Vigiar, Punir, Educar e Matar: Discursos de disciplinamento, controle e extermínio da população preta e pobre do Rio de Janeiro

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO - DOUTORADO

SHARON VARJÃO WILL

Vigiar, Punir, Educar e Matar: Discursos de disciplinamento, controle e extermínio da população preta e pobre do Rio de Janeiro

Niterói - RJ 2015

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO - DOUTORADO

SHARON VARJÃO WILL

Vigiar, Punir, Educar e Matar: Discursos de disciplinamento, controle e extermínio da população preta e pobre do Rio de Janeiro

Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito final para obtenção do grau de Doutor em Educação.

Orientadora: Prof. Dra. Maria de Fátima Costa de Paula

Niterói – RJ 2015 i

Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

W689 Will, Sharon Varjão. Vigiar, punir, educar e matar : discursos de disciplinamento, controle e extermínio da população preta e pobre do Rio de Janeiro / Sharon Varjão Will. – 2015. 245 f. Orientadora: Maria de Fátima Costa de Paula. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, 2015. Bibliografia: f. 229-242. 1. Segurança pública. 2. Educação. 3. Favela. 4. Subjetividade. 5. Juventude. 6. Pobreza. 7. Preto. I. Paula, Maria de Fátima Costa de. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educação. III. Título. CDD 363.2098153

ii

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO - DOUTORADO

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________ Professora Dra. Maria de Fátima Costa de Paula – Orientadora - UFF ___________________________________________________ Professora Dra. Cecília Maria Bouças Coimbra – UFF ___________________________________________________ Professora Dra. Maria Helena Rodrigues Navas Zamora – PUC Rio. ___________________________________________________ Professor Dr. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho – UFRJ ___________________________________________________ Professor Dr. Elionaldo Fernandes Julião – UFF SUPLENTES: ___________________________________________________ Professora Dra. Marília Etienne Arreguy – UFF ___________________________________________________ Professora Dra. Janaina Abdalla – Faculdade Gama e Souza - RJ

Niterói – RJ 2015 iii

DEDICATÓRIA

Dedico esse trabalho à memória de todos os jovens pretos e pobres assassinados durante as ocupações de pacificação nas favelas do Rio de Janeiro.

iv

AGRADECIMENTOS

Agradeço à Deus e aos Orixás, pela proteção e caminhos abertos. ALAFIA! À professora Doutora Maria de Fátima Costa de Paula, pela paciência, comprometimento e firmeza na orientação desta tese. À CAPES pelo suporte financeiro. Às três Cecilias da minha vida: minha filha, Cecilia Will, meu maior tesouro e sentido da minha existência; minha amada mãe, Yara Cecilia, guerreira de todas as horas e apoio incondicional; e minha querida professora Cecília Coimbra que, mesmo de longe, vem inspirando minha trajetória acadêmica, desde a graduação, com generosidade e potência sem limites. Aos professores da minha banca, Maria Helena Zamora, Pedro Paulo Bicalho e Elionaldo Julião, por aceitarem o convite e me honrarem com as considerações. Às professoras Marília Etienne Arreguy e Janaina Abdalla, por se disporem a ler este trabalho e ficarem “no banco de reserva” como professoras suplentes na minha banca, mas não menos importantes por isso. Aos professores Cláudio Ulpiano e Clauze de Abreu (in memorian), os quais tive o prazer de conhecer e ouvir, por me despertarem o encanto pela Filosofia. Ao babalawo Ivanir dos Santos, por cuidar de mim e de minha família. Às amigas Andréia Gomes, Mônica Houri, Mariza Alves Braga e Virgínia Louzada, pela parceria e incomensurável contribuição durante toda essa jornada. Aos moradores do Cantagalo que participaram das entrevistas, pela confiança, experiências e sentimentos compartilhados. Ao meu marido, Vespa Luz, pelo amor intenso, pelo incentivo e paciência nas minhas angústias de doutoranda, e pela rica ajuda na leitura e revisão deste trabalho. Ao meu pai, Bodo Will e minha madrinha Yvete Sgarbi (in memorian), que morreram sem ter visto essa etapa da minha vida concluída, mas que devem estar orgulhosos de mim lá no céu.

v

RESUMO

Partindo principalmente dos pensamentos de Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Loïc Wacquant, esse trabalho buscou perceber como se deu o processo de produção de subjetividade pela mídia impressa carioca, tomando como documentos de análise as matérias publicadas no jornal O Globo sobre os discursos de segurança pública do governo Sérgio Cabral e a implantação da chamada política de pacificação, durante seu primeiro mandato como governador do estado do Rio de Janeiro (2007 a 2010). Junto à análise dos discursos da mídia, para enriquecer a pesquisa, realizamos dez entrevistas com moradores do Cantagalo, favela localizada na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, onde a autora trabalhou como psicóloga em uma ONG (Organização Não Governamental), durante quatro anos. O propósito desta pesquisa foi analisar as características dos discursos e suas funcionalidades institucionais e sociais; passando pelos discursos dominantes, maciçamente divulgados na mídia; e necessariamente, também, pela escuta e pelo diálogo com aqueles que mais sofrem os seus impactos – os grupos silenciados. Discursos eficazes na produção de diversos modos de sentir, pensar, perceber e agir, atingindo grande parcela da população. Foram eles: a produção do sentimento de que estamos em uma guerra; a construção do seu oposto, a cultura da paz; a atribuição aos jovens das favelas cariocas de uma inclinação para a criminalidade; e o disciplinamento e controle desses sujeitos, por meio de projetos socioeducacionais. Percebemos que, com a produção maciça desses sentidos, toda uma política foi construída, junto com os seus sujeitos e práticas. A partir da pesquisa e análise desses blocos de produção de sentidos, buscamos demonstrar como; por que; para quem; e por quem; esses discursos foram desenvolvidos.

Palavras-Chave: Segurança Pública, Educação, Favela, Produção de Subjetividade, Jovens pobres e pretos

vi

ABSTRACT

Starting from, mainly, the thoughts of Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari and Loïc Wacquant, this study aimed to realize how the process of subjectivity took place through the print media of the city of Rio de Janeiro, taking as analysis documents the material published on O Globo newspaper concerning the speeches on public safety at Sérgio Cabral’s Government, and the implementation of the “peace policy” during his first term as governor of the state of Rio de Janeiro (2007 a 2010). To enrich the research, together with media discourse analysis, we conducted ten interviews with residents of Cantagalo shantytown in Rio de Janeiro, where the author worked as a psychologist in an NGO (Non Governmental Organization) for four years. The goal of this study was to analyze the characteristics of the speeches and their institutional and social features, permeating the dominant speeches massively disseminated in the media, as well as, necessarily, the listening and dialogue with those who suffer most from their impacts - the silenced groups. Effective speeches in producing diverse ways of feeling, thinking, perceiving and acting reaching a large portion of the population. They were: the production of the feeling that we are in a war; the construction of its opposite, the culture of peace; the attribution of youth in Rio's slums of an inclination to crime; and the discipline and control of these individuals through social and educational projects. We realize that with the mass production of these senses, an entire policy was built, along with their subjects and practices. From the research and analysis of sense production blocks, we demonstrate how; how come; to whom; and by whom; these discourses were developed.

Keywords: public safety, education, slums, subjectivity production, black and poor youth

vii

LISTA DE ABREVIAÇÕES ALERJ – Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro ANJ – Associação Nacional de Jornais BOPE – Batalhão de Operações Policiais Especiais BPM – Batalhão da Polícia Militar CCDC – Centro Comunitário de Defesa da Cidadania CIC – Companhia Independente de Cães CRP–RJ – Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro CRAS – Centro de Referência de Assistência Social CRJ – Centro de Referência da Juventude CIE – Centro de Informações do Exército CIEP – Centro Integrado de Educação Pública CORE – Coordenadoria de Recursos Especiais FAB – Força Aérea Brasileira FSN – Força de Segurança Nacional IDEB – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica IFP – Instituto Félix Pacheco IURD – Igreja Universal de Reino e Deus OAB – Ordem dos Advogados do Brasil OEA – Organização dos Estados Americanos ONG – Organização não Governamental ONU – Organização das Nações Unidas PAC – Programa de Aceleração do Crescimento PADEM – Plano de Apoio ao Desenvolvimento dos Municípios PM – Polícia Militar PRONASCI – Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania SBT – Sistema Brasileiro de Televisão UFA – Unidade de Fornecimento de Alívio UOP – Unidade de Ordem Pública UPA – Unidade de Pronto Atendimento UPP – Unidade de Polícia Pacificadora

viii

LISTA DE IMAGENS 1.

TRINDADE, Rafael. Deleuze: Rizoma. In: Razão Inadequada. Uma postura

inadequada é a nossa maneira de viver uma cultura da adequação. Blog, 21/09/2013. Disponível em: Acesso em: 07/08/20014. 2.

O Globo, 01/01/2007, capa.

3.

O Globo, 21/01.2007, p. 14.

4.

O Globo, 14/01/2007, capa.

5.

O Globo, 17/01/2007, capa.

6.

O Globo, 17/01/2007, capa.

7.

O Globo, 25/01/2007, capa.

8.

O Globo, 06/02/2007, capa.

9.

O Globo, 14/02/2007, capa.

10.

O Globo, 16/03/2007, capa.

11.

O Globo, 10/04/2007, capa.

12.

O Globo, 09/05/2007, p. 16.

13.

O Globo, 27/05/2007, p. 30.

14.

O Globo, 12/06/2007, capa.

15.

O Globo, 12/06/2007, capa.

16.

O Globo, 14/06/2007, capa.

17.

O Globo, 15/06/2007, capa.

18.

O Globo, 16/06/2007, capa.

19.

O Globo, 28/06/2007, capa.

20.

O Globo, 28/06/2007, p. 13.

21.

O Globo, 28/06/2007, p. 13.

22.

O Globo, 10/07/2007, p. 19.

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UOL Pan 2007. No centro do Rio, protesto contra o Pan antecipa abertura.

Disponível em: Acesso em: 08/09/2014. 24.

GAROTOS DA ADEGA, O PAN da Cidade Maravilhosa, 08/07/2007. Disponível

em: Acesso em: 08/09/2014.

ix

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REDE DE COMUNIDADES E MOVIMENTOS CONTRA A VIOLÊNCIA. Rede

prepara atividade lembrando um ano da perseguição política nos protestos contra o Pan da Chacina, 04/06/2008. Disponível em: Acesso em: 08/09/2014. 26.

O Globo, 01/01/2008, capa.

27.

O Globo, 02/01/2008, capa.

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O Globo, 16/04/2008, p. 26.

29.

Meia Hora, 17/042008, capa.

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O Globo, 18/09/2008, capa.

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O Globo, 02/10/2008, capa.

32.

O Globo, 02/10/2008, p. 9.

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GLOBO>COM. Crivella sobe cinco pontos e lidera com 28% para prefeito do Rio,

diz IBOPE. 15/08/2008. Disponível em: Acesso em: 15/12/2014. 34.

O Globo, 22/09/2008, p. 13.

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O Globo, 07/10/2008, capa.

36.

O Globo, 08/10/2008, p. 06.

37.

O Globo, 08/10/2008, p. 06.

38.

O Globo, 19/10/1992, capa.

39.

O Globo, 02/07/2010, p. 20.

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O Globo, Rio, 17/01/2008, p. 17.

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O Globo, 09/02/2007, p. 15.

42.

O Globo, 12/02/2007, capa.

43.

R7 NOTÍCIAS, Assassinos do índio Galdino tiveram tratamento diferenciado, diz

promotora. 10/04/2012. Disponível em:> Acesso em: 25 de janeiro de 2013. 44.

O Globo, 03/12/2008, capa.

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O Globo, 04/12/2008, p. 12.

46.

O Globo, 25/12/2008, capa.

47.

O Globo, 01/01/2009, capa.

48.

O Globo, 09/08/2009, capa. x

49.

O Globo, 09/08/2009, p.16.

50.

O Globo, 09/08/2009, p.16.

51.

O Globo, 22/08/2009, p. 19.

52.

O Globo, 08/10/2009, p. 8.

53.

O Globo, Rio Show, 09/10/2009, capa.

54.

O Globo, 18/10/2009, capa.

55.

O Globo 01/12/2009, capa.

56.

O Globo 01/12/2009, p. 16.

57.

O Globo, 02/12/2009, capa.

58.

O Globo, 05/12/2009, capa.

59.

O Globo 06/12/2009, p 16.

60.

O Globo, 01/01/2010, capa.

61.

O Globo, 01/01/2010, capa.

62.

O Globo, 21/02/2010, p. 14.

63.

O Globo, 23/03/2010, capa.

64.

O Globo, 26/03/2010, p. 17.

65.

O Globo, 29/04/2010, p.18.

66.

O Globo, 20/06/2010, p.17.

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O Globo, 31/07/2010, capa.

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O Globo, 11/08/2010, p. 17.

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FOLHA DE S. PAULO. Gráfico das despesas do governo do Rio de Janeiro com

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O Globo, 16/10/2010, capa.

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O Globo, 25/11/2010, capa.

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O Globo, 25/11/2010, capa.

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O Globo, 25/11/2010, capa.

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O Globo, 28/11/2010, capa.

89.

O Globo, 30/11/2010, capa.

90.

O Globo, 01/12/2010, p. 18.

91.

O Globo, 20/12/2010, capa.

92.

O Globo, 01/01/2011, capa.

93.

O Globo, 01/01/2011, capa.

94.

O Globo, 04/04/2014, p. 11.

95.

FOUCAULT, 1999a, s/d. xii

96.

FOUCAULT, 1999a, s/d.

97.

O Globo, 28/03/2007, capa.

98.

O Globo, 28/03/2007, p. 16.

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GOVERNO DO RIO DE JANEIRO. UPP Unidade de polícia pacificadora:

Acontece. Aulas de jiu jitsu aproxima policiais de jovens na cidade de Deus, 03/11/2012. Disponível em: > Acesso em: 21/09/2013. 100.

GOVERNO DO RIO DE JANEIRO. UPP Cidade de Deus: Policial dá aulas de

reforço escolar para jovens da comunidade, 24/09/2013. Disponível em: Acesso em: 21/09/2014. 101.

YOUTUBE. Crianças da Cidade de Deus (RJ) têm aulas de reforço na UPP.

06/10/2011. Captura de tela de vídeo. Disponível em: Acesso em: 21/09/2012. 102.

GOVERNO DO RIO DE JANEIRO. UPP Batan. Projeto da UPP oferece aulas de

natação para moradores, 26/09/2013. Disponível em: Acesso em: 30/09/2013. 103.

GOVERNO DO RIO DE JANEIRO. UPP Formiga: Meninas e meninos da

Formiga curtem colônia de férias organizada pela UPP, 29/07/2013. Disponível em: Acesso em: 01/08/2013. 104.

O Globo, Rio, 23/09/2012, p. 20.

105.

O DIA. PMs dão aula de música e reforço escolar em comunidades do Rio,

29/07/2010. Disponível em: Acesso em: 12 de agosto de 2010. 106.

G1 RIO DE JANEIRO. Policiais de UPPs do Alemão dão aulas para moradores da

comunidade. 03/11/2012. Disponível em: . Acesso em: 20/05/2013. 107.

GOVERNO DO RIO DE JANEIRO. UPP Borel: Música para todos contagia

crianças do Borel, 09/11/2012. Disponível em: xiii

. Acesso em: 15 de maio de 2013. 108.

GOVERNO DO RIO DE JANEIRO. UPP Borel: responsabilidade social e

sustentabilidade no morro do Borel, 18/03/2014. Disponível em: Acesso em: 20/03/2014. 109.

O Globo, Rio, 27/09/2009, p. 30

110.

O Globo, Jornais de Bairro, 09/12/2010, p.12

111.

GOVERNO DO RIO DE JANEIRO. UPP Andaraí: Robson Caetano leva projeto

de atletismo para comunidades pacificadas, 20/08/2013. Disponível em: Acesso em: 10/10/2014. 112.

O GLOBO, Razão Social, 21/07/2009, capa.

113.

GOVERNO DO RIO DE JANEIRO. UPP Unidade de polícia pacificadora: Acontece.

SENAC leva capacitação profissional para moradores da Coroa, Fallet e Fogueteiro, 02/08/2013. Disponível em: Acesso em: 05/11/2014. 114.

SENAC. Responsabilidade Social: Senac nas UPPS. s/d. Disponível em:

Acesso em: 05/11/2014. 115.

GOVERNO DO RIO DE JANEIRO. UPP Unidade de Polícia Pacificadora.

Acontece. Senac oferece curso de gastronomia para moradores da cidade de Deus, 13/12/2013. Disponível em:> Acesso em: 23/10/2014. 116.

SISTEMA FIRJAN. Programa SESI cidadania. s/d. Disponível em:

Acesso em: 22/11/2014. 117.

GOVERNO DO RIO DE JANEIRO. UPP Unidade de Polícia Pacificadora.

Acontece. SESI Cidadania chega a 1 milhão de atendimentos em comunidades. 17/10/2014. Disponível em:> Acesso em: 23/10/2014.

xiv

118.

GOVERNO DO RIO DE JANEIRO. UPP Unidade de Polícia Pacificadora.

Acontece. Babilônia/Chapéu-Mangueira abre oficina de percussão, 30/10/2013. Disponível em: > Acesso em: 22/10/2014. 119.

Ilustração da autora.

120.

O GLOBO, Zona Norte, 30/08/2009, capa.

xv

SUMÁRIO INTRODUÇÃO CAPÍTULO 1 – A PESQUISA: fundamentos teórico- metodológicos

Página 01 10

1.1 – A pesquisa como experiência 1.2 – Arqueologia, genealogia e análise do discurso 1.3 – Um pouco dos meus afetos

10 13 19

CAPÍTULO 2 – A PEDAGOGIA DO MEDO: o discurso da guerra

23

2.1 – Mídia e produção de subjetividades 2.2– O discurso da guerra contra o tráfico, as megaoperações e a ocupação das favelas do Rio de Janeiro pelas Forças Armadas e a Polícia Militar 2.3 – Complexo do Alemão: o Pandemônio 2.4 – Complexo do Alemão: SBPM não fica nenhum mosquito em pé 2.5 – Complexo do Alemão: o Alemão da Paz ou do Paes? CAPÍTULO 3 – JUVENTUDE DA FAVELA: o discurso da tendência à criminalidade dos jovens pretos e pobres 3.1 – O jovem preto, pobre, favelado e perigoso dos jornais 3.2 – O Caso João Hélio 3.3 – Discurso jurídico: medidas socioeducativas e idade penal 3.4 – Os pitboys

23 27 41 71 79 87

87 94 101 107

CAPÍTULO 4 – O DISCURSO DA PAZ E A IMPLANTAÇÃO DAS UPPS

110

4.1 – O Morro Dona Marta: favela vitrine 4.2 – Quem é o dono do morro? Democracia e cidadania nas favelas 4.3 – Ocupação do Cantagalo / Pavão / Pavãozinho: a imposição da paz. 4.4 – Complexo do Alemão: cidadela do tráfico 4.5 – A UPP como marca do governo do estado do Rio de Janeiro, as alianças políticas e a reeleição de Sérgio Cabral 4.6 – Complexo do Alemão: o Dia D 4.7 – A renúncia de Cabral em 2014

111 121

CAPÍTULO 5 – VIGIAR, PUNIR E EDUCAR

134 148 152 170 177 182 xvi

5.1 – O discurso da educação como estratégia de controle 5.2 – O policial professor 5.3 – Lucrativa mercadoria: marketing e responsabilidade social 5.4 – Sorria você pode estar sendo filmado ou “prisões à céu aberto” 5.5 – As resistências e os possíveis encontros

188 191 203 213 221

CONSIDERAÇÕES

226

REFERÊNCIAS

230

APÊNDICES – Roteiro de entrevistas

243

ANEXO – Lista de verbetes de comunicação / jornalismo

243

xvii

INTRODUÇÃO Esse trabalho buscou perceber como se deu o processo de produção de subjetividade pela mídia impressa carioca, analisando os atravessamentos entre os discursos produzidos pelas manchetes e reportagens publicadas pelo jornal O Globo sobre a política de segurança pública do governo de Sérgio Cabral, na cidade do Rio de Janeiro, e os discursos de disciplinamento e controle, propostos pelos projetos socioeducacionais destinados aos moradores das favelas cariocas. Ao iniciar o doutorado, a autora ainda trabalhava em uma ONG na favela do Cantagalo, no Rio de Janeiro, e se propunha pensar as relações entre os discursos de segurança pública e os discursos educacionais, por meio da análise de mídia, durante o governo de Sérgio Cabral e a implantação das UPPs, tomando como “objeto” da pesquisa de “campo” a ONG onde trabalhava, propondo, inclusive, realizar entrevistas com participantes, técnicos e gestores do projeto. Durante o processo de elaboração do projeto dessa pesquisa, desconstruímos algumas ideias cristalizadas sobre a forma de se pesquisar. Essa foi a maior dificuldade que a autora encontrou, inclusive sinalizada por sua orientadora e pela banca de qualificação. O trabalho estava muito amplo, havia um prazo e era preciso fazer escolhas. A partir da pesquisa bibliográfica e do estudo dos autores que fundamentaram a tese, como Foucault, Deleuze, Guattari e Wacquant, além dos textos de alguns professores que foram importantes, didáticos e inspiradores, como Acácio Augusto, Vera Malaguti, Cecília Coimbra, Maria Lívia do Nascimento, Maria Helena Zamora, entre outros, que constam da bibliografia, tomamos conceitos importantes como: disciplina, controle, poder, sujeito, subjetividade. Todos eles ajudaram a pensar. Foi fundamental, também, a pesquisa e a leitura de dissertações e teses que trataram do tema. É importante saber que podemos estar espalhados, mas não estamos sozinhos. Naquele momento inicial da pesquisa pairavam, ainda, algumas questões: a) identificar ou não a ONG?

1

Decidimos por não. Na medida em que ela era apenas mais uma peça da engrenagem que queríamos estudar como um todo, como um processo, e não focando em parte dele. Não era a nossa proposta fazer análise de algum projeto específico. As políticas e as práticas sociais destinadas a moradores de favelas funcionam como programas que podem ser aplicados, modificados, redimensionados e atualizados segundo demandas específicas, mas que se produzem, legitimam e atualizam a partir de discursos dominantes reproduzidos pela mídia sobre as políticas e seus projetos, esses, sim, analisados. As primeiras decisões foram então tomadas: a autora pediu demissão da ONG onde trabalhava, não citaria nomes na tese, nem trataria de nenhum projeto socioeducativo específico. b) que análise da mídia? Que meio/veículo utilizar? Em que período? Ainda sem um “objeto” ou um “campo” de pesquisa definido, começamos a leitura das capas de O Globo durante o primeiro mandato do governo Sérgio Cabral, entre 2007 e 2010. O recorte foi proposital. Optamos pelo jornal O Globo1 por ser a ferramenta impressa da mais poderosa instituição de comunicação, rede de multiplicação e produção de subjetividades do Brasil e, em particular, do Rio de Janeiro: as Organizações Globo. Sabemos que esse tipo de imprensa se direciona, em especial, às classes dominantes e médias urbanas, mas ao priorizarmos as capas (que representam a síntese de todo o conteúdo do jornal), ampliamos esse público, pois as capas são expostas em bancas de jornal, onde um número muito maior de leitores, de diversas classes sociais, tem acesso. Utilizamos, para tal, o acervo de O Globo, site que permite o acesso à versão digitalizada de todas as páginas do jornal, desde sua primeira edição, em julho de 1925. Não ignoramos, entretanto, as produções dos demais meios de comunicação de massa, como a televisão e a internet, porque a mídia (conjunto de meios de comunicação) é um dispositivo de funcionamento em rede, com atravessamentos, desdobramentos e complementos das mesmas notícias, entendendo que as construções dos discursos são coletivas e rizomáticas2, como na imagem a seguir.

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Segundo a Associação Nacional de Jornais, durante todo o período da pesquisa (2007 a 2010), O Globo foi o jornal com a maior tiragem no estado do Rio de Janeiro. Teve, por exemplo, em 2007, a tiragem de 280.329 mil exemplares, e em 2010, de 262.435  mil exemplares, de segunda a domingo. (ANJ, s/d)   2 Deleuze e Guattari criam o conceito / metáfora de rizoma para propor um pensamento que se efetuasse através do “múltiplo” e não a partir de uma lógica binária ou de uma contradição. O rizoma se espalha, se alastra onde encontra espaço, cria um emaranhado por todas as direções. (DELEUZE e GUATARRI, 1995)

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Imagem 1

Acreditamos que a hegemonia conservadora produz subjetividades. Ela elege e difunde discursos como mecanismos indutores e justificadores de políticas autoritárias. Indo neste sentido, entendemos que os discursos emergem, em dado momento, e atravessam vários setores de nossa sociedade, das mais variadas formas, promovendo e produzindo modos de perceber e encarar a realidade, alcançando uma maioria de pessoas, como sendo um ideal de vida, um padrão de bem-estar social. A mídia é um dos mais importantes dispositivos sociais desse processo, ou seja, “esse equipamento não nos indica somente o que pensar, o que sentir, como agir, mas principalmente nos orienta sobre o que pensar, sobre o que sentir.” (COIMBRA, 2001, p. 29) Ainda sobre o papel fundamental dos meios de comunicação de massa como dispositivo de produção de subjetividades e controle, nos explica Cecília Coimbra, em entrevista para o jornal do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRP-RJ), edição de setembro/outubro de 2009: Felix Guattari dizia que, hoje, uma das coisas mais importantes no sentido de dominar o outro, povos, populações – mais importante do que fazer uma guerra – é produzir subjetividades, produzir modos de viver e existir. Para dominar o outro é preciso controlá-lo. É como Deleuze (o filósofo Gilles Deleuze) fala: nós vivemos na sociedade do controle, tudo é supercontrolado. Então, Guattari vai dizer o seguinte: hoje, na sociedade contemporânea, talvez um dos dispositivos mais importantes de se produzir modos de viver, subjetividades, são os meios de comunicação de massa. Eles produzem modos de viver, de estar, de sentir, modos de existir no mundo. Os meios de comunicação de massa emergem, no capitalismo, como um braço defensor das subjetividades capitalísticas. (COIMBRA, 2009, s/p)

Levando isso em conta, que a mídia funciona em rede, que as subjetividades atravessam e são produzidas por diversos equipamentos sociais, tais como a TV e a internet, para enriquecer a pesquisa assistimos a vídeos de propaganda governamental; peças de campanhas 3

políticas; pesquisamos, também, em sites da internet, principalmente: a do Governo do Estado do Rio de Janeiro (http://www.rj.gov.br/), a da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) (http://www.upprj.com/),

a

pessoal

do

Governador

Sérgio

Cabral

(http://www.sergiocabral.com.br) e a da Prole3 (www.prole.com.br). Sem saber, ainda, o que era importante arquivar, “salvar” – mais uma vez, escolher foi a parte mais difícil – montamos um arquivo de publicações, com cópia das capas do jornal O Globo e de algumas páginas internas. Partimos das manchetes e imagens da capa, arquivando aquelas que falavam sobre segurança pública e educação. Nomeamos cada arquivo de imagem com o título inteiro ou parte da manchete, utilizando a data invertida (ano.mês.dia), para que a lista dos arquivos, na pasta eletrônica, ficasse em ordem cronológica de publicação. Com esse “mapa”, percebemos, “enxergamos”, a construção dos discursos dominantes referentes ao tema Segurança/Educação, produzidos por O Globo, de uma forma bastante ampla, mas que, por si só, contavam a história, a partir de um determinado “olhar” sobre o momento e produziam sujeitos. Sem nos prender a um campo específico de conhecimento, mas entendendo como um trabalho que buscou articular os discursos das políticas públicas de Segurança e de Educação, observamos os atravessamentos desses discursos; as relações entre a mídia e os definidores das políticas públicas: governos e sociedade civil. Partindo dessa cartografia, percebemos que alguns discursos e sentidos dominaram o debate: 1) a produção do sentimento de que estamos em uma guerra; 2) a construção do seu oposto, a cultura da paz; 3) a inclinação para a criminalidade atribuída aos jovens, pretos e pobres das favelas cariocas; 4) os discursos de disciplinamento e controle desses sujeitos, por meio de projetos socioeducacionais. Foi então que deixando a experiência da pesquisa nos guiar, como devir, “escolhemos” aprofundar a pesquisa sobre esses “blocos de discursos”. Percebemos que, com a produção maciça desses sentidos, toda uma política foi construída, junto com os seus sujeitos e práticas. A partir da pesquisa e análise desses blocos de produção de sentidos, buscamos demonstrar como; por que; para quem; e por quem; esses discursos foram desenvolvidos.

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A Prole é uma das agências de comunicação responsáveis pela publicidade institucional do Governo do Rio de Janeiro e da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, durante o período da pesquisa. Foi criada em 2005, no Rio de Janeiro e, hoje, tem escritórios em São Paulo e Washington. Em sua carteira possuiu clientes privados, públicos e do terceiro setor. (PROLE, s/d)

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Alguns acontecimentos também foram destacados como potentes dispositivos analisadores nessa pesquisa. Foram eles: o assassinato do menino João Hélio e sua repercussão no debate acerca do controle, penalização e criminalização do jovem pobre; as incursões da PM (Polícia Militar), com a ajuda do Exército e da FSN (Força de Segurança Nacional) que culminaram em diversas chacinas no Complexo do Alemão; e a implantação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora). Com isso tudo, restava uma dúvida fundamental: c) ainda caberia espaço para entrevistas? Ao desistirmos de atender a uma “certa” regra acadêmica, presa a discursos do empirismo e que entende as entrevistas como “coleta de dados”, percebemos essa pesquisa como uma experiência, como um movimento de resistência, passando a fazer sentido, para a autora, “voltar” ao Cantagalo e realizar as “entrevistas”. Não como uma ida ao “campo”, mas como uma visita, um encontro, uma conversa. Foi ótimo rever algumas pessoas, foi emocionante subir de novo o morro, onde tive encontros inspiradores de pensamentos e vontade de escrever. Não “sobre eles”, nem “por eles”, mas “com eles”. Um texto que foi pensado e escrito a muitas mãos, pelos encontros e conversas. O propósito desta pesquisa foi analisar as características dos discursos e suas funcionalidades institucionais e sociais; passando pelos discursos dominantes, maciçamente divulgados na mídia; e necessariamente, também, pela escuta e pelo diálogo com aqueles que mais sofrem os seus impactos – os grupos silenciados. Assim, junto à análise dos discursos da mídia, para enriquecer a pesquisa, realizamos dez entrevistas com moradores do Cantagalo, favela localizada na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, onde a autora trabalhou como psicóloga em uma ONG (Organização Não Governamental), durante quatro anos. Além da familiaridade com o local, por termos trabalhado lá, escolhemos o Cantagalo por se tratar de um território ocupado por uma UPP durante o período pesquisado, e por ter presente, em seu território, diversas instituições como: o Projeto Criança Esperança, o Grupo Cultural AfroReggae, a Clínica de Saúde da Família Pavão/Pavãozinho/Cantagalo, o Centro Comunitário de Defesa da Cidadania (CCDC), a Fundação Leão XIII, o Museu de Favela (MUF), o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), o Centro de Referência da Juventude (CRJ), o Projeto Harmonicamente Música e Cidadania, o projeto Dançando pra não Dançar, além de associação de moradores, creches e escolas, sendo uma delas um CIEP (Centro Integrado de Educação Pública). Uma multiplicidade de instituições. A experiência de retornar ao Cantagalo, para realizar as entrevistas, foi muito potente. 5

Foi fundamental para o presente trabalho voltar lá, depois de mais de dois anos afastada, e poder conversar com várias pessoas sobre como elas percebiam o processo da implantação das UPPs, como se sentiam e como percebiam os projetos educativos realizados pelos policiais e por ONGs. Realizamos dez entrevistas. Uma das pessoas entrevistadas, por ter medo de represália da polícia e/ou do tráfico, inicialmente não concordou que a entrevista fosse gravada. Por fim, depois de algumas tentativas frustradas de marcar o encontro, acabamos só conversando por telefone. Esse medo, esse “não dito”, entretanto, já nos disse muito. As outras nove entrevistas realizadas, foram gravadas e transcritas. Priorizamos buscar pessoas que tivessem participado, trabalhado, ou fossem responsáveis por

crianças que participaram de algum projeto

socioeducacional realizado na favela. Dentre as características dos entrevistados, podemos dizer que tinham entre 16 e 48 anos e viveram, a vida inteira, no Cantagalo (exceto um, que se mudou para lá quando ainda era adolescente). Com exceção de dois adolescentes de 16 anos, todos os outros entrevistados eram responsáveis por crianças que participaram dos projetos da UPP. O processo de escolha dos entrevistados aconteceu gradualmente. A autora foi na casa de uma pessoa que conheceu na época em que trabalhou na favela, essa moradora tinha dois filhos que haviam participado da escolinha de futebol da UPP. Explicou-se a pesquisa reforçando o anonimato dos entrevistados. Depois de concordar e gravar a entrevista, a moradora indicou outras pessoas para serem entrevistadas, acompanhando até as respectivas casas. Apesar de ter trabalhado lá, a autora não conhece bem as ruas e vielas, e se sentiu mais segura sendo acompanhada. Reportagens de jornal foram mostradas, com fotos de crianças participando dos projetos realizados pela UPP a algumas pessoas entrevistadas, que reconheceram as crianças das fotos e indicaram onde moravam. Então, a pesquisadora conversou com os responsáveis dessas crianças. Muito mais do que entrevistas, foram encontros, conversas que ajudaram a construir as análises dessa pesquisa. Pensamos ser importante assumir que, apesar da nossa proposta metodológica incluir entrevistas, não acreditamos que o pensamento de cada um, na sua totalidade, possa ser “capturado na coleta de dados”. Também, em hipótese alguma, pretendemos “falar por eles, ou para eles”. Apesar de não vivermos o dia-a-dia da favela, termos trabalhado lá por quatro anos nos fez vivenciar e compartilhar a revolta e a indignação com o extermínio das pessoas pobres, pretas e faveladas. Dessa forma, escrevemos, falamos e pesquisamos com eles.

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Definidas as questões, observamos, partindo da história contada pelas manchetes e matérias de O Globo, não uma subserviência entre o jornal e o governo, mas uma relação recíproca favorável a uma visão dominante de mundo que produz e dissemina o senso comum acerca da necessidade de controle dos territórios nas favelas cariocas, contra o tráfico de drogas, como solução à violência urbana, dirigida não só aos moradores das favelas, mas também aos moradores do asfalto, constantemente ameaçados em sua “paz”. Às matérias sobre violência, assaltos e poder do tráfico, se intercalaram aquelas que se referiram às políticas de segurança, megaoperações, choques de ordem, ocupações das favelas, “guerra contra o tráfico”. Como resultado da lógica punitiva, policialesca e de controle, pontuamos as diversas chacinas ocorridas durante o período pesquisado, que atingiram os moradores das favelas, em sua maioria jovens, pretos e pobres. Chacinas que foram legitimadas e aplaudidas pelas maioria dos “homens de bem” e potenciais vítimas da violência causada pelo “inimigo público”. Com a implantação das UPPs, observamos que as matérias de O Globo, em sua maioria, elogiaram e apoiaram a iniciativa do governo. Muitas delas reforçadas pelas declarações de fontes do Estado, como o governador, o secretário de Segurança, policiais e especialistas. Assim, O Globo apresentou a política de pacificação como positiva e consolidada, responsável por trazer benefícios e segurança aos moradores das favelas e de seu entorno. Foram raros os depoimentos ou reportagens que questionaram a instalação das Unidades ou a conduta dos policiais. As pautas das matérias publicadas no jornal refletiram e influenciaram diretamente as iniciativas dos governos e os resultados das eleições, mas, também, o governo influenciou no que foi publicado, não importando o lugar nessa relação. Sem nenhuma regulação da mídia, essa produção de subjetividades tem atendido a um grupo dominante, que a utiliza com fins políticos, legitimando modos de pensar e práticas excludentes. O discurso da educação como estratégia de combate ao crime, a ideia de que jovens de favelas necessitam de intervenções disciplinares e de controle, pois são potenciais criminosos, justificaram diversas ações. Tornou–se dominante o pensamento de que os projetos socioeducacionais nas favelas, realizados pelas ONGs, pelas empresas e pelos policiais das UPPs, oferecem “oportunidades”, sejam elas de inserção no mercado de trabalho, no mundo do esporte, das artes ou da música. Ficou claro que esses projetos fazem parte do “canto da sereia” neoliberal. É sabido que esse trabalho socioeducativo com jovens das favelas não é capaz de equalizá–los e equipará– 7

los aos jovens da elite. Nem de longe se igualam as “oportunidades”. Ao contrário, os jovens da favela são desqualificados socialmente. Assim como a prisão, conforme nos mostrou Foucault (1990a), os projetos socioeducativos nas favelas têm a sua positividade: sua seletividade. Esses projetos diferenciam os jovens: o cidadão participativo do delinquente. Se o jovem não está na escola, ou em um projeto socioeducacional, é porque está no crime, é inimigo e pode ser exterminado. Desse modo, a nossa pesquisa foi datada e localmente situada. Referiu-se aos anos de 2007 a 2010. Foi a tentativa de fazer um retrato do presente, tendo como fundo as favelas da cidade do Rio de Janeiro. Um recorte específico, mas que mostra a onda punitiva e policialesca que o neoliberalismo tem produzido e espalhado em uma escala global. (WACQUANT, 2013) Onda de criminalização, localizada por condição econômica, cor e local de moradia. Tomamos como perspectivas teórico/metodológicas a genealogia e a análise do discurso e consideramos o material da pesquisa, que foram as reportagens do jornal, imagens, fotografias, vídeos, transcrição de entrevistas etc., como documento, arquivo, forjado peça por peça. O documento como efeito de seleções, recortes e disputas. Ou seja, quando selecionamos as manchetes, os textos e as imagem do jornal, quando citamos a fala de alguém que foi entrevistado ou quando relatamos alguma experiência vivida no processo da pesquisa, o sentido que nos despertou foi o que mais importou. Partimos da concepção de que o processo de pesquisa, de análise e escrita é um processo criativo, influenciado pelo afeto, posição, crenças, experiências e vivências de quem escreve. Para a análise genealógica, importa a história política das práticas e das lutas, ela se interessa pelas batalhas. Não há um objeto sobre o qual o pesquisador aplica conceitos, mas um conjunto de forças que atuam segundo táticas e estratégias móveis que se enfrentam, justapõem-se e se mesclam, atraindo também o pesquisador para o interior de inesperadas batalhas. (AUGUSTO, 2013, p. 88)

Este trabalho se localizou no desafio de conceber pesquisador e campo de pesquisa, sujeito e objeto se constituindo no mesmo momento, no mesmo processo. Tivemos como proposta romper com as dicotomias sujeito-objeto, o que implica na pesquisa como constituição de planos, de processos criativos, de possibilidades de pensamento.

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Apostamos na desconstrução dos discursos hegemônicos, mostrando o caráter de controle e contenção que eles comportam, produzidos para naturalizar práticas de exclusão e extermínio da massa empobrecida e para tratar de públicos específicos, entendidos como demandantes de intervenções, sem a contextualização dos processos históricos e sociais de construção das identidades atribuídas a esses públicos. Discursos que culpabilizam e criminalizam a juventude preta4 e pobre, indicando, como alternativa à prisão e à morte, formas mais sutis de controle social, que se materializam, nessa análise, por meio dos projetos socioeducacionais.

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A polêmica sobre a forma correta de se classificar a população pela cor e raça (preto ou negro) ainda alimenta muitos debates. Ao longo de mais de 140 anos, foram feitas mudanças na nomenclatura oficial utilizada (Censo – IBGE), mas ainda não há consenso. Consideramos a classificação “negro” como uma construção social, que leva em conta o pertencimento a um povo, excluído e escravizado, muito mais que a cor da pele, uma visão política. Também levamos em conta que, quanto mais escura for a cor da pele, maior a discriminação. Aqui, optamos por usar o termo “preto” por ser a nomenclatura oficial, utilizada atualmente pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

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CAPÍTULO 1 – A PESQUISA: FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS 1.1 – A pesquisa como experiência Ainda hoje, as metodologias que se enquadram nos pressupostos da racionalidade científica são a forma dominante no cenário acadêmico. Pesquisas conduzidas nessa lógica enfatizam a dissociação da produção de conhecimento com a realidade; a separação entre sujeito e objeto; negam a complexidade da subjetividade; e se definem pertencentes a campos epistemológicos específicos. Pesquisamos autores de diversas áreas, como a psicologia, a filosofia, a educação, o direito, a sociologia e a história, como apoio na organização das experiências da pesquisa e para termos contato com as diferentes interpretações referentes às questões pertinentes ao nosso trabalho. Avançamos, em nossas formulações, apostando em uma transdisciplinaridade radical, desconstruindo e colocando em análise disciplinas que vêm marcando fronteiras, muitas vezes, rígidas na definição de seus objetos de pesquisa e/ou interesse. É exatamente a estabilidade desta relação que, contemporaneamente, criticamos. Podemos chamar esta atitude crítica de transdisciplinaridade, já que os limites entre as disciplinas é perturbado quando se coloca em questão as identidades do sujeito que conhece e do objeto conhecido. A noção de transdisciplinaridade subverte o eixo de sustentação dos campos epistemológicos, graças ao efeito de desestabilização tanto da dicotomia sujeito/objeto quanto da unidade das disciplinas e dos especialismos. (PASSOS e BARROS, 2000, p. 76)

Os conceitos dos diversos autores pesquisados, mais do que uma fundamentação teórico-metodológica ou um atravessamento por campos epistemológicos distintos, são entendidos como disparadores do pensamento. O nosso ponto de partida é o desafio de pensar a noção de “plano” e a ideia de “intercessor”, conceitos deleuzianos que nos têm apoiado nessa forma de pesquisar. Quando falamos em “plano de imanência” ou “plano de composições”, não estamos tomando essas expressões partindo do sentido comum, como habitualmente nos referimos ao campo de saber ou ao campo de uma prática. A noção, que aqui tomamos, reequaciona a relação sujeito-objeto, redireciona a relação teoria-prática e a ideia de identidade-unidade, deslocando o sentido habitual de campo.

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Para que possamos romper com essas dicotomias apontadas, precisamos constituir um plano, onde o que vem primeiro é a relação, esta sim, constituidora dos termos. Tomando cuidado para não tornar esta noção equivalente a um espaço de articulação entre identidades de saberes, pensamos em um plano de constituições ou de emergências, a partir do qual podemos criar pensamentos. Deleuze, em Diferença e Repetição (1988), deixa claro que não se trata mais de pensar sobre a forma, nem sobre os fundamentos, trata-se de pensar a instauração do plano de imanência. Como o plano, o problema, se instaura? Como se torna uma necessidade criativa? O que Deleuze chama de plano de imanência é o solo, o horizonte da produção conceitual. Sem ele, os conceitos ficariam perdidos no vazio. É nesse sentido que o pensamento vem junto com a vida, que a produção de conhecimento é entendida como criação, que o conceito vem junto com o plano de imanência, como devir, como ação, que se move pelo criar, porque a vida é criação. Um conceito/intercessor não existe isolado. Ele precisa estar, necessariamente, articulado a outros de seu tempo, para que, assim, ele possa efetivamente ter existência, se tornar um “intercessor”. Entendemos a ideia de “intercessor” como uma ferramenta, um conceito cheio de força crítica, que produz crise e desestabiliza. É necessário diferenciarmos as noções de interseção e intercessão. Na primeira, temos dois domínios que constituem um terceiro; na segunda, a relação que se estabelece entre os termos é de interferência, de intervenção, através do atravessamento que desestabiliza um domínio sobre o outro. Não se dá a gênese de outra identidade, mas, sim, um processo de diferenciação. É importante ressaltarmos aqui, que estamos tomando o conceito de “intercessor” criado por Deleuze e Guattari em O que é a Filosofia? (1992) como sendo algo que institui um reaprendizado do vivido, uma ressignificação. Um conceito se torna um “intercessor” quando produz tal tipo de efeito: de fazer variar um certo domínio por interferência de um outro. Ou seja, uma relação de perturbação e não de troca, algo que institui um reaprendizado do vivido, uma ressignificação.

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Assim, o conceito não deve ser procurado, pois não está aí para ser encontrado. O conceito não é uma “entidade metafísica”, ou um “operador lógico”, ou uma “representação mental”. O conceito é um dispositivo, uma ferramenta, algo que é inventado, criado, produzido, a partir das condições dadas e que opera no âmbito mesmo destas condições. O conceito é um dispositivo que faz pensar, que permite, de novo, pensar. O que significa dizer que o conceito não indica, não aponta uma suposta verdade, o que paralisaria o pensamento; ao contrário, o conceito é justamente aquilo que nos põe a pensar. Se o conceito é produto, ele é também produtor: produtor de novos pensamentos, produtor de novos conceitos; e, sobretudo, produtor de acontecimentos, na medida em que é o conceito que recorta o acontecimento, que o torna possível. (GALLO, 2005, p. 43)

Afirmamos, então, uma postura ético-metodológica, pensando os conceitosintercessores como referência para uma atitude de abertura e de crítica ao que vai se produzindo, no processo da pesquisa. Os intercessores representam um auxílio na manutenção de certa relação com o campo problemático da pesquisa. Menos que um conjunto de regras a serem seguidas, a filosofia e os conceitos não são para serem aplicados, mas experimentados. Conforme nos indicaram Coimbra, Scheivar, Ayres e Nascimento (2005, p. 132): Entendemos a pesquisa como um processo permanente de experimentação, de criação e de ruptura, como um campo de possibilidades que pode promover conexões em múltiplas direções e sentidos. Ou seja, é uma intervenção em nós, no mundo e, nessa medida, no objeto pesquisado.

Entendemos a empreitada da pesquisa e da escrita como uma experiência. “Onde o que se transforma é múltiplo: o que pensamos, a relação que temos com o que pensamos, o que sabemos, a relação que temos com o que sabemos, o que somos, a relação que temos com o que somos.” (KOHAN, 2005, p. 14) A experiência e a verdade habitam espaços diferentes e possuem uma relação complexa. Uma experiência intensa, importante, desejável, supõe um compromisso com uma certa verdade acadêmica, histórica, que a antecede... Não estamos dispostos a depreciar ou a renunciar a uma tal verdade. Não obstante, a experiência da escrita a transcende, a esquiva, a evita e, em seu sentido mais importante, a coloca em questão, a ameaça, modifica nossa relação com essa verdade e dessa forma, transforma aquilo que somos. Este é o valor principal de uma experiência de escrita; não contribuir para constatar uma pressuposta verdade, mas sim transformar a relação que mantemos com uma verdade na qual estávamos comodamente instalados antes de começar a escrever. (Ibid., p. 16)

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1.2 – Arqueologia, genealogia e análise do discurso Partiremos de alguns aspectos do pensamento de Michel Foucault, no que se refere ao seu projeto de investigação sobre a relação entre poder-saber, verdade e produção de subjetividades na modernidade. Num primeiro momento, Foucault, a partir do método chamado arqueológico, descreve os diferentes modos de investigação que procuram aceder ao estatuto de ciência e que produzem, como efeito, a objetivação do sujeito. Ou seja, investiga os saberes que embasam a cultura ocidental. Num segundo momento, Foucault faz a articulação entre saberes e poderes, a partir de uma genealogia do poder, ou seja, investiga as instituições desenvolvidas para controlar os corpos dos indivíduos, tais como a prisão, a escola e o manicômio. E por fim, Foucault vai pensar a subjetivação a partir das técnicas de si e da governamentalidade, ou seja, do governo de si e dos outros. Foucault, em sua obra Vigiar e punir (1999a), efetuando uma análise genealógica das práticas punitivas, se afasta de uma concepção clássica de sujeito de conhecimento e de domínios de saber previamente dados. Considera-os como efeitos de condições de possibilidades externas ao conhecimento, a saber, condições políticas e sociais. De fato, as análises de Foucault, efetuadas em Vigiar e punir, são precedidas por suas conferências sobre A verdade e as formas jurídicas (1999b), onde

destaca o papel de

Nietzsche no afastamento do pensamento filosófico clássico, o qual situava o sujeito como núcleo central de todo o conhecimento, tomando explicitamente o pensamento daquele autor, como referência para a sua pesquisa de [...] como se pode formar no século XIX, um certo saber do homem, da individualidade, do indivíduo normal ou anormal, dentro ou fora da regra, saber este que, na verdade, nasceu das práticas sociais do controle e da vigilância. E como este saber não se impôs a um sujeito de conhecimento, não se propôs a ele, nem se imprimiu nele, mas fez nascer um tipo absolutamente novo de sujeito de conhecimento. (FOUCAULT, 1999b, p.

10) Em seu curso no Collège de France – A vontade de saber (FOUCAULT, 1997a) – Foucault toma e cita o pensamento de Nietzsche sobre o conhecimento, explícito no texto Sobre a verdade e a mentira no sentido extra moral.

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Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da “história universal”, mas também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer (...). (NIETZSCHE, 1983. p. 45)

Nietzsche identifica a emergência do conhecimento como sendo da ordem da invenção, do confronto entre os instintos, da vontade de apropriação, do interesse, se desviando do pensamento clássico. A palavra invenção, do alemão erfindung, vem se opor à palavra origem, do alemão ursprung. Erfinder significa achar, inventar, enquanto o termo ursprung está relacionado a uma busca de origem em seu sentido metafísico, ou seja, um fundamento originário, a forma platônica, imóvel e anterior a qualquer acidentalidade. Assim, o historiador tradicional, nos termos da ursprung, busca a origem, enquanto na perspectiva genealógica a atitude é outra; pela genealogia, visa-se voltar ao passado para libertar o presente, questiona-se o valor dos valores, as coisas instituídas, concebidas como naturais ou dadas; o que se destaca não é uma essência dada na história, mas sim uma construção ao acaso, enfim, o que se denominaria em alemão uma herkunft, o tronco de uma raça, uma proveniência. A proveniência não funda, não aponta para uma continuidade. Perguntar pela proveniência de algo não é descobrir as suas características genéricas, nem encontrar o que a fundou, mas, sim, buscar as marcas diferenciais, os acidentes de percurso, apontar heterogeneidades naquilo que parecia em conformidade a si mesmo. Citamos Foucault: “a proveniência permite também reencontrar sob o aspecto único de um caráter ou de um conceito a proliferação dos acontecimentos através dos quais (graças aos quais, contra os quais) eles se formaram.” (FOUCAULT, 1990, p. 20) A proveniência diz respeito ao corpo: “o corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos (...) lugar de dissociação do eu (...) volume em perpétua pulverização.” (Ibid, p. 22) Outra palavra usada por Nietzsche é entestehung, emergência, que não deve ser confundida com o termo final de um processo, mas, sim, constitui o princípio e a lei singular de um aparecimento. A entestehung se produz, sempre, em um determinado estado de forças, em um combate. Enquanto a proveniência se refere à qualidade dos instintos, a emergência diz respeito ao campo de forças em ação. Entretanto, não se deve confundir este campo como um plano fechado e, sim, tomá-lo como um plano onde a desigualdade das forças em luta é predominante.

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Voltemos à citação de Nietzsche sobre o conhecimento. Nietzsche aponta, ao dizer que o conhecimento foi inventado, para o fato de que ele não tem uma origem, não tem uma ursprung. Significa dizer que ele tem uma emergência. “O conhecimento é o efeito dos instintos, é como um lance de sorte, ou como o resultado de um longo compromisso. Ele é ainda, diz Nietzsche, como uma ‘centelha entre duas espadas’, mas que não é do mesmo ferro que as duas espadas.” (FOUCAULT, 1999b, p. 17) Não há um conhecimento inscrito na “natureza humana”, não há um germe do conhecimento no sujeito. Poderíamos dizer que os instintos humanos seriam as espadas, o campo de luta, onde emerge o conhecimento, fruto da batalha dos instintos. Chegamos então à palavra instinto. Vejamos o aforismo 333 de Gaia Ciência: “O que significa conhecer? – Non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere! [Não rir, não lamentar nem detestar, mas compreender!] – diz Spinoza.” (NIETZSCHE, 2004, p. 220) Neste aforismo, Nietzsche se opõe a Spinoza, ao dizer que não é através do apaziguamento das forças presentes no rir, detestar e lamentar que conhecemos algo, mas sim justamente na existência destes instintos em luta é que emerge o conhecimento: “a centelha entre as espadas”. Diz Foucault: Este modelo de um conhecimento fundamentalmente interessado, produzido como acontecimento do querer e determinando, por meio de falsificação, o efeito de verdade, encontra-se, sem sombra de dúvida, o mais longe possível dos postulados da metafísica clássica. (FOUCAULT, 1997a, p. 15)

Foucault deixa de considerar o sujeito de conhecimento como o fundamento a priori, o ponto de origem já dado do conhecimento e do aparecimento da verdade. Ele passa a ser considerado como um sujeito que se constitui no interior da história, um efeito produzido através da relação poder-saber. Foucault legitima uma concepção renovada de pesquisa, onde não se busca reconstituir o real, já que ele é sempre uma fabricação, uma invenção (nas palavras de Nietzsche), um efeito de sentido criado pelos discursos. Foucault elabora uma teoria do discurso que propõe um novo sentido para o sujeito e para a história.

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O novo arquivista anuncia que só vai se ocupar com os enunciados. Ele não vai tratar daquilo que era, de mil maneiras, a preocupação dos arquivistas anteriores: as proposições e as frases. Ele vai negligenciar a hierarquia vertical das proposições, que se dispõem umas sobre as outras, e também a lateralidade das frases, onde cada uma parece responder a outra. Móvel, ele se instalará numa espécie de diagonal, que tornará legível o que não podia ser apreendido de nenhum outro lugar, precisamente os enunciados. Uma lógica atonal? É normal que sintamos uma certa inquietude. Pois o arquivista, de propósito, não dá exemplos. (DELEUZE, 1988, p. 13)

Nos aproximamos da análise de discurso de linha francesa, inaugurada por Michel Pêcheux, com a qual Foucault dialoga, e a multiplicidade dos conceitos do pensamento nietzschiano, tomados por Foucault e constituídos como genealogia. Tendo percebido a necessidade de uma abertura no corpus, Pêcheux propõe que a análise do discurso trabalhe com as materialidades discursivas implicadas em rituais ideológicos, nos discursos filosóficos, em enunciados políticos, nas formas culturais e estéticas, através de suas relações com o cotidiano. Constitui-se, portanto, mais um lugar que podemos observar a confluência do seu pensamento com as propostas foucaultianas, já que ao adotar esse ponto de vista, Pêcheux aponta na direção arqueogenealógica desenvolvida por Foucault, que desde o início dos anos 70, estava interessado em estudar as polulações dos saberes que constituem a “história do presente”. (GREGOLIN, 2006, p. 176)

O processo de análise discursiva não é uma metodologia, especificamente. Ele se funda na intersecção de epistemologias distintas, e se constrói a partir da definição dos seus principais objetos: o discurso; o enunciado; e o saber. Tem a pretensão de interrogar os sentidos estabelecidos em diversas formas de produção, que podem ser verbais ou nãoverbais, bastando que a sua materialidade produza sentidos para interpretação. [...] gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intrincamento entre um léxico e uma experiência; gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva. (...) não mais tratar os discursos como conjunto de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os tornam irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse mais que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever. (FOUCAULT, 2007, p. 56)

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A análise do discurso não trabalha com o conteúdo, mas com o sentido que é produzido nas mais diversas formas. Essa é uma diferença importante, a nosso ver, entre a análise de conteúdo e a análise do discurso. Partimos da concepção de que o processo de pesquisa, de análise e interpretação é um processo criativo. O analista faz uma leitura também discursiva, influenciada pelo seu afeto, sua posição, suas crenças, suas experiências e vivências, portanto, a interpretação nunca será absoluta e única, mas sim um efeito de sentido. Como descreve Ragusa em A arqueologia do saber e a história: Pois ao contrário da história tradicional, a arqueologia procura apanhar o sentido do discurso em sua dimensão de acontecimento, ou seja, por mais que sejam semelhantes, cada texto, cada fala, cada palavra por mais que se aproximem e se pareçam de outras palavras e textos, nunca são idênticos aos que o precedem, daí a singularidade dos acontecimentos discursivos na história. A arqueologia torna possível compreender a emergência dos acontecimentos discursivos, investigando as condições sociais e históricas que contextualizaram e possibilitaram sua existência material. Assim investiga-se porque determinado enunciado foi enunciado, e nenhum outro em seu lugar. (RAGUSA, 2011) (Grifo do autor).

Nesta forma de fazer história, aquilo que as pessoas disseram e dizem instaura uma realidade discursiva, elevando o dito ao estatuto de acontecimento. Nessa lógica, os sujeitos e os objetos não existem a priori, são construídos discursivamente sobre o que falam e o que se fala deles. Foucault trabalhou com pergaminhos embaralhados, com documentos empoeirados, laudos, prontuários e arquivos de instituições. “A genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária.” (FOUCAULT, 1990, p. 15) Este trabalho é a experiência de uma genealogia, não mais tão cinza, porém ainda meticulosa. Utilizamos o arquivo digital de O Globo, onde na tela colorida do computador, pudemos ter acesso a todas as páginas de O Globo nos anos pesquisados, digitalizadas, limpas e iluminadas eletronicamente. O que analisamos nas entrevistas, notícias, reportagens e fotografias foram os discursos que operaram e os assujeitamentos que foram produzidos em meio aos jogos de saber/poder, que atravessaram a constituição dos discursos da política de pacificação do governo de Sérgio Cabral, no Rio de Janeiro. Focamos as análises nessas produções midiáticas, mais especificamente, nas capas do jornal, por considerarmos que as capas apresentam os acontecimentos e as notícias consideradas pelos editores como as mais importantes ou com mais potencial para aguçar a curiosidade do leitor, levando-o a comprar um exemplar do jornal. Além do mais, as capas 17

expostas nas bancas de jornal são lidas, mesmo que apressadamente, por um número maior de leitores, independente do perfil socioeconômico. Isso não se restringe às bancas de jornais, onde as capas ficam expostas, valendo também para as casas, as repartições, os órgãos do governo, o transporte público. Os textos das reportagens, editoriais, ou cartas de leitores, que se localizam nas páginas internas do jornal, muitas vezes, são assinados por jornalistas, especialistas ou leitores. Já nas capas, isso não acontece. Quem define a manchete e o texto da chamada na capa do jornal nem sempre é o jornalista que a escreveu. Nas capas não aparece essa referência. Existe, inclusive, a profissão de “mancheteiro”, porque uma boa manchete pode vender muito mais exemplares do jornal. Consideramos que o tamanho da letra, a posição de destaque no jornal e a presença ou não na capa indicam a importância que o jornal está atribuindo a determinados assuntos e interferem, profundamente, na produção de sentidos sobre determinado acontecimento. Indo neste caminho, nos apropriando do pensamento de Michel Foucault, o que nos interessou, na análise, foi explicitar os discursos que se atravessaram, as lutas que estiveram em jogo. Desconstruir a unidade que aparece na reportagem, na entrevista, ou na fotografia, como testemunha de uma verdade a ser revelada e divulgada, como um vestígio da verdade e entendê-la como discurso produzido e produtor de verdades e subjetividades. É nesta perspectiva, que pensamos os documentos da nossa pesquisa. Buscando as prescrições, as finalidades, as produções que estão em jogo, onde determinados discursos são legitimados e outros, apagados e silenciados, desde a desqualificação até o seu não aparecimento. Para Foucault, a análise do discurso permite entender as dimensões sociais e políticas presentes nele que, por sua vez, integram formações discursivas mais amplas. Ou seja, o discurso é considerado como produto e produtor da realidade social a qual pertence. Segundo Foucault, para analisar os diferentes modos de subjetivação é preciso determinar e descrever a proliferação dos acontecimentos discursivos através dos quais, graças aos quais e contra os quais se formaram as noções, os conceitos, os topoi que atravessam e constituem os objetos e engendram os discursos que falam sobre eles. (GREGOLIN, 2006, p. 59)

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1.3 – Um pouco dos meus afetos As questões iniciais dessa pesquisa surgiram a partir da experiência de seis anos trabalhando como psicóloga de uma ONG que oferece oficinas, atividades educacionais e culturais para crianças e jovens, em favelas do Rio de Janeiro. E que atua, também, encaminhando egressos do sistema penal, ou do tráfico de drogas, para o mercado de trabalho. Durante os quatro primeiros anos, participei de uma equipe formada por duas psicólogas, duas assistentes sociais e uma pedagoga. O projeto se localizava na favela do Cantagalo e oferecia atividades sociais e educacionais para crianças e jovens moradores da comunidade. Tínhamos como atribuições: recepção, orientação e inscrição de pessoas interessadas em cursar as oficinas; realização de rodas de conversa com crianças e adolescentes; acompanhamento das famílias dos alunos participantes, com reuniões de pais e visitas domiciliares; elaboração de relatórios mensais; planilhas de quantitativos de participantes; relatórios de eventos; planejamento e execução de eventos e ações sociais dentro e fora da favela; articulação e contato com instituições presentes na comunidade e na rede pública, tais como: escolas, postos de saúde, empresas, outras ONGs e projetos governamentais. Quando comecei a trabalhar nessa ONG, o Complexo do Cantagalo/Pavão/Pavãozinho ainda estava sob o comando do tráfico de drogas, mais especificamente da facção do Comando Vermelho. Em janeiro de 2010, aconteceu a ocupação do BOPE5 e a implantação da UPP6, que ocupa a favela desde então. Acompanhei, pessoalmente, esse processo. Após quatro anos, fui transferida para outro projeto da mesma ONG, na Lapa, bairro da cidade do Rio de Janeiro, onde recebia, cadastrava e entrevistava egressos do sistema penitenciário e os encaminhava para vagas de trabalho. Nesse processo, visitávamos presídios para falar sobre o projeto e acompanhávamos os testemunhos dos “casos de sucesso”.7

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Batalhão de Operações Policiais Especiais, força de intervenção da polícia militar do estado do Rio de Janeiro. Fundado em 1978, possui atualmente um total de 400 policiais efetivos, especializados em operações de combate ao crime em áreas de alto risco e resgate de reféns. (BOPEOFICIAL, s/d.) 6 Implantado pela Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro, no fim de 2008, o Programa das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) é planejado e coordenado pela Subsecretaria de Planejamento e Integração Operacional. Segundo afirmam, “esse programa foi elaborado com os princípios da polícia de proximidade, um conceito que vai além da polícia comunitária e tem sua estratégia fundamentada na parceria entre a população e as instituições da área de Segurança Pública. O Programa engloba parcerias entre os governos – municipal, estadual e federal – e diferentes atores da sociedade civil organizada e tem como objetivo a retomada permanente de comunidades dominadas pelo tráfico, assim como a garantia da proximidade do estado com a população.” (GOVERNO DO RIO DE JANEIRO, s/d) 7 Pessoas que já haviam sido do primeiro escalão do crime, ou presas, contratadas pela ONG, que tinham como principal função dar testemunhos sobre superação e mudança de vida.

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Apesar desta pesquisa não tratar, especificamente, dessa experiência de trabalho ou dessa ONG, foi a partir dessa experiência que surgiram as questões iniciais que a motivaram. Subir o morro, quase que diariamente, durante quatro anos, andar pelas vielas, conversar com pessoas, entrar nas suas casas e fazer amigos; dividir a angústia e o sofrimento de pessoas que perderam algum parente ou amigo assassinado pela polícia ou por traficantes, e que diante da dor, choravam, implorando para que o corpo fosse devolvido, para que pudessem enterrar seu parente. Estar no meio de um tiroteio e não saber o que fazer, se jogar no chão e passar a ter medo de helicóptero (qualquer barulho de helicóptero, hoje, me deixa sobressaltada) não é algo, assim, que se apague facilmente. Entrar em um presídio e testemunhar as condições de existência dos presos e seus familiares; ouvir o desespero de uma mãe que teve o filho preso, sem saber sequer como descobrir em que presídio ele estava, se é que ele ainda estava vivo; não é uma experiência que passa pela vida de alguém de forma despercebida. Ninguém é passivo diante dos acontecimentos. Com o andamento da pesquisa – o diálogo com minha orientadora e os professores da minha banca e as inquietações que a qualificação me causou – tornou-se inviável continuar trabalhando na ONG. Por mais que fosse, para mim, um espaço de múltiplos afetos, no dia seguinte da qualificação do projeto dessa pesquisa, em agosto de 2013, pedi demissão da ONG. Precisei fazer uma escolha, pois continuar lá iria de encontro a princípios éticos e políticos dos quais eu não poderia mais abrir mão. Fui testemunha e participei de situações que, hoje, eticamente eu critico. Independente disso, penso que todos nós, de alguma maneira, estamos envolvidos nos processos. Essas experiências vividas, morar no Rio de Janeiro e trabalhar com jovens pretos e pobres, me afetaram e despertaram em mim o desejo de escrever, de gritar sobre o que vem acontecendo nas favelas do Rio de Janeiro. Não posso compactuar com o extermínio de jovens pretos. Não posso me calar diante dessa nova onda neoliberal que controla e assassina pobres, a céu aberto e em presídios. Não posso ser conivente com a barbárie e ficar calada. Omitir-me, fingir que nada está acontecendo, é uma forma de compactuar. Por isso, precisei pesquisar e escrever sobre esse assunto, sobre esse “novo Leviatã, ferozmente intervencionista, autoritário e caro” (WACQUANT, 2012, p. 33).

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É assim que o Estado lida com a turbulência social, ocupando e controlando os espaços das favelas como campos de concentração a céu aberto e lotando os presídios. Com as “tecnologias disciplinares” enfraquecidas e impraticáveis nas prisões superlotadas, o adestramento é subjetivo. Será que essa sujeição é mais “humana” que um simples armazenamento? Já compactuei e participei de tudo isso. Dei aula sobre “cidadania” para jovens pobres e pretos, também entrei em prisões, com crachá de psicóloga para “conversar” com os presos. Sob a égide do moralismo, também produzimos, todos os dias, os microfascismos e as naturalizações. Afinal, o “caminho correto” é tão sedutor quanto a própria ordem. Tão confortável, que é difícil parar e se perguntar: qual é a demanda por ordem que se apresenta? É difícil perceber que, muitas vezes, nos tornamos polícia, muitas vezes nos tornamos pastores. Todo cuidado é pouco, porque o chão é muito molhado e, a qualquer distração, escorregamos. Então, colocar em análise as nossas implicações8 é fundamental. Afinal, o maior inimigo está dentro de nós, ou nas palavras de Guattari: “Somos todos grupelhos”. O inimigo se infiltrou por toda parte, ele decretou uma imensa interzona pequeno-burguesa para atenuar o quanto for possível os contornos de classe. A própria classe operária está profundamente infiltrada. Não apenas por meio dos sindicatos pelegos, dos partidos traidores, social-democratas ou revisionistas... Mas infiltrada também por sua participação material e inconsciente nos sistemas dominantes do capitalismo monopolista de estado e do socialismo burocrático. Primeiro, participação material em escala planetária: as classes operárias dos países economicamente desenvolvidos estão implicadas objetivamente, mesmo que seja só pela diferença crescente de níveis de vida relativos, na exploração internacional dos antigos países coloniais. Depois, participação inconsciente e de tudo quanto é jeito: os trabalhadores reendossam mais ou menos passivamente os modelos sociais dominantes, as atitudes e os sistemas de valor mistificadores da burguesia – maldição do roubo, da preguiça, da doença, etc. (GUATTARI, 1985, p. 12)

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A proposta de analisar nossas implicações é uma forma de pensar, cotidianamente, como vêm se dando nossas diferentes intervenções. Dentro de uma visão positivista que afirma a objetividade e a neutralidade do pesquisador/profissional, as propostas da Análise Institucional tornam-se, efetivamente, um escândalo, uma subversão. Colocar em análise o lugar que ocupamos, nossas práticas de saber-poder enquanto produtoras de verdades - consideradas absolutas, universais e eternas - seus efeitos, o que elas põem em funcionamento, com o que elas se agenciam é romper com a lógica racionalista ainda tão fortemente presente no pensamento ocidental (...) Implicado sempre se está, quer se queira ou não, visto não ser a implicação uma questão de vontade, de decisão consciente, de ato voluntário. Ela está no mundo, pois é uma relação que sempre estabelecemos com as diferentes instituições com as quais nos encontramos, que nos constituem e nos atravessam. (COIMBRA e NASCIMENTO, s/d)

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Friso, então, que o meu envolvimento com a pesquisa é de ordem afetiva e política. Não há nenhuma “verdade”. A experiência de cada um é singular. Quando relatamos algo que vivemos, quando pensamos e repensamos as nossas práticas, quando fazemos análises, encaramos como atos de resistência. Efeito de experiências pessoais, atravessamentos, leituras, aulas e encontros. As noções de sujeito, objeto, pesquisador e campo de pesquisa se atravessam.

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CAPÍTULO 2: A PEDAGOGIA DO MEDO: O DISCURSO DA GUERRA 2.1 - Mídia e produção de subjetividades A partir do referencial conceitual de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari, compreendemos os discursos como produzidos e produtores de subjetividades que desembocam em práticas, saberes e relações de poder. Assim, o trabalho está marcado por uma compreensão do sujeito contrária a toda uma tradição da filosofia e das ciências humanas que, desde Descartes, entende esse sujeito como algo do domínio de uma suposta natureza humana. Nós o entendemos como uma produção sócio-histórica que se materializa por meio das práticas disciplinares e de poder. Nesse enfoque, histórico-genealógico, o indivíduo é entendido, então, não mais como natural ou como uma essência, mas como, apenas, um dos modos de subjetivação possíveis. A subjetividade não é passível de totalização ou de centralização no indivíduo. Ela é fabricada e modelada no registro do social, constituída por atravessamentos de forças. Tudo o que é produzido pela subjetivação capitalística – tudo o que nos chega pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos rodeiam – não é apenas uma questão de ideia, não é apenas uma transmissão de significações por meio de enunciados significantes. Tampouco se reduz a modelos de identidade, ou a polos maternos, paternos, etc. Trata-se de sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo. (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 27)

A subjetividade é essencialmente fabricada – como parte do processo de produção do sistema capitalístico – produção esta que interfere na maneira como os indivíduos percebem o mundo, se articulam com ele, com a ordem social, sustentando as forças produtivas. Guattari e Rolnik consideram a sinonímia indivíduo/subjetividade como empobrecedora, no sentido de que atribui ao sujeito uma identidade determinada e limitada, reduzindo as múltiplas possibilidades de se experimentar relações com a vida. Seria conveniente dissociar radicalmente os conceitos de indivíduo e de subjetividade. Para mim, os indivíduos são o resultado de uma produção de massa. O indivíduo é serializado, registrado, modelado... A subjetividade não é passível de totalização no indivíduo. Uma coisa é a individuação do corpo. Outra é a multiplicidade dos agenciamentos da subjetivação: a subjetividade é essencialmente fabricada, modelada no social. (Ibid., p. 31)

A grande mídia tem um papel fundamental nessa produção de modos de pensar e sentir. Cecília Coimbra nos diz: 23

Partimos do pressuposto de que a mídia é atualmente um dos mais importantes equipamentos sociais no sentido de produzir esquemas dominantes de significação e interpretação do mundo e que os meios de comunicação, portanto, “falam pelos e para os indivíduos” (COIMBRA, 2001, p. 29)

As notícias publicadas nos jornais são construídas a partir de seleções e interpretações. O que leva à seleção de uma notícia e não de outra? O jornal, como qualquer outra mercadoria, precisa atrair o público para consumi-lo. Como uma indústria de notícias, precisa prover o mercado. As notícias são selecionadas de modo a atender aos interesses dos consumidores do jornal. No entanto, para além de uma mercadoria, o jornal é um instrumento de controle, de produção de modos de subjetivação, bem como, de verdades. A mídia não apenas seleciona o que é dito, mas também interpreta os fatos para o público, processando a informação. O conceito de enquadramento, muito utilizado no jornalismo, é bastante rico para a compreensão desse processo. Ele diz respeito à forma como determinada situação é construída, apresentada e interpretada. O jornalismo como prática institucionalizada, os constrangimentos organizacionais daí derivados, a visão dos jornalistas sobre o que é notícia – resultado da perspectiva que eles têm sobre a própria profissão – e a tendência que as notícias têm de privilegiar posições ideológicas hegemônicas, reforçando a manutenção do status quo, dentre outros fatores, são fundamentais para uma compreensão dos modos como são promovidos os enquadramentos. (CARVALHO, s/d)

Partindo de uma suposta “objetividade” e “imparcialidade”, a mídia oferece aos leitores uma interpretação dos fatos, uma versão do acontecimento, que é vendida como verdade única. Os jornais se afirmam como imparciais, tratando a notícia como fato, como verdade, e não como versão. É sabido que algumas poucas famílias controlam a TV9, a mídia impressa e radiofônica no Brasil10. Percebemos que, como empresas, elas defendem seus próprios interesses e, nisso,

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Marinho (Rede Globo), Saad (Rede Bandeirantes) e Abravanel (SBT). Em plano regional, as famílias Sirotsky (RBS, no Sul), Daou (TV Amazonas, no norte), Jereissati (TV Verdes Mares, no Nordeste), Zahran (TV Centroeste, em Mato Grosso), Câmara (TV Anhanguera). Além de importantes políticos em seus estados natais, como os Sarney no Maranhão (Rede Mirante-TV Globo), os Collor em Alagoas (TV Gazeta-Globo), os Franco em Sergipe (TV Sergipe – Globo e TV Atalaia- Record), os Magalhães na Bahia (TV Bahia – Globo). (BRASILQUEVAI, 2011) 10 Organizações Globo – família Marinho, Rede Record – Edir Macedo e Bispos da IURD, Sistema Bandeirantes de Comunicação – família Saad, Sistema Brasileiro de Televisão – família Abravanel, Rede TV - Amilcare Dallevo e Marcelo de Carvalho. (PRODUTORAS E TVS, 2010)

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inclui-se a política. A centimetragem de coluna (que é como se mede os espaços nos jornais) é distribuída de forma desigual entre parceiros e desafetos políticos, ao mesmo tempo em que aos parceiros sobram elogios, aos desafetos, a opinião sempre é crítica e implacável. Quatro famílias detêm a parte do leão da imprensa escrita no Brasil. São elas a família Frias, a família Marinho, a família Mesquita e a família Civita, controladoras, respectivamente, dos jornais Folha de S. Paulo, O Globo, Estado de S.Paulo e da revista Veja. Durante décadas, essa gente influenciou a sociedade brasileira. Na maior parte do tempo, de forma extremamente nefasta. Só para se ter uma idéia do mal que essas famílias e seus patriarcas já fizeram ao Brasil, basta lembrar que foram responsáveis, por exemplo, por atirá-lo numa ditadura militar que durou duas décadas, e por sustentá-la durante a maior parte desse tempo. (...) Foi graças à imprensa escrita, por exemplo, que a maioria da sociedade viu Lula como um "perigo" durante longos treze anos. (GUIMARÃES, 13/03/2007, s/p)

Deste modo, a mídia produz, em grande escala, subjetividades submissas aos interesses do capital globalizado. Como nos diz Coimbra (2001): Este monopólio dos meios de comunicação – após anos de ditadura militar e de concessões escandalosas e praticamente ilegais –, sobretudo em certas regiões do Brasil, tem sido preocupante (...) intervém abertamente em questões as mais diversas, orientando-as – com a “aprovação” da opinião pública – para os caminhos e desfechos que interessam ao que é dominante. (COIMBRA, 2001, p. 33)

Milton Santos chama esse processo de “tirania da informação”. É uma forma de totalitarismo muito forte, insidiosa, porque se baseia em ideias que aparecem como centrais à própria ideia da democracia – liberdade de opinião, de imprensa, tolerância – utilizadas exatamente para suprimir a possibilidade de conhecimento do que é o mundo, do que são os países, os lugares. Eu chamo isso de tirania da informação, que, associada à tirania do dinheiro, resulta no globalitarismo. (SANTOS, 2007, p. 38)

O mercado das notícias lucra com as vendas de jornal e a publicidade nele contida, mas a sua lucratividade vem, também, da produção de processos de subjetivação, da produção de verdades. Considerando que o poder político, advindo do controle dos meios de comunicação, e a riqueza são duas faces de uma mesma moeda. Para Guattari e Rolnik, a subjetividade é a matéria-prima fundamental da produção capitalística.

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O lucro capitalista é, fundamentalmente, produção de saber subjetivo, isso não implica uma visão idealista da realidade social: a subjetividade não se situa no campo individual, o seu campo é o de todos os processos de produção social e material. O que se poderia dizer, usando a linguagem da informática, é que, evidentemente, um indivíduo sempre existe, mas apenas enquanto terminal; esse terminal individual se encontra na posição de consumidor de subjetividade. Ele consome sistemas de representação, de sensibilidade, etc. – sistemas que não tem nada haver com categorias naturais universais. (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 32)

Entendemos que os discursos da mídia atravessam os vários setores de nossa sociedade (a política governamental, as empresas, as ONGs, os movimentos sociais) das mais variadas formas, promovendo e produzindo subjetividades, modos de perceber e encarar a realidade, alcançando a maioria da população, como um ideal de vida, uma gradativa escala que promove um padrão de bem-estar social. As participações diferenciadas no processo produtivo impõem uma vivência, também, diferenciada dos grupos sociais. No entanto, o comportamento de certos grupos é encarado de forma negativa, a partir de categorizações do saber oficial e da visão de mundo de uma minoria dominante, como forma de controle social. Essa maneira de perceber o mundo é vista como modelo para a sociedade, como se dos diversos grupos não emergissem diferenciados interesses. A interpretação dos fatos, vendida como verdade, fabrica consensos sobre certas práticas e tipifica os heróis e os vilões das histórias. A intenção aqui é apontar para o caráter efetivamente construído desses sujeitos. Pensando as estratégias e os mecanismos pelos quais os dispositivos da mídia, da educação, do controle e do poder se atualizam na linguagem. Pretendemos destacar que tanto a criminalidade, quanto o sujeito-criminoso, o sujeitoeducador ou o sujeito-policial são efeitos de discursos e de contingências sociais, culturais e econômicas específicas (e não aspectos de uma natureza ou essência). Buscamos compreender as condições de produção destes discursos e dos sujeitos que os envolvem. Segundo Batista (2003): A grande política social da contemporaneidade neoliberal é a política penal. A qualquer diminuição do seu poder os meios de comunicação de massa se encarregam de difundir campanhas de lei e ordem que aterrorizam a população e aproveitam para se reequipar para os “novos tempos”. Os meios de comunicação de massa, principalmente a televisão, são hoje fundamentais para o exercício do poder de todo o sistema penal, seja através dos novos seriados, seja através da fabricação de realidade para a produção de indignação moral, seja pela fabricação de estereótipo de criminoso. (BATISTA, 2003. p. 33)

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Nesta pesquisa, buscamos compreender como essa grande corporação midiática, a Rede Globo, cobriu e apoiou a implantação da política de pacificação do governo Sérgio Cabral, por meio de seu jornal impresso. A nossa principal questão foi: que processos de subjetivação, que sentidos foram produzidos, corroborando a produção do medo e da insegurança, que levaram a população, mais que aceitar, a aplaudir uma política de disciplinamento, controle e extermínio das populações pobres do Rio de Janeiro? 2.2 – O discurso da guerra contra o tráfico, as megaoperações e a ocupação das favelas do Rio de Janeiro pelas Forças Armadas e a Polícia Militar As estratégias implementadas na política de segurança pública pelo governo do Sérgio Cabral no estado do Rio de Janeiro não foram novidades, já vinham sendo adotadas nos governos anteriores. No entanto, esse modelo repressor voltado para as populações pobres é atualizado na forma de “megaoperações”, onde um grande número de agentes, com o apoio das forças armadas e da Força Nacional11, passam a fazer incursões com ampla divulgação dos meios de comunicação. Nos dois primeiros anos do mandato do Governador Sérgio Cabral, nos anos de 2007 e 2008, as palavras de ordem que, quase diariamente, apareceram nas capas dos jornais foram: “guerra e terrorismo”. Essa construção maciça da imagem de uma guerra civil, de uma guerra nas ruas, produz efeitos potentes nas concepções sobre a segurança pública. Na história da humanidade, o mito da guerra civil sempre esteve presente justificando o domínio de certos grupos sobre outros. Na história oficial do Brasil, esses “estados de guerra” são descritos e denominados como: revolução, traição, revolta, rebelião, motim e insurreição. Alguns exemplos são: Palmares, Inconfidência Mineira, Revolta dos Males, Canudos, Contestado, Caldeirão. A expressão “estado de guerra” também justificou medidas de exceção durante a ditadura militar: 11

A Força Nacional é uma guarda especial, ostensiva e judiciária, subordinada à secretaria Nacional de Segurança Pública do ministério da justiça. É um órgão que foi criado durante a gestão do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2004. É acionada quando um governador ou um ministro de Estado requisita auxílio federal para auxiliar as forças de segurança locais em diversas situações, dentre elas: eventos internacionais; ações de combate ao narcotráfico; confrontos de terras indígenas; situações de greve de policiais militares e período eleitoral.

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Mais recentemente, nos anos 60 e 70, na América Latina onde vicejaram movimentos de oposição às ditaduras militares – então implantadas em várias partes desse continente – a expressão “estado de guerra” e a justificativa na utilização de “medidas de exceção” foram bastante utilizadas e disseminadas, em especial, como complemento à Doutrina de Segurança Nacional. Esta, numa clara alusão à “guerra interna”, colocava os “inimigos do regime”, ou seja, qualquer oposição como forças que, necessariamente, deveriam ser combatidas e eliminadas para que a segurança nacional não fosse abalada. (COIMBRA, 2000)

Durante todo o período do primeiro mandato de Sérgio Cabral (2007-2010), manchetes e notícias sobre violência, operações policiais e criminalidade, associadas aos espaços das favelas, foram largamente divulgadas pela mídia, produzindo o sentimento de que vivemos em uma situação de guerra. Elas afirmaram e fortaleceram a concepção de segurança pública militarizada, onde os traficantes assumem o lugar antes ocupado pelos “terroristas” da ditadura e a crença na lógica de que “bandido bom é bandido morto”. As torturas nas cadeias e as execuções durante as megaoperações policiais nas favelas não foram apenas banalizadas, mas apoiadas não só pela classe média e pelas elites, como, também, pelas camadas mais pobres da população, que não se cansaram de pedir mais punições e que aplaudiram o extermínio de jovens pobres e pretos. Esse sentimento de “estado de guerra” foi produzido com dois propósitos principais: tornar aceitável qualquer ação da polícia e produzir o medo do caos. Ambos detonando, no imaginário social, o desejo por estratégias de controle e disciplinamento das massas empobrecidas. Essas medidas de exceção justificam perseguições, violações e extermínios. Todas as manchetes do primeiro dia do ano, em O Globo, durante o período pesquisado, trouxeram como assunto principal a noite do Réveillon, em Copacabana. No entanto, junto à notícia da festa na praia, também foram veiculadas informações importantes sobre o “sentimento” e o “clima emocional” da cidade, emblemáticas, principalmente nos anos em que há posse de novos governantes, refletindo alguns acertos feitos na transição. No dia primeiro de janeiro de 2007, dia da posse do Governador Sérgio Cabral, a manchete do ano novo acentuou o “clima” de insegurança instaurado, devido aos ataques a delegacias e incêndios que ocorreram dias antes, no Rio de Janeiro. Esse “clima” de apreensão, com a maior festa da cidade esvaziada, se perpetuou durante todo o ano de 2007 e o “cenário” inicial para a construção da política de segurança do governo se construiu a partir de então.

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O ano começou com diversas reportagens e declarações do presidente Lula e do Governador Sérgio Cabral sobre o novo governo estadual. O foco foi a segurança pública. A matéria principal da capa de O Globo do dia 02/01/2007 já mostrou como seria o resto de todo o ano de 2007. “Lula diz que Rio vive terrorismo e Cabral pede ajuda de força federal. Declarações do presidente e do governador do Rio marcam nova atitude no combate à violência.” (O Globo, 02/01/2007, capa) Devemos lembrar que no dia 28 de dezembro de 2006, ou seja, quatro dias antes do governador Sérgio Cabral tomar posse no governo do Rio de Janeiro, ocorreram diversos ataques a delegacias, cabines da PM e ônibus que foram incendiados, com pessoas mortas, feridas e algumas prisões. Esses ataques ganharam destaque na mídia, repercutindo nos principais jornais do Brasil e do mundo. Diversas declarações vieram como resposta dos novos governos, a esses acontecimentos. O presidente Lula declarou: A Barbaridade que ocorreu no Rio não é crime comum. Isso é terrorismo e tem que ser combatido com uma política forte e com a mão do Estado brasileiro... Já extrapolou o bandidismo convencional que conhecemos. (Luiz Inácio Lula da Silva – Presidente da República) (O Globo, 02/01/2007, p. 18) (Grifos nossos).

Na mesma página, Sérgio Cabral continuou: Esses facínoras, esses covardes, terão a resposta de um governo sério, que defende a ordem... Eu também sou cidadão e não aguento mais. A polícia não vai mais apenas reagir aos atos criminosos, vai se antecipar a eles... O nosso governo vai ganhar essa guerra contra esses criminosos, nós vamos dar segurança à nossa população. Não é uma figura de retórica... São facínoras, covardes, e devem ser tratados como atos de terrorismo. Concordo em gênero, número e grau com o presidente. Ele quer jogar duro e tipificar esse tipo de crime de outra maneira. (Sérgio Cabral – Governador do Estado do Rio de Janeiro) (O Globo, 02/01/2007, p. 18) (Grifos nossos)

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Com esse cenário e esses discursos “casados”, intentou-se integrar a Força de Segurança Nacional em ações de combate ao narcotráfico. Também se retomou uma proposta parecida com a Operação Rio, de 199412, onde as Forças Armadas ocuparam a cidade. Na capa do terceiro dia do ano, esse argumento ganhou evidência: “Cabral quer exército na rua.” (O Globo, 03/01/2007, capa) Nos dias seguintes, se intercalam matérias sobre assaltos e violência com outras sobre a vinda da Força Nacional, reivindicações de mais verbas e participação do governo federal, conforme prometido. Vejamos algumas: Turistas assaltados na linha vermelha. (O Globo, 05/01/2007, capa) Carro. Madrugada. E mais um jovem morto. (O Globo, 06/01.2007, capa) Governadores cobram de Lula verba e polícia contra o crime. (O Globo, 10/01/2007, capa)

É dado grande destaque ao poderio bélico do “inimigo”, aos personagens míticos do primeiro escalão do tráfico e às transferências e fugas espetaculares. Como vemos na manchetes, imagem e texto da reportagem: Tráfico aluga armas pesadas para fortalecer quadrilhas. (O Globo, 21/01.2007, capa)

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A Operação Rio I, iniciada em 31 de outubro de 1994, através do convênio assinado entre o Governo do Estado do Rio de Janeiro e o governo federal, trouxe a presença ostensiva das forças armadas nas favelas e bairros populares fluminenses, locais percebidos como perigosos e degenerados. Sobre o assunto consultar COIMBRA, 2001.

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Maiores traficantes do Rio vão para presídios no Paraná. Na primeira operação de segurança integrada, que mobilizou as polícias federal e militar, além das forças armadas, foram transferidos ontem, num voo da FAB, para a penitenciária de Catanduvas (PR), 12 presos e chefes das principais facções criminosas do Rio, suspeitos de comandarem a onda de ataques que aterrorizou a Região Metropolitana e deixou 19 mortos no final do ano passado. Márcio dos Santos Nepomuceno (o Marcinho VP), Elias Maluco e Robinho Pinga são três dos chefes transferidos (...) O ministério da defesa anunciou que cinco mil homens das Forças armadas entraram em prontidão (...) Uma tropa de 600 homens da Força Nacional está pronta para desembarcar o Rio já nos próximos dias. (O Globo, 06/01/2007, capa)

No dia 14/01/2007, desembarcam, no Rio, 500 policiais da Força Nacional, com o objetivo de ajudar o governo do Estado na “guerra contra o tráfico”. “Força Nacional já está no Rio.” (O Globo, 14/01/2007, capa) Imagem 4

Nesse momento, ocorreu um impasse sobre com quem ficaria o comando da Força Nacional. No dia 16 lemos: “Força Nacional terá autonomia para agir” (O Globo, 16/01/2007, capa). No dia seguinte, o jornal publicou foto do governador passando em revista as tropas, afirmando que o comando seria do governo estadual. “O governador Sérgio Cabral passa em revista as tropas da Força Nacional, cujo comando caberá ao estado nas operações no Rio.” (O Globo, 17/01/2007, capa)

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Mesmo com o impasse ainda a ser resolvido, o cenário se construiu. Matérias e fotos de policiais da Força Nacional, pesadamente armados, ocupando as ruas; operações da PM nas favelas; ônibus sendo incendiados; chacina de jovens. Imagem 6

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Tráfico desafia polícia com tiroteio e ataques a ônibus. Bandidos queimam 3 veículos após morte de cúmplices na Mangueira. (O Globo, 17/01/2007, capa.) Imagem 7

Cerco a bandidos que incendiaram ônibus. Um grupo de policiais leva detidos, após um tiroteio de 11 horas na Vila Cruzeiro, na Penha (...) Cinco bandidos foram mortos e três moradores feridos por balas perdidas. (O Globo, 25/01/2007, capa) Traficantes matam sete jovens de favela rival. (O Globo, 25/01/2007, p.13) Copacabana na linha de tiro. Caçada a ladrões termina com um bandido morto, jovem baleada e prédios alvejados. Segundo secretário José Mariano Beltrame, as recentes tentativas de assalto são resultado da asfixia do tráfico nos morros. (O Globo, 30/01/2007, capa)

No mês de fevereiro, a Força Nacional que, até então, estava nas divisas do estado, passou a atuar em áreas urbanas. Foi se construindo o discurso de que o Rio de Janeiro vivia uma “guerra”. E as matérias se seguiram: Confronto em favelas do Rio envolve PM, Tráfico e milícias. Tiroteios entre os três grupos deixam 5 mortos na Zona Norte. (O Globo, 05/02/2007, capa) Favela Escola. Policiais da Força Nacional treinam na favela Tavares Bastos, no Catete, ante a indiferença de uma moradora. Os exercícios visam preparálos para incursões nos morros. (O Globo, 06/02/2007, capa)

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Milícia fecha favela com portão para barrar tráfico. (O Globo, 7/2/2007, capa) Força Nacional faz estréia com apoio à PM em favela. Houve seis mortos, quatro deles traficantes. (O Globo, 14/02/2007, capa) Força Nacional faz primeira operação em favela, ao lado do CORE e do BOPE. Confronto no Alemão deixa 6 mortos e provoca protestos de moradores. (O Globo, 14/02/2007, p.16)

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Não temos como objetivo, aqui, discutir profundamente os conceitos de “terrorismo” e de “guerra”, mas, sim, analisar o que essas palavras produzem no imaginário social. Referências que tipificam amigos e inimigos, presença e ausência de perigo. Nesta “guerra contra as drogas” ou contra o tráfico são construídos os dois lados: o lado do bem e o lado do mal. Quem são os “soldados do bem”? São a PM, a Força Nacional, as Forças Armadas e o BOPE. E quem são os “soldados do mal”? São os “inimigos”, os “bandidos”, os jovens favelados, as facções criminosas, que precisam de medidas disciplinadoras e punitivas que os contenham e controlem. Percebemos nesse contexto, que as frases de efeito, “guerra contra as drogas”, “guerra contra o tráfico” foram amplamente usadas nas matérias e manchetes do jornal, estrategicamente como justificativa para as megaoperações, servindo como potente instrumento de criminalização da pobreza e de controle social.

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Vera Malaguti Batista (2003) faz uma análise sobre a contenção simbólica das classes pobres do Rio de Janeiro, destacando o papel central desempenhado pelas políticas de controle social na produção do imaginário do medo. Em O medo na cidade do Rio de Janeiro. Dois tempos de uma história, nos mostra que o discurso que produz o medo tem sido um potente produtor de sentimentos e afetos influenciando as políticas, os projetos de lei, as práticas sociais e de controle. Segundo a autora, o mercado de drogas e a difusão do medo do caos detona estratégias de neutralização e disciplinamento planejado das massas empobrecidas. A hegemonia conservadora na nossa formação social trabalha a difusão do medo como mecanismo indutor justificador de políticas autoritárias de controle social. O medo torna-se fator de tomada de posição estratégica seja no campo econômico, político ou social. Historicamente, este medo vem sendo trabalhado desde a visão colonizadora da América, na incorporação do modelo colonial escravista e na formação de uma república que incorpora excluindo, com forte viés autoritário. (BATISTA, 2003, p. 23)

Os discursos produtores do medo são dirigidos contra grupos específicos que se modificam ao longo da história, mas sempre enraizados em desigualdades sociais. A análise dessas modificações nos apoiam no entendimento do presente, percebendo as emergências e os acontecimentos que os produziram, podemos desconstruir seu status de verdade e desnaturalizá-los. Em fevereiro, seguiram-se manchetes, quase que diárias, sobre o “caos” da cidade, violência, crimes, operações nas favelas, o discurso da guerra e da necessidade da intervenção das Forças Armadas. Bala perdida mata menina. (O Globo, 06/03/2007, capa) Confronto com a PM na frente do cemitério. (O Globo, 13/03/2007, capa)

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Imagens da violência. Revista infantil: Com o dedo no gatilho, um policial revista a menina em Vigário Geral. (O Globo, 16/03/2007, capa)

Esta foto provocou um intenso debate público e a Justiça concedeu liminar proibindo a polícia de abordar menores. A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) também condenou a ação. No entanto, em junho desse mesmo ano, a liminar foi revogada e a revista de crianças voltou a ser uma prática comum da polícia, fazendo parte do manual de operações policiais, desde os anos 90. Nos primeiros meses do governo de Sérgio Cabral, os confrontos e as incursões das polícias (PM, Força Nacional e Forças Armadas) nas favelas cariocas se intensificaram. Foram diversas invasões que acarretaram em pessoas mortas e feridas. Um cenário que levou líderes comunitários, no dia 27/03/2007, com apoio da ONG Viva Rio, a fazer um pedido formal de cessar fogo, entregando um manifesto ao comando da PM. A resposta de Cabral ao pedido de cessar fogo foi negativa. No dia seguinte, a manchete de capa de O Globo foi: “Cabral e favelas divergem sobre repressão.” (O Globo, 28/03/2007, capa) 37

O governador, em resposta ao pedido de cessar fogo, declarou: O confronto é necessário na Avenida Ataulfo de Paiva, na Visconde de Pirajá, em Copacabana, aqui ou em qualquer lugar onde criminosos enfrentarem a polícia. (Sérgio Cabral – governador do Estado do Rio de Janeiro) (O Globo, 28/03/2007, p. 16)

E o Comandante Ubiratan Ângelo completou: O pedido de cessar fogo é feito aos traficantes. A polícia só pode atirar em legítima defesa, própria e de terceiros. Se ela for recebida a tiros deve trocar tiros. Se houver ataque ao policial, ele deve responder. (Ubiratan Ângelo – Comandante da PM) (O Globo, 28/03/2007, p. 16) Cabral diz que não fará acordo com bandidos. (O Globo, 28/03/2007, p. 16)

No dia 08 de abril, um dos seguranças do governador é assassinado com 6 tiros, em um assalto. Com esse acontecimento, Sérgio Cabral, mais uma vez, pede publicamente que o governo federal envie as Forças Armadas para o Rio de Janeiro. Cabral reage à morte de PM e quer Forças Armadas no Rio. O governador disse ontem que vai pedir ao presidente Lula que as Forças Armadas ajudem no combate à violência no estado. Cabral disse querer ver o exército, a Marinha e a Aeronáutica no patrulhamento de vias expressas. “Não vou passar quatro anos vindo a velório de policiais e de cidadãos vítimas da violência”, afirmou Cabral. Embora o ministro da justiça, Tarso Genro, tenha dito que os militares não têm qualificação para combater crimes comuns, o presidente Lula disse ontem à noite que “se o governador Sérgio Cabral pedir com o maior carinho vamos trabalhar para atendê-lo”, acrescentando que essa criança é de todos”. (O Globo, 10/04/2007, capa)

As negociações se seguiram e o governador Sérgio Cabral entregou o documento de formalização do pedido de envio das Forças Armadas, ao presidente Lula, em um encontro no Rio de Janeiro. Lula analisa pedido de Forças Armadas no Rio. Presidente se reúne hoje em Brasília com ministro da Defesa, Waldir Pires, para discutir ajuda federal na segurança. (O Globo, 12/04/2007, p.18)

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Na foto da matéria, um abraço afetuoso. Imagem 11

No mesmo dia, uma matéria na página seguinte (19), apoiada por chamada de capa, veio bem a calhar para o governador do Rio de Janeiro. Guias cívicos do Pan brigam na formatura. Jovens de comunidades controladas por facções rivais se estranham em solenidade com a presença de Lula. (O Globo, 12/04/2007, p. 19) Favelas rivais brigam durante ato com Lula. (O Globo, 12/04/2007, capa)

Na reportagem vemos falas de especialistas, corroborando a necessidade de uma intervenção firme do Estado e o pressuposto de que, por morarem em favelas, os jovens são propensos a se envolverem em conflitos. O problema é que a divisão das comunidades entre facções criminosas não foi eliminada. Por isso, basta uma provocação para que os conflitos apareçam. (Alba Zaluar – coordenadora do Núcleo de Estudos das Violências da UERJ) (O Globo, 12/04/2007, p. 19) Os jovens são sensíveis à realidade social de onde vivem. Um programa como esse surte efeito a longo prazo. (João Trajano – cientista político do Laboratório de Análise de Violência da UERJ) (O Globo, 12/04/2007, p. 19)

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Transmitir conceitos de cidadania é importante. Mas temos que levar em conta que a realidade onde vivem é diferente dessa teoria. O que vai garantir mudanças nas regras de convivência entre comunidades é a presença firme do estado, para retomar o controle das comunidades. (Ignácio Cano – sociólogo do Laboratório de Análise de Violência da UERJ) (O Globo, 12/04/2007, p. 19)

Como seria previsível, em 17 de abril, O Globo anunciou o acordo firmado entre o governo do Estado e o governo federal sobre o envio das Forças Armadas para atuar nas ruas do Rio. “União aceita enviar forças armadas ao Rio, mas a data ainda é incerta.” (O Globo, 17/04/2007, capa) Nesse momento, volta a ser discutida a questão, assim como ocorreu em janeiro, com quem ficaria o comando das operações? O governador Sérgio Cabral é pressionado e forçado a aceitar que o comando seja único e fique com as Forças Armadas, mas sem dar o braço a torcer, para que não parecesse fragilidade do governo, declarou: Nosso desejo é ter uma parceria datada e pontual. Solicitamos prazo de um ano. Pontual porque achamos que as funções da segurança pública são atribuição da polícia militar e civil. O que estamos solicitando é o apoio, o reforço, a cooperação das forças armadas, pontualmente, em áreas que julgamos importantes e nas quais podem colaborar efetivamente. A garantia da ordem da segurança é de responsabilidade da Secretaria de Segurança, da polícia militar e da polícia civil, nessas áreas específicas, onde serão realizadas operações especiais, deve se ter um comando único. (Sérgio Cabral – governador do Estado do Rio de Janeiro) (O Globo, 17/04/2007, p. 11)

Além do efetivo das Forças Armadas, o ministro da Justiça, Tarso Genro, anunciou que enviaria mais 400 homens da Força Nacional e que, em 45 dias, seriam seis mil homens, especificamente para atuar no Pan. Também ofereceu mais 300 homens da Polícia Rodoviária federal. O pacote de ofertas incluiu, também, apoio da área de inteligência e apoio logístico, com equipamentos tecnológicos e carros. É importante frisar que um dos argumentos para a criação da Força Nacional foi evitar a utilização das Forças Armadas em ações como essa, principalmente depois da Operação Rio, em 1994, quando sofreu intenso desgaste de imagem. Aqui foram utilizadas as duas juntas. Em 18 de abril, foi noticiado mais um “confronto” entre facções rivais e a PM, deixando um saldo, segundo O Globo, de 13 mortos. O governador declara, nessa reportagem, que as Forças Armadas não participariam de “confrontos” em favelas. Acreditamos que essa fala foi estratégica, naquele momento, para a negociação , já que o acordo com o governo federal, apesar de definido, ainda não estava assinado. 40

A Guerra do Tráfico. Um Rio refém das balas. Uma guerra entre duas facções rivais de traficantes no Morro da Mineira, no Catumbi, parou ontem o Centro e parte da Zona Sul do Rio. O tiroteio de dez horas deixou 13 bandidos mortos, três feridos por balas perdidas (um deles era passageiro de um ônibus), fechou lojas, escolas, o Túnel Santa Bárbara... A PM interveio e acabou participando do confronto que levou pânico a moradores e pedestres. Onze traficantes foram presos. O governador Sérgio Cabral lamentou as mortes e esclareceu que as forças armadas não participarão de confrontos em favelas, como o de ontem. (O Globo, 18/04/2007, capa) (Grifo nosso)

Como veremos a seguir, essa declaração não foi cumprida. Aconteceu exatamente o contrário. As Forças Armadas e a Guarda Nacional se juntaram à PM nas megaoperações das favelas. 2.3 – Complexo do Alemão: o Pandemônio Nos dois meses seguintes – de 03/05/2007 a 03/07/2007 – a cobertura da operação policial no Complexo do Alemão foi manchete de 23 capas de O Globo, que chamou esse episódio de “A Guerra do Rio”. Inicialmente, a invasão do Alemão, que começou no dia 02/05/2007, foi justificada como reação à morte de dois policiais militares em Osvaldo Cruz, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Os supostos assassinos estariam escondidos no Complexo de favelas. Os policiais mortos faziam o policiamento da esquina onde foi rendida, por assaltantes, a mãe do menino João Hélio Fernandes Vieites, de 6 anos, que morreu após ser arrastado por mais de sete quilômetros, preso ao cinto de segurança do carro onde estava. Desde então, essa esquina passou a receber policiamento ostensivo. No dia 1º de maio, metralharam a viatura que permanecia estacionada no local, roubaram um dos fuzis, a munição e os dois policiais que estavam no local foram mortos. (GLOBO.COM, 2007) A reportagem sobre a operação da polícia teve como foco e manchete, o número de pessoas inocentes feridas no confronto. “Mais vítimas inocentes. Seis ficam feridos por balas perdidas durante confronto de PMs e traficantes na Vila Cruzeiro.” (O Globo, 03/05/2007, p.13) Na mesma página, o governador Sérgio Cabral afirmava: “Nós vamos ganhar essa guerra.” (O Globo, 03/05/2007, p.13) Segundo ele, o Rio vivia uma guerra, justificando, como necessárias, as ações:

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Essa covardia é uma ação de criminosos para intimidar o governo. Vamos combatê-los. Vamos prender e vamos para o enfrentamento com esses criminosos. Não há outro caminho. Infelizmente, o que estamos vivendo hoje no Rio de Janeiro é uma guerra. E nós vamos ganhar essa guerra. (Sérgio Cabral – governador do Estado do Rio de Janeiro) (O Globo, 03/05/2007, p.13)

Esse discurso foi reproduzido por O Globo que passou a publicar, praticamente todos os dias, as operações da Polícia Militar no Complexo do Alemão. As matérias focaram nas ações policiais, inserindo-as no contexto da guerra e do combate aos traficantes. Destruição de fortaleza não põe fim a conflito na Penha. (O Globo, 07/05/2007, capa) Tráfico do Rio impõe zona de exclusão a helicópteros. (O Globo, 13/05/2007, capa) Polícia quer caveirão do ar contra tráfico. (O Globo, 14/05/2007, capa) Caveirão do ar: polícia entre dois modelos. (O Globo, 15/05/2007, capa)

Observamos, também, a sequência de matérias falando sobre vítimas de balas perdidas nos confrontos. Recomeça a Guerra na Penha. Quinto dia de confrontos na Vila Cruzeiro termina com record de feridos 12. Onze pessoas que não tinham ligações com o tráfico, incluindo uma criança de 3 anos, foram baleadas, um PM foi ferido por estilhaços de granada e um jovem morreu, atingido por um tiro na cabeça, ontem, na Vila Cruzeiro, no dia mais violento de confrontos entre bandidos e policia desde a última quarta feira, quando começaram os confrontos com o Batalhão de Operações Especiais (BOPE). (O Globo, 07/05/2007, p. 10) Balas perdidas ferem mãe e filho de 3 anos dentro de quarto. (O Globo, 07/05/2007, p. 10)

Nessa última reportagem, o jornal ressaltou o sofrimento dos moradores, dizendo que a casa onde eles moravam já havia sido atingida cinco vezes e que a família passou a dormir no chão em noites de tiroteio. Seguiram-se as manchetes dos dias 08 e 09, que também se referiram aos moradores como vítimas inocentes. No decorrer da análise, observamos que o morador da favela é apresentado ora como vítima dos confrontos, refém do tráfico, ora como cúmplice dos algozes, como se o tráfico só existisse na comunidade, porque o favelado permite e apoia, como por exemplo, quando a comunidade faz manifestações contra a polícia. Sendo a pobreza 42

ora relacionada à vitimização, ora à ação violenta. Dessa maneira, a mídia transmite ao leitor que ele é um cidadão diferenciado, que não se identifica com a barbárie em que os moradores das favelas estão inseridos. Quando a mídia se refere ao morador da favela como vítima, ela busca humanizá-lo dando uma identidade: os textos publicados citam o nome, a idade, a profissão e mostram seu sofrimento e sua apreensão diante da operação policial. Vejamos: Balas perdidas. Rio tem mais 4 vítimas. (O Globo, 08/05/2007, capa) Mais 4 feridos por balas perdidas. Número de vítimas na Vila Cruzeiro já é maior que o total de janeiro em todo estado. Na Vila Cruzeiro, o dia de ontem teve apenas um tiroteio, pela manhã. Durante esse confronto, Edvaldo Lins, de 24 anos foi atingido por uma bala perdida, na localidade de Chatuba. Eram cerca de 8h30m quando ele foi ferido por um tiro de fuzil na perna direita, sofrendo fratura exposta. Socorrido por parentes, Edvaldo foi levado de Kombi para o hospital Getulio Vargas, na Penha. Segundo parentes, ele é pedreiro e estava saindo de casa, de bicicleta, para trabalhar com o tio, quando foi baleado. Edvaldo não tem antecedentes criminais. (O Globo, 08/05/2007, p. 13) Mulher que perdeu filha é baleada. (O Globo, 09/05/2007, capa) A 31a vítima inocente. Dona de casa, que já perdeu filha atingida por tiro, é ferida por bala perdida na Vila Cruzeiro. Com o caso de Antônia sobre para 31 o número de vítimas de balas perdidas na Vila Cruzeiro desde o dia 2, quando começaram os tiroteios entre traficantes e policiais no local. A guerra já deixou também seis mortos e um ferido por estilhaço de granada. (O Globo, 09/05/2007, p. 16)

Observamos que as palavras “vítima” e “inocente” ganham destaque. Como se já não bastasse ter perdido uma filha, Antônia também foi ferida. Ao dizer que a moradora era dona de casa, o que lemos é que ela não era traficante, ou seja, era inocente. Edvaldo também, trabalhador e sem antecedentes criminais. Isso produz a ideia de não merecimento daquele sofrimento imposto pela barbárie. Ao mesmo tempo, apesar de não dito explicitamente, essa fala legitima que alguns merecem. Ou seja, que o verdadeiro inimigo (o traficante) é matável. O jornal relata a morte de “supostos traficantes”, mas não cita seus nomes ou histórias de vida, afinal é mais fácil aceitar a execução de quem não conhecemos, não sabemos idade, endereço, profissão. Essas execuções não são questionadas pela sociedade. Ao contrário, são apoiadas e aplaudidas. Neste mesmo dia 9 de maio, dando sequência às reportagens, temos a matéria sobre um protesto realizado pelos moradores do Complexo do Alemão, que ocorreu no dia anterior. Munidos de cartazes fizeram uma passeata pedindo paz e a reabertura de cinco escolas que 43

estavam sem funcionar por causa dos tiroteios. Segundo o jornal, eles foram acompanhados por 100 PMs. A imagem de um PM segurando um cachorro enraivecido, avançando contra os moradores e de uma criança olhando de volta, segurando um cartaz, escrito uma única palavra, “Paz”, é bastante forte. Imagem 12

O jornal publicou a versão do coronel Marcos Jardim, que acompanhou o ato, sobre o protesto. Segundo ele, a passeata foi organizada pelo tráfico para obrigar a polícia a deixar o morro. O jornal ainda reforçou essa versão com a fala de uma moradora: “os bandidos sempre dão paz e segurança para a comunidade. Tanto que, dessa vez, eles mandaram a comunidade descer pra pedir paz.” (O Globo, 09/05/2007, p. 16) Nessa mesma página, ao lado da matéria do protesto, foi publicada a seguinte reportagem com foco nas táticas militares de guerra dos traficantes e no armamento pesado que possuíam. Bandidos com táticas militares. Táticas militares de Guerra estão sendo usadas por traficantes da Vila Cruzeiro para impedir operações policiais. Uma delas é o monitoramento de todos os passos dos policiais com a ajuda de radiotransmissores (...) Segundo os policiais, essa organização é trabalho de ex-integrantes das forças armadas cooptados pelo tráfico (...) Segundo fontes da polícia civil, há cerca de 150 traficantes no complexo do Alemão armados com fuzis e até metralhadoras antiaéreas. (O Globo, 09/05/2007, p. 18)

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Apesar de em algumas reportagens o morador da favela ser retratado como vítima, de forma a evidenciar a sua inocência, ou seja, como “cidadão de bem”, como “trabalhador”, o discurso dominante adotado pelas autoridades do Estado – e reproduzido por O Globo – se sustenta no argumento de que os moradores eram reféns dos traficantes e que a guerra se justificava por ser o único modo de, nas palavras de José Mariano Beltrame, “tomar a Vila Cruzeiro do tráfico e entregá-la na mão de seu legítimo dono: a comunidade.” (O Globo, 08/05/2007, p. 13) “Não estamos a caça de bandidos. A polícia não foi revidar o ataque [referindo-se à morte dos dois PMs mortos em Oswaldo Cruz]. Fomos agir. É triste quando há vítimas, mas a polícia precisa agir.” (O Globo, 07/05/2007, p. 10) (Colchetes nossos) Vejamos, também, a fala do comandante da Polícia Militar. Nosso primeiro objetivo foi alcançar os criminosos que, covardemente, assassinaram dois policiais militares (em Oswaldo Cruz). Mas não ficamos só com esse objetivo. Partimos, apoiados pelo secretário de segurança e pelo governo do estado, para fazer uma verdadeira operação de limpeza. (Coronel Ubiratan Ângelo – comandante da polícia militar) (O Globo, 10/05/2007, p. 13) (Grifo nosso)

Não foi a primeira e nem a última vez que as palavras limpeza, faxina, dedetização foram utilizadas como metáforas para as operações da polícia, conforme veremos mais adiante. Sabemos que muito mais estava em jogo por trás dessa operação. Com a aproximação do Pan, que ocorreu entre os dias 13 e 29 de Julho de 2007, no Rio de Janeiro, o cenário de guerra descrito diariamente na “cidade maravilhosa” é difundido em jornais do mundo inteiro. As reportagens apontaram para uma “onda de criminalidade” no Rio e produziram o consenso sobre a necessidade da ação da polícia de forma mais enérgica, para que o Pan pudesse acontecer sem maiores problemas. No dia 13 de maio, o Comitê Paraolímpico Americano desautorizou seus competidores a permanecerem no Rio de Janeiro. Em resposta, o Secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, acusou a imprensa e disse que os órgãos estrangeiros estavam fazendo uma leitura equivocada do que estava acontecendo no Rio. Garantimos a segurança dos atletas. Eles podem vir tranquilos porque a cidade é segura dentro dos padrões das grandes metrópoles. Vamos mostrar que está tudo sob controle. Não é a primeira vez que órgãos estrangeiros têm essa leitura equivocada. O que acontece no Rio são conflitos com o tráfico em áreas de difícil acesso. A natureza desses episódios ganha uma proporção na mídia que fica parecendo que os conflitos são generalizados e acontecem em todos os lugares. (José Mariano Beltrame – Secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro) (O Globo, 14/05/2007, p. 13)

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Em seguida, a fala do triatleta carioca, Virgílio de Castilho, classificado para o Pan: “A única solução é colocar o exército nas ruas para garantir que nada ocorra no Pan.” (O Globo, 14/05/2007, p. 13) E foi se alternando o discurso do sofrimento das vítimas, com a necessidade de continuar a “guerra” e das Forças Armadas ocuparem a cidade. Polícia mata um bandido no Alemão. Um bandido morreu ontem em confronto com a polícia no Morro do Alemão, elevando para 15 o total de mortos desde o início da ocupação do conjunto de favelas, há 19 dias. Dois PMs foram baleados e quatro moradores atingidos por balas perdidas. (O Globo, 19.05.2007, capa)

O Globo seguiu apresentando o Complexo do Alemão como a “fortaleza do tráfico”, o principal entreposto de distribuição de drogas, armas e munição das zonas Norte e Leopoldina e como principal foco da disseminação de violência no Rio. Complexo do Alemão, a fortaleza do tráfico. Quadrilha que domina favelas da região tem 150 fuzis, oito metralhadoras antiaéreas e até atiradores de longa distância. (O Globo, 20/05/2007, p. 26) A fortaleza inexpugnável do tráfico. A polícia militar começou a fazer operações no Complexo do Alemão, o último dia 2, em busca dos bandidos que, na véspera, tinham executado dois PMs em Oswaldo Cruz. A caçada mostrou que o tráfico havia transformado as favelas daquela região em uma fortaleza inexpugnável: barreiras feitas com trilhos de trem fincados no asfalto e botijões de gás bloqueiam a entrada de veículos da polícia. Outra estratégia usada pelo tráfico é derramar óleo no chão para impedir a passagem do Caveirão (...). Nos confrontos, 16 pessoas já morreram e mais de 50 foram vítimas de balas perdidas. Três escolas e duas creches, que ficam dentro do Complexo, estão fechadas desde o primeiro dia da guerra, deixando mais de três mil crianças sem aulas. (O Globo, 27/05/2007, p. 30)

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Notícias de uma guerra que já dura um mês. Alemão: faltam policiais para vencer o tráfico. (O Globo, 27/05/2007, capa) Especialista sugere trabalho com as Forças Armadas. Especialistas são unânimes em sugerir o emprego de mais homens e equipamentos adequados nas operações. (O Globo, 27/05/2007, p. 30)

A unanimidade pressupõe concordância geral. Que especialistas foram consultados para atingir essa unanimidade? Poderíamos citar, aqui, dezenas que discordam dessa afirmação. Na matéria citada a seguir, o jornal recorre à fala de um especialista, sem citar o nome, que sugere a adoção de “operações psicológicas e propagandas”. O diálogo, por rádio, em que traficantes falavam em atirar nos moradores com o objetivo claro de criar pressão na opinião pública contra a operação é um exemplo. Isso deveria ter sido divulgado com ênfase para atrair a simpatia da população. É importante mostrar que o traficante é o vilão, e não o policial. Há uma série de tipos de propaganda que pode gerar bons resultados para a polícia, com estímulo à denúncia dos esconderijos de armas e drogas dos bandidos. (O Globo, 27/05/2007, p. 30)

No dia 30, o Secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, também estimula a denúncia em sua declaração e começa a germinar a ideia do que, mais tarde, se construiu como a UPP. O discurso de ocupar a favela de forma permanente, incluindo serviços como coleta de lixo, luz, água e TV.

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O caminhão do lixo, a água, a luz, a TV a cabo, a polícia, a ambulância, o bombeiro têm que entrar livremente na Vila Cruzeiro. O estado tem que se fazer presente, transitar a qualquer momento (...) Estamos pedindo à comunidade que nos ajude. Não é possível que num local onda há 130 mil pessoas não chegue uma informação para o Disque-denúncia, enfim, para qualquer órgão, com alguma estratégia do tráfico (...) não temos nada contra a pobreza, as favelas. Trata-se de um grupo muito pequeno de pessoas que está botando em risco toda a comunidade. Os criminosos querem que a população se volte contra o estado (...) Mas ela (a população) tem que nos ajudar. Isso é uma ação de cidadania. (José Mariano Beltrame – Secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro) (O Globo, 30/05/2007, p. 14) (Grifo nosso)

Essa última frase, “isso é uma ação de cidadania”, nos chamou atenção. Ajudar a polícia é colocado aqui como ação de cidadania. Precisamos pensar, o que é cidadania? Conceito que é, hoje, tão naturalizado e banalizado ao ponto de virar sinônimo de delação. Através de que práticas esse conceito vem sendo produzido? Em que momento isso é inventado pelo capitalismo? Vamos discutir isso um pouco mais à frente. A responsabilidade, mesmo de matérias/reportagens assinadas por jornalistas, é do jornal e de seus editores. Como explica o próprio O Globo, em seus princípios editoriais: O jornalismo é aquela atividade que permite um primeiro conhecimento de todos esses fenômenos, os complexos e os simples, com um grau aceitável de fidedignidade e correção, levando-se em conta o momento e as circunstâncias em que ocorrem. É, portanto, uma forma de apreensão da realidade. (...) Pratica jornalismo todo veículo cujo propósito central seja conhecer, produzir conhecimento, informar. O veículo cujo objetivo central seja convencer, atrair adeptos, defender uma causa, faz propaganda. 1) A isenção: (...) a) Os veículos jornalísticos do Grupo Globo devem ter a isenção como um objetivo consciente e formalmente declarado. Todos os seus níveis hierárquicos, nos vários departamentos, devem levar em conta este objetivo em todas as decisões; (... ) f) Todos os jornalistas envolvidos na apuração, edição e publicação de uma reportagem, em qualquer nível hierárquico, devem se esforçar ao máximo para deixar de lado suas idiossincrasias e gostos pessoais. Gostar ou não de um assunto ou personagem não é critério para que algo seja ou não publicado. O critério é ser notícia; g) A hierarquia, numa redação, é fundamental para que o trabalho jornalístico possa ser feito a tempo e à hora. E a decisão final caberá sempre àquele que estiver no comando. (...) t) Todo esforço deve ser feito para que o público possa diferenciar o que é publicado como comentário, como opinião, do que é publicado como notícia, como informação. Como o jornalista deve proceder diante (...) do veículo para o qual trabalha (...) c) Os jornalistas têm um dever de lealdade com os veículos para os quais trabalham. As informações a que têm acesso se destinam ao veículo e com ele devem ser divididas. Ninguém, somente o veículo, deve decidir o que fazer com elas, sendo certo que o seu destino será a publicação, se estiverem de acordo com os princípios explicitados neste documento. (REDE GLOBO, 06/08/2011)

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Já os espaços do jornal chamados de “colunas” têm como principal característica se despir do status de notícia e assumir o tom de opinião. Um exemplo disso é que alguns dos colunistas brasileiros mais conhecidos, como Luís Fernando Veríssimo e Arnaldo Jabor, não são jornalistas e escrevem, muitas vezes, em linguagem de crônica. Inclusive, essa sessão de O Globo é nomeada caderno “Opinião”. Os editoriais do jornal são os textos que expressam a visão do jornal, da empresa ou da equipe de redação, no formato de colunas, sem propor uma pseudo-imparcialidade ou objetividade. Nem por isso, no entanto, deixam de ter força na produção de modos de pensar, entender e interpretar a realidade. Dito isso, vejamos como O Globo se posiciona sobre o cerco da polícia às favelas do Alemão e Vila Cruzeiro. Cerco Inglório. A história das favelas do Rio é toda uma série de equívocos e de omissões. Da época em que políticos iam às favelas trocar favores por bicas d’água, passou-se ao domínio progressivo do tráfico (...) É incrível que se tenha chegado a uma situação que parece (ou é) medieval: enclaves, fortalezas rebeldes com um poder de fogo cada vez maior (...) Houve períodos conceitualmente errados, como os dos governos Brizola, em que subir o morro, para reprimir o tráfico, era considerado tabu. O que estaria por trás dessa ideia esdrúxula? Muito tarde para descobrir. O fato é que o tráfico foi encontrando todas as facilidades. Com seu poder de fogo e dinheiro, distribuiu corrupção por todo lado, cooptou muita gente, inclusive dentro do estado. Um processo permanente de limpeza da polícia seria necessário, para evitar essa contaminação fatal (...) Mas também seria preciso preparar o policial para uma guerra que não é comum, que transcorre em situações absolutamente sui generis (...) Mas se a ação repressiva não for combinada com a entrada progressiva de uma oferta de serviços públicos, o risco é se manter a ideia de que o estado só serve, mesmo, para atrapalhar a vida das pessoas. (O Globo, Editorial, 01/06/2007, p. 6) (Grifos nossos)

Da mesma forma que Beltrame afirma que aquela operação deveria inaugurar um estilo de atuação policial que não se resumisse a intervenções esporádicas, que era preciso o Estado se fazer presente; o jornal reforça esse argumento, se referindo ao Estado como omisso, como aquele que havia levado a uma situação que parecia “medieval: enclaves, fortalezas rebeldes com um poder de fogo cada vez maior”, “uma guerra que não é comum”, sendo necessário que o Estado se faça presente com serviços públicos. Sucederam-se reportagens sobre a suspensão dos serviços públicos na favela. Na coluna de Julita Lemgruber, também na sessão Opinião, em um texto que toma o status científico, já que foi escrito por uma especialista,13 ela ressalta o medo e a apreensão dos moradores. 13

Julita Lemgruber assina o artigo como socióloga e diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC/Universidade Candido Mendes)

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Aparece, então, a figura do psicólogo ou do assistente social nessa história, como necessária para auxiliar a “cicatrizar as feridas da alma das vítimas do Estado”. Penha e Alemão: 35 dias de confronto. Mais de meia centena de homens, mulheres e crianças foram feridos a bala e atendidos em hospitais da região, no espaço de 35 dias. Balas disparadas num confronto que parece não ter data para acabar. Mas, no Complexo do Alemão, encontram-se 21 comunidades onde vivem milhares de pessoas (200 mil, para os líderes comunitários, e 97 mil, segundo o IBGE) que vão precisar, muito tempo depois de cessado o tiroteio, de auxílio para cicatrizar as feridas da alma – estas, sim, muito mais difíceis de curar. São impressionantes os relatos das crianças apavoradas com os tiros, de moradores que não dormem à noite e temem sair para o trabalho, de serviços básicos suspensos, deixando os bairros sem escola e a população sem luz e coleta de lixo. (Julita Lemgruber – socióloga) (O Globo, Opinião, 07/06/2007, p. 7)

O argumento coloca o morador da favela como “vítima”, como aquele que sofre a ausência e a violência do Estado. Não estamos aqui negando a ausência e a violência do Estado, a dor, o trauma ou sofrimento que as populações marginalizadas sofrem diariamente. Sem dúvida, são marcas que ficarão para sempre. No entanto, é interessante colocar em análise esse lugar de vítima e suas implicações. Cecília Coimbra (2014), em um encontro chamado Conversações Libertárias, promovido pelo Grupo Somaterapia, aponta para esse lugar de vítima como sendo uma denominação perversa. E que as políticas de assistência são construídas a partir dessa lógica, como forma de controle e tutela dessas populações. Essas marcas ficam na vida da gente para a vida inteira, mas como você pode sair desse lugar de vítima, desse lugar de coitadinho, pobrezinho que a pobreza o tempo todo é colocada? Inclusive aqueles que foram afetados pela violência do Estado, ou qualquer outro tipo de violência. É uma denominação que eu acho extremamente perversa. Vítimas da ditadura, vítimas do terrorismo ou vítimas da violência do Estado. É importante que a gente possa pensar que determinados conceitos colocam a gente em determinados territórios, no sentido de desqualificar a gente, de dizer “coitadinhozinho” dele, que é o que as políticas ditas públicas fazem no Brasil. Dar assistência na realidade é tutelar o outro. (COIMBRA, 2014) (Transcrição de vídeo nossa)

No dia 12 de junho, duas fotos na mesma capa, com a mesma manchete: “Fogo Cruzado.” Na primeira foto (Fogo Cruzado 1), o presidente Lula, ao lado do presidente do Senado, Renan Calheiros, acendendo a tocha Pan-americana durante cerimônia, em Brasília. (O Globo, 12/06/2007, capa) Ele reafirma o projeto brasileiro de sediar as Olimpíadas. E diz considerar o Pan do Rio um cartão de visita para a conquista do megaevento. 50

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Eu disse que nós iríamos fazer o esforço que fosse necessário para que todos os atletas, jornalistas e pessoas que frequentam a Vila do Pan saiam daqui para os seus países convencidos de que o Brasil tem condições de realizar uma Olimpíada. E nós vamos continuar disputando (...) E o Pan, com certeza, nos credenciou mais ainda para isso. Enfrentamos os desafios e cumprimos com nossas responsabilidades, trabalhando juntos com imaginação criadora e absoluta dedicação (...) Eu tenho cobrado do Orlando (ministro do esporte na ocasião) e disse hoje para ele, daqui para a frente tem que ter operação pente-fino. E para o Sérgio Cabral, que cada obra, cada coisa tem que estar pronta. A gente não pode deixar para testar no dia em que for começar o Pan. (Luiz Inácio Lula da Silva – Presidente da República) (O Globo, 12/06/2007, capa)

A segunda foto de capa desse dia, Fogo Cruzado 2, é do comandante-geral da PM descendo às pressas a Favela de Vila Cruzeiro, no meio de um tiroteio. Imagem 15

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O Comandante havia ido até a favela para uma reunião com o secretário municipal de Assistência Social, Marcelo Garcia, onde discutiram uma solução provisória para a falta de aulas. “Os cinco mil estudantes de escolas fechadas pelo confronto serão concentrados num CIEP e só terão 2 horas de aulas.” (O Globo, 12/06/2007, p. 21) O SEPE (Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação) se mostrou contrário à medida tomada. Segundo a Coordenadora do SEPE, Maristela Abreu: “O CIEP, com capacidade para 500 alunos, já está sobrecarregado. Colocar mais cinco mil pessoas é uma medida desastrosa que desrespeita a legislação, com a criação de um turno de duas horas.” (O Globo, 12/06/2007, p. 21) O governador deve ter entendido o recado do presidente, “nós (o governo federal) iríamos fazer o esforço que fosse necessário para que todos os atletas, jornalistas e pessoas que frequentam a Vila do Pan saiam daqui para os seus países convencidos de que o Brasil tem condições de realizar uma Olimpíada”, porque no dia seguinte, 13 de julho de 2007, a Força Nacional se uniu à PM no cerco ao Complexo do Alemão. “Força Nacional entra na Guerra do Alemão.” (O Globo, 14/06/2007, capa) Imagem 16

A Força Nacional, até então, estava agindo apenas nos acessos à favela. O jornal flagra traficantes com armas na mão e publica na capa a seguinte manchete: “Tráfico desafia PM e Força Nacional.” (O Globo, 15/06/2007, capa) 52

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Os dias se seguiram com a Força Nacional cercando o Alemão e diversas incursões da PM e do BOPE na favela. Como a Força Nacional não tinha autorização para entrar, os policiais do BOPE usaram, nessa ocasião, roupas semelhantes às usadas por eles. Segundo o jornal, para confundir os traficantes e como forma de represália ao que eles chamaram de “deboche aos policiais da Força Nacional”. Polícia derruba trincheira do tráfico. (O Globo, 16/06/2007, capa) PM ataca área do tráfico no Alemão. Equipes do Batalhão de Operações especiais (BOPE) usaram dois caveirões, uma retroescavadeira e um caminhão para entrar na favela e derrubar barricadas do tráfico. Houve uma intensa troca de tiros no fim da tarde, quando crianças deixavam as escolas da região. (O Globo, 19/06/2007, capa) Com roupas semelhantes às da FNS, a equipe do Bope teve mais condições de fazer um levantamento durante toda a manhã na região para que o trator pudesse entrar à tarde. Na semana passada, traficantes foram flagrados por equipes de jornal e TV com armas na mão, dançando e debochando dos policiais da Força Nacional atrás de um muro de concreto utilizado como barreira. Um dia depois, a polícia destruiu o muro e retirou os trilhos. (O Globo, 19/06/2007, p. 14)

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Polícia invade Alemão e mata 19. Ação mobiliza 1350 agentes e localiza paióis com munição e até metralhadoras antiaéreas. (O Globo, 28/06/2007, capa)

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Neste dia, o jornal anunciou: “Dezenove traficantes morreram e 14 armas foram apreendidas numa operação desencadeada pela Secretaria de Segurança e considerada a maior mobilização policial já realizada no país” (O Globo, 28/06/2007, capa) que, segundo o Secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, foi bem sucedida. José Mariano Beltrame (Secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro): Nós optamos por um estado formal, que é a polícia estar dentro da favela. A Secretaria de Segurança quebrou um pacto silencioso de nãoagressão (...) Desde o cerco, nosso objetivo foi traçado com planejamento, organização e levantamento dos pontos onde estavam os traficantes. (José Mariano Beltrame – secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro) (O Globo, 28/06/2007, p. 13)

Na mesma matéria, a fala de um inspetor de uma das polícias especializadas naturaliza as mortes e compara com uma brincadeira de parque de diversões, de tiro ao alvo: “Hoje (ontem) nós brincamos. Foi igual tiro ao pato.” (O Globo, 28/06/2007, p. 13)

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Nos dias seguintes da megaoperação, os títulos de O Globo e as principais falas dos gestores, políticos e especialistas diziam: Polícia já planeja cerco à Rocinha e mais 4 favelas. (O Globo, 29/06/2007, capa) Liberdade para o Alemão! Sem duvida, vivemos um conflito urbano armado. É menos do que uma guerra convencional, mas é muito mais do que um simples quadro de ordem pública que possa ser tratado com instrumentos tradicionais. Para enfrentá-lo, precisamos bem mais que aplicar modelos de policiamento ostensivo importados do exterior, pois não condizem com a nossa realidade. Se quisermos modificar definitivamente essa realidade, devemos aceitar o desafio sem receios, e libertar, ainda que com o “uso da espada”, a população das garras do crime, como estamos fazendo no Complexo do Alemão, livrando-a do horror... O Complexo do Alemão está liberto. Ele pertence ao Rio. Ele pertence ao Brasil. (Mário Sérgio Duarte – Tenente coronel da PM, ex-comandante do BOPE) (O Globo, 29/06/2007, p. 7) Mais favelas na mira. Secretário diz que 5 outras comunidades serão alvo de operações como a do Alemão. (O Globo, 29/06/2007, capa) Já temos um planejamento, na mesma dimensão que foi feito ontem (anteontem), para outras áreas do Rio. Nós já temos mapeadas outras regiões. Usaremos a inteligência a exemplo do que fizemos no Morro do Alemão. Nada será aleatório. Não é possível que 200 mil moradores, como é o caso do Alemão, fiquem à mercê de traficantes. Temos que garantir o direito de ir e vir dessas pessoas e dos moradores de outras comunidades

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(…) O remédio para trazer a paz, muitas vezes passa por alguma ação que traz sangue. (José Mariano Beltrame – secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro) (O Globo, 29/06/2007, p. 14) A guerra contra o tráfico está declarada. A partir de agora traficante do Alemão só tem três opções: ou foge do morro, ou morre ou será preso... Essa guerra contra os traficantes está apenas começando. Outras operações do mesmo porte virão. (Marcos Jardim – comandante do 16o BPM de Olaria) (O Globo, 29/06/2007, p. 16) É um comportamento de guerra. Os traficantes usam armas e têm táticas de guerra. Eles não têm as regras morais da polícia, pois eles atiram até nos moradores. (Mario Sérgio Duarte – superintendente da Subsecretaria Operacional da Secretaria de Segurança) (O Globo, 29/06/2007, p. 17) Posicionamos equipes no alto do morro, com visão para todo o vale que é o Alemão, e outra no centro do alvo, deixando os traficantes cercados. Mesmo assim, a guerra foi longa e comemoramos cada metro avançado dentro da área do inimigo. (Alan Turnowski – diretor da Divisão de Polícia especializada) (O Globo, 29/06/2007, p. 17)

Logo em seguida, o governo anunciou que solicitaria a permanência da Força Nacional no Rio, desatrelando-a dos jogos Pan-americanos. A manchete foi: “Liberdade para o Alemão. Beltrame anuncia que solicitará a permanência da Força Nacional no Rio e afirma que a segurança da capital e do estado está desatrelada da dos jogos Pan-americanos.” (O Globo, 29/06/2007, p. 7) Vejamos as falas do secretário de segurança, José Mariano Beltrame, e de especialistas: O prazo que vamos buscar é o máximo possível, porque temos carência de efetivo (...) Pan é uma coisa; segurança pública da capital e do estado é outra. São dois planejamentos diferentes. Um não tem comunicabilidade com outro. Temos que cuidar da cidade e do estado e fazer a nossa parte no Pan também. (José Mariano Beltrame – secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro) (O Globo, 29/06/2007, p. 7) Beltrame quer Força Nacional até o fim do ano. (O Globo, 29/06/2007, p. 18) A Força Nacional foi imprescindível para o sucesso dessa operação, porque já entrou conosco ali há 15 dias. Nós temos um numero de 200 policiais da FNS (Força Nacional de Segurança), que já estão a serviço da segurança do Rio. Pretendemos usá-los posteriormente aos jogos Panamericanos. Já estamos entrando em contato com a Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública) o próprio Ministério da Justiça no sentido de manter a Força Nacional até o fim do ano ou um período que nós avaliemos para que possamos ter um efetivo cada vez maior no Rio... Posso dizer que o remédio para trazer a paz, muitas vezes, passa por alguma ação que traz sangue... Queremos devolver as favelas aos seus verdadeiros donos: a população inocente que só quer tranqüilidade. (José Mariano Beltrame – secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro) (O Globo, 29/06/2007, p. 18)

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Operação é considerada um marco. (O Globo, 29/06/2007, p. 19) Especialistas querem Estado nas favelas. (O Globo, 29/06/2007, p. 19) Os traficantes estão cada vez mais cruéis, dominando o morro e arredores. Por causa disso, o medico não consegue trabalhar, a criança não vai à escola. Esse espaço público precisava ser devolvido aos moradores (Alba Zaluar – antropóloga) (O Globo, 29/06/2007, p. 19) Do jeito que a criminalidade está escudada dentro de comunidades carentes, existe a necessidade de o Estado estar presente para enfraquecer o tráfico. Elizabeth Sussekind – professora de Criminologia) (O Globo, 29/06/2007, p. 19) Não podemos ficar esperando a polícia ideal para retomar um território que é o epicentro do poder paralelo, que tem como conseqüência a decadência econômica e a dificuldade do poder público de aportar seus serviços. (André Urani – economista) (O Globo, 29/06/2007, p. 19) Quando o governo do estado decide retomar o controle de territórios, nós damos sustentação. (Tarso Genro – ministro da Justiça) (O Globo, 29/06/2007, p. 19) Foi um plano inteligente e possível de ser utilizado em qualquer favela, desde que existam perigosos traficantes. Para uma criminalidade atípica como a do Rio, o remédio precisa ser atípico. (Milton Corrêa Costa – coronel da reserva da Polícia Militar) (O Globo, 29/06/2007, p. 19)

Foi acordado, então, entre o governo federal e o estadual, que a “Força Nacional permanecerá no Rio no 2o semestre para cercar favelas.” (O Globo, 30/06/2007, capa) O trabalho de Loïc Wacquant é uma importante ferramenta para pensarmos as políticas de segurança atuais do Brasil. Analisando a ascensão do “Estado Penal” nos Estados Unidos e em outras sociedades, ele demonstra como a difusão internacional de políticas punitivas, tanto no domínio da assistência social quanto no domínio criminal, está intimamente associada ao neoliberalismo. Segundo o autor, o neoliberalismo não é apenas um modelo econômico, mas sim uma forma de governo, que além de reafirmar as prerrogativas do capital e a promoção do mercado, segue quatro lógicas institucionais: “1- A desregulamentação econômica, (...) 2- A delegação, retração e recomposição do estado do bem-estar, (...) 3- Um aparato penal em expansão, invasivo e proativo (...) 4- A alegoria cultural da responsabilidade individual.” (WACQUANT, 2012, p. 32) Ultrapassando uma análise predominantemente econômica do neoliberalismo e o entendendo como um projeto político transnacional que visa refazer o nexo entre mercado, estado e cidadania a partir de cima, Wacquant demonstra como o estado de bem-estar social 58

se desconstrói, tornando a administração penal dos rejeitos humanos14 a prioridade do Estado. A partir do desenvolvimento do neoliberalismo, onde a privatização dos riscos e a responsabilidade individual imperam, o que temos é a administração dos rejeitos humanos por meio de uma expansão policial e penal gigantesca. Um princípio ideológico central do neoliberalismo é que ele inclui a implantação do “governo mínimo”, ou seja, o encolhimento do supostamente flácido e inflado estado do bem-estar keynesiano e sua transformação em um estado do trabalho social, seco e ágil, que “investe” em capital humano e “ativa” fontes comunais e apetites individuais em relação ao trabalho e à participação cívica através de “parcerias” que enfatizam a autossuficiência, o comprometimento com o trabalho remunerado e o gerencialismo. Onda punitiva demonstra que, na realidade, o estado neoliberal se revela muito diferente: enquanto, no topo, abraça o laissez-faire, liberando o capital de restrições e ampliando as oportunidades de vida para os detentores do capital econômico e cultural, nos estratos inferiores ele é tudo, menos laissez-faire. Na verdade, quando tem de lidar com a turbulência social gerada pela desregulamentação e de impor a disciplina e o trabalho precarizado, o novo leviatã mostra-se ferozmente intervencionista e caro. (Ibid., p. 33) (Grifos do autor)

O Estado deixa de sustentar uma infraestrutura de regulação, tornando-se o Estado mínimo, abandonando, à lógica do livre mercado e do livre comércio, segmentos inteiros da população. É a política urbana do abandono concentrado que passa vigorar em nossos dias: radicalização das reordenações urbanas da primeira metade do século passado – mediante as quais os miseráveis são empurrados para os ‘bolsões de pobreza’, para os guetos; completa estigmatização do território dos pobres, os quais mais do que nunca são vistos como perigosos, porquanto totalmente abandonados pelas políticas públicas. (COIMBRA, 2001, p. 251) Independente da expansão do neoliberalismo, e diferente dos Estados Unidos da América e dos países europeus; a violência policial, a desigualdade social e a exclusão no Brasil, já fazem parte da nossa história de escravidão e de conflitos agrários. Ainda que a exclusão tenha aumentado nos Estados Unidos e Europa, o Brasil nunca chegou a desfrutar das redes de segurança social próprias eficientes e do bem-estar dos países do norte global. Manoel Iturralde (2012), comparando as semelhanças e diferenças entre o governo neoliberal na América Latina e no Norte Global alerta que:

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Grupos que se tornaram supérfluos ou incongruentes pela dupla reestruturação da relação social e da caridade do Estado: as frações decadentes da classe operária e os negros pobres das cidades. (Wacquant, 2011, p.104)

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A precariedade do estado do bem-estar na América Latina representa uma diferença notável diante dos países do Norte Global, pois desde a segunda metade do século XX estes gozaram, em diversos momentos e com distintos graus de intensidade, de políticas welfaristas que prestavam assistência aos mais pobres e que deram lugar a toda uma trama institucional e discursiva para o tratamento das classes baixas. Por conseguinte, a transformação de políticas de welfare em políticas workfare, que Wacquant descreve em detalhes como um aspecto central do advento do governo neoliberal nos Estados Unidos e em outros países do Norte Global, é o resultado de um processo histórico que não se deu na América Latina (..) Nessa medida, na América Latina o estado penal surge com mais força como principal mecanismo de controle e disciplina das classes baixas, que não encontram um lugar na nova ordem social, regida pelas regras e lógicas do mercado. (ITURRALDE, 2012, p. 181) (Grifos do autor)

Apesar das diferenças, o Brasil também sofreu transformações com a implementação de um capitalismo mundial integrado, a precarização das leis trabalhistas, a desregulamentação mercantil, o aumento da exploração capitalista dos bens naturais e da exploração da força de trabalho. Wacquant (2013) constrói o conceito de “Estado Penal” se valendo do pensamento sociológico de Pierre Bourdieu, principalmente do seu conceito de “campo burocrático”. Ele descreve o Estado norte-americano como uma “rede descentralizada de administrações imperfeitamente coordenadas, cujos poderes são limitados pela própria fragmentação do campo burocrático e pelo peso desproporcional que este atribui aos poderes locais” (WACQUANT, 2013, p. 91), um espaço social fragmentado, onde ocorrem disputas pela definição e pela distribuição dos bens públicos. Os políticos e tecnocratas (alta nobreza do Estado), de um lado, promovendo reformas orientadas para o mercado e os funcionários públicos (baixa nobreza do Estado), de outro, se opondo a essas reformas. A alta nobreza e baixa nobreza do estado, assim como sua mão esquerda e direita, lutam por obter o predomínio dentro do campo burocrático e, com isso, definir o modelo de estado que regulará a vida das pessoas. Esta luta pelo poder explica, em boa medida, o processo de transformação no tratamento das classes marginais urbanas, o qual passou de um tratamento social, próprio da mão esquerda do estado, a um punitivo, onde predomina a mão direita. (ITURRALDE, 2012, p. 174)

Para Foucault, o poder não se apresenta como um poder unitário, global, centralizado apenas no Estado, ou em instituições do Estado, mas, sim, na forma de micropoderes que circulam e são exercidos através das práticas sociais, intervindo sobre os indivíduos, em sua realidade mais concreta – seu corpo – controlando e produzindo hábitos, gestos, atitudes e comportamentos. Todavia, este mesmo indivíduo sobre o qual o poder é exercido também exerce o poder, uma vez que o poder se articula no próprio corpo social. 60

Não há, de um lado, os que têm o poder e, de outro, aqueles que não o detêm. O que existe são jogos de forças que se produzem em um campo relacional, onde todos fazem parte, tanto os que exercem o poder, quanto aqueles que a ele são submetidos. O poder é uma prática social que se exerce. Seguindo esta perspectiva, Nascimento e Rodrigues (2012), falam em “poder penal”. Ao dizermos poder penal, estamos falando da vontade de justiça, de equilíbrio, de governo que se espalha por toda a sociedade e se instala em nós mesmos. É a sociedade de segurança e sua política da vingança, da busca por mais leis. O estado não necessita mais impô-las. Ele as instaura a partir de um clamor social por elas. Na sociedade penal, que demanda controle, é o cidadão que as reivindica a todo momento em suas práticas de acusação com fundo de proteção. (NASCIMENTO e RODRIGUES, 2012, p. 199)

Não por acaso, a política adotada pelo governo do Estado é tão aplaudida e noticiada com tanto entusiasmo. Essa realidade se adéqua ao que Vera Malaguti Batista (2009) chama de “adesão subjetiva à barbárie”. A articulação desses dois movimentos, o capital neoliberal que precisa do aumento do controle de força sobre os que estão fora do mercado de trabalho e a infestação de uma cultura policial e prisional norte-americana, produziu um embaçamento e um limite dramático à discussão da “questão criminal” e da questão penitenciária no Brasil. Esses limites propiciaram o que eu chamo de “adesão subjetiva à barbárie” que produz a escalada do estado policial em todas as suas facetas sombrias: números astronômicos de execuções policiais disfarçadas de autos de resistência, uso da prisão preventiva como rotina, aumento das teias de vigilância e de invasões à privacidade, escárnio das garantias e da defesa como se fossem embaraço antiéticos à busca da segurança pública. (BATISTA, 2009)

José Rodrigues de Alvarenga Filho (2010), tomou a “Chacina do Pan” como analisador em sua dissertação de mestrado, pesquisando os discursos das revistas Veja e Época, durante os dois meses anteriores ao Pan, e mostrou que a força da mídia em “vender” esse acontecimento, como um marco no combate à criminalidade, foi tão potente, que o grande público nem considerou que ela tenha acontecido. A política de verdade adotada pela revista Veja, não muito diferente da sua concorrente Época, cooperou de maneira sinistra para que a operação policial no conjunto de favelas do Complexo do Alemão em 2007 fosse vista, pelo grande público classe média leitor de suas revistas, como um acontecimento inovador que demonstrava como o “combate à criminalidade” deveria ser tratado no Rio de Janeiro. (ALVARENGA FILHO, 2010, p. 176)

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A classe média, amedrontada, aplaudiu a ação, boa parte da população de baixa renda, também. Não houve comoção diante dessa chacina. O que faz com que, mesmo diante desses números15, essa política de extermínio continue parecendo tão natural aos leitores do jornal? Que seja considerada como uma “ação bem sucedida”? É o retrato da conformidade. Partindo do pressuposto de que estávamos vivendo uma situação de guerra, um estado de exceção, os direitos individuais garantidos na Constituição Federal podem ser suspensos, os moradores da favela não são vistos como iguais e essas mortes não são vistas como crime, mas como ações necessárias, em nome da guerra contra as drogas. O que vemos é que uma medida excepcional se torna, aqui, uma política de governo, uma técnica de extermínio, maquiada e justificada pelo discurso da guerra contra o tráfico. Vejamos a fala de Cabral e as manchetes: Zona Sul vai ter que entender estresse da Guerra. Isso vale para o morador de Bonsucesso, de São Conrado, do Leblon, de Ipanema ou de qualquer área nobre. O custo do estresse tem que ser compreendido por todos (...) A musculatura do tráfico não permite que se reconquiste seus territórios sem o uso de violência. Temos uma bifurcação que eu enxergo clara: ou é o caminho civilizatório ou é o caminho da selvageria. (Sérgio Cabral – governador do Estado do Rio de Janeiro) (O Globo, 01/07/2007, capa) Estresse da Guerra do Rio cria polêmica. Representantes da sociedade civil e moradores da Zona Sul apóiam o combate ao crime, mas viram com preocupação a declaração do governador Sérgio Cabral (...) Apesar de todos serem favoráveis à atuação do estado contra o tráfico, eles disseram temer excessos por parte da polícia. (O Globo, 02/07/2007, capa) (Grifos nossos) População aprova operação policial. Pesquisa ouviu mil pessoas. Uma pesquisa realizada pelo Ibope após a operação da Secretaria de Segurança no Complexo do Alemão, no dia 27 do mês passado, mostra que a maioria da população aprovou a ação. De acordo com o instituto, dos mil entrevistados, 83% disseram ser favoráveis à operação. (O Globo, 10/07/2007, p. 19)

Segundo a pesquisa, matar supostos criminosos é aceitável e aplaudido pela maioria da população. Se a pessoa morta não pôde ser “comprovadamente” rotulada como “bandido”, acaba fazendo parte necessária do “pacote”, pois o estereótipo de “possível criminoso” é suficiente para justificar o extermínio.

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Os números variam muito pouco. Segundo os dados do núcleo de estudos da Violência da Universidade de São Paulo, do dia 6/05 até o dia 27/06 tivemos um total de 62 vítimas. Dia 6/05 -1 vítima fatal e 12 feridos; dia 10 Maio 2007 - 4 Vítimas fatais 7 feridas; dia 14 Junho 2007 - 4 Vítimas fatais e 3 feridos e dia 27 junho 2007 22 fatais e 9 feridos. (NEV, s/d) Segundo o manifesto público contra a megaoperação no Alemão foram, desde o dia 02 de maio, mais de 43 mortos e 81 feridos. (JUSTIÇA GLOBAL, 28/06/2007) Segundo o Manifesto pela apuração das violações de direitos humanos cometidas na operação Complexo do Alemão foram mais de 40 mortos e 80 feridos. (JUSTIÇA GLOBAL, 19/07 /2007)

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Percebemos isso na fala de um dos moradores do Cantagalo entrevistado. Tem pessoas que a gente conhece, que são “do outro lado” que são criados com a gente, por algum motivo “vão pro outro lado” e a gente fica triste, né? Quando eles morrem, a família fica desesperada. Chega lá e aí é aquela discussão, era ou não era bandido. Foi ou não foi a polícia que matou? (morador do Cantagalo) (Grifo nosso)

Ao contrário do divulgado no jornal, quando afirmou que todos os representantes da sociedade civil e moradores da Zona Sul apoiaram e foram favoráveis à atuação do estado contra o tráfico, emergiram diversos movimentos de resistência e denúncias da sociedade civil e organizações, que se materializaram em relatórios, documentos e manifestos, e que foram entregues à OEA (Organização dos Estados Americanos) e à ONU (Organização das Nações Unidas), tais como: o Relatório da Sociedade Civil para o relator especial das Nações Unidas para execuções sumarias, arbitrárias e extrajudiciais (DHNET, 2007), assinado por diversas organizações e movimentos sociais; o Manifesto Público contra a megaoperação no Alemão (JUSTIÇA GLOBAL, 28/06/2007); o Manifesto pela apuração das violações de direitos humanos cometidas na operação Complexo do Alemão (JUSTIÇA GLOBAL, 09//07/2007; e a denúncia da Organizações de Direitos Humanos e Movimentos Sociais sobre a exoneração do Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, como represália ao seu envolvimento na apuração das denúncias recebidas pela OAB (JUSTIÇA GLOBAL, 19/07/2007). Em princípio, como vimos na primeira matéria sobre o dia 27/06, o jornal afirmou que foram mortos 19 traficantes, no entanto, alguns dias depois, com o resultado dos laudos do IFP (Instituto Félix Pacheco) e as denúncias dos movimentos sociais, o discurso precisou mudar. Não foram apenas 19, os números chegaram a 22 mortos, apenas nesse dia, e nem todos puderam ser rotulados como traficantes. Após receber resultados das pesquisas sobre antecedentes criminais de 15 dos 19 mortos na megaoperação de quarta-feira no Alemão, o diretor do Instituto Félix Pacheco (IFP), Juarez Carrasco, informou ontem que dez vítimas têm passagem pela polícia. Cinco dos mortos, no entanto, não têm anotações criminais, três ainda estão tendo seus históricos analisados e um não tem digitais, sendo impossível para o IFP fazer a checagem. (O Globo, 01/07/2007, p. 20) Mortes no Alemão: Famílias autorizam exumação. Segundo IFP, pelo menos 5 das vítimas não tinham anotação criminal, mas 10 já tinham respondido por crimes. (O Globo, 02/07/2007, capa) A Comissão de Direitos Humanos da OAB vai pedir a exumação dos corpos dos adolescentes de 14 e 16 anos, mortos na megaoperação de quarta-feira passada (...) as famílias dos jovens já autorizaram a exumação. Elas afirmaram que eles não tinham envolvimento com o tráfico (...) No sábado,

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parlamentares ligados a comissões de direitos humanos e membros da OABRJ, em reunião com moradores da favela da Grota, no Complexo do Alemão, ouviram depoimentos de parentes das vítimas. Num deles, a família do adolescente de 14 anos disse que o jovem era aluno da 5a série do ensino fundamental da Escola Municipal João Barbalho. Já familiares do adolescente de 16 anos, que também morreu na megaoperação, lembraram que ele não tinha um dos braços. (O Globo, 02/07/2007, p. 12)

Percebemos que, em muitas matérias como essa, onde os dados ou os depoimentos tornam inviável uma visão positiva da operação, a estratégia utilizada por O Globo foi colocar, na mesma página, alguma outra matéria que contraponha ou que neutralize o sentimento negativo gerado pela anterior. Nesta, por exemplo, que é bastante crítica e assume um tom de denúncia contra a atuação do Estado, na mesma página, além de descreverem os crimes cometidos pelos dez mortos que tinham passagem na polícia como muito graves (homicídios qualificados, assaltos à mão armada e receptação e porte de drogas e armas), foi publicada a seguinte matéria. Força Nacional vira polícia modelo no morro. Educação na hora da revista conquista moradores que retribuem com água e café. Um policial da Força Nacional conta que se surpreendeu ao descobrir que os PMs do Rio precisam esconder a farda quando não estão de serviço. (O Globo, 02/07/2007, p. 12) (Grifo nosso)

A resposta do governo federal foi se apressar em divulgar um orçamento recorde para ações sociais nas comunidades do Rio de Janeiro, com o objetivo de “disputar com o crime”. “Lula dá R$ 1,6 bi a favelas para competir com tráfico.” (O Globo, 03/07/2007, capa) No entanto, a manchete afirma que o presidente apóia as ações no alemão e diz que “não se combate crime com flores.” (O Globo, 03/07/2007, capa) Vejamos a fala do presidente Lula: Essa ação de vocês no Complexo do Alemão, tem gente que acha que é possível enfrentar a bandidagem jogando pétalas de rosas. A gente tem que enfrentar sabendo que eles muitas vezes estão mais preparados do que a polícia, com armas mais sofisticadas. A gente tem que enfrentá-los sabendo que a maioria das pessoas de lá é gente trabalhadora, gente de bem, que não pode ficar refém de uma minoria. Esteja certo que precise o que você precisar, nós estamos dispostos a contribuir para que o Rio volte a ser aquele Rio que todos nós aprendemos a conhecer. O Rio continua lindo e vamos em frente. (Luiz Inácio Lula da Silva – presidente da República) (O Globo em 03/07/2007, p. 15) (Grifo nosso)

O jornal manteve a estratégia, de produção do medo, para que a “guerra” continuasse se justificando. Manchetes como: “Tráfico tortura no Alemão.” (O Globo, 05/07/2007, capa) e “Alemão usa manual de Guerrilha feito por militar.” (O Globo,

08/07/2007, capa)

continuaram sendo publicadas quase que diariamente. 64

Com a aproximação do Pan, as matérias do jornal se voltam para o megaevento esportivo e o governo anuncia que o uso das armas “não letais”, como balas de borracha, bombas de efeito moral, granadas de fumaça, de gás lacrimogêneo, de gás de pimenta, de luz e som, além de gel com marcador, que já vinham sendo usadas pelos Batalhões de Operações Especiais e de Choque da PM, seria estendido à toda PM, para reprimir manifestações. Segundo o secretário de Segurança: Queremos, a médio prazo, fazer com que toda a PM seja treinada para utilizar esse tipo de armamento. A ideia é que toda patrulha da PM tenha um kit desses para utilizar em casos de manifestações e conflitos onde não haja arma letal. (José Mariano Beltrame – secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro) (O Globo, 10/07/2007, p. 19) (Grifo nosso)

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No dia da festa de abertura do evento, 13/07/2007, foram organizadas diversas atividades e manifestações pelos movimentos sociais e organizações defensoras dos direitos humanos. Concentrado na frente do prédio da prefeitura, se organizou um protesto denunciando os abusos e a violência do Estado e que, apesar da repressão policial, com viaturas e tropa de choque, conseguiu seguir até o entorno do Maracanã. Na camiseta dos manifestantes e nos cartazes, o mascote do Pan, Cauê, é chamado de “Caô”, termo que 65

significa mentira, na gíria carioca. Nas faixas, dizeres como "Kauê mata nos hospitais sem atendimento", "O povo precisa de pão, não de Pan", "Para o Pan, bilhões; para os trabalhadores, tiros, remoções e retirada de direitos" estavam presentes nos dizeres dos cartazes e das faixas do protesto. Imagem 23

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Em O Globo, a manifestação nem mesmo foi citada. Segundo o jornal: “Com uma organização impecável, o estádio não tinha flanelinhas, ambulantes ou estacionamento ilegal. E tudo terminou em samba, na voz de Daniela Mercury cantando Aquarela do Brasil.” (O Globo, 14/07/2007, capa) No dia seguinte ao fim dos jogos Pan-Americanos, a polícia realizou três operações simultâneas, nas favelas da Mangueira, do Jacarezinho e em Vigário Geral. Todas elas controladas pela facção Comando Vermelho e, inclusive, já usando os equipamentos comprados pelo governo federal para o Pan. Polícia volta às favelas após o Pan. (O Globo, 31/07/2007, capa) De volta às favelas. Com fim do Pan, polícia retoma operações e vasculha Mangueira, Jacarezinho e Vigário Geral. (O Globo, Rio, 31/07/2007, p. 15)

Segundo declaração do Presidente Lula, foi feito um investimento de R$ 560 milhões do governo federal no gasto com segurança pública e o Estado do Rio de Janeiro ficou com 75% do aparato montado, incluindo aviões e carros. A ideia é que, de tudo que foi montado no âmbito da segurança pública no Rio, a começar pela inteligência, a começar pelos aviões, a começar pelos carros, 75% disso tudo vão ficar no Rio. O que é mais importante é que vai ficar uma experiência acumulada de um trabalho conjunto entre a polícia federal, a polícia do Rio e a comunidade, que participou ativamente. (Luiz Inácio Lula da Silva – Presidente da República) (O Globo, 31/07/2007, Rio, p. 16)

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Os meses seguiram-se com o discurso da guerra totalmente “em alta”. Com matérias sobre a violência e incursões policiais nas favelas sendo publicadas quase que diariamente. Mas o foco das manchetes e reportagens de O Globo já não ficou direcionado às operações no Complexo do Alemão. Apesar dos conflitos continuarem ocorrendo naquela região. Milícia mata mais dez traficantes. (O Globo, 02/08/2007, capa) Tráfico corre da polícia na Rocinha. (O Globo, 03/08/2007, capa) Tráfico tinha 525 armas desviadas de quartéis. (O Globo, 06/08/2007, capa) Polícia mata 7 de grupo que atacava agentes. (O Globo, 04/09/2007, capa) Polícia desmonta arsenal de traficantes da Zona Sul. (O Globo, 04/10/2007, capa) Três PMs mortos em 24 horas. (O Globo, 16/10/2007, capa)

No dia 17/10/2007, mais uma notícia de “confronto”, dessa vez no Morro da Coreia, deixou doze mortos. Uma ação bastante divulgada na TV, com cenas da polícia disparando contra as casas dos moradores, o “caveirão” disparando para todos os lados e os policiais atirando de dentro do helicóptero e assassinando dois homens sem camisa e desarmados, que fugiam correndo. A exceção de dois deles, um policial e uma criança de 4 anos, todos os outros foram chamados, pelo jornal, de supostos traficantes. “Criança e policial morrem em tiroteio. Confronto dura seis horas e resulta na morte de dez supostos traficantes.” (O Globo, 18/10/2007, capa) A declaração de Beltrame sobre a operação e o grande número de mortos deixa claro que o posicionamento do governo é o de que as mortes são inevitáveis. A sociedade precisa ver que isso é um problema histórico, cultural e complexo. Não será com ações leves que vamos resolver esse problema. A polícia não vai com a intenção de matar ninguém, mas também não vai para morrer. (José Mariano Beltrame – secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro) (O Globo, 18/10/2007, capa) (Grifo nosso)

No dia seguinte, durante o enterro do policial morto, Beltrame anunciou ao jornal que haveria novas operações: Infelizmente o tráfico adotou posturas de audácia e, se nada for feito, amanhã serão outras pessoas mortas, outros policiais mortos. Esses bandidos não têm compromisso com nada. Sabemos que essas operações são traumáticas, mas infelizmente as soluções para os problemas do Rio não são boas, não são tranqüilas. Se não formos lá, corremos o risco de estar prevaricando. (José Mariano Beltrame – Secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro) (O Globo, Rio, 19/10/2007, p. 14) (Grifo nosso)

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Em nota, o governador Sérgio Cabral reforçou a política de confrontos e de execução. Segundo ele, “a polícia do Rio não é orientada para matar, mas a decisão de combater o tráfico de drogas e retirar de circulação arsenais de guerra é inquestionável e irrevogável.” (O Globo, Rio, 19/10/2007, p. 14) Com exceção da criança de 4 anos e do policial, os outros 10 mortos continuaram sendo rotulados de traficantes. “Além do policial, um menino de 4 anos e dez homens que seriam traficantes morreram durante a operação.” (O Globo, Rio, 19/10/2007, p. 14) (Grifo nosso) Sem que nenhuma investigação fosse concluída a esse respeito. Simplesmente, contabilizadas como autos de resistência, a morte dessas pessoas não foi nem mesmo questionada. E o nome desses dez mortos também não foi divulgado na matéria. Apesar do extermínio dos moradores das favelas pela polícia ser legitimado e naturalizado pelo jornal, sob o pretexto da guerra contra o tráfico, conforme a fala do governador, O Globo – de maneira diferente da manifestação que ocorreu no dia da abertura do Pan, que nem mesmo foi noticiada pelo jornal – publicou a notícia sobre um manifesto da sociedade condenando as ações. A Guerra do Rio. Polícia fará novas operações. Ontem foi divulgado um manifesto assinado por 36 ONGs, núcleos de estudos \ universitários e parlamentares, além de outros sete cidadãos entre eles o ex-governador Nilo Batista, condenando o que foi chamado de incursões de extermínio da polícia. O documento afirma que as ações têm uma suposta “carta branca” do governador. (O Globo, Rio, 19/10/2007, p. 14) (Grifo nosso)

Em resposta, Cabral afirmou que existem duas naturezas de homicídios: uma, a do cidadão que tem a sua casa assaltada; outra, a do morador da favela, morto pela polícia. Naturalizando e legitimando o extermínio dos moradores de favelas, sob o pretexto de uma guerra contra o tráfico. Vejamos o que ele afirma em entrevista concedida ao jornalista Aluísio Freire, para o globo.com em 24/10/2007. Eu gostaria de separar primeiro o que é o número de homicídios numa política de confronto. Uma coisa é o homicídio do cidadão que tem sua casa assaltada e em seguida é assassinado. Roubo seguido de homicídio, latrocínio, isso é um tipo de crime. Outra coisa é entrar na favela da Coréia recebido a tiros. E, na troca de tiros, ter 12 mortos. Isso é uma outra natureza de homicídio. Quando vai acabar a política de confronto? Vai acabar quando a ordem pública puder chegar através de várias maneiras, dentre elas com o policial podendo andar fardado em qualquer lugar. Não é o que acontece hoje. Enquanto isso não for realidade, continuará havendo confronto. Isso gera morte. No momento que você tem marginalidade altamente armada com fuzis, metralhadoras, granadas, você tem um

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confronto. Metas são metas para alcançarmos. (Sérgio Cabral – governador do Estado do Rio de Janeiro) (GLOBO.COM, 24/10/2007) (Grifos nossos)

No dia 02/11/2007, com a manchete “Presidência acusa polícia do Rio de execuções”, O Globo publica os resultados da análise feita pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da presidência da República, divulgada no dia anterior. No relatório, os analistas concluíram que várias pessoas foram executadas sumária e arbitrariamente. O governo estadual criticou e contestou o documento. Não aparece, na matéria, nenhuma declaração do presidente Lula sobre o relatório, e nesse caso, o discurso silenciado e a omissão do presidente, nos faz crer que, apesar do documento, a posição de parceria entre os governos se mantém. O relatório de 15 páginas, divulgado ontem, foi contestado pelo secretário de segurança, José Mariano Beltrame, e por três peritas estatais. O documento foi elaborado por um órgão do governo federal, embora ministros e até o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenham elogiado as ações policiais no Rio. (O Globo, 02/11/12007, p. 16) (Grifo nosso)

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A capa do primeiro dia do ano de 2008 anuncia: “Bailão da paz abre 2008” (O Globo, 01/01/2008, capa). Apesar de já ser o prenúncio de um discurso que, mais à frente tomará corpo e força, quase não se falava, ainda, de “Paz”. O discurso dominante ainda era o da guerra e da violência. Tanto que, no dia seguinte (02/01/2008), O Globo inicia a publicação de uma série de reportagens sobre crimes e violência chamada “A cara da morte. Um morto e cinco feridos na orla. Polícia acredita que mulher foi vítima de bala perdida. O caso está na série ‘A cara da morte’, publicada a partir de hoje.” (O Globo, 02/01/2008, capa) Na capa do dia 02 de janeiro, a foto de uma embarcação que foi uma das vencedoras no campeonato de embarcações, em Angra. A imagem mostra o quanto se tornou natural a figura do policial do BOPE, como super-herói. No lugar da fantasia do Batman ou do Superman, é a farda do BOPE que é usada; e o “Batmóvel” passa a ser o caveirão. Na ocasião, inclusive, essa imagem foi reforçada pelo filme “Tropa de Elite” (2007), sucesso de bilheteria, onde o protagonismo pertence aos policiais do BOPE.

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O discurso da guerra; a produção do inimigo, na figura do traficante; e as operações de extermínio continuaram mais fortes do que nunca, sendo divulgados e produzidos de forma maciça. À mercê do tráfico. (O Globo, 27/01/2008, capa) Hora de Avançar. A polícia civil matou ontem seis bandidos em duas ações nas favelas do Jacarezinho e da Mangueira. (O Globo, 31/01/2008, capa) Operação no Jacarezinho deixa 6 mortos. (O Globo, Rio, 31/01/2008, p. 17) Milícias já dominam 115 comunidades do Rio. (O Globo, Rio, 27/02/2008, p. 21) Uma favela contra a PM. Blindado atacado em protesto contra a morte de uma mulher, após conflito com PMs, na Cidade de Deus. (O Globo, 07/03/2008, capa) Polícia mata dez em favelas na Zona Oeste. (O Globo, 04/04/2008, capa)

2.4 – Complexo do Alemão – SBPM não fica nenhum mosquito em pé Em 17 de janeiro de 2008, O Globo anunciou em sua capa: “Polícia prepara megaoperação contra o tráfico, que seguirá o modelo colombiano, adotado na Colômbia em 2002, na comuna 13, um conjunto de favelas em Medellín” (O Globo, 17/01/2008, capa). A 71

principal característica desse modelo é a ocupação permanente do território pelas forças do Estado para a entrada dos serviços públicos, no caso do Rio de Janeiro, realizados juntamente com o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e com o PRONASCI (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania). Sérgio Cabral descreveu o PAC: A ideia do PAC nas favelas é dar um choque civilizatório, com urbanização, segurança e novos equipamentos públicos, como escolas, unidades de saúde, centros de formação de mão-de-obra e apoio às micro e pequenas empresas. (Sérgio Cabral – governador do Estado do Rio de Janeiro) (O Globo, Rio, 17/01/2008, p. 17)

Essa matéria veio como resposta a uma entrevista veiculada na TV, pelo SBT, no dia 16/01/2008, onde quatro homens armados com fuzis, e se apresentando como traficantes, disseram que a polícia não poderia ficar presente durante as obras do PAC. Em resposta, José Mariano Beltrame disse: “Não estou preocupado com que os marginais estão dizendo, estão fazendo ou mostrando. Estou preocupado em buscar essas armas e prendê-las.” (O Globo, Rio, 17/01/2008, p. 17) Como vimos, na megaoperação do Alemão, que ocorreu em junho de 2007, junto ao discurso da guerra contra o tráfico, O Globo usou o argumento da necessidade do confronto como garantia para a realização segura do Pan. Nesse novo momento, o argumento usado passou a ser que somente com a ocupação permanente da favela, copiada do modelo colombiano de segurança, seria possível “civilizar” a favela. “Guerra a vista para fazer o PAC no Rio.” (O Globo, 27/01/2008, capa) Esse discurso, da necessidade da guerra para “civilizar” o território, reforça o conceito muito naturalizado da favela como comunidade carente e potencialmente perigosa, que precisa ser “civilizada”. O apoio do governo federal continuou com a participação das Forças Armadas e da Força Nacional nas operações. “Marinha vai apoiar polícia do Rio na guerra contra o tráfico” (O Globo, 17/02/2008, capa) e, também, por meio do financiamento de compras de armamento e blindados. “Rio terá mais 10 caveirões contra o tráfico.” (O Globo, 09/04/2008, capa) “Estado comprará dez novos blindados para a PM.” (O Globo, 09/04/2008, p. 15) Ocorre, então, outra grande megaoperação no Alemão, com o argumento principal de garantir as obras do PAC, os primeiros números foram de 9 mortos. PM mata nove em 7 horas de tiroteio. (O Globo, 16/04/2008, capa) PM mata 9 em 7 horas de tiroteio no Alemão. Confronto nas favelas termina com sete moradores baleados, 14 pessoas detidas e 11 armas apreendidas. (O Globo, Caderno Rio, 16/04/2008, p. 26)

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O jornal, dessa vez, não rotulou na manchete, os mortos como traficantes, silenciou o adjetivo, dizendo apenas PM mata 9. Já os baleados, o jornal adjetivou como moradores. Na matéria, nas páginas internas, entretanto, publicou: “o secretário de segurança, José Mariano Beltrame, afirmou que todos os mortos eram traficantes e estavam armados. E terminou afirmando que até a noite anterior, os mortos ainda não haviam sido identificados. Se os mortos não haviam sido identificados, como o secretário pôde afirmar que todos mortos eram traficantes? No dia seguinte (17/04), na matéria “Até tiros contra a dengue”, a justificativa da operação continuou permeada pelo discurso da comunidade carente: “Operação da PM foi para derrubar barreiras que impediam socorro a moradores doentes.” (O Globo, Rio, 17/04/2008, p. 13) Nessa matéria, o coronel da polícia militar Marcus Jardim, que participou da operação, comparou os traficantes aos mosquitos da dengue. Segundo ele: Os bandidos são os mosquitos do mal. Os marginais da lei são tão perniciosos quanto os mosquitos que levam à peste. Inseticida social é a resposta da polícia a esses mosquitos sociais (...) A PM é o melhor inseticida contra a dengue. É o SBPM: não deixa nenhum mosquito em pé (...) Apesar das operações o tráfico está cada vez mais forte, assim como o mosquito da dengue. (Marcus Jardim – coronel da Polícia Militar) (O Globo, Rio, 17/04/2008, p. 13)

O jornal Meia Hora (17/04/2008), que tem um público mais “popular” do que O Globo, e se utiliza de manchetes sensacionalistas, ilustrou essa declaração em sua capa:

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Comparar certos grupos com insetos e justificar a “dedetização” é assustador. Mostra que a segurança pública é entendida como limpeza social, como política de extermínio e controle social. Os pobres precisam ser exterminados. Lembramos da fala do Coronel Adyr Fiusa de Castro16, citado por Cecília Coimbra (2000), em seu texto Produzindo o mito da “Guerra Civil”: naturalizando a violência. Foi a mesma coisa que matar mosca com martelo-pilão (...). Evidentemente, o método mata a mosca, pulveriza a mosca, esmigalha a mosca, quando, às vezes, apenas com um abano é possível matar aquela mosca ou espantá-la. E nós empregamos um martelo-pilão. (Coronel Adyr Fiusa de Castro – diretor do CIE, durante o regime militar) (COIMBRA, 2000)

No dia 19/04, somavam-se 14 mortos. Todos rotulados como traficantes pelos policiais. Apesar do argumento para o confronto ter sido “abrir caminho para as ações sociais”, percebemos que ocorreu exatamente o inverso. Segundo O Globo:

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O coronel Adyr Fiúza de Castro foi o primeiro diretor do CIE, o Centro de Informações do Exército, um serviço de inteligência do governo brasileiro durante o regime militar. Esse órgão propôs a maior quantidade de censuras a material considerado subversivo e foi responsável por grande parte da estrutura da máquina de repressão do governo, tendo torturado centenas de cidadãos brasileiros. Quando nomeado, já ocupava um cargo de um serviço de inteligência do Exército; o D2 onde era encarregado de monitorar "subversivos".

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Ontem, devido aos constantes confrontos entre policiais e traficantes, o número de atendimentos na tenda de hidratação para pacientes com dengue, no parque Ary Barroso, caiu. Uma médica, que não quis se identificar, disse que o movimento da tenda foi reduzido cerca de 50%. Pacientes que na manhã de ontem aguardavam atendimento, ao ouvirem disparos, foram embora sem serem atendidos. (O Globo, Rio, 19/04/2008, p. 21)

No dia 23/04/2008, pela primeira vez, aparece na capa o termo “Ocupação” em uma matéria sobre apreensão de armas. Oito dias após a ocupação da Vila Cruzeiro, os policiais apreenderam ontem na favela uma carabina com capacidade de efetuar tiros de calibre .50 – munição antiaérea capaz de derrubar helicópteros, aviões e perfurar veículos blindados. (O Globo, 23/04/2008, capa) (Grifo nosso)

Nos meses seguintes, ocorreram diversas operações, em várias favelas. Como podemos ver nas manchetes a seguir. BOPE mata 10 e facção invade morro (Cidade de Deus). (O Globo, 26/04/2008, capa) (Grifo nosso) Polícia cerca favelas e deixa bando acuado no alto da favela do Leme. (O Globo, 26/04/2008, p. 18) (Grifo nosso) PM mata 10 em confronto na Cidade de Deus. (O Globo, 26/04/2008, p. 19) (Grifo nosso) Tráfico, escrachado, usa até o PAC. Um dos chefes do Pavão-Pavãozinho tinha crachá de vigia das obras na favela. (O Globo, 29/04/2008, capa) (Grifo nosso) Zona Sul em alerta contra guerra do tráfico. Polícias civil e militar se preparam para impedir ataque ao Chapéu Mangueira, no Leme. (O Globo, 30/04/2008, capa.) (Grifo nosso) Um tiroteio deixou cinco mortos e três feridos em Manguinhos. (O Globo, 03/05/2008, capa) (Grifo nosso) Caveirão perdido. Um caveirão da Core e um Gol da delegacia do Morro dos Macacos. (O Globo, 13/06/2008, capa) (Grifo nosso) Tráfico executa PMs para roubar armas. (O Globo, 18/07/2008, capa) (Grifo nosso) Tráfico ataca helicópteros e polícia mata 1. (O Globo, 23/07/2008, capa) (Grifo nosso) Polícia mata dez e tráfico 6, em Caxias. (O Globo, 05/08/2008, capa) (Grifo nosso) Ação da polícia em Caxias termina com 10 mortos. Equipe ficou cercada em favela e pediu reforço. (O Globo, 05/08/2008, p. 19) (Grifo nosso)

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Para tentar entender o discurso de guerra e as práticas de extermínio que se naturalizam, nas manchetes da mídia, como algo considerado necessário, aceito e justificado, tomaremos como ferramenta as análises de Foucault em seu curso no College de France, Em defesa da Sociedade (FOUCAULT, 1999c). No texto, o autor analisou as possibilidades da emergência de um novo discurso histórico, durante a passagem do século XVIII para o XIX. Mostrando como a noção de guerra foi eliminada da análise histórica, pelo princípio da universalidade nacional. Segundo Foucault, o discurso da história, que até o séc. XVIII, tomou a guerra como analisador principal, sofreu uma modificação. A partir do séc. XIX, ele é “reduzido, repartido em perigos regionais, em episódios transitórios, retranscrito em crises e violências” (FOUCAULT, 1999c, p. 258). A ideia da guerra se recriou como defesa da sociedade, não mais contra os ataques externos, mas sim contra os perigos que emergem em seu próprio corpo, é o pensamento da guerra social. Ele chama esse movimento de “autodialetização, emburguesamento do discurso histórico”. (Ibid., p. 258) Foucault (1999c) toma a teoria clássica da soberania, como pano de fundo para as análises que faz sobre guerra e raças. Ele explica que na monarquia não existia o conceito de nação, nem de Estado. O que se tinha era a unidade corporificada na figura do rei, possuidor do atributo fundamental: o direito sobre a vida e a morte de seus súditos. Em certo sentido, dizer que o soberano tem direito de vida e de morte significa no fundo, que ele pode fazer morrer e deixar viver; (...) Que quer dizer, de fato, direito de vida e de morte? Não, é claro que o soberano pode fazer viver como pode fazer morrer. O direito de vida e de morte só se exerce de uma forma desequilibrada, e sempre do lado da morte. O efeito do poder do soberano sobre a vida só se exerce a partir do momento em que o soberano pode matar. Em última análise, o direito de matar é quem define efetivamente em si a própria essência desse direito de vida e de morte: é porque o soberano pode matar que ele exerce seu direito sobre a vida. (Ibid., p. 286)

A nação e o Estado passam a se configurar, a partir da constituição de um estado jurídico, mas não se bastam nisso. O que caracteriza uma nação é a relação entre o corpo dos indivíduos e a existência efetiva do Estado. A nação já não é, portanto, um parceiro em relações bárbaras e belicosas de dominação. A nação é o núcleo ativo, constitutivo do Estado. A nação é o Estado ao menos pontilhado, é o Estado nascendo, formando-se e encontrando suas condições de existência num grupo de indivíduos. (Ibid., p. 267)

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Foucault demonstra como ocorreu a transformação nos mecanismos, técnicas e tecnologias de poder, nos séculos XVII e XVIII, com o domínio do poder disciplinar e logo em seguida do biopoder. O poder disciplinar se exerce pela ação direta no corpo do indivíduo, disciplinando e produzindo docilidade por meio de instituições austeras como a prisão, a escola e os manicômios (trataremos mais especificamente do poder disciplinar e de suas tecnologias no capítulo 6). Já na segunda metade do séc. XVIII, se torna dominante o que Foucault chama de biopolítica da espécie humana ou, simplesmente, biopoder. Essa nova tecnologia de poder visa garantir a existência e regular a vida da espécie humana e se exerce mediante intervenções e controles sobre as populações. Assim, para Foucault, há um deslocamento do objeto nessa nova tecnologia de poder. “É um novo corpo múltiplo, corpo com inúmeras cabeças, se não infinito pelo menos necessariamente numerável. É a noção de população.” (Ibid., p. 292) Se não há uma contradição entre as análises do poder disciplinar e aquelas relativas ao conceito de biopoder, na medida em que ambas tomam os processos de normalização como sua base comum, não se pode deixar de notar que tal conceito impôs uma ligeira mutação no curso das pesquisas genealógicas de Foucault. A partir do momento em que passou à análise dos dispositivos de produção da sexualidade, Foucault percebeu que o sexo e, portanto, a própria vida, se tornaram alvos privilegiados da atuação de um poder disciplinar que já não tratava simplesmente de regrar comportamentos individuais ou individualizados, mas que pretendia normalizar a própria conduta da espécie, bem como regrar, manipular, incentivar e observar macro fenômenos como as taxas de natalidade e mortalidade, as condições sanitárias das grandes cidades, o fluxo das infecções e contaminações, a duração e as condições da vida etc. A partir do século XIX, já não importava mais apenas disciplinar as condutas, mas também implantar um gerenciamento planificado da vida das populações. (DUARTE, 2008, p. 48)

Temos, então, dois conjuntos de mecanismos, que não se excluem e se articulam: um disciplinar (o corpo – organismo – disciplina – instituições); e o outro, regulador (população – processos biológicos – mecanismos reguladores – Estado). Temos portanto, desde o século XVIII (ou em todo caso desde o fim do século XVIII), duas tecnologias de poder que são introduzidas com certa defasagem cronológica e que são sobrepostas. Uma técnica que é, pois, disciplinar: é centrada no corpo, produz efeitos individualizantes, manipula o corpo como foco de forças que é preciso tornar úteis e dóceis ao mesmo tempo. E, de outro lado, temos uma tecnologia que, por sua vez, é centrada não o corpo, mas na vida; uma tecnologia que agrupa os efeitos de massas próprios de uma população, que procura controlar a série de eventos fortuitos que podem ocorrer numa massa viva; uma tecnologia que procura controlar (eventualmente modificar) a probabilidade desses eventos, em todo caso em compensar seus efeitos. (FOUCAULT, 1999c p. 297)

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O novo direito que se instala, na biopolítica, é o direito de fazer viver e de deixar morrer. É o controle das populações, por meio de mecanismos reguladores como as previsões, as estimativas, as estatísticas e as medições. Isso posto, a partir do conceito de biopoder e de regulação em Foucault, as práticas de extermínio das populações pobres podem ser entendidas como uma tecnologia de poder, um mecanismo de regulação do biopoder. Mas como é possível para um poder político matar? Como esse poder que tem, essencialmente, o objetivo de fazer viver pode deixar morrer, dar ordem de matar e expor à morte? Foucault responde a isso dizendo: por meio do racismo. É ele que permite uma relação entre a minha vida e a do outro. A relação é: “quanto mais você matar, mais você fará morrer, ou quanto mais você deixar morrer, mais, por isso mesmo, você viverá.” (Ibid., p. 305) O racismo desempenha nesse segundo pólo do controle “da vida” um papel fundamental. Um racismo associado à preservação da “civilização ocidental”, ou dos valores democráticos, que aparece com força nas discussões e acontecimentos atuais relacionados à imigração na Europa. Ou que aparece associado à promoção da paz na cidade, ainda que essa paz seja a paz dos cemitérios. Para se chegar a implantar as Unidades de Polícia Pacificadora no Rio de Janeiro, saudadas por grande parte da população como solução para a criminalidade na cidade, foi necessária uma década de política genocida, de extermínio dos “suspeitos” de crime. Sabemos que esses suspeitos são justamente os pretos e pobres, moradores em comunidades populares. (RAUTER, 2012, p. 73)

O tema da raça acompanhou os discursos históricos da guerra até o séc. XVIII, quando falava-se em guerra de raças. O Estado, no domínio do biopoder, inseriu o racismo como mecanismo fundamental do poder e o recriou como racismo de Estado, como uma fronteira entre o que deve viver e o que deve morrer. Com efeito, o que é racismo? É, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrario como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da população, um grupo em relação aos outros. (FOUCAULT, 1999c, p. 304)

Em Desigualdade racial, racismo e seus efeitos, Zamora (2012) discute as noções de raça, racialismo e racismo, nos mostrando que a dimensão do racismo não pode ser reduzida à pobreza. Segundo a autora, a noção de raça justificou a colonização, a escravização, a perseguição e o extermínio de milhões de pessoas. A crença de que existem distintas raças humanas – o racialismo – e a ideia de que algumas raças são inferiores a outras – o racismo – 78

“atribuindo desigualdades sociais, culturais, políticas, psicológicas, à raça e, portanto, legitimando as diferenças sociais a partir de supostas diferenças biológicas” (ZAMORA, 2012, p. 565) vem produzindo uma forma capitalística de dominação e violência, se instaurando, legitimando e reproduzindo um discurso dominante e justificador da posição desvantajosa do negro na sociedade e seu assujeitamento. O mito de que vivemos em uma democracia racial se reproduz como discurso. No entanto, o que temos é a continuidade da lógica da exploração escravagista, das condições indignas de vida e do extermínio da população negra, justificados pela criminalização e pelos discursos racistas. Não é preciso muito para descrever o perfil do inimigo público, basta observar as fotos dos jornais ou recorrer às estatísticas, que apontam para os dados alarmantes sobre o assassinato de jovens pretos. 2.5 – Complexo do Alemão – O Alemão da Paz ou do Paes? Em setembro, nas vésperas das eleições para a prefeitura do Rio de Janeiro – que foi disputada, no segundo turno, entre o candidato Eduardo Paes, do PMDB, apoiado pelo governador Sérgio Cabral e vencedor da eleição, contra o candidato Fernando Gabeira, do PV – uma nova megaoperação aconteceu no Alemão. Como nas outras duas grandes “megaoperações” (06/2007 e 04/2008), além do discurso da guerra contra as drogas, um outro argumento específico emergiu para justificar a intervenção da polícia: garantir que o tráfico não cerceasse a entrada de candidatos para fazer campanha, garantir a “democracia”. “Tráfico cerceia campanha e até entrada de militares.” (O Globo, 25/09/2008, capa) (Grifo nosso) Segundo O Globo, a operação aconteceu, também, por conta de denúncias sobre uma disputa entre traficantes pelo controle da região, resultando em diversas mortes. “Uma noite e madrugada de terror com barulho de tiros e explosões de granadas” (O Globo, 25/09/2008, capa). Contudo, nenhum corpo foi encontrado. “Chacina do tráfico não deixa pistas. Policiais do BOPE ocuparam ontem o Complexo do Alemão, mas não acharam qualquer pista da guerra entre traficantes.” (O Globo, 17/09/2008, capa) (Grifo nosso) Nesse momento, o termo “ocupação” começou a aparecer junto ou como substituto dos termos, até então usados: “operação; megaoperação; incursão; invasão; confronto”, mas ainda com pouca frequência e força. É com esse novo discurso de ocupação, da presença permanente do Estado, que 800 policiais subiram e “ocuparam” o morro do Alemão.

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Cidade ocupada. Cerca de 800 policiais sobem o Alemão. (O Globo, 18/09/2008, capa) ( Grifo nosso)

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O exército entra no Complexo do Alemão tocando hinos de clubes cariocas. (O Globo, 02/10/2008, capa)

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Exército sobe o Alemão com banda de música. Militares fincam bandeira do Brasil no alto do complexo após passarem por vielas tocando hinos de clubes de futebol. (O Globo, Eleições 2008, 02/10/2008, p. 9) (Grifo nosso)

Inicialmente, mantendo a lógica do slogan Somando Forças, em fins de março de 2008, o governador Sérgio Cabral apoiou, oficialmente, o candidato do PT, Alessandro Molon, à prefeitura do Rio. “O secretário estadual de Esporte e Lazer, Eduardo Paes, deixou de ser o candidato de Cabral (..) numa articulação com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva” (O GLOBO ONLINE. 26/03/2008). Nos bastidores, acreditava-se que Cabral estava “jogando para a plateia”, pois mesmo com seus ainda aliados, o ex-governador Anthony Garotinho e o ex-secretário de Segurança e deputado estadual Marcelo Itagiba, pressionando por uma aliança com o DEM (Democratas), do então prefeito César Maia, o presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) e principal articulador político de Cabral, Jorge Picciani, continuava empenhado na candidatura de Eduardo Paes que, segundo ele, teria maior chance de crescimento nas intenções de voto. Naquela ocasião, as pesquisas indicavam que: De acordo com o Datafolha, Crivella e Jandira lideram a corrida pela prefeitura do Rio, com 20% e 18% das intenções de voto, respectivamente. Em seguida, aparecem o deputado Fernando Gabeira (PV), com 9%, a deputada Solange Amaral (DEM), com 8%, e o deputado Chico Alencar (PSOL), também com 8%. Na lanterna, aparece Molon, com 1%. (O GLOBO ONLINE, 30/03/2008)

Diante da inconsistência da candidatura de Molon (PT), que durante os meses seguintes não conseguiu ultrapassar 1% de intenção de voto, o PMDB se uniu e aprovou candidatura própria, com o nome de Eduardo Paes. Mesmo depois de iniciada a campanha eleitoral, a menos de 60 dias para as eleições, em 15 de Agosto de 2008, de acordo com o IBOPE, o bispo da Igreja Universal de Reino e Deus (IURD) e sobrinho de seu fundador, Edir Macedo, 81

Marcelo Crivella (PRB) manteve a liderança isolada nas pesquisas, chegando a ter 16 pontos percentuais à frente do segundo colocado, Eduardo Paes, estando o Gabeira em 5o lugar, empatado com Chico Alencar (PSOL). Imagem 33

O desafio do marketing eleitoral do PMDB, nas eleições de 2008, foi, de um lado: mostrar que a soma de forças (prefeitura unida com Estado e governo federal) seria bom para a cidade, demonstrando pari passu que o governo estadual vinha trabalhando bem e que, por isso, o melhor candidato seria aquele que tivesse o seu apoio; sem esquecer de, por outro lado, aumentar a rejeição do líder nas pesquisas, fazendo-o cair; bloqueando, ainda, quaisquer movimentos perigosos possíveis de terceira via. Com relação à produção da rejeição ao candidato Crivela, no primeiro turno, podemos citar a “I Caminhada Contra a Intolerância Religiosa”, ocorrida em 21 de setembro de 2008, que reuniu milhares de pessoas ligadas a diversas religiões, e teve destaque na mídia, como um ato em que, entre outras bandeiras, indicava os riscos de um bispo da IURD assumir a prefeitura da cidade do Rio.

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Ato pela liberdade religiosa. Cerca de dez mil pessoas participaram ontem da Caminhada pela Liberdade Religiosa, na Praia de Copacabana. (Globo, 22/09/2008, capa)

Ainda nessa lógica, durante o segundo turno das eleições, a desconstrução do candidato Fernando Gabeira passou pela estratégia do boato, evidenciando-o como “ex-terrorista, homossexual, maconheiro”; um exemplo foram os panfletos distribuídos pela vereadora Lilian Sá, principalmente para o eleitorado evangélico, que afirmava que Gabeira tinha projetos que feriam os princípios morais e cristãos. Referindo-se às propostas apresentadas por Gabeira, como deputado, tais como a regulação da profissão de prostituta e a que descriminaliza a sedução de menores a partir de 14 anos. Mas, principalmente, reforçando a lógica da “cidade partida”, indicando que Gabeira seria preconceituoso contra pobres, principalmente na Zona Oeste. “A cidade dividida de Paes e Gabeira. Enquanto os pobres votam no peemedebista, os mais ricos preferem candidato verde.” (O Globo, 20/10/2008, p. 03) Vejamos a fala do então candidato Eduardo Paes, publicada no O GLOBO ON LINE, em 10/10/2008. Em uma cidade partida, a gente precisa se unir. Essa cidade é uma cidade que tem no seu subúrbio uma parte importante da sua riqueza, da composição da alma do carioca. O Rio de Janeiro não é só aquela área que meu adversário conhece. O Rio de Janeiro tem outras áreas importantes, a Zona Oeste, o subúrbio. E como conheço há muito tempo, conheço gente de toda a cidade também. Não tenho nenhum tipo de preconceito – afirmou Paes. (Eduardo Paes – Candidato à prefeitura da cidade do Rio de Janeiro) (O GLOBO ON LINE, 10/10/2008)

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Boato, de certa forma, corroborado pela “imparcialidade” de O Globo em sua primeira página, ao evidenciar a imagem dos dois únicos concorrentes de então. Imagem 35

Essa publicação produziu, inclusive, inúmeras críticas e “choveram” cartas dos leitores. Vejamos algumas: Imagem 36

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O jornal, por sua vez respondeu, simplesmente denegando. “A foto publicada na primeira página de ontem não tem nenhum elemento negativo ao candidato Fernando Gabeira, não faz parte de qualquer campanha contra ele e nem é preconceituosa.” (O Globo, 08/10/2008) ( Grifos nossos) Imagem 37

Mesmo com toda a máquina em ação, Paes venceu Gabeira por uma diferença de apenas 55.521 votos (1,6 pontos percentuais). Durante todo processo eleitoral de 2008, enquanto o marketing do PMDB, tendo O Globo por aliado, tratava de desconstruir os adversários de Paes, era preciso, também, construir sua imagem enquanto sendo o melhor nome. Desde sempre, um dos principais problemas – levantados nas pesquisas quantitativas, tanto da cidade, como do estado do Rio de Janeiro – é a violência. A ponto de alguns institutos ao realizarem seus questionários, serem taxativos nas perguntas: “fora a violência, qual o principal problema da sua cidade?” A segurança pública não é de responsabilidade municipal, mas para o eleitor essa minúcia do pacto federativo é ininteligível. À guisa de exemplo sobre a confusão entre as esferas de poder, chegou a se questionar naquele mesmo ano de 2008, no caso do mosquito da dengue, se ele era municipal, estadual ou federal (LÔBO, 24/03/2008). Para o cidadão comum as responsabilidades dos níveis de governo se confundem, e toda ajuda é bem-vinda. Neste sentido, o apoio do governo estadual, a este ou aquele candidato, faz toda a diferença, seja no caso de uma reeleição, da eleição de um sucessor ou de um candidato apoiado pelo governo. Segundo a pesquisa Datafolha sobre o segundo turno, divulgada pelo jornal: “Entre os que avaliam positivamente a gestão do governador Sérgio Cabral, aliado de 85

Paes, a vantagem fica com o peemedebista, que tem 56% a 26%. Quem desaprova a gestão do governador prefere Gabeira: 51% a 29%.” (O Globo, 20/10/2008, p. 03) Cabe ressaltar aqui que, apesar de discursos e propostas muito próximas em diversas áreas, como saúde e educação, houve discordância entre Gabeira e Paes quanto à segurança pública. Gabeira fez criticas à política de segurança de Cabral, denunciando seu caráter repressivo e combativo. Usando, inclusive, em sua campanha, atores do filme “Tropa de Elite”. A tropa de Gabeira. O ex-oficial Rodrigo Pimentel, que passou sete anos no BOPE, promete trocar o ‘caveira’, palavra de ordem gritada entre os militares do Bope, por ‘Gabeira’. Pimentel, um dos autores do livro ‘Elite da tropa’e inspirador do personagem Capitão Nascimento, interpretado por Wagner Moura no filme ‘Tropa de Elite, anunciou que ele e três dos atores centrais da trama (incluindo Wagner) vão gravar hoje para o horário eleitoral de Gabeira. (O Globo, 15/10/2008, p. 09)

O que foi a invasão ou ocupação de um complexo de favelas, como o Alemão, se não a demonstração clara e inequívoca do Estado interferindo administrativamente no debate eleitoral? Não por acaso, a matéria sobre a ocupação durante a campanha de 2008 foi veiculada no caderno “Eleições”. O Globo, em sua “imparcialidade”, demonstrou claramente na cobertura das eleições de 2008, a boa relação com o governo do Estado. Contribuiu para a eleição do candidato Eduardo Paes, apoiado por Cabral, à prefeitura, reafirmando o conceito contido no slogan “Somando Forças”, agora com um o tripé completo, formado pelas três esferas de governo: municipal, estadual e federal. Essa boa relação que resultou na eleição de Paes como prefeito da “Cidade Maravilhosa”, entre outros interesses, visou melhorar a imagem internacional do Rio de Janeiro, para a atração da Copa do Mundo de 2014, das Olimpíadas de 2016 e das respectivas verbas publicitárias de seus patrocinadores.

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CAPÍTULO 3: JUVENTUDE DA FAVELA: o discurso da tendência à criminalidade dos jovens pretos e pobres 3.1 – O jovem preto, pobre, favelado e perigoso dos jornais As políticas punitivas espalham um discurso alarmista e catastrófico sobre a insegurança, indispensável para a naturalização pela mídia e a aceitação pela opinião pública das ações de controle e extermínio da população pobre, mais especificamente, do jovem preto. O inimigo que, na ditadura militar, era tipificado na figura do subversivo, do comunista, a partir do final da década de 80 e início da década de 90, passou a ser o “traficante”. Da mesma forma que se construíram perigosos “inimigos da Pátria” nos anos 60 e 70, em nosso país – e em muitos momentos da história da humanidade, foram sendo concebidos por diferentes equipamentos sociais os perniciosos, os indesejáveis (...), também hoje, principalmente via meios de comunicação de massa, estão sendo produzidos “novos inimigos internos do regime”: os segmentos mais pauperizados; todos aqueles que os “mantenedores da ordem” consideram “suspeitos” e que devem, portanto, ser evitados e, mesmo, eliminados. Para esses “enfermos” – vistos como perigosos e ameaçadores – são produzidas “identidades” cujas formas de sentir, viver e agir se tornam homogêneas e desqualificadas. São crianças e adolescentes já na marginalidade ou que poderão – porque pobres – ser atraídos para tal condição que devem ser exterminados. A modernidade exige cidades limpas, assépticas, onde a miséria – já que não pode mais ser escondida e/ou administrada – deve ser eliminada. Eliminação não pela sua superação, mas pelo extermínio daqueles que a expõem incomodando os “olhos, ouvidos e narizes” das classes mais abastadas. (COIMBRA, 2001, p. 57)

A construção desse “novo inimigo” foi diretamente associada à fabricação de uma crise na segurança pública, um momento de forte tensão e conjuntura de pânico, produzidos em resposta a violentos acontecimentos que ocorreram no começo da década de 1990, no Rio de Janeiro. O primeiro deles, que ocorreu em 18 de outubro de 1992, foi apelidado de “Arrastão da Benedita” devido à conjuntura política do momento. Os eleitores cariocas haviam acabado de indicar Benedita da Silva (PT) e César Maia (PMDB) para a disputa no segundo turno das eleições para a prefeitura da cidade do Rio, que ocorreu em 15/11/1992 e onde, não por coincidência, a candidata do grupo popular perdeu as forças e César Maia ganhou com 44,3% dos votos válidos, contra os 41,1% dos votos da Benedita. (BRENDT, 1994)

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Jovens das favelas de Vigário Geral e Parada de Lucas, controladas por facções criminosas diferentes (Comando Vermelho e Terceiro Comando, respectivamente) se encontraram na praia do Arpoador, na Zona Sul do Rio, e começaram uma briga que culminou em corre-corre, roubos, pânico e histeria. Vejamos como esse acontecimento foi noticiado na capa de O Globo. Imagem 38

Foram muitas e sequenciadas as matérias, em diversos jornais, sobre o arrastão e as medidas que deveriam ser tomadas, pelo Estado, para controlar e evitar o caos na cidade. Com essa produção midiática, a prefeitura criou um “plano anti-arrastão” em conjunto com a polícia e as empresas de ônibus, impondo uma série de medidas, entre elas: a vigilância de ônibus e a montagem de barreiras nos túneis, nas estações de trem e nos pontos de ônibus; a circulação dos ônibus com a lotação legalmente autorizada para passageiros sentados e em pé; a exigência que os cidadãos da Zona Norte só poderiam passar para a Zona Sul provando que tinham dinheiro para pagar o ônibus na volta, proibindo viajar sem camisa, sem documentos de identificação; e também, o aumentando do valor das passagens aos sábados e domingos. 88

Essa ação isolou a Zona Sul e sitiou os pobres, especialmente os pretos e os mestiços, acomodando a imagem da cidade partida como definidora da experiência urbana no Rio de Janeiro, cristalizada com a publicação do livro Cidade Partida, de Zuenir Ventura (1994). Desde então, muitos autores têm defendido essa visão conceitual, alimentando e restituindo teoricamente o contraponto da favela e do asfalto como lugares da civilização e da barbárie. A própria nomenclatura oficial, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referese às favelas com o termo “Aglomerados Subnormais.” Ou seja, abaixo da norma. O conceito de aglomerado subnormal foi utilizado pela primeira vez no Censo Demográfico de 1991. Possui certo grau de generalização de forma a abarcar a diversidade de assentamentos irregulares existentes no país, conhecidos como favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos, palafitas, entre outros. (IBGE, 2010)

Em virtude da ação esmagadora das forças de influência e determinação de um ideal de sociabilidade, certos grupos encontram-se diretamente ligados a processos de contenção e silenciamento. No caso das favelas, através da criação de um território determinado, onde se constroem práticas de contenção e controle, afastamento, manutenção de uma distância não só física, mas também subjetiva. Fica “afastado” da sociedade tudo aquilo que pode significar um mal ou uma ameaça. Limpa-se da família e do corpo social aquilo que contraria os interesses de uma elite social e economicamente privilegiada. Há uma vasta bibliografia que mostra a forte presença da favela no imaginário da cidade, como a antítese do ideal de civilização. Como nos descreve Burgos (2009): O conceito de segregação aqui empregado refere-se à distância social existente entre áreas urbanas, que se distinguem não apenas pelas diferenças objetivas entre seus moradores, mas por aquilo que Bourdieu chamou de “efeitos do lugar”, quando os espaços da cidade podem produzir importantes assimetrias políticas, fortes identidades/rivalidades locais, preconceitos e ressentimentos mútuos, e até mesmo estigmas (BOURDIEU, 1997). No caso do Rio de Janeiro, a favela, embora não seja a única, é a forma especial mais notoriamente marcada pelo efeito da segregação urbana. (BURGOS, 2009, p. 59)

A premissa da cultura da violência na favela, fortalecida pela presença do tráfico, produz efeitos negativos sobre os seus moradores, caracterizando-os como agressivos, inquietos, bárbaros e perigosos, ou em situação de risco, de vulnerabilidade social.

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A compreensão da favela como um problema a ser extinto ou pelo menos controlado no âmbito de seu crescimento populacional é presente nos poderes públicos desde o início do século XX (VALADARES, 2000). E é a partir da década de 1980, que uma nova configuração é desenvolvida com a presença mais representativa dos banqueiros do jogo de bicho e de grupos ligados ao tráfico de drogas. De acordo com Arruda et. al. (2010), que traz reflexões de Maiolino (2005), há nesse período o progressivo aumento do controle desses grupos sobre as organizações locais e seus moradores (...) Assim, ancorado ao antigo discurso que associa os pobres a uma “classe perigosa”, intensifica-se a mobilização da sociedade carioca em relação aos problemas urbanos decorrentes da existência desses espaços na cidade. (MELICIO, GERALDINO e BICALHO, 2012, p. 604)

Vejamos a fala de moradores do Cantagalo entrevistados: Eles colocam o pessoal do morro e da favela como se aqui só tivesse vândalo e bicho, mas não é, tem muita gente aqui que trabalha, que tem a sua ocupação, claro que também tem outros que não querem nada com a vida, mas porém eles (os policiais) procuram meio de afrontar, vou ali, vou dar uma coça em fulano ou sicrano pra ver se alguma coisa vai acontecer e é nesse momento que as pessoas pegam e se revoltam. Ninguém vai ficar aturando esse tipo de coisa calado, sempre calado, chega uma hora que as pessoas reagem. (Morador do Cantagalo) (Grifo nosso) Então as pessoas acham que quem mora aqui são os errados, porque os policiais estão sempre falando a verdade e a gente não pode estar falando a verdade? (Morador do Cantagalo) (Grifo nosso)

Ou seja, prevalece a premissa de que o morador da favela, por natureza (social, cultural, genética ou qualquer outra explicação), é bandido ou um potencial bandido. É o que diversos autores têm apontado como um processo de criminalização da pobreza. Este “outro”, habitante dos espaços pobres segregados, é visto como ameaçador e é sujeito a toda uma espécie de preconceitos, discriminação, estigmas e violência física, que o transforma em um outro sempre suspeito, para o qual o remédio usualmente pensado é o maior incremento nas políticas punitivas de segurança e a possibilidade de encarceramento para que o “nosso” possa seguir vivendo sua esquizofrenia social. (PAIVA, 2009, p. 25)

Os outros acontecimentos marcantes, nesse período, foram a Chacina da Candelária, que ocorreu na madrugada do dia 23 de julho de 1993, onde um grupo de extermínio formado por policiais executou oito pessoas, sendo seis menores de idade. E a chacina de Vigário Geral, em 29 de agosto de 1993, represália da polícia pelo assassinato de quatro policiais por traficantes da favela de Vigário Geral, que aconteceu numa noite de domingo, por volta de meia noite, quando os policiais invadiram a favela, encapuzados e executaram, à queima roupa, 20 trabalhadores e uma estudante, oito deles da mesma família. 90

Vera Malaguti Batista em, O medo na cidade do Rio de Janeiro: Dois tempos de uma história, analisa: O processo de demonização do tráfico de drogas fortaleceu os sistemas de controle social aprofundando seu caráter letal. O número de mortos na “guerra do tráfico” está em todas as bancas. A violência policial é imediatamente legitimada se a vítima é um suposto traficante. O mercado de drogas ilícitas propiciou uma concentração dos lucros decorrentes do tráfico e, principalmente, propiciou argumentos para uma política permanente de violação dos direitos humanos contra as classes sociais vulneráveis: sejam jovens negros e pobres das favelas do Rio de Janeiro, sejam colombianos, sejam imigrantes indesejáveis do hemisfério norte. (BATISTA, 2003, p. 140)

Assim emerge, mais fortemente, o discurso da favela como o espaço da criminalidade maximizada e os confrontos ocorridos naqueles espaços passam a ser chamados, pela mídia, de “guerra”. O morador de favelas, da baixada fluminense, o bandido, o traficante, o preso, o egresso do sistema penal, o preto, o jovem pobre do Rio de Janeiro considerados como perigosos, em situação de risco ou em vulnerabilidade social passam a ser produzidos como “inimigos”. Ao produzir o “novo inimigo”, tipificado na figura do traficante, os jovens pretos e pobres passam a ser estigmatizados maciçamente como os principais vetores da violência urbana e de uma pandemia de infrações menores, que reiteram o caos coletivo. Graças à tenaz distorção de crime, pobreza e imigração veiculada pela mídia, bem como à constante confusão entre insegurança e “sentimento de insegurança” – feita sob medida para canalizar para a figura do delinquente de rua (de pele escura) a ansiedade difusa causada pelo deslocamento dos assalariados, [...] – estas políticas são objeto não apenas de um consenso político sem precedentes, mas também desfrutam de um amplo apoio público que atravessa as fronteiras de classe. (WACQUANT, 2013, p. 28)

Observamos nas reportagens de O Globo, durante o período pesquisado, a reprodução do discurso da favela como espaço da criminalidade maximizada e que o “inimigo” tem cor, gênero, idade, classe social e endereço – homem, preto, jovem, pobre, favelado. É preciso que se coloque ainda em destaque que o dito processo de criminalização tem um nítido recorte étnico, quando incide nas populações pobres. Vale dizer, o processo de criminalização não é homogêneo, mas francamente heterogêneo, incidindo pois de maneira desigual na totalidade da população. Com efeito, se nos estados Unidos são os negros os alvos preferenciais do processo criminalizante, nas sociedades europeias o processo incide sobre os imigrantes. No Brasil, em contrapartida, é o segmento negro das populações pobres o alvo da criminalização e da insegurança social. (BIRMAN, 2012, p. 158)

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A reportagem de 02 de julho publicou imagens de uma filmagem do comércio de drogas à luz do dia, na Cidade de Deus. A maioria das pessoas exibidas é formada por jovens e pretos. “Feirão de Drogas desafia UPP.” (O Globo, 02/07/2010, capa) “UPP não acaba com tráfico na Cidade de Deus. Imagens mostram bandidos desarmados vendendo maconha livremente na favela, a segunda a ser pacificada.” (O Globo, 02/07/2010, p. 20) Imagem 39

Considerados como “inimigos”, esses sujeitos precisam de medidas disciplinadoras e punitivas. Medidas que não diferem em sua centralidade: atuar sobre o comportamento do indivíduo de forma a “melhorá-lo”, corrigi-lo, transformá-lo, controlá-lo. Na foto da reportagem sobre uma das ocupações no Complexo do Alemão em 2008, podemos ver os homens da Força Nacional em uma trincheira, com a faixa presa no alto com os seguintes dizeres: “É a única opção para os jovens não entrarem no caminho errado” (O Globo, Rio, 17/01/2008, p. 17). Imagem 40

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Segundo essa visão, para os jovens que “entram no caminho errado” o dispositivo punitivo terminal é a prisão ou a morte. Polícia acusa 11 militares de entregar jovens para o tráfico. (O Globo, 16/06/2008, capa) Adolescente é morto em tiroteio em favela Manguinhos. (O Globo, 29/10/2009, capa) Morte violenta de jovens é cada vez maior. (O Globo, 02/02/2011, capa) Ameaçados pelo tráfico, 2500 crianças vivem sob proteção. (O Globo, 16/06/2011, capa) Os desaparecidos da Violência. (O Globo, 30/06/2011, capa) Exército apura morte de jovem na Vila Cruzeiro. (O Globo, 28/12/2011, capa) Pesquisa. Crianças e Adolescentes. Violência é causa de 26% das mortes de 0 a 19 anos. (O Globo, 18/07/2012, capa) Infância interrompida. (O Globo, 15/03/2013, capa) Juventude desperdiçada. (O Globo, 11/08/2013, capa)

Um morador entrevistado lamentou as mortes de jovens que ele conhecia e o desaparecimento do seu irmão. Como eu falei, tem pessoas que a gente conhece, que são “do outro lado”, que são criados com a gente, por algum motivo “vão pro outro lado” e a gente fica triste, né? Quando eles morrem, a família fica desesperada. Chega lá e aí é aquela discussão, foi, não foi. (...) Eu tinha um irmão, que na época ele tinha 22 anos, ele foi preso na Frei Caneca, que agora não existe mais, ele pegou acho que uns 4 anos de cadeia, aí teve uma rebelião lá e quando a gente fomos procurar ele, ele não estava mais lá. No local que a gente achava que o Estado tinha, é como que posso falar? A segurança que o Estado tinha que dar pra ele. Ele sumiu. Até hoje, vai fazer 24 anos e até hoje o Estado não deu onde ele tá? Cadê ele? Pergunto até hoje. A gente não sabe onde ele tá. Se tá vivo ou não. (Morador do Cantagalo)

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3.2 – O Caso João Hélio A mídia se apropria do “calor do momento” de acontecimentos e produz espetáculos que influenciam diretamente no debate público e na aprovação das leis. Um acontecimento, que tomaremos aqui como dispositivo disparador de análise, é o caso do assassinato do menino João Hélio. Tão divulgado na mídia e que influenciou diretamente o debate acerca do controle, penalização e criminalização do jovem pobre. “Barbárie contra a infância. Morte de menino de seis anos arrastado em carro roubado por bandidos causa comoção e revolta.” (O Globo, 09/02/2007, capa) Segundo o jornal, a tragédia provocou um recorde de comentários de internautas. Em 12 horas, mais de 2500 mensagens foram enviadas ao Globo Online, a maioria delas pedindo punição rigorosa dos responsáveis pelo crime e questionando a maioridade penal. Vejamos alguns desses comentários, publicados na versão impressa: O que vão dizer os nossos senhores da justiça e da legislação (...)? O que dizer de uma legislação que protege criminosos cruéis menores de idade (...)? (Andrelli Marcelli Oliveira – leitora) (O Globo, 09/02/2007, p. 11) Pensem bem: essa mãe, por cumprir a lei (...), foi massacrada. Espero que agora a lei exista para ser modificada (...). As nossas leis são do tempo que os bandidos roubavam mariola. (Ederval Gonçalves Santos – leitor) (O Globo, 09/02/2007, p. 11) Esses seres abomináveis ainda terão direito a banho de sol, futebol e visitas íntimas, isso se ficarem presos, não fugindo depois. Precisamos colocar esses bandidos trabalhando de 6h às 17h (...) (Gustavo Oberhofer – leitor) (O Globo, 09/02/2007, p. 12) Só há uma saída para as barbaridades que assolam o Rio. Pena de morte. Para bárbaros, só com penalidade máxima. Foi pego num flagrante ou mesmo confessou um crime bárbaro como este, pena de morte. (Sonia Duarte – leitora) (O Globo, 09/02/2007, p. 12) Senhores senadores, senhores deputados, dêem instrumentos aos nossos juízes para que possam ser mais severos. Precisamos de uma revisão constitucional (...) (Marta Grisólia – leitora) (O Globo, 10/02/2007, p. 16) Mudanças no judiciário já! Redução de maioridade já! Mesmo que estes monstros tivessem 10 anos. Pena de morte! (...) Direitos humanos existem apenas para proteger a marginalidade. (André de Oliveira – leitor) (O Globo, 10/02/2007, p. 16)

O título na página interna do jornal também reforça o discurso da impunidade, no que se refere ao tratamento diferenciado dado aos menores de 18 anos, previsto no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). 94

Menor acusado deve ficar detido só por 3 anos. O outro bandido, que tem 18 anos e confessou o crime, pode ser condenado a pena de 20 a 30 anos de prisão. Eles responderão por latrocínio (roubo seguido de morte). A pena de Diego varia entre 20 e 30 anos. O menor, no entanto, só poderá ficar detido por no máximo três anos, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o que reforça a sensação de impunidade nas pessoas que ficaram horrorizadas com o crime. (O Globo, 09/02/2007, p. 15) (Grifos nossos)

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A comoção despertada na sociedade, pela brutalidade e pela divulgação intensiva do caso, reabriu o debate sobre a diminuição da maioridade penal. No dia seguinte (10/02), O Globo publicou as declarações do governador Sérgio Cabral, do presidente Lula e de Ellen Gracie, presidente do Supremo Tribunal Federal. “Martírio de criança reabre debate sobre Leis mais duras. Cabral defende rediscussão da idade penal; Lula, CNBB e STF são contra.” (O Globo, 10/02/2007, capa) Outra imagem, com forte poder de comoção, foi a da carta da irmã do João Hélio, publicada na capa do jornal. Nessa carta, com letra de criança, ela chama o adolescente, que participou do assassinato do irmão, de monstro cruel e clama para que ele seja julgado como maior de idade. “Carta de Aline, irmã de João Hélio.” (O Globo, 12/02/2007, capa)

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Girando em torno deste caso, as reportagens de O Globo seguiram, quase diariamente, apontando para o clamor público por penas mais duras e mudança na legislação. No discurso dos jornais, observamos críticas ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que prevê a socioeducação, no lugar da pena. Segundo O Globo, o sistema é falho; “Faltam 3,4 mil vagas para deter menores infratores” (O Globo, 09/02/2007, capa) e é muito caro. “Menor infrator custa 28 vezes mais que aluno” (O Globo, 23/02/2007, capa). Assim, as matérias reforçam o clamor por repressão, controle e punição. Não são propostas alternativas para socializar, educar ou transformar esses jovens, modificar um sistema apontado pelo jornal como falho. Percebemos a crença de que tratam-se de irrecuperáveis e é preciso evitar que venham a cometer crimes novamente. Assim, reduzir a maioridade penal e condenar os jovens de 16, 14 e até 12 anos, seria uma forma de tirar do convívio social esses “monstros cruéis e sem coração” para servir de exemplo aos demais “potenciais criminosos”. Câmara apressa votação de lei mais rígida contra o crime. (O Globo, 09/02/2007, capa) Governadores pedem mais tempo de prisão para menor. (O Globo, 09/02/2007, capa) Câmara aumenta rigor com presos por crime hediondo. (O Globo, 09/02/2007, capa) Adulto que usar menor em crime terá punição maior. (O Globo, 09/02/2007, capa) Não dá para punir menor sem punir governantes. (O Globo, 09/02/2007, capa)

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Família de João critica declarações de Lula. (O Globo, 09/02/2007, capa) Preso por crime hediondo ficará mais tempo na cadeia. (O Globo, 08/03/2007, capa) Assalto revive pesadelo de João. (O Globo, 12/03/2007, capa) Cabral intervém em área do menor infrator. (O Globo, 17/03/2007, capa) Família de menor infrator vai receber bolsa no Rio. (O Globo, 18/03/2007, capa) Menor que matou João Hélio irá a regime fechado. (O Globo, 23/03/2007, capa) Redução da idade penal passa no primeiro teste do Congresso. (O Globo, 27/04/2007, capa) Governo se mobiliza para tentar impedir redução da idade penal. (O Globo, 28/04/2007, capa) Governo quer construir 187 presídios especiais. (O Globo, 09/02/2007, capa) Lula aprova presídios para jovens. (O Globo, 09/02/2007, capa)

O discurso sobre o potencial de periculosidade do criminoso atravessa a nossa história e saberes como a psiquiatria, a psicologia, a criminologia e a pedagogia. Esses saberem têm contribuído como ponto de apoio para a difusão e validação desses discursos. Fazendo um breve esboço de seu trajeto de trabalho, para responder à pergunta de Alexandre Fontana sobre o papel do intelectual e a relação saber-poder, na entrevista publicada com o título Verdade e Poder, Michel Foucault (1990) responde apresentando a questão do estatuto político da ciência e as funções ideológicas que se pode veicular. Foucault afirma que é mais fácil perceber os efeitos de poder em saberes como a psiquiatria e a economia política do que na física ou química, mas que estes se fazem potentes do mesmo modo. Esta questão foi posta em História da loucura (FOUCAULT, 1999d), tomando como foco o saber da psiquiatria e em Nascimento da Clínica (FOUCAULT, 1994), onde Foucault coloca em análise o saber da medicina. Se perguntarmos a uma ciência como a física teórica ou a química orgânica quais as suas relações com as estruturas políticas da sociedade, não estaremos colocando um problema muito complicado? Não será muito grande a exigência para uma explicação possível? Se, em contrapartida, tomarmos um saber como a psiquiatria, não será a questão muito mais fácil de ser resolvida porque o perfil epistemológico da psiquiatria é pouco definido, e porque a prática psiquiátrica está ligada a uma série de instituições, de exigências econômicas imediatas e de urgências políticas de regulamentações sociais? (FOUCAULT, 1990, p. 1)

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A partir desta concepção, o poder deixa de ser considerado apenas de forma negativa, repressiva e passa a ser identificado, também, segundo seu aspecto produtivo, ou seja, [...] temos que deixar de descrever sempre os efeitos do poder em termos negativos: ele “exclui”, “reprime", “recalca”, “censura”, “abstrai”, “mascara”, “esconde”. Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção. (FOUCAULT, 1999a, p. 177)

Na frase “o indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção” podemos encontrar a constituição de um saber sobre o indivíduo, a partir do poder sobre ele exercido, não deixando, entretanto, de considerar que o indivíduo faz parte desta produção. Estabelecendo uma visibilidade sobre os indivíduos nos quais é exercido, o poder efetua um controle normalizador, ou seja, qualifica, classifica e pune. Diz Foucault: No coração dos processos de disciplina, ele manifesta a sujeição dos que são percebidos como objetos e a objetivação dos que se sujeitam. A superposição das relações de poder e das de saber assume no exame todo o seu brilho visível. (Ibid., p. 154)

Cristina Rauter (2003), lançando mão da compreensão de Foucault acerca da produtividade do poder, nos mostra que os discursos médicos e psiquiátricos influenciam diretamente na produção da noção de periculosidade. Segundo ela: Podemos compreender os saberes enquanto partes de estratégias de poder. Neste sentido, as ciências humanas (psicologia, psiquiatria, criminologia e outras) surgem historicamente como ponto de apoio para novas técnicas de gestão das massas humanas, capazes de controlá-las, fixá-las e de produzir indivíduos úteis do ponto de vista da produção e dóceis do ponto de vista político. (RAUTER, 2003, p. 15)

Segundo a autora, os juristas brasileiros incorporaram a noção de periculosidade ao Código Penal de 1940, influenciados diretamente pela tese do médico Cesare Lombroso (1835-1909) de que a anormalidade do criminoso se expressa em características físicas, e pela tese do criminologista Enrico Ferri (1856 – 1929) de que o criminoso é um anormal moral e de que o crime é um sintoma dessa anormalidade, transmitida hereditariamente e proveniente de uma classe inferior. Um fracasso evolutivo, “uma anormalidade no terreno da degeneração, das raças e do temperamento”. (RAUTER, 2003, p. 37)

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Logo em seguida, a criminologia psicanalítica passará a perceber as patologias mentais relacionadas ao crime como produto da interação dos fatores hereditários com as causas ambientais. Segundo esse ponto de vista, somente através de uma política higienista de controle e vigilância dos hábitos e das famílias seria possível combater o crime.17 A discussão sobre as causas sociais do crime vem, desde então, construindo o laço entre pobreza e crime. O laço entre pobreza e crime estará sempre presente, mas articulado de duas formas distintas. Na primeira delas, a miséria, ao gerar um mal-estar físico, gera também um mal-estar moral, que conduz ao crime. Ao lado da desnutrição, das más condições higiênicas, a pobreza gera também o enfraquecimento dos hábitos, favorecendo a perpetuação dos vícios, das taras. Reconhecemos nestas idéias o discurso medico-higiênico e o discurso da degeneração. A miséria gera doenças somáticas lado a lado com anomalias morais. (Ibid., p. 61)

A pobreza é vista, então, como decorrente de características morais e mentais de um grupo de indivíduos, dentre elas, a incapacidade ou indolência para o trabalho. Como uma doença causadora do crime. Desse modo, o olhar dos criminólogos se volta para os hábitos de vida e para os costumes brasileiros, como o carnaval, os sambas e a miscigenação. Essa tese é reproduzida por Nina Rodrigues, que afirma: “a criminalidade do mestiço brasileiro [está] ligada às más condições antropológicas da mestiçagem no Brasil” (RODRIGUES, 1957, p. 158). O combate ao crime, além de ser tratado como questão médica, passa pela necessidade de uma reforma social. A concepção de periculosidade, embora tenha nascido há alguns séculos com a doutrina positivista, permanece legitimada por outras forças que não mais o formato e tamanho do crânio dos criminosos de Lombroso, por exemplo. Atualmente, reafirma-se que existe a possibilidade de prever comportamentos, seja por meio de testes psicológicos, de antecedentes criminais, das localidades onde as pessoas habitam, do seu trabalho, dentre tantos outros aparatos criados que, muitas vezes sob a alcunha da cientificidade – pois formam a amálgama com as moralidades – ganham legitimidade e atuam diretamente nas formas de vida que são criadas como sendo portadoras de periculosidade. Trata-se de um efeito bem concreto, que movimenta relações polarizando vítimas e agressores potenciais de maneira naturalizada. (MELÍCIO, GERALDINI e BICALHO, 2012, p. 610)

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Sobre o assunto consultar Costa, 1983.

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Coimbra, em seu texto Direitos humanos e criminalização da pobreza, mostra como: [...] desde o final do século XIX, já se encontravam presentes nas elites brasileiras as subjetividades que constituem o dispositivo da periculosidade. (...) esse dispositivo vai afirmar que tão importante quanto o que um indivíduo fez, é o que ele poderá vir a fazer. É o controle das virtualidades; importante e eficaz instrumento de desqualificação e menorização que institui certas essências, certas identidades. Afirma-se, então, que dependendo de uma certa natureza (pobre, negro, semi-alfabetizado, morador de periferia, etc etc etc) poder-se-á vir a cometer atos perigosos, poder-se-á entrar para o caminho da criminalidade. (COIMBRA, 2006, p. 2)

Observamos que a criminalização do jovem preto e pobre traz a herança dessas concepções – do discurso médico higiênico e do discurso da degeneração. Um exemplo é a fala do governador Sérgio Cabral quando questionado sobre a legalização do aborto. Ele afirma que é favorável ao aborto porque, segundo ele, as favelas, que ele compara a Zâmbia e Gabão, países africanos extremamente pobres e desiguais, são fábricas de produzir marginais. Sou cristão, católico, mas que visão é essa? Esses atrasos são muito graves. Não vejo a classe política discutir isso. Fico muito aflito. Tem tudo a ver com violência. Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal. O Estado não dá conta. (Sérgio Cabral – Governador do Estado do Rio de Janeiro) (GLOBO.COM, 2007)

Em dezembro de 2007, O Globo publicou uma série de reportagens a partir de uma pesquisa feita por três repórteres nos arquivos de processos abertos em 2000, na Vara da Infância e Juventude do Rio, com o titulo “Dimenor”. Vejamos, como exemplo dessas permanências históricas, os relatos de uma psicóloga e de uma assistente social, publicados no primeiro dia desta série. Relato de uma psicóloga sobre um menor detido: “F. Apresenta histórico de vida totalmente desprovido do básico para uma vida digna. Não se trata de pobreza, mas sim da miséria da miséria. O jovem precisa de limites, mas também de afeto. Solicitamos que seja acompanhado por acreditarmos ser possível a mudança” (O Globo 02/12/2007, p. 24) (Grifo nosso) Assistente Social, sobre uma menor: “P. relata que foi apreendida com a genitora devido à existência de drogas em sua casa. A genitora foi condenada ao cumprimento de pena restritiva de liberdade; encontra-se em uma delegacia. P. relata que tal fato deixou a família muito mobilizada, especialmente seu pai (...) Disse-nos que matriculou-se numa escola, contudo não pôde continuar freqüentando as aulas devido à periculosidade do local.” (O Globo, 02/12/2007, p. 24) (Grifo nosso)

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3.3 – Discurso jurídico: medidas socioeducativas e a idade penal Através dos séculos, práticas de atendimento às crianças e adolescentes foram produzidas, sempre legitimadas pelas referências de sentidos dominantes em cada época. Pensando como os modos de atuar – e os discursos sobre a “privação da liberdade” de crianças e adolescentes – foram se instituindo por meio de diversos jogos de verdade produzidos em diferentes épocas, privilegiando as relações que foram estabelecidas entre os referidos discursos, chegamos às noções que temos hoje. Foucault desenvolve, em várias de suas teses, o método genealógico. Ele parte de uma perspectiva da genealogia nietzschiana, entendendo que não há um sentido na história. Em seu pensamento, a genealogia não tem por fim encontrar as raízes de nossa identidade mas, ao contrário, se obstina em dissipá-las, em fazer aparecer as suas descontinuidades. Esse método não deixa de lado a sociedade, a economia, etc., mas estrutura a pesquisa histórica de outra maneira; não os séculos, os povos, nem as civilizações, mas as práticas; as tramas que são narradas. Trata-se da história das práticas, nas quais os homens construíram as suas verdades e as lutas em torno dessas verdades. Coimbra e Nascimento, tomando o pensamento de Guattari, nos alertam: o que se pensa e espera da realidade não existe em si; é constantemente fabricado. Ao entender e problematizar as forças que estão no mundo e os modos como elas nos atravessam e nos constituem, podemos pensar como se dá, hoje, a gestão das vidas, em especial as dos jovens. Que subjetividades vêm sendo produzidas hegemonicamente como técnicas de governo, de tutela sobre as vidas? Quais têm sido construídas para determinados segmentos como os marginalizados, os desqualificados, os inferiores? (COIMBRA e NASCIMENTO, 2009, p. 42)

A contextualização histórica nos permite ultrapassar a visão simplista da internação de adolescentes e crianças como prática isolada. São inúmeros os trabalhos e pesquisas que descrevem a trajetória histórica e jurídica das políticas de atendimento destinadas a esse público. O que buscamos é pensar as práticas, segundo as quais se constroem esses sujeitos: “criança”; “adolescente”; “menor infrator”. Utilizando-nos da análise dos discursos, das práticas de poder e da produção de verdades, que estabilizam as objetividades na história. Energia fundamental na constituição do mercado de mão-de-obra, as crianças e os adolescentes foram sendo, ao longo da história, objeto permanente do poder punitivo e do encarceramento.

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A partir dos séculos XVII e XVIII, com a constituição da prisão como pena, descrita por Michel Foucault (1999a) em Vigiar e Punir, o crime passa a ser “tratado” pela lógica penal e um grande contingente de crianças e adolescentes passa a ser internado. Seja em reformatórios, em colégio internos, seminários católicos, ou mesmo na prisão. A internação, o controle e a exclusão social vão se construindo desde então. No Brasil, as crianças e jovens, filhos de escravos nascidos e criados nas fazendas escravocratas, eram uma lucrativa mercadoria. Valiam mais no mercado de escravos por dois motivos principais: eram mais adaptados ao trabalho, se comparados aos pretos trazidos da África e eram vendidos sem prestação de contas ao governo, principalmente a partir da lei Eusébio de Queirós (1850), que proibiu o tráfico de escravos. Com a Lei do Ventre Livre de 1871 (LEIS HISTÓRICAS, s/d), os filhos de escravas passaram a nascer “livres” e ficavam sob o poder do senhor de suas mães até completarem oito anos. Chegando nessa idade, o senhor tinha duas opções: receber uma indenização do estado, de 600$000 (seiscentos mil réis) ou se utilizar dos serviços do menor até que esse completasse 21 anos. Segundo Acácio Augusto (2013), frente aos problemas com fugas e a alta taxa de mortalidade, era mais lucrativo para os senhores receber a indenização. Isso quando não entregavam os filhos das escravas, ainda bebês, às “casas dos expostos”18 e alugavam suas mães como amas de leite. O governo passou a receber e ter que “dar destino” a um enorme contingente de menores, que escapavam do abandono e da morte. Esses passaram a ser encaminhados às casas de caridade autorizadas pelo governo, ou a pessoas a quem os juízes de órfãos encarregassem da educação dos ditos menores. Segundo a Lei do Ventre Livre, Art. 2o §1o, “as ditas associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até a idade de 21 anos completos, e poderão alugar esses serviços.” Sob influência da colonização europeia, envolta por discursos moralistas e cristãos, as iniciativas de atendimento às crianças e adolescentes, inicialmente, assumiram um caráter religioso, católico, apostólico e jesuítico, sustentadas por caridade, esmolas, doações e por meio da política cartorial, onde o Estado permitia à Igreja Católica o sustento, a partir da exploração de hospitais, escolas, cemitérios, etc.

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“Em 1738, por iniciativa pessoal do comerciante português Romão de Mattos Duarte, foi fundada a Casa da Roda, depois chamada de Casa dos Expostos (...) A Roda, engenhosa engrenagem para recolher as crianças deixadas anonimamente por mães indigentes e culposas, funcionou até 1938. Com a instituição do Juizado de Menores, ela perdeu sua finalidade. (...) Ao longo de sua existência podemos estimar que mais de 100.000 crianças passaram por ali”. (SANTA CASA, s/d)

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O termo “criança desvalida” é usado para definir as crianças pobres nesse período, sendo a pobreza associada à falta de moral. As crianças pobres precisavam ser afastadas de suas famílias, que eram consideradas má influência. Sendo recolhidas, muitas vezes, entregues pelos próprios pais, e internadas para serem “educadas” pelos religiosos em internatos/fábricas/escolas rurais onde, sob a lógica de que para nada mais serviriam, eram exploradas como mão-de-obra barata ou escrava. A primeira definição, em lei, das fases da infância para efeito de responsabilidade penal, aconteceu no Código Penal de 1890, que isentava da criminalidade os menores de 9 anos. As crianças entre 9 e 14 anos que não provassem o discernimento eram recolhidas em casas de correção, até completarem 17 anos, mas a grande maioria dos jovens entre 14 e 21 anos eram encarcerados nas mesmas instituições que os adultos. Apenas no século XX, um período de forte industrialização e urbanização, que demandava formar mão-de-obra “dócil” e também reprimir e controlar uma grande massa de miseráveis, criou-se o primeiro Código de Menores, em 1927. O Código de Mello Mattos, influenciado pela filosofia higienista, torna obrigação do Estado: educar, proteger e conter o sujeito que, agora, é chamado de “menor”. Ao mesmo tempo, institui o Tribunal de Menores. Já com uma lógica penal atravessando as práticas assistenciais, em 1930 é criado o Serviço de Assistência aos Menores (SAM) e o Estado constrói diversos reformatórios e casas de correção que, em sua maioria, utilizavam o ensino para o trabalho manual. Três décadas depois, é criada a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), em 1964, implementada pela Política Nacional do Bem-Estar do Menor que não se diferencia, em grandes aspectos, do que já tínhamos com o SAM. A primeira atualização do Código de Mello Mattos aconteceu somente em 1979, em plena ditadura militar, como reflexo das concepções da Doutrina de Situação Irregular. A Lei 6.697/79 definia por Situação Irregular, basicamente, a pobreza. E a categoria “menor” toma sua forma e se propaga com caráter discriminatório: separando os menores “carentes” e “abandonados” dos “menores infratores”. Essa concepção permaneceu, praticamente sem mudanças, durante quase todo o século XX. As práticas seguiam a lógica penal, de contenção e repressão, especificamente quando dirigidas aos “infratores”, que eram mantidos em instituições semelhantes aos presídios dos adultos, apenas separados pela idade. Os “menores carentes e/ou abandonados”, que não haviam sido pegos cometendo algum delito, acabavam internados também. A lógica que prevalecia era a do modelo assistencialista de reclusão, que privilegiava a internação como prática hegemônica no atendimento aos menores em “situação irregular”. 103

Com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído pela Lei 8.069 de 13 de julho de 1990, inaugura-se a Doutrina de Proteção Integral, em vigor até os dias de hoje. O discurso contemporâneo define a criança e o adolescente pela idade, respectivamente: com menos de 12 anos e entre 13 e 18 anos. O direito se pretende universal nesse discurso jurídico-político e, sendo assim, afirma que a criança e o adolescente, a partir do ECA, serão considerados “sujeitos de direitos”. Existem os que defendem a tese de que as medidas socioeducativas não possuem caráter de pena. E, sem dúvida, é possível alcançar um período onde não seja mais hegemônica a prática do encarceramento de crianças e jovens. No entanto, a redação do ECA é permeada por princípios do direito penal e, embora as penas descritas sejam chamadas de medidas socioeducativas, o dito “ato infracional” nada mais é do que a conduta descrita em lei como crime ou contravenção penal. Um grande avanço do ECA é a definição da inimputabilidade dos menores de 18 anos e dos limites para o exercício da intervenção punitiva do Estado. Mas, para as crianças e jovens pobres, a solução ainda está na segregação, no asilo, na internação. Quando estão enquadrados como “infratores” resta a vigilância e a privação da liberdade que “deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração.” (ECA, 1990, art. 123) Quando são menores de 12 anos, infratores ou não, e adolescentes que não foram pegos cometendo ato infracional, mas que estão “na impossibilidade de permanência na família natural”, a internação passa a se justificar como “programa de proteção”. Com o § 2o da Lei no 12.010 de 3 de agosto de 2009 (atualização do ECA), alterou-se a redação do artigo 90, e “abrigo” passou a ser chamado de “acolhimento institucional”. Analisando estes recortes históricos e apontando as mudanças nas concepções e práticas, observamos que: ⇒

a moral/cristã, dos séculos XVII e XVIII, justificava a internação das “crianças

desvalidas” para criar homens de bem; ⇒

a filosofia higienista, do século XX, justificava a internação dos “menores”

para formar os trabalhadores “dóceis”; ⇒

a doutrina de situação irregular do Código Mello Mattos, de 1927, justificava a

internação em asilos dos “carentes” para serem protegidos e dos “infratores” para serem punidos; ⇒

o ECA justifica a internação como medida protetiva ou medida socioeducativa 104

dos “adolescentes infratores”, para formar o “cidadão participativo”, incluído socialmente. Fazendo um retrato do presente, mostramos que as leis e práticas segundo as quais o sujeito moderno é constituído como criança, adolescente ou menor infrator, são atravessadas por relações de poder e produção de verdades que estabilizam as objetividades ao longo da história. Vemos que, independente do tempo e das mudanças de perspectivas e de nomenclaturas criadas para definir a criança ou o adolescente pobre, o dispositivo terminal sempre foi, e continua sendo, quando não a morte, a prisão. Seja sob o regime democrático ou ditatorial, crianças e jovens foram e são alvos privilegiados das políticas assistenciais e inquilinos regulares das instituições austeras, que trocam de nomes ao longo do tempo, mas não deixam de ser prisões. (AUGUSTO, 2013, p. 41)

Para Foucault, o sistema penal é paradoxal, ele próprio produz a delinquência. A hipótese de Foucault é que a prisão surge como um projeto de transformação do indivíduo. Diferente do suplício, que atuava no corpo do supliciado, impondo o castigo físico ou a morte como exemplo para os outros, a prisão “devia ser um instrumento tão aperfeiçoado quanto a escola, a caserna ou o hospital” (FOUCAULT, 1990, p. 131), que produzisse sujeitos dóceis, úteis e funcionais economicamente. O fracasso desse projeto é imediato. “Longe de transformar os criminosos em gente honesta, serve para fabricar novos criminosos ou para afundá-los ainda mais na criminalidade” (FOUCAULT, 1990, p. 131). [...] a história do encarceramento não segue uma cronologia ao longo da qual se sucedessem logicamente: o estabelecimento de uma penalidade de detenção, depois o registro do seu fracasso; depois a lenta subida dos projetos de reforma, que chegariam à definição mais ou menos coerente de técnica penitenciária; depois a implantação deste projeto; enfim a constatação de seus sucessos e fracassos. Houve na realidade uma superposição ou em todo caso outra distribuição destes elementos. E do mesmo modo que o projeto de uma técnica corretiva acompanhou o princípio de uma detenção punitiva, a crítica da prisão e de seus métodos aparece muito cedo, nestes mesmos anos de 1820-1845; ela aliás se fixa num certo número de formulações que – a não ser pelos números – se repetem hoje sem quase mudança nenhuma. – As prisões não diminuem a taxa de criminalidade [...] – A detenção provoca a reincidência [...] – A prisão não pode deixar de fabricar delinqüentes [...] – A prisão torna possível, ou melhor, favorece a organização de um meio de delinquentes, solidários entre si, hierarquizados, prontos para todas as cumplicidades futuras [...] – As condições dadas aos detentos condenam-nos fatalmente à reincidência [...] – Enfim a prisão fabrica indiretamente delinquentes, ao fazer cair na miséria a família do detento [...]

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Palavra por palavra, de um século a outro, as mesmas proposições fundamentais se repetem [...] (FOUCAULT, 1999a, p . 234-238)

Foucault propõe inverter este problema e pergunta: qual a utilização estratégica daquilo que surgiu como um inconveniente, um fracasso? Vamos admitir que a lei se destine a definir infrações, que o aparelho penal tenha como função reduzi-las e que a prisão seja o instrumento desta repressão; temos então que passar um atestado de fracasso [...] Mas talvez devamos inverter o problema e nos perguntar para que serve o fracasso da prisão; qual é a utilidade desses diversos fenômenos que a crítica, continuamente denuncia: manutenção da delinquência, indução em reincidência, transformação do delinquente ocasional em delinquente habitual, organização de um meio fechado de delinquência [...] Em resumo, a penalidade não reprime pura e simplesmente as ilegalidades; ela as diferenciaria, faria sua economia geral [...] toda a gestão diferencial das ilegalidades por intermédio da penalidade faz parte desses mecanismos de dominação [...] O fracasso da prisão pode sem dúvida ser compreendido a partir daí. (Ibid., p . 239)

Foucault mostra que esse fracasso é apenas aparente, pois a prisão contribui para estabelecer uma ilegalidade, visível, marcada, irredutível, ela produz o delinquente – rebelde e útil ao mesmo tempo, um sujeito específico. O atestado de que a prisão fracassa em reduzir os crimes deve talvez ser substituído pela hipótese de que a prisão conseguiu muito bem produzir a delinquência, tipo especificado, forma política ou economicamente menos perigosa – talvez até utilizável – de ilegalidade; produzir os delinquentes, meio aparentemente marginalizado, mas centralmente controlado. (Ibid., p. 244)

Com a sociedade industrial, como era possível proteger a riqueza centralizada nas mãos da burguesia? Por meio de uma ofensiva de moralização e cristianização dos operários. “A constituição do povo como um sujeito moral que se diferenciasse dos delinquentes, mostrando-os como perigosos não apenas para os ricos, mas também para os pobres, mostrando-os carregados de todos os vícios e responsáveis pelos maiores perigos.” (FOUCAULT, 1990, p.133) Desse modo, a delinquência não é produzida, forjada, pelas promiscuidades ambientais, mas “porque a delinquência é o efeito de um hiato, de produção árdua, difícil, entre ela e o que seria justamente seu fundo diferencial comum: as ilegalidades populares.” (CONDE, 2011, p. 158) A prisão foi, então, o grande instrumento de recrutamento. “A partir do momento que alguém entrava na prisão se acionava um mecanismo que o tornava infame, e quando saía, não podia fazer nada senão voltar a ser delinquente.” (FOUCAULT, 1990, p. 133) 106

Eis aí posto o curioso enigma que, desde a metade do século XIX, não deixou de acompanhar o discurso sobre a reforma dos aparelhos carcerários. Se sabemos que a prisão fracassa em sua função normalizadora, transformadora, reintegradora, por que ela nunca deixou de se constituir como principal alternativa em matéria penal? A essa pergunta, nos responde Loïc Wacquant. Ao invés do adestramento (treinamento ou domesticação), destinado a moldar “corpos dóceis e produtivos, postulado por Foucault, a prisão contemporânea é direcionada para uma neutralização brutal, uma retribuição automática e a um simples armazenamento – por defeito, se não for por algo intencional. Se, hoje em dia, há “engenheiros da consciência” e “ortopedistas da individualidade” trabalhando na rede de poderes disciplinares, certamente eles não são empregados pelos departamentos correcionais. (WACQUANT, 2012, p. 22) (Grifo nosso)

3.4 – Os pityboys Também são repetidos os casos de violência gerados por jovens da classe média e alta brasileira, mas a sociedade encara o tema com diferenciação pela origem social. Inclusive, nas matérias dos jornais, o tratamentos dado pela polícia, pelo judiciário e pela opinião pública tomam tons diferentes: “Rico é jovem, pobre é bandido”. Isso não significa que pessoas da classe média e alta que, em sua maioria, tiveram acesso à educação, não cometem crimes, mas, sim, que eles possuem melhores meios para se defender. E quando presos, têm tratamento diferenciado. Significa, sim, a existência de um sistema jurídico e penitenciário baseado em classe e cor, que trata de forma desigual, penaliza e discrimina os jovens pobres e pretos. Um exemplo é o caso do Índio Galdino, onde os culpados (jovens da elite do Distrito Federal) tiveram tratamento diferenciado antes, durante e depois do julgamento, ficando, inclusive, em cela especial, na prisão. Como conta a promotora do caso, 15 anos após o crime, fazendo uma análise do processo de cumprimento da pena, em reportagem publicada no dia 20 de abril de 2012, no site da Rede Record: entre as regalias que os jovens receberam, foi desabilitada uma biblioteca, na prisão, para acolher os quatro, com a “desculpa” de que corriam risco de vida por serem filhos de juízes. No local, havia chuveiro quente e vaso sanitário, raros em penitenciárias. Mesmo respondendo por crime hediondo, conseguiram, antes do julgamento, permissão para estudar e trabalhar. Segundo a promotora, esses benefícios não se deviam apenas à condição financeira, mas principalmente devido ao poder que os criminosos tinham dentro do judiciário. (R7 NOTÍCIAS, 2012)

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Imagem 43

Vera Malaguti Batista (s/d), em entrevista para o portal da internet Amai-vos, discute a questão da criminalização da pobreza apontando a diferença com que o sistema trata os jovens, dependendo da origem social, étnica e do local de moradia. Às vezes, há uma falsa posição que relaciona a questão criminal com a miséria e a pobreza. Os mais conservadores fazem essa associação, e isso fica equacionado de uma forma quase ofensiva à pobreza. É como se a pobreza produzisse a criminalidade. Quem trabalha na perspectiva da criminologia crítica costuma dizer que a pobreza é criminalizada. Abordo isso na minha dissertação de mestrado que foi publicada com o título Difíceis ganhos fáceis: droga e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. A pesquisa foi feita por meio da análise histórica dos processos em que adolescentes são presos por problemas relacionados às drogas e mostrou a diferença com que o sistema tratava os meninos dependendo da origem social, étnica e do local de moradia. Uma das conclusões a que cheguei é que a diferenciação no tratamento não está relacionada à droga em si, mas aos meninos. Essa seria uma estratégia de controle dessa juventude popular. A nossa política criminal de drogas é só mais uma parte de uma história de criminalizações. Capoeira, samba e funk no Rio de Janeiro são manifestações culturais criadas nas favelas sobre as quais é lançado um olhar preconceituoso e criminalizante. (BATISTA, s/d)

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Observando algumas manchetes de O Globo sobre crimes cometidos por jovens ricos, percebemos um discurso muito diferente do produzido sobre os jovens pobres. Para começar, eles não são chamados de bandidos, quando muito, de pitboys. A mídia é proibida de exibir a imagem, mesmo quando eles já têm mais de 18 anos. São usadas as seguintes denominações: “crianças”, “pitboys”, “jovens”, “estudantes”, “filho de fulano”, “jovens da Zona Sul”, “universitários”. Não é justo que essas crianças fiquem presas. (O Globo, 26/06/2007, capa) (Grifo nosso) Pitboys brigaram na rua após agressão. (O Globo, 26/06/2007, capa) (Grifo nosso) Que fim levou. Os jovens que queimaram o índio Galdino tiveram privilégio no cumprimento das penas (O Globo, 27/06/2007, capa) (Grifo nosso) Justiça amigona. (O Globo, 29/06/2007, p. 7) (Grifo nosso) Pitboys agridem salva-vidas em Copacabana. (O Globo, 02/07/2007, capa) (Grifo nosso) Pitboys da Barra têm dia de gari. (O Globo, 16/11/2007, capa) (Grifo nosso) Mídia proibida de exibir agressores, estudantes detidos por agressão a prostitutas na Barra. (O Globo, 10/01/2008, capa) (Grifo nosso) Filho de promotora depõe com privilégio. (O Globo, 02/07/2008, capa) (Grifo nosso) Jovens da Zona Sul faziam tráfico de drogas e armas. (O Globo, 02/02/2012, capa) (Grifo nosso) Jovem furta ônibus e vai da Barra a Botafogo. (O Globo, 19/09/2008, capa) (Grifo nosso) Filho de Eike atropela e mata ciclista. (O Globo, 19/03/2012, capa) (Grifo nosso) Neste país só pobre ou favelado que fica preso. Eu sou rica e influente. (O Globo, 22/02/2013, capa) (Grifo nosso) Maioria de universitários no rolezinho do Leblon. (O Globo, 28/01/2014, capa) (Grifo nosso)

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CAPÍTULO 4 – O DISCURSO DA PAZ E A IMPLANTAÇÃO DAS UPPs As declarações enfáticas de guerra aparecem em 2007 e no primeiro semestre de 2008. Em fins de 2008, começamos a perceber a emergência do discurso de “ocupação” dando início à implantação do que, depois, tomou forma no “Projeto de Pacificação”, implementado a partir de uma fusão do modelo de ocupação de Medelín com as diretrizes do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania – PRONASCI, programa instituído pelo governo federal, que tem como “marca fundamental o enfrentamento da criminalidade, da violência e da sensação de insegurança, numa junção de políticas de segurança com ações sociais.” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2010) Art. 1o Fica instituído o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania – PRONASCI, a ser executado pela União, por meio da articulação dos órgãos federais, em regime de cooperação com Estados, Distrito Federal e Municípios e com a participação das famílias e da comunidade, mediante programas, projetos e ações de assistência técnica e financeira e mobilização social, visando à melhoria da segurança pública. (Ibid.)

O governo do Estado começou a anunciar a proposta de instituir polícias comunitárias em favelas, principalmente na capital do estado, que passariam a ser ocupadas de forma permanente por policiais. Essa proposta não foi uma inovação. No Rio de Janeiro, já havia sido experimentada, na forma do GPAE (Grupamento de Policiamento de Áreas Especiais), implantado em 2000, durante o governo de Anthony Garotinho, no Complexo CantagaloPavão-Pavãozinho, se espalhando, nos anos seguintes, pelos morros da Babilônia e Chapéu Mangueira, Providência, Gardênia Azul, Rio das Pedras (na cidade do Rio de Janeiro) e Cavalão e Morro do Estado (em Niterói). Uma experiência que, inicialmente, foi vista como bem sucedida, mas que, com o passar dos anos, graças aos casos de corrupção da polícia e à falta de investimento público, foi considerada falida pelos próprios gestores. Marcelo Itagiba, delegado da Polícia Federal e ex-deputado federal, afirma: Um dos principais obstáculos com os GPAEs foi o desgaste do contingente das unidades. A polícia começa tomando conta, mas, depois de um tempo de convivência entre os oficiais e a comunidade, ela também se relaciona com elementos do mal e pode haver encontro de interesses (corrupção da polícia). Por isso, é preciso manter um efetivo eficiente, com permanente fiscalização e rotatividade de policiais. (Marcelo Itagiba – secretário de Segurança durante o Governo Rosinha Garotinho, 2003-2006) (JORNAL DO BRASIL, 19/12/2009)

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O fracasso do modelo de policiamento GPAE é apontado pelo jornal O Globo, na capa do dia 16 de novembro de 2008: “PMs ignoram o tráfico nas favelas do Rio.” (O Globo, Rio, 16/11/2008, capa.) Percebemos a semelhança dos discursos e a crítica ao fracasso do modelo GPAE na reportagem “Policiamento em favelas – história de fracasso. Números mostram que não deu certo: falta de recursos condena PMs à ineficiência ou à cumplicidade” (O Globo, Rio, 16/11/2008, p. 18). Em entrevista ao jornal, o antropólogo Luiz Eduardo Soares, secretário de Segurança Pública do RJ (1999-2000) durante o governo Anthony Garotinho, e Secretário Nacional de Segurança Pública no governo Lula, entre janeiro e outubro de 2003, corrobora a crítica dizendo: O projeto original do GPAE previa unidades com quase duzentos policiais treinados e motivados. É o caso do GPAE do Cantagalo, que conseguiu reduzir a zero o número de homicídios nas comunidades do Pavãopavãozinho e Cantagalo. Hoje, um GPAE da região funciona com mais de uma dúzia de PMs... essa é uma situação grave, onde os PMS são desvalorizados como profissionais e como pessoas. Não me surpreende que o número de apreensões feitas por policiais dessas unidades seja tão pequeno. Que estrutura esse policial tem para desenvolver seu trabalho? Num quadro desses a corrupção passa a ser um imperativo para a sobrevivência. (Luiz Eduardo Soares – antropólogo) (O Globo, Rio, 16/11/2008, p. 18)

4.1 – O Morro Dona Marta: favela vitrine Antes da “ocupação” do morro Dona Marta, predominaram em O Globo, notícias sobre intervenções da polícia, roubos e furtos de carros no entorno da favela: PM apreende 10 explosivos em cemitério. Objetivo seria usar artefatos enterrados no São João Batista em ataques a patrulhas e cabines da polícia. (O Globo, 22/03/2007, p. 16) Um bonde chamado Dona Marta. Um policial reforça a segurança no plano inclinado do Morro Dona Marta, na Zona Sul. (O Globo, 29/05/2007, capa) Turistas assaltados na subida do corcovado. (O Globo, 09/09/2007, p. 27) Rombo no arsenal do tráfico. Polícia estoura paiol no Morro Dona Marta, tiroteio assusta moradores e afeta escolas. (O Globo, 04/10/2007, capa) Roubos de carros mais violentos. (O Globo, 06/01/2008, p. 15) Trocas de tiros entre bandidos e policiais no Dona Marta leva pânico a moradores. (O Globo, 28/05/2008, capa) Violência deixa vazia creche no Dona Marta. Pais temem matricular os filhos por causa dos tiroteios na favela; há apenas 30 crianças inscritas para 150 vagas. (O Globo, 26/10/2008, p. 35)

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Em 19 de novembro de 2008, a “Polícia ocupa o morro Dona Marta” (O Globo, 20/11/2008, p. 17), notícia veiculada em página interna do jornal, não aparecendo na capa. Participaram da ocupação 130 policiais militares, equipes da CIC (Companhia Independente de Cães) e policiais do BOPE. Foram usados dois helicópteros da PM. Aqui, observa-se um discurso diferente. Não houve mortos e a proposta foi manter o morro ocupado por tempo indeterminado. O discurso da ocupação permanente, com o argumento de abrir caminho para os serviços públicos, também foi reforçado pelo jornal. Segundo o entrevistado tenente-coronel Albuquerque: A ordem do comando da PM é manter o morro ocupado por tempo indeterminado. Com a polícia na comunidade, equipes de fornecimento de água, energia e limpeza urbana, entre outros serviços, vão poder trabalhar com tranquilidade. (Albuquerque – segundo tenente-coronel da PM) (O GLOBO, 20/11/2008, p. 17)

Para desvincular o novo projeto de ocupação permanente, que começava a ser construído, do projeto do GPAE, criticado nos últimos dias pelo jornal, o governador Sérgio Cabral reforçou o discurso de que a maior diferença, entre as propostas, é que o projeto do governo atual, inspirado no projeto de Medelín, não se resume à ocupação militar, haveria, também, a implantação de serviços como: educação, cultura, creches, esportes etc.; além de obras de infraestrutura e serviços públicos como: saneamento, asfalto, iluminação, limpeza etc. Outra medida adotada pelo governador, para reforçar a diferença entre os projetos e produzir credibilidade, foi a exoneração, no mesmo dia da ocupação do Dona Marta, do comandante do GPAE no morro do Cantagalo. “Comandante do GPAE do Cantagalo é exonerado. Unidade policial, instalada em morro de Ipanema, teve fraco desempenho, com apenas 2 apreensões em dez meses.” (O Globo, Rio, 19/11/2008, p. 19) Em 27 de novembro, O Globo publicou uma matéria de capa sobre a favela Tavares Bastos onde, desde 2000, havia sido instalada a sede do BOPE. “A paz que incha a favela. Pacificada pelo BOPE, a Favela Tavares Bastos atrai cada vez mais gente e cresce no parque Guinle” (O Globo, Rio, 27/11/2008, capa). Essa notícia aparece como uma contrapartida do jornal às críticas feitas ao GPAE, que estava sendo comparado às propostas do atual governo. Foi a emergência de um discurso oposto ao que vimos até então. A palavra “pacificação” aparece pela primeira vez e o discurso da paz entra em cena com força total.

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Com o Dona Marta ocupado há 10 dias e 120 policiais instalados em um prédio que estava destinado a ser uma creche, o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, em visita à favela, recebeu denúncias sobre a truculência policial e a ocupação policial do espaço da creche, mas não recuou. “Unidade da PM em prédio de creche gera protestos no Morro Dona Marta. Secretário de Segurança ouve queixa de moradores, mas mantém decisão.” (O Globo, Rio, 28/11/2008, p. 15) Ele respondeu aos moradores explicando o que é o policiamento comunitário e, apesar de ainda não ter um nome específico, já aponta para o que, futuramente, se batizaria de UPP (Unidade de Polícia Pacificadora). A creche nunca funcionou aqui por causa do tráfico. Vamos criar uma nova maneira de policiamento comunitário, com uma nova nomenclatura. Segurança pública não é somente ações policiais. Precisamos que o estado entre com os serviços. É importante que as pessoas vivam com dignidade (...) Queremos um policiamento modelo e escolhemos o Dona Marta porque a comunidade já tem uma presença forte do estado. Será um policiamento diferente. Os policiais já estão sendo treinados para isso. A comunidade tem que querer esse policiamento e não posso expor os policiais à morte. (José Mariano Beltrame – secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro) (O Globo, Rio, 28/11/2008, p. 15)

Poucos dias depois, a notícia de capa do jornal afirmava o sucesso da operação, mas ainda com um tom de desconfiança: “Vitória da Cidade. Uma favela sem tráfico. Até quando? Dona Marta está há 13 dias sem bandidos.” (O Globo, 03/12/2008, capa) A foto estampada na capa é de crianças jogando bola. O termo ocupação e o discurso de paz começam a dominar nos textos. Imagem 44

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Na matéria, o governador reforçou a proposta de ação permanente da polícia, explicou porquê escolheu o morro Dona Marta como experiência piloto, e se referiu à favela como “menos complexa”, em um trocadilho com o Complexo do Alemão. No caso do Dona Marta, por ser uma comunidade menos complexa, tenho absoluta certeza de que esse desafio que lancei à polícia será alcançado com êxito. Você pode ter uma situação ou outra isolada de um marginal no Dona Marta ou em qualquer outro bairro no Rio. Mas você ter o crime organizado presente, como se teve até recentemente, eu espero que tenha chegado ao fim. (Sérgio Cabral – governador do Estado do Rio de Janeiro) (O Globo, Rio, 03/12/2008, p. 12) (Grifo nosso)

A emergência de um discurso não substitui os que já existem. Eles passam a se entrecruzar, se atravessar. Observamos a produção de uma dicotomia, o discurso da guerra alimentando o da paz, e vice-versa, como podemos ver na matéria de capa do dia seguinte, “Guerra no Leme depois da paz no Dona Marta.” (O Globo, Rio, 04/12/2008, capa) (Grifos nosso) E na fala do comandante do 2o BPM de Botafogo, bairro onde se localiza o Dona Marta: “Queremos resgatar o apoio da comunidade e estreitar os laços com a população, mas trabalharemos na localização de armas e drogas que tenham sido deixadas pelos bandidos.” (O Globo, Rio, 04/12/2008, p. 12) O entrecruzamento dos dois discursos é retratado pela imagem a seguir: um policial com um fuzil nas mãos, fazendo o patrulhamento do morro, entre um muro grafitado com a palavra “paz”, e outro pichado com a sigla do Comando Vermelho (CV). Imagem 45

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Dezessete dias após a ocupação do Dona Marta, chega a vez da Cidade de Deus, situada na Zona Oeste do Rio. A manchete anunciava: “Mais um avanço da polícia. Ocupação da PM fez com que bocas de fumo parassem de funcionar na Cidade de Deus.” (O Globo, Rio, 05/12/2008, p. 14) Ainda não havia sido definido o nome UPP. O discurso, apesar de estar em um processo de modificação, continuava carregado dos mesmos sentidos das megaoperações. Na fala do comandante do quartel em Jacarepaguá, major André Souza, podemos ver os termos combate e limpeza, e a dicotomia “moradores de bem” versus “traficantes”: Estamos combatendo o tráfico de drogas. Ficaremos por lá por tempo indeterminado. Não abriremos mão de devolver a comunidade limpa para os moradores de bem. Não está tendo tráfico por lá... Estamos o tempo todo fazendo patrulhamento a pé e de carro. O nosso serviço de inteligência também está trabalhando para irmos aos locais certos. (André Souza – major da PM) (O Globo, Rio, 05/12/2008, p. 14) (Grifos nossos)

Na visita ao Dona Marta, com o prefeito Eduardo Paes, o governador Sérgio Cabral, ainda sem a definição do nome UPP, anuncia o projeto, chamado neste momento de “Companhia Comunitária da PM” e sem definição, também, em quais outras comunidades seria implantado. Começa a ocupação social do Dona Marta. Governador e prefeito eleito sobem o morro para avaliar os serviços que o estado e o município levarão até lá. Você tem a violência do tráfico, do fuzil, e tem a violência da falta do estado. Nós estamos acabando com as duas – disse Cabral, que anunciou para o próximo dia 20, o início do trabalho no Dona Marta da Companhia Comunitária da PM, que contará com 125 homens. (O Globo, Rio, 10/12/2008, p. 18) (Grifo nosso)

No dia 15/12, é anunciado que a Companhia Comunitária da PM será constituída por recrutas recém-formados. “Recrutas assumirão a ocupação do Dona Marta. Polícia Militar forma 125 novos soldados que, a partir de sexta-feira vão fazer o patrulhamento da favela ocupada” (O Globo, Rio, 15/12/2008, p. 15). Uma estratégia visando, primeiro, responder às constatações do ex-secretário de Segurança, Marcelo Itagiba, de que “depois de um tempo de convivência (...) [o efetivo policial lotado em dada comunidade] também se relaciona com elementos do mal e pode haver encontro de interesses (corrupção da polícia)” (JORNAL DO BRASIL, 19/12/2009) (Colchetes nossos). Utilizar-se de recrutas, recentemente qualificados para aquele serviço, buscou evitar antigos vícios e garantir um quê de incorruptibilidade na polícia de ocupação. Conquistando, com isso, a aproximação entre polícia e comunidade, conforme afirmado pelo tenente-coronel 115

Gileade: “É importante que os policiais quebrem as barreiras existentes entre a polícia e a comunidade e consigam conquistar a confiança dos moradores.” (O Globo, Rio, 15/12/2008, p. 15) Percebemos a emergência de um discurso completamente oposto ao que vimos até então. Imagens de crianças jogando bola, clima de paz e tranquilidade. É uma verdadeira “lua de mel” da política de Segurança do governo com a mídia. Todas as matérias são favoráveis, falas de moradores, policiais e comerciantes aprovando a ação da polícia e apontando para a valorização imobiliária e turística. O senhor pode ficar tranquilo. O morro está na calmaria. Antes não, eu não me arriscaria. Agora, o senhor pode ir a qualquer lugar. (Morador do Dona Marta) (Grifo nosso) Agora o dono do morro é o morador, não é mais o tráfico. Acabou o poder paralelo. (Alexandre Silva Galvão – tenente que comandava os policiais) (O Globo, Rio, 15/12/2008, p. 15) (Grifo nosso) Esperança e medo no Dona Marta. Há um mês, desde que teve início a ocupação policial, o Morro Dona Marta, em Botafogo, vive uma espécie de vida nova. Com o tráfico fora de cena, a favela experimenta um período de tranquilidade (...) (O Globo, 21/12/2008, capa) (Grifo nosso) O mercado imobiliário sofreu um aquecimento nas últimas semanas impressionante. As ruas da Matriz e das Palmeiras, que sofriam muito com a proximidade da favela por causa dos tiroteios e assaltos, não têm mais esses problemas. Espero que o governo faça a mesma coisa na Rocinha. (Nelson Freitas – diretor da Júlio Bogoricin Imóveis) (O Globo, Rio, 21/12/2008, p. 17) (Grifos nossos)

O ano termina nesse “clima” de paz. Na capa do dia 25/12/2008, aparece a foto do Papai Noel na favela dando a mão para uma criança e na manchete: “Paz na Cidade de Deus. Ocupação policial iniciada em 11 de novembro garante Natal de tranquilidade em favela.” (O Globo, 25/12/2008, capa) (Grifo nosso) Imagem 46

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Com a eleição de Eduardo Paes para a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, configurou-se um quadro de apoio nas três esferas do governo. O discurso “casado” girava em torno da candidatura da cidade do Rio para sediar a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Observamos que os discursos de segurança e ordem urbana passam a girar em torno deste tema e objetivo – que a cidade precisava se livrar da imagem de violenta e perigosa, ou seja, precisava ser “pacificada”. O subtítulo da manchete da capa do jornal, do primeiro dia do ano de 2009, resume bem isso. Imagem 47

Ainda sendo chamada de “Companhia de Policiamento Comunitário da Favela”, vimos a primeira manchete se referindo aos policiais militares como professores. Foi uma reportagem sobre o curso “Comunidade Cidadã” oferecido aos moradores do Dona Marta, que tinha como objetivo esclarecer o conceito de policiamento comunitário. “Policiais militares viram professores por três dias no Morro Dona Marta. Ação faz parte do trabalho de integração entre a corporação e moradores.” (O Globo, Rio, 18/01/2009, p. 17) (Grifo nosso) A Companhia de Policiamento Comunitário da favela se transformou em sala de aula. Policiais foram professores dos 30 moradores que participaram do curso Comunidade Cidadã (...) A grade do curso incluiu temas tidos como importantes para o desenvolvimento do projeto, como teoria da Polícia Comunitária, qualidade de vida, direitos da mulher e violência domestica, ética e motivação e direitos humanos (O Globo, Rio, 18/01/2009, p. 17) (Grifo nosso)

Veremos, no capítulo 6, como esse sujeito policial/professor foi se constituindo, atravessado pelos discursos da educação, como vetor e dispositivo de disciplinamento e controle. No dia 21 de janeiro de 2009, o governador Sérgio Cabral oficializa a proposta, já em andamento no Dona Marta e na Cidade de Deus desde 2008, por meio do decreto nº 41.650, que criou a Unidade de Polícia Pacificadora – UPP. Segundo o decreto, o projeto se destinava a atuar em áreas carentes.

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Art. 1º – Fica criada, na estrutura da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro - PMERJ, subordinada ao Comando do Estado Maior, a Unidade de Polícia Pacificadora - UPP, para a execução de ações especiais concernentes à pacificação e manutenção da ordem pública nas comunidades carentes. (GOVERNO DO RIO DE JANEIRO, 2009) (Grifo nosso)

De acordo com Ricardo Henriques e Sílvia Ramos, à época subsecretária de Estado e Assistência Social e Direitos Humanos do Governo do Rio de Janeiro: Basicamente, o modelo policial segundo documentos da secretaria pública do Estado do Rio de Janeiro, tem como objetivos: i) retomar o controle estatal sobre comunidades atualmente sob forte influência da criminalidade ostensivamente armada; ii) devolver à população local a paz e a tranquilidade pública, necessárias ao exercício e desenvolvimento integral da cidadania; iii) contribuir para quebrar a lógica de guerra existente no estado do Rio de Janeiro. (HENRIQUES e RAMOS, 2011, p. 243) (Grifos nossos)

Analisando o discurso, observamos que o que está sendo chamado de guerra, agora, não é mais a guerra contra o tráfico, mas a disputa entre traficantes pelo controle da venda de drogas, sendo a ação da polícia chamada aqui de “retomada do controle estatal”. A Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) deve ser um modelo de segurança pública e de policiamento que promove a aproximação entre a população e a polícia, aliada ao fortalecimento de políticas sociais nas comunidades. Para isso é necessário que a comunidade “aceite” a ocupação. (GOVERNO DO RIO DE JANEIRO, 2014) O artigo 2o do decreto nº. 41.650 define a autonomia do secretário de Segurança, que passa a ter gerência sobre: as nomeações dos comandantes e dos policiais; definição de agenda; e condução do projeto. Art. 2º – O Secretário de Estado de Segurança editará ato disciplinando a execução das ações especiais de que trata o art. 1º deste decreto e estabelecendo os requisitos necessários para a lotação de Policiais Militares na Unidade de Polícia Pacificadora - UPP.

Os “policiais recém-formados” que passaram a compor o quadro das UPPs não participaram do primeiro momento das ocupações. Eles só entraram nas favelas, depois de “ocupadas”, trabalho feito pelos policiais do BOPE, que chamavam esta etapa de “limpeza”. Tornou-se mais fácil a aceitação, por parte dos moradores, da presença dos policiais da UPP, como uma forma de modificar o sentido que o morador da favela atribui à polícia, construído pelas experiências de brutalidade e truculência policiais. Os policiais antigos e o BOPE são vistos como corruptos e truculentos, e os “novos recrutas”, treinados e capacitados, vistos como “policiais da paz” e como “professores”. Criando-se uma diferenciação entre os bons e os maus policiais. 118

Observemos as seguintes falas de moradores do Cantagalo sobre os policiais da UPP. Eu acho que ele já vem estruturado para ter uma melhora. Vou entrar pra ser policial e fazer uma melhoria na comunidade. Porque são 10 contra um. Um quer fazer o bem e 10 quer fazer a reviravolta que acontece na comunidade. É tipo uma fachada, eles entram 1 querendo o bem e 10 querendo o contrário. (Morador do Cantagalo) Alguns policiais são bons, mas outros não porque tem aqueles que são corruptos e tem alguns que falam bom dia, boa tarde, passam, conversam com quem fala, porque tem muita gente que nem fala com eles também. (Morador do Cantagalo) Eu acredito que tem policiais bons que vestem a farda e querem transmitir segurança pra população. Mas, infelizmente, se tem um corrupto, o batalhão todo paga. (Morador do Cantagalo)

Pela primeira vez, então, o nome UPP aparece no jornal, mas ainda de uma forma “tímida”. O texto da reportagem diz: Cidade de Deus também terá posto fixo da polícia. Três meses depois da experiência piloto de ocupação policial do morro Dona Marta, em Botafogo, o governador Sérgio Cabral inaugurou ontem na Cidade de Deus o mesmo modelo de policiamento comunitário que está sendo chamado de Unidade de Polícia Pacificadora. (O Globo, 17/02/2009, capa) (grifo nosso)

Em 13 de maio desse ano (2009), O Globo publica a seguinte matéria: “Uma polícia mais perto. Modelo de policiamento comunitário em favelas ocupadas pelo tráfico desponta como o programa de segurança pública mais importante da PM” (O Globo, Rio, 13/05/2009, p. 12). A favela Tavares Bastos, onde fica a sede do BOPE, é tomada como exemplo de Modelo de Policiamento Comunitário (neste caso realizado pelos soldados do BOPE), pelo Secretário Nacional de Segurança Pública: Uma boa parte da população continua vivendo na ditadura do crime, e ele não é nada gentil. Por isso, o policial tem que interferir, porque ele precisa abrir terrenos novos para garantir os direitos individuais. Acho que, com o tempo, a liderança não vai mais partir da polícia, mas da comunidade. Porém, no início, esse papel cabe à polícia. (Ricardo Balestreri – secretário nacional de Segurança Pública) (O Globo, 13/05/2009, p. 12)

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O comandante da unidade do BOPE, tenente-coronel Alberto Pinheiro Neto, também foi entrevistado. Segundo ele, realizar atividades esportivas e culturais intensifica a relação e aproxima o policial da comunidade. Esta proximidade com a comunidade é importante no combate ao tráfico. O BOPE é uma unidade de intervenção, mas provamos que podemos ajudar na prevenção, cujo objetivo é a paz. (Alberto Pinheiro Neto – comandante do BOPE da Favela Tavares Bastos) (O Globo, 13/05/2009, p. 12) (Grifo nosso)

O discurso da paz não substitui o discurso da guerra. Continuam sendo publicadas reportagens sobre violência e crimes. As “operações” do Batalhão de Operações Especiais (BOPE), da Polícia Militar (PM), da Força Nacional e das Forças Armadas também não acabam, mas passam a aparecer na mídia como uma espécie de “preparação” para a paz. Como foi, por exemplo, a “ocupação” das favelas do Chapéu Mangueira e Babilônia, em julho. Essa “operação” enfrentou reação do tráfico e alcançou repercussão na mídia. O governo passou, também, a utilizar, como tática, o anúncio antecipado, marcando dia e hora para a “retomada do território”, pretendendo que os traficantes desocupassem a favela, antes da chegada do BOPE. Operação em Favela assusta Zona Sul. (O Globo, 23/05/2009, capa) (Grifo nosso) Mais 1000 policiais nas ruas em uma semana. (O Globo, 09/07/2009, capa) (Grifo nosso) Tráfico se arma para a guerra. Com 200 fuzis Alemão pretende enfrentar a polícia. (O Globo, 12/07/2009, capa) Ocupação dos morros Babilônia e Chapéu Mangueira Tráfico no Leme reage à ocupação. (O Globo, 15/07/2009, capa) (Grifo nosso) Tráfico compra arma por catálogo na Mangueira. (O Globo, 16/07/2009, capa) (Grifo nosso)

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4.2 – Quem é o dono do morro? Democracia e cidadania nas favelas Em agosto, O Globo inicia uma série de reportagens chamada “Democracia nas Favelas”. (O Globo, 09/08/2009, capa) De acordo com as reportagens, o processo de ocupação permanente das favelas estava tendo efeitos positivos, dentre eles “afastar o tráfico e bandos armados; o consumo de drogas, antes incentivado, agora é fortemente reprimido; houve uma grande valorização imobiliária dentro da favela.” (O Globo, 09/08/2009, capa) No entanto, a série de reportagens aponta para algo que consideramos fundamental pensar e discutir: o controle dos traficantes ser substituído pelo estado policial. A imagem da capa do jornal, anunciando a série de reportagens, ilustra bem. Imagem 48

A manchete diz: “Estado paralelo sai das comunidades, mas, até agora, foi substituído por estado policial.” (O Globo, 09/08/2009, capa) Vimos assim a produção dos sujeitos autorizados a controlar o território e a portar as armas. Na série de reportagens, o discurso fundamental afirma que nas favelas, dominadas pelo

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tráfico ou por milícias19, os moradores têm os seus direitos fundamentais excluídos; que os moradores das favelas, dominadas por traficantes, vivem em um regime de exceção, sem o direito de ir e vir, de livre expressão, e que a tortura e o assassinato fazem parte do dia-a-dia; que nessas favelas a economia também é controlada, gerando “um mercado sem leis onde ainda vigora uma espécie de capitalismo selvagem.” (O Globo, 09/08/2009, p. 16) Com base no discurso que traz os grupos armados ilegais como ameaçadores da vida e impeditivos do exercício dos direitos fundamentais, “aceitamos entre nós esta gente de uniforme, armada enquanto nós não temos o direito de estar, que nos pede documentos, que vem rondar nossas portas.” (FOUCAULT, 1990, p. 138) Assim, as UPPs são consideradas, pelo jornal, como “uma experiência histórica que pode mudar o Rio” (O Globo, 09/08/2009, capa). É considerado que o controle do território pelo Estado é necessário para garantir a democracia e a cidadania. As imagens da reportagem evidenciam um paradoxo: crianças brincando juntas do policiamento ostensivo e o discurso sobre a libertação dos moradores das favelas da ditadura do tráfico. Imagem 49

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Grupo ilegal armado, formado principalmente por policiais e ex policiais militares, que controlam alguns territórios, principalmente favelas e periferias. Intimidam e extorquem moradores e comerciantes, cobrando taxa de proteção, impondo toques de recolher e monopolizando comercio e serviços como: venda de gás e “gatonet” (distribuição ilegal de sinal de TV e internet).

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Após a foto, o título da reportagem, parafraseando a promessa de abertura política do ex-presidente general Ernesto Geisel, “lenta, gradual e segura” (JORNAL DA UNICAMP, 2013). Imagem 50

Um discurso legitimado por falas de especialistas, apoiando a política, na reportagem, e com um “status científico”: Sem que o estado retome o monopólio do uso da força no espaço público, não existe possibilidade de organização social democrática. Qualquer movimento nessa direção fica contaminado pela presença do poder paralelo. (Sergio Besserman Vianna – ex-presidente do IBGE e do Instituto Pereira Passos) (O Globo, 09/08/2009, p. 16) (Grifo nosso) As comunidades têm vínculos importantes com o poder paralelo. Foi construída uma rede econômica clandestina e degradadora. Essa rede é política porque tem apoio oficial. É social porque há desdobramentos na sociedade. E é cultural porque os equipamentos culturais e esportivos acabaram nas mãos de bandidos. (Sérgio Magalhães – arquiteto do programa Favela Bairro, professor de arquitetura da UFRJ) (O Globo, 09/08/2009, p.16) (Grifos nossos)

Estela Scheinvar discute como o conceito de “cidadania” vem sendo construído como um passaporte para “democracia” e “liberdade”. Em sua crítica, ela afirma que esse entendimento consolida os princípios liberais e conservadores, pois “é produzido com a definição de novos direitos por sujeitos tradicionalmente aliados dessa relação.” (SCHEINVAR, 2009, p. 86) O conceito de democracia faz parte de uma construção sócio-histórica que se dá entre diferentes forças sociais em contraste. Não pode ser plenamente entendido sem reconhecermos que ele faz parte de todo um processo emergente das transformações e interesses políticos que nos acompanham desde a colonização: jogos de forças, repressões, lutas e aspirações contraditórias. O conceito de democracia tem sua origem na Grécia Antiga (δῆµος demos ou “povo” e 123

κράτος kratos ou “poder”) e possui algumas características que a difere das democracias contemporâneas, ainda que estas se inspirem nela para se constituírem. Em primeiro lugar, na democracia grega nem todos eram “cidadãos”. As mulheres, as crianças, os estrangeiros e os escravos estavam excluídos da cidadania, que existia apenas para os homens livres, adultos e patrícios. Em segundo lugar, era uma democracia direta e participativa, não uma democracia representativa como as modernas. Na ágora os “cidadãos” participavam diretamente das discussões e da tomada de decisão pelo voto. Fundando-se nas ideias e nas práticas da isonomia e da isogoria. Onde, é direito de todo cidadão exprimir em público sua opinião e vêla discutida e considerada, no momento da decisão coletiva. A democracia ateniense não aceitava que alguns tivessem o direito de, sozinhos, exercer o poder. Excluía da política a ideia de competência. Na política grega, todos eram iguais. A democracia não admitia a confusão entre direitos políticos, que eram de todos, e competências técnicas, que se distribuíam segundo a especialidade de cada um. Devemos ter muita cautela quando usamos a palavra democracia. Atualmente, a maioria defende a democracia, não necessariamente significando o que a história da humanidade e o pensamento político entendem por democracia. É preciso pensar como o conceito de democracia se construiu na história e no pensamento político, para entendermos os diversos sentidos que ele pode assumir e, principalmente, como se constitui no discurso atual, que se define como “estado democrático de direito”. O conceito de democracia grego, após as revoluções do século XIX, ganhou novos contornos na democracia burguesa do “laissez-faire, laissez-passer”, do “Liberté, Égalité, Fraternité”. O liberalismo de mercado derrubou o Estado aristocrático-clerical, sem trazer o conceito de democracia econômica, de bem-estar social. Foram introduzidos os novos processos industriais que exigiam novas formas de organização social, requerendo uma maior concentração das populações, vendo nascer sociedades de massas. A nova condição gerou uma série de problemas sociais que a existente aparelhagem de Estado era incapaz de enfrentar, tais como as questões de sanitarismo e saúde pública. Os governos foram obrigados a construir novos equipamentos que tornassem possível uma ação efetiva, resultando em uma nova filosofia de intervenção do Estado, de controle estatal, de planejamento socioeconômico, envolvendo o desenvolvimento de uma elaborada aparelhagem de administração e execução. As atividades do Estado deixaram de se restringir às funções de supervisão e repressão, e passaram a assumir funções ativas em busca do bemestar social. 124

Um fator de profundo impacto na sociedade capitalista foi a teoria marxista e a revolução russa. Isso tornou-se ainda mais claro, depois do crash da Bolsa de Nova Iorque que assolou a economia ocidental após 1929. O desemprego ganhou proporções assustadoras, a produção agrícola viu seus preços despencarem e a produção industrial entrou em recessão. As lutas por melhores condições de trabalho e qualidade de vida apontavam para o perigo socialista, em um momento em que o sistema econômico capitalista enfrentava sua pior crise. A social-democracia havia sido expurgada da Rússia, agora União Soviética, pelos bolcheviques. Os direitos dos trabalhadores avançaram, no entanto, em diversos outros países, graças à social-democracia, fazendo frente à revolução permanente proposta por Leon Trotski. Na década de 30,

provada a incapacidade do capitalismo liberal de resistir ao desafio

socialista, países como a Alemanha e Itália viram o nascimento e o desenvolvimento do nacional-socialismo/fascismo. Enquanto o resto do mundo embarcou em projetos políticoeconômicos apoiados pelas forças imperialistas que se afirmavam diante da necessidade de conquistas de novos mercados, são exemplos a era Vargas no Brasil (1930/1945), o período salazarista em Portugal (1932/1968), e a era do Generalíssimo Franco, na Espanha (1936/1975). Os direitos civis democráticos, como o sufrágio universal, a livre organização sindical e partidária, foram cedidos pelos estados capitalistas como forma de controlar o avanço do ideário socialista e submetê-lo à lógica do capitalismo. Após a Segunda Guerra Mundial, terminada em 1945, a base da reação foi demonstrar que a sociedade capitalista poderia propiciar alto nível de qualidade de vida aos trabalhadores, por meio do “Estado do Bem Estar Social” (ou Welfare State) que, no Brasil, não chegamos, verdadeiramente, a alcançar. No momento em que o Brasil estava discutindo importantes temas em sua agenda sóciopolítico-econômica, como as reformas Agrária, Educacional, Urbana, Eleitoral, Bancária, Fiscal, Lei de Remessas de Lucros etc, sobreveio, apoiado pela Casa Branca, o golpe militar de 1964, que interrompeu o ciclo de avanço social-democrático no país, voltando a patamares onde não havia direito à livre organização sindical, civil ou partidária, o voto era indireto, com práticas de tortura, censura e extermínio. Terminada a Guerra Fria, principalmente a partir da década de 80, uma nova nuança político-econômica foi inaugurada: o neoliberalismo, que passou a desmontar o estado de bem-estar social em vários países e reduzir drasticamente a intervenção do Estado, evitando interferir nos rumos da economia, buscando o conceito de livre-mercado, regido pelas 125

demandas e ofertas de um mundo globalizado. Como resultado, o aumento do desemprego, a perda dos direitos trabalhistas e, principalmente, a visão de que gastos governamentais com políticas sociais, além de onerosas, são prejudiciais ao mercado. A lógica do Estado Mínimo. O neoliberalismo se diz democrático na medida em que entende a democracia como direito ao voto. Trata-se da democracia representativa, onde o povo participa através do voto, elegendo seus representantes que tomam decisões em nome daqueles que os elegeram. Uma democracia formal que não se afirma na base da participação efetiva das massas populares, mas, sim, no controle social em nome de um “Estado Democrático de Direito”. O feitiço do Estado Democrático de Direito faz dele uma entidade idealizada que alimenta uma retórica sustentada na fé, malgrado as práticas coloquem seus ideais em questão. Acredita-se no Estado Democrático de Direito e, como toda crença, é alvo de fé, e não de questionamentos. Naturaliza-se o seu sentido e a sua lógica. A força das consignas e dos princípios é despotencializada no seu processo de institucionalização, quando práticas contraditórias com as promessas liberais e democráticas são entendidas como erro e não percebidas como coerentes com o ideário político que as produz (...) A democracia calcada na lógica do direito tem, portanto, se distanciado de movimentos de transformação, prometendo regras, normas, leis e decorrentes castigos, cujas execuções têm lhe fortalecido. (COIMBRA e SCHEINVAR, 2012, p. 62)

Entendemos, então, que o sentido de democracia assume formas variadas e modificáveis de acordo com o contexto histórico. Entender democracia como conceito único é despropositado. Se o nosso entendimento vem no sentido de um regime que assegure a igualdade e a participação coletiva, ele implica, indiscutivelmente, em uma dimensão social e, desse modo, não há democracia efetiva onde exista excessiva desigualdade social, como no caso brasileiro. Dessa forma, não pode haver conquista de cidadania efetiva por parte das populações marginalizadas – pretos, pobres e moradores de favelas – numa configuração social como a nossa, onde as políticas se voltam para o controle social e não para uma diminuição da desigualdade. Segundo O Globo: “O direito de privacidade, a liberdade de ir e vir e o fim das torturas e dos homicídios praticados por bandidos são as principais mudanças em curso.” (O Globo, 10/08/2009, p. 8) A reportagem trouxe algumas entrevistas com moradores das favelas do Batan e Cidade de Deus. Essas falas reforçam a ideia de que, nas favelas com o tráfico, a ditadura não acabou. Os constantes tiroteios impedem o direito de ir e vir, e os bandidos controlam até o linguajar e a forma de vestir da população. A interação dos moradores com a cidade formal também fica comprometida, e o acesso a

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serviços se inviabiliza. Mais de 20 anos depois do processo de redemocratização, 1,5 milhão de pessoas ainda vive no Rio sob um regime ditatorial, imposto por traficantes e milicianos. (O Globo, 10/08/2009, p. 8)

Por outro lado, as entrevistas com os moradores de favelas pacificadas mostram que não se sentem em “paz” e livres, continuam se sentindo controlados, só que agora pela PM. Primeiro, o depoimento de uma moradora que havia sido baleada pela polícia, dias atrás. Ela fala da frustração por ter acreditado que chegou a se sentir “livre” e faz uma analogia, falando de um passarinho que teve a gaiola aberta: “Estou triste, pois me sentia um passarinho, cuja gaiola foi aberta.” (O Globo, 10/08/2009, p. 8) Depois, um morador que, apesar de elogiar a pacificação, pede para não ser identificado: Havia amigas aqui que não podiam me visitar. Os traficantes do Karatê não as deixavam vir para a área dos Apês. Com a polícia, isso acabou. Parece que está calmo, mas não põe meu nome aí não, tá? A gente não pode falar. (O Globo, 10/08/2009, p. 8)

Outro morador reforça o sentimento de insegurança e medo: “As coisas podem parecer muito bonitas na televisão, mas há muita gente ligada a traficantes e milicianos aqui dentro. Não podemos falar tudo que pensamos.” (O Globo, 10/08/2009, p. 8) Nas entrevistas realizadas com moradores do Cantagalo, ao serem perguntados sobre o que mudou depois da implantação da UPP, tivemos as seguintes respostas: Aqui não mudou nada, não tem paz nenhuma com “esses” UPPs aí [se referindo aos policiais]. Pra mim eles são um monte de bandidos incubados, um monte de policiais corruptos. (Grifo nosso) Quando a UPP entrou, realmente mudou muita coisa, as crianças não iam em birosca comprar cigarro, cerveja. Porque as mães tinham os hábitos de mandar as crianças. A UPP transformou isso em coisa errada. Dizia que não pode e pegava a criança e ia na casa levar. Aí depois de alguns meses ela passou a fazer tudo ao contrário. Eu acho que a UPP pra mim não funcionou e não funciona até hoje. (Grifo nosso) Não mudou quase nada. Porque as coisas continuam do jeito que era. Só não vê tráfico armado. Porque os próprios policiais fazem questão de violência com morador. Não quer saber se é traficante ou não. (Grifos nossos) Eles falam isso, muitas vezes, por causa dos projetos sociais, né? Que eles fizeram, mas que já acabou. Eles queriam botar o projeto social como uma forma de se esconder, porque não é nada disso. Na minha opinião continuou a mesma merda, eles continuaram com violência com morador, se você entrevistar a maioria da comunidade, eles vão te dizer isso, que prefere bandido do que polícia. (Grifos nossos) No começo, dava para pensar que tinha mudado. Porque você não via

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tráfico, porque eles tinham medo. Eles ficavam escondidos. Hoje não, hoje os traficantes voltaram a aparecer mais, eles já ficam de novo nas vielas dos morros, fumando maconha, sobem em laje, fazem e acontece. Você fica com medo. Pacificação pra mim é um termo de fachada, porque você não pode fazer nada. Aqui onde eu moro, logo ali embaixo tem uma boca de fumo, a polícia vem, eles saem, mas a polícia conhece todos eles. A polícia fica aqui, eles vão pra outro canto, depois ela sai e eles voltam, mas não prende ninguém. (Grifo nosso) Aqui, mesmo com a UPP, continuou tendo tiro de vez em quando. Os serviços aqui, tipo coleta de lixo sempre teve, eles colocaram relógio de luz e também arrancaram os fios do Galonet, que era uma internet que tinha aqui. Mas os galão de lixo eles não colocam porque a própria comunidade, as crianças quebram tudo. Muito patrimônio daqui, a igreja católica por exemplo, que ajudou muita gente a construir suas casas e até a matar a fome, com cesta básica, eles quebram. Mas sempre teve aqui, Postinho, Leão XIII, dentista, médico. (Grifo nosso) Em forma de segurança mudou sim. Antes quando não tinha a polícia eles andavam armados, era muita moto pra lá e pra cá, você não tinha o livre arbítrio de andar porque você olhava pra um lado era gente armada, olhava pro outro era gente armada também. As crianças não podiam nem brincar direito no meio do caminho, que era muita gente armada. Então isso mudou, que botaram uma postura, não pode andar armado. Mas deixar de ter bandido? Melhorou no início, hoje continua a mesma coisa. (Grifo nosso)

Um debate surgido com a implantação das UPPs foi a proibição dos bailes funk, onde, além de tocarem os chamados “proibidões”20, os traficantes exibiam armas; outro argumento para a proibição foi a Lei do Silêncio, que proíbe música em alto volume, depois das 22h. O título da

reportagem diz: “Abaixa o som que isso aí é funk” e segue com o subtítulo: “Apesar da proibição de bailes, outros direitos passaram a ser respeitados.” (O Globo, 10/08/2009, p. 8) Nesse mesmo dia, o jornal publicou a seguinte reportagem, no Segundo Caderno21: “Só quero é ser feliz. Artistas e membros do próprio governo reagem à lei que coíbe bailes funk.” (O Globo, Segundo Caderno, 10/08/2009, p. 1) Essa proibição era legitimada pela lei estadual n° 5265, de junho de 2008, que regulava os bailes funk, criando exigências duras. A principal mudança em relação à da lei anterior, n° 3.410, de 29 de maio de 2000 é: “a necessidade de autorização à Secretaria de Estado de Segurança – SESEG, com antecedência mínima de 30 (trinta) dias úteis.” (art. 3o da lei nº 5265, de 18 de junho de 2008. Ney Lopes comparou a criminalização do funk à criminalização do samba, ocorrida há cerca de um século antes. Desenvolvia-se a ideia de branqueamento, de que em cem anos não existiriam mais negros aqui. Isso foi anunciado em 1911, na Europa, pelo 20

Como são chamados os funks, com letras que descrevem o dia-a-dia dos traficantes, que fazem apologia a armas e a facções. 21 O Segundo Caderno de O Globo é conhecido como um caderno que traz notícias e reportagens sobre a agenda cultural.

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diretor do Museu Nacional, João Batista de Lacerda. Imagina isso no plano cultural! Cartola levou um couro da polícia, à toa, no ano em que foi eleito cidadão do samba. Por que? Porque era sambista. E ser sambista era ser negro. E ser negro era ser vadio, vagabundo, malandro. (Ney Lopes – Compositor e escritor) (O Globo, Segundo Caderno, 10/08/2009, p. 1)

Foi criado um movimento de crítica e reivindicação, até a lei (n° 5265, de junho de 2008) ser revogada em 22 de setembro de 2009, junto com a anterior, que também criminalizava e definia que: “só será permitida a realização de bailes funk em todo o território do Estado do Rio de Janeiro com a presença de policiais militares, do início ao encerramento do evento.” (Lei n° 3.410, de 29 de maio de 2000, art. 3º); mas até isso ocorrer, a lei serviu como mecanismo de proibição, apesar das críticas e dos movimentos de resistência. A série “Democracia nas favelas” continua, no dia 12, publicando a reportagem: “A hora da boa vizinhança. Paz nas favelas beneficia arredores.” (O Globo, 12/08/2009, capa) (Grifos nossos) Com o título “Muito além das fronteiras” e o subtítulo “Vizinhanças de comunidades ocupadas pela polícia começam a atrair indústrias e moradores” é ressaltada a valorização imobiliária dos imóveis e o entusiasmo dos moradores do entorno do morro Dona Marta com a política de pacificação. No dia seguinte, o título da reportagem de capa foi: “Santa Marta ganha CEP e números” (O Globo, 13/08/2009, capa) e, na página interna: “Cidadã Marta. Moradores começam a exercer seus direitos e também a cumprir deveres” (O Globo, 13/08/2009, p. 12) (Grifo nosso). O jornal apresenta a favela como “vitrine” do projeto das UPPs. As falas dos moradores não foram unânimes, alguns reclamavam da falta de liberdade de expressão, da repressão às festas e aos bares. O dono de um bar diz: “Já vendemos 30 caixas de cerveja numa noite, hoje nenhuma.” (O Globo, 13/08/2009, p. 12) No entanto, outros elogiam, felizes por terem ganhado geladeiras e chuveiros doados pela Light22, como forma de estimular a instalação de medidores e terminar com os “gatos”, gíria usada para descrever as instalações de luz irregulares. “Tenho chuveiro de água quente. Show de bola!” (O Globo, 13/08/2009, p. 12) No dia 22, a imagem publicada na matéria “Geladeira nova e baixo consumo de energia. Moradores da favela ganham eletrodoméstico e desconto em conta da Light”, mostra uma discrepância entre o cenário de miséria, com a parede e o piso quebrados, a mulher descalça, o fogão à lenha e a geladeira nova. Acompanhando a fala da moradora: “É uma beleza. Pena que ainda esteja meio vazia.” (O Globo, 22/08/2009, p. 19) (Grifo nosso)

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Concessionária de Energia Elétrica da cidade do Rio de Janeiro.

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Na mesma página, a matéria anuncia que “Morro Dona Marta terá câmeras de segurança. Equipamento também será instalado no Batan e na Cidade de Deus, onde existem Unidades de Polícia Pacificadora.” (O Globo, 22/08/2009, p. 19) (Grifo nosso) Nos três últimos meses do ano de 2009, os discursos de guerra e de paz estiveram fortemente presentes e juntos. As reportagens reforçavam o modelo de UPP como a solução ideal de segurança pública, como uma política que estava dando certo, comprovada pelos gráficos de estatísticas que apresentavam resultados, todos positivos. No jornal do dia 08 de outubro, o governo mostrou os dois discursos articulados. Divulga na capa do jornal: “Estado promete pacificar mais 43 favelas até 2010” (O Globo, 08/10/2009, capa) e a reportagem interna do jornal afirmava que, até o fim do ano, o governo do Estado “pacificaria” mais cinco favelas, sem anunciar quais. A imagem da matéria é um infográfico23. Propositalmente com ilustrações e não fotos, passando a sensação de um jogo de War. A reportagem apresenta um mapa da cidade do Rio de Janeiro, com as favelas já pacificadas marcadas com um policial preto (Dona Marta, Babilônia, Chapéu Mangueira, Cidade de Deus e Batan) e as favelas apontadas como as próximas a serem pacificadas (Pavão-Pavãozinho, Rocinha, Complexo do Alemão, Maré, Acari e Vila Kennedy) com policiais vermelhos.

23

Substantivo relativo à infografia - apresentação de informações com preponderância de elementos gráficos visuais (fotografia, desenho, diagrama estatístico etc.) integrados em textos sintéticos e dados numéricos, geralmente utilizada em jornalismo como complemento ou síntese ilustrativa de uma notícia. (HOUAISS, s/d)

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Na mesma página, logo abaixo, o título: “UPPs fazem festas para o Dia das Crianças. PM e comunidade se unem” (O Globo, 08/10/2009, p. 8), uma divulgação das festas que serão realizadas pelos PMs nas comunidades com UPPs, para a festividade. As manchetes e reportagens dos dias seguintes, com matérias coloridas, afirmaram o discurso da cidade partida, reforçando seu contrário: asfalto e favela unidos. Nela foi ressaltado o potencial comercial e turístico da favela. A reportagem e a capa do Rio Show, do dia 09, mostra isso. O morro tem vez. Pacificação em algumas comunidades aumenta o número de programas que unem a cidade partida no alto das favelas. Não é raro encontrar um morador do asfalto que nunca tenha ido a uma favela, embora todo mundo passa por uma no dia-a-dia e elas sejam mais de mil na cidade. Mas já dá para cantar ao contrário aquela música de Pepeu Gomes e Moraes Moreira, lá vem o Brasil subindo a ladeira. Em Botafogo, a pacificação do Morro Santa Marta deu uma mãozinha (a favela ganhou em dezembro uma Unidade de Polícia Pacificadora, que funciona com 120 recrutas). (O Globo, Rio Show, 09/10/2009, p. 32) (Grifo nosso)

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O discurso da cidade partida e da UPP como modo de uni-la continuou no dia seguinte, com a matéria de capa: “O Rio tem que aproveitar os investimentos olímpicos para mudar o modelo atual de cidade segregada.” (O Globo, 10/10/2009, capa) A capa do jornal de bairro, Zona Sul reforçou o discurso, com a matéria: “A vez do morro. Pacificação do Santa Marta começa a mudar a vida de quem mora na favela e no entorno, em Botafogo.” (O Globo, Zona Sul, 15/10/2009, capa) Alta em Botafogo. Mudanças no Santa Marta valorizam o entorno e a procura também dentro da favela. A favela passa a entrar no roteiro turístico internacional: quase que diariamente jipes levam estrangeiros para conhecer becos, barracos, lajes e o visual do Santa Marta. (O Globo, Zona Sul, 15/10/2009, p. 20)

Na reportagem, um morador se diz incomodado com a divulgação do morro como favela vitrine, ele compara a favela a um parque de diversões, quando diz: “Hoje o Santa Marta é a Disney, mas cadê as prioridades?” (O Globo, Zona Sul, 15/10/2009, p. 24)

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UPPs fazem festas para o Dia das Crianças. PM e comunidades se unem. Depois da paz e da tranquilidade reconquistadas, o momento é de festa nas comunidades que já têm Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). O Dia das Crianças deverá ficar marcado na cidade de Deus, em Jacarepaguá; na Favela do Batan, em Realengo; e nos morros Dona Marta, em Botafogo; Chapéu Mangueira e Babilônia, ambos no Leme, como uma data do reencontro com a cidadania e de interação entre moradores e a Polícia Militar. (O Globo, Rio, 8/10/2009. p. 12) (Grifo nosso)

Na segunda quinzena de outubro, voltam às páginas do jornal as matérias sobre a “A Guerra do Rio”, quando um helicóptero da PM foi derrubado por uma metralhadora antiaérea, durante uma operação da polícia no Morro dos Macacos. Tráfico abate helicóptero e espalha terror. Guerra por favela em Vila Isabel deixa 12 mortos, sendo 2 PMs na queda da aeronave, e 8 ônibus incendiados. (O Globo 18/10/2009, capa)

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Metralhadora antiaérea teria derrubado helicóptero da PM. (O Globo 19/10/2009, capa) Mortos já são 26. (O Globo 21/10/2009, capa) PM ataca facção em 10 morros. (O Globo 22/10/2009, capa) Equipamentos de combate ao tráfico apodrece no Rio. (O Globo 29/10/2009, capa)

As notícias foram replicadas em diversos canais de TV. Um espetáculo midiático, acompanhado como um filme de ação. 133

4.3 – Ocupação do Cantagalo/Pavão/Pavãozinho: a imposição da paz No dia 01 de dezembro de 2009, estampada na primeira página, a manchete: “PM ocupa mais duas favelas na Zona Sul para expulsar o tráfico” (O Globo 01/12/2009, capa). O subtítulo diz: “Com ação em Ipanema e Copacabana, UPPs beneficiam 11% dos moradores”. A reportagem traz um infográfico que apresenta números sobre as áreas já ocupadas pela polícia e com UPPs implantadas. A imagem é de um policial apontando um fuzil, de novo causando uma sensação de um jogo. Imagem 55

“Paz a vista em mais duas favelas. PM ocupa Pavão-Pavãozinho e Cantagalo para instalar a quinta UPP da cidade” (O Globo 01/12/2009, p. 16) (Grifo nosso). Nessa reportagem, um capitão da PM chamou a ação de “imposição da paz”: “hoje foi só o primeiro passo da ação de imposição da paz, retirando os narcotraficantes (...) mapeamos os morros e planejamos a ação para pacificar” (Rogério Seabra – comandante do 19o BPM) (O Globo 01/12/2009, p. 16) (Grifo nosso) A imagem é outro infográfico com um mapa da cidade, destaque para a Zona Sul, com as áreas de favelas ressaltadas: bonequinho verde, para as favelas já pacificadas; azul, para as que seriam até o fim do ano (2009); e amarelo, até o fim do ano seguinte (2010). Anunciando, inclusive, a próxima favela que iria ganhar UPP ainda em 2009.

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As matérias se referem às UPPs como um benefício para a comunidade, com o discurso da “garantia de direitos”. Vejamos a fala do Secretário de Segurança do Rio de Janeiro, Beltrame: Os moradores não tinham o seu direito de ir e vir garantido. Os caminhões das lojas não podiam fazer entregas em favelas. Agora é a hora de resgatar a cidadania, com projetos sociais. (José Mariano Beltrame – secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro) (O Globo 01/12/2009, p. 17) (Grifo nosso)

Nos dias seguintes, novas reportagens também tiveram, como foco, a ocupação do complexo de favelas Cantagalo/Pavão/Pavãozinho. No entanto, diferente das últimas ocupações, o tráfico reagiu e nos dias seguintes, o jornal publicou: “Tráfico reage à UPP em Copacabana. Bandidos incendeiam ônibus na principal avenida do bairro e mandam comércio fechar portas.” (O Globo 02/12/2009, capa)

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A reação do tráfico à UPP. Bandidos incendeiam ônibus e ameaçam lojistas em Copacabana; estado diz que não vai recuar. (O Globo, 02/12/2009, p. 14) Tráfico volta a atacar em Copacabana. Copacabana viveu ontem novo dia de represálias do tráfico à ocupação policial de favelas do bairro. Bandidos jogaram uma bomba artesanal, com pregos, contra um ônibus, na rua Raul Pompeia. (O Globo, 03/12/2009, capa) Tráfico volta a reagir. Bandidos lançam bomba contra ônibus em Copacabana; moradores temem novas represálias. (O Globo, 03/12/2009, p. 14)

Sobre a reação dos traficantes, o governador declarou: Estamos efetivamente afetando a economia de uma organização criminosa num dos lugares mais nobres (Ipanema e Copacabana) para a venda de drogas. Certamente foi um baque na receita e é evidente que há reações. Em algumas UPPs a reação é maior e em outras, menor. Na Cidade de Deus, por exemplo, nossa tropa de elite permaneceu mais tempo do que esperávamos e já convivendo com a Unidade de Polícia Pacificadora. (Sérgio Cabral – Governador do estado do Rio de Janeiro) (O Globo 03/12/2009, p. 15)

Na mesma página, seguindo a estratégia de avisar com antecedência onde seriam as futuras ações da polícia, O Globo publica um “aviso” do governador sobre a próxima ocupação: “Estou avisando para os traficantes irem embora. Sérgio Cabral manda recado para que bandidos deixem Tabajaras e Morro dos Cabritos em três semanas.” (O Globo, 03/12/2009, p. 15) 136

Na primeira página de O Globo do dia 04, a manchete: “Tráfico usa jovem para retirar fuzil de favela” (O Globo, 04/12/2009, capa). Nas reportagens internas, a abordagem do jornal segue a mesma linha: aponta para crianças, jovens e idosos como vítimas do tráfico. “Crianças usadas pelo tráfico.” (O Globo, 04/12/2009, p. 16) Com esse discurso, das crianças e adolescentes vítimas do tráfico, se justifica uma prática muito polêmica: a revista de crianças e adolescentes. Por trabalhar em uma ONG, localizada nessa favela durante o período que ocorreu a ocupação do BOPE, a autora vivenciou algumas situações que considera importante relatar. Diário de bordo – dezembro de 2009: Durante a ocupação da favela do Cantagalo pelo BOPE, estávamos caminhando, eu e uma outra psicóloga da ONG, quando fomos paradas por um grupo de adolescentes que nos pediram ajuda. Eles diziam algo como: “Tia, eles estão esculachando nós.” Outro adolescente que, inclusive, participava de uma das oficinas do projeto, também nos procurou para se queixar: “Eles me pararam e nem deixaram eu falar nada, já vieram dando tapa na minha cara!” Foram diversas reclamações de moradores, mães de adolescentes e dos próprios jovens que nos procuravam para relatar as situações de violência sofridas: “Eles (os policiais) entraram na minha casa e bagunçaram tudo!”; “Bateram no meu filho que é trabalhador!”; “Abriram a mochila da minha filha e ela agora não quer mais ir pra escola, tá com medo do BOPE.” A nossa atitude foi de resistência. Escrevemos um relatório detalhando as denúncias dos moradores sobre a violação dos direitos e a truculência policial, que acabou parando na mão do governador Sérgio Cabral. Com isso, fomos chamados (funcionários e técnicos do projeto) para uma reunião com um grupo de policiais do BOPE. Em uma sala havia, aproximadamente, uns 20 policiais vestidos de uniforme preto e armados com fuzil. Meu sentimento era uma mistura de ódio e medo. De início, acreditei que poderia ocorrer uma discussão política sobre o assunto, mas, no entanto, foi o contrário: as falas dos policiais foram uma mistura de ironia e ameaça. Um policial começou a reunião dizendo: “recebemos uma cópia do ‘relatoriozinho’ que vocês mandaram pro Cabral”. A equipe se entreolhou, meu medo e meu ódio aumentaram ainda mais. Começaram a justificar que as revistas eram necessárias, pois o tráfico estaria usando os moradores para transportar armas e drogas, e que não havia outro jeito. E ainda pediram a nossa “ajuda”, dizendo que como tínhamos muito contato com os moradores e eles confiavam na gente, que poderíamos ajudar a separar o “joio do trigo”. No calor do momento, não resisti e disse: “E o que o senhor tem a dizer de policiais dando tapa na cara dos garotos?” Ele respondeu: “Quem te disse isso, mentiu.” Eu retruquei: “Neste caso, senhor, é um garoto que faz oficina conosco, tenho certeza que ele não está mentindo.” A resposta dele foi: “Olha, faz o seguinte, existe o disque-denúncia, que serve para denunciar bandido, mas se tem policial fazendo isso é porque é um policial/bandido, denuncia lá.” Eu, que não sabia a hora de calar a minha boca, respondi: “O disque-denúncia da gente aqui é a mídia!” Logo em seguida recebemos uma ordem superior, do coordenador da ONG, de que não era para a equipe ficar andando pela favela, que ele havia conversado com o governador e que os jovens poderiam ficar tranquilos que não haveria mais agressões naquele

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território. Ou seja, foi um acordo pontual. Eu, por minha vez, passei alguns dias tendo pesadelos.

Nas entrevistas e conversas que realizamos com moradores do Cantagalo, durante a pesquisa, ouvimos muitos relatos sobre a experiência de violência e truculência policial. O meu namorado ganhou tapa na cara sem fazer nada. Sendo revistado, ele ganhou um tapa na cara de um policial, eu até falei pra ele prestar queixa lá em cima, mas não ia adiantar nada. Ele não tem envolvimento, ele trabalha, eu até tenho medo porque ele sai às 5h da manhã e eles costumam forjar com as pessoas, se eles cismar com a tua cara, eles vai te forjar. Vai esperar na madrugada, pode ser trabalhador; a gente anda na hora que a gente quiser, porque se a gente sair, a gente pode sair na madrugada, certo? Mas eles acha que não. (Grifos nossos) Violência é um policial vim, te pegar, te matar, botar seu corpo lá e dizer que foi os traficantes. Isso pra mim é muito violento e tem muitos por aí que fazem isso. (Grifo nosso) Porque eles acha que todo mundo que mora na comunidade é traficante e são violentos com os moradores. Não sabem abordar. Esse dia mesmo, eles na abordagem, chamando a mulher do menino que eles abordaram de piranha e de tudo. (Grifo nosso) Porque a gente ficando quieto, já tá errado, falando é pior ainda. Eu evito até de comentar. Mesmo estando a polícia aqui em cima, a comunidade não se sente segura, porque a gente não sabe, por mais que seja polícia, é vagabundo. Você não sabe quem é quem. (Grifo nosso) A ocupação daqui foi assim, primeiro veio o BOPE, mas a comunidade já tava avisada, então não houve tiroteio, eles tomaram rapidamente, também porque o Cantagalo é muito pequeno, é um miolo comparado com Rocinha ou Complexo. Eles não tiveram dificuldade na hora de ocupar. Antes deles virem, já tava tendo muita operação. Nessas operações tinha tiro, fogos, mas era um tiro lá e outro aqui. Todo mundo tinha que ficar dentro de casa não podia dar bobeira na rua, mas não era aquela coisa de tiroteio, de ficar apavorado não. Teve abuso de poder da parte deles (BOPE) de entrar nas casas, porque eles não sabiam as casas que tavam pixadas, então as que não tavam, eles vinham querendo esculachar o morador da casa, dar tapa na cara, enfim, teve abuso com alguns conhecidos. Graças a Deus aqui em casa não entraram. (Grifo nosso)

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Com a favela ocupada pelos policiais do BOPE, foi a vez da prefeitura entrar em ação com uma operação realizada pela Secretaria Especial de Ordem Pública (SEOP), que entrou no complexo de favelas Cantagalo/Pavão/Pavãozinho e derrubou todas as construções irregulares ao longo da rua principal da favela. Apesar do descontentamento e das reclamações dos donos das barracas, de que aquele comércio era o sustento da família, que eles eram trabalhadores, que já estavam ali há anos; não houve mobilização suficiente para impedir. Foram cerca de cem guardas municipais e agentes da SEOP que entraram na favela com retroescavadeiras derrubando tudo e apreendendo as mercadorias. Depois do tráfico, desordem na ladeira é novo alvo. (O Globo 05/12/2009, capa) Secretaria dá choque de ordem no Pavãozinho. Vinte barracas de ambulantes instaladas irregularmente nas calçadas da Ladeira Saint Roman são retiradas. (O Globo 05/12/2009, p. 24)

Imagem 58

As matérias que seguiram até o fim do ano (2009) foram todas favoráveis à UPP. Inclusive, utilizando gráficos para comprovar a diminuição dos índices de crimes. UPP reduz violência em duas favelas. Os índices de criminalidade caíram em um ano em duas favelas que receberam a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), da PM. Só em homicídios, a redução foi de mais de 82% na cidade de Deus, e o número zerou no Morro Dona Marta. (O Globo 06/12/2009, capa)

As imagens também foram emblemáticas. As fotos dos policiais em posição de guerra, ou revistando crianças, deram lugar a outra imagem que precisava ser construída, a da polícia de proximidade. “A hora de fazer as pazes com o morador. BOPE realizará pesquisa no 139

Pavãozinho para melhor se aproximar da comunidade.” (O Globo 12/12/2009, p. 16) (Grifo nosso) Imagem 59

Para a construção dessa outra imagem do policial, o jornal reforçou a diferenciação entre os antigos policiais que eram lotados nos Destacamentos de Policiamento Ostensivo (DPO) e os novos soldados das UPPs. Segundo o jornal, esses últimos tinham formação especial e foram apresentados como professores. O futuro comandante pacificador (da UPP do Cantagalo/Pavão/Pavãozinho) é evangélico e professor de geografia (...) Com 1,65m de altura e 60 quilos, a capitã Priscila de Azevedo, de 31 anos, foi a primeira comandante de uma UPP (...) Com 12 anos de PM, o capitão Sidney Pazini, comandante da UPP da cidade de Deus é também professor de história e lutador de jiu-jítsu (...) Formado em direito pela Universidade Castelo Branco, o capitão Ricardo Ribeiro é o segundo comandante do Batan. (O Globo 17/12/2009, p. 18) (Grifo nosso)

Vale o questionamento: por que O Globo, na entrada do ano da reeleição de Sérgio Cabral, passa a apresentar os policiais como “professores”? A resposta é simples: humanizálos, desbestializá-los, transformar o policial – tido por violento, corrupto, opressor – em uma figura melhor aceita pela sociedade e pelas comunidades ocupadas. O desdobramento dessa estratégia política e de comunicação é que aparece de maneira subliminar: o papel de isenção 140

sugerido pela política editorial do veículo, já demonstrado na campanha de Eduardo Paes, não existe. Ponderamos que essa matéria, deixando de lado a isenção, busca, claramente, colaborar na propaganda do governo, apoiando a construção da boa imagem institucional da PM e da política de Segurança – principal problema do Estado, segundo as pesquisas qualitativas há pelo menos duas décadas – o elemento-chave para a campanha de reeleição. O jornal também anunciou a realização de projetos, como oficinas de música e esporte, pelos policiais. “Sai o som dos tiros, entra o da percussão. Capitão da PM que assumirá UPP do Pavão-Pavãozinho sonha implementar projetos de música nas comunidades.” (O Globo 17/12/2009, p. 18) E é inaugurada a UPP do Cantagalo em 23/12/2009. Na véspera de Natal, dia 24/12/2009, o jornal O Globo publicou uma matéria com o seguinte título: “A paz reconquistada”. Vejamos as declarações do governador Sérgio Cabral: “Passamos anos convivendo com a truculência do tráfico e da polícia. Agora é hora de comemorar. Está chegando o Natal e temos a região pacificada. É mais uma vitória.” (Sérgio Cabra – Governador do Estado do Rio de Janeiro) (O Globo, 24/12/2009, p. 10) No último dia do ano, é ressaltada a tranquilidade da cidade e o potencial turístico e econômico das favelas pacificadas. “Morros com UPP terão festas com ‘gringos’. Para aproveitar a tranquilidade reinante, moradores abrem suas casas para receber parentes e até turistas” (O Globo, 31/12/2009, p. 11). Imagem 60

A imagem da capa, do primeiro dia do ano de 2010, é a de uma laje do Pavão/Pavãozinho, com a seguinte foto legenda: “Laje do morro: turistas de várias nacionalidades e moradores do Pavão/Pavãozinho acompanham de uma vista privilegiada o espetáculo pirotécnico que reuniu 2 milhões de pessoas na Praia de Copacabana” (O Globo, 01/01/2010, capa).

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O potencial turístico e econômico da implantação da UPP é ressaltado na imagem. A favela, pacificada, é descrita como excelente espaço para investimentos na área do turismo. No entanto, observamos, na fala de alguns moradores do Cantagalo entrevistados, a percepção de que esse mercado acabou sendo explorado por pessoas “de fora” da favela. Outra coisa foi que veio muito turista pra cá. Os gringos vem pra cá porque é um meio deles gastar menos, porque o custo de vida pra eles aqui não é nada. Tem tudo quanto é tipo de gringo aqui. Morando aqui. Vivendo de aluguel. Eu mesma se tivesse dinheiro fazia umas quitinetes pra alugar, mas eu não tenho, aí eles vem e faz. Tem até um que está construindo um hotel. Fizeram também um banco. (Morador do Cantagalo)

Até este momento, já havia sido implantadas cinco Unidades de Polícia Pacificadora. Em 2008, a primeira, no Dona Marta (19/12/2008); em 2009, mais quatro, na ordem: Cidade de Deus (16/2); Jardim Batan (18/2); Babilônia e Chapéu Mangueira (10/6); Complexo Pavão/Pavãozinho/Cantagalo (23/12). O ano de 2010, conforme antecipado na manchete sobre o réveillon (01/01/2010), foi marcado pela implantação de UPPs. Oito no total: Ladeira dos Tabajaras/Cabritos (14/1), Providência (26/4), Borel (7/6), Formiga (1/7), Andaraí (28/7), Salgueiro (17/9), Turano (30/10), Macacos (30/11). Nas reportagens sobre as implantações das UPPs, observamos o enfático discurso sobre os benefícios do programa. E quase nenhuma crítica. “Nova UPP leva paz a dois morros.” (O Globo, 01/01/2010, capa) (Grifo nosso) “Inauguração da unidade dos Tabajaras e dos Cabritos beneficia três mil moradores” (O Globo, 01/01/2010, p. 13) (Grifo nosso). 142

Foram constantes as reportagens durante o ano de 2010 que reforçaram os aspectos positivos e as vantagens do modelo de Segurança do governo. A maioria esmagadora dos depoimentos dos moradores das favelas pacificadas, publicadas em O Globo, aprovava a política. Um exemplo foi a capa do dia 21/02/2010. “Favelas do Rio aprovam e querem UPP” (O Globo, 21/02/2010, capa). Alguns depoimentos escolhidos e publicados por O Globo: Muitos trabalhadores daqui têm que sair da comunidade de madrugada ou precisamos levar um filho ao hospital. Agora a gente pode entrar e sair a qualquer hora. Também podemos receber a visita de familiares, as empresas fazem entregas aqui e os serviços públicos começam a chegar. (Moradora da Cidade de Deus) (O Globo, 21/02/2010, p. 14) A vida no Batan melhorou muito. Graças a Deus não vemos mais homens armados e tiroteios. Eu vivo aqui desde criança e acho que meu imóvel está valorizado. Agora, moramos no local mais seguro da região. A procura por imóveis cresceu muito. (Morador do Batan) (O Globo, 21/02/2010, p. 14) Assim a gente também pode cobrar nossos direitos. A gente aqui não tinha nada legalizado. Agora temos luz, telefone, internet, TV a cabo. O comércio também não é legalizado, mas agora isso está mudando. (Comerciante, morador do Dona Marta) (O Globo, 21/02/2010, p. 14)

Na reportagem, além de falas de moradores, saiu publicado o resultado de uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa Social (IBPS), com 1200 entrevistados, sendo 600 moradores das nove favelas onde o programa foi implantado e, entre eles, 93% considerava as favelas seguras. Os 600 entrevistados eram de quarenta e quatro comunidades onde “ainda” não havia UPP, entre estes, o jornal publicou que 70% eram favoráveis à sua implantação (O Globo, 21/02/2010, p. 14). Reforçando a ideia de que O Globo havia deixado de lado a imparcialidade, a reportagem sobre a pesquisa afirma que 68% dos entrevistados de comunidades com UPP temiam a volta do tráfico, dependendo de quem assumisse o próximo governo. Como afirmava o depoimento de uma moradora do morro da Babilônia, no Leme: “A gente é gato escaldado, vários programas que começaram em um governo acabaram no governo seguinte” (O Globo, 21/02/2010, p. 14). Esse “medo” foi um dos fatores responsáveis, na reeleição do governador Sérgio Cabral, para que sua votação, em favelas pacificadas, tenha sido o dobro da alcançada em 2006, conforme veremos adiante.

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Sobre a pacificação do morro da Providência, O Globo ressaltou a inexistência de confrontos durante a ocupação da PM e do BOPE. PM ocupa a Providência para criar 7a UPP do Rio. Policiais dominam área no Centro, por onde passam 600 mil pessoas por dia. Sem disparar sequer um tiro, policiais de Choque e do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) ocuparam o complexo de favelas da Providência, no Rio. (O Globo, 23/03/2010, capa) (Grifo nosso)

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Outro fator ressaltado, durante a ocupação, foi a aproximação e o diálogo entre policiais e moradores, com palestras na comunidade e cartazes explicativos sobre a UPP espalhados na comunidade. Enquanto a fala do comandante do BOPE na palestra era direta: “Nosso primeiro passo é trabalhar para que pessoas que se impõem pelas armas saiam daqui. Se alguém aqui tem que usar arma é a polícia” (Paulo Henrique Moraes – comandante do BOPE) (O Globo, 26/03/2010, p. 17) (Grifo nosso). Mesmo com toda a estratégia de

APROXIMAÇÃO

entre comunidade e polícia, com

“policiais professores”, palestras e cartazes, o discurso do comandante do BOPE tenentecoronel Paulo Henrique Moraes é claro: a polícia é um órgão de repressão. Apenas ela tem o direito de usar armas, nem que para a conquista desse “direito” precise lançar mão, também, de armas da “educação”, como o livro, a lousa ou o instrumento musical: apenas meios para a conquista do fim - a repressão e o controle armado. Imagem 64

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Durante a inauguração da UPP no morro da Providência, o governador ressaltou sua importância para a realização das obras do Porto Maravilha, e anunciou a próxima ocupação, no dia seguinte: “PM começará pelo Borel ocupações na Zona Norte. Ação policial está prevista para amanhã; estado inaugura 7a UPP” (O Globo, 27/04/2010, capa). Nosso foco agora é a Tijuca. Nossa prioridade será o bairro. Aquela região já sofreu muito com criminosos. Vamos começar pelo Borel. O pressuposto para o sucesso do Porto (a revitalização do Cais do Porto do Rio) era a segurança do morro da Providência. Não tenho dúvidas que a combinação do projeto Porto Maravilha com a UPP será positivamente explosiva. (O Globo, 27/04/2010, p. 12)

O aviso antecipado teve efeito. No dia seguinte à ocupação, a manchete: “PM ocupa sete favelas da Tijuca sem nenhum tiro” (O Globo, 29/04/2010, capa) (Grifo nosso) trazendo, também, uma fala irônica do comandante do 6o BPM, Coronel Príncipe: “Se eu tivesse posto um escoteiro no morro da Formiga, seria mais que suficiente” (O Globo, 29/04/2010, p. 18). Na ocasião, bandeiras do Brasil e do BOPE foram fincadas no alto do morro da Formiga por PMs e policiais do BOPE. Anteriormente, as Forças Armadas já haviam fincado uma bandeira, para marcar território, no Complexo do Alemão, em 2008. Imagem 65

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Na mesma matéria, o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, anunciou as próximas favelas a serem ocupadas. “Há um plano, mas ele pode ser adaptado em função das circunstâncias. Eu quero fazer o Salgueiro, mas, se eu tiver que fazer os Macacos, eu vou fazer primeiro” (José Mariano Beltrame – secretário de Segurança do Governo do Rio de Janeiro) (O Globo, 29/04/2010, p. 18). Em maio, numa alusão ao “Pai Nosso” – Assim na terra como no Céu – a manchete diz “Assim no morro como no asfalto”, referindo-se à operação da Polícia Civil nos morros do Cantagalo/Pavão/Pavãozinho, para cumprir mandatos de prisão. “Polícia ataca o tráfico em favela com UPP” (O Globo, 14/05/2010, capa). Segundo declaração do governador, o tráfico de drogas persistia nas comunidades pacificadas, o que estava em jogo era a ostentação de armas e o controle do território. Posso dizer que a UPP quebrou o paradigma de armas de guerra no morro. Agora, o tráfico é complicado. Se até nos Estados Unidos e na Europa há tráfico. Eles vão tentar vender enquanto tiver gente para comprar (...) laranjas podres existem no cesto de frutas e precisam ser retiradas. (Sérgio Cabral – governador do Estado do Rio de Janeiro) (O Globo, 14/05/2010, p.16) (Grifo nosso)

Os moradores do Cantagalo confirmaram isso nas entrevistas: Claro que tem duas partes, né? Tem a parte da polícia, que a gente tem que respeitar e tem a parte do tráfico que a gente tem que respeitar porque mora na comunidade e são pessoas que a gente conhece desde criança, não tem como a gente tirar aquele vínculo que a gente tem com eles. Mas por ser uma comunidade na Zona Sul, tem toda uma politicagem de manter os ânimos, manter as aparências. Antes e depois da UPP, porque pra mim não tem diferença nenhuma. Antes e depois da UPP, o trafico sempre esteve e continua e nunca vai parar.

O acordo midiático da política de segurança do governo Sérgio Cabral passa, obviamente, por pequenos acordos locais. A venda de drogas e sua ilegalidade são “males menores” do que o controle do território pelos traficantes e a ostentação das armas. Para que a força de trabalho do tráfico não precise, necessariamente, descer para o asfalto e praticar assaltos, garantindo a sobrevivência do negócio; permite-se que a droga continue sendo vendida, mas exige-se a discrição. Afinal, nada mais midiático do que a discrição, quando se quer esconder um problema.

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4.4 – Complexo do Alemão: cidadela do tráfico Depois de um tempo fora de cena, o Complexo do Alemão apareceu novamente na capa de O Globo. Segundo o Jornal, os chefes do tráfico, de favelas ocupadas pelas UPPs, migraram para lá, onde instalaram um “verdadeiro shopping de drogas a céu aberto” (O Globo, 20/06/2010, capa), uma “Cidadela do tráfico” (O Globo, 20/06/2010, p. 17). Imagem 66

O jornal descreve a favela como: Um verdadeiro shopping de drogas, com barracas, negociações, matutos (fornecedores de drogas no atacado), venda de todo tipo de entorpecente, tanto no atacado quanto no varejo, e compra de armas. (...) Investigações das polícias Civil e Militar estimam que haja mais de mil fuzis nas mãos dos traficantes (...) por ordem da facção criminosa, o traficante só tem livre abrigo no Alemão se levar seu próprio fuzil. (O Globo, 20/06/2010, p. 17)

O secretário de Segurança reforça o exposto: Não estamos falando de uma localidade simples, mas de uma região com dezenas de comunidades e cerca de 130 mil habitantes, como uma cidade de porte médio. Sabemos que uma Ação lá vai gerar um grande trauma, mas temos condições de ir lá a qualquer momento. A proposta é ir ao Alemão definitivamente. Vai ter trauma, vai ter baixa, mas será uma Ação definitiva. A ocupação do Alemão vai exigir 2 mil homens, vai acontecer de acordo com o plano traçado. (José Mariano Beltrame – secretário de Segurança do Governo do Rio de Janeiro) (O Globo, 20/06/2010, p. 17)

Já em plena campanha eleitoral para a reeleição, em resposta à reportagem, Sérgio Cabral apenas disse:

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Sobre o Complexo do Alemão, temos investido muito lá, com o presidente Lula. Lá moram quase cem mil pessoas. Estamos fazendo obras estruturantes. Cinco estações de teleférico, saneamento, habitações, UPA (Unidade de Pronto Atendimento 24 horas), colégio novo... Entretanto, sem paz, o serviço não está completo. (Sérgio Cabral – governador do Estado do Rio de Janeiro) (O Globo, 10/08/2010, capa)

Seguindo a estratégia de aviso antecipado das ocupações, durante a inauguração da UPP no morro da Formiga, o governador anunciou a próxima UPP no morro do Andaraí. “Formiga recebe unidade pacificadora com a promessa de mais ações sociais. Governador anuncia nova ocupação de comunidade carente em agosto” (O Globo, 02/07/2010, p. 20). Como dito na manchete, foi “A vez do Salgueiro” (O Globo, 31/07/2010, capa). Enquanto a foto traz um menino ao lado de um policial, com expressão de desconfiança. Imagem 67

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Segundo O Globo, essa ocupação, também, ocorreu sem reação. “Operação na Tijuca reúne 210 policiais militares e é bem recebida tanto por moradores da favela como do asfalto. (...) não houve reação do tráfico durante a operação” (O Globo, 31/07/2010, p. 23). (Grifo nosso) A ocupação seguinte foi na favela do Turano. Também anunciada no dia anterior. “PM ocupará hoje o Turano para 12a UPP.” (O Globo, 10/08/2010, capa) Dessa vez, no entanto, o tráfico reagiu. “Tráfico reage, mas foge da favela” (O Globo, 11/08/2010, capa). Vemos aparecer novamente o discurso da guerra. “A guerra antes da paz no Turano.” No lugar de Guerra contra o tráfico, o jornal nomeou a reportagem com o título “Combate ao poder paralelo.” (O Globo, 11/08/2010, p. 16) Na página seguinte, uma suíte apontou os efeitos positivos das ocupações e fez um balanço geral das UPPs. “Duas grandes áreas da cidade pacificadas” (O Globo, 11/08/2010, p. 17). Imagem 68

A valorização imobiliária nas áreas ocupadas é reforçada pela fala de um corretor de imóveis: “Ali e nas ruas dos Araújos e Valparaíso era onde passavam os ‘bondes’ de traficantes. Ninguém queria morar lá. Antes das UPPs vendíamos cinco apartamentos por mês, agora são 15” (O Globo, 11/08/2010, p. 17). Há aproximadamente um mês das eleições, uma operação da PM, na Rocinha, desencadeou a fuga e a invasão do hotel de luxo, Intercontinental, em São Conrado, área 150

nobre da Zona Sul do Rio de Janeiro. “Bandidos invadem hotel no Rio e fazem reféns. Intercontinental, em São Conrado, é ocupado pelo BOPE” (O Globo, 22/08/2010, capa). Enquanto as operações da polícia se restringem ao espaço da favela, a população aplaude, banaliza e justifica a violência. No entanto, quando chega ao asfalto e ultrapassa os “limites” aceitáveis pelas elites, se torna um escândalo, inaceitável. Vejamos a fala de uma moradora do asfalto sobre o ocorrido: “É a primeira vez que vejo isso, nunca tinha presenciado um confronto no asfalto. Estamos acostumados a ouvir barulho dos tiros no alto da Rocinha” (O Globo, 22/08/2010, p. 20). A repercussão foi tanta, que o jornal acabou publicando uma segunda edição no mesmo dia. A primeira edição foi impressa às 11h15min e a segunda às 20h49min, do dia 21/08/2010. Foram feitas alterações na capa e na matéria interna. Vejamos as diferenças entre as duas edições, na capa: Quadro 1 a

1 edição – Bandidos invadem hotel no Rio e fazem reféns. – Intercontinental, em São Conrado, é ocupado pelo BOPE. (O Globo, 22/08/2010, capa) (Grifo nosso)

a

2 edição – Cerco a traficantes acaba com tiros e reféns em hotel de luxo. – Sessenta bandidos enfrentam PMS e levam pânico a São Conrado. – Policiais teriam agido sem autorização. – Susto, correria e lágrimas à beira mar. (O Globo, 22/08/2010, 2a ed., capa) (Grifos nossos)

Nas páginas internas: Quadro 2 1a edição – Tráfico invade Intercontinental. – Bandidos armados entram em hotel de São Conrado onde estavam mais de 600 hóspedes. – Mulher cai atingida por bala perdida. – Outros confrontos na Região. (O Globo, 22/08/2010, p. 20) (Grifos nossos)

2a edição – Tráfico leva terror a São Conrado. – Após intenso confronto com policiais militares, bandidos invadem hotel e fazem 35 reféns. (O Globo, 22/08/2010, 2a ed. p. 20) – A Guerra do Rio: Cidadãos vêem fuga de quadrilha e mulher baleada. Relatam ainda como tiveram de se proteger. – Violência à janela e desespero dentro de casa. – Moradores fizeram vídeos e fotos da ação dos bandidos e foram os primeiros a informar, pela internet, sobre caos no bairro. (O Globo, 22/08/2010, 2 ed., p. 22) (Grifos nossos) 151

A matéria da primeira edição descreve o ocorrido como uma “ação de bandidos” e reforça o clima de insegurança relatando outros confrontos que aconteceram na região. Já a segunda edição descreve a situação como uma reação de traficantes à uma “operação da PM”. Percebemos também, que a segunda edição colocou panos quentes nos ânimos dos eleitores, já que estávamos às vésperas das eleições. Além de desresponsabilizar a secretaria de Segurança colocando a culpa em doze policiais, que segundo O Globo, “teriam agido sem autorização” (O Globo, 22/08/2010, 2 ed., capa), essa segunda edição publicou também, na capa, as declarações oficiais: “O governador Sérgio Cabral elogiou a polícia, e o secretário de Segurança disse que não vai recuar em sua política de segurança” (O Globo, 22/08/2010, 2a ed., capa). No dia seguinte, a capa do jornal trouxe o discurso inverso. Ressaltou a paz na Cidade Maravilhosa, como resposta às críticas e questionamentos feitos pela mídia internacional, sobre a capacidade do Rio de Janeiro de garantir a segurança aos turistas e sediar a Copa e as Olimpíadas. “Enquanto isso, o Rio continua lindo. Em vez de cenas de violência, São Conrado foi palco ontem da largada da meia maratona: 19 mil corredores, em paz, desfrutaram o lado bonito do Rio” (O Globo, 23/08/2010, capa). (Grifos nossos) Em setembro, nova promessa do governador para o próximo mandato, sem ainda ter sido reeleito. “UPP chegará a Rocinha em janeiro. Com mil soldados, em sua maioria recémformados.” (O Globo, 18/09/2010, capa) 4.5 – A UPP como marca do governo do Estado do Rio de Janeiro, as alianças políticas e a reeleição de Cabral O chamado marketing político é cada vez mais valorizado e fundamental na política contemporânea, não se restringindo apenas às campanhas eleitorais, sendo utilizado, também, por governos, com as diversas ferramentas que dispõe: a criação de marcas, a veiculação de publicidade paga na mídia em geral; a divulgação de releases para a imprensa; a presença na internet em sites específicos e farta distribuição de material gráfico. Espaços que, de acordo com o artigo 37, § 1° da Constituição Federal, deveriam ter “caráter educativo, informativo ou de orientação social”, ser destinados às comunicações de interesse público, isto é, de caráter informativo, de prestação de serviços e transparência das contas, mas que, na maioria dos casos, ganham o caráter persuasivo da propaganda. O mesmo acontece com os sites institucionais dos governos que são criados e 152

administrados por especialistas em comunicação, como ferramentas de marketing, servindo, principalmente, para personalizar, na figura do governante, as atividades administrativas e construir a imagem do governo e da figura pública em seu comando, em detrimento dos serviços e da instituição. O gráfico das despesas do governo do Rio de Janeiro com divulgação e publicidade, entre os anos de 2007 e 2013, nos dá ideia do investimento público em propaganda. Segundo a Folha de S. Paulo, online, em 12/04/2014. Imagem 69

Segundo a pesquisa, que se utilizou de dados do Sistema de Administração Financeira para Estados e Municípios, o governo do Rio de Janeiro gastou cerca de R$ 1.376.400.000,00 (um bilhão, trezentos e setenta e seis milhões e quatrocentos mil reais) nas rubricas “serviços de comunicação e divulgação”, entre os anos de 2007 e 2013. Ressaltando que o governo em exercício pode gastar, nos seis meses do ano eleitoral, o mesmo que gastou no último ano, ou a média do que gastou nos últimos três anos, de acordo com a Lei, é vedado: Realizar, em ano de eleição, antes dos três meses que antecedem o pleito, despesas com publicidade dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, ou das

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respectivas entidades da administração indireta, que excedam a média dos gastos nos três últimos anos (...) que antecedem o pleito ou do último ano imediatamente anterior à eleição (cf. art. 73, inciso VII, da Lei nº 9.504, de 1997), prevalecendo o que for menor (art. 50, inciso VII, da Resolução TSE nº 23.370, de 13.12.2011, rel. Min. Arnaldo Versiani). (AGU, 2012)

Na prática, pela concentração, em seis meses, de todos os gastos do último ano ou da média dos três últimos anos, em 2010, quase quadriplicaram-se os investimentos em propaganda institucional do governo. Por meio do investimento em comunicação e marketing se realizam várias ações como a construção de parcerias e alianças políticas, a consolidação de marcas e a divulgação da atuação do governo, sempre, é claro, destacando os benefícios ao cidadão e buscando fortalecer a figura pública que ocupa o cargo como o “responsável” por todas aquelas conquistas. As matérias dos sites analisados em nossa pesquisa são entendidas, assim, como produtos, como campanhas institucionais criadas pelas agências de publicidade que prestam serviços para o governo e aprovadas pela secretaria de Comunicação. Uma delas, a Prole – a principal agência que atende o governo e, aliás, a que coordenou a campanha eleitoral de Sérgio Cabral para governador e de Eduardo Paes para prefeito – define como seus objetivos: “Construir uma mensagem institucional poderosa, capaz de mobilizar, imprimir credibilidade e gerar relevância.” (PROLE, s/d) Vejamos o que esta agência nos relata como briefing24 do governo Sérgio Cabral: Em 1960, o Rio de Janeiro deixa de ser a capital federal. A transferência do governo para Brasília não teve efeitos apenas políticos. Nas décadas seguintes, o Rio de Janeiro perdeu divisas, investimentos, empresas, além de prestígio e respeito. O estado chegou a ser o penúltimo na lista de investimentos do governo federal com recursos que representavam menos de um décimo dos destinados a São Paulo. A situação se agravou a partir dos anos 80. Uma sucessão de lideranças políticas buscou o sucesso nas urnas fluminenses se afirmando como oposição ao governo federal de plantão. As brigas político-partidárias se tornaram frequentes, inviabilizando a implantação de políticas públicas em parceria com as três esferas de governo – Município, Estado e União. O Rio de Janeiro estava isolado (...) A partir dos anos 2000, fica evidente o desgaste – especialmente junto à população – dessa política de confronto. Para os profissionais da Prole, estava claro que uma estratégia de marketing institucional para o Rio de Janeiro passava pelo tema União. Era preciso sinalizar que os problemas da cidade e do estado só seriam resolvidos por meio de um esforço que superasse ambições políticas e 24

Briefing é um resumo de uma discussão; são os pontos a discutir. Geralmente, é aquilo que o cliente transmite, como expressão do trabalho que necessita, ao contato ou, diretamente, a um grupo da agência. É entendido como a passagem de informações e de instruções de uma entrevista. De maneira geral, o Briefing é um documento que o profissional de marketing transmite a quem vai realizar uma campanha publicitária promocional de relações públicas ou uma pesquisa de mercado. (DUBNER, MOREIRA, e PASQUALE, 1999, p. 68)

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pessoais, em favor do próprio Rio de Janeiro. Com a vitória de Sérgio Cabral nas eleições para o governo do estado, isso se materializou em um slogan criado pela Prole – Somando Forças. Graças a uma bem sucedida parceria com o governo federal, o estado voltou a atrair investimentos públicos e privados, ganhando caixa para realizar obras de grande porte, em especial nas regiões mais pobres. (PROLE. Cases, s/d)

Vale notar que, segundo o texto, foram os “profissionais da Prole” que tinham claro em mente que a “estratégia de marketing institucional passava pelo tema União”. E eles usam “União” com letra maiúscula, num duplo sentido, onde pode ser lido, também, o governo federal. De acordo com os dois parágrafos, não teria sido a conjunção política que permitira o diálogo do então presidente Lula, eleito em 2002, com o novo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, eleito em 2006. Mas a “estratégia de marketing”. Lembrando, ainda, que havia uma dissensão entre a governadora anterior Rosinha Garotinho e o governo federal do Presidente Lula, podemos afirmar que durante o período pesquisado foi construído um “pacto” entre os governos, em seus três níveis, e a mídia, em particular as Organizações Globo. Observamos que o discurso das peças publicitárias e dos demais esforços de comunicação do governo aparecem “casados” com o discurso da grande mídia. Um exemplo disso é a matéria de capa de O Globo, no dia em que o governador Sérgio Cabral foi eleito para seu primeiro mandato. Ela seguia exatamente o mesmo briefing da estratégia de marketing institucional descrita pela agência de publicidade: Cabral diz que fará governo de entendimento. Eleito governador do Rio com 68% dos votos válidos, Sérgio Cabral (PMDB) disse que fará o “governo do entendimento”. Ele informou que já agendou encontros com o presidente Lula e a governadora Rosinha Garotinho, e que vai procurar também o prefeito César Maia. (O Globo, 30/10/2006, capa)

No ano de 2007, foram inúmeras as matérias onde esta aliança era quase que “suplicada” pelo governo do Rio. Principalmente no que se referia à Segurança Pública: Cabral pede ajuda de Força Nacional. (O Globo, 02/01/2007, capa) Cabral quer Exército na rua. (O Globo, 03/01/2007, capa) Governadores cobram de Lula verba e polícia contra o crime. (O Globo, 10/01/2007, capa) União aceita enviar Forças Armadas ao Rio, mas a data ainda é incerta. (O Globo, 17/04/2007, capa) União vai criar Super Central de combate ao crime no Rio. (O Globo, 22/04/2007, capa) Força Nacional entra na guerra do Alemão. (O Globo, 14/06/2007, capa)

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Lula dá R$ 1,6 bi a favelas para competir com tráfico. (O Globo, 03/07/2007, capa)

Observamos que a aliança política com o governo federal estava apenas começando a se construir. Inclusive, vimos, naquele primeiro ano de governo, muitos embates e críticas do governo federal ao governo do estado, principalmente nos modos de encarar o modelo de Segurança Pública: Governo se mobiliza para tentar impedir redução da idade penal. (O Globo, 28/04/2007, capa) Presidência acusa polícia do Rio de execuções. (O Globo,02/11/2007, capa) No Rio, Lula faz críticas à remoção de favelas. (O Globo, 01/12/2007, capa)

Em paralelo à implantação das Unidades de Polícia Pacificadora, durante os dois últimos anos do primeiro mandato, quando o governador Sérgio Cabral encanta a elite e a imprensa, é selada uma relação de interesses mútuos entre os governos estadual e federal. Para Lula, interessava ter um aliado na segunda maior capital do país, já que São Paulo e Minas Gerais estavam com governos de oposição (PSDB). O governador Sérgio Cabral, por sua vez, estava interessado em verbas e investimentos que viabilizariam obras e realizações em seu governo. O Rio de Janeiro nunca recebeu tantas verbas de Brasília quanto no governo Lula. Observemos a frase de Adriana Ancelmo, esposa de Cabral, publicada em O Globo: “Uma relação vigorosa. Mulher de Cabral diz que ele acorda melhor quando Lula vem ao Rio.” (O Globo, 26/01/2008, capa) (Grifo nosso) As manchetes e matérias estudadas no presente trabalho demonstram que foi aos poucos que aconteceu a aproximação dos governos estadual e federal. No dia 01/07/2007, O Globo publica: Cabral mudou o jeito de governar o estado, com uma postura mais conciliadora. A relação entre governador e o presidente da República e o prefeito da capital, antes marcada pelo confronto, agora colhe frutos da parceria política, o que não se vê há muito tempo no estado. (O Globo, 01/07/2007, p. 20)

Essa aproximação também pode ser percebida por meio dos slogans das campanhas políticas e do governo. Quando foi eleito governador em 2006, o slogan do então candidato Sérgio Cabral era “A Força do Rio”. Durante o primeiro mandato, passou a usar o slogan “Somando Forças”, já demonstrando a aproximação e a aliança com o governo federal. 156

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Há uma tradição nos governos e prefeituras em todos os níveis – federal, estadual, municipal e distrital – no Brasil, de cada governante que assume o poder tomar, para o novo governo, as cores de preferência do seu partido. Talvez o exemplo mais marcante, dos últimos anos, tenha sido o do ex-prefeito César Maia, cujo grupo ficou no poder na prefeitura do Rio quase 16 anos, e que adotou a cor da COMLURB (Companhia Municipal de Limpeza Urbana), na época a melhor avaliada dentre as empresas municipais de serviços públicos prestados pela prefeitura: o laranja. Na contramão dessa tradição, a Prole recomendou ao governo Sérgio Cabral e posteriormente à prefeitura de Eduardo Paes (a Prole, que foi responsável pelas duas campanhas eleitorais, atende as duas contas, vencidas por licitação pública com critério de “melhor técnica e preço”) que usassem os brasões do estado e da cidade do Rio de Janeiro como marcas. Uma forma de evidenciar uma certa neutralidade institucional e política na escolha da marca. 157

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No lugar de buscar “fortes” (e únicas) marcas de governo, o conceito por trás do marketing está em usar marcas irmãs e “neutras”, deixando para os “produtos” desses mesmos governos, a força das marcas. Assim, a UPP pode ser entendida como um produto do governo, como uma marca, mas que aparece sempre ao lado do logotipo do governo, sem um slogan próprio. É como se, por se comportar como uma submarca do governo, ela própria fosse um slogan. Pensou Cabral, pensou UPP, mas esta não pode “brilhar” mais que seu criador.

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Pensamos que, apesar de parecer, a estratégia não foi um grande plano traçado a priori, ao contrário, foi no desenrolar dinâmico de todo o processo que as marcas do governo foram sendo construídas. A sigla UPP foi criada a partir do sucesso da marca UPA (Unidades de Pronto Atendimento) que, em seu início, eram hospitais militares, localizados em favelas para o combate ao surto de dengue. Segundo o site pessoal de Sérgio Cabral: Santa Catarina, São Paulo, Pernambuco, Acre e Minas Gerais. Estes são apenas alguns dos estados que receberam, nos últimos três anos, aquele que é considerado um dos mais eficientes modelos de emergência hospitalar: a Unidade de Pronto Atendimento 24 horas, as UPAs. Idealizadas no Rio de Janeiro pelo governo Sérgio Cabral, elas já estão presentes em outros estados brasileiros e até no exterior, na Argentina. A primeira UPA foi construída no conjunto de favelas da Maré, em 2007. O modelo criou uma malha de atendimento primário essencial para salvar vidas. O impacto das unidades foi imediato, cujo primeiro indicador positivo foi a morte por infarto que, imediatamente, caiu pela metade nos atendimentos das UPAs. (SERGIO CABRAL, s/d)

Os teóricos do marketing Al Ries e Jack Trout (1993) comentam: Mais diabólico ainda é o fato de a extensão de linha ser um processo que ocorre continuamente nas empresas, sem quase nenhum esforço consciente. É como um armário ou uma gaveta que se enche com pouco esforço de nossa parte (...) Em sentido restrito, extensão de linha é pegar a marca nominal de um produto bem-sucedido (molho de carne A-1) e colocá-lo em um novo produto que se planeja lançar (molho de aves A-1). (RIES e TROUT, 1993, s/p)

A UPP, enquanto marca, ganhou uma força que a equiparou à própria comunicação institucional do governo, com direito a comerciais de cinema, TV e rádio; anúncios de jornal e revista; mídia exterior; e site próprio. Observamos no site da UPP a apresentação sobre as vantagens propiciadas a seus usuários e à população de um modo geral – vagas de trabalho, cursos, ações de saúde, oficinas para crianças, teatro etc. Não aparecem análises sobre os problemas, nem vemos nenhum espaço de crítica. São exemplos:

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Fica claro que essas matérias são orientadas pelo marketing, cujo propósito é “vender” os produtos (programas sociais) ou a imagem de um governo que se preocupa com a população. Não satisfeitos, a marca se desdobra para outras áreas de atuação de governo, inclusive sendo utilizada pela Prefeitura do Rio na gestão do Eduardo Paes. Um exemplo é a UOP (Unidade de Ordem Pública). Choque de ordem terá regra de ocupação, como as UPPs. Assim como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), a prefeitura criará as Unidades de Ordem Pública (UOPs), formada por guardas municipais que terão treinamento especial (...) Os cem guardas da primeira UOP vão atuar em turnos durante 24horas por dia. (O Globo, 04/11/2010, capa) Em 2011, a Prefeitura do Rio deu início ao projeto das Unidades de Ordem Pública (UOPs), inaugurando, assim, uma nova forma de atuação no combate à desordem urbana na cidade. A partir da reformulação do treinamento da Guarda Municipal do Rio de Janeiro (GM-Rio), os agentes passaram a atuar de forma mais territorializada, identificando problemas específicos dentro de um perímetro delimitado, com o objetivo de garantir o Choque de Ordem permanente nos bairros (...) Os guardas municipais das UOPs trabalham em turnos, garantindo patrulhamento 24 horas por dia, sete dias por semana, para coibir desordens como estacionamento irregular, ambulantes sem licença, entre outras ações que venham a ferir o Código de Posturas e a Legislação do Município. Todas as equipes da UOP estão equipadas com rádios transmissores e smartphones, onde as irregularidades são registradas e transmitidas imediatamente para uma central de controle da Guarda Municipal. Não há rotatividade de efetivo, garantindo que um determinado grupo de guardas cuide sempre da mesma área. (PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO, s.d)

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A utilização da marca atinge níveis de ridículo quando a prefeitura do Rio lança a UFA (Unidade Fornecedora de Alívio) como modelo de banheiro público, em fevereiro de 2013. (PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO, s.d)

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É exatamente a teoria da extensão de linha ou marca irmã que demonstra, claramente, o quanto os governos do PMDB (Sérgio Cabral e Eduardo Paes) foram tratados como “produto” por seus marqueteiros. De um lado, um forte investimento em propaganda institucional (governo como um todo) e de outro os produtos (UPPs, UPAs, UOP, UFA etc). Já como pré-candidato à reeleição, ainda às vésperas da campanha oficial, como vimos, foram inauguradas 4 UPPs (Borel (7/6), Formiga (1/7), Andaraí (28/7) e Salgueiro (17/9). Intensificaram-se também as inaugurações de UPAs, além da entrega de ônibus escolares para prefeituras da Baixada Fluminense e prêmios em escolas. O Globo fez a crítica: “Com a máquina pública, em clima eleitoral. Às vésperas da campanha oficial, Cabral e deputados aliados, que tentarão a reeleição, aceleram entrega de obras.” (O Globo, 13/06/2010) No entanto, ressaltou, na reportagem, que essa atitude não pode ser considerada ilegal, já que a lei eleitoral permite que um governador participe de inaugurações até três meses antes das eleições. Realmente, Cabral não compareceu às inauguraçõas das UPPs do Andaraí, nem do Salgueiro ocorridas durante o período de campanha eleitoral, tendo sido representado pelo secretário de Segurança José Mariano Beltrame e pelo comandante da PM, Mário Sérgio Duarte. A aprovação do governo era tão positiva que as pesquisas, em julho, já apostavam na reeleição de Cabral em primeiro turno. “Cabral tem 53% e ganharia no 1o turno” (O Globo, 25/07/2010). Além dos gastos do governo com publicidade durante todos os anos do primeiro mandato, principalmente no ano de 2010, também foram gastos milhões durante a campanha de reeleição: 162

Cabral faz campanha milionária. (O Globo, 08/08/2010, capa) Eleições 2010. A confortável rotina do candidato Cabral. Com estrutura milionária, governador gastou R$ 4 milhões apenas no primeiro mês da campanha (...) Segundo prestação de contas parcial ao Tribunal Superior Eleitoral. (...) Cabral conta com cerca de dois mil cabos eleitorais (...) cada um recebe cerca de R$ 1.200 por mês, para carregar bandeiras e distribuir propaganda. (O Globo, 08/08/2010, p. 14)

Além das inaugurações de UPPs e UPAs e participação em eventos, três meses antes das eleições de 2010, Sérgio Cabral rebatizou, com seu slogan da eleição de 2006, um programa público de distribuição de recursos para cidades do estado por meio de convênios. O programa foi criado em 2001, durante o governo de Anthony Garotinho e se chamava Plano de Apoio ao Desenvolvimento dos Municípios (PADEM), passando a se chamar “Somando Forças”. Na campanha de 2010, o slogan de Cabral foi alterado para “Estamos juntos pelo Rio”, mantendo o discurso de união entre os governos federal, estadual e municipal, um dos pontoschave da sua campanha. Imagem 79

O tema foi assunto no debate eleitoral promovido pela TV Bandeirantes, dia 12/08/2010, onde Cabral reafirmou as alianças com os governos federal e municipal e questionou o candidato Fernando Gabeira sobre a parceria entre os três poderes. Cabral chegou a dizer que “a falta de entendimento entre os políticos teria levado o Rio a perder duas vezes a disputa para sediar as Olimpíadas, quando o prefeito da cidade era César Maia (DEM), aliado de Gabeira na atual campanha.” (O Globo, Eleições 2010, 13/08/2010, p. 3) A aliança entre os governos foi tema, também, do primeiro programa de Cabral no Horário Eleitoral Gratuito. A apresentadora dizia: 163

Você se lembra como era o Rio de Janeiro antes de Sérgio Cabral? O governador não se entendia com o presidente, que vivia em guerra com o prefeito da capital. A ambição política, a picuinha, o desentendimento fizeram o nosso estado desperdiçar quase 30 anos. No governo de Sérgio Cabral isso mudou, o Rio de Janeiro recuperou sua força e voltou a ser ouvido. (Transcrição de vídeo) (YOUTUBE, 17/08/2010)

Nesse programa, inclusive, o presidente Lula apareceu dizendo: “Lá no Rio de Janeiro, eu disse pro Sérgio Cabral: olha Sérgio, eu estou convencido que eu e você poderemos construir, juntos, a maior aliança política que um presidente da República já fez com o governo do Rio de Janeiro.” (Transcrição de vídeo) (YOUTUBE, 17/08/2010) Outro ponto-chave da campanha eleitoral de Cabral foi, sem dúvida, a política de Segurança, mais especificamente a implantação das UPPs. Em setembro, no último debate na TV entre os candidatos a governador, na Rede Globo, a Segurança Pública foi o tema principal. Sérgio Cabral defendeu a atual política de Segurança e prometeu pacificar todas as comunidades do Rio de Janeiro. O título da matéria de O Globo foi: “No Rio, tema segurança domina debate”. (O Globo, 29/09/2010, p. 15) Hoje nós temos um plano de metas, com redução de homicídios, redução de roubo de veículos em todo estado, e não apenas nas regiões das UPPs. Hoje, a polícia está motivada. Hoje, há uma política de segurança pública efetiva, que a população reconhece. Vamos pacificar todas as comunidades. (O Globo, 29/09/2010, p. 15)

Nos programas eleitorais na TV, a UPP também apareceu como ponto forte e principal marca do governo. Foram inúmeras imagens de favelas pacificadas, entrevistas com policiais e moradores beneficiados. Vejamos algumas falas transcritas dos programas eleitorais. O primeiro passo foi ter coragem e determinação para enfrentar o crime organizado. E encontrar um caminho para libertar a população que vivia com medo nas comunidades dominadas por bandidos armados. Sei que ainda temos um longo caminho pela frente, mas pela primeira vez, nós governo e sociedade estamos vencendo. Sofremos perdas, mas não podemos recuar agora, que as coisas começam a dar certo (...) Muita gente dizia que era impossível pacificar as favelas, mas nós aceitamos o desafio e o resultado começa a aparecer com as UPPs. (...) Até 2014, todas as comunidades que vivem sob o domínio do poder paralelo serão pacificadas. (Sérgio Cabral – governador do Estado do Rio de Janeiro) (Transcrição de vídeo) (YOUTUBE, 17/08/2010) Eu nunca imaginava que um filho meu ia entrar no tráfico de drogas. Eu não andava de cabeça erguida dentro da comunidade de tanta vergonha. O filho da Márcia está ali sentado armado, você viu? Era droga rolando, eles fumando, eles cheirando. O telefone tocava na minha casa, eu pensava que era notícia ruim. Nossa, vai vir a notícia que meu filho morreu. Com a entrada da UPP

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acabou o armamento, não vejo mais droga, não vejo mais jovens se destruindo. Eu vou ver meu filho descendo pra trabalhar, fazendo cursos aí, estudando. Família, ele tendo filha, a esposa dele, construindo um lar pra ele. Eu não via antigamente. Agora eu vejo. Agora eu tenho esperança. Com a UPP, eu tenho esperança. (Márcia – moradora do Morro da Babilônia) (Transcrição de vídeo) (YOUTUBE, 22/08/2010) Eu realmente queria ser policial e prestei concurso. Passei. Amanhã vai ser o dia da minha formatura. Eu tenho muita vontade de trabalhar na UPP, porque a UPP tá mudando a imagem da polícia. O Estado, ele entra com força total, entram projetos sociais, saneamento, projetos habitacionais. Eu acho que o maior benefício que ela vem trazendo pra sociedade carioca é o cuidado com essa nova geração. É retirar a imagem do traficante como herói. Hoje em dia, ela se espelha no policial... Uma pessoa que tá ali pra praticar o bem. Acabou esse negócio do coturno na porta do barraco. Essa nova polícia vem trazendo uma integração com a sociedade (Alexandre Braga – PM da UPP do Borel) (Transcrição de vídeo) (YOUTUBE, 22/08/2010) (Grifos nossos)

Com uma ampla base de apoio político, Cabral se reelegeu em primeiro turno com 66% dos votos válidos. Na manchete: “Reeleito, Cabral anuncia UPP na Rocinha” (O Globo, 04/10/2010, capa). O Globo, na reportagem sobre a reeleição, apontou como razão da alta popularidade de Cabral “o choque nas finanças e os avanços na segurança” (O Globo, 04/10/2010, p. 24), apesar da educação, saúde e transporte ainda terem problemas. Em uma das imagens da reportagem, policiais e crianças, no morro do Salgueiro, com a fotolegenda: “Projeto que virou vitrine do Governo Sérgio Cabral.” (O Globo, 04/10/2010, p. 24) Imagem 80

Após a eleição, O Globo continuou transmitindo um clima de paz e elogiando o sucesso das UPPs, a aceitação dos moradores e da opinião pública em geral. A reportagem “Boa de 165

segurança e de urnas. UPP leva Cabral a ter o dobro dos números de votos em áreas pacificadas em comparação a 2006” (O Globo, 17/10/2010, p. 18) mostra um levantamento feito pelo jornal, com base nos resultados das seções eleitorais, que confirmou que as UPPs tiveram influência no voto dos cariocas. “Em todos os bairros, a votação de Cabral praticamente dobrou em comparação com os resultados do primeiro mandato. Dentro das comunidades a votação foi ainda mais expressiva.” (O Globo, 17/10/2010, p. 18) O passo seguinte do governo, após a eleição, foi a ocupação do morro dos Macacos, onde, há um ano, um helicóptero da PM fora derrubado. “Polícia ocupa última favela da Tijuca para criar 13a UPP.” (O Globo, 15/10/2010, capa) “A paz pousa nos Macacos.” (O Globo, 15/10/2010, p. 19) O jornal reforçou que não houve reação já que “os bandidos teriam deixado a região na noite anterior” (O Globo, 15/10/2010, capa) e que essa ocupação policial foi estratégica para a segurança da Copa do Mundo e das Olimpíadas, graças à proximidade da favela com os estádios Maracanã e Engenhão. Dessa vez, o próprio secretário de Segurança, José Mariano Beltrame – junto com um policial e duas crianças – hasteou as bandeiras do Brasil e do BOPE, no alto do morro. Imagem 81

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Um antigo livro que trata de assuntos militares disse: “As palavras não são escutadas, por isso se fazem os símbolos e os tambores. As bandeiras e os estandartes se fazem por causa da ausência de visibilidade.” Símbolos, tambores, bandeiras e estandartes se utilizam para concentrar e unificar os ouvidos e os olhos dos soldados. Uma vez que estão unificados, o valente não pode atuar só, nem o tímido pode retirar-se só: esta é a regra geral do emprego de um grupo. (SUN TZU, s/d)

A fixação de bandeiras no alto das comunidades pacificadas tem, pois, como objetivo militar, a demarcação do território, fazendo parte de uma simbologia universalmente reconhecida e adotada. No século XX, os dois momentos mais clássicos dessa iconografia foram, representados, possivelmente, pela tomada de Iwo Jima (1945)25 e pela missão Apolo XI (1969).26 Imagem 82

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Ilha do arquipélago japonês, na qual se travou importante batalha entre fevereiro e março de 1945, por sua localização estratégica e seus campos para pouso e reabastecimento dos bombardeiros norte-americanos. 26 Quinta missão tripulada do projeto Apollo da NASA (National Aeronautics and Space Administration – empresa norte-americana de pesquisa e exploração espacial) e a primeira a realizar o pouso na superfície lunar, em 20 de julho de 1969. Tripulada pelos astronautas Neil Armstrong, Edwin 'Buzz' Aldrin e Michael Collins.

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No dia seguinte da ocupação, O Globo publica uma imagem com título emblemático. “O caveirão–playground” (O Globo, 16/10/2010, capa). Na foto, várias crianças sentadas posando no “caveirão” do BOPE. Imagem 84

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Na matéria interna, a fala de uma criança: “Sempre vi o caveirão e queria saber o que tem dentro. Agora eu vi que não tem fantasma, nem alma penada. Os caras são legais.” (O Globo, 16/10/2010, p. 19) A fala escolhida da criança, inclusive infantilizada, “não tem fantasma, nem alma penada, os caras são legais”, propõe, de novo, e de um ponto de vista questionável, a humanização do policial. A criança é quem dá a chancela de “legais”. E quem mais inocente e cheio de esperanças para chancelar, via discurso, o opressor? No restante do mês de outubro, terminadas as eleições, encontramos apenas duas matérias que citavam as UPPs. Uma se referindo a um cemitério encontrado no recémocupado Morro dos Macacos: “UPP revela cemitério clandestino” (O Globo, 19/10/2010, capa) e a outra, sobre uma carta encontrada com uma mulher, durante a revista de visita aos presos, ao presídio de Catanduvas, endereçada a Marcinho VP, um dos chefes do Comando Vermelho. “Cartas revelam que traficantes planejam atacar UPPs” (O Globo, 22/10/2010, capa). O foco do jornal, durante esse período, foi o segundo turno das eleições presidenciais, disputado pelos candidatos Dilma (PT) e Serra (PSDB). Dilma venceu com 56% dos votos válidos. Sendo que, no Rio de Janeiro, com o apoio de Cabral, a presidente eleita conseguiu 60,48% dos votos. “Com 55 milhões de votos, petista se tornou a primeira mulher eleita presidente do Brasil.” (O Globo, 01/11/2010, capa) Durante a campanha de 2010, a candidata do PT, Dilma Roussef, junto com seu candidato a vice do PMDB, Michel Temer, absorveram o tema das UPPs e o utilizaram como “um mantra na campanha” (VEJA, 18/08/2010), inclusive, investindo, por meio do Ministério dos Esportes a quantia de R$ 184 mil no lançamento do Rio Top Tour27, dia 30 de agosto, no Morro Dona Marta, com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Planalto põe UPP em nova “agenda casada” com Dilma. O evento, em plena campanha eleitoral, estava marcado para o dia 13. O primeiro anúncio foi feito por Cabral, via Twitter. Na terça, no debate entre os candidatos a vice dos presidenciáveis, promovido pelo Grupo Estado, o companheiro de chapa da petista, Michel Temer (PMDB), citou o exemplo das UPPs, tema que virou quase um mantra na campanha. (Ibid.)

O objetivo, segundo o ministério, era “aproveitar o potencial turístico do local a partir da inclusão dos moradores”. (Ibid.) Em conjunto com a Secretaria de Segurança de Cabral, o 27

Programa do governo federal em parceria com o governo do Rio de Janeiro de estímulo ao turismo em comunidades pacificadas.

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texto de divulgação do ministério ia além: “Depois de um dia de praia, uma caminhada no calçadão e uma visita ao Cristo Redentor, nada mais agradável para o turista que conhecer mais de perto a cultura e tradição de um lugar tão rico como o Rio. Melhor ainda se esse contato se der em uma comunidade que hoje é símbolo de uma nova cidade, com seus serviços, produtos, segurança e hospitalidade prontos para atender todos os visitantes." (Ibid.) (Grifo nosso) 4.6 – Complexo do Alemão: o Dia D Com o fim das eleições presidenciais, voltamos a observar reportagens sobre crimes no Rio de Janeiro: “Novo arrastão desafia autoridades” (O Globo, 02/11/2010, capa), “Guerrilha na Linha Vermelha” (O Globo, 22/11/2010, capa). Após ataques do tráfico, PM retomará ações em favelas. (O Globo, 23/11/2010, capa) A Guerra do Rio. Beltrame: facções se uniram e reação da PM será em dobro. (O Globo, 24/11/2010, capa) A Guerra do Rio. PM avança para ocupar o bunker do tráfico na Penha. Operações em 30 favelas resultaram em 18 mortos só ontem; Cabral pede apoio à Marinha. (O Globo, 25/11/2010, capa) (Grifo nosso)

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A ocupação da Vila Cruzeiro, em 24/11/2010, foi noticiada e acompanhada pela mídia ao vivo, aparecendo, praticamente, em todos os canais de TV. Tendo alcançado grande audiência. Esse dia foi comparado, pela imprensa, com a invasão da Normandia pelas tropas 170

aliadas durante a Segunda Guerra Mundial. Na manchete “O Dia D da Guerra ao tráfico.” (O Globo, 25/11/2010, capa) O Globocop28 filmou a fuga dos traficantes da Vila Cruzeiro para o Complexo do Alemão, imagens exibidas em diversas emissoras de TV e que viralizaram29 na internet. Na ocasião, foi questionado por que os policiais, a bordo dos helicópteros da PM, não atiraram nos traficantes em fuga. Ventilou-se a hipótese de que isso teria acontecido, graças à cobertura “ao vivo”. Um fuzilamento que, certamente, iria ser visto pelo mundo inteiro, gerando desgastes na imagem do Brasil. Nesse sentido, a mídia e as redes sociais, com o olho do “Grande Irmão” que a tudo assiste, têm refreado a ação violenta da polícia. Imagem 86

A guerra do Rio. Intenso tiroteio entre exército e tráfico abre batalha do Alemão. (O Globo, 27/11/2010, capa) Pós-guerra. Prefeitura tem megaprojeto de reconstrução da Vila Cruzeiro. (O Globo, 28/11/2010, capa)

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Helicóptero da Rede Globo de Televisão, com uma câmara externa estabilizada. Espalharam-se virtualmente, de modo a criar um efeito semelhante ao de um vírus. (PRIBERAM, s/d)

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A guerra do Rio. A reação do carioca me emocionou. Governador Sérgio Cabral diz que estava em jogo o sucesso da política de segurança. (O Globo, Caderno especial, 29/11/2010, capa) (Grifo nosso) A guerra do Rio. A senhora liberdade abriu as asas sobre nós. População comemora libertação histórica em operação exemplar, sem sequer um inocente ferido. (O Globo, 29/11/2010, Caderno Especial, capa) (Grifo nosso) O Rio mostrou que é possível. (O Globo, 29/11/2010, capa)

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A guerra do Rio. Exército pode ficar 7 meses no Alemão, até nova UPP. (O Globo, 30/11/2010, capa)

Em dezembro de 2010, o que vimos foram reportagens e noticiários entusiasmados com as realizações do governo que reforçaram, novamente, após dias de conflito, a sensação de bem-estar da população. Pacificação chega a Vila Isabel. UPP do Morro dos Macacos é inaugurada com promessa de investimentos sociais. Serão construídos um centro digital, uma clínica da família, uma creche e uma vila olímpica. O anúncio de que uma piscina, localizada no alto da favela e utilizada exclusivamente por traficantes no passado, será reformada e aberta ao público arrancou aplausos. As crianças da favela não esperaram e ontem mesmo já usavam a piscina (...) O que nós queremos é humanizar as relações entre a polícia e a comunidade – disse o coronel Robson Rodrigues, comandante das UPPs. (O Globo, 01/12/2010, p. 18) (Grifo nosso)

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Noite feliz no Alemão. (O Globo, 05/12/2010, capa) Favela livre. Rompendo o silêncio dos inocentes. (O Globo, 12/12/2010, p. 18) (Grifo nosso) Favela livre. Paes quer recuperar bairros vizinhos aos Complexos da Penha e do Alemão. (O Globo, 12/12/2010, p. 31) (Grifo nosso) Favela livre. Jobim diz que força de paz entra em ação ainda este ano. Força de pacificação vai ter rodízio de militares no Alemão. (O Globo, 12/12/2010, p. 32) (Grifos nossos)

Como se pode falar de uma favela livre justamente a partir da ocupação? Embora, claro esteja que uma “marca” de marketing não permite maiores explicações, vimos que as favelas não foram “libertadas” do tráfico, que continuou acontecendo; vimos que a ação policial continuou repressora, violenta e homicida; que liberdade é essa? UPP em todas as favelas do Rio custaria R$ 321 milhões. (O Globo, 13/12/2010, capa) Favela Livre. Indústrias no embalo das UPPs. Um alemão bacana e legal. (O Globo, 14/12/2010, p. 14)

A Cidadela do Tráfico, apodo com o qual Complexo do Alemão sempre foi “vendido” pela mídia e pelas forças de segurança do governo, de repente ganha uma “repaginada” e passa a se “incluir” na economia capitalista neoliberal como economicamente “produtivo” em todos os elos da lucrativa cadeia, agora, dentro da lei: o comércio, a indústria e o turismo. Tanto é que pouco menos de seis meses depois, em 07 de julho de 2011, com a presença da 174

presidente Dilma, do governador Sérgio Cabral e do prefeito Eduardo Paes, a SuperVia (concessionária que opera os serviços de trens urbanos no Rio de Janeiro) inaugurou o Teleférico do Alemão. Inaugurado no dia 7 de julho de 2011 e administrado pela SuperVia, o Teleférico do Alemão é o primeiro e único transporte de massa por cabo do Brasil. Integrado ao sistema de transporte ferroviário, ele possui seis estações ao longo do Complexo do Alemão: Bonsucesso/Tim, Adeus, Baiana, Alemão/Kibon, Itararé e Palmeiras. Com 152 gôndolas, tem capacidade para transportar 8 passageiros em cada uma em seus 3,5 quilômetros de extensão. Da primeira estação (Bonsucesso/Tim) à última (Palmeiras), a viagem dura cerca de 16 minutos. O Teleférico funciona de segunda a sexta-feira, das 6h às 21h, e nos sábados, domingos e feriados, das 8h às 20h. Os moradores do Alemão, devidamente cadastrado na RioCard, têm direito a duas passagens gratuitas diárias (uma de ida e outra de volta). (SUPERVIA, s/d)

O Estado e a mídia tentam evidenciar que é possível o resgate de áreas dadas como “perdidas”. Fato, como o futuro provou, com novas e violentas operações com resistência e mortes, que nunca é tão “fácil” como se tenta “vender”. No dia 19/12, a exemplo da “Árvore de Natal” do banco Bradesco, já tradicional na Lagoa Rodrigo de Freitas, o Complexo do Alemão também ganhou a sua, com direito à festa de inauguração. Imagem 91

A árvore do Alemão. (O Globo, 20/12/2010, capa)

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Na véspera de Natal, as matérias anunciaram as festas realizadas pelos policiais nas comunidades ocupadas, com direito a policiais distribuindo presentes de dentro do caveirão. Alemão têm 1o cinema em favela. (O Globo, 24/12/2010, capa) Festa para um ano de paz. (O Globo, 24/12/2010, p. 14) Um prêmio pela vida. (O Globo, 24/12/2010, p. 14) Papai Noel Blindado. (O Globo, 30/12/2010, capa)

O ano de 2010 e o primeiro mandato do governo de Sérgio Cabral terminaram com a manchete e a matéria da capa do Réveillon, anunciando os eventos esportivos que haveria nos anos seguintes. Como imagem de fundo, a igreja da Penha iluminada com os fogos de artifício. E os dizeres: “Após décadas de tiros e balas traçantes no Réveillon, apenas fogos de artifício coloriram o Céu do Complexo do Alemão e da Vila Cruzeiro (...) a imagem da Igreja da Penha na chegada de 2011 traduz o espírito de fraternidade e esperança de novos tempos no Rio.” (O Globo, 01/01/2011, capa) Imagem 92

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Em resposta às promessas de “noivado”, entre mídia e governo, o extermínio de moradores das favelas – pobres, pretos, marginalizados – e a “guerra ao tráfico” foram substituídos, no discurso “pós-núpcias”, pela pacificação “humanizada” das “comunidades”. Em um discurso onde se operou um verdadeiro “milagre”, que transformou água em vinho: não mais “bestas-feras” dizimáveis habitavam o perigoso cenáculo; mas comensais prontos para o pão da educação e o vinho da cidadania. A ser dividido na “Nova Aliança”: o tráfico está morto. O Estado é Amor. 4.7 – A renúncia de Cabral em 2014 Apesar da continuidade na política de Segurança, o segundo mandato de Cabral (20112014) foi marcado por uma decadência em sua popularidade. Os primeiros revezes começaram, a partir de um acidente com um helicóptero na Bahia. O trágico acidente trouxe à tona as relações público-privadas entre o governador e seu principal empreiteiro. O nome de Cavendish ainda traria novos desgastes à imagem de Cabral, como veremos adiante. Entre as vítimas do acidente está a estudante Mariana Noleto, de 20 anos. A jovem era namorada de Marco Antônio, filho de Sérgio Cabral. Também morreram o menino Luca, filho de Jordana [Kfuri Cavendish – mulher de Fernando Cavendish, dono da Delta Engenharia, uma das maiores empreiteiras prestadoras de serviços para o governo do Rio de Janeiro], a irmã dela, Fernanda Kfuri, de 35 anos, o sobrinho, Gabriel Kfuri Gouveia, de 2 anos, e a babá das crianças, Norma Assunção, de 49 anos. (...) O motivo da viagem era a festa de aniversário do empreiteiro Fernando Cavendish. O governador Sérgio Cabral e o filho Marco Antonio também participavam da viagem. Eles haviam deixado o Rio na tarde de sexta. Ao chegar a Porto Seguro, na Bahia, o grupo iria embarcar em um helicóptero até Trancoso. A aeronave, que não tinha capacidade para levar todos, tinha previsão de fazer duas viagens. Na primeira foram as mulheres e crianças do grupo. Foi quando o helicóptero, com sete pessoas, caiu. (G1, 22/06/2011) (Colchetes nossos)

Outro fator importante foi o movimento de junho de 2013, que marcou o Brasil inteiro. Em princípio, uma pequena manifestação contra o aumento de R$ 0,20 no valor das passagens de ônibus foi duramente reprimida pelo governo paulista e, como rastilho de pólvora, as ruas das principais capitais do país ganharam movimentos semelhantes, numa onda de contestação em prol da diminuição da inflação, por mais ética na política, contra a corrupção, pelas obras superfaturadas dos estádios da Copa do Mundo, pelo desejo de mudar tudo que está aí – na medida em que, afirmava não ser apenas pelos “vinte centavos”.

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Posterior ao Ocuppy Wall Street30 e à Primavera Árabe31, este movimento ganhou graves contornos de violência pela desastrosa ação da polícia, principalmente contra a atuação dos Black Blocs32. Vide o caso dos coquetéis Molotov disparados por oficiais da P2 (serviço secreto da PM) no Rio contra os próprios colegas de farda, na rua das Laranjeiras, em frente ao Palácio do Governo, fato não noticiado pela grande mídia, mas amplamente divulgado nas redes sociais; o excessivo uso de balas de borracha para reprimir as manifestações; inúmeros quebra-quebras e ataques de ambos os lados, que culminaram na morte do cinegrafista da TV Bandeirantes do Rio, Santiago Ilídio Andrade, em 06/02/2014. Como conquista, os preços das passagens recuaram aos patamares anteriores aos aumentos e a presidente Dilma sugeriu uma reforma política que não vingou. Um dos que mais sofreu com a sua imagem pessoal, de governante e político, foi, sem sombra de dúvidas, o ex-governador Sérgio Cabral. A atuação da PM do Rio de Janeiro, que era carro chefe da “propaganda” do governo com as UPPs (Unidades de Policia Pacificadora), foi excessivamente violenta contra os manifestantes. Somado a isso, o sumiço do pedreiro Amarildo de dentro de uma UPP na Rocinha; a intransigência do governador quanto à retirada dos ocupantes da “Aldeia Maracanã”33, também acompanhada de violência policial; a descoberta da utilização de helicópteros do governo para uso pessoal e familiar; e as acusações de relações questionáveis com empreiteiros; levaram à ocupação da rua Aristides Espínola, no cruzamento com a avenida Delfim Moreira, no bairro do Leblon, onde morava o então governador, com o movimento “Fora Cabral!”. Segundo pesquisa do IBOPE para a Confederação Nacional das Indústrias (CNI), publicada em O Globo, apesar da aprovação à política de Segurança, o governador Sérgio Cabral se tornou o mais impopular do Brasil: “Rio é epicentro da insatisfação política” (O Globo, 26/07/2013, p. 8). Com o desgaste de em sua imagem, o governador Sérgio Cabral se afastou do cargo em 03/04/2014, teoricamente para se candidatar ao Senado, “embalado pela crença de que fez um bom governo” (O Globo, 04/04/2014, p. 11). Uma candidatura que, na prática, não aconteceu em função de sua alta rejeição adquirida ao longo do segundo mandato. A renúncia funcionou 30

Foi um movimento de protesto contra o sistema financeiro norte-americano e as desigualdades econômicas e sociais existentes. Lançado em 17 de setembro de 2011, em Nova York, o movimento foi reproduzido em várias cidades do mundo. 31 Onda de protestos organizados a partir das redes socais da internet, e que tomou as ruas de países do norte da África e Oriente Médio, iniciada em 18 de dezembro de 2010. 32 Grupo que teve origem na Alemanha na década de 70, que se caracteriza por usar roupas e máscaras negras, para protestar contra o capitalismo e a ordem vigente. (FOLHA DE S. PAULO, 11/07/2013) 33 Aldeia indígena urbana, ocupada desde 2006 por indígenas de diversas etnias, no bairro do Maracanã, ao lado do estádio Mario Filho, no local que foi o antigo Museu do Índio.

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apenas para dar maior visibilidade ao seu, até então, vice-governador, Luiz Fernando Pezão, candidato ao governo com muito pouco conhecimento do público fluminense e baixo desempenho nas pesquisas de intenção de voto. A capa de O Globo publicou uma pequena nota sobre a renúncia dos demais governadores de estados, enquanto veiculou uma matéria específica, e bem maior, sobre a renúncia de Cabral, fazendo, também, um balanço das ações do governo do Rio de Janeiro, durante a sua gestão. Conquistas e Polêmicas. Em discussão, o legado de Cabral. Especialistas elogiam avanços do ex-governador Sérgio Cabral, como a criação das UPPs, mas dizem que episódios como o dos guardanapos desgastaram sua imagem. Ele renunciou ontem. (O Globo, 04/04/2014, capa)

A matéria, no interior do jornal, fez um balanço do governo, com gráficos referentes à segurança, educação e saúde e apontou para a UPP como a sua principal bandeira. No gráfico de segurança foi considerado o número de homicídios dolosos; no de educação, o investimento em obras; e no de saúde, o pronto atendimento em hospitais e UPAs. Logo abaixo, numa linha do tempo chamada de “Momentos Importantes”, O Globo escolheu alguns acontecimentos como marco de cada ano: dois de Educação, onde utilizaram o ranking do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) e apontaram para o avanço que partiu do penúltimo lugar, em 2009, para o 15o lugar, em 2013; dois relacionados à Saúde, que foram as inaugurações da primeira UPA em 2007, e do Instituto Estadual do Cérebro, no Centro do Rio, em 2013; um relacionado à Mobilidade Urbana, sobre o investimento das obras de ampliação no Metrô, e três sobre Segurança Pública, a operação do Complexo do Alemão, em 2007; a instalação da UPP no morro Dona Marta, em 2008; e a inauguração da UPP no Alemão, em 2012. “No desafio da segurança, a marca de Cabral” (O Globo, 04/04/2014, p. 11), o texto frisou que a administração de Cabral trouxe avanços significativos nas áreas de Segurança, com a criação das UPPs, nas áreas de Saúde e Educação, nas contas públicas e no relacionamento político com o governo federal. Como pontos negativos, o texto apontou os escândalos do governo relacionados com o desvio e o uso indevido do dinheiro público e, como exemplo, citou o flagrante de secretários com guardanapos na cabeça, em uma festa em Paris34 e o escândalo do uso particular de helicópteros do governo por Cabral e sua família, 34

O episódio que ficou conhecido como “Farra dos Guardanapos” foi denunciado pelo ex-governador Anthony Garotinho em um momento em que Fernando Cavendish, dono da Delta Engenharia, estava sendo investigado pela Operação Monte Carlo, da Polícia Federal, que apontou a Delta como uma das financiadoras de empresas fantasmas do contraventor Carlinhos Cachoeira. Na denúncia foram apresentadas fotografias de diversos

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incluindo o cachorro, que, na época, circularam nos meios de comunicação e nas redes sociais de forma maciça e afetaram, diretamente, a imagem pessoal do governador. A invasão do Complexo do Alemão, no dia 27/06/2007, foi citada como um dos momentos importantes, afirmando que houve 19 mortos. Sendo que, na época, O Globo havia divulgado um número de 22 mortos, apenas no dia 27/06; e considerando os dois meses de ocupação da polícia, que culminaram com a megaoperação do dia 27, os números chegaram a 43 mortos e 81 feridos35. Imagem 94

No gráfico de segurança apresentado pelo O Globo, os dados analisados foram os números dos homicídios dolosos, que tiveram uma queda significativa entre 2007 e 2012, voltando a subir em 2013. No entanto, em nenhum momento foram analisados os dados referentes ao número de homicídios decorrentes de intervenção policial – conhecidos como autos de resistência. Se utilizarmos os dados registrados pelo Instituto de Segurança Pública

secretários de Cabral, juntos com Cavendish, com guardanapos na cabeça, em Paris. No material divulgado por Garotinho, aparecem, também com o casal Cavendish, Cabral e a mulher, Adriana Anselmo, durante um jantar realizado no restaurante Hotel de France, em Mônaco, um dos mais badalados e caros da Europa, quando comemoravam o aniversário da primeira-dama. 35 Segundo o manifesto público contra a mega-operação no Alemão foram, desde o dia 02 de maio, mais de 43 mortos e 81 feridos. (JUSTIÇA GLOBAL, 28/06/2007)

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(apenas para termos uma pequena ideia do número), só no mês de junho de 2007, no estado do Rio, foram 108 mortes (ISP, s/d). Sobre os escândalos, como o do assassinato do pedreiro Amarildo, na Rocinha, para defender sua “menina dos olhos”, a estratégia de Cabral, e de O Globo, foi apresentar essas situações como casos isolados e se apoiar na punição dos culpados, nesse caso o comandante da UPP, major Édson dos Santos. As manifestações populares de junho 2013 que, no Rio de Janeiro, tomaram uma proporção enorme, chegando a ter em 20/06, segundo O Globo, 300 mil pessoas nas ruas protestando contra o governo (O Globo 21/06/2013, capa), sequer foram citadas nesse balanço. Como vimos, a UPP se tornou não somente uma política de controle social, mas uma marca institucional. Podemos dizer que foi exagerado o esforço de O Globo em construir uma imagem positiva do governo do Estado do Rio de Janeiro, uma verdadeira “lua de mel”.

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CAPÍTULO 5: VIGIAR, PUNIR E EDUCAR Em Vigiar e Punir (1999a), Foucault, utilizando o método genealógico, faz uma análise das práticas punitivas e marca, na história do poder, um momento central: a passagem da soberania à disciplina, apresentando as práticas de punição que existiam antes do sistema penitenciário/penal. Ao tomar a prisão como objeto, ele põe em questão as redes de poder– saber a ela associadas, em nossa sociedade, por meio do caminho das tecnologias, perguntando como se pune em cada tempo. Descrevendo o suplício, o autor nos coloca diante de cenas sacrificiais violentíssimas. Naquela forma de punição, o condenado era submetido a uma exposição pública de suas penas, a um espetáculo de atrocidades sobre o corpo que era supliciado, visando a reativação do poder soberano do rei, que havia sido ameaçado na execução do crime. O soberano encarnava a lei e, na medida em que ela era transgredida, o próprio corpo do rei era atacado, o que exigia uma ação imediata para reativar o poder soberano. O supliciado servia de exemplo para os outros. Política do medo, onde, nas marcas do corpo supliciado, todos deveriam ver a presença encolerizada do soberano, reativando o seu poder. O suplício judiciário deve ser compreendido também como um ritual político. Faz parte, mesmo num modo menor, das cerimônias pelas quais se manifesta o poder (...). O suplício tem uma função jurídico-política. É um cerimonial para reconstituir a soberania lesada por um instante. Ele a restaura manifestando-a em todo o seu brilho. (FOUCAULT, 1999a, p. 41)

O ritual do suplício tinha suas limitações, precisava ser reativado a cada quebra de poder do soberano, a cada violação da lei; além de inspirar revolta na multidão que o assistia. No decorrer do século XVIII, um grupo de reformadores, tendo em vista que os suplícios cada vez atemorizavam menos e incitavam mais à revolta – em função dos movimentos de resistência àquela forma de exercício do poder – criou um novo modelo de punição: a prisão, onde em vez de supliciar, produzia–se a culpabilidade sem o espetáculo da crueldade. Na sociedade monárquica, existiam os calabouços, escuros e úmidos, onde os acusados de crimes aguardavam o julgamento do Rei ou o cumprimento da sentença. No entanto, estar ali não era considerado o cumprimento da “pena” pelo ato cometido.

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Este novo tipo específico de poder, Foucault (1999a) chama de poder disciplinar. Tornou–se uma fórmula geral de dominação a partir dos séculos XVII e XVIII, tendo ainda como alvo o corpo do homem, no entanto, efetuando nele um trabalho de manipulação, que produz seu comportamento, visando permitir uma relação de docilidade–utilidade, levando à sua máxima utilização em termos econômicos. Absolutamente sintonizada com a nova ordem econômica industrial emergente, que tinha pouco interesse em corpos mutilados e ineficientes do ponto de vista da produtividade. Foucault toma como modelo prenunciador das instituições disciplinares o projeto de arquitetura – Panopticon – de Bentham (1977), elaborado em fins do século XVIII. O projeto de um edifício em forma de anel, no meio do qual há um pátio com uma torre no centro. O anel se divide em celas voltadas tanto para o exterior quanto para o interior, sem ponto de sombra. O modo de difusão da luz faz com que o encarcerado não consiga enxergar o exterior, nem o vigilante no centro da torre. Na torre central, por consequência, um vigilante a tudo pode observar, sem ser visto. A certeza de estar sendo olhado sem poder ver, a suspeita de uma vigilância constante sobre si, sem poder exercer esta vigilância sobre outrem, estende a eficácia do poder, para quem a ele está sujeito, que passa a exercer tal vigilância, espontaneamente, sobre si mesmo. Como consequência, o exercício do poder pode independer de aspectos físicos, tendendo ao incorpóreo, e quanto mais se aproxima desse limite, mais seus efeitos se tornam adquiridos de forma profunda e contínua, sendo internalizado pelo sujeito (FOUCAULT, 1999a). Imagem 95

Imagem 96

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Esta forma de poder vem suceder às sociedades de soberania, cuja função era muito mais a de decidir sobre a morte do que a de gerir a vida. Tendo como alvo o corpo do homem, as disciplinas se apresentam como “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhe impõem uma relação de docilidade–utilidade” (FOUCAULT, 1999a, p.118), visando aprimorá-lo, adestrálo para, dele, obter o máximo de produtividade. O poder disciplinar se exerce sobre e pelo corpo. Atua de forma classificatória, hierarquizando os comportamentos, os resultados obtidos individualmente e procurando efetuar uma correção de modo que todos se pareçam, de maneira a se enquadrarem dentro das normas sociais. Assim, nas palavras de Basílio (2011): A disciplina, expressão dinâmica do poder na ordem das instituições, consubstancia–se em dispositivos que, como instrumentos normalizadores, correspondem ao modo peculiar de disposição do conjunto de meios e das táticas implícitas na organização dos aparelhos de controle e no interior dos mecanismos disciplinares, tanto em relação ao funcionamento, quanto à conexão destes entre si. Deste modo a disciplina opera sem se identificar com qualquer instituição ou aparelho, permanecendo sempre como uma modalidade do exercício do poder no quadro específico das relações sociais. (BASÍLIO, 2011, p. 30)

Diversas tecnologias da sociedade disciplinar foram descritas por Foucault (1999a): o controle do horário, dos gestos, a uniformização, a individualização dos corpos, a classificação, a divisão em séries, a organização do espaço. Foucault chama a disciplina de anatomia política – seu objetivo é tornar os homens dóceis e úteis. Foucault, na conferência IV de A verdade e as formas jurídicas (1999b) descreve o regulamento de uma instituição fortemente fronteirizada, que funcionou durante os anos 1840/45 na França, que capturava e isolava os indivíduos, de modo a submetê–los, o mais intensa e longamente possível, ao disciplinamento. Era uma instituição onde havia 400 pessoas que não eram casadas e que deveriam levantar-se todas as manhãs às cinco horas; às cinco e cinquenta deveriam ter terminado de fazer a toillete, a cama e ter tomado café; às seis horas começava o trabalho obrigatório, que terminava às oito e quinze da noite, com uma hora de intervalo para o almoço; às oito e quinze jantar, oração coletiva; o recolhimento aos dormitórios era às nove em ponto (...) Que instituição era essa? No fundo a questão não tem importância, pois poderia ser qualquer uma: uma instituição para homens ou mulheres, para jovens ou para adultos, uma prisão, um internato, uma escola ou uma casa de correção. (...) Na verdade era simplesmente uma fábrica. (FOUCAULT, 1999b, p. 109)

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Como nos mostrou Foucault, em sua análise genealógica das práticas punitivas, a sociedade foi produzindo e desenvolvendo tecnologias de exercício de poder e de controle, recriando o conceito de crime e os modos como se deve combatê–lo, em função da “eficácia” das tecnologias, dos movimentos de resistência e dos interesses econômicos das elites de cada época. A partir da prisão, as tecnologias disciplinares se “espalharam” por diversas instituições: a escola, as fábricas, os hospitais. Se modificaram ao longo dos tempos, se recriaram de outras formas, mas continuam tendo força e sendo reproduzidas nas práticas atuais. Percebemos que o discurso da educação como prevenção ao crime – a ideia hegemônica de que por meio da educação evitaremos que um jovem vá para o “mundo do crime” e de que a “educação” é a sua porta de saída, sendo ela muitas vezes considerada, inclusive, a maior arma no combate à criminalidade – foi produzido como redentor da humanidade de forma maciça durante a implantação das UPPs, e acabou por ser defendido e proclamado pela grande maioria da população. Notamos que o forte discurso, de que contra a tendência à criminalidade das classes pobres, apenas uma arma seria eficaz – a educação de seus membros – e as versões mais elaboradas dessa argumentação conseguiram arregimentar tempo, pessoal e financiamento para diversos projetos, instituições e indivíduos, principalmente por se colocarem como uma opção “humanitária” às soluções repressivas. Não acreditamos numa educação ideal, como Platão propôs em A República, nem pretendemos questionar a “eficácia” dos projetos socioeducativos realizados em favelas como forma de diminuição da criminalidade. A nossa perspectiva é a discussão da criminalização de determinados segmentos (homens, jovens, pretos, pobres e favelados) e as práticas a eles destinadas. Buscamos desnaturalizar alguns conceitos que são tidos como naturais, apresentados de forma maciça na mídia, se transformando numa “opinião publicada” e se tornando um modo de pensamento dominante. Os projetos educativos destinados a jovens e moradores de favelas viveram uma acentuada proliferação durante o governo de Sérgio Cabral, no Rio de Janeiro; foram realizados pelo governo, por empresas e por ONGs. Funcionando como programas que podiam ser aplicados, modificados, redimensionados e atualizados segundo demandas específicas, mas que se legitimavam e se atualizaram a partir de discursos dominantes. Nessa empreitada de “educar”, “punir”, “ressocializar” o “potencial criminoso” – o jovem preto e pobre das favelas do Rio de Janeiro – se produziu um determinado sujeito: o técnico, o especialista, o educador social, o policial professor. 185

Citando Foucault: Na segunda parte do meu trabalho, estudei a objetivação do sujeito naquilo que eu chamarei de “práticas divisoras”. O sujeito é dividido no seu interior e em relação aos outros. Esse processo o objetiva. Exemplos: o louco e o são, o doente e o sadio, os criminosos e os “bons meninos”. (FOUCAULT, 1995, p. 231)

Observamos permanências histórico-culturais de tecnologias disciplinares, dos séculos XVII e XVIII, desembocarem em práticas pedagógicas contemporâneas representadas como solução à violência, sempre associada aos espaços das favelas. Práticas que inculcam uma determinada visão sobre os conceitos de crime, direitos e educação. Com o neoliberalismo, o estado mínimo e o estrangulamento do mercado de trabalho, dentre outros aspectos do capitalismo contemporâneo de controle globalizado, a falta de escolarização e o desemprego definem aqueles que escaparam do processo de intitucionalização, disciplinarização e normalização da escola. Desse modo, o discurso do crime tem sido construído, produzido, com e a partir do discurso da educação. Porque se o jovem da favela ou da periferia não está na escola, se o jovem não está trabalhando, se não faz parte de algum projeto social, é porque está à toa, é porque está no crime. Notamos que na discussão sobre Segurança Pública, o tema “Educação” tem uma “participação-chave”. Vimos a mídia e outros dispositivos sociais, tais como a política governamental, o Ministério Público, as empresas de modo geral, as ONGs, entre outros, produzindo uma forma de perceber e pensar a questão da Segurança Pública atrelada a discursos educacionais. Sejam os discursos que culpabilizam, colocando a violência como decorrente da dificuldade de acesso à educação e da baixa qualidade do ensino; sejam os que apontam soluções milagrosas, colocando “na conta” dos projetos socioeducacionais a expectativa de mudança nos índices de criminalidade e violência. Em nossa análise nos referimos a tais práticas como fazendo parte da lógica de funcionamento do capitalismo contemporâneo, estando a seu serviço no sentido de tentar “integrar” parcelas que podem vir a se tornar perigosas caso escapem da escola e/ou de outros aparelhos de normatização. Dentro da lógica da “inclusão” ao modelo capitalista, a escolarização funcionaria, pois, como uma possibilidade de prevenção ao envolvimento do jovem, em especial os pobres, com a ilegalidade e o crime. Sem ela, afirmam os especialistas, seu destino já estaria traçado; marginais pela própria natureza e condição, “geograficamente definidos antes mesmo de nascer, reprovados de imediato, eles são os excluídos por excelência” (FORRESTER, 1996). O que se poderia esperar deles? Quaisquer formas de escape passam a ser vistas como transgressões às normas instituídas. Seria possível encontrar outras referências nos modos de vida dos jovens considerados fracassados na escola? Outros sentidos poderiam estar atravessando seus comportamentos considerados inadaptados? (COIMBRA e NASCIMENTO, s/d, s/p)

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Observamos, durante o período pesquisado, a implantação de diversos projetos socioeducacionais realizados pelos policiais das UPPs e projetos em parceria com o governo do estado, realizados por voluntários, ONGs, instituições e empresas. Partindo do pressuposto de que, por meio de diversas práticas, se conectam maneiras para amplificar formas de controle da população, entendemos a inclusão dos sujeitos considerados “perigosos”, “em situação de risco”, “em vulnerabilidade social”, “reincidentes” “egressos do sistema” em projetos socioducacionais, como apenas mais uma prática de controle. Esses projetos fazem parte de uma engrenagem de equipamentos sociais de proteção à infância e à juventude, permeados pelos discursos de “proteção” e “inclusão social”. Cercados por discursos técnico-científicos e articulados com os discursos jurídicos, esses dispositivos de controle atuam na produção de sujeitos. Não podemos deixar de discutir a produção histórico-política desses equipamentos e de lançar as questões: de que “proteção” estamos falando? A que “educação” estamos nos referindo? Essas questões são trabalhadas por Nascimento e Scheivar (2005), no artigo Infância: discursos de proteção, práticas de exclusão, onde são discutidos os conceitos de proteção e de exclusão social. Para as autoras, os discursos sobre as práticas protetivas se situam no âmbito da filantropia e são vistos, apenas, pelo seu lado de amparo; não sendo levado em conta que essa “proteção” é diferenciada, variando em função da condição de classe do público ao qual se aplica. Elas apontam para a consolidação do conceito de exclusão, a partir da obra de René Lenoir (1974); Os excluídos, entendidos como “aqueles que manifestam uma incapacidade de viver como todo mundo”: Esta visão expressa uma concepção social baseada em modelos, a partir da qual quem não se enquadra torna–se um "excluído social". Tal ótica, que desconsidera a multiplicidade das formas de existência, impõe modos de ser distanciados das condições concretas necessárias à sua realização. Estabelece–se, assim, o binômio exclusão/inclusão de forma dicotômica e intransigente. (NASCIMENTO e SCHEIVAR, 2005, p. 55)

Na perspectiva de Foucault (2001), a inclusão e a exclusão são como “dois lados da mesma moeda”, pois são parte de um mesmo processo de normalização, que se dá a partir do enquadramento dos indivíduos. Ele [o processo de normalização] se dirige a outro objeto, ele traz consigo técnicas que são outras e que formam uma espécie de terceiro termo insidioso e oculto, cuidadosamente encoberto, à direita e à esquerda, de um lado e do outro, pelas noções jurídicas de “delinquência”, de “reincidência”,

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etc., e os conceitos de doença, etc. Ele propõe, na verdade, um terceiro termo, isto é, ele pertence verossimilmente – e é o que eu gostaria de mostrar a vocês – ao funcionamento de um poder de outro tipo, que eu chamarei, provisoriamente e por enquanto, de poder de normalização. (FOUCAULT, 2001, p. 52)

O autor descreve a exclusão dos leprosos, prática social da Idade Média, onde o indivíduo declarado leproso era expulso da cidade, para “purificar” a comunidade; e a emergência do modelo da inclusão do pestífero, onde o território não era o confuso exterior à cidade, mas, sim, a própria cidade, encerrada e constituída como território fechado. Objeto de uma análise sutil e detalhada, de um policiamento minucioso. “Não se trata de expulsar, tratase ao contrário de estabelecer, de fixar, de atribuir um lugar, de definir presenças, e presenças controladas.” (Ibid., p. 57) Foucault chama essa substituição da lepra pela peste, da exclusão pela inclusão, de “invenção das tecnologias positivas de poder”. Passou–se de uma tecnologia de poder que expulsa, que exclui, que bane, que marginaliza, que reprime, a um poder que observa, um poder que sabe e um poder que se multiplica a partir de seus próprios efeitos. (Ibid., p. 60) A norma traz consigo ao mesmo tempo um princípio de qualificação e um princípio de correção. A norma não tem por função excluir, rejeitar. Ao contrário, ela está sempre ligada a uma técnica positiva de intervenção e de transformação, a uma espécie de poder normativo. (Ibid., p. 62)

Seguindo esse caminho, entendemos os projetos realizados nas favelas pelos policiais das UPPs, ou em parceria com ONGs e outras instituições, inclusive com as escolas públicas, como programas contemporâneos de contenção e formatação das condutas. Espaços de operacionalização do controle, onde o poder atua de forma diferente das chamadas instituições de sequestro, como a escola e a prisão, pois não acontecem, necessariamente, em espaços fechados, mas sem perder a herança dos dispositivos disciplinares dos séc. XVII, XVIII e XIX e seus efeitos normalizadores. 5.1 – O discurso da educação como estratégia de controle No início do primeiro mandato do governador Sérgio Cabral, em março de 2007, já vimos emergir um discurso que pouco mais tarde se tornou dominante – o da implantação de projetos sociais nas favelas, como um dos “braços” da sua política de Segurança.

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O governador visitou duas favelas onde aconteciam projetos educativos com crianças e jovens e participou da inauguração de um deles, em Parada de Lucas. Na ocasião, tanto o governador, como o comandante-geral da PM tocaram instrumentos musicais e posaram para fotos com crianças e jovens. Imagem 97

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Na matéria, o governador Sérgio Cabral afirmou: “Eles [os projetos socioeducacionais em favelas, com crianças e jovens] fazem a interseção entre a comunidade e os policiais, humanizando essa relação, que tem que ser cada vez mais de parceria.” (O Globo, 28/03/2007, p. 16) Por conta da nossa história marcada pela violência e pela repressão da polícia, a cultura policial é percebida como autoritária e violenta, principalmente nos territórios da pobreza. As falas dos moradores entrevistados no Cantagalo corroboram: Porque uma vez ali dentro, quando a pessoa decide ser policial, já tá fazendo a jogada do governo, a pessoa tem que ficar ali na disponibilidade do que o Estado mandar fazer. Então se ele mandar a pessoa ir com uma

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guarnição, uma equipe desabrigar um monte de pobre, favelado que não tem pra onde ir, a pessoa vai ter que ir, vai ter que vestir a carapuça. O monstro vira o policial, quando na verdade é o governo, é o Estado. (Grifos nossos) Eu não acredito que numa guarnição todos sejam filhos da puta, não é possível. Não é possível que quando uma pessoa escolha ser policial ela já entrou com má intenção. Tudo é um processo. E os que se mantém invictos, honrando a farda, são os heróis dessa guerra toda. (Grifos nossos) E se a pessoa já cresceu com aquela visão que policial é verme, é inimigo, a pessoa não vai frequentar [se referindo aos projetos socioeducacionais realizados pelas UPPS], não vai acatar. Porque já tem uma ideia formada na cabeça, já tem aquela lavagem cerebral. Tá fardado, é inimigo. Mesmo fazendo projeto social, as pessoas não aceitam. (Grifos nossos) Pra mim eles são policiais, não são professores, porque eu nunca fui lá falar com eles. Meus filhos trouxeram o papel, eu assinei, mas nunca fui lá. Por mim eu não queria que eles fossem não [os filhos, ao projeto das UPPs], mas acabei deixando. Era porque eu não gosto muito. Desde a época que mataram meu tio que eu não gosto de polícia. Aí eu não queria nem que eles fizessem. Eu nem cumprimento policial. (Grifos nossos)

Os projetos com crianças e jovens nas favelas pacificadas, realizados por policiais, foram uma ferramenta para incutir na população moradora das favelas, e na sociedade civil, de um modo mais geral, que os policiais da UPP seguiam um procedimento diferente, baseado na ideia de polícia comunitária. As Unidades de Polícia Pacificadora, além da contenção ao retorno do tráfico nas comunidades pacificadas, normalmente desenvolvida por um grupo chamado de “Grupo Operacional da UPP”, tinham como objetivo, talvez o principal: a aproximação entre a comunidade e a polícia, pressupondo a disposição de uma “relação amigável” com a população moradora do local. Não se tratava de uma política isolada, mas de um “controle pacífico”, necessário para a instalação e ampliação das demais políticas sociais e serviços públicos. Uma das táticas para o fortalecimento dessa “relação amigável” se deu com a implantação de diversos projetos, realizados pelos próprios policiais das UPPs. Podemos citar como exemplos: as aulas de violão e de xadrez nas comunidades Babilônia e Chapéu Mangueira; de violino, violoncelo, viola, contra-baixo, musicalização e coral, no morro Dona Marta; do projeto Cine Clube Comunidade, natação, capoeira, taekwondo e aulas de reforço no Jardim Batan, em Realengo, na Zona Oeste do Rio de Janeiro; aulas de karatê, no morro da Providência; futsal e vôlei, na Ladeira do Tabajaras; música e futsal no complexo Cantagalo/Pavão/ Pavãozinho; entre outros.

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5.2 – O policial professor Observamos emergir uma relação, que antes não víamos ocorrer: a relação direta da polícia com atividades educacionais, trazendo um discurso de disciplinamento e controle pacífico. A Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) dos morros Pavão-Pavãozinho e Cantagalo completou um ano ontem. Para comemorar, alunos do projeto Soul da Paz, da escola de música da UPP, fizeram uma apresentação no colégio Solar Meninos de Luz, no Pavãozinho, na noite de quarta-feira. Segundo o capitão Leonardo Nogueira, comandante da UPP, a escola tem 25 alunos e funciona há 7 meses (...) Considerada estratégica para a pacificação, a aproximação com crianças e adolescentes tem sido estimulada pelo comando da Polícia Pacificadora. (O Globo, Rio, 24/12/2010, p. 14) (Grifo nosso) No Morro da Babilônia, por exemplo, crianças de 8 a 14 anos ainda podem se inscrever para participar do campeonato de futebol organizado pela PM na quadra de esportes. A Secretaria de Segurança vai dar troféus e medalhas para o time vencedor do torneio, que começa às 10h da próxima segundafeira. Também haverá pagode, churrasco, pipoca, algodão doce e muitas brincadeiras. (O Globo, Rio, 8/10/2009, p. 12) (Grifo nosso) Aulas de Jiu-jítsu aproximam policiais de jovens na Cidade de Deus. Esporte também aumentou autoestima e rendimento escolar. O projeto esportivo tem contribuído para aproximar os policiais dos moradores da Cidade de Deus. Por meio dele, além das lutas da arte marcial, a principal lição aprendida pelas crianças e jovens alunos dos policiais da UPP se baseia em três pilares: disciplina, atenção e respeito. (GOVERNO DO RIO DE JANEIRO, 2012) (Grifo nosso)

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Aulas de Jiu-jítsu na Cidade de Deus.

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Policial dando aulas de reforço escolar para jovens da Cidade de Deus. Em entrevista para a TV Record, programa Balanço Geral (YOUTUBE, 06/10/2011), apresentado pelo deputado estadual Wagner Montes (PRB), encontramos uma entrevista com o PM, soldado Leandro Aragão, responsável pelo projeto de reforço escolar na Cidade de Deus. Ele diz: A gente procura disciplinar os alunos para que eles possam desenvolver, porque sem disciplina e rotina o aluno não consegue assimilar o conhecimento. Esse trabalho é feito juntamente com a professora Vera, que se ofereceu e faz um trabalho voluntário com a gente. (Leandro Aragão – soldado da PM) (YOUTUBE, 06/10/2011) (Transcrição de vídeo nossa) (Grifo nosso) Imagem 101

Policial dando aula de reforço escolar. Captura de tela de vídeo. 192

O vídeo termina com cenas da aula acabando e o policial entrando no carro da PM e indo embora: “Fim de aula, o professor volta a ser policial.” (Narração da repórter) (Grifo nosso) Imagem 102

Aulas de natação no Batan Imagem 103

Colônia de férias no Morro da Formiga

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Aulas criam pontes entre policiais e jovens. Soldado ensina violão a meninos da Babilônia. (O Globo, Rio, 23/09/2012, p. 20) (Grifo nosso)

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Policial dando aula de violão no Morro da Babilônia Em reportagem publicada no jornal O Dia, “Tropa a serviço da Educação” (O DIA, 28/07/2010), podemos ver a foto de um policial, fardado, dando aula de violão e no texto a expressão “professores-policiais”, onde lemos também: Os acordes um tanto desafinados que saem do violão soam suaves para crianças do CIEP Presidente João Goulart, no Cantagalo, em Ipanema. Acostumadas a fugir de sons ensurdecedores de tiros e granadas, elas agora se aproximam, sem medo, dos professores-policiais, como o terceirosargento Edson Dutra Borges, da Unidade de Polícia Pacificadora. Duas vezes por semana, ele se reveza com o comandante da UPP, capitão Leonardo Nogueira, nas aulas de Música para estudantes e moradores. Como ele, dezenas de policiais reforçam o ensino regular nas 13 comunidades pacificadas, beneficiando mais de 41 mil estudantes. (O DIA, 28/07/2010) (Grifo nosso)

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Policial dando aula de música na favela do Cantagalo A matéria segue: Os PMs dessas comunidades estão indo além da rotina policial e se transformando em educadores para levar crianças de volta às salas de aula. Tentamos mantê-los ocupados com atividades extras e mostrar que eles podem confiar na PM, explica o terceiro-sargento Borges. Ele lembra que no início as famílias ficavam com pé atrás. "Os pais vinham ver o que estávamos fazendo, até verem que o trabalho é sério", recorda Borges. Para Sílvio Júnior, 12 anos, e Maria Suellya, 11, a música ajuda nos estudos. "Tocar um instrumento acalma, aprimora a concentração e facilita o aprendizado", reitera o professor Borges. (O DIA, 28/07/2010) (Grifos nossos)

No texto, o policial é chamado nas primeiras linhas de “terceiro-sargento” Borges e, no fim, de “professor” Borges. Em sua fala, traz objetivos e conceitos que se atravessam. Mantêlos ocupados em atividades extras, confiar na polícia, acalmar, aprimorar a concentração e facilitar o aprendizado. Disciplinamento e controle por meio da educação: controle do tempo e da atividade para “produzir corpos submissos, dóceis e úteis”. (FOUCAULT, 1999a) A reportagem a seguir, publicada em 03/11/2012, pelo G1, descreve as aulas voluntárias de reforço escolar e de atividades esportivas para jovens e adultos de comunidades ocupadas pelas UPPs, como parte da estratégia de proximidade entre os policiais e os moradores.

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Depois de anos encarando a farda e o coturno como sinônimos de violência e troca de tiros, moradores do conjunto de favelas do Alemão, no subúrbio do Rio, se adaptam a uma nova realidade. Como parte das estratégias de proximidade com os moradores, policiais de unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) do Alemão começaram a dar aulas voluntárias de reforço escolar e de atividades esportivas para jovens e adultos das comunidades. (G1, 03/11/2012) (Grifo nosso)

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Na mesma reportagem, um dos “policiais-professores” descreve a sua função, tentando responder a questão: “é possível ser policial e professor ao mesmo tempo?” Às vezes eles me perguntam se ainda sou policial. Respondo que sou professor e policial, mas que o mais importante é que sou igual a eles. A única coisa que muda é a farda. A gente está tentando mudar essa visão que eles tinham dos policiais. (G1, 03/11/2012) (Grifos nossos)

Precisamos colocar em análise o sentido que se produz quando os policiais dão aulas para jovens pobres, partindo do pressuposto de que esses jovens são concebidos pela sociedade como “perigosos” ou “em situação de risco”. O sentido historicamente atribuído ao policial, daquele que reprime, pune e mata se recria no lugar do professor, daquele que educa. É uma estratégia brilhante de aproximação entre a comunidade e a polícia. As famílias passam a confiar no policial, pois ele é “o professor”, chegando ao ponto de entregarem seus filhos àqueles que, antes, tanto temiam. 196

Ainda nessa reportagem, outro policial, neste caso especializado em lutas marciais, diz: A gente sabe que mente ociosa só dá para o mal e tivemos a oportunidade de empenhar um tempo a mais para fazer alguma coisa por essa garotada. A luta não é para brigar, é para educar e ensinar a ter disciplina. Estamos mudando eles em doses homeopáticas, sem que eles sintam. É bacana ver o carinho e o respeito que essas crianças passaram a ter pela gente. (G1, 03/11/2012) (Grifos nossos)

Sílvio Gallo (2005) nos alerta: A educação tem sempre se valido dos mecanismos de controle. Se existe uma função manifesta no ensino – a formação / informação do aluno, abrirlhe acesso ao mundo da cultura sistematizada e formal –, há também funções latentes, como a ideológica – a inserção do aluno no modo de produção, adaptando-se ao seu lugar na máquina. A educação assume, desta maneira, sua atividade de controle social. E tal controle acontece nas ações mais insuspeitas (GALLO, 2005, p. 81) (Grifo nosso).

Vejamos as falas das moradoras entrevistadas sobre essa mudança no sentido atribuído à figura do policial. A maioria delas afirmou que tinha receio dos filhos participarem dos projetos da UPP, mas acabaram absorvendo a ideia de que há dois tipos de policial, o “policial do mal”, corrupto e violento e o “policial do bem”, professor dos projetos. O professor que tá lá dentro é diferente do policial que tá na comunidade. Porque o professor do projeto da UPP não é o mesmo que fica fazendo ronda na comunidade. Eles só trabalham na parte de dar aula. (Grifos nosso) Eu aprendia tudo lá dentro. As atividades eram maneiras. A minha vocação era de ser policial, e agora mudei, não quero mais. Aprendi a ter uma visão melhor deles. Antes eu só via as pessoas armadas querendo confronto com a gente. Agora eu vejo pessoas normais querendo paz e não uma guerra. (Morador do Cantagalo) (Grifo nosso) Ah. Tem policiais que eu confio plenamente, e outros não, não só eu mas a comunidade também. Meu filho participa do projeto do circo, mas se ele quisesse, eu deixava ele fazer com os da UPP, sim. (Grifo nosso) Aqui todo mundo tem desconfiança do policial, mas eu vi o esforço dos “polícia” que eles estavam aqui não pra oprimir, mas sim queria passar que eles estavam aqui pra fazer uma coisa do bem, principalmente com as crianças, que são as principais vítimas do tráfico, porque criança é o bicho mais inocente, é o mais fácil de ser manipulado. Então era uma forma de prevenir. (Grifo nosso) Na rua a gente vê outras coisas. Mas lá dentro da sede, a gente vê pessoas respeitosas. Tem os locais onde os policiais ficam, então ele pode ser P2 ou P5, por exemplo e eles podem mudar de opção. P5 cuida das crianças assim em geral, ficavam com a UPP Mirim, P2 cuida do pessoal que vai ser preso em geral, tem outros que rodam pela comunidade. (Grifos nossos)

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Assim que a UPP entrou, era o comandante Nogueira. Ele foi um dos melhores comandantes da UPP, porque ele quis interagir com a comunidade, quis fazer um trabalho mesmo do bem, aqui. Ele veio na intuição mesmo de interagir com a comunidade para tirar aquela imagem da polícia, enfim, teve oficina de percussão, de futsal e teve oficina de ginástica pra terceira idade. A ginástica bombava. Era pra adulto e funcionou bastante, acho que uns dois anos. (Grifos nossos)

Outra matéria, publicada no site da UPP do governo do Estado do Rio de Janeiro, em 09 de novembro de 2012, descreve o projeto “Música para todos”, na comunidade do Borel, onde os policiais dão aulas de música. Uma criança que participa do projeto disse: – “Isso aqui é uma maravilha. O projeto é bom e faz a diferença. Meus pais não me deixam faltar e dizem que o projeto não me deixa na rua fazendo besteira e vai me ajudar a melhorar como pessoa”. (GOVERNO DO RIO DE JANEIRO, 2012) (Grifo nosso) Imagem 107

Aula de música no Borel. Esta frase – “não me deixa na rua fazendo besteira” – e a fala dos policiais nas reportagens anteriores – “Tentamos mantê–los ocupados em atividades extras; a gente sabe que mente ociosa só dá para o mal” – foram respostas recorrentes quando questionamos os pais sobre a importância da participação de seus filhos nos projetos socioeducacionais. Para a grande maioria, o fato dos projetos manterem os seus filhos ocupados para “não ficarem pelos becos”, “não arrumarem ideia”, “não se meterem com os meninos” (se referindo aos jovens que ficam nas bocas de fumo), “não ficarem à toa”, “não irem pro caminho errado” foi a principal importância apontada. Um discurso muito forte que se reproduziu nas falas dos moradores do Cantagalo entrevistados: 198

Com certeza, porque ele vai ficar o dia todo sem fazer nada e aquilo [se referindo ao tráfico de drogas] é prático. Ele vê a contagem, aí um oferece, aí ele vai experimentar, aí oferecem de novo aí vão e falam que ele tem que fazer um favor, aí daqui a pouco faz um outro favor, aí quando vai ver ele olha aquele “paco” de dinheiro, sabe como que é? Poxa, dinheirão. Essa aqui é minha comissão. Essa pergunta que você me fez é isso que eu vejo na minha vivência, todo o dia. (Grifo nosso) Se a pessoa deixa de ficar na beira do caminho vendo e ouvindo as coisas ruins e vai pra escola pra aprender outras coisas, outras culturas, a mente da pessoa não fica vazia, porque mente vazia, “só Jesus”. (Grifos nossos) Até hoje eu lembro de muita coisa boa. Várias coisas, eu passei ali com a mente naquela coisa, então eu não me abria pra outras coisas, se não eu hoje em dia ia estar igual essas meninas, fumando, bebendo, só querendo saber da madrugada. Eu gosto de ficar em casa. (Grifo nosso) Claro, quanto mais atividades eles fizerem, menos eles vão ter tempo para pensar em entrar para a vida do tráfico. É uma ocupação na vida do jovem. Nos projetos eles ensinam, pegam o jovem, conversam e assim vai... (Grifo nosso) Os projetos servem pra ocupar a mente das crianças, pra eles não se envolverem com o tráfico. (Grifo nosso) Eu passava mais tempo lá [se referindo ao projeto da UPP] do que em casa. Então eu não pensava em besteira. [Que tipo de besteira?] Ah, todas. Namorar, funk, bebida e outras coisas. (Grifos nossos)

Observamos que, a expressão “educação”, quando o foco recai para as supostas classes perigosas toma um sentido peculiar – como um antídoto a ociosidade e a criminalidade e não como um instrumento de formação que proporcione melhores chances de igualdade social; tecnologias disciplinares que objetivam controlar, corrigir e individualizar - evitar que o jovem entre para o “mundo do crime”. Em uma outra matéria publicada no site da UPP sobre o projeto “Música para todos”, observamos a fala de um dos policiais que ministra aulas de teclado e violão, na comunidade do Borel, sobre a sua relação com os alunos.

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Policial-professor de música no Borel. Nossa relação com alunos é muito boa. Aconselhamos as crianças, conversamos para saber o que está acontecendo (...) O único requisito é ser alfabetizado, porque tem a parte teórica e prática. A cada seis meses é aplicada uma prova de nivelamento. Aqui acontece realmente o processo de pacificação. A UPP entrou em nível educacional com muitos projetos para a comunidade. (...) O resultado é visto nas próprias histórias (...) o sonho de um aluno era ser o ‘dono do morro’. Eu falei que pra isso acontecer ele teria que estudar muito, prestar concurso para a Polícia Militar e depois de quatro anos ele poderia virar comandante da UPP. Pronto, logo o desejo do menino se transformou. (GOVERNO DO RIO DE JANEIRO, 18/03/2014) (Grifos nossos)

O desejo do menino se transformou. Guattari e Rolnik (1986) denominam esse processo de produção de subjetividade serializada, capitalística36, com a destruição dos processos de singularização que levam à construção de subjetividades criativas e alternativas. Observamos, a partir das falas dos policiais, o caráter de controle das atividades, já que os objetivos apresentados são de aproximação com as comunidades, como forma de tornar mais aceitável a presença dos policiais nas ocupações, e de disciplinamento, por meio do discurso, muito comum, que afirma: se o jovem não está na escola, se o jovem não está em algum projeto que o ocupe, está no crime, afinal mente ociosa só dá para o mal. Ressaltamos aqui a correlação linear estabelecida entre a educação e o controle social das populações vistas como perigosas e propensas ao crime.

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O sufixo “ístico” é acrescentado a capitalista, por Guattari e Rolnik (1986), pois se refere a todas as sociedades que vivem numa dependência ou contra dependência do capitalismo, sociedades onde predomina a lógica do capital. Tais sociedades não se diferem do ponto de vista da produção de subjetividade.

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Soares (2008) faz uma análise histórico-genealógica da utilização da ginástica e do esporte como pedagogia higiênica. Ela analisa as múltiplas táticas de modelagem e adestramento do corpo em uma história de contextos pedagógicos nos quais elas seriam mais um elemento, apontando para o fascínio que essas práticas exercem sobre a vida quotidiana, como atividades impregnadas de encantamento. Não é à toa, que das atividades oferecidas pelas instituições que atuam nas comunidades, as mais comuns e concorridas são as esportivas. As formas sempre atualizadas das pedagogias higiênicas e sua tarefa de intervir nos corpos revelam-se como táticas de governo de si e de gestão das populações. Ancoram-se na racionalidade técnica e na elaboração constante de imperativos de performance, saúde e beleza, construindo uma ideologia da vida e da felicidade medida por percentis. Frases anódinas, imperativos do agite-se, do mexa-se, do não ao sedentarismo, da busca por uma beleza universal a qualquer custo (e é literalmente a qualquer custo!); palavras simples vão produzindo sentidos muito precisos de saúde, longevidade, bemestar, qualidade de vida, beleza, não apenas em indivíduos, mas em populações! (SOARES, 2008, p. 83)

Observamos os efeitos das tecnologias disciplinares nos jovens participantes dos projetos. Em nossas entrevistas, as falas descrevendo as atividades e a descrição de uma mãe sobre o comportamento do filho reforçam esta tese. Era legal, eles ensinavam a gente a fazer as posições, assim de sentido, firme, descansar, mas antes de fazer esse curso eu fazia curso de bombeiro, então eu já sabia fazer esses movimentos, aí quando eu comecei eles me falaram assim você já sabe fazer sentido, esses movimentos? Então eu fui recrutada como 01. Aí eu participava bem mais, nunca faltava. (Moradora do Cantagalo) (Grifo nosso) A gente quando respondia ou desrespeitava a gente pagava flexão, mas antes de começar a aula a gente fazia exercício, polichinelo, flexão. (Morador do Cantagalo) (Grifo nosso) Meu filho fez futsal. Ele aprendeu a interagir com outras crianças, a respeitar, até onde ele pode ir, onde não pode. (...) O comportamento do meu filho melhorou. Porque a criança da comunidade já é assim agressiva, cheio de gíria. Eles conversavam com as crianças que não adiantava fazer futsal e ir mal na escola, exigia o boletim das crianças, exigia a participação dos pais, tinha sempre passeio. (Moradora do Cantagalo) (Grifo nosso)

Observamos na fala da mãe a reprodução do sentido atribuído à criança e ao adolescente da favela, como agressivos, potencialmente violentos e perigosos, devendo, portanto, ser disciplinados, passando por um processo que Foucault denomina de “ortopedia social”. 201

Toda essa rede de poder que não é judiciário deve desempenhar uma das funções que a justiça se atribui nesse momento: função não mais de punir as infrações dos indivíduos, mas de corrigir suas virtualidades. Entramos na idade do que eu chamaria de ortopedia social. Trata-se de uma forma de poder, de um tipo de sociedade que classifico de sociedade disciplinar por oposição às sociedades propriamente penais que conhecíamos anteriormente. É a idade de controle social. (FOUCAULT, 1999b, p. 86)

Vera Malaguti Batista, se referindo à reportagem de O Globo publicada em 18 de julho de 2011, sobre o projeto “No tatame dos caveiras” que trata de aulas de ginástica dadas por policiais do BOPE, na favela Tavares Bastos, afirma: Ao primeiro grito de ATENÇÃO, TROPA!, o burburinho termina. Em seguida uma turma de mulheres deixa a fofoca para tomar conta do tatame, encostado em uma parede com a caveira símbolo do Bope. Com idades entre 46 e 76 anos... mostram no muque que fazem parte da tropa de elite. Para demonstrar como a polícia faz bem, a matéria mostra a mudança na vida dessas mulheres: emagreceram, abandonaram remédios e agora exibem autoconfiança e saúde. (BATISTA, 2011, p. 16)

A autora continua, no mesmo artigo, analisando uma reportagem, também de O Globo, que teve como título “A pacificação a serviço da educação”: Olhando a cobertura e a associação da grande mídia podemos compreender melhor a expressão esplendor, já que produziu–se verdadeiramente um esplendor, uma aura mágica em torno da polícia e mais especialmente com os camisas–pretas, os caveiras. Para a configuração do Estado de polícia esse esplendor é necessário. Nesses anos todos de reflexão sobre a questão criminal eu já tinha me dado conta da necessidade de manter um inimigo à mão na passagem da ditadura para essa democracia formal em que vivemos. Constatei também a importância do medo para o disciplinamento dos pobres no capitalismo de barbárie (...) podemos ter uma pequena mostra dos efeitos dessa inculcação no imaginário coletivo, nesse grande dispositivo de subjetivações. O estado de polícia espraia–se para todas as áreas além da criminal. “A PACIFICAÇÃO A SERVIÇO DA EDUCAÇÃO: crianças se divertem no Urutu, o blindado do Exército, empregado na colônia de férias da Força de Pacificação do Morro do Alemão. Idealizada pelas Forças Armadas, a colônia de férias que termina hoje reuniu 320 crianças selecionadas por suas boas notas na escola. Elas participaram de atividades esportivas e culturais”; temos aqui a pedagogia da ocupação, para onde terão ido os que não tiraram boas notas? (Ibid., p. 19)

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5.3 – Lucrativa mercadoria: marketing e responsabilidade social Observamos que o atravessamento dos discursos de combate ao crime e a educação também foi predominante nas atuações da sociedade civil organizada que, de várias formas, tomou a Segurança Pública como alvo. Essa “preocupação” não é uma novidade, ela atravessa a história através das práticas filantrópicas, caritativas e assistencialistas; permeadas pelos discursos de “proteção” e de “garantia de diretos” e muito bem articuladas com o poder público, representado pela polícia, justiça e sistema penitenciário. Esta atuação aconteceu de diversas maneiras, nas formas de projetos sociais, voluntariado, ONGs, instituições filantrópicas e caritativas, com ou sem financiamento de empresas nacionais e estrangeiras; e por parcerias, diretas ou indiretas, com o governo. Além dos projetos realizados pelos próprios policiais, durante a implantação do projeto de pacificação, também foram acordadas diversas parcerias entre o governo e a sociedade civil, através de ONGs, associação de moradores, voluntários, empresas privadas e mistas; para realização de projetos sociais nas favelas ocupadas por UPPs. Observamos que o discurso principal desses projetos, discurso que também foi recorrente nas falas dos policiais, não foi o de promover o acesso à prática esportiva, artística ou educacional, mas sim de “afastar o jovem do mundo do crime”, mantê-los ocupados longe das ruas, das drogas e do tráfico. E pelo que pudemos observar, práticas educacionais de caráter disciplinar, centradas na ortopedia social e no adestramento. Alguns exemplos: Jovens entram no ringue pela pacificação. Lutadores consagrados criam projetos sociais em áreas de baixa renda para descobrir talentos e afastar jovens da violência. (O Globo, Rio, 27/09/2009, p. 30) (Grifo nosso) Com o apoio do governo do Estado, um grupo de amigos lutadores – Amaury Bitetti, Rodrigo Artilheiro, Marcelo Penca e Antoine Jaude – criou o projeto “Luta pela pacificação” nas comunidades Chapéu Mangueira (Leme), Dona Marta (Botafogo), Cidade de Deus e Batan (Realengo), hoje ocupadas por Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Em espaços cedidos pelo estado, eles montaram escolinhas onde treinam alunos, a partir de 9 anos, em diversas modalidades de luta, como judô e jiu-jítsu. Cada uma delas tem cerca de 250 jovens inscritos, divididos em dois turnos de treinamento. Para participar, os alunos precisam ter boas notas e, claro, ter disciplina e não se envolver em episódios de violência (O Globo, Rio, 27/09/2009, p. 30) (Grifos nossos)

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Projeto Luta pela Pacificação (Chapéu Mangueira, Dona Marta, Cidade de Deus e Batan) Muitos meninos já foram tirados do tráfico (...) Pra poder fazer parte do projeto é preciso ter disciplina e bom comportamento. O “luta pela pacificação” quer formar cidadãos. A ideia é oferecer uma vida saudável às crianças, longe das drogas. (Amaury Bitetti – um dos professores do projeto luta pela pacificação) (O Globo, Rio, 27/09/2009, p. 30) (Grifos nossos)

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Projeto Dançar a Vida (Borel)

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Antes essas crianças não viam outras possibilidades no horizonte e se envolviam com o tráfico. Com a pacificação do Borel, criamos condições de mostrá–las um universo diferente, com inúmeras possibilidades, até então escondidas pela violência. (Lenita Vilela – diretora do CIEP do Borel) (O Globo, Jornal de Bairro, Tijuca, 09/12/2010, p. 12) (Grifos nossos)

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Projeto Futuro Campeão (Parceria da UPP com o Instituto Robson Caetano) A oportunidade de se tornar um artista famoso ou ser jogador de futebol, sonho de viver do esporte ou da arte, dança, circo, muitas vezes é vista como única possibilidade de ascender na “vida”, além do tráfico ou do subemprego. Só que nem todos se sobressaem, nem todos conseguem chegar a um nível de técnica condizente com as competições, ou as apresentações para os patrocinadores. O termo ONG, Organização Não Governamental, nos remete à ideia de autonomia em relação ao Estado, aos governos, às igrejas e aos partidos políticos. Mas é importante frisar que, apesar das primeiras organizações que assumiram este nome, no Brasil, terem surgido no início dos anos 70, como um dos principais canais de expressão das demandas populares em tempos de ditadura militar, hoje suas ações respondem, em sua maioria, a questões de outra ordem. Muitas delas recebem financiamento do Estado e da iniciativa privada, alimentando uma grande rede de negócios do capitalismo contemporâneo, conhecida como “responsabilidade social”.

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A “responsabilidade social” é usada como mais uma ferramenta de marketing, com o objetivo de valorizar a marca. Buscam-se ganhos institucionais quando vendem a condição de “empresa-cidadã”, o que justifica os investimentos em ações sociais da empresa. Investimentos esses que, na maioria das vezes, passam por leis de incentivo à cultura37 e ao esporte38, ou seja os investimentos são obrigados a respeitar critérios do governo e, em última análise, saem de renúncia fiscal sendo, por fim, dinheiro público. Assim, as parcerias entre ONGs que realizam projetos sociais em favelas com empresas privadas também foram crescentes e estimuladas pela lógica da responsabilidade social. Com isso, projetos que funcionavam à base de voluntariado ou filantropia, precisaram se organizar e estruturar uma gestão administrativa, para poder participar de editais públicos e privados e receber recursos. Precisaram ainda de pessoas responsáveis por responder editais, escrever projetos, fazer avaliações de resultados, responder aos “patrocinadores” com relatórios e índices de execução e prestação de contas. Esse processo de profissionalização e organização administrativa das ONGs foi assunto de reportagem em julho de 2009, “Da intenção ao gesto. Os entraves no caminho de ONGs e empresas para promover o progresso social.” (O Globo, Razão Social, 21/07/2009, capa). “As pedras nos caminhos das ONGs.” (O Globo, Razão Social, 21/07/2009, p. 12) Imagem 112

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Lei Rouanet - Federal - Lei nº 8.313 de 23 de dezembro de 1991; ICMS-Estadual, no caso do Rio de Janeiro: Lei nº. 1.954 de 1992; e outras ligadas ao ISS de caráter municipal. 38 Lei Agnelo/Piva, Lei nº 10.264 de 16 de julho de 2001.

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Nesse contexto, não podemos deixar de citar, também, os convênios do governo do Estado com as empresas do Sistema S39 – empresas que não são públicas, mas que recebem subsídios do governo e são imunes a impostos incidentes sobre patrimônio, renda e serviços – principalmente para realização de cursos de capacitação profissional. Áreas com UPPs ganham cursos de capacitação. Convênio entre estado e o SENAC formará garçons, contínuos e secretárias nas comunidades pacificadas. (O Globo, Rio, 26/06/2010, p. 23) A comunidade dos Tabajaras e do Morro dos Cabritos era tomada por traficantes, e nós conseguimos mudar isso. Esses cursos vão dar oportunidade para que essas pessoas possam se inserir no mercado de trabalho. (O Globo, Rio, 26/06/2010, p. 23) (Grifo nosso)

Um dos projetos implantados nas áreas de UPPs foi o “SENAC Rio nas UPPs”. Segundo o site do governo do Rio de Janeiro, o projeto “busca promover o resgate da cidadania de moradores de áreas pacificadas por meio da qualificação profissional” (GOVERNO DO RIO DE JANEIRO, s/d) e tem como objetivo “a geração de emprego e renda com a inserção dos participantes no mercado formal.” (GOVERNO DO RIO DE JANEIRO, s/d) Com esse projeto, foram ministrados cursos nas áreas de beleza (manicure/pedicure, cabeleireiro, maquiador); gastronomia (cozinheiro, doceiro e garçom); informática; logística; telemarketing; e rotinas de escritório, realizados por “carretas–escola”, que circularam por diversas favelas. Imagem 113

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As empresas do sistema S são pessoas jurídicas de direito privado; criadas mediante autorização legislativa; não tem fins lucrativos; executam serviço de utilidade pública, e não serviço público; produzem benefícios para grupos ou categorias profissionais; não pertencem ao Estado; são custeadas por contribuições compulsórias pagas pelos sindicalizados (Art. 240 da Constituição Federal).

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Em parceria com o Governo do Estado do Rio de Janeiro, o SENAC oferece ensino profissionalizante nas comunidades atendidas pelas UPPs – Unidades de Polícia Pacificadora – desde 2010. Até o momento, o projeto está presente em mais de 17 delas e já certificou e qualificou mais de 4.000 pessoas. O projeto SENAC nas UPPs é um programa de geração de trabalho e renda. E nosso objetivo é capacitar, qualificar e certificar profissionalmente os jovens para seu primeiro emprego e requalificar os trabalhadores que moram nas comunidades. Os cursos são ministrados em carretas–escolas, que são laboratórios móveis de excelência, e abrangem as áreas de Beleza, Gastronomia e Comércio. (SENAC, s/d)

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Voltando à Nascimento e Scheivar (2005) e a discussão sobre o que vem sendo chamado de “proteção à infância e juventude” como um processo histórico excludente, que se utiliza de estratégias de afirmação de uma sociedade desigual, nos aproximamos da noção de exclusão, relacionada à capacidade de integração ao sistema produtivo. Desse modo, excluído é aquele que não tem trabalho e as políticas protetivas “se orientam a contornar algumas situações limites, sem a menor pretensão de reverter o quadro estrutural que produziu a exclusão social.” (NASCIMENTO e SCHEIVAR, 2005, p. 56) As autoras observam um dos traços distintivos da educação para crianças e jovens de diferentes classes sociais. A intervenção governamental na família pobre se dá através da proteção filantrópica, que educa no sentido de sua imediata inserção no processo produtivo, ao contrário das famílias de maiores recursos materiais, cuja educação tem diversos sentidos tais como o lúdico, o psicomotor, o da afirmação afetiva, antes de preocupar–se com a entrada no mercado de trabalho. Nessa medida, dar proteção aos pobres é fazê-los trabalhar. (Ibid.,

p. 53) Assim, entendemos os projetos de capacitação por meio de “cursos livres”40 - como os citados, criados por convênios entre o governo do estado e as empresas do sistema S nas áreas com UPPs - como uma inclusão-excludente, pois objetivam a inserção imediata de jovens no trabalho, a “inclusão” no mercado de trabalho, mas em empregos subalternos, que não exigem formação mais ampla, apenas treinando para o mercado, sem reverter suas condições de vida. No dia 26/06/2010, O Globo publicou matéria sobre os investimentos do setor privado nas UPPs. “Iniciativa privada de mãos dadas com a pacificação. Empresas e instituições fazem investimentos em comunidades com UPPs.” (O Globo, Rio, 26/06/2010, p. 23) Como um cupido, a marca de sucesso que tem surgido atrás de cada UPP está flechando corações e mentes do empresariado fluminense. A Federação das Indústrias (Firjan), por exemplo, vai lançar um amplo projeto de integração social nas regiões protegidas por UPP. (O Globo, Rio, 26/06/2010, p. 23) (Grifo nosso)

Em parceria com o SESI, a Firjan lançou em agosto de 2010, dois meses antes da reeleição de Cabral, o projeto “SESI cidadania. Todos juntos pelo Rio.” (Observa–se que o 40

Diferente dos cursos técnicos, que são regulamentados pelo MEC (Ministério da Educação), precisam cumprir uma determinada carga horária e estar dentro de um eixo temático; os cursos livres não têm uma regulamentação específica, são ministrados em pequena carga horária e têm por objetivo tratar de um assunto muito específico. Além disso, os cursos livres não conferem títulos, isto é, os órgãos que regulamentam profissões não reconhecem os cursos livres como habilitação para tal, conferem apenas um certificado de participação no curso.

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programa usa slogan semelhante ao da Campanha de Sérgio Cabral, “Juntos pelo Rio”, além das cores azul e laranja, presentes na logomarca do candidato à reeleição). Imagem 116

Esse programa ofereceu serviços sociais que incluíram diversas frentes de ação: educação profissional, oferecidos aos moradores das comunidades pacificadas nas unidades do SENAI e em unidades móveis; educação básica, que oferece Ensino Fundamental e Médio para jovens e adultos; pré-Enem; reforço escolar; SESI Terceira Idade, voltado para as pessoas com mais de cinquenta anos de idade; Cozinha Brasil, com aulas sobre utilização e aproveitamento de alimentos; Indústrias do Conhecimento, com a implantação de bibliotecas e área de acesso à internet; Atleta do futuro, promovendo atividades esportivas para crianças e adolescentes; e Cultura, com oficina de grafite, fotografia, percussão, hip-hop e teatro; caravanas culturais e programação cultural (SISTEMA FIRJAN, s/d). Imagem 117

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Para as empresas, parcerias em projetos com toda a visibilidade na mídia, e que unem o combate a criminalidade à educação, são “alavancadores” de marca, pois o público-alvo dos projetos, os “atendidos” são os moradores das favelas: os “bandidos” (tirando do crime); ou prevenindo “futuros bandidos” (“dando” educação, cultura e profissionalização) ou “exbandidos”, egressos do sistema penitenciário (“dando” emprego). Como os bandidos, futuros ou ex, são um público para quem “ninguém quer trabalhar”, quem aceita o desafio se sobressai em termos de imagem. A sociedade, público-alvo das empresas, clama por projetos assim e apoia iniciativas de investimento, porque sente medo, se sente desprotegida e insegura. Os projetos se tornam uma saída “humanista” em relação as outras soluções repressoras, que são a prisão ou a morte. Cabe frisar, como já apresentamos no início desse capítulo, que o surgimento da prisão também foi entendido como alternativa humanista ao modelo anterior de punição, o suplício. Muito parecido com o marketing empresarial, cujo objetivo final é o lucro, o marketing político e também o governamental41 têm como objetivo estratégico a sobrevivência de determinado projeto de poder. A mesma tática, de responsabilidade social, que prevalece na lógica capitalista das empresas, sobrevive, com muito bons olhos, nos governos nos três níveis (federal, estadual e municipal).

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O marketing político é referente a candidatos em eleições; o governamental se refere a governos.

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Dessa forma, foram recorrentes os investimentos e os incentivos do Estado em projetos sociais, numa atuação indireta, mas que garantiram a sua logomarca presente nas ações, via material de merchandising: banners, camisetas, bonés; ou fotos nos sites dos projetos apoiados pelo governo, da UPP, das ONGs e das empresas. Coimbra (2006) nos aponta para essa captura, de um movimento de luta pelos direitos humanos, de resistência, e que hoje se tornou “lucrativa mercadoria”. A quem interessa produzir neste mundo neoliberal de controle globalizado – onde o biopoder tenta dominar e expropriar tudo e, em especial, gerir e controlar a própria vida – direitos humanos como mais um especialismo? A quem interessa fortalecer e naturalizar direitos humanos como essenciais e universais, homogeneizando–os e, com isso, despotencializando-os? Sabemos que podemos estar falando sobre e em nome dos direitos humanos e tendo práticas que, em realidade, estão produzindo/fortalecendo a opressão, o constrangimento e os maus encontros. Hoje, direitos humanos se tornou uma lucrativa mercadoria que se vende por um bom preço no mercado neoliberal. Este é um tema atual e importante para ser discutido, quando algumas das chamadas ONGs vêm sendo enfeitiçadas pelos “cantos de sereia” neoliberais. (COIMBRA, 2006, p. 1)

Esse processo também foi percebido e denunciado pelos moradores entrevistados do Cantagalo: Tratando–se de projeto social a gente tá muito favorecido. Mas tem os dois lados da moeda dos projetos sociais hoje em dia. Ao mesmo tempo que ocupa, realmente é uma ocupação para as crianças e os adolescentes, também foi muito útil pra mim, na minha adolescência, na minha juventude, porque eu participei de muitos projetos, mas também tem o lado negativo, porque a gente sabe que muito projeto social é uma forma mais de quem está na frente desses projetos adquirir mais grana, então eles muitas vezes deixam muito a desejar, projetos que a gente sabe que recebe milhões e que poderia estar com muito mais qualidade e eles fazem o projeto meia boca e só fazem bonito na hora que é pra apresentar pra entidades que vem de fora, para darem apoio e até mesmo para aparecer na televisão, então eles dão aquela maquiada, mas no dia-a-dia não é bem assim. (Grifo nosso) Mas não é bem assim na verdade, projeto social que realmente faz a diferença, são poucos, porque a maioria hoje em dia é lavagem de dinheiro. É mais para poder marcar território, mostrar trabalho para inglês ver e captar mais recurso só pro bolso de quem está na frente do projeto. (Grifo nosso) Que os projetos não fiquem só no dinheiro, que eles pegam da prefeitura, que eles mostrem mesmo que eles têm que capacitar esses jovens. (Grifo nosso) O que eu acho que é o que anda acontecendo é que pega a criança e bota ali pra aprender alguma coisa, algum tipo de trabalho artístico, mas não tem aquela cultivação do lado do amor, do respeito. Eu acho que tá morrendo esse lado e tá ficando só o lado de mostrar que tá ocupando o jovem, que

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tá ocupando o espaço. Só com finalidade financeira mesmo. (Grifos nossos) Não pode ser só pra comer dinheiro, tem que formar cidadão mesmo! As pessoas terminarem os estudos, abrir mais um meio de trabalho, ter mais oportunidade na vida. Só entreter as crianças, as crianças vêm, brincam, ficam aquele tempo que as mães acham que o projeto é uma creche. (Grifos nossos) Eu acho que sim e que não, porque nesses projetos também tem uma fachada né? Tem pessoas que são boas, mas também tem gente que é ruim e que só faz as coisas por dinheiro. Então se a pessoa tá ganhando dinheiro, pra tirar do crime, vai preferir, né? Porque o nome vai ficar na mídia, é assim. (Grifo nosso)

5.4 – Sorria você pode estar sendo filmado ou “prisões à céu aberto” As técnicas do poder, na atualidade, especificamente a partir da segunda metade do século XX, com a produção e o uso das novas tecnologias, fazem operar propostas centradas no cognitivismo e na interação. São novos dispositivos de normalização, novas tecnologias e práticas educacionais pelas quais os indivíduos são constituídos como sujeitos. A partir da abordagem do deslocamento no eixo do exercício de poder, no âmbito das relações sociais e das tecnologias e práticas socioeducacionais – de uma pedagogia do disciplinamento para uma pedagogia da subjetivação – percebemos, também, novas tecnologias que atuam na organização do tempo e do espaço na perspectiva da normalização, da gestão da vida, no sentido mais amplo, da produção de sujeitos. Na passagem de uma sociedade centrada na disciplina para uma sociedade centrada no controle – uma passagem que está afetando profundamente as instituições sociais (como a escola, a família, o hospital) –, está ocorrendo o definhamento da sociedade civil, de modo que ela tem cada vez menos condições de dar conta da mediação entre os imanentes “muitos” (capital) e o transcendente “um” (Estado). Além disso, assim como a ênfase na disciplinaridade significou – e ainda significa –, em termos institucionais, uma ênfase no plano da transcendência , a ênfase no controle significa uma ênfase no plano da imanência. Numa sociedade que se torna cada vez mais “imanentizada”, crescem de importância todas as instâncias sociais que operam contínua e intimamente na produção de subjetividades. É isso que torna a cultura tão central no mundo contemporâneo; é nisso – e a partir disso – que estão falando aqueles que tratam os espaços e as práticas culturais como espaços e práticas que são também pedagógicas. Ao falarem em pedagogias culturais, eles estão salientando como e o quanto, fora dos espaços estritamente institucionalizados, se ensinam, se aprendem e se naturalizam determinadas verdades, visões de mundo e práticas sociais. (VEIGA-NETO, 2008, p. 18)

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Foucault, em sua análise da constituição dos sujeitos pelas práticas punitivas e de controle, mostrou que ao longo do século XVIII e, sobretudo, na virada para o século XIX, começou a emergir um poder que não mais se exerce, fundamentalmente, sobre os corpos individualizados, nem centralizado nas instituições, mas que se concentra na figura do Estado e se exerce administrando a vida e o corpo da população, o biopoder. Assim, como nos explica Batista (2008) em seu texto Marx com Foucault: análises acerca de uma programação criminalizante: Para Foucault, o corpo é o centro nevrálgico do poder, e também do poder de punir. A partir da descrição de Rusche dos mecanismos de disciplinamento dos cárceres, suas normas, seus procedimentos diários, Foucault desenvolve o disciplinamento, a constituição dos corpos dóceis, e mais tarde a ideia de biopoder. O biopoder seria um colossal dispositivo de apropriação que conjugaria o disciplinamento dos corpos e o assujeitamento das almas de uma forma massiva, contemporânea, mas instituída historicamente a partir da inquisição moderna. (BATISTA, 2008, p. 1)

A publicação de dois cursos de Foucault no Collège de France – o curso Segurança, Território e População (1997b) e o curso Nascimento da biopolítica (1997c) situam a sua discussão no âmbito das governamentalidades e englobam um deslocamento importante no interior da analítica do poder, oferecendo um novo conjunto de dispositivos conceituais para pensarmos a atualidade. Ao falar em “governo”, no âmbito destes dois cursos, Foucault não se refere aos regimes políticos assumidos pelo Estado, mas sim ao problema da gestão das coisas e das pessoas, ao problema da condução das condutas. Michel Foucault procurou analisar a problemática que gira em torno da ideia de governo, a partir do século XVI, tendo em vista os diversos textos que surgem, nesta época, sobre as “artes de governar”, os quais visavam uma contrapartida à obra O Príncipe, de Maquiavel42.

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O Príncipe de Maquiavel (1532) é um “tratado da habilidade do Príncipe em conservar seu principado”, o qual lhe pertence por herança, aquisição ou conquista. O Príncipe, neste caso, é exterior ao principado, ou seja, não há uma relação de pertencimento do príncipe ao principado, ele [o principado] lhe é exterior, tratando-se de um poder cujo objetivo, como diz Foucault, “será, bem entendido, o de manter, reforçar e proteger esse principado, entendido não como o conjunto constituído pelos súditos e território, o principado objetivo, mas como a relação do príncipe com o que ele possui, ou seja, esse território que ele herdou ou adquiriu, os súditos que lhe são submetidos” (FOUCAULT, 2003, p. 285)

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Diferentemente de “O Príncipe”, único governante e de forma exterior ao seu principado, Foucault compreende, nas diversas “artes de governar”, surgidas neste período, o governo como sendo de ordens múltiplas, governam, ao lado do governante propriamente dito, o pai de família, o superior de um convento, o professor etc. Relações de governo que são laterais e ao mesmo tempo se formam interiormente ao Estado governado. As artes de governar referem–se, então, a “governar uma casa, crianças, almas, uma província, um convento, uma ordem religiosa, uma família.” (FOUCAULT, 2003, p. 286) O governo, em sendo uma arte de governar as “coisas”, pessoas e territórios em seu conjunto, designa um poder de condução, na medida em que deve conduzir os homens em suas relações com as riquezas, o território, os hábitos, as maneiras de fazer ou de pensar, assim como as suas relações com a doença e a morte. Assim, desde o século XVI, como demonstram as diversas “artes de governar” da época: [...] passa–se de uma arte de governar cujos princípios foram tomados de empréstimo às virtudes tradicionais (sabedoria, justiça, respeito às leis divinas e aos costumes humanos) ou às habilidades comuns (prudência, decisões refletidas, cuidado para se acercar de melhores conselheiros), a uma arte de governar cuja racionalidade tem seus princípios e seu domínio de aplicação específico no Estado. (FOUCAULT, 1997b, p. 83)

O Estado moderno tem, na raiz de sua forma de gestão, o modelo pastoral. Este modelo pastoral caracteriza–se por conduzir e “cuidar” de uma salvação individual em outro mundo, estando o governante preparado para se “sacrificar” pelo rebanho e mais, para o exercício do governo necessita conhecer a consciência das pessoas. É evidente que, no governo do Estado moderno, não se trata mais de uma salvação “em outro mundo”, mas de um governo que visa à salvação neste mundo, onde “salvação” associase à saúde, ao bem-estar, à segurança, etc. Ao lado do aparelho de Estado, operam outras instituições que dão suporte a este poder, tais quais a família, a polícia, as ONGs, as associações religiosas e filantrópicas.

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Com estas inflexões, no governo do Estado moderno, tem-se uma forma de gestão que é, ao mesmo tempo, totalizante no que se refere aos mecanismos direcionados à população e individualizante, no que se refere ao indivíduo propriamente dito. Por meio do conceito de governo em Foucault, podemos ultrapassar a ideia de estratificação social da favela e pensar em uma tecnologia de poder que opera, não mais em lugares de confinamento, nem mesmo por uma determinação territorial e geográfica, mas, sim, por meio das relações entre as pessoas que vivem sob os mesmos governos, respeitando e produzindo práticas disciplinares e de gestão governamental. Quando ele identificou a sociedade moderna como uma sociedade disciplinar, ele não afirmou o desaparecimento do modus operandi da soberania; igualmente, uma sociedade governamentalizada não vem substituir a sociedade disciplinar. Na sociedade do governo, as disciplinas serão reposicionadas. Se estas encontraram seu desenvolvimento nos séculos XVII e XVIII em escolas, ateliês, fábricas no âmbito das monarquias administrativas, agora elas serão muito valorizadas quando se trata de gerir a população, não como massa global, mas nos seus mínimos detalhes. Portanto, há a necessidade tanto de redimensionar a fundação da soberania quanto a questão das disciplinas. Poder–se–ia dizer que, no conceito de governamentalidade que Foucault se propõe a analisar, a soberania, as disciplinas e a gestão governamental estão articuladas. (CANDIOTO, 2010, p. 39)

Nas palavras de Nascimento e Scheivar (2005): O governo é uma prática concreta apoiada em aparelhos, equipamentos, instituições, procedimentos, que permitem o exercício de uma forma específica de poder. Tem por alvo a população à qual se remete a partir de relações de controle, dita de “segurança”, como ocorre no caso do aparelho judiciário. (NASCIMENTO E SCHEIVAR, 2005, p. 55)

Os conceitos de biopoder e de disciplina foram retomados e desdobrados no pensamento de Gilles Deleuze (1992), analisando as transformações sociais das últimas décadas, em seu texto Post–scriptum sobre as sociedades de controle. O autor traz alguns exemplos que nos permitem compreender a implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação, que ele chama de sociedade de controle. Onde as tecnologias de controle se expandem e as instituições de sequestro, disciplinares, como a prisão, a família, a escola e a igreja passam a coexistir com sistemas abertos e mais sutis de controle social.

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Trata-se de um processo de transformação das tecnologias de controle, que é feito de forma mais corriqueira, entrando mais na vida das pessoas, de modo envolvente, principalmente quando produzido com o viés social e educacional. O controle se torna mais invisível, menos perceptível, é internalizado e naturalizado de forma sutil, sendo assim mais eficaz. Percebemos que o controle de determinadas populações é atualizado por esses novos jogos de força, comportando forte caráter de controle social, juntamente com sua função na lógica do neoliberalismo, sua função econômica. Assim, o controle exercido contra a criminalidade recai sobre determinados segmentos da população a quem não importa mais “fazer morrer, mas deixar viver” (FOUCAULT, 2000) sob formas mais ou menos sutis, legais e adaptativas às necessidades do mercado. Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. A família é um “interior”, em crise como qualquer outro interior, escolar, profissional, etc. Os ministros competentes não param de anunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam. São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. (DELEUZE, 1992, p. 220) (Grifo do autor)

Deleuze aponta para formas ultrarrápidas de controle ao ar livre, que dispensam os muros e as grades das prisões e que surgem ampliando as formas de controle das antigas disciplinas, que operavam na duração de um sistema fechado, com confinamentos mais duros. No regime das prisões: a busca de penas “substitutivas”, ao menos para a pequena delinquência, e a utilização de coleiras eletrônicas que obrigam o condenado a ficar em casa em certas horas. No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliação contínua, e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da “empresa” em todos os níveis de escolaridade. No regime dos hospitais: a nova medicina “sem médico nem doente”, que resgata doentes potenciais e sujeitos a risco, o que de modo algum demonstra um progresso em direção à individuação, como se diz, mas substitui o corpo individual ou numérico pela cifra de uma matéria “dividual” a ser controlada. No regime da empresa: as novas maneiras de tratar o dinheiro, os produtos e os homens, que já não passam pela antiga forma-fábrica. (Ibid., p. 225) (Grifos do autor)

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Estas metamorfoses das tecnologias de controle preenchem todo o espaço. Há um percurso entre Bentham e George Orwell, com a ideia de um Grande Irmão (Big Brother do livro 1984) que está presente em toda parte, vigiando as pessoas que são olhadas o tempo todo. As novas formas de controle abrangem a internet, os celulares, as câmeras de todo o tipo. Este controle subjetivo e incorpóreo pode ser representado pelo adesivo do smile, no lugar de uma câmera, com o dizer: “Sorria! Você está sendo filmado”, ou mais que isso, “Sorria! Você pode estar sendo filmado.” Imagem 119

Temos como exemplo desse controle generalizado, o projeto da secretaria municipal de Educação do Rio de Janeiro, destinado a escolas localizadas “em área de risco”, descritas por O Globo como aquelas que são localizadas: “dentro ou nas proximidades de favelas e comunidades dominadas pelo tráfico ou pela milícia.” (O Globo, 14/03/2009, p. 21) Esse projeto, batizado de “Escolas do amanhã”, estende o horário da permanência dos alunos das escolas estaduais, passando a ser de 7 horas diárias e são recrutadas mães de alunos para atuar como intermediadoras junto às comunidades, por exemplo, visitando alunos faltosos e interferindo na disciplina. Como anunciado nas reportagens que seguem: “Prefeitura recruta mães para reforçar sala de aula. Objetivo é melhorar notas de crianças nas escolas de favelas.” (O Globo, 16/02/2009, capa) (Grifo nosso)

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Segundo a secretária municipal de Educação, em exercício na ocasião: Queremos que as mães atuem principalmente junto às crianças em processo de alfabetização nessas comunidades. A presença da família na escola tem um efeito importante, ajuda na disciplina e no respeito. Dificilmente a criminalidade da região agride o ambiente escolar, mas se a figura da mãe está presente, isso acontece menos ainda. (Claudia Costim – secretária municipal de Educação) (O Globo, 16/02/2009, p. 8) (Grifos nossos)

Outro projeto que segue o mesmo caminho é o “Mulheres da Paz”, projeto do governo federal viabilizado pelo PRONASCI. Nele, as mulheres, que segundo O Globo atuam como olheiras do bem: “recebem R$ 190 mensais em troca de oito horas semanais em que se dedicam a abordar pessoas entre 15 e 29 anos que estejam à beira da criminalidade e encaminhá-las a programas sociais.” (O Globo, 16/02/2009, p. 8) (Grifo nosso) Acácio Augusto (2013), em Política e polícia: cuidados, controle e penalizações de jovens, faz uma análise crítica das políticas públicas e das práticas de controle a céu aberto, e demarca a passagem da “rua sem governo” para o “governo das ruas”, onde cada vez mais, tornamo-nos policiais de nós mesmos. Mas a biopolítica da sociedade disciplinar se expande na sociedade de controle não mais pela regulamentação ou regulação do estado, mas pelos dispositivos de participação convocando à atuação, fazendo cada um se sentir parte do governo do monopólio da saúde, da educação, da polícia, recebendo benefícios derivados não mais da obediência, do amor à obediência, mas de incentivo à obediência. (AUGUSTO, 2013, p. 133) (Grifo nosso) A normalização do normal se efetiva pela produção do assujeitamento por meio da inclusão que agencia forças inteligentes (...) e da participação democrática como um eficiente discurso que alimenta esperanças, dissemina direitos e oportunidades, mas é incapaz de estancar a miséria; ao contrário, expande, tendendo ao infinito, uma imensurável produção de miseráveis vidas encarceradas. Esses dois produzem, juntos, o necessário para a expansão dos muros da prisão, do controle a céu aberto, que dispensa o confinamento para controlar os pobres, pretos e quase pretos, moradores dos cantões, becos, vielas, guetos do campo de concentração a céu aberto. São formados por policiais-cidadãos, ao mesmo tempo em que se dispõem a ser policiais dos outros. Tornam-se policiais de si... (AUGUSTO, 2013, p. 139) (Grifo nosso)

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Esse “grande olho” também é ampliado pelas novas tecnologias, como o uso de celulares com câmeras e a criação de aplicativos como, por exemplo, o Wikimapa43. Também com a participação dos moradores, em sua maioria jovens, esse aplicativo vem mapeando, com fotos, diversas favelas do Rio. O projeto cresceu e ganhou a parceria da Fundação Telefônica e da Vivo. A matéria do dia 30 de agosto de 2009 fala sobre ele. “Comunidades presentes na internet.” (O Globo, Zona Norte, 30/08/2009, capa) Imagem 120

Vera Malaguti Batista (2011), em seu texto O Alemão é muito mais complexo, apresentado no 17º Seminário Internacional de Ciências Criminais em São Paulo, afirmou:

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O Wikimapa é uma tecnologia social idealizada pelo Programa Rede Jovem que fortalece a valorização e desenvolvimento local de áreas marginalizadas através da plataforma mobile, subutilizada por jovens de baixa renda. Trata-se de um mapa virtual colaborativo, voltado para o mapeamento de pontos de interesse e cartografia de ruas, becos e vielas ainda não registrados nos mapas oficiais. A edição é feita por diversos participantes, através do telefone celular ou internet. Com o Wikimapa é possível inserir e consultar informações sobre diferentes lugares (escolas, hospitais, igrejas, clubes, bares, lan houses etc) do país. Também é possível editar comentários e referências sobre os locais já mapeados. (WIKIMAPA, s/d) (Grifos nossos)

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Nunca a expressão de Edson Passetti se adequou tanto à realidade dos bairros pobres e favelas: o controle a céu aberto, naquela perspectiva do estado de exceção de Agamben. A ideia de “campo”, área de controle penal total sobre o cotidiano de seus moradores, agora tutelados em todos os aspectos diretamente pela polícia. Tendo a pacificação do Alemão como ato simbólico de um projeto de cidade, a mídia carioca investiu ardilosamente na policização da vida em seus mínimos detalhes, tendo o BOPE como o grande timoneiro.

A naturalização do discurso da educação como arma no combate à criminalidade, permeado pela concepção de que as crianças e jovens moradores de favelas e periferias são sujeitos inclinados ao crime, subtrai, dessa discussão, a dimensão da desigualdade social, definindo a priori aqueles que deverão ser alvo destas políticas e práticas educativas de controle. Para nós, fica claro que a preocupação com a criminalidade, da forma como vem sendo produzida, não incide sobre as questões de fundo. Torna-se fundamental considerar que qualquer discussão, neste sentido, impõe, necessariamente, repensar o próprio sistema socioeconômico, político e educacional que produz o que entendemos por crime e por educação. Enquanto as políticas públicas e os projetos educativos forem construídos direcionados às crianças e aos jovens pobres, subjetivando-os como perigosos e associados aos espaços das favelas, enquanto se valerem dos mecanismos de controle, construídos na lógica do estado penal e do biopoder, estarão indo na contramão de um projeto de mudança social. Precisamos resistir a esse sedutor discurso e começar a pensar em projetos que possam ser geridos de modo comum, como experiências coletivas e não tutelados pelo Estado. Projetos efetivos de diminuição das desigualdades sociais, práticas educacionais de formação política e pensamento crítico, sem que importe a idade, a cor, o gênero, a biografia, e principalmente, o endereço dos sujeitos. 5.5 – As resistências e os possíveis encontros Entendemos a experiência dessa pesquisa, a escrita desse trabalho, como um movimento de resistência. Como uma aposta na desconstrução do discurso midiático, que transforma em espetáculo, e em notícias, certos acontecimentos e constrói modos de perceber esses acontecimentos de forma única, como verdades que produzem discursos e identidades. As resistências, diz Foucault, são movimentos de “lutas transversais”:

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(...) questionam o estatuto do indivíduo: por um lado, afirmam o direito de ser diferente e enfatizam tudo aquilo que torna os indivíduos verdadeiramente individuais. Por outro lado, atacam tudo aquilo que separa, que quebra sua relação com os outros, fragmenta a vida comunitária, força o indivíduo a se voltar para si mesmo e o liga à sua própria identidade de um modo coercitivo. Estas lutas não são exatamente nem a favor nem contra o “indivíduo”; mais que isto, são batalhas contra o “governo da individualização.” (FOUCAULT, 1995, p. 234)

A todo momento, produzimos mudanças, transformações. Foucault escreveu nas últimas linhas de Vigiar e Punir: Nessa humanidade central e centralizada, efeito e instrumento de complexas relações de poder, corpos e forças submetidos por múltiplos dispositivos de “encarceramento”, objetos para discursos que são eles mesmos elementos dessa estratégia, temos que ouvir o ronco surdo da batalha. (FOUCAULT, 1999a, p. 254)

Em “Subjetividade e Verdade”, Foucault questiona: “que fazer de si mesmo? Que trabalho operar sobre si mesmo? Como ‘se governar’, exercendo ações onde se é o objetivo dessas ações, o domínio em que elas se aplicam, o instrumento ao qual podem recorrer e o sujeito que age?” (FOUCAULT, 1997d, p. 109) O poder está em toda parte da sociedade, não está localizado apenas no Estado ou nas classes dominantes, mas em todas as relações, atravessando-as, perpassando-as: O aparelho de estado é um instrumento específico de um sistema de poderes que não se encontra unicamente nele localizado, mas o ultrapassa e complementa (...) nem o controle, nem a destruição do aparelho do Estado – como muitas vezes se pensa – embora, talvez cada vez menos – é suficiente para fazer desaparecer ou para transformar, em suas características fundamentais, a rede de poderes que impera em uma sociedade. (MACHADO, 1990, p. XIII)

O mesmo corpo, no qual o poder é exercido, também exerce o poder, uma vez que se articula no próprio corpo social. “Onde há poder há resistência, não existe propriamente o lugar de resistência, mas pontos móveis e transitórios que também se distribuem por toda estrutura social” (MACHADO, 1990, XIV). Esse caráter relacional implica que as próprias lutas contra o exercício do poder não possam ser feitas de outro lugar, do exterior. São transformações minúsculas, capilares, não necessariamente ligadas à mudanças ocorridas no âmbito do Estado. As relações de poder existem entre um homem e uma mulher, entre aquele que sabe e aquele que não sabe, entre os pais e as crianças, na família. Na sociedade, há milhares e milhares de relações de poder e, por conseguinte, relações de forças de pequenos enfrentamentos, microlutas, de algum modo. (FOUCAULT, 2003. p. 231)

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Sendo o poder uma ação de um ou alguns sobre a ação do “outro”, implica que este “outro” também seja sujeito de uma ação a ser realizada. O poder é, dessa forma, da ordem da relação entre a ação de um e a ação de outro, podendo-se dizer que o exercício do poder é um conjunto de ações entre sujeitos ativos. As relações de poder implicam “sujeitos livres”, livres no sentido de poderem estruturar seu campo de resistência, de promover novas formas de ação, diante de determinações. Para Foucault a resistência é coextensiva ao poder, não possui uma anterioridade a ele. Os dispositivos de poder vão se modificando, em função das resistências, e as resistências vão se constituindo, em função do poder exercido. É sempre relacional e de mão dupla. A resistência, para se constituir como resistência, precisa se distribuir estrategicamente e ser, tanto quanto o poder, inventiva e móvel. De fato, as relações de poder são relações de força, enfrentamentos, portanto, sempre reversíveis. Não há relações de poder que sejam completamente triunfantes e cuja dominação seja incontornável. Com freqüência se disse – os críticos me dirigiram esta censura – que, para mim, ao colocar o poder em toda parte, excluo qualquer possibilidade de resistência. Mas é o contrário! Quero dizer que as relações de poder suscitam necessariamente, apelam a cada instante, abrem a possibilidade a uma resistência, e é porque há possibilidade de resistência e resistência real que o poder daquele que domina tenta se manter com tanto mais força, tanto mais astúcia quanto maior for a resistência (Ibid., p. 232)

Partindo da noção de subjetividade proposta por Guattari e Rolnik: (...) da ideia de uma economia coletiva, de agenciamentos coletivos de subjetividade, que, em algumas circunstâncias, em alguns contextos sociais, podem se individuar (...) que a subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela é essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares. O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, (...) um processo que eu chamaria de singularização. (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 33)

Para Guattari e Rolnik (1986), qualquer “trabalhador social” – professor, jornalista, psicólogo, assistente social, instrutor de projeto social – qualquer um que trabalha com educação e cultura, atua na produção de subjetividade. “Mas por isso mesmo devemos interpelar todos aqueles que ocupam uma posição de ensino nas ciências sociais e psicológicas, ou no campo do trabalho social – todos aqueles , enfim, cuja profissão consiste em se interessar pelo discurso do outro.” (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 29) 223

Sendo assim, nos encontramos numa encruzilhada fundamental: ou vamos trabalhar na reprodução de modelos, numa relação onde a subjetivação é um assujeitamento a um modelo pronto qualquer, ou vamos trabalhar agenciando novos modos, permitindo saídas para esse processo de produção de sentidos de vida; um processo de expressão e criação no qual nos reapropriamos de componentes de subjetivação, para criar territórios existenciais. Todo processo de transformação passa por uma singularização, mas esse processo não pode ser confundido com uma mudança individual. Trata-se, exatamente, do contrário. “Os indivíduos são resultado de uma produção de massa. O indivíduo é serializado, registrado, modelado.” (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 31) Mas não se trata de fazer do professor o vilão da história. (...) Ele também está preso ao controle e à dependência dos outros. Ele está igualmente submetido a uma autoconsciência de que sua posição específica dificilmente lhe permitirá ver e não ter. Na verdade, não se trata de uma história de vilões nem uma emboscada de alguns indivíduos contra outros indivíduos, senão de dispositivos intencionais, mas não pessoais que sujeitam os diversos participantes. (KOHAN, 2005, p. 88)

O professor é um produto sócio-histórico, que se materializou através das práticas disciplinares e de poder, que produzem e reproduzem subjetividades, possuindo um lugar, muito estratégico, pois educar é um ato político. Político porque educar pode ser inserir mais um na lógica semiótica da sociedade “capitalística”, mas também pode ser questionar as regras e fugir da lógica paradigmática da educação como mecanismo de controle, de reprodução, que produz comportamento funcional. Pode haver transformação num plano micro. Pois há muitos focos de possibilidades, de resistências. Há espaço para a produção autônoma de “si mesmo”. Há a possibilidade de realizarmos ações sobre nós mesmos, que nos propiciem lutas locais. Assim, apontamos que mesmo nos projetos educacionais presentes nas UPPs, desenvolvidos pelos professorespoliciais, há brechas, há possibilidades de processos singulares de subjetivação. Há lutas e há produção do novo. Na reflexão de Sílvio Gallo (2002), ele diferencia o “professor profeta” do “professor militante”. O primeiro, o professor profeta, é aquele que, supostamente, teria condições de estar indicando caminhos e competências para o que está por vir. Já o professor militante é aquele que, apesar das adversidades de sua condição de trabalho, anuncia possibilidades do novo a partir do seu cotidiano real.

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(...) o professor militante seria aquele que procura viver a miséria do mundo, e procura viver a miséria de seus alunos, seja ela qual miséria for, porque necessariamente a miséria não é apenas uma miséria econômica; temos a miséria social, temos a miséria cultural, temos a miséria ética, miséria de valores. Mesmo em situações em que os alunos não são nem um pouco miseráveis do ponto de vista econômico, certamente eles experimentam uma série de misérias outras. O professor militante seria aquele que vivendo com os alunos o nível de miséria que esses alunos vivem, poderia, de dentro desse nível de miséria, de dentro dessas possibilidades, buscar construir coletivamente. (GALLO, 2002, p. 171)

Podemos apontar outras duas belas imagens de um professor, que aparecem nos pensamentos de Larrosa e em seguida de Kohan: Essa é uma bela imagem para um professor: alguém que conduz alguém até si mesmo. É também uma bela imagem para alguém que aprende: não alguém que se converte num sectário, mas alguém que, ao ler com o coração aberto, volta–se para si mesmo, encontra sua própria forma, sua maneira própria. Isso parece um pouco religioso, não clerical, posto que o clerical seria esse “glorificar” e esse “converter-se em prosélito”, ao contrário de religioso, mas, em qualquer caso, é uma bela imagem. (LARROSA, 2006, p. 51) Talvez por isso, uma bela imagem de um professor seja a daquele que pensa com outros sem que importe sua idade, sua cor, seu gênero, sua cabeça, sua biografia. Ele exercita o pensar e dá o que pensar a seus alunos. Propicia encontros que ele mesmo não pode antecipar, embora prepare cada detalhe de sua aula com a meticulosidade de quem se prepara extensamente para improvisar e não com a superficialidade daquele que improvisa por falta de preparação. Esse professor deixa que os outros construam suas imagens de pensamento. Deixa-os colocar seus problemas. (KOHAN, 2005, p. 235) (Grifo nosso)

Acreditamos que, independente do lugar que ocupamos nessa engrenagem: professores, psicólogos, pedagogos, assistentes sociais e até mesmo policiais, a diferença está em como fazemos e o que fazemos do lugar que ocupamos. Um lugar que pode ser de exercício de poder e controle, mas que também pode ser de resistência, de construção coletiva, de recusa e de encontros.

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CONSIDERAÇÕES O saber/poder que legitima um “sentido” para as pesquisas educacionais, que atribui a elas um “campo específico” com “sujeitos específicos” como seus “objetos”, segue uma tradição positivista que ainda se reduz à busca de “soluções”, de teorias, de respostas e verdades, encontradas a partir do desdobramento de pesquisas empíricas. Seguindo essa tradição, a conclusão de uma pesquisa deveria ser a apresentação dos “resultados”. No entanto, isso não será feito aqui. A pesquisa foi um processo. Em permanente transformação. No decorrer dos estudos realizados nos últimos quatro anos, inúmeras foram as questões que atravessaram nosso trabalho. Não acreditamos tê–las respondido todas, até porque não se buscou, em nenhum momento, um fim, uma resposta, uma verdade. Ao contrário, acreditamos que, enquanto existirem questões e afetos, o movimento pode continuar. É que, para ele [Foucault] toda teoria é provisória, acidental, dependente de um estado de desenvolvimento da pesquisa que aceita seus limites, seu inacabado, sua parcialidade, formulando conceitos que clarificam os dados – organizando–os, explicitando suas interrelações, desenvolvendo implicações – mas que, em seguida, são revistos, reformulados, substituídos a partir de um novo material trabalhado. Nesse sentido, nem a arqueologia, nem, sobretudo a genealogia têm por objetivo fundar uma ciência, construir uma teoria ou se constituir como sistema; o programa que elas formulam é o de realizar análises fragmentárias e transformáveis. (MACHADO, 1990, p. XI) (Colchetes nossos)

O pensamento não se separa da vida, da ação. Ele é movimento e devir. O pensar há que ser produzido, não está dado, e para ser possível é necessário ultrapassarmos a imagem que carregamos do que significa pensar, do que significa fazer pesquisa. Imagem que carregamos por medo e por falta de paixão. Reconhecemos e representamos, mas temos medo de pensar o novo. Medo de não reconhecer o que deve ser reconhecido. Medo de deixar de reconhecer. De não representar o que deve ser representado. De deixar de representar. De não encontrarmos com a verdade que deve ser encontrada. De deixar de falar da verdade do mundo. De não estar contribuindo para construir um mundo melhor. De deixar de submeter a diferença a outras lógicas que a dela própria. De surpreendermo–nos num não lugar. De perguntar o que não pode ser respondido. De responder o que não foi perguntado. (KOHAN, 2002, p. 128)

Não buscamos, ou encontramos, nenhuma teoria “verdadeira”. Muito menos descobrimos uma política de Segurança ou Educação ideal. Acreditamos que elas não 226

existam, nunca existiram e nem irão existir. O que importou, fundamentalmente, não foram nem mesmo as análises empreendidas sobre os discursos da mídia, mas a possibilidade de inverter o caminho habitual e tornar, novamente, o pensamento possível. Pensar valendo–se da experiência, ou dito de outro modo, fazer da pesquisa uma experiência do pensar. Não chegamos a um fim, seguimos no “entre”. Enquanto “a guerra”, sangrenta e genocida, prossegue, eterna, nos becos e vielas dos territórios infames, a urdidura mantém-se rígida à espera de um arremate que não há. A história dos heróis e vilões, por anos a fio, vem sendo estampada no tecido da memória. O papel do artífice, arqueólogo, é tecer a trama dos saberes, desafiando e desfiando a meada dos discursos, entrelaçando com cordas ancestrais, novas e originais padronagens, num colorido que traga, à batalha, todas as matizes perceptíveis aos sentidos e sensíveis aos afetos. Enquanto os guerreiros persistem no conflito ou vagam perdidos no retorno ao lar, tecemos suas mortalhas sob a clara luz do dia, desfiando, nas sombras da noite, o enredo de uma história sem fim. O desmanchar, aqui, é parte do entrelaçamento. Se o tecer sobressalta, às vistas, o plano da obra, nos dando a ilusão de que há uma conclusão possível, não há culpa no desatamento: ele é o hiato entre o pensar e o agir, que, preciosamente, refreia o impulso da mão que fia, revela novas nuanças e redefine o instante de cerzir, com imperceptíveis pontos que podem ressignificar todo o tecido. Como Penélope, aceitamos que nossa missão é inconclusiva. Enquanto há “a guerra”, a mortalha não pode se dar por terminada. Os argonautas Myriam Fraga É difícil partir, Dois oceanos Nos dividem ao meio. Um é Descrença O outro Desespero, E em cada despedida Um velho grita. Um rei morreu menino. Seu fantasma Anda a vagar Nas capitais do medo. É difícil partir, É tão difícil Desatrelar do cais

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Este navio Que se chama Conflito. No entanto, esta tarde é Como um barco Onde me ausento De mim, de meus cansados Molhes de pedra. A angústia é meu timão, Meu astrolábio Nesta inquieta jornada. Razões de navegar, Cartografia Que recomeça ao estímulo Da pauta. Ó minha Cólchida, Sonhada e nunca vista, Entrevista sequer, Nunca encontrada. Há um velocino dormindo No meu peito, Na lembrança das coisas Que não fui. É preciso partir. No entanto, a roda Da vida nos limita. E nos quedamos, Fiandeiras Sinistras destas cinzas De um sacrifício inútil Como os deuses. Há os que partem E os que tecem. Na urdidura das sombras, É Penélope Mais astuta que Ulisses? Quem dirá na surdina Do heroísmo dos pontos, O selvagem pontear Das agulhas na carne? É difícil partir. Os argonautas São filhos do Destino. Em seu caminho,

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Há um signo feroz, Impulso para o ato. No entanto, os que ficam, Como barcos, Ancorados em si, No seu cansaço, São aves paralíticas, São pedaços Apagados no mapa, São pontos de um bordado Que não cresce Que se renova apenas Do que tece e destrói Nos dedos que noturnos Desenlaçam O fio das meadas. E nos quedamos, Fiandeiras Soturnas, nesta praça Onde plantadas estamos Como mastros De um navio que nunca partirá.

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enfaticamente, como este, uma “receita” para a questão em pauta, nem representar necessariamente a opinião da empresa jornalística. “O tom dogmático do editorial dá lugar a uma composição analítica, que deve–se pautar pela naturalidade, densidade e concisão. (...) O projeto de todo artigo é a explicação de um fato, segundo propósitos variados (informativos, interpretativos, persuasivos ou indutivos)” (M. Sodré e M. H. Ferrari). Chamada (jn) 1. Pequeno título e/ou resumo de ume matéria, publicado geralmente na primeira página de jornal ou na capa de revista, com o objetivo de atrair o leitor e remetê–lo para, matéria completa, apresentada nas páginas internas. Coluna l (ed) Cada uma das divisões verticais, geralmente padronizadas, de uma página (de jornal, livro, revista, folheto etc.) ou de tabela, separadas por fio de coluna ou canal. l (jn) Seção especializada de jornal ou revista, publica da com regularidade e geralmente assinada, redigida em estilo mais livre e pessoal do que o noticiário comum. Compõe–se de notas, sueltos, crônicas, artigos ou textos–legendas, podendo adotar, lado a lado, várias dessas formas. As colunas mantêm um título ou cabeçalho constante e são diagramadas costumeiramente em posição fixa e sempre na mesma página, o que facilita sua localização imediata pelos leitores habituais. Editorial l (jn) Texto jornalístico opinativo, escrito de maneira impessoal e publicado sem assinatura, referente a assuntos ou acontecimentos locais, nacionais ou internacionais de maior relevância. Define e expressa o ponto de vista do veículo ou da empresa responsável pela publicação (jornal, revista etc.) ou emissão (programa de televisão ou de rádio). O editorial apresenta, principalmente em sua forma impressa para jornal, traços estilísticos peculiares. Na definição clássica de Fraser Bond, é "um ensaio curto, embebido do senso de oportunidade". "Seu primo literário mais próximo é o ensaio", do qual difere, em sua brevidade, por tratar "de um assunto pertinente só ao momento imediato". No jornalismo moderno, a opinião expressa no editorial é "alguma coisa mais do que a simples opinião do proprietário", observa Juarez Bahia. "Salvo exceções de que ainda padece o jornalismo, a página editorial dos principais órgãos brasileiros consubstancia, por exemplo, o conjunto de opiniões de diretores e editorialistas – estes profissionais, identificados com a linha do jornal, escrevem e atuam com autonomia e independência, critério e responsabilidade, garantindo um conceito de opinião que busca dignificar o veículo". O editorial pode aparecer, em casos especiais, na primeira página do jornal (e alguns jornais têm isso como norma), mas na maioria dos casos aparece ao lado de outras matérias, em uma página interna predeterminada e habitual. A página editorial é uma página nobre do jornal, onde figuram, geralmente, além dos editoriais, colunas de notas e sueltos, cartas dos leitores, charges, artigos importantes e o expediente do jornal. "A página editorial tem um 'estilo' que acompanha as tendências do jornal, o próprio 'estilo' do jornal. Este 'estilo' é equilibrado, denso ou leve, conforme a linha do veículo" (Juarez Bahia). Legenda l (jn) Texto breve que acompanha uma ilustração. Vem geralmente abaixo da foto ou desenho, mas pode igualmente estar colocada ao seu lado, acima, ou mesmo dentro do seu espaço. A legenda jornalística é uma frase curta, enxuta, destinada a indicar ou a 244

ampliar a significação daquilo que acompanha. A boa legenda nunca deve ser redundante, óbvia. "A legenda tem que ser complemento efetivo da notícia e da fotografia, não uma simples duplicação dos fatos descritos na informação, nem uma etiqueta de identificação. Não deve dizer coisas que aparecem claramente na fotografia. Deve, sim, ajudar o leitor a compreender e apreciar a foto, esclarecendo as dúvidas e chamando a sua atenção para pequenos detalhes interessantes que lhe podem ter escapado. Sua finalidade é interessar o leitor o suficiente para que volte a olhar a fotografia com maior atenção" (Tom Fepersman). Mesmo curta, a legenda deve ser criativa. Pode ser informativa, explicativa, interpretativa (na medida em que chame a atenção para este ou para aquele detalhe da foto), irônica, instigadora etc.. Lide l (jn) Do ing. lead (comando, primeiro lugar, liderar, guiar, induzir, encabeçar). Abertura de texto jornalístico, na qual se apresenta sucintamente o assunto ou se destaca o fato essencial, o clímax da história. Resumo inicial, constituído pelos elementos fundamentais do relato a ser desenvolvido no corpo do texto. O lide torna possível, ao leitor que dispõe de pouco tempo, tomar conhecimento do fundamental de uma notícia em rapidíssima e condensada leitura do primeiro parágrafo. Deve ser redigido de modo a"fisgar" o interesse do leitor para a leitura de toda a matéria. Na construção do lide, o redator deve responder às questões básicas da informação: o quê, quem, quando, onde, como e por quê (embora não necessariamente a todas elas em conjunto). Manchete (jn) Título principal, composto em letras garrafais e publicado com grande destaque, geralmente no alto da primeira página de um jornal ou revista; indica o fato jornalístico de maior importância entre as notícias contidas na edição; por extensão, título de maior destaque (em tamanho e importância jornalística) no alto de cada página de notícias; do francês manchette. Manchetinha (jn) O segundo título, em tamanho e importância jornalística, na primeira página ou nas páginas internas de um jornal. Matéria. (jn) Tudo o que é publicado, ou feito para ser publicado, por um jornal, revista, radiojornal ou telejornal, incluindo textos e ilustrações (visuais ou sonoras). Tanto o original de qualquer notícia, artigo, crônica, nota etc., quanto a sua forma impressa recebem, genericamente, o nome de matéria. Notícia (jn) 1. Relato de fatos ou acontecimentos atuais, de interesse e importância para a comunidade, e capaz de ser compreendido pelo público. "O que é matéria–prima do jornalista não é palavra, é notícia: esta é a matéria–prima com que se constrói o jornal" (Celso Kelly). É em busca da notícia que se desenvolve toda a atividade jornalística. Segundo Fraser Bond, "a notícia não é um acontecimento, ainda que assombroso, mas a narração desse acontecimento". Para Charles Dana, "é algo que interessa a uma grande parte da comunidade e nunca tenha sido levado à sua atenção". Os editores da revista Colliers Weekly definem notícia como "tudo o que o público necessita saber; tudo aquilo que o público deseja falar; quanto mais comentário suscite, maior é o seu valor; é a informação exata e oportuna dos acontecimentos, descobrimentos, opiniões e assuntos de todas as categorias que interessam aos leitores; são os fatos essenciais de tudo o que 245

aconteceu, acontecimento ou idéia que têm interesse humano. A notícia se funda, pois, no público, e deve–se avaliar seu interesse apreciando nela o que interessa ao público. A essência, pois, da notícia, está determinada pelo interesse público". Os manuais de jornalismo propõem diversas classificações para as notícias: previstas ou imprevistas (um fato anteriormente anunciado ou um fato inesperado); espontâneas ou provocadas (um fato que ocorre independentemente do esforço jornalístico ou o resultado de um levantamento, de uma reportagem, como, p.ex., uma enquête reunindo a opinião de várias pessoas); locais, estaduais, nacionais ou internacionais (quanto à procedência); etc. Como fenômeno essencialmente jornalístico, a notícia requer tratamento apropriado que envolve apuração, pesquisa, comparação, interpretação, seleção – e redação adequada, de acordo com as peculiaridades do veículo. Mas para que, com toda a técnica jornalística, se produza uma boa notícia, é essencial que o fato reúna determinados atributos, como: atualidade, veracidade, oportunidade, interesse humano, raridade, curiosidade, importância e conseqüências para a comunidade, proximidade etc. 2. P.ext., o conteúdo do relato jornalístico. O assunto focalizado jornalisticamente e divulgado pelos veículos informativos para atingir o público em geral. Neste sentido, diz–se que tal fato é notícia ou que tal pessoa é notícia, quando o público tem interesse em receber informações sobre esse fato ou essa pessoa, pelos meios de comunicação de massa Reportagem (jn) 1. Conjunto das providências necessárias à confecção de uma notícia jornalística: cobertura, apuração, seleção dos dados, interpretação e tratamento, dentro de determinadas técnicas e requisitos de articulação do texto jornalístico informativo. O processo de reportagem, que vai "desde a captação dos dados à redação", segundo Juvenal Portella, envolve os trabalhos físico e mental necessários à sua existência. Considera–se incorreto designar reportagem como um tipo de notícia descritiva, mais apurada e ampla, acompanhada com documentação e testemunhos. Na verdade, esse tipo de notícia é resultado de uma reportagem, e não a reportagem em si. Suíte l (jn) Do fr., continuação, seqüência. Ato ou efeito de desdobrar uma notícia já publicada anteriormente pelo próprio veículo ou por outro órgão de imprensa. Técnica de dar continuidade à apuração de um fato (já noticiado) que continue sendo de interesse jornalístico, mediante acréscimo de novos elementos para a publicação de notícias atualizadas Texto–legenda l (jn) Legenda mais ampla, que escreve, explica ou comenta a ilustração (foto ou desenho) com mais detalhes do que a legenda comum. Permite ao redator maior liberdade de estilo, tratamento mais próximo do gênero da revista. Em alguns casos, contém o resumo da notícia, de modo que o leitor compreenda o assunto apenas vendo a imagem, o título e o texto–legenda. Geralmente sem divisões em parágrafos. Pode ser também utilizada como chamada de primeira página, para atrair a atenção do leitor e remetê–la à leitura da notícia, publica da em página interna. Título 2. Palavra ou frase, geralmente composta em corpo maior do que o utilizado no texto, e situada com destaque no alto de notícia, artigo, seção, quadro etc., para indicar resumidamente o assunto da matéria e chamar a atenção do leitor para o texto.

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