Vila Brasilândia: memória, identidade cultural e consumo de um bairro periférico paulistano

October 5, 2017 | Autor: Regina Lima | Categoria: Comunicação
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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014)

Vila Brasilândia: memória, identidade cultural e consumo de um bairro periférico paulistano

Regina de Lima Pires Mestranda PPGCOM-ESPM

Resumo Neste artigo, serão analisados os traços históricos da Vila Brasilândia, bairro periférico da cidade de São Paulo, da Nossa Senhora do Ó, uma das primeiras vilas paulistanas de onde nasceu este subdistrito, o perfil de três famílias, o cenário que as cerca, suas moradias e o quanto a memória de um bairro está presente na vida de seus moradores, mesmo sem conhecê-la. As marcas históricas do século XVI e XVII deixadas por seu fundador Manuel Preto, homem truculento, de alguma forma estão presentes nas condições desta periferia da cidade e do consumo de seus habitantes.

Palavras-chave: Comunicação; Memória; Consumo; Periferia; São Paulo.

INTRODUÇÃO

Este artigo tem como principal objetivo apresentar a história de um bairro da periferia de São Paulo, a Vila Brasilândia, que nasceu a partir da Freguesia do Ó, uma das freguesias mais antigas da capital paulista, que possui marcas deixadas por acontecimentos ocorridos ao longo dos séculos XVI até o XX. “Os bairros têm não só uma fisionomia como uma biografia” (BOSI, 2004, p. 73). E foi na biografia e nas origens da Vila Brasilândia, que encontramos muitos traços marcantes que dão significado ao presente. Ao buscarmos o nascimento da cidade de São Paulo, deparamo-nos com a raiz de sua geografia. A capital desenvolveu-se a partir da região central, no entorno do Pátio do

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Colégio, onde padres jesuítas realizaram a primeira missa, em 25 de janeiro de 1554. “Neste dia se solemnisa a conversão de São Paulo, que d´ahi derivou seu nome a povoação que então se começou a edificar naquellas paragens...” (Oliveira 1864, p. 50). Desde então, São Paulo passou por diversos processos de evolução e desenvolvimento, ainda mais intensos nos séculos XX e XXI. Ao redor do Largo da Sé, ampliando o comércio pela Rua Direita à Rua 25 de Março e muitos outros importantes centros comerciais próximos, como também, ao final do século XIX, as regiões da Penha, de Higienópolis, da Consolação, da Avenida Paulista, do Brás, dos Campos Elísios e do Ipiranga tomavam contornos de civilização. Ao longo dos séculos XVIII, XIX e início do século XX, a Freguesia do Ó protagonizava cenas de exploração de índios e escravos, vivia da cultura modesta de subsistência, seus habitantes sofriam dificuldades para chegar ao centro e os períodos de enchentes e alagamentos às margens do rio Tietê eram longos e marcaram a vida desta freguesia. Joaquim Floriano de Godoy publicou em 1875, um dos mais importantes registros estatísticos sobre São Paulo. Em A Província de São Paulo – Trabalho Estatístico, Histórico e Noticioso, Godoy (1875, p. 23) relata que “Esta cidade importante não só por ser capital da província, como por suas tradições históricas, está colocada sobre o taboleiro de uma collina rodeada de extensas planícies e banhada mais distante pelo rio Tietê”. Manuel Eufrásio de Azevedo Marques, apurou em 1870, a relação de povoações da Província de São Paulo, destacadas por Godoy (1875, p. 47). O cálculo era feito segundo o número de eleitores e dos fogos, termo utilizado na época para nomear as residências, apontando que a povoação de Nossa Senhora do Ó somava apenas 2.500 habitantes, número maior que o de São José do Rio Preto, que na mesma época tinha 1000 habitantes, Ribeirão Preto e Rio Pardo, 1.500. A mesma contagem aponta a povoação de São Paulo com 25.000 habitantes. Abaixo uma imagem que ilustra o cenário da povoação de São Paulo em 1862.

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Figura 1:

(GERODETTI, 1999, p. 17) “Largo do Piques, na região onde atualmente se localiza a Praça da Bandeira, numa vista obtida da Ladeira da Memória, em 1862”.

Memória sobre Nossa Senhora da Expectação do Ó “Descendo o rio para baixo de São Paulo, tocava-se no sítio de Nossa Senhora da Esperança com um aldeamento fundado por Manuel Preto, e que veio a ser depois a capela e povoação de Nossa Senhora da Expectação do Ó”. (NÓBREGA, 1891) Assim é descrita a navegação no rio Tietê, logo após a saída de Nossa Senhora da Luz até o porto do rio Tietê, no século XVII. Manuel Preto tinha uma reputação controversa, apontado como um pirata atrevido e cruel que morreu de uma flechada no coração como castigo de suas tiranias. Além de latifundiário, Preto era traficante de escravos e chegou a ter mais de mil índios trabalhando em suas terras após o célebre massacre nas reduções jesuíticas de Guairá. Afirma Máximo Barros, no livro Nossa Senhora do Ó, que o belicoso bandeirante chegou a levar índios acorrentados pelos lábios até suas terras. Manuel Preto, segundo o autor, deveria pertencer a linhagem de índios jequetibás. “Seu nascimento, segundo a maioria dos historiadores, deu-se em 1535, tendo portanto pela época do massacre do Guairá, 90 anos. Neste periodo, muita mão de obra era necessária para a produção de cana de açúcar.

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(BARRO, 1977). A capela de Nossa Senhora da Esperança ou Expectação é datada de 1610, conforme aponta Azevedo Marques. “Seu epitáfio, feito pelo jesuíta Simão Maceta, é dos mais lúgubres. Diz ele escrevendo ao Padre Francisco Crespo: “Manuel Preto, antes de todas estas estradas por aver dado tan malo exemplo a esta gente, ya acabo sus dias, y murio em el serton com muy buenos flechasos que le dieron los yndios contra quiener yva Ya sus parientes, y la demas gente de su Compañia, se han buelto com los yndios que pudieron captivar. El Prieto dixo quando fue que avia de yr e morir em el serton em manos de los yndios, y tambiem fuso uma capa que avia de poblar em puerto de Santa Catalina. Plega al Senor que haya poblado el infierno por la muerte tan desgraciada y cruel”. (BARRO, 1977. Pag. 41 e 42)

Seus três filhos não tiveram sorte muito diferente, pois morreram um pouco depois do pai, sendo o mais velho Antônio Preto, entre 1632-1633. “Em sessenta anos a sesmaria seccionara-se em várias fazendas, que se subdividiram em inúmeros sítios, multiplicando-se por centenas de chácaras”. (idem. Pag. 42). Embora tivesse, na época de Manuel Preto, a vocação para a produção de cana de açúcar, o Ó do século XVIII não segue o mesmo rumo do quadrilátero de Sorocaba, Piracicaba, Mogi-Guaçu e Jundiaí e acaba inveredando por um caminho menos lucrativo, que demandava menor número de escravos, o da caninha, bebida mais conhecida nos dias atuais como cachaça. “De qualquer maneira é importante salientar que este será o segundo e último elemento na formação social, econômica e principalmente psíquica do habitante local”. (BARROS, 1977, p. 57) As antigas terras de Manuel Preto passam a servir de região de assalto e latrocínio. “Os estradeiros, principalmente de gado, ameaçam deixar a vila sem recursos alimentares se não fossem coibidas as incursões dos quilombolas”. (ibidem, pág. 45). O nome da Freguesia do Ó torna-se sinônimo de refúgio e as estradas para o sertão em busca das minas peruanas, transformam o sítio numa espécie de estrada aberta. Com o passar dos anos, os documentos passam a chamar a região de Nossa Senhora do Ó ou simplesmente Ó. O nome é oficializado em 1796, quando foi desmembrado da Sé. Um relato do português Luiz D’Allincourt, datado de 1830 descreve com clareza a situação do Ó neste período:

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“A volta que faz o rio nesta passagem, segue o rumo de Oeste-noroeste, e o caminho vai ao Noroeste; adiante está a igreja de Nossa Senhora do Ó, colocada em uma colina com o frontespício para São Paulo, donde dista légua e meia; o estado de ruína, em que se acha dá logo a conhecer a pobreza do povo, que chega a mil e duzentas almas de confissão, suas fazendas, e moradores são distantes umas das outras e somente há um pequeno número de casas perto da Igreja...Os habitantes desta Freguesia cultivam a cana de açúcar para extraírem aguardente, o que forma o principal ramo do seu negócio; colhem café, mandioca, algodão; plantam milho, e legumes, quanto baste para o seu consumo” (ibidem. Pag. 51)

Muitos são os relatos do quão pequena era a aldeia e como era distante do centro de São Paulo. Em 1860, o suíço-alemão Johan Jacob von Tschud, conta que passa por Águas Brancas, região onde hoje está o a Avenida Francisco Matarazzo e o Parque da Água Branca e, depois desce para chegar ao monte de Ó e, no cume, encontra o que ele chama de uma “insignificante aldeia, com sua pequena mas graciosa igreja, votada a Nossa Senhora do Ó”. Em 1872, a pedido do Ministério do Império é feito o primeiro recenseamento científico. Neste trabalho, a Freguesia do Ó contava 2023 habitantes, distribuídos em 319 residências. O número de casados é muito menor que o de solteiros, de 382 para 1230. Ainda havia a presença de escravos, 315, porém em quantidade menor que em 1805. O sub emprego e os sem profissão eram maioria, sendo 1149 sem um ofício e 217 criados e 114 domésticos. Os demais eram distribuídos entre 422 lavradores, um mestre de obra, sete especialistas em mandeira e um em metais, 94 costureiras, dois comerciantes, dois professores, um pescador e o padre. Apenas 10% eram letrados e 1800 eram analfabetos. A importante família paulistana Prado mantinha uma casa de campo no Ó, mas apenas em função dos ares da região, sem oferecer qualquer melhoria para esta freguesia.

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A planta acima consta do livro São Paulo, 1860-1960 – A Paisagem Humana. Nela é possível analisar para onde crescia a cidade em 1905. Fica evidente a evolução do processo de urbanização, com uma boa estrutura na região central e no topo superior esquerdo da imagem, vê-se a referência à Nossa Senhora do Ó, com sua pequena ocupação distante do centro. Em 1930, época da crise do café, São Paulo caminhava para um milhão de habitantes. Sem planejamento, a cidade precisava abrigar os imigrantes que começavam a surgir. Mas a maior mudança acontece em 1954, após a Segunda Guerra Mundial, quando se desenhavam as tendências industriais da cidade e a região da Freguesia transforma-se em um dos pólos industriais, junto com o Brás, o Belenzinho e a Barra Funda. Foi na época desta transformação de área de sítios, com lavouras de subsistência e a chegada destas indústrias, que o Ó deixa de produzir sua famosa caninha. O último engenho, de propriedade de Zico Rodrigues da Silveira, que produzia a caninha Gato, encerra suas atividades em 1954.

Vila Brasilândia Em um decreto de 15 de setembro de 1972, nasce a Vila Brasilândia, quando há 41 anos foram alteradas as divisas das regiões administrativas de São Paulo. Em

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1977, apenas 2% do novo bairro contava com rede de água e esgoto. A primeira rua asfaltada era a Itaberaba, ainda nos dias de hoje uma das vias mais importantes da região. Se contarmos a partir do marco zero à praça da Sé, são aproximadamente 20 quilômetros até a Brasilândia, tornando o bairro parte do extremo noroeste da cidade. Mesmo estando no século XXI, ainda verificamos muitos problemas nesta região da cidade. Segundo números fornecidos pela prefeitura de São Paulo, em 2010, a Vila Brasilândia somava 264.918 habitantes, em uma área de 21 km².

Figura 3:

Como define o teórico dos Estudos Culturais, Raymond Williams, ao abordar a complexidade da hegemonia, ela não é única e suas estruturas internas são muito complexas, assim como pudemos verificar nos fatos históricos que marcaram a Freguesia do Ó. “Pois a hegemonia supõe a existência de algo verdadeiramente total, não apenas secundário ou superstrutural, como no sentido fraco de ideologia, mas que é vivido em tal profundidade, que satura a sociedade a tal ponto e que, como Gramsci o coloca, constitui mesmo a substância e o limite do senso comum para muitas pessoas sob sua influência, de manieira que corresponde à realidade da esperiência social muito mais nitidamente do que qualquer noção derivada da fórmula de base e superestrutura” (WILLIAMS, 2011)

Para ajudar o leitor a compreender os conceitos de “base” e “superestrura”, elementos fundamentais que ajudam a compor uma abordagem moderna sobre a

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teoria marxista da cultura, o autor exemplifica de forma frugal ao comparar a “base” a um fabricante de pianos e, a “superestrutura”, ao pianista.

Mas voltando ao

conceito de hegemonia para Williams, mais alguns elementos oferecidos na obra Cultura e Materialismo são fundamentais para entender a Vila Brasilândia de hoje e a antiga freguesia da Nossa Senhora da Expectação do Ó, do passado. O autor nos coloca como evidente que algumas das melhores análises marxistas culturais trabalham sob o que ele denomina de “questões de época”, ao invés de “questões históricas”, definição mais adequada para Williams, uma vez que “esse verdadeiro processo histórico que exige uma precisão e delicadeza na investigação muito maior do que sempre surpreende análises de época, a qual se preocupa com seus traços e carcterísticas principais”. (WILLIAMNS, 2011 p. 53)

Após transcorrermos sobre algumas questões que marcaram a antiga freguesia do Ó, do século XVI, até chegarmos na atual divisão com o subdistrito da Vila Brasilândia, do século XX, não podemos deixar de assinalar o quanto as seguidas “questões históricas” deixaram marcas. São como cicatrizes na face de uma área distante do centro, longe do glamour dos casarões art nouveu da Avenida Paulista, do século XIX. Desde a exploração de escravos e de índios realizada por Manuel Preto, passando para os elevados índices de ocupação irregular da década de 70, até as redes irregulares de fornecimento de água, falta de coleta de esgoto, índices de violência alarmantes e a elevada evasão escolar, em 2014, macrofissuras marcam as histórias do passado, presente e, possivelmente, futuro da Brasilândia. São como fendas que foram se abrindo ao passar dos anos e constituindo a realidade, a vida em sociedade e a vida em família das pessoas desta região. Elas formam cicatrizes tão profundas, que chegam a virar macrofissuras. Fissuras extensas que marcam a memória e que foram deixadas pela prática exploratória desde a família do senhor Preto, que atuava de forma brutal com seus escravos e não se preocupava em oferecer condições de vida dignas para aqueles que residiam sob seus cuidados. Aos passar dos anos novas fissuras foram sendo deixadas pela industrialização iniciada em 1954 e, depois, veio o crescimento demográfico vertiginoso das décadas seguintes. As condições de

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moradia, de saneamento, de educação, de transporte e de lazer do bairro continuam defasadas em relação a outras regiões da cidade, como se as memórias de um tempo longínquo trouxessem suas fecetas para a realidade da Vila Brasilândia do século XXI. “As lembranças se apoiam nas pedras da cidade. Se o espaço, para MerleauPonty, é capaz de exprimir a condição de ser no mundo, a memória escolhe lugares privilegiados de onde se tira a seiva”. (BOSI, 2004, p. 71).

Identidade cultural “As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado” (HALL, 2011, p. 7). Foi neste contexto de novas identidades que começamos a participar do programa Família Assistida, do Grupo Espírita Batuíra – GEB. Desde sua fundação, há 50 anos, o GEB, ou Bartuíra, como é conhecido pela comunidade da V. Brasilândia, oferece assitência social, médica e educativa à população carente do bairro. O programa Família Assistida tem capacidade para atender 21 famílias aos sábados, em sua unidade na Rua Jorge Pires Ramalho, 34. O trabalho é dividido em duas equipes, a de Acompanhamento Interno e a de Visitação. Por participarmos de ambas, conseguimos acompanhar o atwndimento de salão, com as mães, aos sábados de Acompanhamento Interno. Nos sábados de Visitação, acompanhamos três famílias, visitando seus lares. A grande maioria é de estrutura matriarcal, chegando a atingir mais de 90%. As mães ainda enfrentam problemas para encontrar creches e todas as famílias têm dificuldade de conseguir uma moradia sem condição insalubre. Quase todas residem em barracos, sem sanemaneto básico e, em terrenos irregulares. O aluguel deste tipo de moradia, com dois cômodos, gira em torno de R$ 400,00. Famílias com mais de três crianças sofrem enorme dificuldade de serem aceitas como locatárias, pois os locadores julgam que muitas crianças podem denegrir o imóvel, conforme relataram Gorete e Silmara (nomes fictícios).

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“As lutas de gerações a respeito do necessário e do desejável mostram outro modo de estabelecer as identidades e construir a nossa diferença. Vamos nos afastando da época em que as identidades se definiam por essências ahistóricas: atualmente configuram-se no consumo, dependem daquilo que se possui, ou daquilo que se pode chegar a possuir” (CANCLINI, 2010, p. 30)

Esta condição de pobreza, ao mesmo tempo, recebe influências de múltiplas culturas, pois todos têm acesso aos telefones celulares com internet, uma vez que algumas operadoras oferecem pacotes baratos de serviços pré-pagos. Todas as famílias também acessam informações por meio de televisores e rádios. “As pessoas que moram em aldeias pequenas, aparentemente remotas, em países pobres, do “Terceiro Mundo”, podem receber, na privacidade de suas casas, as mensagens e imagens das culturas ricas, consumistas, do Ocidente, fornecidas através de aparelhos de TV ou de rádios portáteis, que as prendem à “aldeia global” das novas redes de comunicação.” (HALL, 2011, p. 74)

Neste cenário formam-se múltiplas identidades, constituídas por um sujeito fragmentado, que é uma característica da identidade cultural na pós-modernidade, conforme discorre o autor. A identidade nacional também é objeto de análise e nos ajuda a entender alguns aspectos constitutivos desta comunidade, inserida nesta cidade e, por conseguinte, nesta nação, que é o Brasil. “As culturas nacionais são uma forma distintivamente moderna. A lealdade e a identificação que, numa era pré-moderna ou em sociedades mais tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo, à religião e à região, foram transferidas, gradualmente, nas sociedade ocidentais, à cultura nacional”. (ibidem, 2011, p.75)

A formação das favelas nas periferias das grandes cidades

Martín-Barbero, em seu clássico Dos Meios as Mediações nos descreve o processo do aparecimento das favelas na América Latina e, este se encaixa perfeitamente na realidade apresentada pela Vila Brasilândia, embora o autor trate de Lima, no Peru. “As multidões de origem provinciana, amontoadas no espaço urbano, determinam profundas alterações no estilo de vida da capital e dão uma nova

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face a cidade. Uma cidade saturada em sua geografia e sua moral.... A luta por habitação, pelo fornecimento de energia elétrica e água, por um transporte básico e por um mínimo de atenção à saúde se inscreve numa realidade mais integral, a da luta pela identidade cultural”. (MARTÍN-BARBERO, 2013. Pag. 274)

Por não haver parque, biblioteca pública infantil ou para adultos, cinema, teatro, áreas de lazer e praças é possível afirmar que os moradores da Brasilândia sobrevivem para buscar construir sua identidade cultural. Casos de violência entre jovens de 15 a 19 anos chegam a 35,17% comparados com um total geral do município. Outras questões como a baixa escolaridade, maternidade de mulheres de 12 a 19 anos, desemprego e baixo rendimento escolar ainda estão entre os maiores índices, se comparados com todo o município de São Paulo, conforme dados de 2013, do Observatório Cidadão, da Rede Nossa São Paulo.

A foto acima, de minha autoria, foi tirada em janeiro de 2014, à caminho do GEB, próximo à Avenida Parapuã. Este cenário ilustra o tipo de construção que predomina no bairro. Ao adentrar pelas vielas, escadões e pequenos corredores a situação é muito distinta das que verificamos nas ruas mais urbanizadas. Nas visitas quinzenais nos deparamos com barracos em áreas de risco, como este da foto abaixo:

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Famílias

Selecionamos três famílias para ilustrar a realidade da população que vive nas áreas mais pobres da Vila Brasilândia. Traremos os casos de Cássia, Dolores e Andreia. Todos nomes fictícios para que suas identidades sejam preservadas. Cássia engravidou pela primeira vez aos quatorze anos. Hoje, aos 30 anos, é mãe de cinco filhos. Sua filha mais velha, com 14 anos e a segunda, com 13, deixaram de frequentar a escola no Ensino Fundamental II. A primogênita engravidou do namorado, com a mesma idade da mãe Cássia, 14 anos. Sua avó, não teve a oportunidade de estudar, afirma que a mãe a obrigava a cuidar dos irmãos e da casa e não a colocou na escola. Cássia completou apenas o 5º ano, do Fundamental I. O homem com quem vive atualmente é pai apenas de seu filho caçula, com três anos, os outros quatro filhos são de pais diferentes. Cássia e sua família viviam em um barraco emprestado da tia, um espaço com um banheiro adaptado, uma área separada para a cozinha e um quarto. O barraco estava sempre muito sujo e bagunçado, diferente de muitas casas que visitamos.

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A segunda família é de Dolores. Quando procurou o GEB, Dolores vivia com seus dois filhos, um casal de 8 e 6 anos, na casa de uma amiga, que lhe emprestou um quarto. Um mês depois, Dolores havia mudado para o barraco de sua sogra, localizado em uma rua aberta atrás de três vielas. Esta rua fica paralela a um pequeno morro coberto por mato. O marido de Dolores está preso e cumpre pena de três anos por tráfico de drogas, ela estava grávida de seis meses quando sua família foi “adotada” pelo programa. Dolores perdeu a mãe quando criança, não tem avós e não conheceu o pai. Sua única família são seus filhos, marido, sogra e genros. Sua casa está sempre limpa e organizada, os filhos arrumados e bem cuidados. Quatro meses depois do nascimento da filha caçula, Dolores conseguiu um bom emprego, com carteira assinada. Mantivemos a família no programa até passar o período de experiência. Assim que pôde, ela saiu do barraco da sogra e foi morar na casa de uma amiga, em uma rua asfaltada e em melhores condições. A terceira família que vamos apresentar é de Andreia, de 27 anos. Andreia é mãe de cinco filhos e está grávida do sexto. O pai de seu filho mais velho, de 10 anos, morreu atropelado. Os outros dois filhos são de um segundo pai, com quem ela não se relaciona. A filha caçula e um bebê que perdeu com cinco meses são de um terceiro companheiro. Este era viciado em cocaína e, após realizar um tratamento, acabou voltando para casa, mas pouco depois morreu de overdose. A gravidez atual é de um namorado. Andreia é uma moça doce e uma ótima mãe. A família mora em um terreno invadido, em um barraco muito pequeno. Ela está sem emprego há três anos e não tem com quem deixar os filhos no período do contra-turno escolar para trabalhar. Há um mês ela começou a receber o Bolsa Família, ajuda financeira do Governo Federal, no total de R$ 198,00 mensais. Andreia perdeu a mãe quando tinha oito anos, vítima de derrame. As três famílias apresentadas neste artigo são chefiadas por mulheres jovens, com muitos filhos e que não terminaram o ciclo escolar. Elas cuidam de seus filhos e lutam para conseguir vagas nas escolas públicas do bairro. Exceto Dolores, que possui um grau de instrução maior e apenas três filhos, as outras duas não estão

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trabalhando e não têm perspectiva de melhorar de vida no momento. As escolas em meio período dificultam muito a organização do cotidiano familiar para as mães poderem trabalhar. Diretamente ou indiretamente, as três famílias tiveram algum tipo de envolvimento com drogas. Cássia tem os irmãos usuários e uma de suas filhas a via fazendo uso de entorpecentes. Dolores está com o marido preso por tráfico e Andreia é viúva do pai de dois de seus cinco filhos, por overdose. Ambas se preocupam muito em proteger seus filhos para que eles não tenham contato com o mundo do tráfico, mesmo morando em barracos permeados e cercados por traficantes. As famílias da periferia de uma cidade como São Paulo, acabam diferenciando-se umas das outras pela forma e pelos bens que consomem e podem consumir e não pelas regras democráticas. “Homens e mulheres percebem que muitas perguntas próprias dos cidadãos – a que lugar pertenço e que direitos isso me dá, como posso me informar, quem representa meus interesses – recebem sua resposta mais através do consumo privado de bens e dos meios de comunicação de massa do que pelas regras da democracia ou pela participação coletiva em espaços públicos” (CANCLINI, 2010, p. 29).

As três famílias descritas neste artigo, figuram um pequeno exemplo de enredos de uma história real. Elas são uma matriz de identidade e reconhecimento, como explicam Lopes, Borelli e Resende (2002) e realizam suas mediações em âmbito institucional, nos moldes que foram detalhados por Orozco (1996). Para o autor, é no âmbito familiar e da escola que as mais significativas medições ocorrem. Como o circulo de relacionamento destas famílias é pequeno, ficando circunscrito apenas a seus lares, às creches, escolas e com os vizinhos, verifica-se a predominância das mediações de âmbito institucional. Este artigo configura o início da pesquisa e, ainda temos muitos aspectos a estudar: a questão que fica no ar é como as famílias quebrarão as barreiras das marcas deixadas pela história deste bairro e como conseguirão diferentes perspecitvas para que as próximas gerações desfrutem de uma outra realidade? Mais uma dúvida, é

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quanto a memória das tragédias de um bairro se mistura à memória destas famílias e, até quando estas realidades ficarão marcadas pelas cicatrizes deixadas pelo tempo?

Referências Bibliográficas:

BARRO, M. Nossa Senhora do Ó (Vol. 13). São Paulo, São Paulo, Brasil: Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura do Município de São Paulo, 1977 BOSI, E. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social (2a edição ed.). São Paulo: Ateliê Editorial, 2004 CANCLINI, Néstor Garcia. Consumidores e Cidadãos, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2010, 8ª edição GERODETTI, J. E. Lembranças de São Paulo: A capital paulista nos cartões-postais e álbuns de lembranças (Vol. 1). (S. R. Santos, Ed.) São Paulo: Solaris Edições Culturais, 1999 GODOY, J. F. A Província de São Paulo: Trabalho Estatístico, Histórico e Noticioso (2a edição de 1978 ed., Vols. Volume XII - Coleção Paulística). São Paulo, São Paulo, Brasil: Governo do Estado de São Paulo, 1875 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Editora DP&A Editora, 2011, 11ª edição LOPES, M. I., & BORELLI, S. H. Vivendo com a telenovela: mediações, recepção e teleficcionalidade. São Paulo: Summus, 2002 MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios as mediações: comunicação cultura e hegemonia (7a edição ed.). (R. P. Alcides, Trad.) Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil : Editora UFRJ, 2013. NÓBREGA, M. História do Rio Tietê (2a edição - 1978 ed., Vols. Volume VIII - Coleção Paulística). São Paulo, São Paulo, Brasil: Governo do Estado de São Paulo, 1891. OLIVEIRA, J. J. Quadro Histórico da Província de São Paulo (1a edição fac-similada 1978 ed., Vols. Volume IV - Coleção Paulística). São Paulo, São Paulo, Brasil: Governo do Estado de São Paulo, 1864. OROZCO, G. G. La Investigación en Comunicación desde la Perspectiva Cualitativa: Ediciones de Periodismo y Comunicación. Buenos Aires, Argentina: Universidade Nacional de La Plata, 1996. Rede Nossa São Paulo. Observatório Cidadão . São Paulo, São Paulo, Brasil, 2013. WILLIAMS, R. Cultura e Materialismo. (A. Glaser, Trad.) São Paulo, São Paulo, Brasil: Editora Unesp, 2011.

Figura 1: GERODETTI, J. E. Lembranças de São Paulo - A capital paulista nos cartõespostais e álbuns de lembranças (Vol. 1). (S. R. Santos, Ed.) São Paulo: Solaris Edições Culturais, 1999. Figura 3: Mapa retirado do site da prefeitura de São Paulo, no endereço http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/subprefeituras/freguesia_brasilandi a/mapas/index.php?p=143. Acessado em 23 de junho de 2014.

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