Virtù e Fortuna na Trajetória Política de Carlos Lacerda

June 24, 2017 | Autor: Giancarlo Zeni | Categoria: Brazilian Studies, Brazilian History, Populism, Brazilian Politics, Machiavelli, Getúlio Vargas
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Virtù e Fortuna na Trajetória Política de Carlos Lacerda1 Giancarlo Marques Zeni2

Resumo Esse artigo pretende averiguar se os conceitos maquiavelianos de virtù e Fortuna podem ser verificados na trajetória política de Carlos Frederico Werneck de Lacerda, e em que medida podem ter influenciado a frustração de sua ambição de se tornar Presidente da República. Tratando-se de um dos mais eminentes políticos e jornalistas brasileiros do século XX, Carlos Lacerda foi peça central na derrubada de dois Presidentes – Getúlio Vargas e João Goulart, através da liderança que exercia sobre a classe média brasileira nas décadas de 1950 e 1960. Para operacionalizar a observação proposta, apresentaremos as definições dadas por Maquiavel aos termos virtù e Fortuna e, em seguida, analisaremos a biografia de Carlos Lacerda bem como os dois momentos históricos supramencionados através da teoria maquiaveliana. Palavras-chave: Carlos Lacerda; virtù; Fortuna; Maquiavel; Getúlio Vargas; João Goulart; 1954; 1964.

Abstract This article intends to investigate if the machiavellian concepts of virtù and Fortuna can be found on Carlos Frederico Werneck de Lacerda's political career, and in what sense they might have influenced the frustration of his ambition to become President of the Republic. Being one of the most proeminent Brazilian journalists and politicians of 20 th Century, Carlos Lacerda was a central figure in the overthrow of two Presidents – Getúlio Vargas and João Goulart, through the leadership he exerced over 1950s and 1960s Brazilian middle class. In order to operationalize the proposed observation, we will present Machiavelli's definitions for the terms virtù and Fortuna and then analyze Carlos Lacerda's biography and the historical periods forementioned from the machiavellian theory sight. Key words: Carlos Lacerda; virtù; Fortuna; Machiavelli; Getúlio Vargas; João Goulart; 1954; 1964. 1

Ensaio apresentado como requisito para aprovação na disciplina Introdução à Política, do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná – UFPR, ministrada pelo Prof. Dr. Renato Monseff Perissinotto. 2 Graduando do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná - UFPR, [email protected] 1

1. OS CONCEITOS MAQUIAVELIANOS DE FORTUNA E VIRTÙ O Príncipe, considerado a obra-prima do florentino Nicolau Maquiavel, foi publicado pela primeira vez em 1513 e é praticamente um tratado de realpolitik, muitos séculos antes do termo ser criado (HASLAM, 2002). Neste livro, Maquiavel traz os conceitos de virtù e Fortuna, emprestados da Antiguidade Clássica e adaptados ao seu tempo conforme sua percepção, cuja compreensão é fundamental para o desenvolvimento deste trabalho (MACHIAVELLI, 1988). Ao falar em virtù, Maquiavel não pretende significar qualidades morais ou virtude cristã; pelo contrário, fala de qualidades que o príncipe precisa desenvolver para manter-se no exercício do poder. Isso importa, inclusive, ser capaz de tomar atitudes moralmente reprováveis, mas politicamente necessárias. Se pudéssemos, ainda que insuficientemente, sintetizar o significado de virtù, seria a capacidade do soberano de ter a disposição flexível de agir conforme a contingência demandar, com o objetivo maior de preservar seus domínios e exercer seu poder com eficácia (MACHIAVELLI, 1988; NEDERMAN, 2014). É preciso notar, no entanto, que as circunstâncias nem sempre são amistosas. Fonte de incerteza, insegurança, distúrbios e convulsionamento, a Fortuna maquiaveliana é a representação de todos os acontecimentos que, eventualmente, se opõem ao exercício do poder pelo príncipe. Podemos aí enumerar guerras, pestes, revoltas, traições, golpes, etc. Quem estiver despreparado será, inevitavelmente, derrotado; contudo, o príncipe que é, de fato, virtuoso será capaz de responder aos caprichos da Fortuna de maneira impetuosa e se perpetuar no poder (MACHIAVELLI, 1988; NEDERMAN, 2014). 2. QUEM FOI CARLOS LACERDA Carlos Frederico Werneck de Lacerda foi um dos mais eminentes jornalistas e políticos brasileiros do século XX. Nasceu em 30 de abril de 1914 no Rio de Janeiro, então Capital Federal, filho de Maurício Paiva de Lacerda e Olga Caminhoá Werneck. Durante a infância e juventude, Carlos Lacerda já demonstrava grande erudição e capacidade intelectual, qualidades que o acompanhariam durante toda a vida, entregando-se à leitura e tradução de obras de Filosofia e editando periódicos estudantis (DULLES, 1991).

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Matriculou-se em 1929 no curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Faculdade Nacional de Direito, abandonando-o em 1932 devido ao envolvimento com atividades políticas: tal qual o pai Maurício e os tios Paulo e Fernando de Lacerda, Carlos era sensível às questões sociais e ao sofrimento humano, o que o levou a se tornar militante comunista. Foi uma das figuras de destaque da esquerda carioca nos anos 1930, vivendo a militância com grande paixão; por suas próprias palavras, através do depoimento que prestou ao Jornal da Tarde em 1977, sabemos que considerava-se imbuído de uma missão messiânica (DULLES, 1991; LACERDA, 1977). Rompeu com o movimento comunista em 1939 e pouco tempo depois já era reconhecido como um dos maiores jornalistas e políticos de direita no Brasil, filiando-se à União Democrática Nacional UDN (DULLES, 1991). Desde os anos 1940 um opositor mordaz do governo de Getúlio Vargas, em 1953 Lacerda passou a protagonizar um programa na Rádio Globo; sua audiência, que era de alguns milhares na Tribuna de Imprensa, seu famoso jornal, passou a ser de milhões. Então já assumidamente conservador e um católico devoto, falava diretamente aos anseios moralizadores da classe média, dando voz à plataforma política da UDN e se tornando o líder carismático de uma parcela da população que se sentia abandonada pelo Governo trabalhista e escandalizada pela corrupção que, de acordo com a oposição, assolava o Brasil. Tornou-se um verdadeiro fenômeno e até mesmo patrono de um movimento político, o lacerdismo. Com o alcance de seu programa de rádio, sua retórica inflamada e suas atitudes tempestuosas, Lacerda acirrou os ânimos e dividiu o país entre getulistas e lacerdistas (McCANN, 2003). 3. O ATENTADO DA RUA TONELERO E O SUICÍDIO DE GETÚLIO Um dos principais jornais do Rio da década de 1950 era o pró-getulista A Última Hora, de Samuel Wainer. Através de denúncias, promovidas por Lacerda, de que haveria ligações excusas entre Wainer e o Governo, o Congresso abriu uma Comissão Parlamentar de Inquérito que acabou encaminhando acusação formal de corrupção contra Wainer e diversos membros do alto escalão governamental, entre eles Lutero Vargas, filho de Getúlio. A essa altura, a opinião pública já considerava Wainer culpado e Getúlio indissociavelmente ligado às redes de corrupção que agiam dentro do Governo (DULLES, 1991; McCANN, 2003). Getúlio, por seu turno, não fez aparições públicas para se defender ou defender Wainer. Enquanto isso, aliados do Presidente tramavam em segredo contra Lacerda. Na noite de 5 de agosto de 1954, um atentado a tiro em frente a sua residência na Rua Tonelero, em Copacabana, feriu-o na

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perna e matou seu guarda-costas, o major-aviador Rubens Vaz, transformado em mártir dos lacerdistas (DULLES, 1991; LACERDA, 1977; McCANN, 2003). Militares lacerdistas criaram uma Comissão Policial-Militar de Inquérito para averiguar a autoria do crime e chegaram ao tenente Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal e guardacostas particular do Presidente. Até hoje não é claro se Fortunato agiu motu proprio ou em conluio com Lutero ou Benjamin Vargas, respectivamente filho e irmão de Getúlio, mas o fato é que confessou ser o mandante do crime (DULLES, 1991; LACERDA, 1977; McCANN, 2003). Instalou-se um pandemônio. Os fatos eram reproduzidos e ampliados por Lacerda no rádio, e a permanência de Getúlio no poder se tornou insustentável. Pressionado, Vargas promoveu uma conferência com as lideranças militares nas primeiras horas do dia 24 de agosto de 1954, e negociou sua renúncia. A notícia chegou rapidamente a Lacerda, que a transmitiu, jubiloso, aos seus milhões de ouvintes. Naquele momento, era aclamado por seus partidários e parecia que havia pavimentado seu caminho à Presidência (CUNHA JÚNIOR, 2014; LACERDA, 1977; McCANN, 2003). Mas Lacerda veria suas pretensões destruídas em pouco tempo. Às 8h30 da manhã, a Rádio Nacional transmitia a notícia do suicídio de Getúlio Vargas. Rádios do país inteiro transmitiam, sobre um fundo musical fúnebre, a leitura dramática da Carta-Testamento. O holocausto de Getúlio mudou rapidamente o contexto político nacional, causando comoção e fúria em toda sua massa de apoiadores – a classe trabalhadora urbana, muito mais numerosa que a classe média lacerdista. Multidões nunca vistas foram às ruas chorar a morte de Getúlio e pedir a cabeça de Lacerda, que precisou ser escondido das turbas furiosas pelos militares da Aeronáutica (DULLES, 1991; LACERDA, 1977; McCANN, 2003). 4. O APOIO AO GOLPE DE 64 E O ROMPIMENTO COM OS MILITARES As eleições marcadas para 1955 se realizaram normalmente, conforme o calendário previsto, mas as pretensões de Lacerda à presidência haviam sido destruídas. No lugar, elegeu-se Deputado Federal. Juscelino Kubitscheck de Oliveira, herdeiro político de Getúlio, foi eleito Presidente da República, tomando pose em 1956. Juscelino manteve Lacerda afastado do rádio durante todo seu mandato, temeroso de seu golpismo, só permitindo seu retorno ao ar em 1960 (CUNHA JÚNIOR, 2014; LACERDA, 1977; McCANN, 2003). Falando novamente às massas, Lacerda atacava o governo do Presidente João Goulart, “Jango”, que havia assumido em razão da renúncia do udenista Jânio Quadros, sucessor de Juscelino. Acusava Jango de comunista, em razão do caráter reformista e social de seu governo. 4

Governador do Estado da Guanabara, Lacerda contava com índices altíssimos de popularidade em função das grandes obras que estava promovendo, como a do reservatório do Guandu, que acabou com a falta d'água sistêmica que fustigava o Rio. Em 1963, já havia lançado sua candidatura à Presidência da República, e sua vitória parecia certa (LACERDA, 1977; McCANN, 2003). Embora não se possa dizer que o golpe de Estado que derrubou Jango em 31 de março de 1964 tenha pegado Lacerda de surpresa, pois cerca de um ano antes já havia sido convidado a participar dele por Ruy Mesquita Filho, ele se recusou a tomar parte na conspiração. Contudo, devido à promessa dos militares de que aquele seria um governo de transição, abraçou o novo regime, festejando o fato do Brasil ter se livrado do que chamava de ameaça comunista, e guiou sua multidão de seguidores a fazer o mesmo. Sem querer, foi alçado a líder civil do regime militar (LACERDA, 1977; McCANN, 2003). Em pouco tempo, porém, começaram as críticas ao Governo do general Castelo Branco, atacado com a mesma intensidade com que atingiu e derrubou seus inimigos no passado; demonstrando pouca tolerância, no entanto, e com vistas específicas de dar fim à escalada de Lacerda rumo ao Planalto, Castelo Branco cancelou as eleições previstas para 1965, ocasião que impeliu Lacerda a romper formalmente com os militares e procurar Jango e Juscelino, antigos opositores, para a articulação da Frente Ampla, iniciativa de oposição que buscava a redemocratização do país (CUNHA JÚNIOR, 2014; LACERDA, 1977; McCANN, 2003). A Frente Ampla fracassaria, e em 13 de dezembro de 1968 o Governo militar baixava o Ato Institucional n.º 5, que, entre outras medidas, pôs fim aos partidos políticos e às eleições diretas para Presidente da República. Os direitos políticos de Carlos Lacerda foram cassados logo em seguida, aos 30 de dezembro do mesmo ano, pondo fim à sua carreira política. Morreu em 21 de maio de 1977, no Rio, conduzindo sua editora Nova Fronteira, sem ter exercido outros cargos públicos eletivos ou de confiança (CUNHA JÚNIOR, 2014; LACERDA, 1977; McCANN, 2003). 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Parece unânime entre seus biógrafos e mesmo entre seus opositores que Carlos Lacerda era um homem inteligentíssimo, culto, de imensa capacidade intelectual e ainda maior capacidade de mobilização política, como demonstrou ao derrubar, direta ou indiretamente, dois Presidentes da República e posteriormente, frente ao Governo do Estado da Guanabara, ao realizar obras de infraestrutura que ainda hoje são fundamentais para a cidade do Rio de Janeiro, como o túnel Rebouças, o aterro do Flamengo e o reservatório do Guandu.

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Não nos parece possível afirmar, entretanto, que tenha sido um político virtuoso, no sentido maquiaveliano do termo. Além de ser demasiadamente sincero e tempestuoso em suas manifestações (conforme suas próprias palavras), não preservando espaço para a flexibilidade, caso a contingência do contexto demandasse, Lacerda era uma figura de reconhecida lisura – nunca houve qualquer rumor de envolvimento em qualquer atividade escusa – e um paladino da moral. De acordo com a bibliografia consultada, não parece ter tomado ou ser capaz de tomar atitudes que considerasse imorais ou antiéticas, mesmo que elas o levassem a concretizar seus planos, como ao recusar o convite a participar da conspiração que derrubaria Jango, de quem era um opositor inflamado (CUNHA JÚNIOR, 2014; LACERDA, 1977). Também não resistiu às investidas da Fortuna, que por duas vezes lhe bloqueou o caminho à Presidência da República ao alterar dramaticamente o cenário político nacional. Fosse um príncipe maquiaveliano dotado de virtù, teria respondido na mesma intensidade, encontrando meios de firmar sua posição e efetivar seu poder. Sendo antes um cavaleiro quixotesco e moralista, um cruzado, nas palavras de Dulles (1991), seu maior biógrafo, preferiu se retirar de cena constrictamente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CUNHA JÚNIOR, M. O charmeur espinafrador. O Estado de São Paulo. São Paulo, p. E8, 27 abr. 2014. Disponível em: . Acesso em: 04 jun. 2015. DULLES, J. W. F. Carlos Lacerda, Brazilian Crusader: Volume One: The Years 1914–1960. Austin: University of Texas Press, 1991. HASLAM, J. No Virtue Like Necessity: Realist Thought in International Relations since Machiavelli. Londres: Yale University Press, 2002. LACERDA, C. Depoimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. MACHIAVELLI, N. (1513). SKINNER, Q., PRICE, R. (Ed.). The Prince. Cambridge: Cambridge University

Press,

1988.

Disponível

em:

. Acesso em: 03 jun. 2015. McCANN, B. Carlos Lacerda: The Rise and Fall of a Middle-Class Populist in 1950s Brazil. Hispanic American Historical Review, v. 83, n. 4, p. 661-696, nov. 2003.

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NEDERMAN, C. Niccolò Machiavelli. In: ZALTA, E. N. (Ed.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy

(Winter

2014

Edition).

Disponível

em:

. Acesso em: 05 jun. 2015.

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