VISITA GUIADA A UM LEQUE - Carlos III de Espanha

May 22, 2017 | Autor: Maria Luísa Pedroso | Categoria: Spain (History), Jesuits, Madrid, Fans
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Descrição do Produto

VISITA GUIADA A UM LEQUE

Carlos III de Espanha envergando traje e atributos da Ordem de Carlos III

CARLOS III

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Este importante leque de encomenda, alegórico e topográfico, decorado com cenas alusivas ao reinado de rei D. Carlos III de Espanha, há muitos anos à minha guarda, pareceu-me, um ano após o tricentenário do nascimento daquele rei, merecer ser compartilhado de forma mais abrangente, retirando-o de uma linda caixa, onde habitualmente faz companhia a outros que igualmente figuraram em grandes exposições internacionais, hoje descansando de séculos a servir grandes senhoras da nobreza espanhola. Pertenceu em determinada altura à 10ª duquesa de Montellano e fez parte da «Ve. EXPOSITION DES ARTS SOMPTUAIRES - EVENTAILS D'ESPAGNE ET DE FRANCE DU XVIIe A NOS JOURS», efectuada em 1958 em Cannes, fotografado no respectivo catálogo e descrito como:

«25- Eventail français et espagnol. Monture d'ivoire rehaussée de polychromie, aux armes d'Espagne et de France. Sur la feuille en peau, Charles III et Louis XV concluant «le Pacte de Famille». XVIII siécle (Voir la reproduction planche II). Collection de S. E. la duchesse de Montellano.

3 Esta descrição e a etiqueta com o número de identificação ligada a fitas de gorgurão de seda, com as cores de Espanha e de França, que este meu leque ainda conserva, tal como a fotografia a cores entre as que destacaram 18 dos 267 leques que constavam desta mostra, demonstram que se trata do objecto referido no catálogo, ressalvando no entanto que a descrição, por si só, não permitiria garantir esta identificação, já que nela não consta nem uma palavra sobre o reverso, que aliás bem o mereceria, visto ser lindíssimo e de interesse topográfico. Este leque já pode também ter sido exposto na «EXPOSITION DE EL ABANICO EN ESPAÑA» em 1920, catalogado da seguinte forma: « 121. Abanico español com varillage de marfil pintado y tallado com assunto central y pequeños escudos de la Casa de Borbón; país com tres medallones alusivos a sucessos del reinado de Carlos III, el principal com la firma de la expulsión de los jesuítas, y los otros dos com la cesión de la corona de Nápoles y el Pacto de Família.»

Pertencia então à condessa de Caudilla. Por esta descrição parece efectivamente dele se tratar, mas visto não estar fotografado, não se deve excluir a possibilidade da existência de um exemplar semelhante.

Anverso e Carlos III

Origem- Europeia. Folha- Simples, de cabritilha. Armação- Constituída por 22 varetas + guardas de marfim vasadas, com pintura policromada. Montagem à inglesa com flechas de cartão. Perno com rosca e cano de metal dourado. «Rivet» encastoado com falsos diamantes. Comprimento-30 cm.

4 A folha apresenta no anverso uma gravura colorida, a aguarela e guache, com três cenas evocaticas de factos relevantes da vida do rei D. Carlos III de Borbón, encimadas por cartelas que têm como denominador comum a palavra Paz e emolduradas com cercadura de flores pintadas à mão que muito embelezam o conjunto. Como acontece frequentemente em leques deste tipo, os personagens nesta gravura estão numerados com intenção, que parece óbvia, de serem associados a uma «Explicação», que em certos casos aparece impressa no anverso, se bem que mais frequentemente no reverso, o que não ocorre neste caso, estando alguns números até disfarçados pelo colorido. Perdeu-se assim a possibilidade de uma leitura mais fácil da cena representada. Fazendo juz à importância do tema, o reverso foi muito bem aproveitado, com a pintura de duas magníficas vistas de Madrid e ainda de uma chinesice, ou «chinoiserie», na parte central, motivo este ainda frequente em leques do último quartel do século XVIII.

Vitória de Bitonto sob o Comando do Conde de Montemar, General das tropas de Espanha em Itália.

O personagem principal, D. Carlos, nasceu em Madrid a 20 de Janeiro de 1716, filho de D. Filipe V, primeiro rei da dinastia «Bourbon» de Espanha (Borbón) e de sua segunda mulher, a rainha Isabel Farnésio. Ao jovem infante foi reconhecido, por direito de herança materna, desde 1731, o título de duque Soberano de Parma, Placência y Guastalla. Em Setembro de 1732, era recebido triunfalmente em Parma, ansiosamente aguardado pela avó materna, a duquesa Doroteia, e no mês seguinte deslocou-se a Placência para aí tomar posse do ducado correspondente. Pouco tempo viria a desfrutar por essas paragens do prazer da caça, prática que muito apreciou toda a vida, pois em breve seria incumbido pelo pai de uma importante missão, a de recuperar para a coroa espanhola os reinos de Nápoles e da Sicília. Abandonou por isso os seus ducados, deixando-os ameaçados por novas disputas entre a Áustria e Espanha, para iniciar, em Fevereiro de 1734, a marcha que o levaria a ocupar o trono das Duas Sicílias, acompanhando um exército espanhol que demonstrou grande superioridade em relação às forças adversárias alemãs principalmente porque a estas nunca chegaram os essenciais reforços austríacos.

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Foi já na fase final dessa campanha, quando se travaram batalhas decisivas, que pela primeira vez, o então ainda duque soberano de Parma, Placência e Guastalla, pôde observar as suas tropas em combate, na batalha de Bitonto, comandadas pelo general Montemar. Vencida esta batalha seguirse-ía a rendição da praça forte de Gaeta, na Sicília. Após estas vitórias Filipe V, renunciaria, em 22 de Abril 1734, aos reinos de Nápoles e da Sicília, a favor do filho, D. Carlos. Cumprida deste modo a missão de que fora incumbido seria, em 3 de Julho de 1735, coroado rei na catedral de Palermo, com o nome de Carlos VII. Representações de Carlos de Borbón na batalha de Gaeta

F. Solimena

Leque

Para melhor interpretar a cena alegórica que será apresentada em seguida, penso interessante relembrar que os reinos de Nápoles e da Sicília, fizeram parte da herança espanhola de D. Filipe V, mas uma claúsula acordada no Tratado de Utreque (1713), que pôs fim à Guerra da Sucessão de Espanha decidida em favor deste rei, obrigava-o contudo a renunciar a quaisquer direitos ao trono de França, proibindo ainda que aqueles reinos pudessem voltar a ser submetidos à Coroa Espanhola. A Espanha perdera também nesta guerra as suas outras possessões na Europa bem como Gibraltar e Menorca que passaram para o domínio da Grã-Bretanha. O sul dos Países Baixos, Milão e os reinos de Nápoles foram dados à Áustria pelo mesmo Tratado, pelo qual também o duque de Sabóia obtinha o título de rei da Sicília. Em 1720, depois da Guerra da Quádrupla Aliança, este duque viria no entanto a ceder a Sicília à Áustria, recebendo em troca o trono da Sardenha.

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À esquerda do anverso Carlos VII, rei das Duas Sicílias D. Carlos, como já se disse, foi coroado rei de Nápoles e da Sicília como Carlos VII. Durante quase um quarto de século foi um monarca italiano e em Nápoles lhe nasceram, do casamento com D. Amália da Saxónia, filha primogénita do rei Augusto III da Polónia e príncipe eleitor da Saxónia, os seus treze filhos.

«Por el Amor de la Paz»

D. Felipe V, com os símbolos da sua realeza, coroa de Espanha, longo manto de arminho e espada, ostentando ainda o Colar da Ordem do Tosão de Ouro, entrega a seu filho, D. Carlos que ostenta a banda azul e insignía da Ordem de «Saint Esprit», a coroa do reino das Duas Sícílias.

7 A cena anterior é uma alegoria a dois acontecimentos ocorridos em datas e países diferentes:

1º- O dia da partida para Itália do infante D. Carlos, a 20 de Outubro de 1731, quando pela manhã «...se celebrou a cerimónia de despedida no salão dos Embaixadores do Alcazar de Sevilha, perante a corte ali reunida. O infante, de joelhos, recebeu a benção de seu pai e rei. D. Filipe V, fez-lhe o sinal da cruz na fronte e cingiu-lhe a espada que recebera de seu avô Luís XIV, ao despedir-se quando da sua partida para Espanha.»1 A espada do rei Luis XIV, «l´épée d´or», denominada «Joyeuse», fora-lhe transmitida como símbolo da defesa do país e da religião. Estiveram pela última vez em presença um do outro nesta cerimónia e não quando da Cessão da coroa do reino das Duas Sicílias, visto se encontrarem em países diferentes, mas os enigmas alegóricos permitem estas liberdades... 2º- Refere-se também ao dia 22 de Abril de 1734 em que D. Filipe V, após a reconquista dos reinos de Nápoles e da Sícília, a eles renunciou a favor de seu filho D. Carlos. A cartela «Por el Amor de la Paz» significa, em minha opinião, não só o fim do conflito mas também que D. Filipe V, primeiro rei da dinastia espanhola de Borbón, entendia desde há muito que o equilíbrio internacional impunha a cessão destes reinos a favor de seu filho. O velho ditado que diz «History does not repeat itself, but it does rhyme», comprovar-se-ía quando a História rimou em 1759, já que D. Carlos antes de partir para aceder ao trono de Espanha, abdicou a favor do terceiro filho, o Infante D. Fernando, de oito anos de idade, deixando-o com tutela a cargo de um conselho de regência, onde imperava a vontade do grande ministro Bernardo Tanucci, por quem tinha uma enorme amizade que veio a provar-se inabalável com o decorrer do tempo.

Pormenor de uma pintura de A. Joli D. Carlos de Borbón renuncia à coroa de Nápoles-Sicília a favor do filho. À direita, o secretário de Estado, Marquês de Tanucci 1 La vida y la época de Carlos III- Maria de los Ángeles Pérez Samper. p. 23

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«La Paz nos Reconcilia»

Alegoria ao Terceiro Pacto de Família e ao Tratado de Paris

Luis XV de França

Jorge III da Grã-Bretanha

Carlos III de Espanha

9 Em primeiro plano, à esquerda, o rei de França, Luís XV, (6), de casaca azul onde se destaca a flor de lis, símbolo dos reis de França, dá um passo em direção ao rei Carlos III de Espanha, (4), de casaca vermelha, com a Ordem do Tosão de Ouro e a de «Saint Esprit», que faz menção de o acolher. Um génio alado, esvoaçando sobre uma faixa onde se lê «La Paz nos Reconcilia», prepara-se para colocar coroas de louro sobre as cabeças do rei Jorge III da Grã-Bretanha, com traje amarelo dourado, situado num plano mais recuado, representante de um dos lados beligerantes e do rei Carlos III de Espanha representante do outro. Trata-se de uma alegoria ao Tratado de Paris e se este leque não representasse um «Elogio em vida» do rei de Espanha, seria naturalmente sobre a cabeça do rei Luís XV, como chefe da Casa de «Bourbon» que a coroa seria colocada, mas visto o génio ter somente duas mãos o rei de França ficou esquecido... Na alegoria da cena anterior são evocados dois acontecimentos relevantes na História da Europa: 1º-O Terceiro Pacto de Família entre as quatro Casas reinantes de «Bourbon» (França, Espanha, Nápoles-Sicília e Parma-Placência), assinado a 15 de Agosto de 1761, que procurava reforçar as suas alianças na luta contra a Inglaterra, negociado em nome do rei de França, Luís XV e do rei D. Carlos III de Espanha, respectivamente pelo ministro Choiseul e pelo embaixador de Espanha, marquês de Grimaldi2. 2.º O Tratado de Paris de 1763 que pôs fim à Guerra dos Sete Anos3.

2 Pablo Jerónimo Grimaldi y Pallavacini (Génova, 1710-1789) Grande de Espanha, condecorado com o Tosão de Ouro, político e diplomata, embaixador de Espanha em Paris, que ajudou a renovar o Pacto de Família. Mais tarde foi ministro de Estado e ao lado do marquês de Squilache ajudou a combater o conhecido motim. Desde 1763 foi secretário de Estado, cargo de que foi destituído em 1776, para ser nomeado embaixador em Roma, sucedendo-lhe José Moñino y Redondo, Conde de Floridablanca. 3 Em 1756 tinha tido início uma guerra entre dois blocos políticos, o da França continental e o da Inglaterra marítima. Portugal tentou manter a posição de neutralidade desde o início. Instado a aderir ao terceiro Pacto de Família, não aceitou fazê-lo, apesar de o exército franco-espanhol se encontrar já na fronteira de Trás-os-Montes, sendo então invadido e tomadas Miranda, Bragança e Chaves. A ajuda dos nossos tradicionais aliados chegou finalmente em Junho 1762, com o contingente inglês tendo vindo o conde de Lippe, notável militar alemão, nascido em Londres, que comandou o exército nesta guerra e que viria a passar ao serviço do exército português, que reorganizou profundamente. Este conflito (9 de Maio a 24 de Novembro de 1762), a que foi chamado guerra do Mirandum ou do Pacto de Família, ficou ainda conhecido na época por «guerra fantástica», devido à fraca convicção das intervenções militares. D. Carlos III era afinal irmão da rainha portuguesa, D. Mariana Victória, à qual o uniam fortes laços afectivos. A verdadeira guerra, a Guerra dos Sete Anos, decidiu-se noutros palcos e terminaria em 1763.

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Centro «Yo doy Paz a la Europa»

1.º- O rei Carlos III soergue-se do trono, onde está pousada a coroa real, usando longo manto de arminho e espada, símbolos da realeza, calção e casaca amarelo dourado, colar da ordem do Tosão de ouro e a insígnia da ordem de «Saint Esprit» recebendo da mão do Marquês de Grimaldi, outra alegoria, visto o marquês à data da assinatura do documento de ratificação dos preliminares do Tratado de Paris («Los preliminarios ratificados»), que poria fim à Guerra dos Sete Anos se encontrar fora de Espanha. Os preliminares deste tratado foram concluídos e assinados em Fontainebleau no dia 3 de Novembro de 1762 e as ratificações a 22 do mesmo mês. O Tratado de Paris foi assinado entre as coroas de França e Espanha de uma parte e da Inglaterra e Portugal da outra pelos ministros autorizados a este fim: pela França, o duque de Choiseul e pela Espanha, o marquês de Grimaldi e e pela Grã- Bretanha , o duque de Bedford.

Marquês de Grimaldi

11 Em segundo plano, dois personagens parecem envolvidos numa comunicação que desperta profunda atenção no que se situa à direita, possivelmente representando duas grandes figuras políticas deste reinado: à direita, o grande estadista, militar e diplomata, Conde de Aranda 4, na posição protectora do rei e da coroa de Espanha, com casaca vermelha, espada e tricórnio sob o braço, e à esquerda o Conde de Floridablanca5. Ambos faziam parte da linha regalista que apoiou a expulsão dos jesuítas e da corrente política denominada os «Aragoneses», chefiada pelo Conde de Aranda, oposta aos «Golillas» do marquês de Grimaldi. 2.º- O rei pisa um outro documento onde se lê «Compa...», alusivo à expulsão da Companhia de Jesus dos seus domínios. A 20 de Fevereiro de 1767, Carlos III de Espanha assinou o decreto de expulsão dos jesuítas, ordem que foi executada primeiramente em Madrid, durante a noite de 31 de Março e a 2 de Abril já abrangeria todo o território. Já fez, neste ano de 2017, 250 anos que esta decisão foi tomada.

10.º Conde de Aranda

1.º Conde de Floridablanca

4- Pedro Pablo Abarca de Bolea (1719-1798), 10.º Conde de Aranda, militar, diplomata e grande estadista, serviu a dinastia Borbón, de D. Filipe V a D. Carlos IV. Chefe do partido aragonês. Participou em três episódios relevantes do reinado de D. Carlos III : O motim de Squilache - O Conde de Aranda ocupou a presidência do Conselho de Castela em consequência deste motim, tendo resolvido de forma brilhante o impasse criado pelas concessões que o rei outorgara tão a contragosto, que o tinha levado a sair de noite de Madrid para o Palácio Real de Aranjuez, não manifestando vontade de regressar. Conseguiu abolir essas concessões e convencer o rei a retornar a Madrid. A expulsão dos jesuítas - Abriu uma pesquisa secreta destinada a recolher provas da intervenção dos jesuítas no motim de Squilache. Guerra da Independência dos Estados Unidos- Embaixador em Paris conseguiu negociar um Pacto com a GrãBretanha (1783), obtendo a devolução da Flórida Oriental e Ocidental, parte das costas da Nicarágua , Honduras e a colónia de Providência. Reconheceu a soberania inglesa nas Bahamas e não conseguiu recuperar Gibraltar. 5 José Moñino y Redondo, I.º Conde de Floridablanca - Murcia, 1727- Sevilha, 1808 Político, advogado, primeiro ministro no 1º governo reformista do reinado de Carlos III. Ascendeu ao importante cargo de fiscal criminal do Concelho de Castela, que controlava, durante o século XVIII, praticamente todo o poder do reino. Defensor da corrente regalista que defendia o reforço do poder régio frente a outros poderes, entre os quais o da igreja, serviu junto de Pedro Rodriguez Campomanes, Conde de Campomanes, ministro das Finanças no primeiro governo chefiado por José Moñino y Redondo e apoiou expulsão dos jesuítas.

12 Após o falecimento de seu meio irmão, D. Fernando VI, veio Carlos III a suceder-lhe no trono de Espanha, visto o rei e a rainha, D. Maria Bárbara de Bragança, irmã do rei de Portugal, D. José I, não terem tido herdeiros. Comenta-se, a propósito, a falta de beleza desta rainha, mas é o reconhecimento da sua nobreza de alma, inteligência e cultura, que mais justamente merece perdurar. D. Carlos foi muito apoiado pela determinação da mãe, Isabel Farnésio, segunda mulher de Filipe V, dotada de grande ambição e férrea vontade, que tentou por todos os meios alcançar o principal objectivo que a movia: ver os filhos reinarem. O rei decidiu regressar a Espanha, donde partira em 1731, por via de Barcelona, aproveitando a longa e lenta viagem que o separava da capital para ir tomando contacto com os novos súbditos, entrando finalmente em Madrid em 9 de Dezembro de 1759. Dotado que já era de longa experiência governativa e embuído de um entusiasmo reformador, trabalhou incessantemente para se familiazar com a situação que enfrentou, preparando criteriosamente o primeiro acto oficial na Corte, em Julho de 1760. A morte da rainha, D. Maria Amália em Setembro desse mesmo ano, abalou-o profundamente, nunca mais voltando a casar, dedicando-se inteiramente à governação, da qual se abstraía com o desporto favorito, a caça. O seu entusiasmo pelos negócios do Estado foi alguns anos mais tarde abalado por um episódio conhecido como «Motim de Squilache», ou «Esquilache» em castelhano, que teve sérias repercussões, pois embora o motivo que o despoletou aparentasse ser de pouca monta, fundava-se em causas políticas e sociais muito mais profundas.

Marquês de Squilache

Leopoldo Gregório, marquês de Squilache, foi ministro da Fazenda em Nápoles e acompanhou o rei a Espanha, onde também viria a ser ministro, tendo deixado obra relevante. A faísca que despoletou o motim que ficaria conhecido como motim de Squilache, foi a publicação do edital de 16 de Março de 1766 que ordenava que todos os habitantes de Madrid, encurtassem as suas capas sob pena de multa ou prisão e passassem a usar «sombrero de tres bicos», ou seja tricórnios em vez do chapéu redondo, para evitar que ao abrigo de longas capas e redondos chapéus «gachos», se cometessem crimes e desacatos que deixam os embuçados impunes : «Que nenhuma pessoa de qualquer qualidade, condição e estado que seja, possa usar em nenhum lugar, sítio ou arrebalde desta Corte e reais sítios, nem em seus sítios públicos para passeio, ou campos fora da sua cerca do citado traje de capa comprida e chapéu redondo para se embuçar,...». No Domingo de Ramos um oficial da guarda, deteve um destes embuçados, que manifestamente desrespeitava este edital, desencadeando-se um motim que durou dias e atingiu proporções assustadoras, obrigando o rei a fazer concessões por escrito. Após esta humilhação, agastado e provavelmente receoso, deslocou-se

13 secretamente de noite para Aranjuez, donde não dava mostras de pretender regressar. O italiano marquês de Squilache, cujo único defeito era ser um grande ministro italiano em Espanha, que tanta obra havia feito em Madrid, milagres que muitos «santos de casa» não tinham conseguido até aí, foi deposto e desterrado, assim como outros estrangeiros que faziam parte do governo, convencido o povo que era a ele que se devia a imposição da reforma de capas e chapéus. O marquês de Aranda iria então com grande habilidade, apoiado por advogados e nobres aragoneses, conseguir a abolição das concessões outorgadas pelo rei e com tempo e diplomacia, convencê-lo a voltar a Madrid, onde foi recebido pela nobreza trajada à francesa, salvo raras excepções. Talvez saudoso do marquês de Squilache, terá este rei mais tarde dito, que fora este o melhor «alcalde» de Madrid... Mas o pretexto para este motim, não se originara no reinado de D. Carlos III, nem na ordem do marquês de Squilache. O alongamento das capas tinha sido uma reação à bem sucedida e habilidosa tentativa de mudança progressiva do traje espanhol para o francês, por parte do pai, Filipe V, que começou logo no início do reinado, ao mandar distribuir um folheto de que era o autor, intitulado «Decreto Jovis de Gonellia»: Decreto de Júpiter sobre a «gollila», fazendo realçar a necessidade de substituir esta gola pela gravata, deixando-a só para uso dos que pelo seu cargo deviam aparecer sempre graves e sérios, respeitáveis como letrados, juízes, médicos, etc....A pouco e pouco, imitando o exemplo do monarca, todos os Grandes, com excepção de poucos, entre eles o Duque de Medina Sidónia, abandonaram o severo traje espanhol pelo mais gracioso e elegante de casaca, colete, calção curto e cabeleira postiça, com a adopção da gravata de renda rica...» 6 Para manifestar ostensivamente a sua oposição ao traje importado, o povo reformou a sua própria indumentária, alongando a capa, que antes pouco passava dos joelhos, até ao chão, ampliando também a aba dos chapéus e ganhando o hábito de os deitar sobre a cara. A coberto disto e também da amplitude da capa, cometeram-se muitos desacatos, protegidos por uma difícil identificação. Publicaram-se editais para os evitar, sem grande resultado, até que no reinado posterior se tomou a medida polémica mas decisiva, como já vimos.

6 De DIEGO, J. Natividad, Indumentaria Espanhola, Madrid, 1915, pp.175 a 177.

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Reverso Vistas de Madrid, lembranças de Aranjuez...

Reverso com cena pintada. As flechas de cartão, prolongamento das varetas, são vísiveis, visto a folha ser simples (montagem à inglesa).

Pormenor da sala de porcelana do palácio real de Aranjuez

15 A cena central do leque mostrado atrás, na forma de um grande crescente, consiste numa «chinoiserie» que, no entanto, não parece harmonizar-se bem com as duas vinhetas que a ladeiam, com vistas de Madrid, emolduradas ao gosto rococó e cercadas de flores pintadas de modo naturalístico. Esta composição é singular, pois normalmente o reverso é totalmente preenchido por «chinesices», muito em particular nos leques de fabrico inglês, mas atinge o objectivo de fazer recordar o gosto do rei por este tipo de decoração, bem traduzido na maravilhosa sala de porcelana do Palácio Real de Aranjuez7, também conhecida como «sala China», com o tecto e paredes recoberto de placas com motivos em relevo, desenhada e esculpida pelo grande mestre José Gricci, executada durante o período inicial da «Real Fábrica de Porcelanas del Buen Retiro», (1763-1765), uma das criações com intervenção mais pessoal deste rei.

Leque pintado com vistas de Palácios Reais de Espanha Anverso

Palácio Real de Santo Ildefonso (La Granja), Palácio Real de Madrid e Palácio Real de Aranjuez. Tipo- Leque desdobrável Origem- Espanha, inscrito no reverso- « Bach. Madrid» Data- 1870-80 Armação- Constituída por 16 varetas de marfim e guardas, vasadas, com motivos geométricos e florais incisos, decorados em dois tons de dourado, realçados a negro. Perno com rosca e cano de metal dourado. «Rivet» encastoado com falsas esmeraldas. Folha- Dupla, de cabritilha com pinturas policromadas e moldura a dourado e azul. Comprimento-24,5 cm.

7 «...A obra mais importante é a sala de porcelana do palácio de Aranjuez realizada em pasta mole e inspirada numa obra muito semelhante realizada pela fábrica de Capodimonte para o palácio napolitano de Portici...É uma harmoniosa síntese de diferentes estilos, combinando motivos orientalistas e rococós. Chineses, crianças, flores e animais decoram profusamente paredes e tectos.» A pequena saleta quadrangular recoberta de placas de porcelana do Palácio Real de Portici, com «chinoiseries» em relevo e decoração «rocaille», destinada ao «boudoir» da rainha D. Amália, feita nas Real fábrica de Capodimonte entre 1577 e 1579, acabara de ser montada, no ano em que o rei sucedeu ao trono de Espanha, não tendo a rainha tido oportunidade de a usufruir. Logo após a chegada, D. Carlos mandou vir de Nápoles os principais artistas da fábrica de Capodimonte assim como a pasta de porcelana, para se instalarem nos jardins do Palácio Real do Bom Retiro, palácio onde o rei habitou durante quatro anos. A «Real fábrica del Buen Retiro» começou a produção em 1760.» in SAMPLER, MARIA DE LOS ÁNGELES PÉREZ, «La vida y la época de

Carlos III»

16 Foi mostrado na exposição de Cannes , pertença também à época da duquesa de Montellano e como inseparável «compagnon de route» até hoje, do leque motivo deste trabalho, mereceu a honra de servir como ilustração de quatro dos Palácios Reais de Espanha e recordar em particular o de Aranjuez, esse que abriga uma importante coleção destes objectos, pertencente ao Património Nacional de Espanha. 8

Reverso Palácio Real do Prado

Inscrito: Bach – Madrid9 8 47 Eventail espagnol de style impérial. Monture d´ivoire: les palais royaux d´Espagne. Collection de S.E. La. duchesse de Montellano 9 «Hipólito Bach», reputado fabricante madrileno de leques e luvas, premiado em exposições internacionais.

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Cibeles e a Porta de Alcalá

Como evidência da profunda remodelação de Madrid iniciada por D. Carlos III, podem ver-se na cena acima, pintada no leque, a imponente Fonte de Cibeles, o caminho de Alcalá e ao fundo a magnífica e definitiva Porta de Alcalá, que não seria efémera, ao contrário de outros arcos triunfais de «tirar e pôr», precárias construções, por vezes de madeira pintada, com efeitos em «trompel'oeil», destinados a abrilhantar apenas uma cerimónia de ocasião.

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Porta de Alcalá

Em 1837, a Porta de Alcalá era descrita de forma detalhada e entusiástica, acompanhada de uma belíssima gravura, num jornal periódico português, intitulado «O RECREIO- Jornal das Famílias» mais dedicado ao que se passava no exterior do que no reino, como segue: «Esta porta está situada na extremidade da rua deste nome; tem a frente para o nascente, e dá entrada á estrada real de Aragão e Catalunha. É um magnífico arco de triumfo construído no reinado de Carlos III para perpetuar a memoria do seu regresso á Corte de Hespanha. o desenho é de D. Francisco Sabatini, por quem foram dirigidos os trabalhos e consiste em cinco entradas tres iguaes, em fórma de arco,

19 no centro, e uma quadrada de cada lado. É adornada pelo lado de fóra, de columnas de ordem jonica, duas de cada lado do arco principal, uma em cada um dos outros, e uma em cada extremidade da porta. Os capiteis são da invenção de Miguel Angelo para a fabrica do Capitólio em Roma, donde foram trazidos os modelos.- Sobre a cornija ergue-se um attico, rematando em frontespicio com as armas reais sobre tropheos e sustentadas pela fama. A decoração do lado de Madrid é a mesma, com a differença que em em lugar de columnas, ha pilastras, á excepção de duas no arco principal, os ornatos são tambem mais escassos. As cornucópias cruzadas portas, e as cabeças de leão sobre as pedras, são obra de D. Roberto Michel;.- A altura de toda a porta, sem contar as armas reais, é de 70 pés; e cada arco tem 17 de largura e 34 de altura.- As grades são de ferro, e de um e outro lada da porta se lê esta inscripção Rege Carolo III -Anno MDCCLXXVIII.»10

Fonte de Apolo

A Fonte de Apolo, também conhecida como a Fonte das Quatro Estações, desenhada como a de Cibeles por Ventura Rodriguez, situada no «Paseo del Prado», ocupava o centro do chamado «Salón del Prado». Apolo, o deus da poesia, da música e das artes, condutor do carro do sol, portanto inimigo da escuridão, ilustra o espírito das luzes, fomentador da cultura e da ciência.

10 «O RECREIO, Jornal das Famílias», Tomos III, No. 7, Julho de 1837

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Fonte de Apolo - Madrid

Armação A decoração das varetas e guardas completa a associação deste leque com D. Carlos III. Por entre o belíssimo trabalho recortado, vasado e pintado das varetas destacam-se cinco vinhetas. As três centrais são ladeadas por outras com grinaldas de flores.

Escudo da Casa Real de Espanha, rodeado de bandeiras semi-desfraldadas, cercado pelo colar e insígnia da Ordem do Tosão de Ouro. Os dois globos indicam o Reino de Espanha e o «de las Indias Orientales y Occidentales, Islas, y Tierra firme del Mar Océano.»

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Vinheta Escudo da Casa Real de Borbón

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Vinheta central

Na cena anterior vê-se um par elegante, vestido à última moda francesa (1778-80), a passear pelos jardins do Palácio do Bom Retiro, abertos ao público desde 1767. A dama vestida «en polonaise», traje formado por uma espécie de casaco com mangas pelo cotovelo e grande abertura sobre o corpete, levantado em dois pufes laterais, chamados «as asas» e um por detrás, «a cauda», usado sobre saia que deixava ver os sapatos, segura na mão esquerda um leque e com a direita aponta, como que hesitando, para um pequeno pavilhão que o companheiro galantemente indica com o célebre tricórnio, este o chapéu que os madrilenos não quiseram aceitar como substituto para outro, redondo, o que veio a ser um dos pretextos para o motim de que já falamos contra o marquês de Squilache, que se diz por isso ter pronunciado o célebre lamento: «Yo he limpiado Madrid, le he empedrado, he hecho paseos y otras obras...que mereceria que me hiciecen una estatua, y en lugar de esto me han tratado indignamente». Fontes, conchas e búzios, decoram ao gosto rococó, as duas vinhetas que ladeiam esta cena central.

Varetas mestras ou guardas As guardas ou varetas mestras recortadas, são esculpidas e vasadas com motivos de pagodes, e decoradas com pinturas de cenas de batalhas e pequenas flores. Na parte inferior de uma delas, dentro de um pequeno «cartouche», sobre fundo vermelho surge um leão e na parte superior o escudo da Casa Real de Borbón. Na outra guarda mostram-se os mesmos motivos em ordem inversa.

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Varetas Quando fechado, o conjunto de varetas forma nas extremidades inferiores uma coroa em relevo, efeito produzido através de recortes e não esculpido como pode aparentar. Este terminal inferior da armação é denominado em castelhano «boleta».

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Visitas guiadas suscitam naturalmente perguntas... Fui abordando a maioria das questões que dizem respeito ao leque objecto deste trabalho, deixando no entanto uma para encarar somente neste ponto, a da razão pela qual lhe atribuo origem europeia, apesar de, como já visto, estar classificado como «Eventail français et espagnol» na exposicão de Cannes de 1958 e na de Madrid de 1920 ter figurado, como «abanico español», um exemplar cuja descrição também se lhe adapta como uma luva, podendo mesmo tratar-se do próprio. Este leque é sem dúvida europeu e pela lógica de encomenda para Espanha, já que é inteiramente dedicado ao reinado de Carlos III. A partir daí podem encarar-se como hipóteses as de ser totalmente de fabrico francês ou espanhol ou ainda um produto combinado destas origens. Que o tema seja de interesse para França compreende-se, apesar do rei em causa pertencer ao ramo espanhol da Casa de Bourbon, originalmente francesa, contudo apresenta características de fabrico que refutam uma associação a esta origem. Igualmente recuso a possibilidade de ter sido fabricado em Espanha, por razões que seguem. Eugenio Larruga11, nas «MEMORIAS POLÍTICAS E ECONÓMICAS SOBRE LOS FRUTOS, COMERCIO, FÁBRICAS Y MINAS DE ESPAÑA» de 1788, data muito próxima da do leque Carlos III, visto a Fonte de Cibeles nele representada só ter sido concluída em 1782, oferece-nos um panorama muito completo a respeito do fabrico e comércio destes objectos, surprendentemente ainda muito incipiente, comparável aliás ao que passava também em Portugal nessa época. Aliás, o fabrico de leques em Portugal é outro assunto ao qual me tenho dedicado e a respeito do qual fui coligindo algumas notícias interessantes e detalhadas e ainda outras curiosas, como a que retirei do ALMANACH PARA O ANNO DE M. DCC. LXXXIX, que inclui dados referentes, como é óbvio, ao ano de 1788: «RELAÇAM DOS GENEROS, que se manufacturão nas Fabricas Estabelecidas nesta corte e nas mais Cidades e Villas e Povoações /Notícias, Curiozas, e Interessantes.»

11 Larruga, Eugenio, Memorias Políticas y Económicas Sobre Los Frutos, Comercio, Fábricas y Minas de España, TOMO III, 1788

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Indo por partes... Para executar a armação, ou seja o conjunto de varetas e guardas do meu leque «Carlos III», em Espanha teria que ser ultrapassada a dificuldade de a fabricar a partir de moldes em aço, como nos diz Larruga: «Para que esta manufactura se estabeleça em Espanha, só encontro um inconveniente, que é saber executar os moldes em aço, para os recortes e baixos relevos das varetas de osso e madrepérola e acertar com o segredo de abrandar o marfim, para que receba o molde amorosamente; mas isto não deveria deter-nos, porque os lequeiros de Paris não conseguiram ainda vencer essas dificuldades, e não obstante têm grande venda os seus leques.»12. Este autor, após falar longamente sobre o fabrico das folhas de leques de papel e de outros materiais, esclarece ainda o seguinte: «Vencidas as dificuldades de fazer toda a espécie de folhas, tinha que passar-se a fabricar pés de leques (armações), começando por madeira, depois osso e finalmente madrepérola; e para executar recortes, e relevos, podia trazer-se um mestre inglês, que soubesse fazer os moldes, e o segredo de abrandar o osso, e a madrepérola; a exemplo do que executasse esse artífice, se habilitariam alguns destes nossos lequeiros, pois temolos, que dão sinal de ser engenhosos e aplicados, especialmente na Corte, onde se encontram alguns; que com a lima imitam qualquer recorte que se lhes apresente; e assim actualmente não é necessário enviar para França, ou Inglaterra, o arranjo de uma vareta quebrada recortada, como antes faziam os negociantes de leques. Mañer, que vive na «calle del carmen», é um moço de grande habilidade, e já o manifestou com muitas peças que trabalhou para leques quebrados de alto custo.», pelo que me vejo compelida a concluir que naquela altura não se fazia em Espanha o tipo de armação em causa. 12 Larruga, Eugenio, Memorias Políticas y Económicas Sobre Los Frutos, Comercio, Fábricas y Minas de España , TOMO III, MEMORIA XVI, Fábrica de abanicos, p. 129

26 Mas o autor citado informa também o seguinte: «Na Red de San Luis estabeleceu-se modernamente uma fábrica, em que se faz algum tipo de leques. Esta tem por objectivo principal o ensino da arte. Não podemos duvidar que esse se conseguirá, e se com a mesma facilidade proporcionamos o consumo, dentro de poucos anos teremos alcançado o objectivo de ter a nossa própria indústria».13 É útil ter em mente que nesta época o conceito de fábrica, tanto em Espanha como em Portugal, no que diz respeito a leques e não só, correspondia geralmente apenas ao de uma oficina, onde por vezes também se vendia a mercadoria nela executada. Fui encontrar a localização, o nome da fábrica-escola e loja da «Red San Luis», bem como o tipo de leques que vendiam nessa data, num anúncio do «Diario curioso, erudito, económico y comercial» na sexta-feira de Julho de 1787, a coberto de «NOTICIAS PARTICULARES DE MADRID-Notícias sueltas, p. 28» onde se proclama: «En la Fabrica de Abanicos que esta en la calle de Hortaleza, a la esquierda entrando por la Red San Luis, casa de Astrearena, se hallan de venta abanicos de nueva invencion com la fuente de Neptuno.»

Fonte de Neptuno, finalizada em 1786, projecto de Ventura Rodriguez e colocada no «Paseo de Recoletos».

A recém inaugurada fonte foi assim tema escolhido para a decoração de leques de «nueva invencion» à venda em Madrid, na casa de Astrearena, em Julho de 1877, estes sim madrilenos e muito necessários no verão habitualmente tão quente desta cidade, portanto bem merecedores do sucesso que a apregoada novidade lhes destinava. Não sei se terão sobrevivido alguns exemplares , mas se algum sobrou aqui fica relembrado. Larruga continua no entanto a referir esta nova fábrica de «abanicos» e muito mais esclarece a respeito no Tomo V das suas Memórias: «La fábrica de abanicos que toqué en el Tomo III, p. 132, la ha establecido baxo la proteccion des Excelentíssimo Señor Conde de Floridabanca, Don Eugénio Prost, de nacion Francés: tiene buenos principios, pues se trabajan en ella abanicos de todas clases, y lo mas recomendable que hay en este útil establecimiento es que Prost y su consorte poseen el complemento de todas las operaciones del arte, y tienen genio para enseñarle. Seria bastante desgracia, si con buenos principios no se conseguiese radicar esta fabrica en Madrid, y no se pusiesen con el tiempo en algunas ciudades del Reyno, hasta que viésemos desterrado um comercio que nos hacen los Franceses con gran perjuicio de nuestros intereses. Son muchas las manos de ambos sêxos qui pueden ocupar se con ella, y por tanto debe ser mas recomendable entre nosotros. Ahora certamiente es quando se le ha de auxiliar á esta manufactura, para poder ponerla dentro de pocos años en el estado de preferencia á la estrangera.Todo establecimento tiene muchos gastos en 13 Idem, p.132

27 su principio, y se el planificador no es poderoso, no podrá dar sus efectos fabricados con la comodidad de precio que es indispensable, para ser preferida su venta á otra de igual classe y calidad. La economia principal de las fábricas consiste en trabajar con obradores é instrumentos adequados á cada classe de operaciones, de otra manera sufrirá la manufactra un sobreprecio, qui la desacreditará con el consumidor. La fábrica de abanicos de Prost necesita rectificar sus talleres actuales, los quales se hallan con luces muy escassas, necesita tambien aumentar otros, como son los que sirven para preparar, blanquear y dulcificar la madera de hueso. La excelencia qui tiene el hueso de nuestras vacas para el blanqueo y ductivilidad, y el infimo precio á que se vende, será para Prost, y para qualquiera otro fabricante de abanicos que se establizca en España una ventaja, que no podrán contrabalancear los Franceses en ningun género de barillage de hueso. Si se lograse la misma proporcion para las maderas, no habria que temer se perdiese esta nueva fábrica, pero tenemos en el dia escasez de ellas y las que se consiguen cuestan muy caras. Hasta que con el tiempo se vayan conociendo, de que en nuestros domínios haya propósito para los barillages, seria acertado no cargar derechos algunos por la introduccion ni consumo en las que necesitasen nuestros fabricantes, aunque procediesen de países estrangeros. Lo mismo digo de las telas de papel blanco, pues si no pensamos en establecer algun moliño á propósito para elles, estaran expuestos nuestros abanicos ordinarios a tener mas precio que los de Francia, y en este caso sucederá, que la fábrica no podrá subsistir sino á fuerza de suplementos ó auxilios que le dé el Ministério;... ... El mismo Prost ha establecido fábrica de hacer guantes con aceptacion del comércio, pues todos quanto trabaja, logan pronta salida. Sin auxilio ni favor especial á enseñado á mucho número de muchachas á coser y bordar los guantes con un método sencillo, y el mas conveniente para fomentar la aplicacion. Ha traido maestra de Francia á sus expensas, que enseña por órden sucessiva á tres ó quatro muchachas en la casa del mismo Prost á coser y bordar...Su consorte Doña Isabel de Prost es una mujer verdaderamente industriosa. Dibuja, pinta, borda, dobla y monta los abanicos con todo primor, y sobre todo tiene la ventaje de de saber dirigir como conviene á los operarios:...»14 Da anterior exposição realço o fabrico de armações de osso, material barato e dúctil, que permitia o branqueamento, tornando o produto final competitivo em todos os aspectos. Não surpreende que fossem as armações deste material que melhor e mais se trabalhavam e não as de madeira, tão associadas ao fabrico de leques espanhóis, visto estas últimas envolverem mais problemas na altura em causa, por haver pouca variedade de espécies adequadas no reino. Diga-se ainda que ao lado de Eugenio Prost, homem de bons princípios e industrioso que tinha igualmente estabelecido uma fábrica de luvas, estava sua mulher D. Isabel, que não lhe ficava atrás: pintava, bordava, dobrava e montava os leques com todo o primor e tinha ainda a capacidade de dirigir convenientemente os operários que labutavam nas fábricas do marido. Parece-me assim que em face do que atrás se leu, não se deve admitir a existência em separado de uma fábrica na «Red San Luis», referida por Larruga no Tomo III das Memórias e de uma outra, do francês Eugenio Prost, a que este se refere no Tomo V, já que se tratava na realidade de uma só, a de Prost. Também não vejo como afirmar partindo do que diz Larruga a respeito de «...Mañer, que vive na «calle del carmen», é um moço de grande habilidade, e já o manifestou com muitas peças que trabalhou, para leques quebrados de alto custo.», que este Mañer tivesse sido aluno da fábrica da «Red de San Luis», que afinal era a fábrica de Prost.15 14 Larruga, Eugenio-Memorias Políticas y Económicas Sobre Los Frutos, Comercio, Fábricas y Minas de España. ,TOMO V, 1789, pp. 25 a 29 15 «Tanto Larruga como Cavestany hablan de una fábrica establecida en Madrid en la Red de San Luis hacia 1784, en la que se hacíon «angunos surtidos de abanicos», per tenía como principal objecto la enseñanza arte. En elle se distinguió un alumno llamado Mañer que puso taller en la calle del Carmen. También hay notícias de un francês llamado Eugenio Prost, que se estableció en Madrid, en tiempos de Carlos III, en la década de 1780, en la calle de

28 Em 2005, Nancy Armstrong, em «Fans in Spain» , transcreve a tradução para inglês de Richard A. Boyle da esclarecedora MEMORIA XVI de Larruga, intitulada «Fábrica de abanicos» e um pequeno extracto do TOMO V no qual também se afirma que a fábrica da «Red San Luis» era propriedade de Eugenio Prost, razão pela qual surpreende que na mesma obra, Armstrong mostre um magnífico leque catalogado com o n.º 46 propriedade do Património Nacional de Espanha, com varetas de madrepérola vasadas, esculpidas e pintadas, folha de cabritilha pintada a guache mostrando no anverso uma vista extensiva da Plaza de Cebada de Madrid, ladeada por típica decoração floral inglesa e no reverso duas outras vistas, Plaza Mayor e Puerta del Sol, com origem atribuída a Espanha c. 1770-5, quando ela própria apresenta argumentos para justificar que tal origem não era possível. 16

No DIARIO DE MADRID, desta vez num frio mês de Dezembro de 1792, Eugenio Prost anunciava leques de teatro e entretanto já tinha pelo menos um concorrente, Santiago Bea, igualmente fabricante de «abanicos» de novidade, muito apropriadamente chamados «Presentes de Natal» e outros de madeiras variadas: «Ventas- En la Real Fabrica de abanicos de Eugenio Prost, calle de la Hortaleza, casa de Astrarena se venden unos de la escena tragico-lirica de Idomeneo, representado por el señor Antonio Robles.» «Santiago Bea, fabricante de abanicos, que vive en la calle ancha de S. Bernardo, frente al Monasterio de este nombre, tiene unos de venta da ultima moda llamados de los Regalos de Navidad, y de otras varias maderas, com equidad.»17 Era lógico que as folhas gravadas ou estampadas fossem mais baratas do que pintadas, mas se a elas recorriam em Espanha teriam ainda de ser de importação: «Outro ramo de economia, é abrir lâminas de cobre, e madeira, para estampar fundos, e por este processo podem-se pintar vinte folhas com o que custa uma em Madrid, aonde tudo se faz a pincel,..»18 «Em Madrid, Valência, Barcelona, Saragoça, e outras Capitais, há muitos desenhadores, pintores e gravadores, que são os que podem alimentar-se com esta manufactura, especialmente por não ser necessária uma grande habilidade nestes artistas para o efeito;...»19 Eugenio Larruga desabafa ainda, com evidente desagrado, a respeito do «comércio de abanicos», o seguinte: «É mau para nós que os paises estrangeiros nos exportem leques. A Potência que mais dinheiro retira de Espanha com eles é a França, que ganha anualmente com este comercio 300.000 libras francesas, sendo Paris o mercado que mais contribui para estes ganhos; pois apesar de esta Potência ter outras fábricas, sempre são preferidos os leques de Paris, porque não resta dúvida que se fabricam melhor, especialmente desde que Curot começou a imitar os de Inglaterra; mas quem mais contribuíu foi Modesto Rous, mestre também de Paris, que demostra um gosto singular para a composição, e para a pintura; e de este fabricante se fornecem muitos mercadores da Alemanha, Portugal, e de Espanha. A China é a Potência que faz melhores leques, nível que a Inglaterra não conseguiu alcançar, Olivo Bajo. Este artesano, que fue favorecido poe el Conde de Floridablanca, tuvo que competir con la producción extranjera ( Historia de las Artes, p. 624)» in «ABANICOS», La colección del Museo Municipal de Madrid, 1995, p. 64 16 Armstrong, Nancy, «Fans in Spain» 17 DIARIO DE MADRID, núm. 348, 13 de Diciembre de 1792, p. 145 18 Larruga, Eugenio, Memorias Políticas y Económicas Sobre Los Frutos,Comercio, Fábricas y Minas de España, TOMO III, 1788, p.131

19 Idem, p.130

29 apesar de ser a nação que melhor os imita. Dos primeiros chegam poucos a Espanha; e dos segundos entram já bastantes variedades, especialmente dos finos, e são mais apreciados que os de França, pois esta Potência, apesar dos seus esforços, não pode competir com aquela dado o singular primor com que trabalham os pés (armação) dos seus leques, e especialmente os de osso, e marfim, materiais nos quais fazem vasados tão finos, que causam admiração, e com a vantagem de não se quebrarem com a facilidade como sucede com os de França;...»20 É interessante notar quando diz que Curot começou a imitar os de Inglaterra, e que esta por outro lado era a nação que melhor imitava os insuperáveis leques da China, no entanto a sua admiração ía mais para Modesto Rous, esse sim, mestre lequeiro de Paris, com um gosto singular para a composição e para a pintura de folhas de leques, as tarefas nobres exigidas a um oficial para ascender a mestre. Por tudo isto percebe-se bem como é difícil atribuir origens, em muitos casos, às armações de leques e também às próprias folhas dos mesmos, que frequentemente resultavam de acasalamentos feitos na época ou até de substituições mais ou menos tardias, destinadas a reparar estragos ou de novas combinações por alteração de gostos. Voltando ao exemplar que deu origem a esta já longa conversa e continuando a apoiar-me em Larruga, vejamos agora que hipótese teria a respectiva folha de cabritilha de ser de fabrico espanhol: «Em seguimente disto, podiam dedicar-se alguns a preparar as vitelas, tafetás e cabritilhas para folhas de leque e ainda que estas obras não se pudessem fabricar em Espanha tão cedo os mesmos pintores saberiam fornecer-se com sortidos de Roma ou de onde achassem mais conveniente.»21 Segundo o mais fiável testemunho de época que pude encontrar sobre o assunto, aliás o de um autor que visava claramente contribuir para incentivar a produção no seu país, apontando lacunas que a prejudicavam, apresentando soluções para o efeito e enumerando os artífices e produtores que julgava mais capacitados, se bem que ainda desaproveitados mas julgando que poderiam contribuir para o desenvolvimento da indústria, não se preparavam em Espanha, folhas de cabritilha, vendo-se que até incentivava os pintores a fornecerem-se do melhor e mais conveniente sortido onde possível. Assim sendo, sou levada a concluir que não só não se fabricavam em Espanha folhas de cabritilha na época do leque de Carlos III, como se não gravavam folhas de leque, o que é ainda mais importante. Um exemplo muito interessante de gravura numa folha de leque de cabritilha destinado ao mercado espanhol, da qual conheço dois exemplares, um deles o número 7 do catálogo duma exposição22, representa os meses do ano agrupados por trimestres e os signos do Zodíaco, está datado de 1759 e inscrito «P. Roland invenit/ I. Fougeron sculp.», referência aos autores. Na descrição do catálogo da exposição em causa encontra-se a seguinte nota: «Roland foi gravador em França no século XVIII e pai da célebre Madame Roland, guilhotinada no Terror. Quanto a Fougeron a sua actividade artística está documentada em Inglaterra. Provavelmente trata-se de um leque executado em Inglaterra para o mercado espanhol.» Voltando à folha do leque de Carlos III verifica-se que está montada «à inglesa», isto é, como folha simples com os prolongamentos das varetas (flechas), aparentes no reverso. A gravura do 20 Idem, p. 125 21 Idem, p. 132 22 ABANICOS- La collección del Museo Municipal de Madrid-1995- p. 103

30 anverso e o tipo de decoração floral que a emoldura, encontrado também no reverso, bem como uma típica cena de «chinoiserie» ao centro, parecem-me indicar igualmente uma origem inglesa. Por comparação com outros exemplares, a armação têm grande possibilidade, quanto a mim, de ser igualmente de fabrico inglês, destinada ao mercado espanhol, tendo em mente que se trata de um leque de encomenda, datável de cerca de 1785, com características já diferentes dos de meados do mesmo século. Mas se o material da folha e a gravura do anverso deste leque de encomenda, não eram de fabrico espanhol, as pinturas que decoram o anverso, reverso e as próprias varetas têm a possibilidade de ter sido cópias do apreciado estilo inglês, executadas estas em Espanha, onde não faltariam pintores capacitados, mas isso julgo que não posso afirmar. Socorro-me de novo de Larruga, que apesar de referir folhas de papel pintadas, de mais consumo e menor preço, acrescenta o seguinte: «Podem-se trabalhar com facilidade em qualquer parte em que haja pintores, e vê-se que em Madrid, se fazem algumas de tão bom gosto como as estrangeiras:...».

Dois lírios, um deles azul como a flor de lis da «Casa de Borbón» em destaque numa moldura de flores.

31 Por comparação com outros exemplares indubitavelmente ingleses, resulta que penso ver neste leque um céu representado com uma cor de azul que não esperaria encontrar num pintor britânico. Mas reconheço muito pouco de científico nesta opinião. É ainda interessante notar que: «Em 1795 chegaram a Espanha 574 dúzias de leques procedentes de Inglaterra, e somente 50 procedentes de França.23 Estes números, somente sete anos passados sobre a indicação de Larruga que França era a potência que mais dinheiro retirava de Espanha, «...ganhando anualmente com este comercio 300.000 libras francesas, sendo Paris o mercado que mais contribui para estes ganhos; pois apesar de esta Potência ter outras fábricas, sempre são preferidos os leques de Paris, porque não resta dúvida que se fabricam melhor...», levam a crer que o preço proibitivo das 50 dúzias de leques atrás mencionadas era compatível apenas com o de exemplares de primeiríssima qualidade, normalmente destinados a membros da casa real e grandes senhoras da aristocracia espanhola. Mas nada melhor, para terminar, do que recordar um interessante facto, narrado por Jesus Urrea e relacionado com o futuro rei Carlos III de Espanha e sua irmã D. Mariana, princesa do Brasil, futura rainha de Portugal, que permite melhor avaliar como é intrincada e problemática a atribuição de um leque a uma origem: «...D. Carlos também actuou, em algumas ocasiões, como agente de compras da família, durante a sua residência em Parma. Assim a sua tão extremada irmã Mariana, convertida em Princesa do Brasil, pediu-lhe que lhe encomendasse uns leques em Roma e não deixa de ser curioso e complicado o processo que teve de ser seguido para cumprir esse desejo: Santisteban escreveu ao Conde de Montijo para que se fizesse em Londres a armação dos leques, dizendo-lhe que logo que fabricadas as remetesse para Patiño, que por sua vez as enviaria a Santisteban, que após as mandar unir às folhas pintadas, faria chegar os leques a Lisboa, passando antes por Madrid.»24 Chegariam finalmente ao destino e satisfizeram plenamente:«Los abanicos los recibió la Princesa antes del 8-II- 1735, momento en que se comunica que «habían parecido a S. A. mui exquisitos y buenos». Santisteban era o aio que acompanhou D. Carlos na viagem para Itália e Mariana era a princesa do Brasil, futura rainha de Portugal D. Maria Ana Victória, então com 17 anos. Vê-se portanto que as armações dos leques destinados a D. Mariana foram encomendadas em Inglaterra e as folhas em Roma, onde a pintura, nessa época sobre finíssima pele, era reputadamente inexcedível. Estes leques europeus de encomenda, frutos de um casamento italobritânico de folhas e armações, classifico-os eu, apesar disso, como italianos ou mais precisamente da Escola Romana, dando primazia aos mestres pintores, considerados então os mestres lequeiros, que compunham e pintavam as folhas como era de praxe, e não aos excelentes e reputados artifíces londrinos, apenas os autores das armações dos mesmos.

Assim, mais provavelmente, este leque europeu terá sido encomendado em Inglaterra. FIM

23

Del Campo, Carmen Priego Férnandéz, EL ABANICO, ÚTIL DE SEDÚCCION, CÓDIGO DE LENGUAJE E IMAGEN PICTÓRICA, La Colección del Museo Municipal de Madrid, p. 35

24 URREA, JÉSUS, ITINERARIO ITALIANO DE UN MONARCA ESPAÑOL, Madrid, 1989

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