VIOLÊNCIA E INTERPRETAÇÃO: uma leitura psicanalítica da violência e de sua interpretação nas manifestações políticas de junho de 2013

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VIOLÊNCIA E INTERPRETAÇÃO:
uma leitura psicanalítica da violência e de sua interpretação nas manifestações políticas de junho de 2013


Hugo Leonardo Lana dos Santos
Pedro Eduardo Silva Ambra


Manifestações políticas
Desde junho do ano de 2013 o país tem assistido o desenrolar de diversas manifestações políticas em suas ruas. Estas manifestações têm ocupado o lugar de objeto principal de matérias jornalísticas nos mais diversos meios. Durante muitos meses, semanalmente era possível acompanhar matérias, análises, editoriais, colunas opinativas com variados posicionamentos, apropriações e interpretações acerca do movimento político. Assim como, diversas visões e opiniões sobre os acontecimentos nas redes sociais.
No entanto, é patente como a temática da grande parte deste material concentra-se em uma só questão, qual seja, aquela da violência. Se é fato que os episódios de violência relacionados às manifestações não cessam de se suceder, também o é que há a concentração das pautas acerca destes episódios nas mídias nacionais e locais. Cabe aqui a pergunta a respeito da razão deste foco de atenção e de suas consequências e, para além disso, a problematização da modalidade interpretativa na qual o material discursivo é produzido.
A partir de determinado momento, as manifestações políticas que acontecem em variadas cidades do país e que ao menos parecem ter motivações e configurações diversas passaram a ser nomeadas como pacíficas ou violentas em uma chave de leitura que as validava ou não. Àquelas, o tom adotado por grande parte dos veículos incitava apoio geral da população a partir da ideia de que a violência é condenável e inaceitável, inclusive propondo "soluções" como a de "manifestódromos", locais onde as demonstrações poderiam ocorrer sem que isso causasse constrangimento ou algum tipo de prejuízo ao resto da população. De outro lado, circula também um discurso – embora de muito menor alcance – de que é precisamente a violência das manifestações que as legitima, na medida em que ela seria reativa a uma naturalização da violência estatal ou do capitalismo em seu formato neo-liberal. Essa leitura sugere que a violência seria um sintoma, dado que a imposição das pautas dos manifestantes não seria exercida a partir de suas intenções mas de seus efeitos. Lugar comum para a psicanálise, a retroatividade da significação poderia aqui ser evocada, donde teríamos leituras como aquelas que sugerem que se não houvesse os exageros violentos, ninguém voltaria a atenção para a demanda primeira e básica dos manifestantes. Tratar-se-ia, no fundo, de dois lados de uma mesma moeda democrática e do estado de direito e todo o debate sobre a violência do oprimido e sua incompatibilidade com a violência do opressor estaria à mesa, caso optássemos por essa abordagem. No entanto, gostaríamos de propor uma leitura outra para a questão.
As manifestações insistem para além de seu enquadre nas coordenadas discursivas providas e difundidas socialmente a respeito da violência. As manifestações repetidamente qualificadas violentas pouco a pouco impuseram à população um enigma a ser decifrado, a saber, a sua razão. No entanto, o enigma, a pergunta realizada em determinado momento: "o que querem, afinal?" logo deu lugar à questão da legitimidade ou não de "manifestações violentas". Gostaríamos de insistir na colocação da questão a partir da análise deste qualificador: a violência, a partir de autores como Arendt, Freud, Agamben e Lacan. Pensamos que a questão para qual o tema da violência aponta é precisamente o de sua interpretação.
Do que se trata quando dizemos que as manifestações são violentas? A que violência nos referimos e qual o enquadre interpretativo que está colocado para que esta questão surja no centro de nossas preocupações?

A temática da violência em Freud
A violência não é propriamente um conceito psicanalítico, muito embora possa ser facilmente identificada em diversos momentos da obra freudiana. Ela está presente na teoria da sedução traumática, nos desenvolvimentos referentes ao sadomasoquismo e à violência erógena, na pulsão de morte, entre outros. (ENDO, 2005) É curioso notar como metapsicologicamente a categoria de violência ou de agressividade, de maneira geral figura como uma instância externa ou aparentemente externa ao sujeito, que viria a perturbar seu equilíbrio interno. Bem entendido, após a reformulação da segunda teoria das pulsões, tal quadro será revisto no sentido de demonstrar de que maneira a violência é construída a partir de uma complicada rede de inversões onde pares como atividade e passividade, agressividade e submissão, fantasia e realidade, implicam-se mutuamente e não mais podem ser considerados como entidades independentes ou facilmente localizadas como internas ou externas.
Junto a textos como Psicologia das massas e análise do eu e Totem e Tabu, podemos notar como Freud pensa a violência tanto como uma instância ativa dos sujeitos quanto a pensa a partir de uma configuração grupal. É importante sublinhar que o pensamento freudiano pode fazer coexistir em sua análise tanto mecanismo de alienação subjetivos quanto a inauguração e instauração de montagens sociais radicalmente distintas e, porque não dizer, civilizatórias. Assim, parece possível conceber a violência tanto como uma categoria atuativa quanto de modificações estruturais a partir de fenômenos ou critérios sociais. Em Totem e Tabu (FREUD, 1912), Freud apresenta sua construção sobre a gênese do social a partir de um momento originário do processo civilizador onde estariam presentes o quadro para a passagem do homem em estado natural a cultura. O mito acerca das origens, que descreve a vida na horda primeva, é uma articulação crucial da teorização freudiana da transição de um estado onde as relações humanas se configuravam através do recurso à força bruta para um outro em que as relações seriam mediadas por normas estabelecidas socialmente. Freud postula igualmente que a energia psíquica libidinal que é utilizada na cultura, para a manutenção do vínculo social entre os homens, advém precisamente de satisfação libidinal que foi recalcada. A civilização é possível a partir do impedimento da manifestação do impulso agressivo humano.
Entretanto, mesmo que Freud (1929) atribua a infelicidade humana à vida em civilização, dado que esta é possível somente a partir da limitação da vida pulsional ele postula a possibilidade de certa relativização ou mesmo afrouxamento destes laços estabelecidos no processo civilizatório o que produziria um efeito de violência contra o que é externo ao sujeito. Ou seja, a entrada do homem na cultura sustenta simultaneamente a relação com o impedimento da plena realização do princípio do prazer e com a preservação da integridade, dada a sua abertura para a agressividade.
Neste sentido, é possível afirmar que há no estabelecimento da cultura uma permissividade que, por sua vez, é fonte de tensões e agressividades que se dão no bojo social. Aqui o que está em jogo é o que Freud (1929) nomeou de "narcisismo das pequenas diferenças", que designa a percepção de ameaça daquilo que é ligeiramente estrangeiro à identidade grupal ou individual e dando ensejo a manifestação da violência.
A partir deste desenvolvimento, a agressividade passa a desempenhar uma função de proteção e conexão libidinal no que tange as relações identitárias individuais e culturais. Dada a impossibilidade de supressão total da agressividade pela cultura esta retorna a serviço da socialização – agressiva – e dos vínculos sociais que redundam na postulação do estranho familiar.
O processo civilizatório encerra, deste modo, uma estratégia de duas vias: ao mesmo tempo que reforça a identidade entre os membros do mesmo grupo, impedindo que a agressividade desestabilize os vínculos sociais também há uma abertura que favorece a agressividade em relação a outros grupos. Pontuamos que a distinção entre agressividade e violência nesta breve recuperação do percurso freudiano não foi o centro de nossa atenção. Isso se justifica pelo fato de que tal distinção será mais produtiva a partir de outros autores.

Limites da violência como instrumento
Em seu artigo intitulado "Sobre os Limites da Violência", Agamben trata de localizar a violência em sua relação com o político, deslocando a questão da relação entre a violência e a justiça, a fim de obter um limite em para a violência em si própria . Esta posição nos importa na medida em que, uma vez que a violência pode ser justificada por outra instância discursiva, ou seja, uma instância interpretativa, ela opera como instrumento. Vejamos mais pausadamente este ponto partindo da concepção arendtiana de violência.
Ao recusar a interpretação da sociedade como um organismo, concepção esta que para Arendt confere à violência e ao poder um estatuto biológico, a autora faz recurso do aspecto instrumental da violência. Ou seja, para a autora a violência é portadora de uma racionalidade determinada, dado que serve a um fim. Ao fazê-lo, Arendt insiste também na separação entre poder e violência recusando tradições como a weberiana para quem o domínio se dá através da violência legítima.
Para então fundamentar a diferença entre poder e violência, Arendt faz recurso à análise da concepção grega de poder como isonomia. Aí as decisões políticas se informam através do uso da palavra e da persuasão e nunca por meio da violência ou da força que remetiam os gregos a uma modalidade bárbara de regulamentação social.
Deste modo, Arendt não só discrimina poder político e violência como os coloca em uma relação de oposição. "Poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente, o outro está ausente. A violência aparece onde o poder está em risco, mas, deixada a seu próprio curso, ela conduz à desaparição do poder" (Arendt, 1994, p. 44). É no estabelecimento desta oposição que a conceitualização da instrumentalização da ação opera na medida em que essa instrumentalização é uma tentativa de não lidar com a imprevisibilidade e incerteza que a ação humana comporta. A instrumentalização da ação, dado que há um fim a ser atingido, inibe a possibilidade da palavra. Estamos distantes de Freud aqui já que para este autor o estabelecimento dos vínculos humanos contam com uma agressividade pulsional. Para Arendt, somente a pura violência é muda. O encaminhamento discutido pela autora seria então a devolução da palavra ali onde ela encontra-se emudecida. É a partir da palavra que os sujeitos se constituem como políticos na medida em que o seu impedimento pela instrumentalização da ação, a violência, é o impedimento das condições de possibilidade para que a indeterminação se dê. E a ação política precisa de um espaço indeterminado dado que a próprio ato de busca por palavras constitui, já, uma ação.
Agamben (1970) trata a questão de maneira frontal. Se para os gregos a palavra ocupava um lugar central na concepção do político, produzindo então uma oposição com a violência como não-palavra, o autor postula que a relação com a verdade nesta palavra não era a mesma da qual dispomos. Segundo Agamben, a relação entre pólis e linguagem era de tão modo total que estar fora da pólis implicava estar fora daquela modalidade de linguagem pois essa só poderia operar naquele modo de vida. Assumindo o caráter crucial da peitarquia (poder da persuasão) na pólis, o autor remete à noção que circula em Platão e Aristóteles de que nada é mais persuasivo do que a verdade, dado que a persuasão não é nada além de uma característica da verdade. Ou seja, a violência não poderia ser um instrumento político uma vez que não seria suficientemente persuasiva. Basta expor a violência como um recurso mais distante da palavra, ou seja, da verdade para que ela perdesse completamente sua força política.
Segundo Agamben, a experiência política da modernidade difere radicalmente daquela da dos gregos por conta da introdução de um elemento de violência na linguagem completamente estranho à teoria política da antiguidade; a mentira. A instauração de uma relação com a linguagem que conte com a mentira como violência possível estabeleceu outros parâmetros normativos (Agamben menciona a pornografia totalizante de Sade e a poesia de Hölderlin) na medida em que para Platão, por exemplo, o processo da maiêutica comportava uma relação onde a verdade emergiria com toda sua força persuasiva, enquanto que a poesia – abominada pelo filósofo – teria uma força persuasiva que não dependia de uma relação de adequação à verdade.
A partir da queda da verdade como lugar de justificação na não-violência, como metalinguagem que serve à verificação da legitimidade da ação política ou linguística, surge uma questão: se a relação com a linguagem como violência se instaurou a partir da relativização da verdade a partir da sofística, quando e de que forma seria uma violência justificada politicamente?
Agamben menciona certa interpretação do texto marxiano que considera a violência revolucionária legítima na medida em que ela aceleraria o processo de verificação presente na História, interpretação esta que acaba por naturalizar a história incorrendo no erro da tentativa de justificação da violência externamente à própria violência. O autor então inverte o problema retirando a questão do que justificaria a violência e colocando-a na busca por uma violência que contenha o próprio critério para a sua existência. A partir daí Agamben insiste nas possibilidades que a categoria do sagrado fornecem para se pensar uma violência auto-profanatória.
Para além da resposta do autor, que realiza uma incursão na dimensão do que ele conceitualiza como o sagrado que aponta para o limite das possibilidades da linguagem, nos parece profícuo neste momento inserir a discussão a respeito da interpretação na obra lacaniana, na medida em que esta está orientada por um descompasso na linguagem e pode fornecer elementos produtivos nos modos de localização e interpretação da violência.

RSI e Interpretação da Violência
Entendemos que o problema central da violência nas manifestações se beneficiaria ao se emancipar de um uso hipostasiado. Em outras palavras, como Agambem aponta, há um problema no uso naturalizado da violência no sentido em que ela se reporta a uma linguagem capaz de realizar uma purificação que levaria à verdade. A violência é, assim, sempre o produto de uma interpretação.
Interpretação esta que adquire com Lacan um estatuto de problema lógico e ético. Na teoria lacaniana, a linguagem ligada radicalmente ao inconsciente, pressupõe certa ética que se coloca na relação da habitação da linguagem. Esta relação deve comportar algo que é estrangeiro ao sujeito, algo que se imiscui em sua fala apesar de sua vontade. Neste sentido a interpretação passa a ser um modo de radicalização "da relação ética do homem com sua palavra e com um aspecto subversivo desta: o desejo" (DUNKER, 1996). Assim a verdade da interpretação aponta para uma inadequação entre o sujeito e o desejo. Essa inadequação entretanto pode produzir efeitos éticos se tensionada – e aqui acompanhamos Dunker – com as dimensões de acontecimento e contexto. Cremos que estas dimensões que problematizam a questão da interpretação são profícuas em nossa análise dos modos de interpretação da violência nas manifestações, uma vez que possibilitam sofisticar o debate acerca da violência como instrumento ou da possibilidade de uma violência que contenha em si própria sua negação, como quer Agamben.
No entanto, propomos para isso, não a categoria de sagrado, mas antes, ao acrescentar ao debate instâncias interpretativas que possibilitam a dialetização da questão, a saber, o real, o imaginário e o simbólico. Em outras palavras, se o cerne crítico do problema da distinção arendtiana entre poder e violência é aquele da problematização do estatuto da verdade, é agora justificável alçar a interpretação da violência ao seu patamar conceitual, abrindo caminho para a crítica da violência a partir da utilização dos registros lacanianos vinculados aqui às categorias freudianas de sintoma, inibição e angústia (Dunker, 1996). Bem entendido, da mesma forma como na clínica é patente a indissociabilidade entre estas três dimensões, toda interpretação possui efeitos em diferentes registros. Para fins de explanação, no entanto, buscaremos isolar apreensões isoladas das três categorias.
O imaginário na obra lacaniana está ligado à agressividade, na medida em que o problema que aparece de modo privilegiado em textos como "Formulações e causalidade psíquica" (Lacan, 1946) e "A agressividade em psicanálise" (Lacan, 1948) está diretamente ligado à estruturação do eu e à identificação narcísica. Para o autor, a constituição de um eu por recurso a identificações produz um efeito agressivo, uma relação de inerente agressividade com o outro pois este porta outros sinais identitários. Um uso paranóico da interpretação é criticado por Lacan em seu Seminário 3, As Psicoses, como sendo a "antecâmara da loucura", pois produziria um efeito agressivo de apagamento do Outro ancorado no simbólico.
Podemos perceber o uso deste acento imaginário na interpretação em apropriações dos eventos realizadas por grande parte dos meios de comunicação quando identificam "inimigos a serem combatidos", como o grupo intitulado de black blocs - que historicamente não se constituem como proposta de grupo, aliás. Vemos aqui como o encaixe identitário de acontecimentos promove certa modalidade de inibição interpretativa. Assim que os grupos são definidos o debate passa a ser em torno dos modos de combate e punição do grupo identificado como culpado, calando a possibilidade de debate da questão e promovendo a agressividade no meio social. Assim, para Lacan, a interpretação sugerida aqui se daria com o aporte do registro simbólico, que produziria, ao trazer em seu bojo a permeabilidade significante, certa flexibilização identitária. No entanto, veremos como o acento nesta dimensão da interpretação também pode, apesar de produzir um efeito apaziguador, levar a problemas ideológicos.
Assim, no uso simbólico da interpretação da violência, defenderíamos que esta seria alçada à categoria de sintoma. Temos aí, uma esteira de discursos que muito rapidamente se seguiram às manifestações, no sentido de interpretar a violência como um signo de insatisfação com um modo de gestão política, como um sintoma social. Quando se analisou a violência policial, muito rapidamente as opiniões dividiram-se em duas vertentes. Uma dizia que se tratava de um despreparo da polícia, que seria sanado através de um melhor treinamento e aumento de salários. Uma outra, de que a violência seria um eco direto da militarização da política. O que estas interpretações simbólicas da violência tem em comum é o fato de lerem a violência policial não como uma agressão dual ou pessoal ligada à figura do policial, mas como o sintoma estrutural de um problema maior.
Quanto às violências perpretadas pelo manifestantes - em especial no momento em que elas tornaram-se massivas e passaram a ser apoiadas pela mídia, mas antes que sua captura imaginária junto à figura dos black blocs ou dos vândalos tomasse espaço - a intepretação simbólica, de maneira geral, se encaminhou para a localização de problemas estruturais do Estado, como aquele da corrupção ou da ampliação de direitos.
Sublinhamos aqui que, concretamente, tais modalidades interpretativas tiveram pouco efeito, no sentido de respostas vultosas por parte do governo. Tal resultado pode ser compreendido a partir de uma visão de que, frente à agressividade, uma interpretação de modalidade simbólica tende a operar com relativa pacificação, bastante típica do sintoma: da mesma forma que a instalação de um sintoma é uma falsa solução de compromisso, ao elidir a dimensão do desejo e chancelar aquela do gozo, ao fazer da violência sintoma de algo maior e estrutural, a repetição fala mais alto e perde-se a subversão dinâmica que o desejo encerra, localizando-o em uma demanda nomeada. "Um sintoma, neste sentido, pode ser entendido como a fixação de um certo possível desejante, de outro possível pulsional e de um possível identificatório" (DUNKER, 1996, p. 79).
Há, por fim, que pensar a interpretação da violência nas manifestações a partir do registro do real. Se optamos por elencar esta categoria por último foi para que se apresente a dificuldade que ela comporta e apresenta ao discurso, uma vez que a violência pensada a partir do registro do real seria algo muito próximo de um aniquilamento subjetivo. Ou seja, como dissemos, não é possível pensarmos essas categorias sem a imbricação de uma na outra – imbricação que não é somente positiva, constituindo uma totalidade, mas que comporta uma presença de uma negatividade brutal. Pois é exatamente essa "insistente presença negativa", ou "o que não cessa de não se inscrever" que caracteriza a interpretação da violência em seu aspecto real. Algo de completamente exterior ao sujeito e ao sentido lhe é imposto. Algo que toca a estrutura, mas que não responde a suas coordenadas.
Podemos observar como essa violência pode se imaginarizar, por assim dizer, em fenômenos psicóticos alucinatórios de injunção superegóica, quando o sujeito se ouve como completamente êxtimo a si próprio e toma essa voz como ordem. Pois este aniquilamento do campo de possibilidades subjetivas é algo que tem uma força muda. A impossibilidade, ou ainda, inutilidade de tentativas de dialetização dos fenômenos quando tomados em sua dimensão real é capaz de apontar insistentemente para o aspecto de infinitude.
Há, portanto, um espaço de um aniquilamento brutal capaz de, sempre, preconizar uma reconfiguração das tentativas sempre precárias de significação subjetivas e sociais. Não é, claro, por acaso que nos anos 1970 Lacan estabelece diversas conexões entre o real e o corpo, dado que isso que somos e não somos se apresenta como enigma radical. É preciso que notemos como o corpo, seja dos manifestantes, seja de policiais foi objeto de insistentes tentativas de cooptação semântica. Um olho furado, um corte no corpo, exigem algo em resposta. A presença dos corpos nas manifestações políticas confere a elas aspectos da violência inexistentes em manifestações virtuais, em redes sociais, etc. No entanto, há algo que, ao não encontrar resposta, ao não abrir espaço para a resposta, mas antes insistir na impossibilidade e verdade de uma ausência de sentido é capaz de eliciar um processo interpretativo simbolico e imaginario que seja obrigado a tocar na montagem sintomática.
Entendemos, a título de exemplo, a interpretação social do caso Amarildo, um pedreiro que sumiu de maneira inexplicável de sua casa, como um exemplo desta modalidade interpretativa que aponta para o real. A pergunta "cadê o Amarildo?" insiste em não encontrar resposta, mesmo que ela seja óbvia. Ao dar ao obvio o estatuto de pergunta radical, há uma interpretação ligada ao real, impossível de ser tamponada, e é somente nessa impossibilidade de resposta e insistencia nesta impossibilidade que o país se mobiliza em um questionamento que toca diversas nós do tecido social e aponta para pontos cegos, ou recalcados, que a montagem sintomática insiste em recobrir.
Da mesma maneira, as dramáticas últimas palavras "Por que o senhor atirou em mim?" do adolescênte Douglas Rodrigues ao ser ferido mortalmente por um Policial Militar enquanto passeava pelo bairro com seu irmão, radicalizam o real em jogo em uma interpretação que não se verte em sintoma, tampouco desemboca em uma agressividade especular. Não por outro motivo, talvez, estes foram um dos poucos casos de violência policial investigados e que levaram à detenção dos criminosos e, mais do que isso, foram levados a cabo a partir de uma mobilização popular que se manteve. Por exemplo, o tema da desmilitarização da Polícia Militar em São Paulo, ventilado de forma relativamente aberta junto àquelas interpretações que localizamos como simbólicas, é hoje levado a cabo pelo coletivo Por que o senhor atirou em mim? Uma interpretação que visa, para além da realidade, o real de um fenômeno e portanto, aposta na sustentação radical de uma angústia que não pode ser tamponada nem pelo caráter inibitório, nem pelo caráter sintomático que a violência pode ser convidada a acomodar-se.
A violência portanto, não somente não é - e nem pode ser, como aponta magistralmente Agamben - uma só, mas depende de movimentos interpretativos que instâncias discursivas realizam ao relatar "os fatos". Assim, entendemos como o apontamento para a complexidade da questão da interpretação e da violência podem contribuir para o debate social e político.




Autores:

Hugo Leonardo Lana dos Santos é psicanalista graduado em filosofia pela Universidade de São Paulo e psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, é mestrando em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. É membro do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanalise, LATESFIP-USP.


Pedro Ambra é psicanalista. Mestre e doutorando em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP, foi professor do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", UNESP, Campus Bauru. É membro do Laboratório Teoria Social Filosofia e Psicanálise, LATESFIP-USP, e do grupo "Margens Clínicas" que atende vítimas de violência policial. É organizador do livro "Histeria e Gênero: o sexo como desencontro" (nVersos) 2014, e autor do livro "O que é um homem? Psicanálise e história da masculinidade no Ocidente" (Annablume, no prelo) 2015.



Referências Bibliográficas

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Trabalho apresentado no XIII Jornada Corpolinguagem / V Encontro Outrarte: As voltas do parafuso: interpretação e enigma na literatura e na psicanálise " Outubro de 2013 - UFRJ

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