VIOLÊNCIA ESTATAL O ATENDIMENTO NAS DELEGACIAS DE DEFESA DA MULHER DA CIDADE DE SÃO PAULO SOB A PERSPECTIVA DAS MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DE GÊNERO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ALINE VIEIRA DE SOUZA ARCADES NATALIA REGINA PARIZOTTO

VIOLÊNCIA ESTATAL O ATENDIMENTO NAS DELEGACIAS DE DEFESA DA MULHER DA CIDADE DE SÃO PAULO SOB A PERSPECTIVA DAS MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DE GÊNERO

SÃO PAULO 2013

ALINE VIEIRA DE SOUZA ARCADES NATALIA REGINA PARIZOTTO

VIOLÊNCIA ESTATAL O ATENDIMENTO NAS DELEGACIAS DE DEFESA DA MULHER DA CIDADE DE SÃO PAULO SOB A PERSPECTIVA DAS MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DE GÊNERO

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de Serviço Social da Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como requisito para obtenção de bacharelado em Serviço Social Orientadora: Laisa Regina Di Maio Campos Toledo

SÃO PAULO 2013

ALINE VIEIRA DE SOUZA ARCADES NATALIA REGINA PARIZOTTO

VIOLÊNCIA ESTATAL O ATENDIMENTO NAS DELEGACIAS DE DEFESA DA MULHER DA CIDADE DE SÃO PAULO SOB A PERSPECTIVA DAS MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DE GÊNERO

_________________________________ Dra. Laisa Regina Di Maio Campos Toledo Professora orientadora

______________________________ Dra. Sueli Gião Pacheco do Amaral Professora leitora

São Paulo

“Quando você me deixou, meu bem Me disse pra ser feliz e passar bem Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci Mas depois, como era de costume, obedeci Quando você me quiser rever Já vai me encontrar refeita, pode crer Olhos nos olhos, quero ver o que você faz Ao sentir que sem você eu passo bem demais” Chico Buarque

AGRADECIMENTOS

Agradeço a minha mãe, Luciane, por nunca ter deixado de segurar minhas mãos e mesmo distante sempre esteve presente, me cobrando, me incentivando, sendo a melhor mãe, a melhor amiga e o maior exemplo. Agradeço ao meu pai, Antonio, pelo amor e carinho. Agradeço ao meu companheiro, Luca, por ter estado ao meu lado durante todos esses anos, por ter aguentado minhas frustrações e angustias, por ter segurado a “barra” literalmente. Agradeço ao meu pequeno homem, Thiago, peça fundamental na minha formação, eu te amo filho. Agradeço a minha parceira, amiga e companheira Natalia, que por muitos momentos me empurrou pra que eu continuasse a caminhar. Que teve toda paciência do mundo enquanto eu tentava produzir algumas paginas. Agradeço à minha professora, orientadora e amiga, Laisa Regina Di Maio Campos Toledo, por todos os momentos que esteve ao meu lado, orientando, ouvindo, partilhando das minhas angustias, dos meus sofrimentos, das minhas lagrimas, mas principalmente dos meus sorrisos. Agradeço à Profª Sueli Gião Pacheco do Amaral, por aceitar ser nossa leitora. Agradeço as minhas amigas Ana Rosa, Cintia e Natalia, pelos momentos que passamos juntas nesses anos. Agradeço a oportunidade de ter participado da vida de cada uma de vocês. E penso na falta que vai me fazer os nossos encontros pela manhã. Agradeço as minhas supervisoras de estagio, Avani Maria Tella (Hospital Pérola Byington) e Claudia da Rosa Lima Romualdo (CRAS Iguatemi), por terem me mostrado que os anos não são suficientes para esquecermos o porquê escolhemos nossa profissão. Agradeço a todas as mulheres que aceitaram participar desse trabalho, nos fornecendo informações essenciais para a realização do mesmo. Agradeço a todos os professores que participaram da minha formação, me ajudando a crescer profissional e pessoalmente. Agradeço a todos que, direta ou indiretamente, colaboraram para a realização deste trabalho. Aline Vieira

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu companheiro André, pelo apoio à minha decisão de voltar à graduação e descobrir-me assistente social. Agradeço ao Tutu pela sua companhia silenciosa, em quase todos os momentos. Agradeço aos meus pais, Marlene e João, pelos sucessivos incentivos durante a vida para que eu descobrisse o que me faz feliz e seguisse esse caminho. Agradeço a todos meus familiares que compreenderam os inúmeros finais de semana em que estive ausente por conta dos estudos. Agradeço à Profª Laisa Regina Di Maio Campos Toledo, que me apresentou a temática de gênero, na qual me reconheci e sobre a qual me apaixonei instantaneamente. Agradeço pela oportunidade da Iniciação Científica e a paciência nas infinitas conversas sobre todas minhas dúvidas – acadêmicas ou cotidianas – que lhe resultaram a denominação “minha orientadora”, ao longo de toda a graduação. Agradeço à Profª Sueli Gião Pacheco do Amaral por ter aceitado prontamente ser nossa leitora para este trabalho. Agradeço à minha companheira neste trabalho, Aline, pela disposição em conversar por horas e horas, em transcrever as entrevistas por horas e horas e também pela paciência em lidar com minha indecisão. Agradeço profundamente às entrevistadas deste estudo cuja generosidade nos permitiu materializar as inquietações que trazíamos de nossos campos de estágio e enfim poder estudá-las. Agradeço a oportunidade de ter estagiado na Casa Eliane de Grammont. Agradeço à todas as profissionais guerreiras da CEG que me ensinaram muito sobre a temática de gênero e mais ainda sobre não desistir. Agradeço a minha supervisora de campo, Maria Elisa, por todas as conversas sobre os atendimentos, sobre os desafios da militância e sobre a vida. Agradeço às companheiras do movimento feminista que não me deixaram esquecer que é possível sonhar com um mundo onde mulheres e homens sejam iguais. Agradeço aos colegas de militância na ENESSO pela sabedoria e pela garra para lutar em momentos tão adversos. Agradeço aos colegas de militância da ABEPSS pela compreensão de que nossa luta se faz junto. Agradeço ao corpo docente do curso de Serviço Social por ter me dado “óculos” para olhar o mundo e repensar as relações sociais. Agradeço ainda por ter me ensinado que assistente social quero ser. Natália Parizotto

LISTA DE SIGLAS

BO – Boletim de Ocorrência CEDAW – Committee on the Elimination of Discrimination against Women – Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher CFESS – Conselho Federal de Serviço Social CMB – Centro da Mulher Brasileira CNDM – Conselho Nacional dos Direitos da Mulher COJE – Centro de Orientação Jurídica e Encaminhamento da Mulher COMVIDA – Centro de Convivência para Mulheres Vítimas de Violência Doméstica CRM – Centro de Referencia da Mulher DDM – Delegacia de Defesa da Mulher DEAM – Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher DEGRAN – Delegacia Regional de Policia da Grande São Paulo DPDM – Delegacia de Policia de Defesa da Mulher GEVID – Grupo de Enfrentamento à Violência Domestica IML – Instituto Médico Legal JECrim – Juizado Especial Criminal OBSERVE – Observatório Maria da Penha OEA – Organização dos Estados Americanos ONU – Organização das Nações Unidas PAISM – Programa de Atendimento Integral à Saúde da Mulher PLC – Projeto de Lei da Câmara Senasp – Secretaria Nacional de Segurança Publica SPM – Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres Unodc – Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime

RESUMO

Trata-se de uma pesquisa que tem por foco analisar o atendimento prestado nas Delegacias de Defesa da Mulher na cidade de São Paulo com o objetivo de compreender em que medida está sendo capaz de cumprir suas atribuições técnicas e se tem sido desenvolvido sob a perspectiva de gênero. Este estudo teve a análise fundamentada na teoria de gênero que permitiu compreender as determinações da situação de violência domestica, particularmente dos homens contra as mulheres, instalada nas relações familiares. Apresentando-se como uma demanda de trabalho do assistente social, este estudo objetivou compreender em que medida o trabalho desenvolvido por estas delegacias tem efetivado o direito das mulheres de viver sem violência e subsidiar a formulação das propostas ético-políticas, teóricometodológicas e técnico-operativas do trabalho do assistente social no enfrentamento e erradicação da situação de violência de gênero. A coleta de dados foi realizada por meio de entrevista semi-estruturada e incidiu em sete mulheres usuárias das Delegacias de Defesa da Mulher, em São Paulo atendidas na Casa Eliane de Grammont. Os resultados evidenciaram que o trabalho desenvolvido pelas Delegacias de Defesa da Mulher muitas vezes reitera a violência e revitimiza a mulher pela sua particularidade de estar vinculado a um braço do Estado que reproduz o autoritarismo e a repressão, embora seja um equipamento necessário e imprescindível sob a ótica do enfrentamento da violência doméstica.

PALAVRAS CHAVES Violência doméstica de gênero; delegacia especializada; políticas públicas.

SUMARIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................

10

CAPÍTULO I RELAÇÕES DE GÊNERO E PATRIARCADO ...................................................

22

CAPÍTULO II PODER,

SUBORDINAÇÃO

E

AS

OBJETIVAÇÕES

DA

VIOLÊNCIA

GÊNERO.............................................................................................................

DE 50

CAPÍTULO III DELEGACIA DE DEFESA DA MULHER: UMA CONQUISTA DO MOVIMENTO FEMINISTA ......................................................................................................

68

CAPÍTULO IV AS ATRIBUIÇÕES TÉCNICAS DAS DDMS SOB A ÓTICA DAS MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA ............................................................................

85

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................

128

BIBLIOGRAFIA ...............................................................................................

134

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa tem por foco analisar o atendimento prestado nas Delegacias de Defesa da Mulher1 na cidade de São Paulo com o objetivo de compreender em que medida suas atribuições técnicas estão sendo cumpridas, sob a perspectiva de gênero e se tem efetivado o direito das mulheres de viver sem violência. Para tanto recorremos ao relato das mulheres usuárias das delegacias sobre este serviço. A partir deste patamar podemos compreender em que medida estas delegacias são capazes de inibir ou impulsionar a superação da violência doméstica. A escolha de trabalhar a partir da narração das usuárias se deu, em primeiro lugar, pelo fato de uma das autoras deste trabalho ter estagiado na Casa Eliane de Grammont. A rotina de atendimento das mulheres, permeada por discursos semelhantes aos coletados para esta pesquisa, aguçaram a curiosidade para compreender como as usuárias da DDMs refletiam acerca do trabalho das delegacias. A segunda razão para esta decisão deu-se pelo fato de que o trabalho do assistente social efetiva-se no sujeito, de forma que não existe melhor forma de aferir a consolidação de direitos do que a observando no discurso dos próprios usuários. A terceira razão está no fato de que a delegacia tem papel central na trajetória das mulheres em busca da efetivação de seus direitos. Parte deste fato ocorre por conta da cultura policialesca brasileira. Por meio dela, aprendemos que “denunciar à policia” é uma das poucas formas de se superar um problema. Como resultado desta mesma cultura, observamos que as Delegacias de Defesa da Mulher são as organizações mais conhecidas pela população quando se trata do enfrentamento à violência doméstica. Consequentemente, a demanda para atendimento nas 1

Existem diversas nomenclaturas para se referir às delegacias da mulher na cidade de São Paulo, e as

listadas abaixo estão expressas nesta pesquisa. 

Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher – DPDM



Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher – DEAM



Delegacia de Defesa da Mulher – DDM

A nomenclatura Delegacias de Defesa da Mulher – DDMs é utilizada pelo movimento feminista e de mulheres e pelos profissionais e usuárias das mesmas na cidade de São Paulo. Desse modo, optamos a referência a esse serviço pela sigla DDMs.

delegacias é muito expressiva. Outra razão para a centralidade das delegacias deve-se ao fato de que ela é a principal porta de entrada para a judicialização dos processos assim como para a expedição do pedido das medidas protetivas, tornando-se um elemento-chave para a efetivação dos direitos da mulher em situação de violência. O quarto elemento que justifica esta escolha baseia-se no fato de que as delegacias são, na maioria dos casos, o primeiro local que as mulheres buscam para denunciar a violência doméstica. Desta forma, constituem-se como o espaço onde se dá o rompimento da falsa dicotomia entre o publico e o privado. Para as teóricas da violência de gênero este momento é de grande importância, pois representa o momento auge do protagonismo da mulher em nome de seus direitos, demandando do Estado sua efetiva responsabilização pela violência ocorrida no ambiente privado. Logo, devido ao interesse de apreendermos o momento de transposição desta dicotomia, decidimos que as DDMs seriam um rico objeto de estudos. Este estudo teve a análise fundamentada na perspectiva de gênero. Através dela pudemos compreender a desigualdade entre homens e mulheres como fruto das relações sociais na sociedade contemporânea. A criação desta categoria de análise, cunhada por Joan Scott, inaugurou o entendimento de que há uma gramática sexual que é ensinada aos meninos e meninas no seu processo de socialização. Desta forma, como disse Simone de Beauvoir, as mulheres não nascem mulheres, mas tornam-se. O mesmo se dá com os homens que aprendem o papel que lhe é “devido” socialmente. Por muito tempo as diferenças biológicas foram usadas como fundamento para justificar a transformação das diferenças dos gêneros em desigualdade. Aí reside a importância da perspectiva de gênero neste trabalho: ela deflagra a dimensão social da composição destas desigualdades. O

arcabouço

ideológico

socialmente

desenvolvido

para

justificar

a

superioridade masculina é denominado patriarcado. O estudo do patriarcado teve extrema importância neste trabalho, pois permitiu a compreensão de como as diferenças entre os gêneros são convertidas em desigualdades cujo ápice é a violência doméstica.

A desigualdade, longe de ser natural, é posta pela tradição cultural, pelas estruturas de poder, pelos agentes envolvidos na trama de

relações sociais (SAFFIOTI, 2004, p. 71).

A partir do momento em que uma hegemonia é instituída, surgem relações permeadas por antagonismos, contradições e complementaridades. O homem, para instituir seu poder passa a oprimir a mulher. O legado marxiano estruturou a compreensão a cerca da sociedade capitalista contemporânea onde a violência doméstica de gênero tem lugar. O modo de produção capitalista baseado na extração da mais-valia do trabalhador – por parte do capitalista, detentor dos meios de produção, (Netto, 2010) – constitui as condições objetivas para o desenvolvimento desta violência. Sendo um sistema essencialmente exploratório, o capitalismo tem no patriarcado um grande aliado, visto que este é capaz de legitimar ideologicamente a exploração operada por aquele. O patriarcado legitima, por exemplo, que o capitalismo pratique valores salariais mais baixos às mulheres, aumentando a taxa de lucro do empresário. Por outro lado, a ideologia patriarcal responsabiliza o homem como “chefe da casa” o que lhe imputa a obrigação de prover não apenas o seu sustento, mas o de toda sua família. Dessa forma, ele se sente compelido a trabalhar o máximo que puder, vulnerabilizando suas condições de venda de mão de obra. Ou seja, o homem teme perder sua posição de trabalho, pois este é o dever atribuído ao papel de gênero, ele é o provedor, e deve fazê-lo a qualquer custo, mesmo que seja nas piores condições de trabalho. Alem da questão de gênero, é importante lembrar que o vetor de raça / etnia também age como potencializador da opressão de classe. Isto é, na sociedade capitalista no ápice da exploração está a mulher negra e pobre, na ponta oposta está o homem branco e rico. Dessa forma, podemos compreender a violência doméstica contemporânea, fruto de uma sociedade capitalista patriarcal, como uma expressão da questão social – objeto de trabalho do assistente social. Segundo o Mapa da Violência 2012, elaborado por CEBELA e FLACSO os níveis de violência contra mulheres no Brasil são altíssimos, levando-nos ao sétimo lugar no ranking mundial:

Além disso, percebemos que a implementação de políticas públicas para o enfrentamento desta situação tem surtido efeitos insatisfatórios (especialmente entre 1996 e 2007) dado o aumento dos números de homicídios femininos no Brasil.

Neste cenário, a cidade de São Paulo desponta como a capital com mais alto índice de violência:

Compreendemos que compete ao Assistente Social a busca permanente pelas diferentes manifestações da questão social nas quais atua na perspectiva da garantia e ampliação dos direitos sociais. Segundo o Código de Ética atual do/a Assistente social:

... a democracia é tomada como valor ético-político central, na medida em que é o único padrão de organização político-social capaz de assegurar a explicitação dos valores essenciais da

liberdade e da equidade. É ela, ademais, que favorece a ultrapassagem das limitações reais que a ordem burguesa impõe ao desenvolvimento pleno da cidadania, dos direitos e garantias individuais e sociais e das tendências à autonomia e à autogestão social. (CFESS, 2011, p. 21)

Neste sentido, a defesa de direitos se constitui como um dos princípios fundamentais do código de ética do Assistente Social, fazendo-se presente em diferentes pontos do seu texto. A produção teórica, neste sentido, é de extrema importância, pois instrumentaliza a capacidade de analisar e elaborar propostas interventivas a estas demandas, na perspectiva da objetivação do projeto ético político da profissão. Vale lembrar que as determinações da Lei n. 8662, que regulamenta a profissão do assistente social, estabelece, dentre as competências e habilidades técnico-operativas do profissional, realizar pesquisas que subsidiem formulação de políticas e ações profissionais. Ressaltamos que o Serviço Social é uma profissão inserida na divisão social e técnica do trabalho, e também se caracteriza como mão de obra assalariada e sofre a mesma espoliação que os trabalhadores usuários de seus serviços. O assistente social dialoga com as duas classes sociais e tem como compromisso a construção de uma nova ordem societária, sem dominação exploração de classe, etnia e gênero. Compreender as demandas da prática profissional do assistente social significa articular aquelas postas pelo espaço sócio-ocupacional com aquelas construídas a partir da análise teórica como uma expressão da questão social, ancoradas nas particularidades das determinações sócio históricas e nas condições de vida dos sujeitos implicados. Isso nos remete à necessidade de construir mediações teóricas que nos instrumentalizem na análise e propostas interventivas junto às demandas sociais, na perspectiva da objetivação do projeto ético político da profissão. É importante ressaltar que a atuação do Serviço Social se dá no processo de reprodução das relações sociais. Isto é, a reprodução de determinado modo de vida, da totalidade da vida cotidiana daquela sociedade. Segundo Iamamoto:

É a partir das expressões concretas das relações sociais no cotidiano

da vida dos indivíduos e grupos que o profissional efetiva sua intervenção. Estando sua atividade referida ao cotidiano, enquanto produto histórico e enquanto vivência pelos sujeitos, ele é aqui apreendido como manifestação da própria história, na qual agentes a produzem e reproduzem, fazendo-se e refazendo-se nesse processo social. (2005, p. 114-115)

Sendo assim, apreendemos o significado social da profissão na intervenção no âmbito da reprodução das relações sociais, dentre elas o enfrentamento à violência contra a mulher e a luta pela implementação das políticas públicas.

INDAGAÇÃO CENTRAL

As DDMs tem efetivado seu trabalho sob a perspectiva de gênero, visando a garantia dos direitos das mulheres de viver sem violência?

OBJETIVO

Analisar o trabalho desenvolvido pelas DDMs na contraface do acesso aos direitos e a perspectiva de gênero.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS 

analisar a construção social dos papéis de gênero imbricado à estrutura de poder e subalternidade



sistematizar o processo sócio-histórico da criação das DDMs dentro do movimento feminista e de mulheres



identificar o marco legal em que está apoiado o trabalho das DDMs



analisar impacto na violência doméstica após a criação das DDMs

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Pesquisa teórica

A perspectiva teórica adotada foi a de gênero, tendo Heleieth Saffioti como uma das principais fontes, dada sua expressiva produção intelectual nas últimas décadas acerca do tema. Para compreender a constituição da sociedade de classes sob a hegemonia burguesa tivemos Marx como referencia teórica. A pesquisa foi realizada em textos, livros e artigos acerca de gênero, divisão sexual do trabalho, patriarcado, desigualdade, discriminação, ideologia, cultura, poder, violência, espaço do público, privado e efetivação de direitos.

Pesquisa documental

Recorremos

à

Norma

Técnica

de

Padronização

das

Delegacias

Especializadas de Atendimento às Mulheres – DEAMs como parâmetro para analisar se as delegacias estavam cumprindo suas atribuições.

Pesquisa em fontes secundárias

Foram utilizados dados estatísticos, como os do Mapa da Violência 2012. Atualização: Homicídios de Mulheres no Brasil realizado pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos (CEBELA) e pela FLACSO. Por meio dessa pesquisa foi possível comprovar o número expressivo de mulheres que sofrem violência doméstica atualmente, assim como a dimensão deste número na cidade de São Paulo.

Esta

pesquisa

permitiu

também

demonstrar

quantitativamente

as

particularidades desta violência, sendo elas: o agressor ser em 86,8% dos casos conhecido e a violência ser em 51% dos casos reincidente. Os resultados do relatório emitido pelo OBSERVE – Observatório pela aplicação da Lei Maria da Penha –, publicado em 2010 pela Universidade Federal da Bahia, subsidiaram a reflexão acerca do trabalho desenvolvido nas delegacias. Foi consultada a Lei Nº 11.340, de 7 de Agosto de 2006 (conhecida nacionalmente como Lei Maria da Penha). A utilização de fontes eletrônicas por meio de consulta à internet nos permitiu assistir vídeo aulas referente ao assunto, a recorrência a fotos, gráficos e consultas a sites assentados nessa questão.

Pesquisa em fontes empíricas

Procedemos a coleta de dados junto a sete mulheres atendidas no Centro de Referencia da Mulher – Casa Eliane de Grammont, vítimas de violência doméstica de gênero, no primeiro semestre de 2013. Para definir as que seriam entrevistadas, inicialmente selecionamos todas as usuárias que haviam sido atendidas pela estagiária, o que redundou num total de sessenta e cinco. Identificamos que vinte haviam sido atendidas por Delegacias de Defesa da Mulher. Estas foram contatadas, sendo que sete aceitaram participar da entrevista. Entendendo a violência doméstica de gênero como um fenômeno, e no intuito de preservar a identificação das entrevistadas, no decorrer desta pesquisa não utilizaremos de nenhuma forma de identificação durante as falas. A seguir, elencamos um breve perfil das mulheres entrevistadas:

Entrevistada 1: 39 anos, casada, evangélica, empregada doméstica, ensino fundamental incompleto, renda entre 1 e 2 salários mínimos, nascida na Bahia. Sofria violência por parte do marido há 15 anos. Quantidade de BOs lavrados: 1. Chegou à Casa Eliane de Grammont encaminhada pelo Centro de Referencia Especializado da Assistência Social / CREAS.

Entrevistada 2: 34 anos, solteira, católica, empregada doméstica, ensino fundamental incompleto, renda entre 1 e 2 salários mínimos, nascida na Bahia. Sofria violência por parte do vizinho a cerca de 2 meses. Quantidade de BOs lavrados: 1. Chegou à Casa Eliane de Grammont encaminhada pelo Hospital Perola Byington.

Entrevistada 3: 52 anos, divorciada, católica, desempregada (era dona de uma loja), ensino médio completo, sem renda, nascida em Pernambuco. Sofria violência do ex-marido há 15 anos. Quantidade de BOs lavrados: 1. Chegou à Casa Eliane de Grammont encaminhada pelo Centro de Cidadania da Mulher de Santo Amaro.

Entrevistada 4:

39 anos, casada, católica, desempregada (já trabalhou como ajudante geral, garçonete, balconista e empregada doméstica), ensino fundamental incompleto, sem renda, nascida no Ceará. Sofria violência por parte do marido há 7 anos. Quantidade de BOs lavrados: 2. Chegou à Casa Eliane de Grammont encaminhada pelo Ambulatório de Prematuros.

Entrevistada 5: 33 anos, separada, católica, técnica de enfermagem, ensino técnico, renda entre 1 e 2 salários mínimos, nascida em São Paulo. Sofria violência por parte do ex-companheiro há 9 meses. Quantidade de BOs lavrados: 2. Chegou à Casa Eliane de Grammont encaminhada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Entrevistada 6: 34 anos, divorciada, muçulmana, desempregada (era gerente da loja da família), ensino fundamental incompleto, sem renda, nascida em São Paulo. Sofria violência do ex-marido há 17 anos. Quantidade de BOs lavrados: 3. Chegou à Casa Eliane de Grammont encaminhada pela Derdic - Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação da PUC/SP.

Entrevistada 7: 33 anos, casada, evangélica, ensino médio completo, servidora publica, renda entre 2 e 3 salários mínimos, nascida em São Paulo. Sofria violência por parte de seu marido há 2 anos. Quantidade de BOs lavrados: 3. Chegou à Casa Eliane de Grammont encaminhada pelo Departamento de Saúde do Servidor - DESS.

Instrumento

Entrevista semi-estruturada, privilegiando: o perfil, o vínculo com o autor da violência, o histórico de violência, o atendimento nas DDMs segundo as suas atribuições, como vê e enfrenta a situação vivida.

Sistematização e análise dos dados da pesquisa empírica Os dados empíricos foram sistematizados segundo quatro vetores:

 identificar as determinações sócio-históricas implicadas na produção e reprodução da situação de violência doméstica de gênero  identificar as expressões da situação de violência de gênero imbricada à construção social dos papéis de gênero e à estrutura de poder e subalternidade  identificar a perspectiva de gênero nos atendimentos prestados nas Delegacias de Defesa da Mulher na cidade de São Paulo  identificar a implementação das atribuições2 das Delegacias de Defesa da Mulher na cidade de São Paulo, na contraface com a Lei Maria da Penha (11.340/06).

Apresentação No capítulo I – RELAÇÕES DE GÊNERO E PATRIARCADO - teorizamos acerca de gênero, divisão sexual do trabalho, patriarcado, desigualdade, ideologia, cultura e violência na perspectiva de compreender as determinações sócio-históricas implicadas na produção e reprodução da situação de violência doméstica de gênero. No Capítulo II – PODER, SUBORDINAÇÃO E AS OBJETIVAÇÕES DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO - teorizamos acerca de poder e violência, e apresentamos, a partir dos dados coletados nas entrevistas, as várias expressões da violência doméstica de gênero. No Capítulo III – DELEGACIA DE DEFESA DA MULHER - teorizamos acerca do histórico e dos autores envolvidos no processo de criação das DDMs, bem como as suas atribuições atualmente, sob a Lei Maria da Penha. 2

As atribuições das DDMs constam da Norma Técnica de Padronização das Delegacias Especializadas de

Atendimento às Mulheres – DEAMs e foi um ponto de referencia importante para sistematizar os dados empíricos.

No Capítulo IV – A EFETIVAÇÃO DO TRABALHO NAS DELEGACIAS DE DEFESA DA MULHER SOB A PERSPECTIVA DE GÊNERO VISANDO A GARANTIA DE DIREITOS DAS MULHERES - procedemos à análise das atribuições das DDMs com base nos depoimentos das mulheres vítimas de violência doméstica.

CAPÍTULO I RELAÇÕES DE GÊNERO E PATRIARCADO

Neste capítulo introduzimos a discussão acerca das categorias gênero e patriarcado sob o cenário do capitalismo, a fim de compreender as determinações da violência doméstica de gênero, cujo enfrentamento caracteriza-se como atribuição das Delegacias de Defesa da Mulher em São Paulo – o objeto de estudo da presente pesquisa.

SEXO E GÊNERO

Há muito tempo buscava-se uma explicação para a lógica que rege as relações sociais entre homens e mulheres. Segundo Faria e Nobre (2003, p. 40):

A ideia de que existe uma construção social do ser mulher já estava presente há muitos anos. Mas, permaneciam dificuldades teóricas sobre a origem da opressão das mulheres, sobre como inserir a visão da opressão das mulheres no conjunto das relações sociais […]. Nesse sentido, o conceito de gênero veio responder a vários desses impasses e permitir analisar tanto as relações de gênero quanto a construção da identidade de gênero em cada pessoa.

Dizemos “a categoria gênero” com o objetivo de explicitar que esta denominação resulta da síntese de um trabalho de reflexão da realidade (CANOAS, 1995). A categoria gênero foi trabalhada inicialmente pela antropologia e pela psicanálise e versa sobre a construção social das denominações feminino e masculino estabelecidas a partir dos sexos biológicos, determinados no nascimento (FARIA E NEGRO, 2003, p. 40). Segundo Scott (2004, p. 1-2):

Gênero é a organização social da diferença sexual. O que não significa que gênero reflita ou implemente diferenças físicas fixas e naturais entre homens e mulheres, mas sim que gênero é o saber que estabelece significados para as diferenças corporais. Esses significados variam de acordo com as culturas, os grupos sociais e

no tempo [...] Não podemos ver a diferença sexual a não ser como função de nosso saber sobre o corpo e este saber não é “puro”, não pode ser isolado de suas relações numa ampla gama de contextos discursivos.

Sendo assim, compreende-se que gênero é uma gramática sexual que apresenta regras para a construção do masculino e feminino não necessariamente assimétrico. Estas regras vão sendo desenhadas ao longo da história definindo as formas de viver, o papel social de cada gênero na sociedade. Segundo Saffioti (2004, p. 58):

Entendido como imagens que as sociedades constroem do masculino e do feminino, não pode haver uma só sociedade sem gênero. A eles corresponde uma certa divisão sexual do trabalho, na medida em que ela se faz obedecendo ao critério de sexo. Isto não implica, todavia, que as atividades socialmente atribuídas às mulheres sejam desvalorizadas em relação às dos homens.

Ou seja, gênero é traçado pelas práticas sociais permitidas no entendimento daquela sociedade, naquele momento histórico. É o modo como cada gênero age, vive, trabalha, veste-se, consome, relaciona-se etc. Obviamente essas definições estão em movimento constante, alimentadas pelo gênero oposto que se desenha também nesta relação. Não há como pensar o feminino sem pensar no masculino. A categoria gênero é necessariamente relacional (FARIA E NEGRO, 2003, p. 14). O gênero é composto por relações históricas, localizadas que concretizam em normas, organizadas e impostas socialmente. Clastres (1988, p. 75) nos exemplifica tal fato em seu texto O arco e o cesto: …o seu primeiro cuidado, logo que se integra na comunidade dos homens é fabricar para si um arco; de agora em diante membro “produtor” do bando, ele caçará com uma arma feita por suas próprias mãos e apenas a morte e a velhice o separarão de seu arco. Complementar e paralelo é o destino da mulher. […] Primeira tarefa do seu novo estado e marca da sua condição definitiva, ela fabrica seu próprio cesto. E cada um dos dois, o jovem e a jovem, tanto

senhores e prisioneiros, um do seu cesto, o outro do seu arco, ascendem dessa forma à idade adulta. Enfim, quando morre um caçador, seu arco e suas flechas são ritualmente queimados, como o é também o último cesto de uma mulher: pois, como símbolos das pessoas, não poderiam sobreviver a elas.

Percebemos que gênero é universal, mas a forma como se expressa nas diferentes sociedades varia de acordo com determinantes históricos e sociais. Na sociedade contemporânea urbana ocidental as mulheres não produzem cestos, mas são introduzidas ao longo de sua vida a um arcabouço de regras sociais que desenham seu papel naquela sociedade e implicam em uma conduta específica: há um padrão de beleza, um padrão de conduta sexual, profissional, familiar, etc. Estas regras permeiam as relações sociais implícita e explicitamente e nem sempre são claras aos sujeitos. Além disso, o fato de serem impostas não exclui a possibilidade de conflito com tais regras. Vale notar que a importância da criação do termo gênero está na possibilidade de explicar a criação destas regras pautadas em fatores sócio-históricos indo além do simples respaldo biológico. Sendo assim, esse termo tornou-se um importante instrumento de ação contra a desigualdade entre gêneros. É importante notar que gênero obrigatoriamente denota diferença, mas este fato não implica em desigualdade. A desvalorização que o gênero feminino sofre em nossa sociedade advém do patriarcado, como veremos a seguir. A distinção entre gênero e sexo permite entender que não há nada de natural nas funções e características atribuídas a cada um dos sexos e que, portanto, podem ser transformadas. Pode-se dizer que gênero é definido pela sociedade através de normas e comportamentos tidos como adequados para homens e mulheres. O gênero participa do processo de construção do sujeito, portanto a desigualdade de gênero é construída pela sociedade.

DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO

Conforme o conceito de Marx e Engels (apud CANOAS 1995, p. 22), as relações sociais:

...são relações mutuas e se estabelecem entre os seres humanos para a produção e a reprodução das condições materiais da existência.

As relações sociais de gênero regem as funções exercidas pelo masculino e feminino neste processo. Isso significa que são atribuídos a homens e mulheres atividades de natureza específica para garantir a produção e reprodução da vida. Segundo Canoas (1995, p. 22):

A reprodução biológica é o processo de produzir e criar os filhos, indo portanto alem da fecundação e do parto, inclui tudo o que se faz para o desenvolvimento físico das pessoas, observando suas necessidades básicas, principalmente alimentação e saúde. A reprodução social se encarrega da produção das condições que sustentam um sistema social [...]. A reprodução da força de trabalho é a manutenção diária dos que trabalham, para que continuem a trabalhar e se incumbe também de formar novos trabalhadores, ensinando às crianças e aos jovens a se converterem em trabalhadores. Enquanto a reprodução está na esfera humana, a produção é relativa aos bens, no entanto tudo está relacionado como trabalho humano: produzindo ou reproduzindo.

Ao contrário do que geralmente acreditamos, a divisão sexual do trabalho na antiguidade não designava obrigatoriamente aos homens a caça e às mulheres a coleta ou agricultura. Há registros de tribos onde as mulheres, inclusive grávidas eram as responsáveis pela caça. Segundo Saffioti (2004), é muito provável que as mães que amamentavam seus bebês os levavam junto ao peito ou nas costas e no momento da caça o choro das crianças afastava os animais. Sendo assim, crê-se que as mulheres passaram a desenvolver as atividades de coleta e agricultura e os homens passaram a caçar. Começou a haver a domesticação das mulheres e o acesso ao espaço público apenas aos homens. É importante notar que ainda nesse momento não havia desvalorização das atividades do gênero feminino, era delimitado apenas o que dizia respeito a cada um. Segundo Barroco (2008, p. 3):

...as sociedades primitivas viveram outras formas de relacionamento de gênero. Por outro lado, a divisão sexual do trabalho (primeira forma de divisão social do trabalho) não derivava de necessidades de poder, mas de necessidades objetivas decorrentes das diferenças biológicas entre os sexos em face da caça e da maternidade.

Paulilo (apud NOBRE E FARIA, 2003, p. 32) elaborou uma pesquisa sobre as etapas do trabalho agrícola na cana-de-açúcar em diferentes áreas do Nordeste. Através da análise desta pesquisa, percebemos que a mesma tarefa, desenvolvida por homens em um local e por mulheres em outro, tem valores diferentes, dependendo do gênero responsável por ela:

Carpir, no sertão nordestino, era uma tarefa dos homens e era considerado um trabalho pesado. Carpir, no Brejo Paraibano, era das mulheres e era considerado trabalho leve. Como ser vê, no cultivo de cana o que caracterizava um trabalho como leve ou pesado não era a força física necessária para executá-lo, mas o valor social de quem o fazia.

Nos dias de hoje, podemos dizer que cabe às mulheres as atividades de cuidado enquanto ao homem cabem as funções de provedor:

...ao chefe masculino cabe o papel de provedor dos bens de consumo essenciais; à mãe, as tarefas domésticas, no caso de filhos pequenos, e o trabalho tido e havido como complementar, dentro o fora do domicílio, quando os filhos já maiores saem para a escola, normalmente

conjugando

o

estudo

com

tarefas

ocasionais.

(KOWARICK, 1991, p. 4)

Mas por que o trabalho das mulheres é desvalorizado? Para entender este fato, é preciso compreender um elemento chave: o patriarcado.

PATRIARCADO

Três fenômenos foram decisivos para a constituição do patriarcado. O primeiro deles foi a evolução das forças produtivas e consequentemente da produção de excedente econômico. A princípio as famílias produziam apenas o suficiente para garantir a sua subsistência, de forma que não havia diferença de valor entre o trabalho designado para as mulheres e para os homens. Porém o trabalho designado aos homens começou a gerar uma riqueza sobressalente e veio à pauta a gestão de bens e herança. Segundo Engels (1976, p. 74):

...as riquezas, à medida que iam aumentando, davam, por um lado, ao homem uma posição mais importante que a da mulher na família, e, por outro lado, faziam com que nascesse nele a ideia de valer-se dessa vantagem para modificar, em proveitos dos seus filhos, a ordem da herança estabelecida. Mas isso não se poderia fazer enquanto permanecesse vigente a filiação segundo o direito materno. Esse direito teria que ser abolido, e foi-o (...) sendo substituído pela filiação masculina e o direito hereditário paterno.

O segundo fator foi a sedentarização dos povos. Nesse período ocorreu o domínio da agricultura e a criação de animais. O acasalamento dos animais foi observado e compreendido pelos humanos. Com esse entendimento as mulheres foram destituídas do papel quase divino de gerar novos seres e alimentá-los. Os homens perceberam-se como parte imprescindível da reprodução. Segundo relatos de Maurice Godelier (apud SAFFIOTI, 2004), o povo Baruia, habitante da Nova Guiné, tem por costume servir aos jovens adolescentes do sexo masculino sêmen para que sejam iniciados à vida adulta. A cultura do povo Baruia instituiu que o sêmen é o único responsável pela geração de uma nova vida e também pela produção de leite pela mãe. Apenas sorvendo-o os meninos poderiam tornar-se definitivamente superiores às meninas e mulheres, tornando-se um homem. Nestes casos torna-se taxativo como a importância da participação do homem na atividade reprodutiva foi capaz de conferir-lhe poder traduzido através de simbologias que configuram seus ritos.

A propósito, este foi o terceiro fator: o sistema simbólico construído pelos homens para lhe atribuir prestígio e desvalorizar a mulher foi definitivo para a instituição do patriarcado. A agricultura é uma atividade de característica repetitiva e rotineira, a caça, ao contrario, é caracterizada pela ação pontual, explosiva. Sendo assim, a divisão sexual do trabalho conferiu ao homem mais tempo livre, que foi utilizado para o exercício da criatividade e consequentemente para a implantação de um regime de dominação-exploração das mulheres.

A desigualdade, longe de ser natural, é posta pela tradição cultural, pelas estruturas de poder, pelos agentes envolvidos na trama de relações sociais (SAFFIOTI, 2004, p. 71).

Percebe-se, dessa forma, que o patriarcado

...refere-se especificamente a sujeição da mulher, e que singulariza a forma de direito político que todos os homens exercem pelo fato de serem homens (PATEMAN apud SAFFIOTI, 2004, p. 55).

Neste contexto, entender o que é patriarcado também é necessário para entender o exercício da autoridade dentro da ideologia machista. Saffioti (2004, p. 57) explica:

... no exercício da função patriarcal, os homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio.

É importante lembrar que não é preciso que o patriarca esteja em cena para exercer seu poder, pois ele é legitimado mesmo na sua ausência.

Além de o patriarcado fomentar a guerra entre as mulheres, funciona como uma engrenagem quase automática, pois pode ser acionada por qualquer um, inclusive por mulheres. (SAFFIOTI, 2004, p. 101).

A seguir temos o relato de duas entrevistadas para esta pesquisa que destacam o poder que é designado por sua família ao seu ex-marido: Minha família falava “se ele quer, você tem que obedecer, pra não dar confusão.”

Aconteceu o acontecido, na época foi um auê, e aí ele veio embora e eu fiquei lá, minha mãe ficou muito brava, (...) e falou que meu pai ía me por pra fora

O conceito de patriarcado refere-se à dominação-exploração das mulheres pelos homens. Assim o ambiente familiar é regido por hierarquias onde se consideram normal e natural que os maridos maltratem suas esposas enquanto os dois maltratam seus filhos. Dá-se então a legitimação e ratificação da pedagogia da violência. O machismo respalda-se no medo e no controle. Uma das entrevistadas para esta pesquisa demonstra nos trechos abaixo o medo que sentia de seu marido e como ele a controlava: Porque eu não sei te explicar o medo que eu tinha dele. É como se ele fosse uma pessoa que me dominasse, só de olhar. Só de olhar eu praticamente fazia xixi na roupa...

(...) ele mandou descer do carro. Ele fez o que? Ele colocou meu carro, e colocou na garagem do lado, onde tá quebrado o portão, [...] e colocou o carro na minha parte, que eu tô com o controle, ele falou “a partir de hoje esse carro não sai mais”. Isso os irmão dele junto comigo.

Muitas vezes este mecanismo passa despercebido, pois suas manifestações são entendidas erroneamente como respeito, consideração etc. encobertos pelas dinâmicas sociais. É necessário estar atento às sutilezas através das quais o patriarcado apresenta-se, o que muitas vezes dificulta identificá-lo, estudá-lo e consequentemente combatê-lo. O entendimento dos aspectos acima mencionados é essencial para a compreensão de que não é possível haver a conciliação de interesses numa sociedade patriarcal. Homens e mulheres vivem uma relação contraditória na qual o vetor de opressão só pode ser superado pela transformação da desigualdade para benefício de ambos os gêneros. Vale notar que o machismo prejudica tanto homens quanto mulheres, sendo o saldo negativo maior para as mulheres.

As mulheres são “amputadas”, sobretudo no desenvolvimento e uso da razão e no exercício do poder. Elas são socializadas para desenvolver comportamentos dóceis, cordatos, apaziguadores. Os homens, ao contrario, são estimulados a desenvolver condutas agressivas, perigosas, que revelem força e coragem (SAFFIOTI, 2004, p. 35).

Os homens chegam a suprimir toda a gama de emoções, necessidades e possibilidades, tais como o prazer de cuidar dos outros, a receptividade, a empatia e a compaixão, experimentados como inconsistentes com o poder masculino (FONSECA apud TOLEDO, 2007, p. 7).

Essas “amputações” são indesejáveis para ambos os gêneros, pois encerram as possibilidades destes indivíduos desenvolverem suas potencialidades. Em muitos casos de violência doméstica contra mulheres, os agressores sofrem um profundo sentimento de impotência por não poderem protagonizar o papel de provedor familiar como imaginavam ou por perceberem sua incapacidade de controlar a realidade. Assim como o gênero, o patriarcado pode ser considerado universal, variando de acordo com a sociedade em que se manifesta3. Segundo Toledo (1995, p. 48) é possível reconhecer o patriarcado nas mais diversas culturas:

O relacionamento entre o homem e a mulher está submetido a um complexo mundo de valores e símbolos, próprios de cada cultura e ordem socioeconômica. Apesar das diferenças culturais, a maior parte

delas,

enquadram

mesmo a

mulher

aquelas numa

não

consideradas

posição

de

ocidentais,

subalternidade

e

desigualdade perante ao homem. Essas culturas se assentam na ideologia patriarcal para definir e convencionar os direitos e obrigações de cada sexo e a forma de relacionamento de ambos. 3

Nesta pesquisa, uma das entrevistadas é muçulmana e seu relato é similar das outras entrevistadas

cristãs, como observaremos do decorrer do trabalho.

Sendo assim, percebemos como o patriarcado está enraizado na constituição de toda sociabilidade humana, expressando-se nas mais diferentes culturas – determinando um grande desafio a ser superado.

A relação entre patriarcado e as categorias: classe, gênero e raça/ etnia

Como tratamos anteriormente, as relações sociais de gênero estão organizadas segundo a divisão sexual do trabalho que designou às mulheres as tarefas seculares de reprodução e cuidado da vida. Porém, mais do que uma simples organização da forma de reprodução humana, esse aspecto esconde um processo de dominação-exploração que subjuga as mulheres. Engels (2008, p. 3) afirma que:

O primeiro antagonismo de classe que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia, e a primeira opressão de classe coincide com a opressão do sexo feminino pelo masculino.

Apesar de ser um fenômeno universal e naturalizado, é essencial que não percamos de vista que o patriarcado é um evento relativamente novo na história da humanidade – toma cerca de sete mil anos dos cerca de trezentos mil que datam o início dos povos – cujo fundamento é de caráter sócio-histórico pautado por sujeitos que mantêm entre si relações de poder desiguais em detrimento da mulher. O patriarcado e o capitalismo potencializam-se mutuamente. As atribuições da mulher na vida doméstica são essenciais à reposição e reprodução da força de trabalho para o modo de produção capitalista. Ou seja, a mulher é capaz de reproduzir a vida, gerando mais trabalhadores. No entanto, as suas tarefas são menos valorizadas e raramente remuneradas, disponíveis prioritariamente ao bem estar da família e do homem, que dispõe de “justificativas” aceitas socialmente para submeter a mulher em proveito próprio e sob seu comando. Essa lógica desloca-se para o mercado de trabalho, agravando a desigualdade e a discriminação. Para se entender com mais propriedade esse processo na sociedade contemporânea, torna-se necessário compreender outros vetores nos quais a

mesma dinâmica se reproduz e que estão fundidos com o patriarcado e o modo de produção capitalista. As esferas de gênero, classe e de raça/ etnia operam concomitantemente e interferem diretamente nas condições de vida do sujeito. Isso significa que

Os sujeitos sociais integram uma ou outra categoria de gênero, pertencem a uma ou outra classe social e a uma ou outra raça/ etnia, simultaneamente e de forma simbiótica, de tal sorte que ao enfocarmos uma destas contradições, automaticamente estarão presentes e atuantes as outras duas (AMARAL apud, SAFFIOTTI, 2006, p. 22).

Nestas três esferas há a discriminação, ou seja, a valoração de um grupo em detrimento do outro. Ou seja, esta prática determina e reproduz um cenário favorável para que os grupos rebaixados não possam assumir posições de igualdade nas relações sociais. Sendo assim, reitera-se a supremacia do homem sobre a mulher; do burguês sobre o proletário e do branco sobre o negro – no Brasil existem outras raças/ etnias discriminadas, mas a mais representativa é a negra. Segundo o VI Relatório Nacional Brasileiro para o Committee on the Elimination of Discrimination against Women (em tradução livre A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher) da Organização das Nações Unidas (2008, p. 188):

No caso das mulheres, os problemas são agravados pela discriminação nas relações de trabalho e a sobrecarga devida às responsabilidades com o trabalho doméstico. Outras variáveis como raça, etnia e situação de pobreza realçam ainda mais as desigualdades. As mulheres vivem mais do que os homens, porém adoecem mais frequentemente. A vulnerabilidade feminina frente a certas doenças e causas de morte está mais relacionada com a situação de discriminação na sociedade do que com fatores biológicos.

Dessa forma, pode-se averiguar que as variáveis classe e raça/ etnia devem ser consideradas quando se faz um estudo sobre a opressão das mulheres, pois podem aumentar sensivelmente o índice de vulnerabilidade do sujeito. Para o presente estudo, recorremos à auto declaração das sete entrevistadas nas fichas da Casa Eliane de Grammont quanto à sua raça/ etnia. Quatro delas, apesar de demonstrar visivelmente descendência negra, se designaram “morenas”, “pardas”, etc. O “embranquecimento da população” em sua auto-declaração demonstra claramente como estas mulheres reconhecem a opressão sofrida pela população negra. A negação desta descendência nos parece uma estratégia para amenizar mais uma eixo de opressão que – unido à classe e gênero – tornam o cotidiano destas mulheres demasiadamente aviltante.

As expressões do patriarcado no cotidiano das mulheres em situação de violência

As categorias que denotam as expressões cotidianas do patriarcado na vida das mulheres em situação de violência são: heteronomia X autonomia, público X privado, o controle da sexualidade e a dependência econômica das mulheres. Entendemos tais categorias como determinações socio-históricas produzidas pelos indivíduos em determinado espaço e tempo que cristalizam estruturas sociais. Estas, por sua vez, delimitam o espectro de possibilidade de atuação dos seres sociais, constituindo-se como dificultadores da superação desta condição. Sendo assim, os seres sociais e as determinações sócio-históricas se alimentam mutuamente, num movimento dialético. Estas categorias não esgotam a complexidade do tema, mas nos auxiliam a compreender como alguns elementos se repõem no discurso das entrevistadas denotando as dificuldades comuns dentre as mulheres vítimas de violência.

Heteronomia x Autonomia

Por meio do patriarcado percebemos que as mulheres crescem e se desenvolvem aprendendo que sua trajetória está subjugada à de outrem mais importante, seja esta pessoa seu pai, marido ou filhos. Encorajada pela

naturalização do seu papel de cuidadora, as mulheres crescem aprendendo que seu papel social vem sempre “a reboque”, do papel social de outra pessoa, ele não é auto-determinado. Como afirma Chauí (1985, p. 47)

...as mulheres estão impedidas de liberdade pela própria definição de seu lugar social e cultural, pois sua subjetividade tem a estranha peculiaridade de colocá-las dependentes. [...] Definida como esposa, mãe e filha (ao contrario dos homens, para os quais ser marido, pai e filho é algo que acontece apenas), são definidas como seres para os outros e não como seres com os outros.

Quando a mulher detém proeminência devido à necessidade que os outros indivíduos sentem dela, este fato legitima o regime patriarcal no qual seu valor está em ser para o outro e nunca para si mesma. A “super mãe” recebe o adjetivo “super” pelo trabalho que desenvolve como mãe, como cuidadora, não como sujeito protagonizando sua vida. Em muitos casos entrevistados para esta pesquisa, observamos que um dos fatores que dificultam a decisão das mulheres em romper com a violência está na inabilidade de direcionar suas atitudes para seu próprio bem. Muitas delas apresentam dificuldade em definir seu papel social para alem de esposas e em outros casos submetem-se aos desejos de seus filhos, como vemos a seguir: O carro de polícia chegou e meu filho ficou todo nervoso com aquele escarcéu e mandou a polícia embora. Ele disse que preferia ter a polícia na porta de casa por qualquer coisa, assalto, o que fosse, menos isso. Ele ficou preocupado com a vizinhança, né?

Neste caso, apesar de ter a possibilidade de ter seu marido preso em flagrante, a usuária preferiu atender aos desígnios de seu filho, que se sentia constrangido pela chegada da polícia em sua casa. Percebemos que o risco que a entrevistada corria pela não denúncia de seu agressor assumiu dimensão menor que a vergonha que seu filho sentia pelo que os vizinhos poderiam vir a dizer, denotando a submissão da mesma. Existem outros casos, também graves, de mulheres que apenas rompem relações violentas quando ela deixa de ser o único alvo. Ou seja, toda a violência que a mulher vinha vivendo não tinha a mesma importância que passou a ter

quando aconteceu com o outro, especialmente se outro está sob sua responsabilidade de cuidados, como os filhos. No depoimento a seguir vemos que a mulher decidiu romper com a violência no momento em que percebeu que não era saudável aos seus filhos assistir aos episódios de espancamentos da mãe. Ou seja, a violência que vivia estava sendo tolerada na medida em que fazia mal apenas à ela, mas quando passou a ser observada por seus filhos, deixou de ser tolerável. ...ele me batia muito, tinha muitas ameaças, da ultima vez que ele me bateu eu cheguei a desmaiar, e ele já tinha ameaçado que ia mandar assaltante, que já tinha cativeiro, que ia me cortar aos pedaços, [...] e minha filha também via eu apanhando, e da penúltima vez que ele me chutou eu virei pra minha filha e falei assim: não ele não tá me batendo não, ele tá brincando...Então eu olhei para os meus filhos e pensei “eu não quero que eles passem isso”

Se eu morrer minha filha não tem ninguém pra olhar ela, eu vou dar os recursos pra ela. Posso apanhar o que for, mas atrás dela eu vou continuar.

Muitas mulheres relatam que a vontade de denunciar a violência vivida se deu pela preocupação com que outras mulheres passem pela mesma situação. ... mas eu já tinha acordado e decidido, falei, “não, não vou”. Por mais que a minha cabeça peça pra eu ir embora, pra fugir, não é isso que meu coração pede. (...) e foi aí que eu fui na delegacia e fiz o BO.

Eu acho que pra mim, desistir se torna mais fácil sim, mas eu vou estar dando a oportunidade de que ele faça isso com outras pessoas.

Eu vou estar correndo o risco de qualquer jeito, eu vou estar correndo o risco, mas pelo menos é mais um que vai estar sendo tirado da rua... e outra não vai estar também passando por isso.

Obviamente esta atitude é louvável, mas poderia ter sido precedida pela preocupação em ter assegurada sua segurança e a punição de seu agressor. Percebemos que esta forma de expor suas prioridades mais uma vez demonstra que a mulher coloca o outro, mesmo que hipotético, em primeiro lugar. Entendemos o papel de gênero como relacional e, assim como o patriarcado, é construído coletivamente por todos os seres sociais. Sendo assim, podemos observar outro exemplo de heteronomia na conduta dos homens autores de

violência frente à separação. A maioria deles não concebe a possibilidade de que sua ex-companheira decida ficar sozinha. Para a maioria dos homens, se a mulher o está deixando, o faz para conviver com outro homem. A simples ideia de que uma mulher queira viver sozinha parece absurda: Eu falei “eu quero separar, não quero voltar pra casa” ele falou “não vou dar a separação nunca! Porque eu sei que ela quer separar porque vocês tem outro homem pra ela”.

Não. Ele falou que eu tenho outro. Tanto que ele insiste até hoje com isso. Que eu tenho outro homem e que eu vou casar. E eu falo “tenho sim, tenho. E vou casar.” Quem dera, né? Mas tá bom.

Muitas mulheres internalizam a pressuposição de que não são capazes de viver sozinhas, de forma que acabam levando muito tempo para romper com situações de violência. Pelo exemplo acima citado, podemos perceber como essa “incapacidade” é construída socialmente. Sendo assim, percebemos que a construção social da mulher como “ser para o outro” e não “um ser com os outros” é um dificultador para a superação da situação de violência, visto que ela é socializada para não reconhecer suas necessidades como prioritárias.

Público X Privado

Para compreender melhor a cisão entre o público e o privado precisamos entender a instituição da família nuclear burguesa hegemônica em nossa cultura dentro da história. Segundo Szymanski (1992, p. 5) A família nuclear conjugal moderna – quer dizer pai, mãe e filhos – da forma como é definida hoje em dia, não foi sempre assim. Foi a consequência ma forma de atuação de outras instituições, como o Estado e a Igreja, que, ha cerca de três séculos começaram a valorizar o “sentimento de família”.

Este modelo de família surgiu na Europa, por volta do século XVIII – no marco da Revolução Burguesa (França, 1789). Conforme Lasch (1992, p. 26)

O novo estilo de vida doméstica [...] constitui a mais profunda contribuição da família às necessidades de uma sociedade demarcada

baseada

na

competição,

no

individualismo,

no

adiantamento da recompensa, na previsão racional e na acumulação de bens materiais.

Este modelo, que nos foi imposto a partir da colonização, é o principal respaldo ideológico para a dicotomização entre público e privado. Dentro da lógica capitalista o espaço público seria âmbito de atuação do Estado, cabendo à família (sob o comando do pai) a soberania do espaço doméstico. Ao aprofundarmos a compreensão sobre a função social da família, percebemos a sua centralidade da organização de nossa sociedade sendo o foco de atuação do Estado. A família – e, por via de consequência, a mulher – jamais esteve isenta da intervenção velada ou aberta do Estado e de instituições da sociedade civil, religiosas ou laicas, sendo exemplos mais flagrantes os que concernem as políticas demográficas e ao direito privado. A dicotomia público X privado está na base da dissimulação ou ocultamento da divisão de trabalho permanentemente reconstruída entre Estado e família e da divisão sexual do trabalho, igualmente reproduzida nas dimensões pública e privada da vida, que constitui uma das bases fundamentais da subordinação da mulher. (ALMEIDA apud ROCHA, 2007, p. 31)

Pela lógica capitalista neoliberal o Estado deve intervir o mínimo possível na sociedade, delegando especialmente à família o cuidado dos seus membros. Dessa forma, compreendemos que a cisão público x privado constitui-se como uma falácia interessante à hegemonia burguesa, pois desresponsabiliza o Estado e garante ao homem na posição de chefe e provedor a manutenção de seu poder irrestrito dentro do lar. A cisão entre o espaço público e privado também colabora para que a violência doméstica opere no âmbito das relações familiares, ainda entendida e protegida como fórum do privado, com poucos canais de publicização e formas de enfrentamento pelo poder público.

A utilização da dicotomia entre espaço público e espaço privado é ideológica, constituindo parte das estratégias que sustentam as relações hierárquicas de dominação, exploração e desigualdade entre homens e mulheres. (...) Para entender a família e a violência doméstica, é necessário superar as posições binárias mencionadas. Não se trata de uma instituição e de uma questão de natureza exclusivamente privada e interpessoal. A família é uma instituição social, perpassada pelas contradições e interesses em luta na sociedade, produto do conjunto de suas determinações, ao mesmo tempo que constitui uma das mediações que contribuem para a reprodução dessas determinações. (ROCHA, 2007, p. 31)

É por conta deste legado que muitas mulheres sofrem caladas dentro de seu lar. Jargões populares como “em briga de marido e mulher não se mete a colher” apoiam-se nesta ideologia denotando como nossa cultura está atravessada por valores que justificam a sujeição cotidiana das mulheres. Sendo assim, observamos que tornar pública uma violência sofrida em âmbito doméstico constitui-se um ato político de responsabilizar o Estado e demandar do mesmo uma ação efetiva de enfrentamento. Segundo o relatório emitido pelo OBSERVE – Observatório pela aplicação da Lei Maria da Penha –, publicado em 2010 pela Universidade Federal da Bahia:

A partir do registro policial de ocorrências criminais espera-se que estas delegacias garantam o conhecimento pelo Estado de um problema que até poucas décadas atrás era definido e reconhecido socialmente como um problema das relações privadas e familiares. (2010, p. 15)

Muitas entrevistadas para esta pesquisa relataram a profunda dificuldade de acessar o espaço público, no caso representado aqui na Delegacia de Defesa da Mulher, para denunciar seu agressor. Muito mais do que denunciar seu companheiro ela estava desafiando o poder soberano e rompendo com a privacidade sagrada do lar.

Percebemos pelo relato das mulheres entrevistadas que há uma grande dificuldade em tornar pública a violência vivida, o que dificulta muito a superação da mesma. Relatamos algumas falas das entrevistadas quanto à dificuldade de ir até a delegacia: Foi muito difícil, tanto que eu demorei tanto pra denunciar. Porque eu tinha medo de morrer, ele ameaçava se eu falasse com alguém. Dali eu não saía, que eu realmente não ía sair. Eu tinha… eu tenho medo que minha família fique sabendo disso. Porque pra eles não vai passar de um nojo. Não sei como eles vai reagir. Eu tinha medo de me expor. Tá falando, pô, vou ter que ir na delegacia. E tá contando... em cada lugar que eu for eu vou ter que falar. Isso pra mim pesa.

Observamos neste relato a descrição notória do reconhecimento do poder que o agressor detinha no ambiente doméstico e a descrença da entrevistada de que o Estado poderia sobrepor este poder. Além disso, ela nos demonstra o medo de expor sua família por não ter conseguido resolver seus problemas na esfera doméstica onde parece ser o local apropriado para tal – resultando na aflição regada pela exposição pública. No relato a seguir, podemos observar o isolamento que a entrevistada vivia em sua família. Socializada para não tornar público seus problemas domésticos, relata que a delegacia, foi o primeiro lugar, em sua vida, onde relatou a violência vivida: Primeiro na delegacia. [...] eu não podia falar com ninguém, nem com ninguém da família dele. Sendo que a família dele é meio distante de mim, ele fica falando mal de mim pra família dele, mal da família dele pra mim. Pra que? Pra me isolar. Pra eu chegar e não conversar com os familiares dele sobre o que estava acontecendo, né? E nisso eu tava sozinha porque, assim, eu não podia contar com a minha família também, [...] a vizinha uma vez, entrou em contato com a minha mãe, [...], assim: “ó dona [...], eu ouvi um barulho lá, será que ele matou a [nome da entrevistada] e está enterrando a [nome da entrevistada] no quintal?” sabe assim? [...] falou “liga pra sua filha”, a minha mãe falou assim “eu não posso ligar pra ela, porque senão ela vai apanhar”. Aí ela falou “ah, então eu vou dar um jeito aqui pra ver se ela ta viva”, porque meus vizinhos do lado tava construindo a casa e ela ouviu o barulho de enxada assim essas coisa aí ela falou “pronto, matou a [nome da entrevistada] e ta enterrando, entendeu?”

Infelizmente a usuária relata que ter tornada pública a violência vivida na intimidade não foi fácil na delegacia: Não, foi difícil. Sendo que eu travei e a delegada “Fala! Mas o que aconteceu?” E eu “não, então, não sei o que” e ela “meu, quero que você fale!”, tipo assim, “Fala logo, né, não fica enrolando”. [...] Ela “Fala, mas o que aconteceu, você está toda machucada” e eu travada eu não conseguia falar. Aí depois que ela foi conversando comigo, tudo, aí eu fui contando pra ela tudo.

Outra entrevistada faz um relato similar quanto à dificuldade de transposição do privado para o público: Eu me senti muito pequena, um bicho, um animal. Porque não tenho defesa, não tinha defesa e eu não sabia pra que lado correr. Porque eu já imaginava mais ou menos que ía ser difícil pra mim, né? Entrevistadora: Você ficou com vergonha? Muita! Muita, muita, muita, muita.

Percebemos que, não socializadas para o convívio no espaço público, muitas mulheres relatam um forte sofrimento em se posicionar em ambientes como a delegacia. Muitas delas se sentem envergonhadas pela violência vivida, o que provavelmente se refere à culpa que atribuem a si mesmas por terem maculado a privacidade da vida doméstica pela denúncia. A seguir mais uma entrevistada relata sua vergonha: Não, é sempre difícil. Você contar o que aconteceu é sempre vergonhoso, né?

Longe de se constituir como um elemento abstrato, esta dicotomia se concretiza na vida das mulheres de diversas formas, como a dificuldade de garantir testemunhas para sua denúncia. No relato a seguir, uma entrevistada relata ter uma colega que a encorajava a denunciar seu companheiro, mas se negou a testemunhar em seu favor. Percebemos que a ideologia da família nuclear burguesa centrada no patriarca impede que a mulher constitua uma rede de proteção, em muitos casos, o que dificulta seriamente a superação da violência.

Eu tenho uma colega que ela vivia falando pra mim, toda vez que ela me via com hematoma “ai, vai a delegacia e faz o BO”, mas e aí quando eu fiz o BO e pedi pra ela ser minha testemunha ela falou que não.

Dessa forma, percebemos como a falsa cisão entre público e privado fortalece a produção e reprodução das relações sociais sob a lógica patriarcal oprimindo as mulheres cotidianamente.

Controle da sexualidade

Como vimos anteriormente, o patriarcado justifica no plano das relações sociais uma determinada ordem social que garante a propriedade privada e a gestão de herança. Neste panorama a mulher passou a ser mais uma propriedade. Sua sexualidade passou a servir ao homem para lhe gerar filhos que lhe seriam braços úteis à produção, dar-lhe prazer e garantir a manutenção da herança dentro da linhagem paterna. Para assegurar este terceiro ponto tornou-se mister controlar mais profundamente o corpo da mulher: surge a obrigatoriedade da virgindade e da monogamia feminina. A circuncisão feminina surgiu neste cenário como uma das formas mais eficazes de controlar a sexualidade da mulher. Existem tipos diferentes de circuncisão, mas em todos os casos há duas consequências obrigatórias: a perda do prazer na relação sexual pela mulher e o fechamento do canal vaginal permitindo apenas a saída de fluidos corporais. Estas duas consequências garantem ao homem a certeza de que a mulher não terá relações com outro homem porque esta não desejará e também porque não terá possibilidades concretas de fazê-lo, visto que o canal foi fechado. Essa é a maior prova de que o corpo da mulher foi reificado, tornando-se propriedade privada de um homem. O controle sobre a sexualidade deste corpo permite ao homem ter certeza de que só ele “fará uso” de seu bem e de que todos os herdeiros gerados serão seus filhos legítimos. No trecho que segue, El-Saadawi (2007, p. 69) conta como se dá um dos tipos de circuncisão feminina, chamada “circuncisão sudanesa”:

...se faz a extirpação do clitóris e dos lábios externos e internos, e fecha-se a abertura vaginal com uma tira de intestino de ovelha, deixando-se apenas um pequeno orifício que mal permite introdução de um dedo, suficiente apenas para a passagem do fluxo menstrual e urinário. Essa abertura é cortada por ocasião do casamento, sendo aumentada ao ponto de permitir a penetração do órgão sexual masculino. É novamente aumentada durante o parto, sendo, em seguida, estreitada. O fechamento quase que completo do orifício é efetuado em mulheres divorciadas, que praticamente tornam-se virgens novamente, impedido-as de manter qualquer relacionamento sexual, exceto na eventualidade de outro matrimônio, quando se faz nova restauração.

O relato acima demonstra com clareza como o corpo da mulher é costurado e descosturado para que se conforme ao papel que lhe foi estipulado naquele momento: virgem, esposa, mãe ou divorciada. A médica egípcia El Saadawi (2002, p. 33) relata que nas sociedades árabes muçulmanas As meninas são criadas numa atmosfera de precaução e medo, criando-se um tabu em torno do contato ou exposição de suas partes genitais. Assim, toda vez que uma menina manipular seu órgão sexual, naqueles movimentos exploratórios tão normais e saudáveis, pois consistem em sua forma de adquirir conhecimento, haverá um pai ou uma mãe vigilante cuja reação imediata será a de bater bruscamente na mão da criança. Algumas vezes essa menina é surpreendida por um tapa no rosto...

Como expressão da socialização da mulher como um objeto para o outro, observamos nos relatos das entrevistadas como o controle da sexualidade é marcado pela sujeição de si como objeto do outro. No relato a seguir fica evidente um exemplo acerca do controle da sexualidade e o conflito gerado dentro da família quando esta descobriu que ela havia deixado de ser virgem: Aconteceu o acontecido, na época foi um auê, e aí ele veio embora e eu fiquei lá, minha mãe ficou muito brava, (...) e falou que meu pai ía me por pra fora eu falei “vai nada mãe”. Aí meu

pai chegou, minha tia já tinha falado com meu pai, (...) e eles queria que eu casasse a força com ele, né? Queria fazer o casamento à força e eu não quis. meu pai e a minha tia queria que a gente casasse. Aí eu falei “magina, não tem porque”, só por isso?

Quando levada a refletir se a sexualidade de seus irmãos homens era controlada da mesma forma, a entrevistada respondeu: Não, até aí eles não falava nada com os homens. Era mesmo só as mulheres.

O controle da sexualidade tem como decorrência, em muitos casos, a ausência de prazer da mulher durante o ato sexual. Devido a este fato muitas mulheres evitam o sexo, o que os homens não aceitam. Na cultura do patriarcado os homens são fortemente incitados à prática sexual como prova de sua virilidade e alem disso, são socializados apenas para reconhecer as suas vontades e não a de outrem, especialmente uma mulher. Sendo assim, quando uma mulher se nega à prática sexual com seu marido, muitas vezes são agredidas, quando não estupradas. No relato a seguir a entrevistada reproduz a fala de seu ex-marido à família tentando justificar a violência perpetrada contra ela: “eu só bati nela…” é muito feio o que ele falou, mas eu vou falar: “porque ela não se depila, ela não olha pra mim, ela falou que não tem prazer comigo [...]" eu pedi pra ela fritar um bife e ela falou que não queria ficar fedida, que ela tinha acabado de tomar um banho. “Então ela queria ficar cheirosa para os outros.” E ele fala que eu tenho amante, eu não tenho amante! Isso não combina comigo, eu sou uma pessoa muito séria! “E eu quero apenas ela, não quero mais nada. Quero ela e meus filhos. Só que ela não me quer” mas ele falava…

A entrevistada, muito envergonhada com a situação, sentiu a necessidade de se explicar: E eu cuidava muito, toda semana eu tava no salão, eu era uma pessoa muito cuidadosa. Sim, e ele falou um monte de asneira, que eu durmo de pijama, que eu nunca usei uma camisola, que… começou a falar!

Como em todo antagonismo, através do patriarcado estabelece-se a contradição da “dupla moral sexual”. Esta lógica relacional determina ao homem a vivência plena de sua sexualidade (pra não mencionar a pressão para fazê-lo) enquanto às mulheres uma sexualidade única e exclusivamente para usufruto do outro. Dessa forma, a “mulher para casar” é pouco dada ao namoro, recatada e, preferencialmente, virgem. Logicamente, com a exigência de guardar a castidade, na contraface a prostituta passa a ter o papel de compensar as necessidades sexuais masculina. Dessa forma, reconhecemos como o controle da sexualidade desponta como outra forma de opressão das mulheres advinda do patriarcado como mais um elemento constitutivo da sua posição nas relações de gênero como “ser para o outro”, evidentemente contrário à emancipação das mesmas.

A dependência econômica das mulheres

Como observamos anteriormente, às mulheres é designado o trabalho de reprodução que na sociedade capitalista patriarcal é pouco valorizado e não remunerado. Sendo assim, percebemos a conjunção de fatores que determinam um lugar social para a mulher como coadjuvante e dependente. Obviamente que, nesta divisão, para que um homem trabalhe é necessário que tenha roupas limpas e comida à mesa etc. Ou seja, o trabalho de reprodução que a mulher faz está imputado no trabalho que o homem vende, porém ela não se apropria da riqueza que gerou, a não ser através do homem. Segundo Campos e Mioto (2003, p. 22):

Nesta medida, o grupo familiar aparece com dupla face, a de uma unidade econômica com dependentes e “chefes de família” que redistribuem renda e a de unidade “doadora de cuidados”, também a partir de redistribuição interna. Nela, da mulher-mãe, se espera que seja a principal provedora de cuidados para os seus membros, mantendo-se economicamente dependente de seu marido. Assim

supõe, por um lado, as responsabilidades do “chefe de família” com o sustento, e por outro, as da mulher com o cuidado.

Uma estrutura assimétrica de interdependências se cristaliza e a mulher está em uma situação muito desfavorável caso o homem não queira dividir os rendimentos ou caso o casal se separe. Uma das entrevistadas destaca a desigualdade na apropriação dos bens entre o casal. Segundo ela, seu ex-marido ...falou que eu tô roubando tudo os bens dele, porque tudo é dele... (...) Não, esse mês, eu não sei o que aconteceu, (...) ele me ligou e falou assim “me dá o número da sua conta”. Não sei o que aconteceu, eu falei “você tá brincando com a minha cara?” (…) depositou mil reais! Aí meu filho falou “mãe, meu pai falou que esse mil reais é pra nós!” Aí cresceu na cabeça dos meus filhos “ah, mil reais é pra nós então a gente vai pedir tudo que a gente quer”. Falei “não” (…) o advogado, ele falou pra mim que eu vou pegar dois salários mínimos ou três. Eu falei “como? Se ele tem R$20.000 por mês? Como eu vou ganhar R$2.000?” Não é um absurdo?

Percebemos pelo relato a seguir que, por ter tomado a iniciativa do divorcio a penalização foi o comprometimento e a perda da condição financeira, também reconhecidos por sua família, e não pela desigualdade de acesso aos bens familiares. ...porque assim, a gente tinha uma condição de vida boa, e assim, agora tô precisando dos meus irmãos, da minha família, porque o que eu ganho não dá pra nada. E o custo de vida dos meus filhos é alto. Assim, não sei se a gente acostumou, não sei. Então minha mãe fala assim, toda vez que a minha família me dá dinheiro eu choro muito, porque eu não consigo aceitar, mas eu preciso, aí minha mãe fala assim “filha, se você tivesse aguentado, olha, você tinha tudo: você tinha roupa, tinha sapato, tinha joia, tinha carro do ano, viu filha, você devia ter aguentado”

Segundo ela, seu ex-marido se recusa a pagar a devida pensão alimentícia aos filhos, valendo-se de sua vulnerabilidade financeira para convencê-la a reatar o casamento. Ele foi na casa de um tio meu, que é tio dele também e falou que ía me matar, matar meu irmão que me sustenta, porque ele é vagabundo, porque ele me sustenta? Que eu tinha que morrer de fome, embaixo da ponte. Eu e meus filhos. A gente não, não, ele não quer que ninguém me ajude, pra mim voltar pra ele.

Sendo assim, percebemos como a organização social sob o patriarcado resulta às mulheres um cenário de sobrevivência financeira delicado, que reforça sua dependência a outros sujeitos cujas funções são remuneradas. Alem disso, percebemos que numa situação de violência, essa dependência se agudiza, dificultando a autonomização da mulher frente ao seu ex-marido e agressor. Dentro do panorama apresentado neste capítulo sobre gênero e patriarcado tendo como pano de fundo o capitalismo, é possível entender em que contexto histórico se determina dominação, exploração e opressão das mulheres pelos homens, assim como algumas de suas expressões no cotidiano destas mulheres. Percebemos que desta forma, estabelece-se uma relação fundamental de desigualdade, onde parece ser natural que as mulheres sejam espoliadas da riqueza que produzem através do seu trabalho, tenham seu corpo transformado em um objeto para reprodução da vida e prazer dos homens e cujo ápice é a violência doméstica, como veremos no capítulo a seguir.

CAPÍTULO II PODER, SUBORDINAÇÃO E AS OBJETIVAÇÕES DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Neste capítulo pretendemos nos aproximar da discussão acerca de poder e submissão para compreender o complexo fenômeno da violência doméstica de gênero. As categorias gênero e patriarcado, analisadas no capítulo anterior, servirão de referência, visto que as Delegacias de Defesa da Mulher – objeto deste estudo – devem atuar sob esta perspectiva.

PODER E SUBORDINAÇÃO

Para compreender o conceito de poder, tomamos por referência Foucault (apud MARINHO, 2008, p. 14-15): Quando fala-se de poder, as pessoas pensam imediatamente em uma estrutura política, um governo, uma classe social dominante, o mestre frente ao escravo, etc. isto não é de nenhum modo aquilo que eu penso quando falo de relações de poder. Eu quero dizer que, nas relações humanas, qualquer que sejam - que trate de comunicar verbalmente, como fazemo-lo agora, ou que trate-se de relações amorosas, institucionais ou econômicas , o poder continua presente: eu quero dizer a relação na qual um quer tentar dirigir a conduta do outro. Estas são, por conseguinte, relações que pode-se encontrar em diversos níveis, sob diferentes formas; estas relações de poder são relações móveis, ou seja elas podem alterar-se, elas não são dadas de uma vez para sempre...

Entendemos poder como uma correlação de forças que perpassa toda a sociedade atravessando as relações sociais. O poder flui em rede, ou seja, quando as pessoas se relacionam estão exercendo poder e sofrendo sua ação. Ninguém é imune ao poder ou apenas um emissor dele. Isto é: Para Foucault, o poder não existe, o que existe são as relações de poder. No entender de Foucault, o poder é uma realidade dinâmica que ajuda o ser humano a manifestar sua liberdade com responsabilidade. A idéia tradicional de um poder estático, que habita em um lugar determinado, de um poder piramidal, exercido de cima para baixo, em Foucault é transformada. Ele acredita no poder como um instrumento de dialogo entre

os indivíduos de uma sociedade. A noção de poder onisciente, onipotente e onipresente não tem sentido na nova versão, pois tal visão somente servia para alimentar uma concepção negativa do poder (MARINHO, 2008, p. 2).

O poder nunca está absolutamente nas mãos de uma pessoa ou de um grupo, mas na verdade encontra-se em movimento. É verdade que o poder circula muito mais entre os homens do que entre as mulheres, mas é equivocado pensar que as mulheres não detêm nenhum poder. A relação de dominação-exploração não presume o total esmagamento da personagem que figura no polo de dominada-explorada. Ao contrário, integra esta relação de maneira constitutiva a necessidade de preservação da figura subalterna. Sua subalternidade, contudo, não significa ausência absoluta de poder. Com efeito, nos dois pólos da relação existe poder, ainda que em doses tremendamente desiguais (SAFFIOTI apud AMARAL, 2006, p. 25).

Dessa forma, podemos questionar a subalternidade da mulher, pois, sob a ótica das relações de poder em Foucault, vemos a possibilidade da mulher superar sua submissão na medida que ela constitui a relação que a subalterniza. ... os estudos sobre as relações de gênero, reconhece a subalternidade no interior das relações sociais, atravessadas pela ideologia da burguesia patriarcal, por meio da qual homens e mulheres foram socializados. Ou seja, o poder imanado do patriarcalismo não é uma prerrogativa do homem, um poder hegemônico, privilégio apenas do homem, mas tanto a mulher quanto o homem reproduzem esta questão. Podemos, então, questionar se realmente a mulher é subjugada passivamente. Partimos do pressuposto que a subalternidade não é uma via de mão única: é antes uma dinâmica plena de antagonismos e complementaridades, sem a qual não se poderia reconhecer a própria condição do subalterno e de quem subalterniza. Nesse sentido, a mulher também complementa e é sujeito dessa questão tanto quanto o homem. (TOLEDO, 1995, p, 50)

Como figura para ilustração podemos imaginar um homem e uma mulher em uma gangorra. A mulher está em baixo e o homem está no alto. A partir do momento que a mulher sair de seu assento o homem descerá do alto, pois não terá a força

antagônica que o mantém naquela situação, pois: ...

o

subalterno

integra

de

forma

constitutiva

a

relação

dominação/exploração. Ou seja, os dois pólos de poder se complementam contraditoriamente. A subalternidade é a outra face do poder. (Idem)

Assim como entender gênero e patriarcado como fenômenos sócio-históricos nos permite pensar nas possibilidades de enfrentamento dos mesmos, visto que não são “naturais” e não existem “desde que o mundo é mundo”, esta perspectiva de relações de poder também traz muitas possibilidades para o enfrentamento à violência de gênero, pois retira a mulher do lugar passivo e portanto sem possibilidades de ação na superação deste fenômeno.

… a explicação da subordinação das mulheres não se apóia nas diferenças físicas ou biológicas que conformam uma anatomia de mulher ou de homem, conforme insistiam aqueles que afirmavam a existência de uma natureza masculina superior e de uma natureza feminina incompleta, frágil e, portanto, inferior. Na realidade, a explicação da subordinação das mulheres aponta para o valor simbólico que a cultura atribuiu a essas diferenças colocando no masculino e no feminino qualidades que, além de diferenciadas, embasam discriminações e fundamentam relações de poder. Compreender as relações de gênero é considerar como se constituem as relações entre homens e mulheres face à distribuição de poder (BARSTED, 2001, p. 3).

Partindo do pressuposto de poder como uma correlação de forças, a violência, consequentemente, é entendida como uma situação relacional que pressupõe atores inscritos dentro de determinações socio-históricas particulares. Ela tem início no processo de socialização, quando é ensinado que a mulher é secundária e impotente e se desdobra ao longo da vida culminando em episódios de espancamento, estupro, cárcere privado, morte etc. Compreendemos que nas relações de gênero o patriarcado garante que a correlação de forças seja favorável ao homem. No entanto, a compreensão deste fenômeno como relacional nos permite vislumbrar possibilidades de alteração nesta correlação com vias à emancipação feminina.

VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Neste tópico aprofundamos a discussão acerca da violência doméstica de gênero. É importante problematizar que quando os funcionários de um serviço não são capacitados para lidar com esse fenômeno específico, acabam recorrendo aos conhecimentos que detém – usualmente advindos do senso comum. Como demonstramos até aqui, vivemos mergulhados no arcabouço do patriarcado, dessa forma, sem o aprofundamento teórico específico sobre a violência doméstica, muitos profissionais lançam mão de valores e estratégias advindas do senso comum e que acabam por potencializar a opressão das mulheres. A violência é um ato de constrangimento que consiste em fazer com que determinada realidade opere sob uma ação de força externa contrária a natureza. Atos violentos são formas de legitimação do poder, ou seja, quando não é possível coagir uma pessoa a agir de uma determinada forma, surge a violência que a constrange a fazê-lo. No senso comum, violência é entendida como a ruptura de diferentes tipos de integridade: física, sexual, emocional e moral. O uso deste conceito é discutível, pois abre margem para variações do limite da integridade para cada indivíduo. Daremos preferência para o conceito de violência articulado aos direitos humanos, sendo “todo agenciamento capaz de violá-los” (SAFFIOTI, 2006, p. 76). Chauí (1985, p. 35) concebe violência como a Conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade com fins de dominação, de exploração e de opressão. Isto é, a conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre superior e inferior. Em segundo lugar, como a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como uma coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio, de modo que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há violência.

Como referencia conceitual, tomamos sua descrição na Lei n 11.340 de 7 de Agosto de 2006, conhecida como Maria da Penha, na qual determina-se que: Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar

contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

A tipificação da violência também está apoiada na Lei Maria da Penha, que estabelece: Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações,

comportamentos,

constrangimento,

crenças

humilhação,

e

decisões,

manipulação,

mediante

isolamento,

ameaça, vigilância

constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos

econômicos,

necessidades;

incluindo

os

destinados

a

satisfazer

suas

V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

Conforme já vimos, o patriarcado em si é uma forma de violência, pois resulta em dominação, exploração e opressão das mulheres pelos homens. Na lógica do patriarcado cabe às mulheres exercer o lado mais sombrio do poder: a impotência. Aos homens, em contrapartida, cabe o exercício da potência – sendo preparado para o exercício do poder e, portanto, convivendo muito mal com a impotência. Os homens além de serem socializados para serem agressivos, na maioria das vezes agem de forma violenta para que não haja deslegitimação de seu poder. Quando se sentem desrespeitados, logo agem de forma a manter sua condição de superioridade. Acredita-se ser no momento da vivência da impotência que os homens praticam atos violentos, estabelecendo relações deste tipo. (SAFFIOTI, 2004, p. 84)

Ou seja, a sociedade patriarcal legitima o poder do homem e sua implementação. Quando ele não consegue exercer este papel por estar numa situação de impotência desenha-se um dos cenários mais comuns que antevêem a violência doméstica. Em 1979, a Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas das Formas de Discriminação contra as Mulheres - o primeiro instrumento internacional de direitos humanos especificamente voltado para a proteção das mulheres constituiu discriminação contra as mulheres como: … toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdade, fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural, civil ou em qualquer campo.

A partir dessa perspectiva torna-se mais claro porque a violência contra a mulher é muito ampla e não está restrita a espaços privados, como o lar, e pode ocorrer em espaços públicos.

A violência doméstica determina-se como um fenômeno específico e, portanto, tem características particulares. A seguir analisamos alguns destes aspectos específicos a fim de introduzir os desafios para os serviços que atuam em seu enfrentamento.

AS OBJETIVAÇÕES DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Eu escolhi meu algoz

Como pudemos observar no capítulo anterior sobre a heteronomia, as mulheres, em geral, são socializadas como “seres para os outros”, sendo assim, muitas delas foram criadas para casar e desde muito pequenas sonham com seu “príncipe encantado”. Segundo o Mapa da Violência 2012, podemos observar que 86,8% dos agressores contra mulheres são cônjuge, ex-cônjuge, namorado, ex-namorado, parceiro e ex-parceiro. Apenas 13,6% sofreram violência de desconhecidos.

Quando as mulheres vivem a situação de violência doméstica, ao decidirem pedir ajuda, precisam se confrontar com o fato de que seu companheiro, o homem com quem elas decidiram partilhar a vida, tornou-se seu agressor. Essa passagem é muito dolorosa para as mesmas, pois significa compreender que seu “projeto de vida não deu certo”. A maioria das mulheres se culpa, pois acredita “ter escolhido mal”,

visto que tem dificuldade de reconhecer a sociedade machista em que vivemos. ... denunciar o marido pode ser uma atitude bastante criticada pelas pessoas mais próximas, inclusive por ela mesma, e que a ideia de união e manutenção da família segue sendo uma concepção de muita força no discurso destas mulheres. (SILVA apud PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2009, p. 15)

Como já problematizado, a sociedade idealiza a família nuclear burguesa, legitimada pelo Estado e a Igreja. Neste modelo, a família seria uma instituição sagrada e indissolvível – modelo que dificulta muito que a mulher se desvencilhe de uma relação violenta.

Todo dia ele faz tudo sempre igual

Construída no cotidiano, a violência doméstica não é composta de grandes eventos pontuais, mas de pequenos eventos imbricados na relação dos atores envolvidos. Com o tempo estas pequenas violências passam a fazer parte da rotina do casal. No relato a seguir a entrevistada revela a clareza sobre a reincidência: Ai eu já sabia que ele ia me bater, de uma forma ou de outra ele ia me bater. Ai ele pegou foi deitar e dormiu, ai no outro dia de manhã sete e meia da manhã ele me bateu, entendeu?!

Alem disso, essa rotina faz com que a mulher se sinta responsabilizada pela agressão que sofreu pois se culpa pelo elemento cotidiano que desencadeou o processo como “o arroz queimado”, “o volume da televisão”, etc. ...E naquele dia 2 eu fiquei quieta e lembro assim ele colocou o dedo na minha cara, cuspiu na minha cara, sabe, assim umas coisas terríveis, ai eu falei assim: não (...) fica quieta.

A seguir podemos ver no Mapa da Violência 2012 o alto índice de reincidência no atendimento a mulheres em situação de violência:

A violência de gênero não é um episódio, é um processo, um ciclo continuo que, sem uma oportunidade de interrupção, tende a permanecer alternando, sucessiva e estereotipadamente, tensão, violência e pedido de desculpas. (MARIMON apud PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2009, p. 16)

Os estudos sobre violência doméstica tem demonstrado que é possível reconhecer um certo padrão, denominado “Ciclo da Violência”. Segundo o Guia de Procedimentos para o Atendimento à Mulheres em Situação de Violência nos Centros de Referência de Atendimento à Mulher e nos Centro de Cidadania da Mulher – desenvolvido pela extinta Coordenadoria da Mulher da Prefeitura de São Paulo (hoje Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres) – as fases se organizam da seguinte forma:

fonte: http://apav.pt/vd/index.php/vd/o-ciclo-da-violencia-domestica

Segundo o Guia, esse padrão não é obrigatoriamente igual para todas as mulheres e cada fase pode ter um período de duração indefinido.

1ª Fase – A construção da tensão no relacionamento: Nesta fase acontecem pequenos incidentes gerados pela rotina do cotidiano que resultam em agressões menores como insultos, xingamentos, quebra de objetos, etc. Nesse momento, geralmente, a mulher sente que pode controlar a situação. Acredita que se fizer suas tarefas “corretamente” conseguirá pôr fim aos pequenos conflitos. Como observaremos a seguir essa fase geralmente evolui para um evento mais grave – o que faz com que a mulher se sinta culpada, pois avalia que não foi capaz de evitar o conflito. 2ª Fase – A explosão da violência: Nesta fase acontecem os eventos mais graves de violência contra a mulher. Esta fase é muito importante porque é nela que a mulher percebe que a situação está fora do controle e é destrutiva. Os eventos ocorridos neste período frequentemente resultam em graves consequências para a mulher como traumas físicos e psíquicos graves. Em alguns casos a mulher precisa acessar atendimento medico rápido, que o agressor negligencia, muitas vezes, por medo de ser denunciado. Conforme descrevemos, esta rotina acaba se tornando conhecida pela mulher. Ela aprende que esta fase é a mais curta e a mais perigosa. Dessa forma, acaba, em alguns momentos, desenvolvendo uma certa raiva, angustia e ansiedade por reconhecer a aproximação da violência. Sendo assim, algumas acabam por incitar as situações violentas, a fim de chegar a fase seguinte: a lua de mel. 3ª Fase – A lua de mel: Nesta fase o homem demonstra remorso e medo de perder sua companheira. Como observamos no princípio deste capítulo, o poder do homem se estabelece através da subalternização da mulher. Dessa forma ele se sente inseguro em seu papel social, caso não tenha sua mulher para constituir o contraponto. No geral, nesta fase o homem reconhece sua culpa, pede desculpas, compra presentes e promete que nunca mais fará o mesmo. Esse momento confunde muitas mulheres, pois o homem passa a agir exatamente da forma como ela deseja gerando muitas vezes a reconciliação. Compreender a natureza cíclica deste fenômeno é essencial para que as mulheres recebam um atendimento qualificado. Do contrario, poderão ser

culpabilizadas por terem se reconciliado, sendo vulgarmente denominadas “mulher de malandro” ou “mulher que gosta de apanhar”. É importante dizer também que o ciclo da violência é composto por períodos que se repetem em uma duração cada vez menor e os episódios violentos vão se tornando cada vez mais graves, compondo uma figura imaginária como segue:

fonte: http://designerogencriativo.blogspot.com.br/

Sendo assim, conhecer esse ciclo fornece-nos elementos importantes para localizar a mulher em situação de violência dentro de um fenômeno específico, que tem um desenvolvimento próprio. Dessa forma, é possível ajudá-la a compreender suas “idas e vindas” e reconhecer o risco que corre se permanecer nesta relação. O ciclo de violência não é circular, na verdade é semelhante a uma espiral onde as agressões que ocorrem na fase de explosão são cada vez mais violentas. A cada reconciliação segue-se uma fase de tensão e explosão mais violenta que a anterior. O ciclo da violência doméstica caracteriza-se pela sua continuidade no tempo, isto é, pela sua repetição sucessiva ao longo de meses ou anos, podendo ser cada vez menores as fases da tensão e de reconciliação e cada vez mais intensa a fase do ataque violento. Em situações limite, o culminar destes episódios poderá ser o homicídio. (PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2009, p. 17)

Ter conhecimento desta informação pode evitar que os diversos serviços de enfrentamento à violência doméstica incorram no erro de incitar a mulher a fazer as pazes com seu marido, obrigatoriamente. Muitas relações são irreconciliáveis, tornam-se cada vez mais violentas podendo resultar em morte para a mulher.

A violência é tanta que a gente acostuma

Outra consequência da violência cotidiana está na naturalização deste fato. Como há uma regularidade na manifestação do fenômeno, as mulheres acabam “aprendendo” a lidar com a situação de forma incrivelmente adaptativa. Acostumada a cadência cotidiana de sua vida conjugal, a mulher passa a acreditar que “seu marido teve motivos” para agredi-la, sem pensar que a violência não é justificável de nenhuma maneira. Todas as mulheres entrevistadas para esta pesquisa relataram um cotidiano permeado por violências atrozes que foram relatadas com alto nível de naturalização, demonstrando o exercício destas mulheres em se adaptar ao cotidiano violento. Alem disso, percebemos que muitas famílias vivem a reprodução da violência transgeracionalmente, o que dificulta à mulher ver outra possibilidade alem de viver daquela forma: Aí eu não sei, eu tinha muito medo. Porque eu achava que eu ía morrer de qualquer jeito, porque a mãe dele morreu de agressão, de tanto que ela apanhava. Acabou tendo um infarto no meio da surra e morreu. Então eu achava que ía ter esse fim, porque eu apanhava direto e eu nunca tinha coragem.

Sendo assim, percebemos que constitui-se como um desafio aos profissionais que trabalham no enfrentamento à este tipo de violência removê-la da cortina de naturalização que o cotidiano lhe imputa, auxiliando, desta forma, a mulher à superála.

As minhas dores ninguém vê, das minhas dores ninguém sabe

Outro agravante da situação está no fato de que as violências que as mulheres mais sofrem são invisíveis: a violência moral e psicológica. Por não deixarem marcas visíveis e por serem minimizadas como “briga de casal”, estas violências geralmente não acabam sendo notificadas e dificilmente recebem o empenho dos funcionários em seu atendimento, como os casos de agressão física, por exemplo. Estes tipos de violência, quando perpetrados ao longo dos anos podem resultar em danos graves à mulher. Diferente das fraturas causadas por lesões físicas cuja

cura pode ser visivelmente acompanhada, os traumas psicológicos podem permanecer para sempre. Estas marcas psicológicas podem deixar sequelas graves para sua autoimagem, dificultando seriamente a autonomização da mulher frente ao agressor. Como um traço muito recorrente na violência doméstica, é importante que os serviços que atuam no seu combate reconheçam, esses tipos de violências como eventos graves que merecem notificação e a mesma atenção que qualquer outro.

É tanta coisa na cabeça, que a gente esquece

Muitas mulheres chegam aos serviços, para atendimento, extremamente fragilizadas e desorientadas psicologicamente. Muitas demonstram “apagões de memória” ao relatar os fatos. Por essa razão percebemos a importância de que os funcionários tenham sensibilidade para acolhê-las devidamente e auxiliarem-nas a se organizar. Em todos os relatos colhidos para esta pesquisa, percebemos que as mulheres recorreram aos serviços muito confusas, o que apresenta-se como uma característica desta demanda: Foi uma vizinha que chamou [a policia] […] a filha da vizinha. Mas até eu nem lembro de muita coisa. ...mas a minha mente parecia que tinha apagado… Aí eu vou lembrando, o dia vai passando e eu vou lembrando e vou anotando pra não esquecer.

Alem disso, como debatemos no capítulo anterior, as mulheres ainda são socializadas para conviver no ambiente privado, em detrimento do ambiente público. Sendo assim, demonstram particular inabilidade para reconhecer as instancias a que devem recorrer para garantir seus direitos. Na maioria dos casos as mulheres demonstram desconhecimento sobre organismos públicos como a Defensoria Pública, Ministério Público, etc. Sendo assim, percebemos que os profissionais que trabalham com essa demanda devem receber especial preparação para acolher estas mulheres com muita paciência e clareza de diálogo, a fim de que sejam capazes de auxiliar as mesmas a garantir seus direitos. Do contrario, esses serviços potencializarão nestas

mulheres a noção de que são “burras, incapazes e imprestáveis”, como seus maridos geralmente fizeram previamente. Sabemos

que

aprender

a

acessar

estas

instâncias

públicas

requer

conhecimentos que são ensinados e demandados geralmente aos homens. Muitas vezes no momento da busca por ajuda é que ela aprende o uso destas ferramentas que, em si, já são prova de sua autonomização. Desta forma, percebemos que se o serviço não estiver pronto para atender essa demanda pode revitimizar a mulher, perpetrando contra ela a mesma violência que ela sofreu em casa.

Ele vai melhorar

Outro elemento importante pra compreender a violência doméstica retoma a discussão sobre a heteronomia. Como demonstramos, a mulher na sociedade patriarcal é socializada para constituir família e ter filhos. Ela reconhece este como seu maior papel na sociedade e aprende que é sua maior função cuidar do outro. Quando vive violência doméstica, a maioria destas mulheres entende que é seu papel estar ao lado do seu marido, cuidar dele para que melhore e deixe de agredi-la. Abandonar seu agressor dificilmente é entendido como uma possibilidade. Alem da ambivalência de amar seu algoz, as mulheres sempre procuram na sua conduta o que podem fazer para auxiliar este homem. Romper com ele, ter uma atitude dura em vias de seu próprio bem estar raramente é apontada como uma opção possível: ...e eu também gostava dele, era essa dificuldade, era Deus no céu e o [...] na terra, e eu pensava que ele ia mudar, que ele ia melhorar, que ele não era daquele jeito, que se EU mudasse, se EU melhorasse, se EU aceitasse as coisas dele ele ia melhorar... Então é assim, você fica totalmente bloqueada naquilo, ai assim aos poucos você vai vendo que a pessoa não gosta de você, que a pessoa tá só te maltratando, mas até você vê isso assim demora um pouquinho...

Esse fator também deve ser levado em conta quando se atende mulheres em situação de violência, pois cuidar de seu marido é um dos elementos constitutivos da subjetividade desta mulher e retirar seu marido de sua vida, pode significar perder o sentido de sua vida.

Quando os profissionais que atendem mulheres em situação de violência tem esse fator considerado, percebem o quanto é difícil superar a relação de violência, porque isso pode levar anos. Alem disso, torna-se clara a importância de se trabalhar a autodeterminação desta mulher, sua autonomia e o seu amor-próprio. Sendo assim, percebemos mais uma vez, como é essencial que os serviços acolham com cuidado estas mulheres e as auxilie nesta trajetória.

Não foi tão ruim assim Os estudos sobre violência doméstica demonstram que o jargão popular “em briga de marido e mulher não se mete a colher” ainda vige . A maioria das mulheres sofre em silêncio por anos até que decide romper com a violência ou morre. Por conta de todos os elementos acima elencados sabemos que as mulheres ao denunciar seu algoz acabam, em seu relato, diminuindo muito o grau e a periodicidade de violência vivida. Culpadas, as mulheres tentam diminuir o tamanho da violência a que estiveram submetidas, por medo de serem humilhadas por tê-la suportado. Por força da naturalização da violência promovida pela rotina cotidiana, muitas mulheres não relatam eventos graves, pois se tornaram menores perto de outros gravíssimos. Alem disso, a confusão mental que vivem nestes momentos críticos faz com que esqueçam muitas partes do seu relato que vai sendo refeito aos poucos, conforme sua segurança vai sendo reestabelecida. Desta forma, percebemos que os serviços precisam ter cuidado ao ouvir o relato de uma mulher pois ele pode conter muito mais violência do que ela pode relatar naquele momento. É importante valorizar esse momento para que ela se sinta encorajada a mergulhar em sua memória e conseguir trazer pra superfície os sofrimentos vividos. Sendo assim, podemos enfim compreender a complexidade da situação de violência doméstica contra a mulher. É muito importante que os profissionais que atendem as mulheres em situação de violência estejam preparados para lidar com essa demanda e para tanto é preciso romper com algumas “verdades absolutas” constituídas pela ideologia patriarcal dominante.

Dessa forma, compreendemos porque o trabalho a ser desenvolvido com mulheres em situação de violência deve ocorrer sob a perspectiva de gênero. Este dado significa que todos os elementos tratados neste capítulo deverão ser do conhecimento daqueles que atendem estas mulheres. Sem uma formação aprofundada sobre o fenômeno da violência, os profissionais terão como apoio apenas seus valores pautados no senso comum. Como discutimos neste capítulo nosso senso comum é machista, de forma que este apenas recolocará a mulher em seu lugar subalterno e vitimizado. Através da perspectiva de gênero podemos compreender os ciclos da violência, seus elementos constitutivos e auxiliar a mulher a constituir para si uma nova forma de relação afetiva, longe de qualquer opressão.

CAPÍTULO III DELEGACIA DE DEFESA DA MULHER: UMA CONQUISTA DO MOVIMENTO FEMINISTA Para entendermos o porquê da criação das Delegacias de Defesa da Mulher e a situação em que as políticas públicas para mulheres se encontram hoje, temos que inicialmente compreender em que circunstâncias foram consolidadas e quais foram os atores envolvidos. Para isso, temos que considerar um ator extremamente importante nessa conquista: o movimento feminista. MOVIMENTO FEMINISTA – LUTAS E CONQUISTAS Na sociedade patriarcal que vivemos as mulheres são socializadas para viver no ambiente doméstico, subalternas ao poder das figuras masculinas, mais especificadamente a do pai e do marido. Há muitos séculos atrás, as mulheres não dispunham do simples direito de ir e vir, “[...] Fora dos limites da casa restavam-lhes a vida religiosa ou a acusação de bruxaria” (PINTO, 2007, p. 13). A situação de opressão das mulheres passou a experimentar suas primeiras transformações no Brasil no final do século XIX, quando o governo imperial reconheceu a necessidade de educação da população feminina. As aspirações pelo saber existiam, mas ainda assim não possuíam o interesse de subverter ou questionar a ordem imposta pelo mundo dos homens. No século XX, os papéis desempenhados pela mulher se ampliaram quando algumas se inseriram na sociedade industrial, onde assumiram diversos postos de trabalho. Surgiu uma diversidade dos feminismos, que ia da tendência bem comportada até o feminismo mais radical. Apesar disso, a esfera da mulher ligada ao lar continuava a ter sua força dominante. Entre as décadas de 1930 e 1960 as manifestações feministas caminhavam de acordo com as mudanças desenvolvidas no cenário político nacional. Em 1934, o voto feminino foi reconhecido pelo governo de Getúlio Vargas.

Fonte: http://mixturageral.blogspot.com.br/2008_02_24_archive.html

Já em 1937, os ideais corporativistas do Estado Novo impediram a expressão de movimentos de luta e contestação de homens e mulheres. Nos anos de 1950 a redemocratização permitiu a flexibilização da exigência que condicionava o trabalho feminino à autorização do marido. A revolução dos costumes produzida na década de 1960 abriu caminho para que o feminismo se tornasse um movimento de maior força e combatividade. Mesmo sob o contexto da ditadura, as mulheres passaram a se organizar para questionarem mais profundamente seu papel tradicional atribuído pela sociedade. A este respeito Soares (1996, p. 14) afirma que: As fronteiras entre o movimento de mulheres e o feminista têm sido sistematicamente ofuscadas, com um número crescente de mulheres pobres, trabalhadoras, negras, lésbicas, sindicalistas, ativistas católicas progressistas e de outros setores do movimento de mulheres incorporando elementos centrais do ideário e do imaginário feministas, reelaborados de acordo com suas posições, preferências ideológicas e identidades particulares.

E esclarece (1996, p. 3):

Foi durante a ditadura militar, quando existiam as torturas a presos políticos, a homens, mulheres e crianças supostamente participantes

de movimentos políticos, que o movimento feminista foi capaz de produzir uma série de argumentos iluminando as ligações da violência contra a pessoa e contra as mulheres na esfera doméstica.

Na foto abaixo, temos o registro histórico de mulheres liderando uma passeata contra a censura durante o regime militar, no Rio de Janeiro em 1968. Da esquerda para a direita, Eva Todor, Tonia Carreiro, Eva Wilma, Leila Diniz, Odete Lara e Norma Bengel. Foto de Agência JB.

Fonte: Foto de Agência JB.

O movimento feminista apareceu com mais intensidade na década de 1970. Uma das frentes de luta girava em torno da sexualidade e da violência, e foi esta em particular que motivou a criação da Delegacia de Defesa da Mulher. De acordo com Soares (1996, p. 12): O feminismo se diversificou criando novas formas de organização e instituindo

práticas

como

os

coletivos

voltados

para

ações

relacionadas ao corpo, à saúde, à sexualidade feminina e ao combate à violência.

Nesse momento veio a público uma série de crimes resultantes da violência doméstica, que foram amplamente noticiados pela mídia, e as mulheres foram às ruas protestar contra esses crimes. Como resultado desse movimento criou-se, em setembro de 1975, o Centro da

Mulher Brasileira (CMB), um órgão institucionalizado, responsável por intermediar e articular os objetivos feministas em forma de ação coletiva. Muitas mulheres haviam sido exiladas para o exterior e voltavam com grandes contribuições para o CMB. Este espaço propôs um centro de estudos que promoveu grandes seminários e grandes discussões e pesquisas sobre a condição da mulher. Daí surgiram várias publicações em jornais e revistas além da produção de livros. O movimento feminista teve como principal foco de suas ações o combate à violência doméstica, e como principal arma a denúncia de casos emblemáticos de absolvição dos autores de assassinatos de mulheres. Em 1976, no caso Ângela Maria Fernandes Diniz, o ex-marido “Doca” foi absolvido após proferir inúmeros tiros em sua face com a justificativa de “legítima defesa da honra”. Doca vai, mata e vence. A defesa provou que Ângela tinha má conduta. A promotoria disse que Doca era um rufião. A plateia foi uma festa e um crime deixou de ser julgado. (VEJA, 1979)

A grande repercussão da mídia levou a uma movimentação de mulheres sob o tema: “Quem ama não mata”. A Organização das Nações Unidas (ONU) iniciou seus esforços contra essa forma de violência, na década de 50, com a criação da Comissão de Status da Mulher que formulou entre os anos de 1949 e 1962 uma série de tratados baseados em provisões da Carta das Nações Unidas — que afirma expressamente os direitos iguais entre homens e mulheres e na Declaração Universal dos Direitos Humanos — que declara que todos os direitos e liberdades humanos devem ser aplicados igualmente a homens e mulheres, sem distinção de qualquer natureza. (PINAFI, 2007)

Em 1979, no Rio de Janeiro, foi criada a Comissão de Violência Contra a Mulher e o movimento foi marcado pela luta contra maridos assassinos. Assim, cada vez mais as feministas intensificaram sua luta contra a impunidade. No início da década de 1980 surgiram grupos feministas em todo o país. Em 1981 no Rio de Janeiro surgiu o SOS Mulher, espaço de atendimento às mulheres

vitimas de violência, voltados ao atendimento jurídico, social e psicológico. A iniciativa foi adotada também em outras capitais como São Paulo e Porto Alegre. A então forte e bem sucedida politização da temática da violência contra a mulher pelo SOS-Mulher e pelo movimento de mulheres em geral, fez com que em 1983 o Conselho Estadual da Condição Feminina ─ criado a partir da busca por parcerias com o Estado pelos dois movimentos de mulheres, para a implementação de políticas públicas ─ priorizasse essa temática. O Conselho propôs a formulação de políticas públicas que promovessem o atendimento integral às vítimas de violência, abrangendo as áreas de segurança pública e assistência social e psicológica. Ainda em 1983, o movimento conquistou a criação do Programa de Atendimento Integral à Saúde da Mulher – PAISM. Desde 1983, com a criação do Programa Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), a atenção federal à saúde da mulher deixou de ser unicamente voltada para a relação materno-infantil para incorporar a assistência em todas as etapas da vida. O programa deu ênfase a preocupações com doenças ginecológicas prevalentes, prevenção e tratamento de doenças sexualmente transmissíveis (DST) e Aids, além de assistência às mulheres vítimas de violência. (PORTAL BRASIL, 2011)

Ao ratificar o CEDAW (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher) em 1984, o Estado brasileiro se comprometeu perante a ONU a coibir todas as formas de violência contra a mulher e adotar políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar a violência de gênero. Em 1985, em nível federal, o Governo Sarney criou o CNDM ─ Conselho Nacional dos Direitos da Mulher ─ primeiro órgão do estado brasileiro a tratar especificamente dos direitos das mulheres. Em nível estadual foram criados o COJE ─ Centro de Orientação Jurídica e Encaminhamento da Mulher ─ vinculado à Procuradoria Geral do Estado e a 1ª DPDM ─ Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher ─ mediante o Decreto Nº 23.769/85, sob direção do Governo André Franco Montoro, como resposta as propostas do Conselho.

A CRIAÇÃO DAS DELEGACIAS DE DEFESA DA MULHER De acordo com Lemos (2008) a criação das Delegacias de Defesa da Mulher – DDMs – foi protagonizada pelo movimento feminista que apresentou projetos de lei para sua criação aos Poderes Legislativo e Executivo com a intenção de responsabilizar o Estado pelo enfrentamento à violência doméstica de gênero e romper com o silencio que envolvia este fenômeno. Em sua criação as DDMs caracterizavam-se como um local especializado no atendimento a mulheres em situação de violência, lotada por policiais do sexo feminino. A restrição do trabalho nas DDMs sob a perspectiva meramente criminal partiu do então Secretário de Segurança Pública, Michel Temer, contrapondo-se à perspectiva mais ampla de atuação das mesmas propostas pelo movimento feminista. Na época, vários delegados de polícia manifestaram-se contra a criação das delegacias da mulher, mas o governo venceu a resistência da polícia civil.

As Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher integram as polícias civis e estão subordinadas às políticas de segurança pública de seus respectivos estados. Suas atribuições, competência, organização são definidas por decretos, portarias e resoluções e seguem a linha de atuação política de cada governo. Da mesma forma, a alocação de infraestrutura, recursos humanos e materiais dependem de investimentos dos governos estaduais. (OBSERVE, 2010, p. 28)

Sob o Decreto 23.769/85 foi criada a primeira delegacia da mulher na Secretária Publica de São Paulo, inaugurada em 06 de agosto de 1985, no centro da capital paulistana. Artigo 1.º - É criada, na Secretaria da Segurança Pública, a Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, subordinada ao Delegado de Policia Chefe do departamento das Delegacias Regionais de Policia da Grande São Paulo – DEGRAN.

Artigo 2.º - A Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher cabe a investigação e apuração dos delitos contra pessoa do sexo feminino, previstos na Parte Especial, Título I, Capítulos II e VI, Seção I, e Título VI do Código Penal Brasileiro, de autoria conhecida, incerta ou não sabida, ocorridos no Município da Capital, concorrentemente com os Distritos Policiais.

Este artigo reconheceu que a violência contra a mulher não é um problema a ser abordado no âmbito privado, mas sim uma questão de ordem pública que carecia de políticas indispensáveis para seu enfrentamento. Cinco meses mais tarde um novo Decreto de numero 24.668/86 cria mais quatro Delegacias de Policia de Defesa da Mulher, conforme artigo: Artigo 1.º - Ficam criadas as 1.ª, 2.ª, 3.ª, 4.ª e 5.ª Delegacias de Polícia de Defesa da Mulher, subordinadas, respectivamente, às Delegacias Seccionais de Polícia Centro, Sul, Oeste, Norte e Leste, do Município da Capital.

Ainda em 1986, foi criado em Brasília, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) fruto da organização bem articulada das mulheres. No mesmo ano, em São Paulo, inaugurou-se o COMVIDA – Centro de Convivência para Mulheres Vítimas de Violência Doméstica. O Decreto nº 29.981/89, de 1º de junho de 1989, estabelece atribuições e competências no âmbito das Delegacias de Defesa da Mulher.

Artigo 1° - As Delegacias de Polícia de Defesa da Mulher, criadas pela Lei n.° 5.467, de 24 de dezembro de 1986, têm, em suas respectivas

áreas

de

atuação,

as

seguintes,

atribuições:

I - a investigação e apuração dos delitos contra pessoa do sexo feminino, previstos no Título I, Capítulos II, V e Seção I do Capítulo. VI, Título VI, e artigo 244, todos da Parte Especial do Código Penal; II - o atendimento de pessoas do sexo feminino que procuram auxílio e orientação e seu encaminhamento aos órgãos competentes.

No mesmo ano, foi criado o Setor Técnico de Apoio às Delegacias de Polícia de Defesa da Mulher do Estado de São Paulo, conforme Relatório do OBSERVE: O setor foi criado em 1989, sendo o primeiro no país com esta função de coordenação destas especializadas. Embora tenha competência para atuar junto a todas as 129 Delegacias da Mulher em funcionamento no estado, o Setor tem suas funções bem delimitadas, atuando como órgão consultivo e de assessoria. (2010, p. 33)

Como mostra a Lei 5.467/86, as Delegacias de Defesa da Mulher, foram criadas na estrutura da Policia Civil, da Secretaria da Segurança Publica. Estando, dessa forma, as delegadas responsáveis submetidas à essas instancias para resolver problemas de recursos materiais e humanos. De acordo com informação do Relatório do OBSERVE:

O Setor Técnico não tem recursos próprios nem competência para decidir sobre a alocação de recursos materiais e humanos nas DEAMS, nem mesmo sobre a designação de Delegadas para assumir estas especializadas, funcionando, nestes casos, apenas como órgão consultivo. (2010, p. 33)

Constatamos que a trajetória percorrida para a implementação dessas delegacias especializadas foi marcada por sua invisibilidade dentro da instituição policial. Explica o Relatório do OBSERVE: [...] se expressa num isolamento destas delegacias dentro da polícia e no interior das políticas públicas de segurança, além do não reconhecimento da violência contra a mulher como objeto de intervenção destas políticas. (OBSERVE, 2010)

Sendo assim, observamos que o momento de criação das DDMs consolidou-se como um marco no enfrentamento às questões de ordem privada como demandas ao poder público. No entanto, este momento foi marcado por contradições, dada a alocação destas delegacias dentro da instituição Policial e seu grau de autonomia.

O PERÍODO HISTÓRICO DE 1985 A 1995 Os procedimentos implementados pelas DDMs nesse período careciam de marcos reguladores de suas atribuições com relação aos atendimentos, o que resultava numa ação cunhada pela mediação de conflitos e na reestruturação familiar. Os Decretos e Leis criados para o funcionamento das Delegacias da Mulher explicitavam apenas as atribuições administrativas. Como define o texto do Decreto nº 29.981, de 1989: Artigo 2.º - Aos Delegados de Polícia Titulares das Delegacias de Polícia de Defesa da Mulher compete: I – dirigir as atividades de sua unidade policial; II – despachar as petições iniciais; III – exercer permanentemente fiscalização, quanto ao aspecto formal, mérito e técnica empregada, sobre as atividades de seus subordinados; IV – representar ao superior hierárquico sobre as necessidades da unidade policial, indicando a solução a curto, médio e longo prazo; V – distribuir os serviços, mediante portaria.

Percebemos a lacuna da perspectiva de gênero no trabalho desenvolvido nas DDMs nesse momento visto que o esforço maior constituía-se muito mais em fortalecer a família do que empoderar as mulheres a superar relações abusivas. Segundo Alvarez (2000, p. 18): “assim, as vezes, nossas demandas feministas são transformadas em familismo nos processos de tradução político-cultural estatais” Compreendendo a constituição das DDMs dentro de uma sociedade capitalista patriarcal percebe-se a dificuldade da devida implementação do trabalho sob a perspectiva de gênero. Segundo Saffioti (1995, p. 61): No imaginário social prevalece a concepção de que a violência conjugal incidente sobre as mulheres deve ser equacionada no âmbito familiar, cabendo à policia tão somente impor-lhe limites repressores, que não firam esta premissa. Em se tratando de lesões

corporais se está de diante de crime de ação publica, reclamando, portanto,

a

intervenção

policial

segundo

parâmetros

legais,

independente da explicitação da vontade da vitima. No entanto, o imaginário torna-se mais real do que a ordem jurídico-policial formalmente instituída, contribuindo para imprimir uma racionalidade própria às ações policiais e às relações estabelecidas como protagonistas de relações de violência. Assim, a utilização de mecanismos informais para o enfrentamento da violência conjugal adquire materialidade e passa a substituir, frequentemente, o Registro

ou

Boletim

de

Ocorrência,

com

aquiescência

dos

envolvidos. A reprodução em larga escala, da mediação do conflito pela via informal tende, por seu turno a sedimentar tais concepções presente no imaginário social.

O arcabouço ideológico do patriarcado persistia nas ações implementadas pelas DDMs, visto que nem mesmo os procedimentos de ordem jurídico-policial formalmente instituídos eram respeitados, dando lugar a procedimentos informais e subjetivos pautados pelo patriarcado e reiteradores do mesmo. Aparentemente havia no funcionamento das Delegacias uma forte contradição que interferia no processo de criminalização da violência contra a mulher. Ao mesmo tempo em que se consolidaram como espaço privilegiado para a transformação dessas práticas em objeto de políticas públicas na área da segurança, alguns estudos passaram a demonstrar que as DDMs também se consolidaram como espaço de resolução informal dos conflitos, de modo que acabavam atuando como um filtro para os conflitos que chegavam ao Judiciário. (IZUMINO, 2004, p. 103)

Os atendimentos das delegacias não tinham a capacidade de provocar nas mulheres reflexões sobre a violência de gênero. Percebemos, com isso, que este modelo de atendimento subsidiava a manutenção do modelo familiar tradicional burguês.

A LEI 9.099/1995 Com o advento das reformas Neoliberais – cujo marco é consenso de Washington – garante-se a sobrevida ao modo de produção capitalista sob a égide do Estado Mínimo. Nesse contexto acontece a auto-reforma do judiciário (VIANA, 1999; AZEVEDO, 2000 apud PASINATO, 2004, p. 16), apoiada no Direito Penal Mínimo baseado no principio da “mínima intervenção estatal com máximas garantias”. Esta reforma foi baseada nos princípios da celeridade, da economia processual, da informalização da justiça e da aplicação de penas alternativas – condizentes com redução do Estado. A Lei 9.099 abrangeu em seu texto todos os crimes de menor potencial ofensivo – crimes com pena máxima de um ano. A maioria dos crimes de violência doméstica de gênero foram enquadrados como crimes de menor potencial ofensivo, o que em si desqualificava e banalizava este tipo de violência. A partir desta Lei os inquéritos policiais foram substituídos pelo Termo Circunstanciado

... uma espécie de inquérito simplificado com um resumo da ocorrência, acompanhado do laudo pericial, quando necessário, devendo tal Termo ser remetido ao Juizado para realização de audiência de conciliação e julgamento. (SANTOS, 2001)

O Juizado Especial Criminal foi previsto pelo Inciso I do artigo 98 da Constituição Brasileira de 1988, porem sua efetivação se deu através da Lei 9.099/1995. A aplicação da Lei 9.099 foi alvo de constantes criticas do Movimento Feminista por uma serie de fatores. O primeiro deles deu-se ao fato de não se constituir como uma legislação especifica para a violência doméstica de gênero e, portanto, não atender as particularidades desse fenômeno. Esta lei não caracterizava a opressão do gênero feminino, o que garantia a manutenção da ideologia patriarcal nas ações de enfrentamento aos casos de violência de gênero. A legislação também permitia que a mulher desistisse da denuncia na delegacia. Este fato realocava a violência doméstica de gênero no âmbito privado, dependendo do crivo da mulher decidir ou não pela responsabilização do agressor.

Alem disso, neste momento histórico, era atribuída à mulher a responsabilidade, que deveria ser da polícia, de entregar a intimação para que o agressor comparecesse a audiência, colocando-a em risco novamente. A Lei 9.099 não garantia a prisão em flagrante do agressor, nem sua prisão preventiva. Outras implicações respaldavam-se no fato de que em casos de condenação a pena máxima seria de apenas um ano, o que pode deduzir que e a violência doméstica de gênero não era considerada agravante – índices concretos da trivialização deste fenômeno. Ademais, esta legislação não proferia agravo de pena no caso da mulher vitima de violência ser portadora de deficiência e também não previa o comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação. Este ultimo denota a lacuna da percepção do fenômeno da violência como relacional. Neste contexto as mediações deixaram de ser realizadas nas delegacias e passaram a ser realizadas pelo JECrim, o que reforçou a ideologia de banalização da violência e, por consequência, a impunidade dos agressores. Para o Movimento Feminista a Lei 9.099:

... as medidas punitivas adotadas pelo JECrim representariam um retrocesso em relação às conquistas obtidas na sociedade brasileira, nos últimos anos, no tocante ao reconhecimento público da violência praticada contra as mulheres, à institucionalização do combate e repressão desses crimes, bem como sua problematização enquanto objeto de políticas públicas de segurança. (IZUMINO, 2004: 8)

Destarte, constatamos que a implementação da Lei 9.099 não garantiu avanços na efetivação de direitos das mulheres a uma vida sem violência. A LEI MARIA DA PENHA – 11.340/ 2006

Maria da Penha Maia Fernandes, hoje aos 68 anos, foi uma vítima emblemática da violência doméstica. Em 1983, seu marido, o professor colombiano Marco Antonio Heredia Viveros, tentou matá-la por duas vezes. Na primeira vez atirou simulando um assalto, e na segunda tentou eletrocutá-la. Por conta das agressões sofridas, Maria da Penha ficou paraplégica. Dezenove anos depois, seu

agressor foi condenado a oito anos de prisão, mas ficou preso somente por dois anos. A aprovação do PLC 37/2006 (Projeto de Lei da Câmara), que mais tarde se tornou a Lei 11.340/2006, não se deu apenas por pressão nacional, o caso Maria da Penha chegou à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) que acatou, pela primeira vez na história, a um crime de violência doméstica. Este fato resultou na condenação do Brasil por negligencia e omissão em relação à violência doméstica:

Uma das punições foi a recomendação para que fosse criada uma legislação adequada a esse tipo de violência. E esta foi a sementinha para a criação da lei. Um conjunto de entidades então reuniu-se para definir um anteprojeto de lei definindo formas de violência doméstica e familiar contra as mulheres e estabelecendo mecanismos para prevenir e reduzir este tipo de violência, como também prestar assistência às vítimas. (OBSERVE)

O relatório nº 54 publicado em 2001 pela OEA recomendou que o país desse prosseguimento e intensificasse o processo de reforma legislativa, e que evitasse a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito a violência doméstica contra as mulheres no Brasil. Em 2006 após ser promulgada, a Lei nº 11.340 ficou conhecida como “Lei Maria da Penha”. Por meio dela foi efetivamente designado o que seriam as atribuições das Delegacias de Defesa da Mulher. Esta Lei dispõem sobre dispositivos protetivos, medidas integradas de prevenção, profissionalização e formação especifica dos profissionais atuantes nas DDMs. A nova lei reconheceu a gravidade dos casos de violência doméstica, retirandoos da caracterização de “crime de menor potencial ofensivo”. Este fato removeu dos juizados especiais criminais a competência para julgar estes crimes.

A Lei Maria da Penha reflete um processo de passagem de indiferença do Estado à absorção ampla das demandas feministas no âmbito da formulação de uma política nacional para o enfrentamento da violência doméstica; (SANTOS, 2010, p. 155)

A Lei Maria da Penha é um marco de grandes inovações no enfrentamento à violência doméstica de gênero por constituir uma complexa rede de atendimentos envolvendo vários atores. Sendo assim, a Lei designa ações de prevenção, assistência e repressão a violência, capazes de promover para a superação da desigualdade entre homens e mulheres (CONDÉ, 2012). Esta Lei traz uma serie de inovações a começar por reconhecer a opressão de gênero como objeto central de sua ação, sem excluir relações homoafetivas de seu espectro de atuação. Por compreender a construção histórica de gênero e a culpabilização que as mulheres vivem nesse processo, a Lei designa que a mulher somente poderá renunciar a sua denuncia perante o juiz, ou seja, a partir do momento que a denuncia é tornada publica o Estado é responsabilizado pelo seu enfrentamento. Concebendo a responsabilidade do Estado em proteger a mulher em situação de violência, instituiu-se a possibilidade de expedição das medidas protetivas de urgência. Tais medidas permitem que o agressor seja afastado do lar, proibido de aproximar-se da ofendida, de seus familiares e dos lugares que frequenta. Alem disso, as medidas protetivas também asseguram que o agressor tenha posse de armas suspenso e restrição de visita aos dependentes menores, alem de estipular a prestação de alimentos provisórios. Sob esta lógica se torna notório que não é responsabilidade da mulher avisar ao agressor sobre a denúncia, mas sim da policia – que deve buscar e interrogar o mesmo a fim de investigar o caso. Esta Lei ainda garante a prisão em flagrante, assim como a prisão preventiva – procedimentos importantes para assegurar a proteção da mulher. Partindo da importância e periculosidade da violência, a Lei fixa a implementação de penas mais altas. Alem disso considera esse tipo de violência como elemento de agravação penal. Vale ressaltar que esta Lei, em caso de condenação, terá sua pena aumentada em 1/3 caso a ofendida seja portadora de deficiência. Por partir do pressuposto da desigualdade histórica entre os gêneros, tendo a violência doméstica como ápice desta opressão, esta Lei permite ao Juiz determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação. Dessa forma reconhecemos que a Lei Maria da Penha denota um grande avanço ao devido enfrentamento à violência doméstica de gênero em toda

complexidade que lhe é devida. O Movimento Feminista na instituição foi protagonista dos marcos históricos que determinaram a atual política de enfrentamento a violência doméstica de gênero. Obviamente uma Lei tão progressista encontra grandes dificuldades para sua implementação o que em nada exclui a possibilidade de efetivação e a importância de lutar para tanto. A seguir analisamos a materialização desta legislação no trabalho das Delegacias de Defesa da Mulher – objeto de estudo desta pesquisa.

CAPÍTULO IV AS ATRIBUIÇÕES TÉCNICAS DAS DDMs SOB A PERSPECTIVA DAS MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA Neste capítulo analisamos as falas das mulheres acerca dos atendimentos prestados nas Delegacias de Defesa da Mulher na cidade de São Paulo a fim de compreender em que medida estão sendo capazes de cumprir suas atribuições técnicas e se este trabalho tem sido desenvolvido sob a perspectiva de gênero. As atribuições das DDMs constam da Norma Técnica de Padronização das Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres – DEAMs, ponto de partida para analisar os relatos das entrevistadas, na contraface com a Lei Maria da Penha (11.340/06) A norma foi elaborada pela primeira vez em 2006 convergindo esforços da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) do Ministério da Justiça, as Secretarias de Segurança Pública e as Polícias Civis das Unidades Federadas, bem como especialistas na temática da violência de gênero e de diferentes organizações não-governamentais. Contou também com a parceria com o Unodc - Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (SPM, 2010: 7). Em 2010 a norma foi atualizada, buscando incorporar os procedimentos de atendimento, encaminhamento e investigação estabelecidos na Lei Maria da Penha, resultando em uma nova versão, utilizada para o presente estudo. A importância do estabelecimento desta norma técnica está na padronização do trabalho nas delegacias especializadas, sob a perspectiva de gênero, visando a efetivação da lei Maria da Penha. Na qualidade de Delegacia Especializada da Polícia Civil, as DEAMs adequaram sua atuação aos desafios e novas realidades sociais no exercício de suas atribuições. Tendo em mente essas novas diretrizes e desafios, as ações de prevenção, registro de ocorrências, investigação e repressão de atos ou condutas baseadas no gênero que configurem crime e infrações penais cometidos contra mulheres em situação de violência, devem ser feitas por meio de acolhimento com escuta ativa, realizada

preferencialmente por delegadas, e por equipe de agentes policiais, profissionalmente qualificados e atentos ao fenômeno da violência de gênero, nos termos da Lei Maria da Penha. (2010, p. 29)

A Norma materializa a perspectiva de gênero na rotina das delegacias: desde o acolhimento até a instauração do processo criminal auxiliando seus funcionários a compreender como efetivar sua atuação profissional sob a referida perspectiva. Segundo o relatório emitido pelo OBSERVE – Observatório pela aplicação da Lei Maria da Penha –, publicado em 2010 pela Universidade Federal da Bahia, a padronização do atendimento das delegacias é de suma importância, a ver: Um dos grandes problemas que afeta o funcionamento das DEAMS e tem se constituído como obstáculo para a aplicação da Lei 11.340/2006 é a falta de padronização na forma de funcionamento destas instâncias e no atendimento que oferecem às mulheres. No entanto, o documento traz diretrizes para as mudanças, mas não tem força de lei nos estados, o que implica num grande trabalho político para sua aceitação e implementação pelos governos estaduais. (OBSERVE, 2010, p. 32)

É importante ressaltar que, embora a Norma determine como deve ocorrer o atendimento especializado das delegacias, ela não está consolidada legalmente, o que reduz seu impacto social no enfrentamento à violência.

O ATENDIMENTO NAS DDMs SOB A PERSPECTIVA DE GÊNERO O documento parte do pressuposto que as mulheres em situação de violência são sujeitos de direito. É importante ressaltar que as mulheres em situação de violência de gênero devem ser consideradas sujeitos de direitos e merecedoras de atenção. (2010, p. 30)

Quanto à qualificação profissional, a Norma especifica que:

O atendimento deve ser conduzido por profissionais policiais previamente capacitados em violência de gênero e doméstica contra a mulher. A educação em segurança pública deve se estender a todos os profissionais da segurança pública que, de alguma forma, atendem às mulheres em situação de violência, por meio dos cursos oferecidos na Rede de Ensino a Distância, em cursos presenciais ou pelos cursos de especialização da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública – Renaesp. (2010, p. 31)

Sendo assim, compreendemos que os profissionais das DDMs precisam conhecer os elementos constitutivos da violência doméstica de gênero para que sua ação profissional seja coerente com o fenômeno que combatem. Do contrário, como já apontamos no primeiro capítulo desta pesquisa, os profissionais podem recorrer ao conhecimento que apreenderam ao longo da vida, geralmente derivado do senso comum, que está transversalizado pelo patriarcado, hegemônico em nossa sociedade. Ou seja, sem a capacitação necessária, muitos profissionais podem revitimizar a mulher, ao invés de auxiliá-la na superação da violência.

ACOLHIMENTO QUALIFICADO A primeira diretriz para o atendimento apresentada na Norma Técnica é o acolhimento qualificado no primeiro contato nas DDMs. Este documento reconhece este momento como determinante para o devido desenrolar dos serviços prestados na delegacia. A Norma Técnica reforça a necessidade da qualificação dos profissionais para que a mulher consiga efetivar sua denúncia, conforme podemos constatar: Os policiais envolvidos no atendimento a essas mulheres devem ter escuta atenta, profissional e observadora, de forma a propiciar o rompimento do silêncio, do isolamento destas mulheres e, em especial, dos atos de violência, aos quais estão submetidas. (2010, p. 30)

O primeiro contato entre o/a policial e mulher é muito importante porque pode ser determinante para o desenrolar da queixa-crime

e/ou da investigação criminal. Assim, a concepção arquitetônica das DEAMs como a postura dos agentes devem propiciar um atendimento acolhedor… (2010, p. 36)

Um das entrevistadas, falando a respeito do primeiro contato com os profissionais da delegacia, informou que: Olha, no momento quando tudo aconteceu….porque eu cheguei na delegacia só sabia contar o dia e o momento que o cara foi me pegar na minha casa. E o que tinha de importante pra falar eu não falei… o que tinha acontecido durante essa quatro vezes que ele praticou estupro.

Percebemos, por esse relato, a importância de um atendimento qualificado que possa garantir à usuária reportar a violência vivida em toda a complexidade. Como apontamos no primeiro capítulo, é característico da violência doméstica de gênero a confusão

mental,

pois

a

mulher

está

muito

fragilizada

psicologicamente,

apresentando em muitos casos “apagões de memória”. Dessa forma, faz-se mister que os funcionários tenham a máxima atenção ao seu relato, auxiliando-a a organizar as informações de que dispõe para lavrar sua denúncia. No caso, após refletir, a usuária se deu conta que não informou as ocorrências anteriores. A reincidência da violência de gênero é um aspecto decisivo e já analisado na literatura a respeito, merecendo ser observada no primeiro contato. Esta postura, dos funcionários, seria o desejável no enfrentamento da violência de gênero, pois quando as mulheres organizam a sua fala e os elementos que compõe seu cotidiano, conseguem, por consequência, começar a organizar sua vida e suas escolhas. Se as delegacias garantirem um espaço de escuta qualificada para a mulher, na qual ela tenha tempo para pensar e refletir sobre tudo o que lhe vem acontecendo, com certeza ela sairá mais fortalecida deste espaço, tendo mais clareza sobre como agir para ultrapassar a violência vivida. Três entrevistadas forneceram relatos muito similares quando consideraram a qualificação do atendimento: E você chega lá, nesse primeiro ela já te olha com um olhar assim, sabe que te intimida, assim, entendeu. [...] Você fala e a pessoa “ta, ta, ta”, tipo, você tá contando ali com tanta dor, tanto sentimento, tanta mágoa, entendeu? E a pessoa ali, sabe, só digitando. E não… sei lá, você não vê nada assim, humano, entendeu? Preocupada com você…

[...] Ah, eu achei que elas não tão nem aí… assim, não ligam muito pra gente, sabe? Por o que a gente passou, parece que não acreditam, sabe? Ou se acreditam, mas de repente acham que a gente exagera… não sei, não dão muita importância, assim, sabe? Eu senti isso.

Não gostei não, sinceramente eu não gostei. Foi meio que dar um chá de cadeira. Chegando, não deixa a pessoa falar, já vai logo cortando, logo, outro dia…eu não gostei. Isso me desanimou também. .... a pessoa olha pra você, você não tá com marca “não deve ter sido agredida”, “é exagero”, que deu a sensação foi essa, de exagero...

Através dos relatos podemos perceber que as mulheres não se sentiram acolhidas na delegacia. Parece-nos que os profissionais não demonstraram dar importância a elas, à violência vivida e, nem sequer acreditaram em tudo que elas haviam dito. Como já apontamos neste trabalho, é muito comum que a mulher naturalize a violência devido à sua repetição cotidiana, diminuindo sua gravidade ao relatá-la. Sendo assim, os profissionais devem ser capazes de ajudá-la a remontar todos os eventos, divididos ao longo do tempo, a fim de reconhecer a gravidade na junção de todos os fatos. Desta forma, acreditamos que a delegacia poderá corroborar com a determinação da mulher em denunciar seu agressor, pois a ajudará a compreender a gravidade da situação em que se encontra e a importância de romper com ela. A diretriz sobre o acolhimento na Norma ainda esclarece que as delegacias devem:

Acolher as mulheres em situação de violência com atendimento humanizado, levando sempre em consideração a palavra da mulher...; (2010, p. 37)

Neste relato, podemos analisar como esse ponto foi implementado: E uma coisa que elas me deixaram bem claro nesse primeiro boletim, quando eu fui fazer, ela falou assim pra mim “não basta só a sua palavra, tem que ter provas contra ele. Porque não é assim, vocês chegam aqui, falam o que vocês querem e a pessoa vai ser condenada, de repente vai ficar presa e de repente não é verdade! (…) É então pensei, será que alguém teria coragem de vir aqui, inventar uma mentira, deixar o filho na escola e ao invés de cuidar da vida, de trabalhar, porque eu deixei de trabalhar, eu faltei no meu trabalho, né, pra estar aqui

inventando mentiras sobre o marido que casou no civil, foi lá, assinou documento. A gente casa não é pensando em separar...

Pela fala desta usuária percebemos que seus problemas foram tratados como “de menor importância”. Seu relato foi colocado em dúvida, sendo que cabe à policia estabelecer a devida investigação. Esta conduta policial, remete a solução ao espaço do privado e reforça a naturalização da violência. Sendo assim, percebemos que, ao invés de protegidas, estas mulheres foram vulnerabilizadas. A diretriz supramencionada ainda destaca que: Acolher as mulheres em situação de violência com atendimento humanizado, levando sempre em consideração a palavra da mulher, em ambiente adequado, com sala reservada, para manter a privacidade da mulher e do seu depoimento; (2010, p. 37, grifo nosso)

É denotada a importância da mulher ser atendida em uma sala reservada, mantendo sua privacidade.

Há ainda um trecho específico na Norma sobre o

acolhimento que destaca: Ter escuta qualificada, sigilosa e não julgadora. (2010, p. 37)

Quando questionadas quanto à sala reservada e o sigilo, cinco entrevistadas responderam que: ...era sala aberta... me chamaram numa sala assim…não, não era vedada.

Não, era aberta. Assim tinha porta, mas a porta não fechou nem nada, era aberta... Era uma sala, uma pouco maior que essa, tinha várias…acho que uma mesa aqui, outra mesa ali, outra mesa ali e….[...] Não! E a porta aberta. E eu sentada na portinha assim, com a cadeira aqui na porta.

...lá era assim, tinha uma porta aberta, eu acho assim, não era tão reservada não, que no dia mesmo que eu fui falar com a delegada, o que ela falou pra mim todo mundo ouviu, eu fui na sala dela, mas assim, todo mundo ouviu, se entendeu...

Segundo o relatório emitido pelo OBSERVE: Entre as recomendações internacionais para a instalação e oferta de serviços policiais para atendimento de mulheres em situação de violência, a privacidade e a segurança são itens em destaque, uma vez que os sentimentos de vergonha e de culpa podem constituir grandes obstáculos que as mulheres precisam superar nesse momento. A privacidade neste primeiro contato tem como objetivo garantir que a mulher não sofra novos constrangimentos e sinta confiança no atendimento que está buscando... (2010, p. 48)

A não garantia de sigilo, sem dúvida, dificulta às mulheres o rompimento com o silêncio, comprometendo a qualidade do acolhimento e por consequência, de todo o atendimento. Como problematizado no segundo capítulo deste trabalho, tornar pública uma violência ocorrida dentro do ambiente privado do lar não é uma tarefa simples. A mulher, geralmente, sente-se culpada pela violência vivida e não se sente à vontade por denunciar seu companheiro. Sendo assim, torna-se estratégico garantir a privacidade dela neste momento. Sem dúvida ultrapassar este desconforto será muito mais sutil se ocorrer dentro de uma sala, para uma pessoa lhe ouvindo, do que num balcão, circundada por desconhecidos. Segundo o relatório do OBSERVE algumas delegacias em São Paulo detem salas para atendimento individual que, no entanto, não garantem sigilo: Em São Paulo as pesquisadoras também observaram que a despeito das salas para registro de ocorrência permitirem atendimento individual, as paredes são formadas por divisórias e não propiciam um isolamento acústico adequado. Em algumas delegacias a sala de espera fica separada da área de atendimento, o que contribui para a privacidade das vítimas, mas em outras esta separação não existe permitindo que se possa ouvir o que está sendo relatado no interior das salas… (2010, p. 45)

Apenas uma das entrevistadas afirmou que foi atendida numa sala reservada: A porta tava fechada. Tinha só eu e ela dentro.

Como determina a Norma Técnica, o sigilo deve existir para que o atendimento seja acolhedor. Ou seja, é uma premissa para que o atendimento seja qualificado, porem quando esta última entrevistada mencionada foi questionada sobre a sua percepção com relação ao cuidado de quem lhe ouvia na sala vedada, continuou: Não, não teve. Não, até porque ela colocou no boletim de ocorrência coisas…inverdades! Assim, eu não sou, não tenho curso em direito, eu falei pra ela que eu cursei, que eu estava cursando direito, o primeiro semestre, que eu tinha recomeçado, eu falei pra ela. E tinha trancado porque tava em depressão. Ela colocou no primeiro boletim que eu já tenho curso em direito! E tem uma grande diferença entre uma coisa e outra. Eu não disse isso! Depois, em casa que eu fui ler, né? Porque vc tá nervosa, ali, sei lá, primeira vez, né? Não sei. Não li o boletim na hora, né? Depois que eu fui ler, entendeu? (…) Aí o juiz pega isso e fala um monte pra mim, né?

Neste relato podemos perceber alguns elementos: 

Ela relatou não se sentir acolhida o que é corroborado pelo seu relato de nervosismo e por não ter lido o BO na própria delegacia.



Ela não teve seu relato fielmente descrito no BO, visto que há divergências entre a realidade e seu registro.



Ela ainda demonstrou medo de ser punida pela judiciário, pelo erro da delegacia.

Podemos constatar que, neste caso, a delegacia acabou por causar mais transtornos à mulher, fazendo incorrer sobre ela a sensação de que ir à delegacia pode ser danoso. Quanto à atitude “não julgadora” disposta na Norma Técnica, percebemos que há divergências. Estas geralmente transparecem em julgamentos pautados em valores incongruentes com a perspectiva de gênero, denotando que os profissionais não estão capacitados para atender esta demanda. As usuárias relatam que muitas vezes são culpabilizadas pela violência que passaram, como percebemos nos relatos a seguir:

...eu sai de lá assim, sabe quando você sai com a sensação de culpada, de vitima parecendo que meio que era eu que tava fazendo toda a situação... …. ela ainda disse assim “ah, mas você vai acabar com a vida dele. Tem certeza que você quer fazer isso? Coloca o pé no freio.” Falei como assim “coloca o pé no freio?” […]Ela falou “eu só tô te falando que é... o cara trabalha, o cara não vai mais poder tirar antecedente criminal, não vai mais poder prestar concurso público e você vai acabar com a vida dele” Aí eu falei “e o que ele fez com a minha vida? Com a vida do meu filho? E aí, vai ficar por isso mesmo?” Então, aí eu saí de lá como a “bruxa má da história”, né?

Podemos apreender do segundo relato que a funcionária da delegacia teve uma conduta questionável em vários sentidos: 

Ela realocou a violência dentro da esfera privada ao questionar a mulher se ela realmente tornaria sua queixa pública. Esse movimento denota que a funcionária não entende esta questão alocada no âmbito do público, o que reforça o poder do homem dentro do ambiente doméstico e revitimiza a mulher;



A mulher foi culpabilizada pela violência vivida na medida que foi questionada sobre a responsabilização ao seu agressor. Este exemplo deflagra o fato de que a funcionária não reconhece a violência doméstica em sua gravidade, entendendo as conseqüências da responsabilização do agressor como algo perverso, o que favorece o homem – traço claramente machista;



A funcionária “desculpou” o agressor por seus atos na medida em que ele é o provedor da família. No momento em que a usuária evoca a posição do homem como provedor, legitimando o poder imanado dessa posição, remonta ao modelo clássico da família patriarcal.

Esta usuária apresentou uma série de problemas ao relatar seu atendimento na delegacia. Segundo o trecho a seguir, chegamos a questionar se ela foi realmente atendida dentro da delegacia por uma profissional ou algum tipo de voluntária. Neste relato percebemos a interferência de valores religiosos da atendente, em total dissonância com a Lei Maria da Penha e com a Norma Técnica:

Então, foi uma outra mulher que me atendeu. Ela não é, não é polícia. Ela trabalha na prefeitura e a prefeitura mandou ela pra lá, pra prestar serviço, entendeu? Mas eu, porque eu perguntei pra ela, porque ela me contou um pouco da história dela, ela é missionária, quando eu fui fazer o BO, fui numa sala fechada, tal, só nós duas, ela falou que ela é missionária, né, que ela morava na mesma favela que eu, entendeu, que ela usava droga, ela e o marido dela, que ela foi presa várias vezes, que o marido também, que eles tinham também agressões, sabe? E que, mas assim, depois que ela foi pra Igreja, né, ela e ele, a vida deles mudaram. Hoje eles não moram mais lá, conseguiram comprar um apartamento, até fui no apartamento dela… Ficamos amigas. É né…fui lá no apartamento dela, conheci…é perto da minha casa, né, aí ela deu o cartão dela, disse que na hora que eu precisasse ir na casa dela, pra conversar, tal, né? Se eu quisesse ir pra Igreja também, fazer encontro de casais.. Ela me chamou pra Igreja dela. Ai, não lembro o nome, mas é evangélica (risos). Mas se eu quisesse fazer encontro de casais, tal né, enfim… Como ela superou a violência dela através da Igreja. Ela tá com ele. Ela falou assim que, depois disso, né, que eles foram pra igreja eles se casaram, realmente, que eles só moravam juntos, tiveram uma filha, e que tão bem assim, eles, nunca mais eles brigaram, ele é missionáro também, pastor, uma coisa assim. E que eles tão bem, hoje ela tá cursando direito, terminando a faculdade dela, ele montou um negócio próprio, enfim, a vida deu uma guinada. Aí ela foi falando do exemplo dela pra mim, né, e aí ela falou ela descreveu o que eu disse no boletim de ocorrência. [...] No terceiro, essa missionária, ela falou “nossa, mas você vai colocar ele na cadeia! [...] “nossa, você tem certeza que você quer colocar o homem que você ama na cadeia?”. Aí eu falei [...] “Ele me ama?”, eu perguntei pra ela. “Você acha que eu tô te contando tudo isso, eu tô te mostrando a minha cabeça, ele me deu três tapas no ouvido que eu fiquei quase surda” eu falei “ele me ama?” Eu falei “eu devo pensar nele ou eu devo pensar em mim e no meu filho, vendo tudo isso?” Ela “é mulher, mas você tem que pensar”. Falei “não, eu tô pensando” […] Eu entendo o lado dela de missionária, tal, entendeu? Mas assim o fato delas ficarem falando, sabe, “ai você pode prejudicar”, “ai Deus não sei o que”, acaba que tipo, eu não voltei atrás, mas acho que, de repente, muitas mulheres podem voltar atrás, né? “Ai não vou tentar de novo por Deus”,“Ai não, vou colocar ele na cadeia, vou acabar com a vida dele”, entendeu? Eu não voltei atrás, porque essa história de Deus também nem cola mais comigo.

Podemos constatar neste relato a desqualificação profissional da atendente na medida que recorre a procedimentos de ordem religiosa, a partir de sua crença pessoal, para superar a violência, em detrimento da política pública pertinente. Segundo o relatório emitido pelo OBSERVE:

…o que se sabe hoje é que o diferencial que se quer dar neste atendimento estará mais garantido se o(a) policial for bem preparado(a) para o desempenho de sua função, quer dizer, se tiver conhecimento das leis e dos direitos das mulheres, se reconhecer o direito da mulher em procurar ajuda institucional e souber das dificuldades que estas mulheres enfrentam para denunciar os maridos/companheiros. Além disso, a existência de normatizações e protocolos de atendimento também contribui para que todas as mulheres recebam

atendimento adequado, independente

das

convicções e crenças pessoais de cada profissional. (2010, p. 59)

No último relato disposto observamos que houve a inversão de papeis segundo a Norma Técnica, pois a atendente fez questionamentos completamente contrários à perspectiva de gênero e a própria usuária, ao respondê-los, demonstrou sua reflexão embasada nesta perpectiva. LAVRATURA DO BOLETIM DE OCORRÊNCIA Segundo a Norma Técnica, Conforme o artigo 12 da Lei nº 11.340/2006, em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:

I - ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada; (2010, p. 38)

Parece simples, mas observamos nos relatos das entrevistadas que lavrar o boletim de ocorrência tem se constituído como um desafio: ...foi quando eu fui a delegacia e ela falou que eu não precisava fazer BO. Ai ela falou assim: “já pensou se toda vez que, qualquer ameaça que ele faça novamente você venha fazer um BO, daqui uns dias vai ter uns 10 BO e a justiça vai acabar achando que você...” ela falou um nomezinho assim... é como se não valesse a pena fazer um monte de BO. Hoje eu sei que

você pode fazer quantos BO´s você precisar... Só que ela também não falou... Eu acho assim na minha, no meu ver hoje, ela devia fazer tudo assim: “Mas a senhora veio fazer um BO ontem, o que foi que aconteceu?...

Observamos que se o profissional que trabalha na delegacia tem conhecimento sobre a complexidade do fenômeno da violência doméstica, ele sabe que esta violência é caracterizada por sucessivos eventos cotidianos e progressivos. Dessa forma, deve ser garantido à mulher que ela emita um boletim de ocorrência para cada agressão ocorrida, visto que apenas desta forma poderá caracterizar, de forma mais aproximada, a realidade vivida. 

Quando é negado à uma mulher lavrar o boletim de ocorrência, compreendemos uma série de implicações em detrimento dela.



Reforça a naturalização da violência vivida, afinal, ela é tão insignificante que não merece sequer registro.



Acentua a sensação na mulher de que a violência vivida é um problema dela e não do Estado.



Corrobora para que a mulher volte à convivência com o agressor, esperando por um fato mais grave que “justifique” a emissão do BO.

Percebemos que o atendimento relatado não apenas dificultou o acesso da mulher aos seus direitos legais como ainda colocou-a em risco, à espera de uma agressão “significativa” para a policia. Este fato denota claramente como a policia, sem a capacitação necessária, age imersa na cultura do patriarcado, na qual a mulher, ao buscar ajuda, é punida e realocada em seu “devido lugar”: a vítima passiva. Nos parece que a mulher que busca ajuda na delegacia é revitimizada, sendo ainda punida por ter rompido com seu lugar passivo e ter se projetado no espaço público. Outra entrevistada relata que, ... eu fui uma vez na delegacia ali do Rudge, mas eu só fui perguntar mesmo como era né, porque eu tava machucada, ainda consegui pegar o carro escondido do meu ex marido falando que ia pra igreja e fui na delegacia... nessa delegacia eu mostrei meu machucado e falei assim: meu marido me bate, tudo, como que eu posso fazer? Ai ela falou assim: “onde você mora?”, ai falei assim: no Ipiranga. Ai ela falou assim: “não, então você tem que ir na delegacia lá do Jabaquara”. Mas eu falei: moça eu sai fugida de casa, eu não posso. Ai ela falou “ah então né, mas aqui a gente não pode fazer boletim de ocorrência”. Ai fui pra casa...

Segundo o esclarecimento disposto pelo relatório do OBSERVE: … o registro da ocorrência poderá ser realizado em qualquer delegacia (especializada ou não) e após o registro a investigação poderá ser enviada para a DEAM mais próxima do local de residência da vítima.

Observamos que o relato abre uma lacuna que pode ser entendida como uma negligência da delegacia quando contraposta à diretriz essencial para o atendimento. Esta mesma entrevistada, determinada a romper com uma rotina de agressões, elaborou uma estratégia para que pudesse, enfim, ser atendida pela policia: eu queria uma forma de não só de chegar numa delegacia e contar o que aconteceu, queria provas, porque o juiz quer provas, infelizmente [...] Queria que pegasse em flagrante mesmo [...] a gente discutiu, porque ele sempre me batia mais no período da noite, pra no outro dia, tipo assim: “ah como ela vai provar...” E naquele dia [...] eu fiquei quieta e lembro assim ele colocou o dedo na minha cara, cuspiu na minha cara, sabe, assim umas coisas terríveis, ai eu falei assim: não [...] fica quieta, porque se ele te bater agora não vai ter como né? Ai eu já sabia que ele ia me bater, de uma forma ou de outra ele ia me bater. Aí ele pegou foi deitar e dormiu, ai no outro dia de manhã sete e meia da manhã ele me bateu, entendeu?! [...]eu saí correndo, porque ele tava trabalhando atrás da rua da delegacia. Eu falei assim, se esse homem me pega no meu da rua, tô ferrada. Ele me mata!. Entendeu, saí igual uma louca, toda machucada, mancando com o chute que ele me deu na perna. Aí o policial já pegou o meu filho no colo, já pegou minha filha no colo o outro policial, falou assim “não, senta aqui, o que aconteceu?”, falei “não, meu marido me bateu. Ele me bate”

Por este relato percebemos claramente que a entrevistada teve que esperar uma agressão que “convencesse” a policia para ter seus direitos assegurados. A própria entrevistada questiona o que poderia ter-lhe acontecido caso não tivesse conseguido chegar na delegacia a tempo,

comprovando o perigo em que foi

colocada pela omissão policial prévia. Outra entrevistada relata o mesmo problema, que aconteceu duas vezes: Aí eu queria fazer o boletim no dia, porque ele invadiu a minha casa e pegou os documentos e (…) ela não quis fazer” .

Foi esse dia aí que eu fui lá e eles não quiseram fazer pra mim, na delegacia da mulher. Esse BO não foi lavrado na delegacia da mulher. Não, aí eles me mandaram pra outra delegacia que eu acabei fazendo. Que é essa aqui. Por que eles não quiseram fazer? Ela me falou que meu caso tava nessa delegacia (…), aí ela me mandou ir lá. E eu fui, falei com o advogado, na época, e ele falou que isso aqui, eu posso acusar eles, como é que ele falou..não tem um negócio que você pode ir na OAB, não, não é OAB, reco…corregedoria? Corregedoria da polícia? Sim, aí ele falou, ó, vai nessa delegacia, se eles não fizerem, aí sim, a gente vai a corregedoria, porque eles são obrigados a fazer. São obrigados a fazer, aí eles não quiseram fazer. Aí eu fui lá e falei, olha, preciso fazer. Até na delegacia, delegacia não quiseram fazer pra mim.

Infelizmente observamos que o simples atendimento não é garantido a todas as mulheres, o que nos aponta um dos desafios para a melhoria dos serviços prestados pelas DDMs.

REPRESENTAÇÃO DO BOLETIM DE OCORRÊNCIA No mesmo trecho da Lei, onde se designa a escuta da ofendida e a emissão do boletim, é determinada também a representação do BO. I - ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada; (2010, p. 38)

Para compreendermos a importância da representação, é necessário esclarecer alguns elementos antes. Segundo a Constituição Federal (1988), a conduta de alguém só pode ser considerada crime (e portanto passível de lavratura de BO e investigação policial), se estiver prevista em lei: TÍTULO II Dos Direitos e Garantias Fundamentais CAPÍTULO I DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS Art. 5º […] XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem

prévia cominação legal;

Segundo a cartilha Apostila de Capacitação Jurídica – do Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica (GEVID) do Ministério Público do Estado de São Paulo – a rigor, quando um Boletim de Ocorrência é lavrado, identifica-se no código penal o crime denunciado. Os crimes dispostos na Lei Maria da Penha: violência física, violência psicológica, violência sexual, violência patrimonial e a violência moral são identificadas no BO em infrações penais, segundo o Código Penal. Conforme a cartilha do GEVID, na violência doméstica ocorre a freqüência das seguintes infrações penais: - Vias de fato: agressão que não deixa marcas físicas, como tapas, puxões de cabelo, empurrões; Dec lei 3.688/41, art.21. […] - Ameaça: prometer causar mal a alguém, por exemplo, dizer “eu vou te matar”, “se você não for minha não será de mais ninguém”; Art. 147, CP. […] - Lesão corporal: agressão que deixa marcas aparentes no corpo, como por exemplo, cortes, vermelhidões, hematomas e escoriações; Art. 129, […] - Coação no curso do processo: ameaçar a vitima para que desista do processo; Art. 344. […] - Estupro: conjunção carnal ou ato libidinoso – como sexo oral, sexo anal, manipulação vaginal – com vitima adulta, contra sua vontade, mediante violência ou grave ameaça; Art. 213. […] - Estupro de vulnerável: ocorrerá quando a vitima for menor de 14 anos, deficiente mental ou quando por qualquer outra causa não puder oferecer resistência – vitima dormindo, dopada; Art. 217[…] - Tortura: submeter alguém a intenso sofrimento físico ou mental; Art. 1º.[…] - Injúria: ofender a honra da vitima, chamando-as de “vadia”, “prostituta”, “vagabunda”; Art. 140. […] - Difamação: imputar um fato ofensivo à reputação, como por exemplo, dizer que “a vitima saiu com outro homem”; Art. 139. […] - Calúnia: imputar falsamente um fato criminosos, como, por exemplo, dizer que a vítima o “roubou”, “está traficando”, “praticou

estupro contra menores”; Art. 138. (2012, p. 8)

Estes crimes tem naturezas distintas, sendo caracterizados como crimes de ação penal pública ou de ação penal privada. Os crimes de ação penal pública são aqueles cuja denúncia (acusação) é oferecida pelo Promotor de Justiça. Ela pode ser condicionada ou incondicionada. Quando ela é condicionada, significa que o promotor somente poderá acusar, caso a vitima tenha demonstrado interesse (através da representação). Neste caso, a vitima tem 6 meses da data de emissão do BO para apresentar a representação. Os crimes de ação penal privada são aqueles cuja denúncia (acusação) é oferecida por um advogado da vítima ou pela Defensoria Pública, através de uma queixa-crime. Neste caso, a vitima tem 6 meses da data de emissão do BO para apresentar a queixa-crime.

Fonte: http://www.abcdodireito.com.br/2010/09/aula-acao-penal-gratis-conceito.html

Os crimes de calúnia, injúria e difamação são crimes de ação penal privada. Isso significa que se a mulher apenas lavrar o boletim de ocorrência na delegacia, mas não constituir um advogado ou recorrer à Defensoria Pública para emitir uma queixa-crime, nada acontecerá com seu caso. Nesta situação ressaltamos a importância das delegacias esclarecerem como a mulher deve proceder para que seu processo tenha andamento, caso deseje. Quando uma mulher sofre uma agressão cujo laudo do Instituto Medico Legal ateste lesão leve ou mais grave, temos uma ação penal pública incondicionada, ou

seja, entende-se o fato como algo tão grande que não pode ser responsabilidade da mulher decidir se o agressor deve ser responsabilizado ou não, trata-se de uma ação incondicionada. Esta decisão do Supremo Tribunal Federal, em 2012, representa uma vitória pelo reconhecimento da gravidade da violência doméstica vivida pelas mulheres e pela responsabilização do Estado em combatê-la, por meio da instauração incondicionada do processo criminal: …no Supremo Tribunal Federal, nesta quinta-feira, 9 de fevereiro, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, defendeu que a Lei 9.099/95 não deve ser aplicada aos crimes cometidos no âmbito da chamada Lei Maria da Penha e, como consequência lógica, o crime de lesões corporais consideradas leves é de ação pública incondicionada. De acordo com ele, condicionar a ação penal à representação

da

ofendida

atenta

contra

vários

princípios

constitucionais. (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL apud JUS BRASIL, 2012)

Dessa forma, sempre que a mulher for encaminhada ao IML e obtiver um laudo de lesão corporal leve ou mais grave do que isso, terá sua denuncia automaticamente transformada em um processo criminal. Em todos os outros casos (exceto calúnia, injúria e difamação) a mulher terá que representar seu BO para seja dado andamento ao processo. Observamos que são informações complexas que precisam ser explicadas às mulheres para que elas possam tomar uma decisão consciente do que gostariam de fazer, pois sem essa informação ficam completamente sem instrumentos de como fazer garantir seu direito de processar o agressor. Uma das entrevistadas relatou que foi esclarecida quanto à representação: Falaram. (…) Então, a representação o que ela me falou, foi que constatada lesão, é, eu não ia nem precisar representar, que o ministério público ia entrar direto.

Outra entrevistada alega que recebeu os esclarecimentos, mas acredita que isso se deva ao fato de ter sido severamente agredida fisicamente, visto que observou outras mulheres que não receberem o atendimento da mesma qualidade na delegacia:

...ela me deixou bem a vontade, ela perguntou se eu queria representar [...] Mas assim, na delegacia, eu falo assim “eu tenho sorte”, porque eu vi lá, quando minha mãe foi prestar depoimento, que eu vi que chegaram umas três ou quatro mulheres pra denunciar o marido, tudo e elas não conseguiram, porque falaram que teria que ter o endereço deles e elas não tinha o endereço e não fizeram o boletim de ocorrência. Não sei se é porque ele já tinha sido preso, assim eu já tinha um histórico né, já tinha um agravamento, talvez eles acharam que era um caso mais grave, vamos dizer assim, que ele não tá mais como réu primário... Ai me explicaram direitinho...

Três entrevistadas informaram que não receberam esclarecimento algum: Nada, nada, nada ninguém me explicou que eu tinha que representa, a Lilian [profissional do Centro de Referencia Especializado da Assistência Social] agora terça feira que me perguntou “... você representou o boletim?” eu falei “Lilian eu não sabia que tinha representa, ela falou “pra resolver alguma coisa tem que representa o boletim” eu não sabia então foi só boletim só foi só papel pra casa papel, papel e nada.

Não..não falou nada.

...só o BO e acabou, e voltei pra casa, como voltei da segunda vez que não foi feito o BO, mas também não me orientou que eu podia dar prosseguimento...

Tal fato é muito grave quando consideramos que as DDMs deveriam ser locais onde as mulheres receberiam a devida instrução quanto às formas de acessar seus direitos legais. Outra entrevistada relatou que : ...eu assinei e li, só que não foi explicado pra mim... mas assim de 6 meses eu fui explicada...

Como podemos observar, a última entrevistada tinha conhecimento da necessidade de representação de seu BO em até seis meses. Porém, seu BO foi lavrado sob a tipificação de lesão corporal, tendo sido solicitado o exame de corpo de delito que atestou lesão leve. A entrevistada relatou que fez o exame e não sabia que, sendo constatada a lesão, a representação de seu BO seria incondicionada. Ressaltamos a importância de problematizar as implicações deste atendimento, visto que a usuária foi colocada em risco ao ser instaurado um processo criminal,

sem que a mesma tivesse conhecimento – especialmente porque ainda vivia com seu marido. O relato a seguir demonstra a atual ineficiência das delegacias de prover às mulheres as informações necessárias sobre a representação. Consequentemente, muitas delas perdem o prazo para a representação e, quando decidem ir atrás pra descobrir o que aconteceu, vivem a grande frustração de descobrir que seu BO já não pode ser mais representado e que nada foi nem será feito. Mas nessa última também teve problema, porque ele falou pra mim assim, que não tá representado. Eu falei “ah, eu quero representar” ele falou “ah, já faz um ano”, eu falei “ah, não quero saber, eu quero representar essa queixa, porque era pra ter representado”

Como já mencionamos, este tipo de experiência na delegacia, ao invés de auxiliar as mulheres a romper com a violência, reforçam sua sensação de frustração alem de as impedir de acessar seus direitos legais. Também, constatamos que existem casos em que a delegacia agenda a data para a representação após um mês de lavrado o BO: Eu cheguei ir, fui duas vezes. Fui a primeira vez, tinha que esperar o relatório chegar. [...]Eu não sabia que relatório era. Não…não explicaram. Tinha que esperar o relatório chegar… Daí em vim’bora, depois eu fui lá de novo, aí a delegada marcou pro dia 21 pra eu tá lá, pra poder estar representando.[...] Não gostei não, sinceramente eu não gostei. Foi meio que dar um chá de cadeira. [...] Aí eu pensei: será que vai me ouvir, será que vai ter paciência? [...] Já vai desanimando, mas no momento em que eu me sinto desanimada, eu sinto mais medo.

Percebemos, pelo relato da usuária, que alem do risco de ter que esperar um mês para a representação – evidenciado claramente pelo seu medo – a burocratização do atendimento vai remetendo à mulher uma sensação de penalização pela sua tentativa, que recorrentemente relata como “desânimo”. Constatamos a partir deste relato que, mais uma vez, a delegacia desencorajou a mulher a superar a violência vivida e a reinseriu no cotidiano sem protegê-la.

MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA

As medidas protetivas de urgência são um dos grandes avanços trazidos pela Lei Maria Penha. Segundo o artigo 22 deste lei: Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:

I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003; II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III - proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

Segundo a Lei Maria da Penha ainda no artigo 12, com referencia às atribuições das delegacias de policia, consta que a mesma deve: III - remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência;

Reconhecemos que a violência doméstica tem a particularidade de considerar que a vítima tem laços afetivos com seu algoz, o que dificulta a denúncia da violência. Alem disso, grande parte das mulheres não relata o desejo de ver seu agressor preso, ela quer “apenas” que ele não a agrida mais. Sendo assim, a

criação destas medidas – que podem efetivamente coibir a violência – constitui como um dos aspectos mais importantes da lei. Como já dispusemos anteriormente, cabe à delegacia esclarecer a mulher quanto à existência das medidas e oferecer-lhe a expedição deste pedido ao judiciário. Os relatos a seguir

se referem quanto ao esclarecimento das medidas

protetivas: Não..não falou nada.

...não, lá não... Não, só meu advogado que quando ele saiu da prisão eu liguei pra ele e ele falou assim ó “tem a medida protetiva”, só que ele só falou isso entendeu, que não podia chegar perto de mim... só que ele não falou como fazia, e ninguém na delegacia me esclareceu...

Entendendo a importância da estratégia da instauração das medidas protetivas de urgência para a efetiva proteção da mulher e contenção da violência, percebemos

a

negligência

das

delegacias

como

um

aspecto

grave

de

descumprimento da Lei Maria da Penha. Podemos destacar no relato de uma das entrevistadas a importância das protetivas quanto à garantia da sensação de segurança: A protetiva, porque quando tem festa, casamento, ele liga pra meu filho e fala “ó, fala pra vadia não ir, porque se ela for eu vou matar ela lá, na frente de todo mundo” Eu vou! Êle não vai! Acho que ele fica sabendo que eu tô lá e não vai. […] porque isso tá assustando ele, ele falou pra mim, “se vc quer falar comigo, qualquer assunto, tira essa queixa” e eu respondo “é a única proteção que eu tenho contra você, não vou tirar não.”

Percebemos que esse mecanismo é o que garante que a mulher não seja penalizada pela violência que sofreu, sendo obrigada a fugir incessantemente de seu agressor por tê-lo denunciado à policia. A seguir, a reflexão de uma usuária, que não obteve medidas protetivas, quanto à sensação de insegurança que vivia:

E eu só pensava: “Poxa e a minha vida? E a minha liberdade?” Porque se eu tivesse fugindo da polícia, eu me conformava, “não eu aprontei, eu não fiz algo errado pra ter que fugir”, mas aí fugir de bandido, isso que ficou na minha mente.

É um fato que a policia tem muita dificuldade para efetivar a proteção para mulher devido ao baixo contingente policial da cidade de São Paulo. Reconhecemos o aumento da violência urbana, porém, este fato não justifica a culpabilização da mulher pobre pela violência doméstica, como veremos a seguir: ....Ah, e falou da protetiva, tal….[…] ela falou que se eu precisasse era só pedir. Eu não pedi, até porque eu não vou sair da minha casa, mudar a minha vida por causa dele. Se eu sabia da possibilidade de pedir o afastamento dele do lar? Não, isso não falaram, a única coisa que ela falou foi assim, é…ela falou um monte pra mim, que eu não devia estar morando onde eu moro, né? Porque é uma favela. E não teria como os policiais estarem entrando lá, né? Na favela. Se caso eu precisasse pra tá tirando ele de lá, porque eu ia estar colocando em risco a vida dos policiais, entendeu? Aí eu falei assim, “ah, mas é por isso mesmo que eu não chamei a viatura na hora, né, que ele tava me agredindo. Senão eu tinha ligado, eu tinha chamado 190.” Mas assim, é, tô aqui, né? Tô aqui pra que a justiça, sei lá, o juiz tome as suas providencias , sem eu precisar chamar a viatura, realmente eu não quero expor a minha vida, a do meu filho, a dos policias ao risco, porque eu sei que se eu chamar a polícia na favela vai sobrar pra mim, entendeu? Aí ele sai fora e sobra pra mim e pro meu filho. Eu não quero isso, entendeu? Nem posso! (…) é, ela falou que não seria possível porque como que eu ia chamar a viatura na favela, né? Olha o lugar que eu moro, né? E….como que os policiais iam entrar lá, entendeu? Né? Eu entendo a parte da polícia, mas também entendo a minha parte, né? Eu também não chamaria. Entendeu? Se fosse um outro local, eu chamaria, mas lá não porque eu ainda moro lá, né?

O relato da entrevistada demonstra a culpabilização da mulher vitima de violência por sua pobreza quando é questionada “por que mora na favela”, como se esta questão fosse decorente de uma escolha e não da pobreza, expressão da questão social. Constatamos que a usuária internalizou a culpa por sua pobreza e também as regras do poder paralelo instituído no território da favela. A usuária refere que “vai sobrar pra mim”, ao indicar as retaliações que sofreria por parte das lideranças do tráfico de drogas, caso atraísse a policia ao local, por conta da violência doméstica sofrida. Observamos neste relato que a delegacia, incapaz de lidar com violência urbana em interface com a violência doméstica, ainda culpabiliza a entrevistada pela

situação enfrentada nas duas dimensões: pela violência doméstica vivida e por sua pobreza. Outro elemento a ser problematizado é o tempo para a emissão das medidas protetivas. Como relatamos, segundo a Lei Maria da Penha, o pedido deve ser enviado ao juiz em 48 horas para que o mesmo emita as medidas protetivas em até outras 48 horas. Aqui temos o relato de várias situações vividas por uma entrevistada durante os cinco meses em que esperou a emissão das medidas. Vale destacar que seu marido foi preso em flagrante e que ela estava severamente machucada. Aí eu tava voltando pra casa, no que eu tava voltando, meu marido me encontra, ele começou a me seguir de carro. Aí eu comecei a passar em farol vermelho, ultrapassei uma moto, quase atropelei um monte de gente, porque ele ficou me seguindo. E eu, aquele medo que eu tinha dele, como ele tentou entrar e o portão tava quebrado, então eu “acho que ele vai me matar”. Ninguém me deu protetivas naquele dia. Aí eu fui parar na fábrica, eu liguei, o irmão dele tava lá, eu falei “pelo amor de Deus, seu irmão tá me seguindo, eu tô morrendo de medo”. O irmão dele ligou ele falou “não, eu queria ver ela!” Magina que ele queria só me ver, ele queria me matar! Ele tava me seguindo que nem louco. E isso eu chorando, aos prantos, com meu filho junto. Cheguei em casa, meus irmãos tavam lá. E ele não tava. Aí depois ele viu minha família lá, ele voltou. E chegou querendo bater no meu pai e na minha mãe, “que que eles vieram fazer aqui?”. Meu pai falou [...] começou. “A gente veio fazer o que? Minha filha tá quase morta!” Porque eu tava muito assustadora, assim, o nariz inchadão assim, aí ele “eu só bati nela…”

Podemos perceber pelo relato que a usuária, sem poder contar com a proteção policial, recorreu à sua família para evitar que fosse morta. Porém, há graves implicações quando a família é a única responsabilizada pelo cuidado dos seus entes, a começar pelo fato de que ela não detém poder nem habilidades para compreender e enfrentar a questão, como é da competência do Estado. Neste caso observamos que a família não tinha a capacidade de demandar do agressor que ele não entrasse mais na casa de sua (ainda) esposa, recém agredida. O irmão “segurou-o” na sexta-feira, mas no dia seguinte ele entrou em casa tranquilamente. Na sexta-feira ele acabou também não dormindo lá. O irmão dele segurou pra não dormir. Quando foi no sábado, não sei como, a empregada abriu pra ele. Sábado cedo, né? Não tava dormindo, a gente tava acordado, mas tava lá em cima e eu não vi ele chegar. Aí ele começou

a gritar com as crianças “isso e aquilo outro” e a gente começou a tremer. Ele entrou em casa e a gente começou a tremer. Tremer mesmo, como se fosse filme de terror. Aí ele falou “vamo que eu vou levar vocês pro curso, vamo!” Aí meu filho “mãe, mãe, mãe” e eu chorando dentro do quarto, [...], aí levou eles. Meu filho, da escola, falou “mãe, faz a sua mala que a gente vai pra casa da vó”. Falei “tá bom, a gente vai mesmo” “na hora que você vier me buscar, já vem com as malas dentro do carro, pra gente fugir”. Aí eu tava fazendo as malas, a minha cunhada me ligou e falou “fiquei sabendo que tá fugindo, não foge.” Ela é psicóloga. Ela falou assim “olha, eu vou mandar meu marido aí pra ele te ver, porque ele não tá acreditando que é real, o que aconteceu com você.” O irmão dele chegou em casa e me viu, toda machucada começou a chorar. Ele falou, “eu não quero que você saia da casa, eu já volto”. Aí a mulher dele me liga novamente, ela falou “vem pra minha casa aqui, que a gente vai resolver algumas coisas, só que traz a carterinha do convênio“. Aí ela começou a fuçar pra ver se internava ou não internava numa clínica psiquiátrica. Ele chegou atrás de mim, nem cinco minutos depois. […] eles falavam que preferiam ver meu marido internado do que preso. Porque eles sabem que é um desequilíbrio.

Reconhecemos que, pelo fato da família estar isolada tentando resolver a questão da melhor forma possível, utiliza-se do conhecimento que possui para lidar com a situação. Longe de reconhecer a violência doméstica de gênero como um fenômeno social resultante da sociedade capitalista patriarcal em que vivemos, a família da entrevistada tratou do caso como uma doença. A Lei Maria da Penha versa sobre a violência doméstica de gênero e considera a complexidade de atores envolvidos em seu enfrentamento, ou seja, o acumulo de vários sujeitos envolvidos na sua criação e efetivação. Este esforço coletivo vem consolidar a mais profícua forma de enfrentar a violência, exatamente para que os indivíduos não tenham que lidar com este fenômeno de forma isolada e ineficaz. Quando observamos as respostas elaboradas pela família da entrevistada percebemos implicações muito graves: 

A família não reconheceu no Estado um ator importante no enfrentamento à violência. Isto se deu, provavelmente, por conta de um atendimento inconsistente da delegacia.



Isolada, a família enfrentou a situação da melhor forma que entendia moralmente: como uma doença. Este tipo de enfrentamento por desresponsabilizar o homem autor de violência demonstra-se ineficaz na superação desta situação.



Não foi possível garantir à entrevistada a segurança prevista na Lei, que só pode ser acessada através do Estado e não pela família.

Como podemos observar na sequencia do relato, a negligência da delegacia causou sérios riscos à entrevistada: Aí eu fiquei lá e ele ficou assim “eu quero que ela desça pra baixo”. Ele foi atrás de mim na casa do irmão dele, parecia negócio de bang bang: um corria, o outro corria. Aí minha cunhada ligou correndo pro marido dela vir correndo com outra pessoa pra segurar ele, e ele falou “não, eu não quero nada, não quero bater, não quero nada, só quero minha mulher” Aí ela falou “ele tá com medo, deixa ela lá em cima” “não, quero ela! Vamo pra casa” Aí meu cunhado “não, ela não vai” Finalmente a gente acabou indo,...[...] Isso os irmãos dele junto comigo. (…) Aí já comecei a tremer, o irmão dele falou “calma”. Sem ele saber eles já tinham ligado, providenciado tudo como ia ser a remoção, tinha que pagar a parte a remoção, tal. Vieram, ele ficou com medo e acabou indo. [...] Internou ele dois dias, ficou lá acho que dois ou três dias, só que minha família não confiou de me deixar lá. E falou “alguém vai vir fazer alguma coisa com você”. Meu pai foi me buscar no outro dia, foi na minha mãe, fiquei morando lá, fiquei dois meses, um mês e meio.

É notório pelo relato da entrevistada que a “internação por dois ou três dias” não resolveu o problema e sua família se viu obrigada a retirá-la de sua residência para sua segurança. Observamos que nada disso teria acontecido se a mulher tivesse recebido as medidas protetivas que garantissem ao agressor o afastamento do lar do agressor e da ofendida. A entrevistada relata que seu marido passou a morar na casa sozinho e a situação estava se tornando insustentável, de forma que sucumbiu, retornando à convivência com ele: Aí na primeira reunião que teve com os advogados eu não aguentei, eu vi ele e não aguentei. Comecei a chorar, não sei porque eu tenho essa reação. Depois disso ele foi ver meus filhos, nesse dia mesmo, na minha casa. E ficou chorando lá. Eu voltei pra casa, aí voltei pra casa e a gente ficou pior. Não ficou nem…como você diz que tem o ciclo? Não teve…porque ele… a gente ficou bem naquela noite. Ele voltou, eu achei, porque a gente tinha conversado antes de voltar, ele falou “não, a gente vai esquecer tudo e começar do zero, pra gente tentar começar” eu falei “ai, quem bom, ele mudou mesmo! Nossa, que bom!” [...] Ele ficou bem comigo dois dias, depois ele começou a me prender, não era pra mim sair, falei “mas por que?”, ele disse “trabalhar você não precisa, quero ver você cuidando dos seus filhos”. Falei “mas eu sempre trabalhei! Você que exigia isso!”, “não, você não vai mais trabalhar, vai ficar em casa, e eu quero que você coloque o véu e a burca, não é só o véu.” […] não, não o vestidão. Porque ele queria que eu usasse uma roupa tipo, morresse pra vida mesmo. Falei “não, você não manda

em mim, não vou usar.” Aí começou a discussão de novo. Então começou a me prender em casa, não deixava eu sair pra lugar nenhum, aí até que eu não aguentei de novo e fui pra esse amigo dele [...] e eu falei pra ele se ele podia me ajudar a arrumar um advogado porque eu não sabia o que fazer, que ele tava me prendendo em casa. E não me deixava sair pra lugar nenhum. Nenhum. Ele deu um jeito de arrumar uma perua pra trazer a [filha] pra eu não sair de casa. E eu ficava em casa. Mandou a empregada embora. E eu fiquei sozinha. Aí eu fui atrás deste advogado que ele me arrumou, que segundo ele, ia fazer tudo de graça pra mim até receber, ia me ajudar, só que ele só me ferrou esse outro advogado. Mas ele conseguiu pelo menos tirar ele de casa. Foi ele que fez isso.

Podemos perceber que a emissão das medidas protetivas de urgência poderiam, claramente, ter evitado que a entrevistada voltasse mais uma vez para a convivência com seu agressor. Ainda, ela não foi informada na DDM sobre a possibilidade de obter um advogado via Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Mais uma vez percebemos que ela foi vulnerabilizada, tendo sido enganada por esse advogado que hoje lhe cobra altas custas pela emissão das protetivas que deveriam ter sido solicitadas, sem custo, pela delegacia. Mediante a instauração das medidas protetivas as mulheres podem denunciar à policia o descumprimento das mesmas pelo agressor, o que resulta na sua prisão. Mais uma vez constatamos que há um grande desafio para que as protetivas sejam efetivadas: Minha irmã falou assim pra mim “leva a protetiva que eles vão ver que tem uma lei, que ele tem que cumprir essa lei” Eu queria fazer um outro BO de descumprimento das protetivas, e eles não quiseram fazer. Aí depois, tanto que eu falei “olha, vocês são tanto obrigados a fazer pra mim esse boletim”. Aí depois de muito vai-e-vem, acabaram fazendo.

Outra questão que observamos quanto à efetivação das medidas protetivas está no fato de que o agressor pode solicitar às outras pessoas que agridam a mulher, como podemos observar relato a seguir: Porque aí é que tá dotora, ele não vai, ele manda.(…)Ele tem outras pessoas, ...

Muitas mulheres, completamente descrentes da possibilidade de justiça, decidem abrir mão dos seus projetos e fugir para garantir sua sobrevivência:

Eu penso em ir embora daqui e ir pra minha terra, [...] que ao mesmo tempo, por outro lado eu penso que eu não vou conseguir comprar a minha casa como eu queria, do jeito que eu queria…só o meu sonho vai ser adiado. Porque aqui não vou confiar ficar. Graças a Deus já consegui comprar um pedacinho de chão lá,…quando eu vou começar a construir lá, acontece isso na minha vida! A minha vida parou! A minha filha é louca que eu vá embora, mas como eu vou embora? Eu vou sair daqui pra morar de aluguel! E aí eu vou gastar o que eu consegui construir aqui. E quando acabar? Então eu penso em tudo isso…é uma forma melhor eu desistir e ir embora: é!

As medidas protetivas representam um instrumento necessário nas situações de violência e devem ser acessadas como um direito e não um favor ou como último recurso diante da eminência da morte.

ENCAMINHAMENTOS E ARTICULAÇÃO COM A REDE Segundo a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres: O conceito de Rede de atendimento refere-se à atuação articulada entre as instituições/serviços governamentais, não-governamentais e a comunidade, visando à ampliação e melhoria da qualidade do atendimento; à identificação e encaminhamento adequado das mulheres em situação de violência; e ao desenvolvimento de estratégias efetivas de prevenção. A constituição da rede de atendimento busca dar conta da complexidade da violência contra as mulheres e do caráter multidimensional do problema, que perpassa diversas áreas, tais como: a saúde, a educação, a segurança pública, a assistência social, a cultura, entre outros. (SPM, 2005, p. 14)

Sendo assim, podemos compreender a importância da relação que as DDMs devem estabelecer com os demais serviços que atuam no enfrentamento à violência doméstica de gênero. A Norma Técnica dispõe que:

... é importante que os(as) profissionais de segurança pública conheçam os serviços disponíveis na sua localidade, não só por meio de panfletos, mas que façam visitas a esses serviços, que conheçam as instituições e pessoas que nele trabalham e que contribuam para a institucionalização e fortalecimento da Rede. (2010, p. 46)

O mesmo dado pode ser observado na Lei Maria da Penha, Capítulo III, artigo 11, inciso IV: V - informá-la de seus direitos e sobre os serviços disponíveis.

A Norma Técnica ainda refere que, alem de estarem articuladas com os serviços, as DDM devem fortalecer encontros da rede e capacitar seus parceiros:

Articular com a rede de serviços, privilegiando o encaminhamento das mulheres em situação de violência aos Centros de Referência; […] Participar ativamente da Rede de Atendimento, promovendo reuniões para fortalecimento das articulações entre as diversas unidades envolvidas e atividades de formação conjunta visando estabelecer um sistema de referência e contra referência para acompanhar as mulheres atendidas e os desdobramentos efetivados; (2010, p. 50)

Quatro entrevistadas, quando questionadas sobre os encaminhamentos que receberam das delegacias, relataram que: Nada, nada, nada... só ficou lá no papel...

Fizeram o boletim de ocorrência e mandaram eu ir numa delegacia lá em Santo Amaro, representar a queixa lá.

...só o BO e acabou, e voltei pra casa, como voltei da segunda vez que não foi feito o BO, mas também não me orientou que eu podia dar prosseguimento...

Não, pra lugar nenhum. (…) Eu perguntei pra ela referente à advogado, né? Como que eu faria tal pra conseguir um advogado pra tá me separando, se ela poderia me indicar o local, ela falou que não, que o único lugar, se eu não tivesse dinheiro pra pagar seria a OAB…(…) é, na def…., na OAB ela falou… Ela não falou defensoria. Ela falou que eu tinha que ir lá pra tentar um advogado de graça, né? Aí eu peguei e falei assim “ah, eu já fui com ele uma vez, fui na defensoria, que fica do lado da OAB” (…). Aí eu falei que lá eu não ia conseguir, porque ia juntar o meu salário com o salário dele, ia dar um salário enorme… e eu não ia conseguir esse advogado. E ele não ia me ajudar a pagar, né? Então, eu falei com ela que quando eu fui com ele, porque ele ia dar entrada na pensão dos filhos dele pra ele pagar, né? Quando eu fui com ele, falei, foi do lado da OAB, na defensoria, que fica do lado do Fórum, falei pra ela. Falei, mas lá ele não conseguiu ajuda do advogado, porque juntou o meu holerite com o holerite dele, entendeu? Então provavelmente eu também não vou conseguir. E um advogado particular ele também não vai me ajudar a pagar, né? Ela falou “ah, então, é lá mesmo que você tem que tentar, não sei o que...

Duas

entrevistadas

deram

depoimentos

positivos

quanto

aos

encaminhamentos recebidos, porém apenas um deles era de uma DDM: Aí fui pro hospital, as crianças foram comigo.(...) E o policial lá, sempre do meu lado, ele não saiu do meu lado. Enquanto nós fomos pra lá outra viatura foi buscá-lo. Aí o policial que me falou “olha, depois que você fizer tudo isso, vai e faz o corpo de delito, que é o IML, né? Aí depois, acho que de uma semana, eu fiz. Ainda tinha machucado! Eu fiquei um mês com a marca (…) o policial ficou assustado por isso aqui (apontando o rosto), porque sempre teve agressão, mas nunca foi assim, visível né? Como essa era muito visível, ficou todo mundo muito chocado.

Dessa forma, observamos que a articulação com a rede ainda demonstra ser um desafio para a DDMs, o que impacta diretamente na implementação na Lei Maria da Penha, dada sua natureza complexa, apoiada na interrelação entre diversos serviços. Dos sete casos estudados nesta pesquisa, observamos que nenhum dele foi encaminhado ao Centro de Referencia Casa Eliane de Grammont por alguma DDM. Ainda sobre a importância da rede, observamos na Norma Técnica que

A articulação da Rede de Assistência é medida necessária para o fiel cumprimento da Lei Maria da Penha. Nesse sentido, é fundamental que as Delegacias de Atendimento à

Mulher integrem ativamente da Rede. Algumas providências práticas podem ajudar na construção e articulação da rede: • Obter uma lista com o nome, endereço e telefone de todas as instituições sociais que compõem a Rede de Atendimento; • Visitar os serviços da Rede de Atendimento; • Afixar a lista em local visível para que as mulheres tomem conhecimento; • Manter a lista atualizada; • Participar de reuniões da Rede para troca de experiências e avaliação do funcionamento da Rede. (2010, p. 47)

Quando perguntamos às entrevistadas se elas haviam visto um quadro com tais informações ou brochuras disponíveis na delegacia obtivemos respostas negativas e destacamos as seguintes falas: Não, ela só falou que eu teria que pegar a informação e ir na delegacia próxima da minha casa.

Não. A única coisa que tinha, que eu fui lá com ele no dia 14, né, já nem tiha mais, era retratos, né, de pessoas procuradas. Homens e mulheres por vários tipos de crimes, né? Sequestro, essas coisas. […] Não, tem um outro papel lá que fala sobre o boletim de ocorrência eletrônico, né? […] Que vc faz através da internet. Pessoas desaparecidas, perda de documentos, essas coisas. […]Não, não tem nada nesse, nesse tempo eu tava até precisando de uma ajuda, assim, de conversar com alguém, eu tava muito triste, muito pra baixo, enfim, já não tava mais indo trabalhar, sabe? Mas não falaram nada pra mim.

Neste último relato percebemos claramente que a entrevistada expôs sua necessidade de um atendimento disponível em Centros de Referencia da Mulher, no entanto, apesar das inúmeras vezes em que foi à delegacia, chegou à Casa Eliane de Grammont encaminhada pelo médico de seu trabalho. É possível ponderar se a mesma não poderia ter superado a violência muito anteriormente caso tivesse acessado os serviços disponíveis da rede quando a situação que vivia não atingia níveis tão críticos.

A EXPECTATIVA QUANTO À DDM Para compreender melhor a efetividade do trabalho das Delegacias de Defesa da Mulher, perguntamos às entrevistadas o que elas esperavam do serviços e obtivemos as seguintes respostas: Eu queria que chamava ele, como diz, assim alguém da um chacoalhão nele bem dado, talvez ele acordava pra vida, porque ele fala: “vai na delegacia da queixa, chama a policia”.

...eu abri o BO pra ele ser processado, lá no dia se eu fosse na audiência com ele eu queria que ele repetisse o que ele falava pra mim lá... porque não adianta ele me dá um tapa na minha presença só comigo, e a minha palavra não ia valer nada contra a dele... Então, primeiro justiça. Então…(risos), quando eu fiz o segundo boletim de ocorrência, ela me falou “ó, não adianta você ficar fazendo boletim de ocorrência, em cima de boletim de ocorrência, porque não vai garantir vida, a sua vida”. E é verdade isso, eu sei. Mas a intenção é que, né, a polícia, a justiça, entendeu, chame ele, tenha uma conversa com ele e puna pra ele ver, entendeu, que… assim, eu acho que tem que ser o que tá na lei, independente do que está na lei. Eu já li a lei, mas não me lembro. Minha memória tá péssima, eu não consigo lembrar de um monte de coisa e não consigo. (…) Eu já li no papel que eu peguei aqui. Então, se ele fez, eu acho que ele tem que pagar, independente da gente tá bem ou não. Entendeu? Ele tem que pagar. E é uma coisa que ele não admitiu. A gente tava ótimo até o dia 14. Aí no dia 14 quando eu falei pra ele que ele tinha que ir lá, ele “é, mas eu não mereço!”. Falei “merece”, falei “porque você bateu”. Então agora você tem que pagar por isso.

Observamos pelos três relatos acima que as mulheres se reconhecem como cidadãs de direito, mas não tem muita clareza de quais são as atribuições dos atores disponíveis para auxiliá-la. Este fato merece destaque pelo sucesso em ver nas mulheres a determinação pelo direito de viver sem violência. Por outro lado, a inabilidade destas mulheres na concretização de sua ação nos aponta como uma possível conseqüência da sua socialização sob o jugo patriarcal. Ainda educadas para a vida doméstica, as mulheres não desenvolvem sua habilidade para o convívio com as diversas organizações presentes no espaço público. Percebemos que muitas delas se sentem amedrontadas pelo fato de não saberem “que serviço faz o que” e

como acessá-los. São recorrentes as confusões entre os nomes e

atribuições dos serviços, o que ainda nos coloca enormes desafios a serem enfrentados. Outra preocupação que elencamos trata-se do fato das mulheres esperarem que a policia “dê um jeito nele”. Alem desta expectativa ser inalcançável pelo seu teor imediatista, completamente oposto ao entendimento da violência como um fenômeno construído ao longo do tempo, histórica e socialmente, também revela a demanda por proteção a um poder superior, representante da lei e da ordem, no caso a policia. Percebemos, em muitas falas, que as mulheres esperam “que alguém resolva seu problema”, sem que precisem reconhecer seu papel nesta relação e reposicionar-se frente ao agressor (e possivelmente, por conseqüência, frente à sua vida). No entanto, percebemos que há a iniciativa de tornar pública a violência que sofrem no âmbito privado – o que consideramos uma medida de grande valia para o rompimento com a invisibilidade e desresponsabilização do Estado frente à este fenômeno. Consideramos também que, apesar das dificuldades, as mulheres ainda tem alguma crença na policia, visto que demonstram expectativas. Quando questionadas se a ida à delegacia lhe trouxe benefícios, algumas mulheres avaliaram que foi um evento ineficaz em sua vida, como o depoimento que segue: De nada. E dessa segunda vez que eu falei com a delegada sinceramente eu não quis ir mais pra delegacia, pra mim eu não volto, hoje assim, se eu tivesse que ir na delegacia, tivesse que ir em outra, ou se for uma coisa que eu esteja assim muito machucada, eu vou dizer assim: “a senhora lembra que eu vim uma vez aqui e a senhora falou assim assim e assim “... talvez eu vá pra isso...

Outras entrevistadas reconheceram algum êxito, como demonstramos a seguir: ...ele melhorou uns 30% depois que eu abri o BO... e ele tá com medo, porque minha cabeça, daquele exame lá que faz com negocinho na cabeça sabe, deu lesão no lado esquerdo e foi aonde ele me bateu e esse exame eu já tinha feito ele uma vez que eu tive convulsão ai então o médico pediu pra eu fazer... nunca deu lesão, não tinha dado nada, ai agora deu lesão do lado esquerdo...

Quando vi o marido ser preso eu senti um alivio, porque eu vi que foi feito justiça. Eu pensei “nossa, ainda bem que eu vim e ainda bem que ele ta fazendo algo que não me prejudique mais”, né? Ele ficou preso três dias só, que pena. Porque é réu primário. Aí o juiz deu um alvará de soltura pra ele. [...] Se o trabalho da delegacia diminuiu a sensação de medo? Sim. Assim, não totalmente. Mas ajudou muito a diminuir a violência na minha vida

Não achei, pra mim, não resolveu nada. Na verdade assim, é, numa parte sim, porque, por mais que eu achei que eles não fizessem nada, colocou um pouco de medo nele. Por mais que ele continua ameaçando, continua desrespeitando a ordem, ele tem mais medo. Ele fica se precavendo, não fica mais tentando que nem antes, agora ele sabe da realidade, que agora é um caso sério, por mais que a polícia não me deu assistência geral, mas no final pode dar alguma coisa.[...] A sensação de medo? Agora sim, antes não, faz mais ou menos assim que eu tô me sentindo sabe [...], eu tô podendo fazer alguma coisa. Tudo bem que eu tô sem grana, tô precisando dos outros, tô ferrada em todos os ângulos, mas eu tô podendo de um lado, tenho a justiça do meu lado, por mais que eles omitiram várias coisas, mesmo assim eu estou me sentindo mais segura porque tem alguma coisa [as medidadas protetivas]que tá me protegendo.

Me ajudou porque mesmo ele tendo saído bem de lá, ela tá, assim sabe, tá receioso, tá com certo medinho agora, sabe? (…) Exatamente, isso, se ele fizer novamente, entendeu, ele já sabe que eu não vou ficar apanhando que nem minha mãe apanhava, entendeu? Vou sim, de novo na delegacia. E ele sabe que, quanto mais, acho, que vai fazendo, sei lá…piora pra ele, entendeu? Sim, com certeza diminuiu a violência! Justiça foi feita! Exatamente, é! (…)

Percebemos que, apesar das dificuldades as DDMs foram importantes para estas mulheres. A existência das delegacias é profícua, porém a forma como o serviço está sendo prestado à população ainda está repleto de deficiências. Por meio dos relatos das entrevistadas acerca das atribuições das DDMs - o acolhimento, a lavratura de Boletim de Ocorrência, sua respectiva representação, a expedição das medidas protetivas e sua efetividade e a articulação com a rede observamos que o trabalho desenvolvidos dentro destas delegacias está deficitário, o que dificulta – para não dizer impossibilita – a efetivação da lei Maria da Penha. Analisando das condutas de trabalho dentro das delegacias também podemos considerar que o mesmo não está acorrendo sob a perspectiva de gênero. Reconhecemos este fato como um dado emergencial que demanda uma resposta

efetiva e urgente através da capacitação dos profissionais das mesmas, assim como prerrogativa do domínio desta perspectiva pelos funcionários a serem contratados. No entanto é preciso reconhecer que estas delegacias sofrem a mesma desvalorização dentro da corporação policial que as mulheres sofrem em seu cotidiano. O relatório do OBSERVE pontua como as DDMs são precarizadas quanto à infraestrutura, recursos físicos e materiais, localização e acesso, instalações físicas e espaços destinados ao atendimento, recursos materiais e recursos humanos. Embora a análise destes dados não seja o objeto deste estudo (estudamos aqui o reflexo destas condições de trabalho na percepção das mulheres usuárias) reconhecemos os desafios a serem enfrentados pelos profissionais de tais delegacias. Segundo o relatório do OBSERVE: O que se sabe é que as condições existentes constituem empecilho para a realização de um trabalho com melhor qualidade, mas não pode ser apontado como justificativa para o mau atendimento que é prestado para as mulheres nem se constituir como obstáculo para que tenham acesso a seus direitos. (2010, p. 51)

Ou seja, reconhecemos as dificuldades enfrentadas pelas DDMs em seu cotidiano, o que não a isenta de sua responsabilidade quanto à garantia de direitos à população usuária de seus serviços.

A FACE AUTORITÁRIA E REPRESSIVA DAS DDMs Culpabilizadas, ignoradas e subalternizadas, muitas mulheres relatam que a ida à delegacia tornou-se mais um capítulo de violência de gênero em sua vida. Dessa forma, podemos deduzir que as DDMs atuam contraditoriamente como coadjuvantes no aprofundamento da violência vivida pelas mulheres assim como atuma em prol de sua proteção. No entanto, como esse aspecto pode ser explicado? Partimos do pressuposto de que as DDMs representam uma face do Estado. Para a compreensão de Estado, recorremos a Marx que esclarece que o Estado emerge a partir das relações de produção e, portanto, não representa o bem

comum, mas a expressão política da estrutura de classe inerente à produção. Sendo assim compreendemos que a burguesia detém o controle sobre os meios de produção e também do Estado (que se constitui como seu braço repressivo). O modo de produção da vida material domina em geral o desenvolvimento da vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina sua existência, mas, ao contrario, é sua existência social que determina sua consciência. (MARX apud ARON, 2003, p. 200)

Por meio do legado marxista, aprofundamos a compreensão sobre a hegemonia burguesa, recorrendo ao conceito de Estado ampliado de Gramsci: ... o Estado em sentido amplo, com novas determinações, comporta duas esferas principais: a sociedade política (que Gramsci também chama de "Estado em sentido estrito" ou de "Estado coerção"), que é formada pelo conjunto de mecanismos através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência, e que se identifica com os aparelhos de coerção sob controle das burocracias executiva e policial militar; e a sociedade civil formada precisamente pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias, compreendendo o sistema escolar, as Igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, a organização material da cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comunicação de massa etc" (COUTINHO, 1989, p. 76)

Nossa sociedade é organizada por instituições que são responsáveis pela reprodução da vida em sociedade, por exemplo a família, a educação, a Igreja, a legislação, etc. Estas instituições são construídas, são históricas e portanto podem mudar. Elas foram estabelecidas porque em algum momento se mostraram capazes de garantir a sobrevivência do grupo que detinha hegemonia. Vivemos em uma sociedade cuja hegemonia é burguesa, portanto suas instituições reproduzem este modelo de sociedade. De acordo com Rocha (1997, p. 68):

Diferenciando-se do nível organizacional e dos dispositivos através dos quais se atualizam, instituições corresponderão às diferentes forças atravessadas nas práticas sociais, forças essas que evidenciam a complexidade das estruturas que ganham forma a cada momento.

As delegacias, como órgãos constitutivos do Estado estão sujeitas a estes movimentos. Segundo o relatório do OBSERVE (2010, p. 23): Estas delegacias “assumem feições variáveis conforme a vontade política da época e o jogo de forças do campo institucional do lugar.” (Fonseca, 2006: 165), o que apenas reforça a necessidade de pesquisas que investiguem estes contextos.

Historicamente a corporação policial brasileira é marcada por uma tradição repressiva, autoritária e antidemocrática, sustentada pelo argumento de garantir a ordem e cumprir a lei. A princípio, a polícia tratava de tudo que arriscasse a ordem publica especialmente as questões que exigiam o uso da força – característica que acabou por legitimar e institucionalizar. Sendo assim, a corporação policial se tornou um espaço privilegiado para o uso do poder em relação à sociedade civil, pois possui legitimidade para agir e, muitas vezes, acabou se tornando a única saída da população para solução de problemas com segurança. “A finalidade básica da polícia civil é a preservação da ordem jurídica, da paz social e a garantia dos direitos e liberdade do cidadão.” (SILVA 1992:105) Ainda que de sua inteira competência, as questões de violência doméstica sempre foram tratadas com menos importância comparado aos “verdadeiros casos de policia”. As brigas de marido e mulher infelizmente ainda são vistas como casos naturais em uma relação. O distrito policial, assim, constitui-se como um local predominante e tradicionalmente masculino e autoritário, com agentes investidos de poderes, sou seja, pela condição de ser homem, que é culturalmente considerado superior à mulher, e pela condição de ser representante da lei.

Podemos deduzir que a polícia está transversalizada pela ideologia capitalista patriarcal que, contraditoriamente, deveria ser combatida pelas Delegacias de Defesa da Mulher. Essa lógica permite compreender porque serviços que deveriam acolher as mulheres em situação de violência podem revitimizá-las. Segundo Meneghel (2008, p. 204), para que haja realmente o combate à violência doméstica por parte do Estado, é necessário que a perspectiva de gênero esteja presente em toda e qualquer ação.

A violência precisa ser tratada como uma violação dos direitos humanos que requer a intervenção do Estado. É necessário uma generificação do Estado, ou seja, o reconhecimento de que alguns cidadãos são homens e outros mulheres com necessidades sociais específicas que precisam ser respeitadas. Não podemos continuar formulando um conceito de justiça universal, que não contempla as especificidades das minorias: mulheres, negros, homossexuais, índios. Por isso, precisamos lutar para que o Estado respeite as diferenças e particularidades de seus cidadãos e cidadãs e os inclua em suas políticas.

Percebemos que os profissionais que atendem as mulheres vítimas de violência foram educados e socializados na cultura hegemônica capitalista patriarcal. A forma de trabalhar e de compreender a realidade está permeada por esses valores que acabam dificultando que os profissionais possam fazer o acolhimento e o atendimento sob a devida perspectiva de gênero. Além disso, percebemos que as organizações estatais – por terem sido criadas e por serem gerenciadas sob a lógica hegemônica capitalista patriarcal – constroem respostas muito tímidas às mulheres em situação de violência. Sendo assim, reconhecemos que as mulheres acabam tendo muita dificuldade de acessar os direitos que poderiam auxiliá-las a romper com a situação de violência. Contraditoriamente, observamos que as delegacias tem um local de destaque no enfrentamento à violência contra a mulher, tanto por suas atribuições como também pelo reconhecimento que a população tem de seu papel. Segundo o relatório do OBSERVE: As pesquisas de opinião têm mostrado que as Delegacias da Mulher

constituem a principal referência para a população e aparecem como o lugar que homens e mulheres recomendariam para as mulheres que estão sofrendo violência (IBOPE/AVON, 2009), figurando também como a primeira alternativa que as mulheres buscariam num caso de violência. (Pasinato e Santos, 2009) Soma-se o fato de que as DEAMS são o serviço mais conhecido em algumas comunidades, ou mesmo o único serviço existente, razão pela qual há grande afluxo de mulheres em busca de atendimento nestas instâncias. (2010, p. 23)

Desta forma, constatamos que muitas mulheres recorrem à delegacia porque conhecem apenas este serviço para protegê-la. Sendo assim, faz-se mister que a delegacia encaminhe a mulher para outros serviços disponíveis para auxiliá-la na superação da situação de violência. Concluindo, os aspectos tratados neste capítulo demonstram que as DDMs, através de omissões e negligências têm dificultado o acesso das mulheres à proteção e à justiça, restaurando seu direito de viver sem violência, embora representem um avanço significativo no enfrentamento da violência doméstica e, ainda, o recurso mais conhecido e utilizado na necessidade de proteção.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A presente pesquisa tem por objetivo compreender se as Delegacias de Defesa da Mulher em São Paulo tem atuado sob a perspectiva de gênero, objetivando a garantia de direitos das mulheres – através do estudo do relato de suas usuárias. Para tanto, no primeiro capítulo recorremos à compreensão das categorias gênero e patriarcado, tendo como pano de fundo o capitalismo. Esta aproximação faz-se necessária para fundamentar nossa compreensão sobre a constituição do fenômeno da violência de gênero – cujo enfrentamento é competência das Delegacias da Defesa da Mulher. Por meio desta compreensão torna-se clara a construção histórica e, portanto, mutável, da opressão das mulheres. Alem disso, apreendemos a dimensão universal do patriarcado e seu enraizamento na construção da sociabilidade humana. Desse modo, identificamos a importância da adoção da perspectiva de gênero em serviços que pretendem trabalhar no enfrentamento à violência doméstica de gênero. Ademais, o estudo dos depoimentos das mulheres nos permite reconhecer elementos desta opressão em seu cotidiano, não apenas nos eventos violentos. Sendo assim, compreendemos as particularidades desta opressão, que acontece de forma pulverizada no cotidiano, tendo inúmeras facetas e nuances – constituindo-se um grande desafio a ser enfrentado. No segundo capítulo compreendemos a constituição da violência doméstica de gênero, para a qual é necessário o entendimento sobre poder e subordinação. Partindo do pressuposto de que o poder é relacional e que, na verdade, as mulheres tem um protagonismo nas situações em que são oprimidas, visualizamos a possibilidade da constituição de caminhos para os rompimentos com esta opressão. Aprofundando a compreensão histórica dos papeis de gênero, discernimos os diferentes momentos do ciclo da violência e os desafios aos profissionais na materialização da perspectiva de gênero em sua atuação profissional. Com este estudo, compreendemos que a devida implementação do trabalho nas delegacias sob a perspectiva de gênero é um elemento central para o efetivo enfrentamento à violência contra a mulher. Observamos que somente desta forma reconhece-se a socialização desigual de homens e mulheres e delineia-se uma atuação do Estado com o objetivo de reverter esta construção histórica.

No terceiro capítulo resgatamos historicamente a criação das Delegacias de Defesa da Mulher, o que demanda relembrarmos a importância e o protagonismo do Movimento Feminista no Brasil e, especialmente, em São Paulo – local de criação da primeira DDM do mundo. Para

entender

as

atuais

atribuições

destas

delegacias

retomamos

historicamente às legislações que previamente delimitaram sua atuação para poder, enfim,

compreender

criticamente

a

atualidade.

Através

desta

análise

compreendemos a importância e o vanguardismo da criação da Lei Maria da Penha. Com o respaldo dos capítulos anteriores, concluímos que esta foi a única legislação inspirada na perspectiva de gênero para a compreensão da violência e na complexidade de atores de devem ser envolvidos para seu enfrentamento. Por fim, no quarto capítulo delineamos uma reflexão em relação à Norma Técnica de Padronização das Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres com base nos dados coletados junto às mulheres entrevistadas, a Lei Maria da Penha e o relatório emitido pelo OBSERVE – Observatório pela implementação da Lei Maria da Penha –, publicado em 2010 pela Universidade Federal da Bahia. Estes documentos nos deram parâmetros importantes sobre o que deveria ser esperado do trabalho destas delegacias, balizando a análise que estabelecemos. Através desta pesquisa compreendemos que ainda se constitui um grande desafio a construção do trabalho sob a perspectiva de gênero nas DDMs. Retomando a história, reconhecemos que a luta para que o Estado se responsabilize pelas violências perpetradas contras as mulheres nos ambientes domésticos vêm de longa data. Tal fato nos permite saudar a importância da criação destas delegacias, assim como ter uma legislação progressista como a Lei Maria da Penha. No entanto observamos que estas delegacias sofrem, dentro da instituição policial, a mesma opressão que as mulheres sofrem em suas casas. Sem autonomia e desvalorizadas, as DDMs padecem pela falta de profissionais qualificados para atender as mulheres em situação de violência, dentre outros problemas. Os avanços formais tem encontrado grandes entraves na implementação cotidiana, fazendo com que a política de enfrentamento à violência contra mulher apresente resultados pouco expressivos, quando não, retrocessos. A luta pelo acesso aos direitos e principalmente a uma vida sem violência constitui fundamental

relevância merecendo colocar-se entre as prioridades do poder público enquanto manifestação do acesso à cidadania e à igualdade. A preocupação primordial na criação, manutenção e fiscalização da correta aplicabilidade de políticas públicas capazes

de

garantir

os

direitos

assegurados

pela

Constituição,

porém

negligenciados pela população faz-se imprescindível. Portanto, o reconhecimento da importância da ação estatal é indispensável no que concerne ao avanço do quadro de luta contra a violência. Como resultado de nossos estudos compreendemos que a maioria das mulheres entrevistadas acredita que, apesar dos problemas, a delegacia lhe ajudou a superar a violência. Sendo assim, observamos que é preciso melhorar o trabalho desenvolvido pelas delegacias, nunca suprimi-los. Este ponto deve ser ressaltado porque, quando aprofundamos nosso olhar sobre as contradições desta política reconhecemos a contradição de classes que atravessa o Estado e a sociedade civil. Como debatemos ao longo deste trabalho, o patriarcado funciona muito bem conjugado com o capitalismo. Sendo assim, vivemos imersos na ideologia burguesa patriarcal que vem à tona, toda vez que um profissional não é devidamente capacitado na perspectiva de gênero. Infelizmente observamos que o Estado atua por meio de comportamentos evasivos, os quais muitas vezes representam o agravamento da situação de violência. Ademais, não se pode relevar a indispensabilidade da existência de órgãos e instituições qualificados, dispondo de atendimento multidisciplinar. É importante denotar que tais comportamentos evasivos não se tratam de um descuido ou falta de vontade política, como muitos dizem. Trata-se na verdade de uma batalha por projetos societários distintos. Aqueles que se beneficiam com o modelo exploratório capitalista trabalham na contramão da autonomização das DDMs e da emancipação das mulheres. Em contrapartida os sujeitos comprometidos com a construção de uma nova sociabilidade humana obrigatoriamente tem, na luta pelos direitos das mulheres, uma bandeira. Compreendemos através deste estudo que as mulheres em situação de violência encontram uma correlação de forças extremamente desfavorável às mesmas dentro das DDMs advindas da hegemonia capitalista patriarcal. No entanto essa correlação já esteve muito mais desfavorável e foi pela organização de sujeitos

coletivos, especialmente do Movimento Feminista, que os direitos das mulheres passaram a ser sancionados. Dessa forma, vislumbramos a constituição de uma arena de lutas onde a proteção das mulheres, assim como a garantia de autonomia e poder às DDMs se contrapõe ao modelo societário hegemônico. O projeto ético-político hegemônico da categoria das/os assistentes sociais estabeleceu seu comprometimento com a classe trabalhadora no marco do Congresso da Virada em 1979. Dessa forma, o trabalho da/o assistente social é fomentar a correlação de forças favorável à classe trabalhadora. Apoiadas/os na direção social proposta pelo projeto ético-político profissional, compreendemos a importância de que todo assistente social que atue no enfrentamento à esta questão colabore para que as mulheres tenham seus direitos devidamente assegurados, por meio do atendimento qualificado, sob a devida perspectiva de gênero. Os assistentes sociais ao trabalhar nas organizações devem transformar questões políticas, advindas de pressões sociais, em questões técnicas. Dessa forma, percebe-se que os assistentes sociais podem (e devem) oferecer à população respostas institucionalizadas à questão social. Observamos que estas respostas podem ser efetivadas em dois diferentes níveis. Em todos eles devemos ter como princípio fundamental a defesa intransigente dos direitos humanos e a recusa ao arbítrio e ao autoritarismo – próprios da sociabilidade burguesa. O primeiro nível desta materialização dá-se no contato direto com o usuário. É importante garantir que ele tenha acesso à todas as informações disponíveis sobre seus direitos, como efetivá-los e também como agir em caso de violação dos mesmos. A/o assistente social não deve decidir pelo usuário ou cerceá-lo, mas apenas impulsioná-lo a efetivar seus direitos. O segundo nível se daria na relação da/o assistente social com a organização em que trabalha, assim como as demais organizações da sociedade civil. Neste campo sua atuação também deve estar forcada na garantia dos direitos do usuário, de forma que cabe à ela/e denunciar falhas em regulamento, programas e políticas que não viabilizem a constituição dos direitos sociais, assim como a prática profissional corrupta, inapta ou violadora de direitos.

Reconhecemos como urgente a demanda para que os profissionais destas delegacias sejam capacitados para atender a essa demanda, bem como inserção do assistente social em seus quadros. Desta forma, observamos como capacitar os profissionais para o trabalho sob a perspectiva de gênero e desenvolver pesquisas aprofundadas sobre a efetividade do trabalho das delegacias se constituem como demandas urgentes que os assistentes sociais podem encampar nas DDMs. Por fim, entendemos que este estudo nos permite aferir um dos elementos que compõe a política de enfrentamento à violência doméstica de gênero – as DDMSs – sobre os quais há pouco conhecimento sistematizado. Sendo assim, reconhecemos que esta pesquisa contribuiu como uma aproximação ao controle e monitoramento da efetiva implementação da Lei Maria da Penha, através de sua porta de entrada: as Delegacias de Defesa da Mulher. Através da pesquisa aferimos que, devido ao arcabouço capitalista-patriarcal, estas delegacias têm encontrado dificuldades em desenvolver seu trabalho na perspectiva de gênero o que impacta negativamente na construção dos direitos das mulheres. No entanto é notório dentre as entrevistadas o reconhecimento da importância do trabalho desenvolvido dentro destas delegacias. Portanto, consideramos importante buscar reforços para consolidação das DDMs dada sua centralidade no cenário de enfrentamento à violência doméstica de gênero, na perspectiva da superação de uma ordem social capitalista e patriarcal, vislumbrando às mulheres um horizonte de emancipação isento de toda e qualquer manifestação de violência.

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