observação astronômica e no estudo crítico de instrumentos de observação, considerando-se as várias fontes de erro, tal com investigado anteriormente por F. W. Bessel (1784-1846). Além disso, quando avaliava os resultados das observações, interessou-se pela discussão de fatores de probabilidade, de acordo com o método dos mínimos quadrados desenvolvido por Gauss. A dissertação inaugural de Abbe “Sobre a lei de distribuição de erros em séries de observações” [12] (escrita em 1863 com a idade de 23 anos para obter o título de professor na Universidade de Jena) contribuiu para essa discussão. Posteriormente, escreveu sobre temas de astronomia esporadicamente [13]. Por causa de seu interesse vital no assunto, em 1877, além de outras obrigações, aceitou a direção do

Abbe desenvolveu dois instrumentos primariamente concebidos com base no fenômeno de interferência: 1 – o interferômetro [14] que, com um ajuste em um feixe de luz, permite a observação conveniente dos anéis coloridos de Lummer e Haidinger para teste de placas paralelas planas; 2 – uma versão melhorada do dilatômetro de Fizeau [15]. Esse último foi usado largamente no estudo do coeficiente de expansão térmica de tipos de vidro desenvolvidos por Schott. Outro importante desenvolvimento na década de 1890 deve ser mencionado: a invenção da produção em série de prismas de telescópio. Em telescópios terrestres, os sistemas eretores e as lentes criam aberrações. Houve, portanto, uma grande melhora quando o italiano Porro, em 1853, conseguiu inverter a imagem usando simplesmente reflexões em espelhos planos, obtendo-se assim imagens inigualáveis. O telescópio com prismas de Porro, entretanto, permanecia quase que desconhecido por não haver na época vidros suficientemente livres de impurezas, nem processo de produção suficientemente preciso. Sem conhecer o trabalho de seu antecessor, Abbe desenvolveu um telescópio do tipo Porro no começo da década de 1870. Abandonou, entretanto, a ideia de produzi-lo por causa das impurezas e estrias presentes nos tipos de vidro à disposição. Foi então que Schott criou o vidro tipo crown de borosilicato, que preenchia totalmente as exigências de Abbe com relação à pureza e durabilidade e que, além disso, era bastante barato. Diferentemente de Porro, Abbe não se restringiu a telescópios monoculares. Combinou dois desses telescópios de prisma em

Vida e Obra de Ernst Abbe, fundador da Óptica Moderna. Trad. Ademir Xavier (Março 2015)

um telescópio binocular de tal forma que a distância entre as objetivas excedia a distância Inter pupilar, obtendo assim um efeito estereoscópio aumentado, isto é, impressão tridimensional. Esses experimentos de Abbe se basearam na idéia desenvolvida por Helmholtz em 1875, durante uma aula sobre o tele estereoscópio. Entretanto, ninguém percebeu a ideia ou tentou aplicá-la ao telescópio. Mais tarde, Abbe pensou em transformar o tele estereoscópio em um instrumento de medida, tendo a oportunidade de realizar sua idéia quando H. Grousilliers o procurou em 1893 com o telêmetro estereoscópico [16]. Após 1893, Abbe participou ativamente dos avanços da telemetria binocular. Designou C. Pulfrich, gerente do departamento de instrumentos ópticos de medição de Zeiss, para trabalhar nos detalhes. Também criou novos departamentos para o desenvolvimento de objetivas fotográficas e telescópios astronômicos. Desde a época de Fraunhofer, muitas tentativas infrutíferas foram feitas para melhorara a qualidade de objetivas de telescópios em relação ao espectro secundário. Mas não foi senão após o desenvolvimento de novos tipos de vidro por Schott que Abbe teve a satisfação de obter a correção necessária. Nessa época, Abbe também se engajou na produção e teste de superfícies não esféricas, mas, novamente, delegou os cálculos e desenhos ao seu grupo científico. As publicações de Abbe dão somente uma pálida idéia de seu verdadeiro gênio científico. Embora tivesse consciência da importância de toda mente criativa tornar públicos seus trabalhos, sua vontade de criar era muito maior que o sentimento por essa obrigação. Não sentia necessidade de falar de suas descobertas. Essa é a razão porque alguns de seus mais importantes trabalhos foram publicados na forma de breves resumos, geralmente escritos sob insistência de seus amigos cientistas e contendo apenas os resultados mais importantes. A maior parte de seus escritos científicos está na forma de notas,

12

cartas e aulas. Suas principais contribuições para a teoria dos instrumentos ópticos e para as leis que governam a formação de imagens em microscópios chegaram até nós por meio de seus alunos, com base em muitas de suas aulas [17]. O sucesso de Abbe pode ser atribuído a uma rara combinação entre genialidade científica e o dom natural para o desenho e invenção. Tinha também uma grande intuição sobre o que era realmente necessário e poderia ser transformado em realidade. A personalidade de Abbe. Abbe, de compleição magra, quase 1,8 m de altura, com uma cabeça proeminente e barbas negras, deixava uma forte impressão a quem quer que o conhecesse. Havia uma aura de sábio ao seu redor. Nunca deixava que seus pensamentos pessoais influenciassem seu comportamento para com os outros. Assim sendo, suas poucas reflexões pessoais têm maior peso para nós. Sobre seu pai, disse certa vez durante uma aula: “Meu pai era mestre tecelão em Eisenach e, até o começo de 1850, tinha que trabalhar de pé 14, 15 ou 16 horas, todo dia santo – 14 horas, das 5 da manha às 7 da noite quanto os negócios iam normalmente, 16 horas, das 4 da manhã às 8 da noite, quando as coisas iam bem e sem nenhuma interrupção, nem mesmo para o almoço. Quanto criança, na idade entre 5 a 9 anos, trocava com minha irmã, que era um ano mais nova que eu, a vez de levar o almoço para meu pai se o tempo não estivesse ruim. Do contrário, minha mãe faria a jornada cansativa. Olhava como meu pai, encostado em uma máquina ou sentado em uma caixa de madeira, devorava a comida no prato, devolvendo-o vazio para mim e retornando imediatamente ao trabalho. Meu pai era bastante forte, quase meia cabeça mais alto que eu e de vigor infatigável. Mas, aos 48 anos curvou-se à semelhança dos mais idosos. Companheiros seus menos robustos, entretanto, já ficavam assim aos 38.”[18]

Vida e Obra de Ernst Abbe, fundador da Óptica Moderna. Trad. Ademir Xavier (Março 2015)

Quando Abbe tinha 9 anos, refugiados de Dresden chegaram a sua cidade natal de Eisenach. Fugiram de Dresden quando a revolta de 1848 foi suprimida por tropas prussianas. Seu pai escondeu alguns refugiados [19] em uma sala do apartamento que ocupavam em um velho moinho. O garoto tinha que permanecer vigiando para avisar os refugiados da chegada da polícia. Tal acontecimento deixou marcas profundas em Abbe, tendo produzido uma profunda antipatia nele pelo estado policial. Assim, as sementes de muitas de suas idéias sociais e políticas foram lançadas desde cedo. A infância de Abbe foi de privação. Seus pais não tinham meios de enviá-lo a uma escola secundária, muito menos de dar a ele educação universitária. Mas além dos parcos recursos de seus pais, Abbe ganhou várias bolsas de estudo, além do auxílio do patrão de seu pai que o ajudou nos estudos. Com a idade de 17 anos, Abbe terminou a escola secundária, com 22 recebeu seu doutorado, sob orientação de W. Weber, com uma dissertação sobre a teoria termodinâmica de Robert Julius Mayer [20]. Mesmo conseguindo posição como professor dois anos mais tarde, sua condição financeira continuou precária. Entretanto, autoridades universitárias auxiliavam-no nas dificuldades. Então, em 1866, com 27 anos, Abbe encontrou Carl Zeiss e começou um relacionamento que modificaria toda sua vida. Abbe como pioneiro da reforma social. Depois de alguns anos de sua associação com Abbe, Zeiss percebeu que as coisas tinham mudado radicalmente em sua oficina. Com aumento dos lucros provenientes dos crescentes negócios, Abbe sentiu que o sucesso não era devido apenas ao seu trabalho, mas sim ao esforço conjunto de todos. Imaginou desta forma como todos poderiam igualmente se beneficiar. Quando os rendimentos excedessem uma quantidade que considerava remuneração justa

13

ao seu trabalho, então, em sua opinião, os lucros deveriam ser divididos com todos os que participaram nos trabalhos, com divisão segundo a importância do trabalho realizado. Essa convicção de Abbe tornou-se forte obrigação. Durante sua vida doou pesadamente a causas de interesse público e, ao mesmo tempo, tomou providências para que essa prática continuasse depois de sua morte. Queria ver a empresa crescer com o tempo. Como considerasse isso de interesse público, destituiu a si mesmo de sua parte, transferindo-a na forma de fundação [21]. Achava que, ao invés de vários indivíduos - Abbe, Dr. Roderlich Zeiss (filho do primeiro fundador que morreu em 1888) e Dr. Otto Shott – a fundação deveria ser a única proprietária legal das firmas Carl Zeiss e Jenär Glaswerke Schott und Genossen. O Dr. Roderlich Zeiss não era a favor dessa ideia, nem de outras de Abbe. Foi assim com grande alívio que, em 1891, Roderlich Zeiss vendeu sua parte nas companias Zeiss e Glaswerke de Shott por uma generosa quantia. Como organização, nem a corporação de ações (Aktiengesellschaft) nem a cooperativa (Produktivgenossenschaft) agradavam a Abbe, pois não ofereciam garantias de que os interesses gerais e responsabilidades sociais não seriam vítimas algum dia de motivos egoístas ou de puro lucro. Escolheu assim a fundação porque essa era a forma de organização que oferecia as maiores chances de continuação das duas companhias e sobrevivência de suas idéias. Em 1889, Abbe estabeleceu a fundação Carl Zeiss e transferiu toda sua fortuna avaliada em milhões. Abandonou a posição de dono para se tornar apenas “membro da gerência”. Deveria ser o objetivo principal da fundação, como Abbe assim concebeu, financiar e promover realizações científicas e sociais servindo à causa comum a partir dos lucros das duas companhias. Na fundação Carl Zeiss, Abbe não somente criou uma nova forma de organização industrial, mas, ao mesmo tempo, deu amparo a seus empregados, tanto ativos como aposentados. Na

Vida e Obra de Ernst Abbe, fundador da Óptica Moderna. Trad. Ademir Xavier (Março 2015)

Alemanha de setenta anos atrás, uma nação avariada por constantes lutas de classe, isso foi algo realmente revolucionário, de forma que é impossível hoje avaliar o impacto dessa iniciativa. No estatuto regendo a fundação, Abbe introduziu a jornada de 8 horas (antes de 1900!), o direito a férias para todos empregados, pagamento durante doenças, seguro de trabalho, benefícios de aposentadoria em até 75% do salário, último pagamento por vencimento de contrato, bônus anuais, etc. Muito além de seu tempo estavam as regras que estabeleceu para contratação e promoção de empregados: “A contratação de empregados deve ser feita sem consideração de raça, credo ou afiliação política”. Os benefícios garantidos segundo o estatuto a todos os empregados são obrigação do empregador, em outras palavras, o status pessoal e econômico dos empregados não é questão de caridade, mas estava garantido por lei. Ao mesmo tempo em que se preocupava em garantir os direitos dos trabalhadores, percebeu que deveria haver limites. Se o estatuto se parecia, em muitos aspectos, a regras organizando uma corporação no que dizia respeito à proteção dos interesses financeiros dos trabalhadores, certamente tal não seria o caso com relação a direitos à gerência e administração das duas firmas. Abbe não tolerava a participação do trabalho em questões administrativas, nem qualquer exigência da parte do trabalho com relação aos lucros líquidos. O bônus anual que estabelecera no final de cada ano era para nivelar

14

os rendimentos anuais e compensar possíveis flutuações econômicas. O estatuto da fundação também servia para promover a cooperação harmônica entre todos os empregados. O conceito do estatuto baseava-se nos objetivos de justiça e equidade, de forma que todos os conflitos de interesse fossem resolvidos objetivamente e de maneira pacífica. Assim sendo, Abbe encontrou uma nova forma de transpor conflitos sociais dentro da sociedade industrial. Preocupava-se com os problemas de coexistência humana tão metodicamente quanto com seus problemas em ciência natural. Qualquer coisa que Abbe tenha iniciado, seja como economista, cientista social ou homem de ciência pura, todas as suas inovações resultaram em produtos de qualidade inigualável [22], por causa de seu gênio e da atmosfera de criatividade e estabilidade econômica que estabeleceu para seus empregados. Ao longo dos anos, os princípios governando sua fundação beneficiaram muitas iniciativas científicas e sociais, tanto dentro como fora da fundação. Com seu pai em sua juventude, Abbe testemunhou as condições deploráveis de trabalho prevalecentes em sua época. Logo que sua posição o permitiu, utilizou toda sua capacidade para fazer valer ideais de justiça e liberdade dentro de sua área de atuação. Abbe gastou toda sua energia e sacrificou sua fortuna por esses ideais, bem como pelo estabelecimento de uma cooperação profícua entre ciência e artesanato.

Referências [1] S. Czapski, Verhandl. Deut. Phys. Ges. 7, 89 (1905) [2] E. Abbe, Gesammelle Abhandlungen (G. Fischer Verlag, Jena, 1906). Vol. 2, pp. 319-338. [3] M. von Rohr, Joseph Fraunhofer Leben, Leistungen und Wirksamkeit (Akademische Verlag Gesellschaft m. b. H., Leipzig, 1929). [4] Referência 2, Vol. 3, p. 74. [5] Referência 2, Vol. 1, p.274. [6] Referência 2, Vol. 1, p. 14 (1904); Jenaische Z. Med . Naturwiss. 6, 263 (1871). [7] Referência 2, Vol. 1, pp. 45-100 (1904); M. Schultzes, Arch. Mikroskop. Anat. 9, 413 (1873).

Vida e Obra de Ernst Abbe, fundador da Óptica Moderna. Trad. Ademir Xavier (Março 2015)

15

[8] Referência 2, Vol. 1, p. 159 (1904). [9] Referência 2, Vol. 3, p. 71. [10] M. Herschkowitsch, bei M. von Rohr. Naturwiss. 9, 1005 (1921). [11] Referência 2, Vol. 2, pp.33-40. [12] Referência 2, Vol. 2, pp. 55-81. [13] E. Abbe, Z. Instrumenten Kde. 5, 347 (1885); Ges. Abhandl. 2, 212 (1891). [14] E. Abbe, Z. Instrumenten Kde. 5, 149 (1885). [15] Referência 17, Vol. 13, pp. 365-401, 457 (1893). [16] M. von Rohr, Forsch. Ges. Optik 2, 106 (1938). [17] S. Czapski, Theorie der optischen Instrumente nach Abbe (J. A. Barth Verlag, Leipzig, 1893). O. Lummer e F. Reiche, Die Lehre der Bildentstehung im Mikroskop von Ernst Abbe (Braunschweig, 1910). [18] E. Abbe, Ges. Abh. 3, 241 (1906) [19] F. Auerbach, Ernst Abbe – sein Leben, sein Wirken, seine Persönlichkeit (Leipzig, 1918). [20] E. Abbe, Ges. Abh. 2, 1 (1906) [21] F. Shomerus, Werden und Wesen der Carl Zeiss Stiftung (G. Fischer Verlag, Stuttgart, 1955), 2ed.; W. David, Offne Welt, 72 (1961); W. David, Zeiss-Mitteilung, 3, 205 (1964). [22] W. David, Offene Welt, 72 (1961). Bibliografia selecionada F. Auerbach, E. Abbe – sein Leben, sein Wirken, seine Persönlichkeit (Akademie Verlag Gesellschaft, Leipzig, 1918), M. von Rohr, Ernst Abbe (G. Fischer Verlag, Jena, 1940), N. Günther, Ernst Abbe, Schöpfer der Zeiss-Stiftung (G. Fischer Verlag, Stuttgart, 1951), S. Czapski und O. Eppenstein, Grundzüge der Theorie der optischen Instrumente nach Abbe (J. A. Barth Verlag, Leipzig, 1924), 3a. edição, F. Schomerus, Werden un Wesen der Carl-Zeiss Stiftung (G. Fischer Verlag, Stuttgart, 1955) 2a. edição, F. Schomerus, Geschichte des Zeiss-Werkes, 1846-1946 (Piscator Verlag, Stuttgart, 1952), M. von Rohr, Zur Geschichte der Zeiss´schen Werkstätte (Forschungen zur Geschichte der Optik, Springer Verlag, Berlin, 1938), Vol. 2, G Hansen, Zeiss Mitteilung 1, 1 (1957).

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.