VIVÊNCIAS E PRÁTICAS SOCIOAMBIENTAIS: Metodologias aplicadas em comunidades

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Rosemeri Melo e Souza Sindiany Suelen Caduda dos Santos Eline Almeida Santos (Organizadoras)

Metodologias Aplicadas em Comunidades

VIVÊNCIAS E PRÁTICAS SOCIOAMBIENTAIS: metodologias aplicadas em comunidades 2

2015

Rosemeri Melo e Souza Sindiany Suelen Caduda dos Santos Eline Almeida Santos (Organizadoras)

VIVÊNCIAS E PRÁTICAS SOCIOAMBIENTAIS: Metodologias aplicadas em comunidades

São Cristóvão-Sergipe GEOPLAN/CNPq/UFS 2015

Rosemeri Melo e Souza Sindiany Suelen Caduda dos Santos Eline Almeida Santos (Organizadoras)

Analee Cruz Alves, Cláudio Jorge Moura de Castilho, Felippe Pessoa de Melo, Gênisson Lima de Almeida, Giane Florentino Rodrigues de Brito, Gicélia Mendes, Judson Augusto Oliveira Malta, Luís Ricardo Rodrigues de Araújo, Maria do Socorro Ferreira da Silva, Miria Cássia Oliveira Aragão, Priscila de Oliveira Rocha, Roberto dos Santos Lacerda, Selene Herculano, Thiago Valença e Silva

VIVÊNCIAS E PRÁTICAS SOCIOAMBIENTAIS: Metodologias aplicadas em comunidades

São Cristóvão-Sergipe GEOPLAN/CNPq/UFS 2015

Todos os direitos autorais deste material são de propriedade dos autores. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. O conteúdo de cada artigo é de inteira responsabilidade do(s) autor (es). Livro aprovado pelo Conselho Editorial da Revista Acadêmico Mundo (ISSN 2318-1494). Revisão de Originais e Revisão de Provas Leandro Carvalho de Almeida Gouveia (Revista Acadêmico Mundo) Capa Joelma Alves da Rocha e Eline Almeida Santos Editoração Eletrônica Josevaldo da Silva do Lago (site. http://www.academicomundo.com.br/revista.html) Impressão e Acabamentos Editora JM Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP). Catalogação na Fonte MELO E SOUZA, Rosemeri; SANTOS, Sindiany Suelen Caduda dos; SANTOS, Eline Almeida. M528 Vivências e práticas socioambientais: metodologias aplicadas em comunidades/ Rosemeri Melo e Souza; Sindiany Suelen Caduda dos Santos; Eline Almeida Santos (org.) São Cristóvão, SE: GEOPLAN/CNPQ/ UFS, 2015. JM GÁFICA E EDITORA LTDA. 200p.

CNPJ: 00.149.796/0001-49 Rua Vital Rego, 13, Barbalho, Salvador, Bahia, CEP 40301-090 1.Socioambiental 2. Metodologia 3. Comunidades I. Rosemeri Melo e Souza II. e-mail: [email protected]

Sindiany Suelen Caduda dos Santos III. Eline Almeida Santos IV. GEOPLAN V. CNPQ VI. UFS CDD: 333.793

ISBN 978-85-60753-94-9 JM GÁFICA E EDITORA LTDA. CNPJ: 00.149.796/0001-49 Rua Vital Rego, 13, Barbalho, Salvador, Bahia, CEP 40301-090 e-mail: [email protected]

Brasil outubro de 2015 pela JM Editora CNPJ: 00.149.796/0001-49 e-mail: [email protected] Tiragem: exemplares.

Sumário Prefácio...............................................................................................................8 Apresentação...................................................................................................12 Capítulo 1 Aspectos Metodológicos e Epistemológicos para a Construção de Pesquisa Socioambiental................................................................................13 Selene Herculano Capítulo 2 Universidade e Experiências de Participação no Espaço Urbano: Por uma Pedagogia Política em Territórios Vividos por Famílias Pobres.................27 Cláudio Jorge Moura de Castilho Capítulo 3 Territorialidade e Pedagogia Griô: Caminhos para Pesquisa em Comunidades Tradicionais.............................................................................44 Gicélia Mendes Roberto dos Santos Lacerda Giane Florentino Rodrigues de Brito Capítulo 4 Análise do Conteúdo: percurso metodológico na avaliação de sentidos da conservação em comunidades tradicionais.................................................60 Sindiany Suelen Caduda dos Santos Rosemeri Melo e Souza Capítulo 5 A Pesca Artesanal na Ilha Mem de Sá: Metodologias Participativas e o Desvendar da Realidade – Imaginário...........................................................78 Miria Cássia Oliveira Aragão Rosemeri Melo e Souza Capítulo 6 Mulheres das Marés: Metodologia Aplicada na Análise Geográfica do Trabalho Feminino na Pesca..........................................................................91 Eline Almeida Santos Rosemeri Melo e Souza Capítulo 7 Etnomapeamento dos Bancos Naturais de Sutinga (Mytella charruana) no Estuário do Rio Cajaíba-SE...........................................................................108 Analee Cruz Alves Felippe Pessoa de Melo Rosemeri Melo e Souza

Capítulo 8 Uma Análise Fenomenológica das Comunidades Tradicionais no Litoral Sul de Sergipe................................................................................................121 Maria do Socorro Ferreira da Silva Gênisson Lima de Almeida Priscila de Oliveira Rocha Capítulo 9 O Papel dos Discursos na Disputa pelo Litoral Sul de Sergipe................139 Thiago Valença e Silva Rosemeri Melo e Souza Capítulo 10 Comunidades Tradicionais e Territorialização: Metodologia Aplicada à Análise de Conflitos Territoriais...................................................................155 Luís Ricardo Rodrigues de Araújo Rosemeri Melo e Souza Capítulo 11 Modelagem Geofísica: Subsídios para Gestão Ambiental em GaranhunsPE....................................................................................................................171 Felippe Pessoa de Melo Rosemeri Melo e Souza Capítulo 12 Comunidade Escolar e Geotecnologias: Metodologia Interdisciplinar em Práticas Socioambientais.............................................................................188 Judson Augusto Oliveira Malta

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Prefácio Ou escreves algo que valha a pena ler, ou fazes algo acerca do qual valha a pena escrever. Benjamin Franklin A acertada decisão deste coletivo de autores em registrar diversos percursos de pesquisa socioambiental encontra ressonância na afirmação do cientista Benjamim Franklin. Este coletivo assume a premissa de que se é para enveredar pelo árduo exercício da escrita, que sejam apresentados ao público escritos que revelem a validade do que foi feito acerca dos caminhos de pesquisa trilhados pelos autores, navegando às margens dos preceitos metódicos já estabelecidos, aventurando-se para águas mais profundas da pesquisa. Esta característica perpassa os capítulos do livro Vivências e Práticas Socioambientais: metodologias aplicadas em Comunidades que tem por eixo norteador a narrativa densa de experiências metodológicas na pesquisa com comunidades, na mais ampla acepção que esta conceituação abarca, a saber: tradicionais, urbanas, rurais ou periféricas. Tal compromisso é desvelado no capítulo de abertura da obra, escrito pela Drª Selene Herculano, Professora Titular do Departamento de Sociologia da Universidade Federal Fluminense, intitulado Aspectos Metodológicos e Epistemológicos para a Construção de Pesquisa Socioambiental, no qual princípios da pesquisa, de ordem epistêmico-operativa são abordados com propriedade e rigor acadêmico. O segundo capítulo, Universidade e Experiências de Participação no Espaço Urbano: Por uma Pedagogia Política em Territórios Vividos por Famílias Pobres, foi escrito pelo Professor Associado do Departamento de Ciências geográficas da Universidade Federal de Pernambuco, Dr. Cláudio Jorge Moura de Castilho. Ele aborda a experiência vivencial e metódica desenvolvida pelo Grupo MSEU (Movimento Sociais e Dinâmicas Espaciais) no desenvolvimento de enfoques participativos no âmbito de uma pedagogia política do encontro em territórios de famílias periféricas em Recife/PE.

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A problematização dos aspectos vivenciais na constituição dos caminhos pedagógicos desveladores das territorialidades quilombolas foi o foco do terceiro capítulo, escrito pela Drª Gicélia Mendes e pelos professores doutorandos, Roberto dos Santos Lacerda e Giane Florentino Rodrigues de Brito. As reflexões do capítulo Territorialidade e Pedagogia Griô: Caminhos para Pesquisa em Comunidades Tradicionais suscitam novos olhares acerca das tensões e preocupações peculiares da pesquisa nos territórios Griô. Análise do Conteúdo: percurso metodológico na avaliação de sentidos da conservação em comunidades tradicionais elaborado pela doutoranda Sindiany Suelen Caduda dos Santos e pela Drª Rosemeri Melo e Souza aborda os desafios de pensar e fazer pesquisa no contexto de comunidades pesqueiras ante o dilema da conservação ambiental de seus territórios de vida. Em seguida, a professora Msc. Miria Cássia Oliveira Aragão, socióloga da Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL) e a Drª Rosemeri Melo e Souza reconstroem caminhos de pesquisa étnico-vivencial no capítulo intitulado A Pesca Artesanal na Ilha Mem de Sá: Metodologias Participativas e o Desvendar da Realidade – Imaginário. Dois capítulos contemplam as especificidades da tessitura de pesquisas com recortes acerca da/na pesca. Mulheres das Marés: Metodologia Aplicada na Análise Geográfica do Trabalho Feminino na Pesca, da professora doutoranda Eline Almeida Santos e da Drª Rosemeri Melo e Souza. Neste

artigo, as autoras tecem uma discussão

sobre os aspectos

metodológicos utilizados para a análise geográfica do trabalho feminino no espaço da pesca artesanal, fundamentada no método fenomenológico. Etnomapeamento dos Bancos Naturais de Sutinga (Mytella charruana) no Estuário do Rio Cajaíba-SE, elaborado pela mestranda e engenheira de pesca Analee Cruz Alves, pelo professor doutorando Felippe Pessoa de Melo e pela Drª Rosemeri Melo e Souza faz o registro da experiência de mapeamento de recursos vivos estuarinos, realizada em conjunto com os pescadores ribeirinhos sergipanos. Uma Análise Fenomenológica das Comunidades Tradicionais no Litoral Sul de Sergipe foi escrito pela Drª Maria do Socorro Ferreira da Silva, Gênisson Lima de Almeida e Priscila de Oliveira Rocha, ambos acadêmicos da

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graduação em geografia da Universidade Federal de Sergipe. Eles abordam questões da existência no território e as disputas envolventes dos habitantes de comunidades litorâneas do sul sergipano. O Papel dos Discursos na Disputa pelo Litoral Sul de Sergipe constitui ensaio elaborado sob a perspectiva hermenêutica pelos autores Thiago Valença e Silva, licenciado em Geografia e a Drª Rosemeri Melo e Souza. O artigo discorre acerca do papel dos discursos de diversos atores envolvidos nas disputas territoriais no processo de criação de um espaço territorial protegido litoral sul sergipano. Comunidades Tradicionais e Territorialização: Metodologia Aplicada à Análise de Conflitos Territoriais, capítulo de autoria do Mestre em Geografia Luís Ricardo Rodrigues de Araújo e da Drª Rosemeri Melo e Souza, tematiza acerca de procedimentos analíticos de um processo instaurado na esfera federal para a implantação da Reserva Extrativista do Litoral Sul de Sergipe, mapeando os impasses jurídicos e as práticas de apropriação territorial. Concluem a obra dois capítulos que convidam ao olhar sobre a gestão do espaço urbano em cidade do agreste pernambucano e da comunidade escolar no processo de internalização das geotecnologias Modelagem

Geofísica:

Subsídios

para

Gestão

Ambiental

em

Garanhuns-PE, escrito pelo professor doutorando Felippe Pessoa de Melo e a Drª Rosemeri Melo e Souza, apresenta caminhos metodológicos para a adoção de geotecnologias na gestão ambiental das cidades. O capítulo de autoria do professor de geografia e doutorando Judson Augusto Oliveira Malta sob o título: Comunidade Escolar e Geotecnologias: Metodologia Interdisciplinar em Práticas Socioambientais enfoca os desafios e as vantagens de adoção das geotecnologias pela comunidade escolar na realização de experiências didáticas interdisciplinares. Em suma, pode-se reafirmar a pluralidade das visões e dos sentidos construídos pelos autores, como parte de uma senda demarcada pela poiesis, a saber, pela adoção de olhares reconstrutivos das práticas de pesquisa, exercidos com rigor científico e com a ousadia daqueles que vislumbram pesquisa como processo de autoformação, (re)fazendo os caminhos no seu próprio caminhar.

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Rosemeri Melo e Souza Professora Associada Pesquisadora CNPq e FAPITEC Líder do GEOPLAN/UFS

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Apresentação O método e os procedimentos metodológicos que escolhemos para construção das pesquisas científicas constituem o cerne da produção de resultados fidedignos. Pensando desta forma, a obra intitulada VIVÊNCIAS E PRÁTICAS

SOCIOAMBIENTAIS:

Metodologias

aplicadas

em

comunidades, foi construída com o propósito de revelar a aplicabilidade de métodos e de procedimentos metodológicos, quando o objeto de investigação do pesquisador volta-se para comunidades, sejam elas tradicionais, urbanas, rurais ou periféricas. Para tanto, este livro consiste numa coletânea de artigos que foram construídos pelos membros e professores parceiros do Grupo de Pesquisa em Geoecologia e Planejamento Territorial (GEOPLAN), de maneira que o leitor seja capaz de envolver-se na busca pelo método e ou procedimentos que sejam adequados ao objeto de estudo escolhido e aos objetivos da investigação científica particular. Esta coletânea é destinada aos diversos leitores que tenham por interesse iniciar ou dar continuidade as investigações científicas voltadas para comunidades, partindo da ideia de que diversos podem ser os métodos e/ ou procedimentos metodológicos a serem seguidos, mas que todos eles partem de um rigor metodológico adequado a cada perfil de investigação. Assim, de forma coletiva, os autores deste livro almejam que as formulações teórico-práticas aqui descritas ampliem o leque de possibilidades na investigação científica em comunidades, partindo das vivências e práticas socioambientais experimentadas e reveladas.

São Cristóvão, Sergipe, julho de 2015.

Rosemeri Melo e Souza Sindiany Suelen Caduda dos Santos Eline Almeida Santos

CAPÍTULO 1 ASPECTOS METODOLÓGICOS E EPISTEMOLÓGICOS PARA A CONSTRUÇÃO DE PESQUISA SOCIOAMBIENTAL Selene Herculano1

Resumo

O artigo sumariza dois conceitos-chave propostos para um campo de um saber em construção, a epistemologia ambiental, focalizando os conceitos de complexidade e de sistemas, desenvolvidos respectivamente por Edgar Morin e por Donella Meadows; examina possibilidades e desafios da convergência de saberes acadêmicos (multi, inter e transdisciplinaridades) em prol de uma visão integradora sobre a problemática socioambiental; descreve um projeto em realização na Universidade Federal Fluminense - UFF acerca de um projeto realizado conjuntamente pela Arquitetura e pela Antropologia, focalizando o ensino do conhecimento arquitetônico sustentável de duas tribos indígenas tendo a eles próprios como professores. Palavras-chave: Metodologia de pesquisa social. Epistemologia ambiental. Sistemas. Teoria da complexidade. Saber indígena.

METHODOLOGICAL AND EPISTEMOLOGICAL APPROACHES TO SOCIOENVIRONMENTAL RESEARCH Abstract

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Selene Herculano é Professora Titular do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense. Integra o corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito – PPGSD da mesma universidade. Edita a revista eletrônica VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade (www.uff.br/revistavitas); [email protected] / www.professores.uff.be/seleneherculano

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This paper focuses on two key concepts of the field known as environmental epistemology, namely complexity and systems, proposed by Edgar Morin and by Donella Meadows each; it discusses possibilities and challenges of a convergence of academical knowledge (multi, inter and transdisciplinarities) to better face socioenvironmental studies.it finishes by describing a project held at Universidade Federal Fluminense – UFF that took Architecture and Social Anthropology as partners of an experience of learning some sustainable architecture skills of two Brazilian tribes, taught by themselves. Keywords: Methodology for social sciences. Environmental epistemology. Systems. Theory of complexity. Indigeneous skills. “Partimos do reconhecimento do caráter multidimensional do fenômeno do conhecimento; do reconhecimento da obscuridade escondida no coração de uma noção destinada ao esclarecimento de todas as coisas; da ameaça vinda do conhecimento […] de uma crise característica do conhecimento contemporâneo, sem dúvida inseparável da crise do nosso século […] a descoberta de que o conhecimento comporta sombras, zonas cegas, buracos negros”. (MORIN, 2005: 23) Se uma fábrica é destruída, mas a racionalidade que a produziu se mantém, esta racionalidade produzirá uma nova fábrica. Se uma revolução destrói um governo, mas os modelos de pensamento sistêmico que produziram tal governo ficam intactos, eles se reproduzirão. Fala-se tanto em sistema e se entende tão pouco. (Robert PIRSIG, Zen e a arte de manutenção de motocicletas, apud MEADOWS)

1 Introdução Este artigo está dividido em três seções. Na primeira seção, resenho brevemente

alguns

autores

que

propuseram

ir-se

além

dos

limites

epistemológicos consagrados para se refletir sobre o conhecimento, em especial sobre questões socioambientais; na segunda conceituo inter, multi e transdisciplinaridade

e

aponto

alguns

equívocos

metodológicos

e

epistemológicos na elaboração de teses que se propõem interdisciplinares e que versam sobre temas socioambientais; na terceira, trago o exemplo de uma experiência atual de construção pluridisciplinar e transcultural na UFF (Universidade Federal Fluminense), com adoção de práticas indígenas para uma arquitetura sustentável. Por metodologia refiro-me a seus dois significados: (1) o arcabouço teóricoconceitual, isto é, as lentes escolhidas para calibrar o olhar e fazer a análise,

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bem como (2) as técnicas de contato com a empiria social, com o objeto examinado (questionários, entrevistas, observação participante, registros documentais e audiovisuais etc.). Por epistemologia, este ramo da filosofia que trata literalmente da ciência do conhecimento (episteme), refiro-me ao processo anterior à escolha do arcabouço teórico-conceitual e que o produz. Processo que envolve tudo aquilo que recorta, limita e define a capacidade de conhecer: os sentidos físicos, os sentimentos, as crenças, a realidade socio-políticoeconômica-cultural etc. Os autores escolhidos pertencem ao universo das reflexões que animam uma epistemologia ambiental em construção e tem um ponto em comum, o foco na complexidade e a busca metodológica-epistemológica sobre seu estudo, e cuja proposta é a de mudar o modo de vermos o mundo a fim de corrigir rumos: Edgar Morin e Donella Meadows. Edgar Morin2 (1921-) teve uma formação pluridisciplinar em Direito, História e Geografia e é considerado a um só tempo como sociólogo, filósofo e antropólogo. É professor emérito do CNRS (Centre National de La Recherche Scientifique), com um passado como miltante da Resistência Francesa e do partido comunista. Tem dezenas de livros sobre o pensamento complexo, epistemologia e educação. Donella Meadows (1941-2001), química e biofísica, é descrita por seus biógrafos como cientista ambiental. Ela integrou o grupo do M.I.T (Massachusetts Institute of Technology) que pesquisou as questões ambientais mundiais entre 1968-1971 e que resultou no Relatório Meadows e é mais conhecida entre nós como co-autora de Limites do Crescimento, o livro baseado naquele relatório e que inspirou os debates da Conferência de Estocolmo 72 (United Nations Conferenceon Human Environment - UNCHE) sobre o ambiente humano; também foi co-autora de Além dos limites; Dinâmicas de crescimento em um mundo finito. Foi também membro do System Dynamic Group do M.I.T. e do Sustainability Institute.

2 Tentando novas perspectivas

2

https://www.google.com.br/#q=edgar+morin

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O conhecimento é peninsular, escreveu Morin, está ligado ao continente do qual faz parte. Conhecer é um ato ao mesmo tempo biológico, cerebral, espiritual, lógico, linguístico, cultural, social, histórico. Não pode ser dissociado da vida humana e da relação social. Morin nos lembra também dos preceitos kantianos a respeito dos limites intransponíveis do conhecimento, pois não conhecemos as coisas em si – noumenos - e sim os fenômenos, sua exterioridade. A partir destas observações ele vai mencionar a “tragédia da complexidade”, que diz respeito à impossibilidade e, todavia à imperiosa e inescapável necessidade de totalização, de unificação, de síntese. Morin também critica os paradigmas da ciência dominante, que preceituam a neutralidade do sujeito, ou seja, sua indeterminação e quase inexistência. Morin se opõe a isto: conhecer o processo do conhecimento, incluindo nele o sujeito, é a sua proposta, que ele define como “o retorno complexo de uma realidade

simples”

(2005b:318).

Este

processo

de

conhecimento

do

conhecimento ele o batizou de “noologia” (do grego νοός, mente, inteligência, alma), uma ciência da inteligência do sujeito, e elegeu a bricolagem como “o verdadeiro rosto da racionalidade complexa” (2005b, p. 362). A bricolagem, este processo de colagem de micropeças diversas que comporão um mosaico, Morin o vê como a representação da “organização viva”, um sincretismo variável de quatro lógicas complementares, concorrentes e sinérgicas: a centralizadora-hierárquica policêntrica-poliárquica

(competição-dominação-subordinação), (especialização),

a

anárquica

(sinergia

a sem

necessidade de controle, acêntrica) e a ecológica. Não existiria, para ele, uma lógica organizacional simples da vida, existe uma polilógica, isto é, uma bricolagem (2005b:362). A bricolagem de Morin faz lembrar a metáfora do caleidoscópio-sociedade e a questão de que metáforas podem ter sentido duplo e contrastante. O caleidoscópio tem sido ilustração ambivalente para a realidade social e o decifrar de sua lógica. Ora exemplifica o aspecto aleatório dos fatos sociais, em que a aparente harmonia e composição dos desenhos esconde na verdade uma combinação aleatória de fragmentos dançantes de vidro, ora, ao contrário, ilustra a ideia de que as partes soltas e supostamente desconexas se organizam em uma ordem tornada possível pela lógica da estrutura presente

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no prisma de espelhos. Ou seja, a sociedade-caleidoscópio ora pode ser entendida como uma racionalidade ilusória, apenas aparente e ex-post, em que agentes atuam aleatoriamente, ora como tendo uma estrutura oculta que organiza e explica a suposta aleatoriedade do movimento das partes. A proposta de Morin implica em ver que são ambas, ao mesmo tempo. Os livros de Morin são uma proposta de análise questionadora da própria epistemologia, uma análise enciclopédica, original e instigante. Porém sustentamos que não nos oferece propriamente uma metodologia de pesquisa para as ciências sociais, mas um estado de espírito, uma atitude. Ele questiona paradigmas, aponta para a necessidade de nos abrirmos para uma reflexão complexa de uma realidade complexa. Contudo, a força das teorias, base da metodologia científica, reside na simplificação da realidade a uma ou poucas variáveis para que se possa examiná-las em atuação (hipóteses) e confirmá-las na prática (tese). Como conciliar teoria e complexidade? Morin responde a isto escrevendo que:

Uma teoria não é o conhecimento, ela permite o conhecimento […] não é uma chegada, é a possibilidade de uma partida […] não é uma solução, é a possibilidade de tratar um problema (MORIN etalli, s.d., 23).

Morin propõe a atitude do viajante, com olhos abertos a tudo e sem se apegar. Propõe uma estratégia que se abra para o imprevisto e a novidade, que reconheça que a verdade não é inalterável, que as ideias são apenas construções. Sua proposta é mais um alerta pedagógico sobre a necessidade de uma educação para uma sociedade-mundo, para uma planetarização (não confundir com a globalização, que seria meramente a mundialização das dimensões econômicas e tecnológicas). Parece-me que as análises de Morin guardam convergência com a noção de dialógica, sem acordos finais, mas que se propõe a um conhecimento mútuo, plural. Vejamos como Sennett (2013) a resume. Em outro registro, tratando sobre a vida social cooperativa e de trocas, Sennett apresenta as diferenças entre a fala dialética e a dialógica, ao destacar as diferenças na construção de políticas de esquerda, a saber a esquerda

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política, de cima para baixo, do Estado, e a esquerda social, de baixo para cima, da sociedade civil. A grosso modo essas variações da “política de esquerda” teriam a ver com falas diferenciadas: a fala dialética, que busca chegar a um entendimento comum e que se afinará em uma síntese (esquerda política); a fala dialógica, cunhada por Bakhtin, para uma conversa que não se propõe chegar a um acordo final, e sim possibilitar uma compreensão recíproca, um conhecimento mútuo. A primeira pressupõe um comando e regras; a segunda, horizontal, se configura na informalidade. Habermas definiu a fala dialógica, base da razão do mesmo nome, como atributo do mundo vivido, lebenswelt, e que seria a base do agir comunicativo, ombro a ombro, em lugar do agir estratégico, vertical, do mundo como sistema. A questão que Habermas nào parece ter visto é que mundo vivido e sistema não são mundos separados. Estudar sistemas foi a proposta de Meadows: ela manuseava um Slinky em suas aulas, aquela mola de brinquedo, longa e colorida, que parece mover-se sozinha. Apertava a mola nas mãos, soltava-a e a mola ganhava movimento como se fosse um bichinho. “O que a fez mover-se?”, perguntava aos seus estudantes. “Sua mão”, era a resposta. Ela então pegava a caixa de embalagem da mola, apertava-a em sua mão, soltava e nada acontecia. A resposta não estava na mão e sim na mola. As mãos que a manipulavam suprimiam ou acentuavam um comportamento latente na estrutura da mola. E assim ela ilustrava suas aulas sobre estrutura e comportamento dos sistemas. Sistema é um conjunto de coisas – pessoas, células, moléculas interconectadas de tal forma que produzem um padrão de comportamento próprio ao longo do tempo. Um sistema está coerentemente organizado de modo a realizar alguma coisa. Decompondo: sistemas consistem em elementos, interconexões e função ou propósito. Estes propósitos não são necessariamente os intencionais dos seus atores individuais, mas o que surge desta combinação. Meadows exemplificava: uma universidade tem como propósito inventor preservar o conhecimento e transmiti-lo a novas gerações; o objetivo do seu estudante é ter boas notas, do professor alcançar estabilidade de cátedra, do seu administrador equilibrar o orçamento. Cada um desses propósitos pode conflitar com o propósito maior, pois estudantes colam,

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professores negligenciam aulas para escrever papers e pontuar no curriculum, o administrador de uma universidade particular pode equilibrar contas despedindo professores etc. Os elementos sistêmicos mudam e são o que seria menos importante (a não ser que a troca de elementos implique em mudança de relações ou de propósitos): um time de futebol muda de componentes, uma árvore renova suas células, a universidade é um fluxo mutante de estudantes e de professores. Mas cada um destes se mantém como time, árvore, universidade. Todavia, se as interconexões mudam, o sistema se altera significativamente. Se na universidade os debates forem através da força e não da razão, já não será uma universidade; se a árvore passar a consumir oxigênio e expelir dióxido de carbono já não será uma árvore e sim um animal. Da mesma forma, se os propósitos mudarem também o sistema muda: se a universidade se propuser a fazer dinheiro ou ganhar nos esportes, seu propósito de disseminar conhecimento se perde. Sistemas se estendem no tempo, com estoques de elementos (países tem populações), fluxos (nascimentos e mortes) e mecanismos de regulação que buscam a estabilidade sistêmica mas que nem sempre funcionam. (Um país pode se esvaziar por guerras, epidemias, desertificação etc.). No pensamento sistêmico deixamos de buscar saber se a causa b, mas se b também influencia a e se a se reforça ou sofre reversão: uma área de solo erodido dificultará o crescimento das plantas, que em consequência terão raízes mais fracas e que, portanto, não segurarão o solo etc. O jeito usual e antigo de analisar, de construir linhas entre causa e efeito, de dividir o todo em peças compreensíveis é insuficiente e enganoso. Se alguém diz que crescimento populacional causa pobreza, devemos também perguntar se pobreza causa crescimento populacional. Na visão sistêmica não se busca a causa e sim os drivingfactors, os fatores que agem como detonadores: que fatores econômicos, ambientais e sociais influenciam fertilidade e mortalidade? Que fatores do crescimento populacional influenciam os fatores econômicos, ambientais e sociais? A partir daí, identificar os leverage points, os pontos de alavancagem importantes para iniciar uma mudança pretendida.

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Sistemas estão dentro de sistemas, que estão dentro de sistemas e assim sucessivamente. Se não levarmos isso em conta, soluções isoladas podem ser ineficazes: em exemplo nosso, a dengue é transmitida por um mosquito infectado, mas matá-lo não soluciona o problema sistêmico que o reproduz, o do adensamento humano pobre conjugado com saneamento inexistente, falta de higiene e de políticas sanitárias. Reestruturar os sistemas nos quais vivemos, identificar pontos de alavancagem para a mudança foi o que Meadows buscou. Ela tratou de situações dinâmicas que consistem em sistemas complexos, buscando compreender como problemas interagem entre si. Em resumo, ela ensinava a examinar as interconexões e a se guiar pela pergunta “e se?”. Em resumo: sustentamos que a complexidade conceituada por Morin no plano epistemológico encontra sua possibilidade de operacionalização na metodologia da compreensão sistêmica ensinada por Meadows. Isso implica, todavia, no encontro e diálogo das diversas ciências e saberes práticos, o que está proposto nos esforços interdisciplinares e na pretensão transdisciplinar. Passemos a examinar esta possibilidade.

3 Paralelismos e convergências Todo o acima exposto nos leva a examinar quais as possibilidades de convergência ou de cooperação de saberes fragmentados acerca de cada driving fator, ora como síntese, ora como conhecimento mútuo. De acordo com Naomar de Almeida Filho (1997), haveria seis formas diferentes de aproximação dos saberes: a multidisciplinaridade, a pluridisciplinaridade, a metadisciplinaridade, a interdisciplinaridade auxiliar, a interdisciplinaridade, e a transdisciplinaridade:  Na multidisciplinaridade temos um conjunto de disciplinas que tratam simultaneamente de uma dada questão, problema ou assunto, sem que os profissionais implicados estabeleçam entre si efetivas relações no campo técnico ou científico. Nela há uma justaposição de disciplinas, sem uma cooperação sistemática entre os diferentes campos disciplinares e a coordenação, quando existente, é de ordem administrativa, na maioria das vezes externa ao campo científico. O exemplo dado pelo autor versa sobre as práticas ambulatoriais tradicionais, ou no acompanhamento de pacientes hospitalizados, quando os profissionais da saúde

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trabalham isoladamente, cada um na sua competência, sem intercâmbio e sem cooperação.  Na pluridisciplinaridadehá objetivos comuns e um certo grau de cooperação mútua e uma perspectiva de complementaridade. Por exemplo: ainda na área da saúde, as reuniões clínicas onde casos de pacientes são discutidos por algum supervisor ou chefe de serviço, trocando-se informações de diversos profissionais; as mesas-redondas ou painéis de diferentes especialistas sobre um mesmo tema, etc… A pluridisciplinaridade pode assim, portanto, ser entendida como uma prática interna a um campo e suas subdisciplinas.  A metadisciplinaridade se dá quando “a interação e as inter-relações entre as disciplinas são asseguradas por uma metadisciplina que se situa em um nível epistemológico superior”, que não funciona como coordenadora, mas como integradora do campo metadisciplinar. O exemplo de Almeida Filho são as matemáticas e o uso de sua linguagem formalizada de comunicação científica aplicada pelas diversas disciplinas. No que diz respeito as ciências sociais, a metadisciplinaridade pode ser exemplificada pela presença da Economia como catalisadora das interpretações sobre o mundo sócio-político-cultural.  Quanto a interdisciplinaridade, Almeida a desmembra em interdisciplinaridade auxiliar, salientando uma relação assimétrica: “diferentes disciplinas interagem sob a dominação de uma delas, que se impõe enquanto campo integrador e coordenador”. O exemplo ainda nos vem da área da saúde, entre as chamadas disciplinas paramédicas e a medicina.

 A segunda forma de interdisciplinaridade, a interdisciplinaridade tout court, seria “estrutural, com tendência à horizontalização das relações de poder entre os campos” e implica na identificação de uma problemática comum, levantamento de uma axiomática teórica e/ou política básica e uma plataforma de trabalho conjunto.  Por último, a difícil questão da transdisciplinaridade, que adviria da criação de um campo teórico, operacional ou disciplinar de tipo novo e mais amplo. Nele há “a integração de disciplinas de um campo particular sobre a base de uma axiomática geral compartilhada”. A coordenação seria dada por uma finalidade comum, haveria a tendência à horizontalização de poder e este novo campo desenvolveria uma autonomia teórica e metodológica diante das disciplinas que o compõem. (ALMEIDA, 1997,5-20)

As questões ambientais, nos seus aspectos globalizantes, holísticos, sistêmicos, complexos, vêm impondo a necessidade de estudos que construam uma aproximação e trabalho comum entre as ciências da natureza e as ciências sociais e entre estas e os saberes práticos. Funtowicz denominou tal encontro de “comunidade ampliada de pares”. Algumas destas confluências são

fáceis,

como

no

caso

da

Geografia,

que

passa

a

examinar:

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ajustes/desajustes da relação sociedade/natureza através das temáticas da água (inundações, secas, energia), da erosão (natural e antrópica), do solo (sistemas agrícolas), do subsolo (mineração); ou no caso da Demografia, estudando a pressão demográfica sobre o espaço, a influência das doenças e epidemias na dinâmica populacional etc. Todavia, a aproximação com as ciências empíricas ou da natureza vem sendo difícil pelo lado da Sociologia, que lida mal com os fatores biofísicos, por receio de recair no argumento determinista. A Sociologia está no estágio da metadisciplinaridade, no sentido de que se pauta por outras disciplinas já consagradas, a Matemática, ao introduzir o cálculo como elemento de verdade e a Economia, ao tomar a hegemonia da produção como fator explicativo da sociedade. Mas recusa a questão biofísica, embora tenha no seu nascimento pautado-se por um paradigma organicista. Mas que era abstrato, apenas uma metáfora para uma sociedade com harmonia interfuncional. No campo mais restrito das ciências sociais – Sociologia, Ciência Política, Antropologia Social, Psicologia Social, a interdisciplinaridade é hoje praticada, embora com certo cuidado em manter fronteiras que na verdade são recortes para defesa de territórios e de reservas profissionais, fronteiras que não se sustentam quando observamos sua bibliografia comum. E que tornam as escolhas dos jovens mais difíceis, por terem de decidir prematuramente se irão entrar no curso de sociologia ou de antropologia social, apresentados como saberes separados. Por outro lado, pensadores como Morin são apresentados de várias maneiras: antropólogo, sociólogo, filósofo. Um dos nossos maiores economistas, Celso Furtado, era diplomado em Direito. Mas é a temática socioambiental que encoraja a formação de um campo novo, de encontro e cooperação entre os diferentes saberes que lhe dizem respeito. Tanto assim que nos Estados Unidos Donella Meadows ficou conhecida como cientista ambiental. No caso brasileiro, esta nova temática tem inspirado a criação de alguns programas de pós-graduação interdisciplinares, que foram desenhados como este espaço desejado de cooperação e de integração dos diferentes saberes afetos ao meio ambiente, tais como:

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Biologia, Ecologia, Medicina, Ciências Sociais, Engenharia, Direito, Química, Filosofia etc3. No entanto, até onde me foi dado conhecer teses e dissertações desenvolvidas sob a chancela de programa único e de cunho interdisciplinar, cada uma delas se atém a um único aspecto da sua seara e, quando procura levar em conta mais de um enfoque disciplinar, costuma fazê-lo em menções em planos paralelos, que não se integram. Então, hipoteticamente, à guisa de exemplo, um programa de pós-graduação interdisciplinar sobre ambiente e sociedade poderá abrigar uma tese sobre doenças ambientais (por vetores) e outra tese sobre alterações no uso do solo, sem que se procure investigar a interconexão entre os temas.

Ou uma mesma tese pode versar sobre a

ocorrência de desastres ambientais e a criação de uma institucionalidade para enfrentá-los, fazendo-o como capítulos independentes, sem procurar ligá-los, deixando de analisar, por exemplo, fatores que limitam a eficácia institucional, tais como as restrições de renda no acesso à terra urbana aedificandi. Como salientou Morin, falta reconhecer a complexidade – do real e dos saberes – pelos “cientistas burocratizados” formados por modelos clássicos de pensamento, que enclausuram e fragmentam o saber, que separam o homem da natureza e que revestem o conhecimento científico de esoterismo. Na corrente inversa desta tendência descrevemos a seguir uma iniciativa inovadora realizada pela UFF.

4 Um exemplo na UFF: Desenvolve-se na Universidade Federal Fluminense - UFF o projeto Museu Vivo e Arquitetura Bioclimática (Maloca) como Saber Indígena, que une conhecimentos da academia e da cultura popular em prol de uma arquitetura sustentável e mais conectada com a natureza 4. Registrado na Pró-Reitoria de Pós-Graduação, Pesquisa e Inovação (Proppi), foi oficializado com o grupo de 3

Ver o trabalho “Programas de Pós-Graduação em Ciências Ambientais e similares no Brasil – uma listagem preliminar”, feito por José Augusto Drummond e Andreia Schroeder. Revista Ambiente e Sociedade, NEPAM, Campinas, ano I, número 2, 1º semestre de 1998, pp. 139 – 149. 4 http://www.uff.br/?q=noticias/23-02-2015/cultura-indigena-viva-na-uff

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pesquisa Transculturalidade e Paisagem, com apoio da UNESCO, em cooperação técnica com a Universidade de Paris 8 (Saint-Denis) por meio do Programa Capes-Cofecub (Comitê Francês de Avaliação da Cooperação Universitária com o Brasil). Faz parte do Seminário Transculturalidade e Partilha da Verdade Universitária e também se liga ao projeto-conjunto de pesquisa “A Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana” do antropólogo transcultural francês Jacques Poulain, professor emérito da Universidade de Paris 8 e presidente da cátedra de Filosofia da Cultura e das Instituições da Unesco. Sua Coordenadora, a arquiteta e antropóloga Dinah Papi de Guimarães (EAU e PPGAU), destaca que o conteúdo teórico e prático se afina com a Lei nº 11.645, de 2008, que tornou obrigatória a inclusão, nos conteúdos didáticos do estudo da história e culturas afro-brasileiras e indígenas e com a orientação do Ministério da Educação para que esses saberes orais e tradicionais indígenas sejam considerados no mesmo patamar que os conhecimentos classicamente ministrados na academia. Um outro exemplo, citado pela Professora Dinah, é a disciplina “Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais”, ministrada por um docente índio Kamayurá na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília. Na experiência da UFF o projeto realizou a construção de duas ocas no Campus da Praia Vermelha (Niterói), como protótipos da arquitetura bioclimática, inspirada em teóricos como Severiano Mário Porto, expoente da arquitetura regionalista, e com aulas práticas ministradas em parceria com índios Guarani e de etnias do Alto Xingu (como os Kamayurá, Baniwa, Yawalapiti, Aweti e outros). Cada oca ilustrando um saber diferente de construção xinguana e guarani: a oca guarani tem uma estrutura de madeira de lei, eucalipto e caibros de madeira, com cobertura de sapê; axinguana utiliza uma estrutura baixa de eucalipto, madeira de lei, um trançado de bambu e amarrações da estrutura feita com embira kamayurá e cobertura de sapê. Neste caso para resistir às chuvas. Cada etapa da construção foi pontuada por rituais, rezas e cânticos acompanhados por flautas xinguanas, como forma de respeito aos antepassados nativos, e a fim de purificar e “abrir” os caminhos para a boa conclusão da obra. Por ocasião de seu desmonte, a edificação passará por novos rituais.

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“Quando você trabalha com cultura indígena, leva em conta a cosmovisão, se despe do eurocentrismo e vê pela lógica do índio. Quando ele faz um estudo de território, pergunta primeiro aos antepassados daquela terra, para saber o que querem. Estabelece um ‘diálogo’ e presta conta para eles, porque os antepassados e os mais velhos são considerados professores para os indígenas. É um passado que é vivo. Por isso, é importante ter um entendimento e uma comunhão de vozes entre essas culturas e a parte acadêmica, levar tudo isso em conta” (Carol Potiguara, índia, historiadora graduada pela UFF e integrante do projeto).5

A professora Dinah sublinhou o enfoque intercultural e transcultural dialógico que inspira o projeto, buscando não apenas a inclusão do indígena, mas também o reconhecimento do saber dos índios pela universidade.6 O exemplo aqui narrado é uma bela iniciativa que integra antropologia, arquitetura e ambiente urbano. O ensinamento indígena nele descrito não se limita ao plano das práticas ambientais dos saberes tradicionais, mas aponta também para uma proposta de se ressignificar o ato de construir na sua dimensão simbólica e na sua sacralidade, aspectos abandonados pela racionalidade moderna. Esperemos que nossos alunos não só os percebam, como possam incorporá-los em sua futura vida profissional.

Referências ALMEIDA FILHO, N. Transdisciplinaridade e Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz. Revista Ciência e Saúde Coletiva II (1/2), 1997, pp 5 – 20. FUNTOWICZ, S. &RAVEtz, J. Ciência Pós-normal e comunidades ampliadas de pares face aos desafios ambientais. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, História, Ciências, Saúde, vol IV (2), 1997, pp 219 - 230. HABERMAS, J. Théorie de L'AgirCommunicationel, Tome II. Trad.J.L. Schlegel. Paris: Fayard, 1987. MATURANA, H. & VARELA, F. L' Arbre de laConnaissance: racinesbiologiques de lacompréhensionhumaine. Paris/ Ed. AddisonWesley, 1994.

5

http://www.uff.br/?q=noticias/23-02-2015/cultura-indigena-viva-na-uff Fonte:http://www.uff.br/?q=noticias/23-02-2015/cultura-indigena-viva-na-uff, capturado em 19 de maio de 2015 6

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MEADOWS, Donella.Thinking in systems. Diana Wright (ed.). Vermont. Sustainability Institute, 2008 (kindle edition). MINAYO, M. Cecília. O desafio do conhecimento. São Paulo;Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 1996. MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1998. MORIN, Edgar. O método 2 – a vida da vida. Porto Alegre: Sulina,2005b. MORIN, Edgar. O método 3 – o conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina, 2005. MORIN, Edgar, MOTTA, Raul e CIURANA, Emilio-Roger. Educar para a era planetária – o pensamento complex como método de aprendizagem no erro e na incerteza humanos. Porto Alegre: Instituto Piaget, Coleção Horizontes Pedagógicos, s.d. SENNETT, Richard. Juntos – os rituais, os prazeres e a política da cooperação. Rio e São Paulo: Record, 2013.

CAPÍTULO 2 UNIVERSIDADE E EXPERIÊNCIAS DE PARTICIPAÇÃO NO ESPAÇO URBANO: POR UMA PEDAGOGIA POLÍTICA EM TERRITÓRIOS VIVIDOS POR FAMÍLIAS POBRES1 Cláudio Jorge Moura de Castilho2

Resumo Busca-se, neste texto, encorajar o pensamento sobre os avanços das conquistas das experiências de participação da Universidade no espaço urbano, através da reflexão crítica sobre as práticas do grupo de pesquisa Movimentos Sociais e Espaço Urbano (MSEU) junto a movimentos sociais em Recife/Brasil. A estrutura deste texto baseia-se em resultados das experiências práticas e teóricas acumuladas pelo MSEU. Mostrou-se, ao final, que as interrelações resultantes da reaproximação entre Universidade e movimentos sociais estão esboçando possibilidades concretas do estabelecimento de uma pedagogia política em territórios vividos da cidade, o que se faz relevante para a concretização do desenvolvimento territorial. Palavras-chave: Universidade. Comunicação. Sociedade. Pedagogia política.

UNIVERSITY AND PARTICIPATIVE EXPERIENCES IN THE URBAN SPACE: FOR A POLITICAL PEDAGOGY IN LIVED TERRITORIES BY POOR FAMILIES Abstract

1

Reflexão realizada com base no conteúdo de uma conferência proferida na Universidade de Catania (Sicília/Itália), em maio do ano de 2015, durante a realização de atividades naquela instituição, na condição de Professor Visitante junto ao TEMA European Master Course/EuropeanTerritories (Civilization, Nation, Region, City): Identity and development. 2 Doutor em Géographie Aménagement du Territoire Urbanisme. Professor Associado do Departamento de Ciências Geográficas da Universidade Federal de Pernambuco, atuando nos Programas de Graduação em Geografia e Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente. Coordenador do grupo de pesquisa Movimentos Sociais e Espaço Urbano, [email protected].

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This text encourages the thinking towards the progress of the achievements of the University participatory experiences in the urban space, through a critical reflection on the practices of research’s group Social Movements and Urban Space (MSEU) whithin social movements in Recife/Brazil. The structure of this text was based mainly on results of the theorical and practical experiences accumulated by MSEU. Finally, it showed that the inter-relationships between University and social movements are outlining concrete possibilities of establishing a political pedagogy in lived territories of the city, which is relevant to the achievement of the territorial development. Keywords: University. Communication. Society. Political pedagogy.

1 Palavras Iniciais O objetivo principal deste texto é pensar sobre os avanços das conquistas obtidas através das experiências de participação da Universidade no espaço urbano, o que será feito, sobretudo, pela reflexão relativa às práticas do grupo de pesquisa Movimentos Sociais e Espaço Urbano (MSEU) junto a movimentos sociais em Recife/Brasil. Tais práticas acham-se no âmbito do que se está chamando aqui de “pedagogia política”, a qual pressupõe a concretização de uma práxis, isto é, de ações que articulam, dialética e dialogicamente, teoria e prática em uma perspectiva interdisciplinar e complexa do processo de produção do espaço urbano no curso da sua dinâmica histórica. Partindo do pressuposto de que essa perspectiva deve abranger todas as manifestações da vida humana, leva-se em conta, de imediato, a visão de um dos grandes artistas do século XX. Isso porque se faz necessário resgatar a relevância da dimensão política, dentre outras do conjunto das atividades humanas, visto que a ciência não está sozinha no mundo.

O que seria um artista para você? Um deficiente que só possui olhos se for pintor, só ouvidos se for músico, só uma cítara para todos os estados de ânimo se for um poeta. Ou mesmo só músculos se for camponês? Mas isso só não é suficiente! Ele é ao mesmo tempo um ser político, que vive constantemente consciente dos acontecimentos mundiais destrutivos, problemáticos e alegres, formando-se em todos os seus sentidos segundo sua imagem. Como seria possível não ter nenhum interesse pelos outros seres humanos enclausurandose em uma torre de marfim, indiferente à vida que nos é oferecida de maneira tão abundante? Não, a pintura não foi

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inventada para decorar apartamentos. Ela é a única arma de ataque e de defesa do inimigo. (PABLO PICASSO, 2015, tradução nossa)

É este espírito, também presente nas artes3 e na ciência, que tem movido o exercício da pedagogia política que o MSEU – grupo de pesquisa de uma universidade pública – está tentando construir, para o que, aliás, tem-se pensado e refletido, permanentemente, acerca de metodologias adequadas à realização das suas atividades. A metodologia deste texto fundamentou-se, notadamente, em resultados das atividades de leituras e debates sobre teorias dos movimentos sociais, sempre, na sua relação com o mundo, bem como nas lições aprendidas com os próprios sujeitos desses movimentos durante as diversas experiências realizadas além das fronteiras da Universidade. Diante do acima exposto, apresentam-se, primeiramente, os princípios fundamentais do papel da Universidade junto aos movimentos sociais; em segundo lugar, as bases teóricas das atividades realizadas; em terceiro, a escolha metodológica; e, em quarto, as considerações finais.

2 Princípios fundamentais do papel social da Universidade Para cumprir com seu papel social, a Universidade deve, portanto, resgatar o exercício efetivo da práxis, isto é, promover a reaproximação permanente entre teoria e prática no que concerne à sua postura no âmbito da sociedade na qual se acha inserida, construindo e aperfeiçoando a pedagogia política. Somente nesse sentido é que a Universidade terá condições de contribuir para o efetivo desenvolvimento territorial para todos, que é o que se está buscando. É com base nesta ideia que se formula a hipótese segundo a qual sem uma mudança cultural efetiva não se conseguirá concretizar este 3

Pier Paolo Passolini, grande cineasta italiano do século XX, também, se colocava como intelectual/escritor definindo-se como pessoa que procurava seguir tudo o que acontecia no mundo, acompanhando os processos inerentes ao local e ao extralocal e articulando os fragmentos da realidade a fim de reconstituir a lógica do presente descortinando o mistério, a confusão e a arbitrariedade do mundo obtuso, fascista e consumista (VIVA PASSOLINI, 2015). Segundo Morin (2014, p. 43 e 45), enfim, ensaios, romances, cinema, etc. mostram-nos o que está invisível na ciência – a qual tem ocultado a existência das pessoas – “cantando” os sofrimentos dos humanos submetidos aos imperativos da racionalidade técnica e instrumental do capitalismo selvagem.

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desenvolvimento, o qual possui como ponto de partida o fortalecimento do território como espaço vivido pelas pessoas. Isso porque, segundo Santos (1997, p. 258), é No lugar, nosso Próximo [...] – um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas e instituições – cooperação e conflito são a base da vida em comum. [...] O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade.

A Universidade começa, portanto, a romper as fronteiras que a têm levado a adotar posturas lineares e conservadoras, notadamente no que diz respeito à sua prática. Essa mudança é reforçada, em seu interior, pelas diversas posturas complexas e progressistas que, felizmente, existem e criam novas práticas quando seus atores se reaproximam do cotidiano compartido pelas diversas classes sociais, consolidando suas teorias e metodologias no sentido de uma práxis efetivamente concreta. Nessa perspectiva, o processo de luta das ocupações urbanas tem atraído diversos intelectuais, os quais, a partir das instituições públicas a que pertencem, passaram a reforçar tais atividades, principalmente após o processo epistemológico ocorrido nos anos 1970 na geografia urbana brasileira. Com efeito,

A luta pela apropriação da terra urbana pelas camadas mais pobres da sociedade também despertou o interesse dos geógrafos críticos, levando-os inclusive a participar, de forma engajada, desse processo. [Em 1982, estudos] chamaram a atenção para o significado (teórico e empírico) das invasões [hoje, ocupações] organizadas de terrenos, que cada vez mais ocorriam nas cidades brasileiras. (ABREU, 1992, p. 63)

Com isso, a Universidade aprendeu a fazer ciência, sempre engajada, na perspectiva de, pelo menos, “aliviar a miséria da existência humana” tal como defendido por Alves (2000, p. 217), buscando concretizar a meta do desenvolvimento territorial.

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3 Em busca de bases teóricas adequadas à criatividade Partindo do pressuposto de que já se tem refletido sobre tais questões, o MSEU realiza, concomitantemente, uma profunda revisão da literatura sobre as relações dos sujeitos sociais com a sociedade na qual se formam, resgatando considerações interessantes e pertinentes para o momento atual, feitas por grandes pensadores do século XX. Uma primeira consideração, nesse sentido, possui como ponto de partida o fato de que, compreendendo que não se pode separar o homo faber do homo sapiens,

Todos os homens são intelectuais [...]; mas nem todos [...] desempenham função social de intelectuais na sociedade [...]. O que se nota é que, historicamente, formam-se categorias especializadas no exercício da função intelectual, em conexão com os grupos sociais mais importantes, sofrendo influências amplas e complexas inerentes aos interesses do grupo social dominante [...]. (GRAMSCI, 1996a, p. 11, tradução nossa)

É interessante pensar sobre essa função de intelectual, na medida em que, segundo o mesmo autor, ela possui caráter diretivo e organizativo, ou seja, educativo, intelectual. Isso para estimular a reflexão sobre as possibilidades concretas da formação desse intelectual – Geógrafo, Professor de Geografia, etc. – nos diversos territórios do seu acontecer histórico. Por isso, Cada homem, enfim, além da sua profissão, realiza alguma atividade intelectual, sendo assim um ‘filósofo’, um artista, um homem de bom gosto, participa de uma concepção de mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, sustentando ou modificando uma concepção de mundo, isto é, suscitando novos modos de pensar. [...] O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na eloquência, dirigindo afetos e paixões exteriores e momentâneas, mas na diversidade da vida prática, como construtor, organizador, ‘persuasor permanente’ porque não se trata de puro orador – é ainda superior ao espírito abstrato matemático; da técnica-trabalho chega à técnica-ciência e à concepção humanista da história, sem a qual se permanece ‘especialista’ e não se torna ‘dirigente’ (especialista + político). (GRAMSCI, 1996a, p. 18, tradução nossa)

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Daí a preocupação do MSEU com a necessidade de se reforçar o papel político dos sujeitos, das classes e das instituições sociais no processo histórico de produção do espaço urbano, considerando e respeitando os diversos saberes envolvidos. Mas o que é esse papel político? Aproximando-se do que disse Picasso a este respeito, na entrevista citada mais acima,

O político é um criador, um provocador, mas ele não cria do nada, ele se move para o vazio dos desejos e sonhos escuros. Fundamenta-se sobre a realidade efetiva [atual], mas o que é essa realidade efetiva? [...] É aquela movida pela vontade de criar um novo equilíbrio das forças realmente existentes e operantes, baseando-se em uma determinada força progressiva, e potencializando-a para o triunfo, a partir do terreno da realidade efetiva, mas para dominá-la e superá-la (ou contribuir para isso). O ‘dever ser’ é, portanto, concretude, é a interpretação realista e historicista da realidade, é a história e a filosofia nos seus aconteceres, é política. (GRAMSCI, 1996b, p. 34, tradução nossa)

Esta perspectiva teórica da dimensão do político na vida não somente aproxima-se significativamente da que Freire (1983) defendeu em sua Pedagogia

do

Oprimido,

como

da

dimensão

prática

das

atividades

institucionais denominada, por ele, de comunicação. Para o que, aliás, a educação na perspectiva da “cabeça bem-feira” – contraria à da “cabeça cheia” ou “bancária” – desempenharia papel fundamental, isto é, [...] se a educação é essa relação entre sujeitos cognoscentes, mediatizados pelo objeto cognoscível, na qual o educador reconstrói, permanentemente, seu ato de conhecer ela é necessariamente, em conseqüência, um quefazer problematizador. A tarefa dos educadores então, é a de problematizar aos educandos o conteúdo que os mediatiza, e não a de dissertar sobre ele, de dá-lo, de estendê-lo, de entregá-lo, como se se tratasse de algo já feito, elaborado, acabado, terminado. (Ibidem, p. 56)

Da mesma maneira, então, em que se considera tal perspectiva no âmbito das práticas de ensino e pesquisa dentro da Universidade, procura-se, também, levá-la para fora desta instituição, isto é, colocando-a em prática durante e a partir da realização das atividades do MSEU junto aos movimentos sociais.

33

Isso nos tem levado não somente a rever continuamente nossas posturas teóricas e práticas, como as metodológicas, buscando, sempre, aperfeiçoar o processo da construção de uma práxis efetivamente comprometida com o desenvolvimento territorial.

4 Metodologia, sempre, em construção No curso da sua existência, o MSEU tem aprendido que não existe uma metodologia,

mas

metodologias,

no

processo

de

comunicação

entre

Universidade e sociedade. Isso, principalmente, porque cada forma de movimento social exige posturas metodológicas específicas, no espaço e no tempo, além do que os movimentos sociais constituem processos tão escorregadios que não se consegue defini-los e conceituá-los de maneira precisa e simples. Da mesma maneira, quando se reaproxima do cotidiano dos sujeitos em seus territórios vividos, faz-se necessário estabelecer diálogos entre os saberes e as várias posturas metodológicas existentes, o que acontece em função da complexidade desses espaços. Apresentar-se-á, a partir de agora, experiências do MSEU ocorridas diretamente junto a diferentes práticas de movimentos sociais – aqui sendo considerados, também, como sujeitos – em seus territórios, ao nível mais local dos movimentos sociais, isto é, em processos de: ocupação de terrenos na cidade; mobilização contra práticas urbanísticas de expulsão de moradores; e protestos contra a baixa qualidade das construções dos conjuntos habitacionais recebidos pelas famílias pobres relocadas, através das ações do Programa de Subsídio à Habitação de Interesse Social (PSHIS), gerido pela Prefeitura do Recife. Também, apresentar-se-á uma experiência da qual o MSEU não tem participado diretamente, mas que tem acontecido em uma escala mais global, a da cidade, encorajando a realização de uma crítica profunda à atual lógica de produção do espaço urbano em nossas cidades. Trata-se do caso do movimento Ocupe Estelita.

34

4.1 Metodologia para atividades de ocupação de terrenos na cidade

Resgatando a dimensão política das práticas sociais, no âmbito de uma pedagogia política, faz-se necessário começar pela realização de oficinas para discussão sobre os problemas a serem enfrentados4. Tais oficinas possuíram como objetivos principais: suscitar a compreensão da “natureza” do processo de produção do espaço urbano; identificar os principais agentes e atores do processo de produção do espaço urbano; e estimular a reflexão sobre o papel desempenhado pelos movimentos sociais no processo de produção do espaço urbano que lhes interessa, em algum sentido. No que diz respeito à dinâmica das oficinas realizadas, utilizou-se da: distribuição de folhetos de convocação dos sujeitos para as reuniões comunitárias (Figura 1); discussão dos seus problemas, baseada nos temas geradores extraídos diretamente dos discursos proferidos durante as reuniões, utilizando-se das suas próprias falas (solidariedade, união, mobilização, conquista, etc.); e realização de atividades práticas, utilizando-se de imagens e materiais manipulados para a formulação de representações sobre seus problemas cotidianos relativos à conquista do direito à cidade.

Figura 1: Folheto para mobilização. 5 Fonte: Estudantes do MSEU (2010) .

Esta experiência de comunicação chegou a elaborar e apresentar aos moradores da Ocupação, dois planos de construção: o primeiro, visando à organização do espaço do “bairro”; e o segundo, o das casas (Figura 2) a 4

“Pensando a cidade a partir do território vivido: a cidade vista do lado de cá!” é o título do primeiro projeto de comunicação do MSEU, realizado em 2010 na ocupação Josué de Castro (CASTILHO, 2011). 5 Nota: o conteúdo deste material foi elaborado com base nos problemas e nas discussões estabelecidos no processo de ocupação do terreno na cidade.

35

serem construídas para os ocupantes do território em pleno movimento de conquista.

Figura 2 – Plano de construção do “bairro” (à esquerda) e das casas (à direita). Fonte: Professora e estudantes do Curso de Arquitetura do ESUDA, então membros do MSEU, 6 (2010) .

Com efeito, vale reiterar que as atividades do MSEU sempre se pautaram no respeito aos saberes dos sujeitos envolvidos nos movimentos sociais, condição sine qua non para a concretização necessária do diálogo entre os saberes defendido por Leff (2009).

4.2 Metodologia para mobilização social contra a expulsão de moradores

Há, atualmente, em nossas cidades, vários projetos de expulsão de moradores pobres dos seus territórios vividos; os quais foram retomados, sobretudo, em momentos específicos inerentes ao processo de produção do espaço urbano, isto é, naqueles em que os interesses de caráter higienista e gentrificador tornaram-se mais explícitos. Contudo, quando tais projetos ameaçam territórios de sujeitos que adquiriram cultura de mobilização social, no curso de suas histórias de vida na cidade, suas práticas de contestação conseguem, pelo menos, atrapalhar os interesses dominantes, na medida em que resistem e conseguem permanecer em seus territórios.

6

Nota: fez-se primeiramente um esboço, que foi apresentado e discutido com os moradores do território, os quais sugeriram modificações que foram contempladas, na perspectiva que se aproxima do que se tem chamado de “produção social do habitat”.

36

A Universidade, junto a diversas outras instituições sociais (Figura 3), tem atuado de maneira significativa no que concerne ao esclarecimento dos interesses que estão por detrás dos projetos acima citados, isto é, daqueles que buscam reconquistar espaços que se valorizam economicamente na cidade. Neste caso, o papel do MSEU consistiu, principalmente, em dar suporte, sem nenhum tipo de dirigismo, ao processo de mobilização das famílias que moravam em áreas do entorno do Canal Ibiporã (bairro CoqueRecife), junto ao movimento Coque (R)Existe e a outras instituições sociais.

Figura 3 – Universidade no Coque. 7 Fonte: acervo do MSEU (2013) .

Nessa mesma perspectiva, outra atividade realizada pelo MSEU consistiu em dar suporte às discussões iniciadas, também no ano de 2013, sobre as possibilidades de expulsão de famílias, sempre pobres, dos seus territórios para, em nome de uma questão de “utilidade pública”, viabilizar o projeto de navegabilidade do rio Capibaribe. O motivo da mobilização dos moradores do território Vila Santa Luzia (bairro Torre-Recife) baseou-se, sobretudo, na dúvida sobre as reais possibilidades de serem expulsos pelas obras de construção das estações fluviais e vias de

7

Nota: participação de membros do MSEU no processo de discussão do projeto de realização de obras de retificação do canal Ibiporã e qualificação do entorno.

37

acesso para integrar tais estações à malha urbana de transportes coletivos; o que significaria desapropriações e expulsões. Visando facilitar as discussões entre a Prefeitura e os moradores, o MSEU propôs e apresentou aos moradores da Vila Santa Luzia uma representação cartográfica da localização e distribuição espacial (Figura 4) dos diversos territórios vividos existentes ao longo de um dos trechos do Rio, isto é, daquele mais próximo dos sujeitos. Essa proposta pretendeu facilitar a compreensão da posição do território Vila Santa Luzia no âmbito do problema discutido; bem como suscitar o conhecimento da localização de outros territórios – que poderiam estar vivenciando o mesmo problema – com os quais se poderia promover atividades de articulação visando ao fortalecimento do processo de mobilização, em uma dimensão para além do seu território.

Figura 4 – Territórios vividos em um trecho do Rio Capibaribe. 8 Fonte: Estudantes do MSEU, sob orientação do Coordenador do Grupo (2013) .

Paralelamente, buscou-se, neste momento, aproveitar as bases de dados elaboradas em outros grupos de pesquisas, a fim de desenvolver – não de levar/estender sob os parâmetros de simples atividades de extensão – junto aos movimentos sociais em ação, perspectivas concretas de articulação. Isso, principalmente, com base em trabalhos de geoprocessamento realizados dos territórios vividos existentes na cidade: ZEIS e não-ZEIS.

8

Nota: apesar do número considerável de territórios ao longo do Rio Capibaribe, não existem práticas de cooperação entre os seus moradores.

38

4.3 Metodologia para acompanhar revoltas de moradores contra a baixa qualidade dos conjuntos habitacionais recebidos

O

MSEU,

também,

aproximou-se

de

áreas

dos

novos

conjuntos

habitacionais entregues às famílias pobres pela Prefeitura, através do PSHIS, procurando, simultaneamente, dar suporte a reações contra a baixa qualidade das construções. O que nos deixa indignado é que, sem nenhum diálogo, continua-se a remover famílias pobres – com o apoio do Estado – para atender os interesses de valorização econômica dos espaços dos quais tais famílias são retiradas a fim de, posteriormente, serem ocupadas pelos agentes do complexo dos capitais comercial, imobiliário e financeiro. Os Conjuntos Habitacionais Palha do Arroz e Saramadaia (bairro Campo Grande-Recife) são dois exemplos do desrespeito do atual PSHIS com relação às famílias pobres (Figura 5). Mas quando essa postura de desrespeito é percebida pelos seus moradores, geralmente, eles começam a mover-se a fim de buscarem, pelo menos, algumas medidas de mitigação dos novos problemas enfrentados. Faz-se necessário reiterar que, para a realização das atividades acima apresentadas,

a

estratégia

metodológica

da

proximidade

geográfica

desempenha papel fundamental. Contudo, segundo Santos (1997, p. 255)

[...] a proximidade que interessa ao geógrafo [...] não se limita a uma mera definição de distâncias; ela tem que ver com a contigüidade física entre pessoas numa mesma extensão [...] vivendo com a intensidade de suas inter-relações. [...] É assim que a proximidade pode criar solidariedade, laços culturais e desse modo a identidade.

Em sendo assim, esta proximidade geográfica é fundamental para se chegar ao sonhado e desejado desenvolvimento territorial, para o que, ademais, temse que extrapolar as lutas em escala local para as outras escalas do acontecer histórico dos movimentos sociais.

39

Figura 5 – Conjuntos Habitacionais Saramandaia (fotos superiores) e Palha do Arroz (fotos inferiores). 9 Fonte: acervo do MSEU (2015) .

E é nesta perspectiva que se tem esboçado, em Recife – como em outras cidades do Brasil e do mundo –, o movimento Ocupe Estelita, ou seja, um movimento social mais abrangente, mobilizador da cidade como um todo, como uma possibilidade de se discutir a cidade em sua totalidade.

4.4 Metodologia para lutas urbanas mais abrangentes: as perspectivas criadas pelo movimento Ocupe Estelita

Este é, portanto, outro nível necessário das lutas urbanas contemporâneas, que também deve ser considerado no âmbito das práticas de comunicação entre Universidade e sociedade. O MSEU ainda não tem participado diretamente da experiência do movimento Ocupe Estelita (Figura 6), porém não pode negligenciá-la, sobretudo em função do seu papel no processo de pressão social sobre o Estado, fazendo-o “rever” suas práticas no espaço. 9

Nota: observa-se que, apesar desses conjuntos terem sido entregues recentemente aos moradores, há problemas como esgotos estourados, rachaduras das paredes dos blocos de apartamentos, reformas irregulares, etc.

40

Como acima dito, o MSEU ainda não está participando diretamente deste movimento tal como nos anteriores, muito embora o apoie e tenha muitos de seus membros frequentando as atividades e os protestos realizados junto a esta prática de luta social. De qualquer maneira, este movimento é muito particular, na medida em que é movido por uma rede de inter-relações entre grupos de pesquisa, cursos, entidades, moradores, lideranças políticas, etc. constituindo referência para qualquer outra luta urbana atualmente na cidade.

Figura 6 – Movimento Ocupe Estelita. 10 Fonte: imagens capturadas do Google (2015) .

Todavia, seria prudente desconcentrar as energias voltadas quase que exclusivamente para esta – interessante – experiência. Isso, no sentido de atender, talvez numa perspectiva de prevenção, outras “futuras” demandas de sujeitos ameaçados – em bairros como Casa Amarela, Santo Amaro, etc. – 10

Nota: há, na área, um processo de mobilização permanente, que não está somente lutando pela preservação do patrimônio histórico local, mas, ao mesmo tempo, fazendo e reforçando uma crítica significativa ao atual modelo de construção da cidade; bem como questionando o discurso do “desenvolvimento” que, na verdade, é mero crescimento econômico em favor de quem sempre se beneficiou do modelo vigente de cidade.

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pelos interesses higienistas e gentrificadores inerentes a um modelo desigual de cidade.

5 Conclusão e considerações finais O MSEU tem acumulado conquistas interessantes, dentre as quais se destacam as seguintes: reconhecimento e valorização da Universidade como instituição pública que pode contribuir para as conquistas dos movimentos sociais; aproximação entre teoria e prática dos movimentos sociais, visando à concretização efetiva da práxis; envolvimento dos estudantes dos programas de Graduação em Geografia e Pós-Graduação Geografia e Desenvolvimento e Meio Ambiente nos problemas sociais, complementando sua formação não somente como profissionais, mas, ao mesmo tempo, como educadorescidadãos; atualização do tema e do papel dos movimentos sociais no processo de produção do espaço urbano trazendo-o novamente para a sala de aula; reconhecimento da força dos movimentos sociais – em rede – no processo de conquistas do direito à propriedade; identificação dos problemas existentes no processo de mobilização social (apatia dos moradores, fragmentação social, ameaças do tráfico de drogas, repasse dos imóveis); e tentativa de superação da dependência dos coordenadores dos movimentos sociais com relação às exterioridades, influências externas, etc. Tais conquistas, decorrentes da prática da pedagogia política, são cruciais para a construção do “território forte”, fazendo-se ainda necessário: recuperar os “consensos” desfeitos; exercer a mobilização continuada no espaço e no tempo; ultrapassar a escala local das lutas sociais em uma perspectiva multiescalar; e, enfim, continuar procurando a mudança possível. Desse modo, vale ressaltar que, como dizia Becker (1988, p. 183):

Espaço é poder. Como fonte e meio de vida, como dimensão material da sociedade, o espaço é condição da produção generalizada. Sua apropriação por diferentes atores implica na definição de territórios reconhecidos pelos demais.

Daí a contínua luta pelo espaço, sem o qual, aliás, não se consegue vida digna na cidade. Contudo, de acordo com Harvey (2004, p. 304), a despeito de

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nada nos impedir de esforçarmo-nos no sentido de tornarmo-nos arquitetos do nosso próprio destino – o que não se pode negligenciar em função mesmo da nossa própria característica de termos vontade de criar – tem-se que ter em mente que nenhum arquiteto é independente das contingências e limitações inerentes às condições existentes de vida. No mundo contemporâneo, tais contingências e limitações acham-se vinculadas à racionalidade técnica instrumental do capitalismo perverso (neoliberal) de produção dos espaços urbanos a qual deve ser combatida.

Referências ABREU, M. O estudo geográfico da cidade no Brasil: evolução e avaliação. Contribuição à história do pensamento geográfico brasileiro. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 56, n. 1 e 4, p. 21-122, jan./dez. 1994. ALVES, R. Filosofia da ciência. Introdução ao jogo e a suas regras. São Paulo: Edições Loyola, 2000. BECKER, B. K. Questões sobre tecnologia e gestão do território nacional. In: BECKER, B. K; EGLER, Claudio. (Org.) Tecnologia e gestão do território. Rio de Janeiro: UFRJ, 1988. p. 183-210. CASTILHO, C. J. M. de. Nuevos rumbos del activismo socio-espacial en Recife-PE: comunidade Josué de Castro. La esperanza de la construcción de um nuevo território. New cultural frontiers on-line sociological review, n. 2, p. 63-86, 2011. FREIRE, P. Extensão ou comunicação? 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. ______. Pedagogia do oprimido. 5.ed. São Paulo: Paz & Terra, 2011. GRAMSCI, A. Gliintellettuali e l’organizzazione della cultura. 3.ed. Roma: Editoririuniti, 1996a. ______. Note sul Machiavelli, sulla politica e sullo Stato moderno. 3.ed. Roma: Editoririuniti, 1996b. HARVEY, D. Espaços de esperança. São Paulo: edições Loyola, 2004. LEFF, E. O saber ambiental. Sustentabilidade. Racionalidade. Complexidade. Poder. Petrópolis, Vozes, 2009. MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 21ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014. PABLO PICASSO E LE SUE PASSIONI, 2015, Catania, Exposição... Catania: Castello Ursino, 2015. SANTOS, M. A natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1997.

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VIVA PASSOLINI. Documentário. Capturado do Google, aos 24/05/2015.

CAPÍTULO 3 TERRITORIALIDADE E PEDAGOGIA GRIÔ: CAMINHOS PARA PESQUISA EM COMUNIDADES TRADICIONAIS Gicélia Mendes1 Roberto dos Santos Lacerda2 Giane Florentino Rodrigues de Brito3

Resumo Adentrar no ambiente sagrado das comunidades e experimentar as complexas variáveis que permeiam a vivência nestes territórios é a premissa básica deste artigo. De caráter bibliográfico, este estudo encontra lastro teórico nos estudos de Tönnies, Bauman, Litlle, Santos, Haesbaert, Raffestin, Diegues, Pacheco, Freire entre outros, objetivando caracterizar as territorialidades que retratam o emaranhado cultural existente nas comunidades tradicionais e os conhecimentos lá produzidos, visando sua sustentabilidade pela capacidade de extrapolar os espaços delimitados destes territórios. Neste sentido, para a tessitura deste artigo partimos dos conceitos de comunidades e territorialidades, para retratar nestes espaços de convivência as possibilidades de desenvolvimento de uma metodologia denominada de Pedagogia Griô. Os estudos nos permitiram concluir que a Pedagogia Griô constitui uma importante metodologia de participação popular com possibilidades de legitimar a cultura, disseminar os saberes, as transformações locais, as características herdadas e transmitidas de geração a geração nas comunidades tradicionais, estreitando laços e desvelando da memória individual e coletiva das pessoas, a sua ancestralidade. Palavras-chave: Comunidades tradicionais. Territorialidade. Pedagogia griô.

1

Doutora em Geografia. Professora Adjunto do Departamento de Geografia da UFS. Pesquisadora do GEOPLAN/UFS/CNPq e do LACTA/UFF/CNPq. [email protected] 2 Doutorando em Desenvolvimento e Meio Ambiente/UFS. Professor Assistente do Departamento de Educação e Saúde da UFS. [email protected] 3 Doutoranda em Desenvolvimento e Meio Ambiente/UFS. Professora da Escola de Aplicação da UPE/Campus Garanhuns. [email protected]

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TERRITORIALITY AND PEDAGOGY GRIÔ: AVENUES FOR RESEARCH IN TRADITIONAL COMMUNITIES Abstract To penetrate the sacred environment of communities and to try the complex variables that permeate the experience in these areas is the basic premise of this article. Of bibliographical, this study is theoretical ballast in studies of Tönnies, Bauman, Litlle, Santos, Haesbaert, Raffestin, Diegues, Pacheco, Freire and others, aiming to characterize the territoriality that portray the existing cultural tangle in traditional communities and knowledge produced there, aiming your sustainability by the ability to extrapolate the spaces bordered of these territories. Therefore, in the writing process of this article we start from key concepts of communities and territoriality, to portray the potential development in these living spaces of a methodology so-called Griô Pedagogy. The studies allowed us to conclude that Griô Pedagogy is an important methodology of popular participation with the possibility of legitimizing the culture, disseminate knowledge, local transformations, inherited characteristics and transmitted from generation to generation in traditional communities, strengthening ties and unveiling of memory individual and collective people, their ancestry. Keywords: Traditional Communities. Territoriality. Griô Pedagogy.

1 Introdução GRIÔ Peço atenção dos senhores, Pra história que vou contar: Falo das muitas pessoas Que vivenciam um mesmo lugar; Que fortalecem a irmandade, Buscando a sustentabilidade Nos recursos que ali há! Falo das comunidades Tradicionais em lutar, Que para além da economia, Sustentam o seu dia-a-dia Com aquilo que a terra dá. Perseguem a felicidade E suas artes, verdades, Se perpetuam por lá!

Eis que surge um cantador, Genealogista e mediador Que com enorme fervor: Estimula a cultura e o amor. E os membros das comunidades, Caracterizam as territorialidades Da gente daquele lugar, Como as estrelas, a brilhar! Organizam rodas de conversa por idade, Juntam escola e comunidade Pra fortalecer a identidade. Valorizando saberes, Respeitam a essência dos seres E elaboram novos fazeres. E tudo que aqui se falou... Retrata a Pedagogia Griô! Giane Florentino

Pesquisar é “envolver-se com”. Imaginamos que poucos creem poder pesquisar sem envolvimento. A partir do momento em que surge o interesse por pesquisar determinado tema, a imparcialidade deixa de existir porque ai já

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se estabeleceu um elo com o objeto/elemento pesquisado. Mais forte ainda se torna a ligação quando o nosso estudo está alicerçado no desejo de conhecer a vivência de comunidades. Há os que discordem disto? Certamente. Mas o que seria o nosso mundo se ele fosse feito apenas de concordâncias, não é? Partindo, então, desta premissa trataremos neste texto de algumas das questões

que

nos

podem

nortear

quando

adentramos

no

universo

complexíssimo da pesquisa com comunidades tradicionais. A complexidade aqui é colocada no sentido de que há muitas variáveis que precisam ser levadas em conta durante o processo de pesquisa. Variáveis que são externas e internas ao pesquisador e internas e externas às comunidades pesquisadas. Lembram-se de terem ouvido em algum momento da vida que devemos “falar baixinho” ao entrarmos em ambientes sagrados? Pois bem, assim devemos proceder no contato com comunidades tradicionais. Devemos chegar com cuidado e pedindo licença para usarmos as nossas lentes foscas de pesquisadores para, a partir delas, tentar explicar um pouco daquilo que entendemos ser a vivência destes povos. Aqui, em algumas poucas palavras, trazemos reflexões acerca da Territorialidade e da Pedagogia Griô enquanto possibilidades de abordagens metodológicas nas pesquisas com comunidades tradicionais. A Pedagogia Griô surge como uma metodologia participativa que pode ser bem utilizada nas comunidades tradicionais, haja vista seu potencial de afirmação e valorização étno-cultural e racial de um povo.

A referida

metodologia tem sua essência no protagonismo individual, na valorização da ancestralidade e dos saberes locais, na congregação entre a educação formal e a informal e suas ligações com a comunidade e, principalmente, no desvelar das territorialidades individuais e do lugar, como mecanismo para legitimar os valores econômicos, sociais e ambientais no espaço delimitado onde são vivenciadas estas territorialidades. Neste contexto, este artigo apresenta-se dividido em três seções mais as considerações finais. A primeira seção trata dos conceitos de comunidades tradicionais e suas relações com a transferência de geração a geração dos saberes e outros valores materiais e imateriais do local. A segunda seção apresenta os conceitos de territorialidades e a importância de sua identificação,

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como mecanismo de legitimação das comunidades tradicionais. Na terceira seção, serão explicitadas as características, possibilidades de implementação e as finalidades da Pedagogia Griô, como exemplo exitoso de metodologia de participação popular desenvolvida no seio das comunidades tradicionais, objetivando conferir sustentabilidade econômica, social, cultural e ambiental pelo reconhecimento da identidade pessoal e coletiva da comunidade. Assim, como a Territorialidade e a Pedagogia Griô, para viajar conosco nestes curtos caminhos do texto, uma premissa é essencial: envolver-se.

2 Comunidades tradicionais e saberes locais Há muito que o ser humano compreendeu a necessidade de viver e se organizar em comunidade a fim de garantir que muitas de suas necessidades sejam atendidas, a exemplo da segurança e do companheirismo. Em comunidade, em muitos momentos, os anseios particulares precisam ser desconsiderados para que o bem-estar geral prepondere. Estar em comunidade, portanto, pressupõe estar em boa companhia, seguro e protegido de todos os perigos, sortilégios ou, ao menos do maior número deles. Ter sempre a certeza de poder contar com o outro, de ter apoio e aconselhamento nas decisões e ancoradouro nas idas e vindas que a vida pode apresentar. “[...] Numa comunidade, todos nos entendemos bem, podemos confiar no que ouvimos, estamos seguros a maior parte do tempo e raramente ficamos desconcertados ou somos surpreendidos. Nunca somos estranhos entre nós” (BAUMAN, 2003, p.08). O próprio nome comunidade já remete para todo este entrosamento: com + unidade ou, comum + idade, caracterizando uma irmandade onde todos vivem em favor do outro e/ou, em consonância com o outro. Assim, Tönnies (1973, p. 96), preceitua também que: “[...] tudo o que é confiança, intimidade e vida exclusivamente em conjunto, compreende-se como vida em comunidade”. Poderíamos entender comunidades tradicionais nestes mesmos sentidos, mas o que nos parece é uma necessidade extrema que temos de dar qualificativos às palavras, quiçá na tentativa de reforçarmos com eles o sentido que elas tenham perdido ao longo do tempo.

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Em

sendo

“comunidade”

necessitamos

acrescentar

o

qualitativo

“tradicionais”. Pois bem, vamos às denominações. O Decreto nº 6040, de 07 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, em seu artigo 3º, compreende por:

I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (BRASIL, 2007).

Assim, comunidades tradicionais podem ser entendidas, como um grupo fechado e independente e, para que possam se manter sob a perspectiva da sustentabilidade, precisam adequar suas características às inter-relações com o lugar e, principalmente, agregar às suas necessidades pessoais e coletivas as atitudes de valoração, respeito e cuidado com o ambiente que as abriga. Caracterizam, assim, seus territórios, pois deles dependem os recursos que manterá a comunidade em níveis de funcionamento compatíveis com as suas necessidades internas. Não obstante, para a construção de uma comunidade, necessário se faz inventariar os elementos ambientais, culturais e históricos que servirão de constructo para a identidade dessa comunidade, conferindo-lhes legitimidade. Diegues (2003) postula que a construção dessas comunidades está intimamente relacionada à construção de sociedades sustentáveis o que, para o referido autor, pressupõe pensar localmente, porém com resultados que alcancem o nível macro das relações sociais.

[...] A construção de comunidades e sociedades sustentáveis deve partir da reafirmação de seus elementos culturais e históricos, do desenvolvimento de novas solidariedades, do respeito à natureza não pela mercantilização da biodiversidade mas pelo fato que a criação ou manutenção de uma relação mais harmoniosa entre sociedade e natureza serem um dos fundamentos das sociedades sustentáveis (DIEGUES, 2003, p. 01-02).

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Percebe-se que as relações entre a comunidade e o ambiente onde esta se insere, configuram ainda mais a necessidade de estabelecimento das territorialidades identitárias desta comunidade. Diegues & Arruda (2001) afirmam que estas populações tradicionais convivem com esta biodiversidade, e formulam nomes, classificação das espécies vivas. Esses autores destacam este conhecimento como o conjunto de saberes e saber-fazer, não só do mundo natural como o sobrenatural, transmitido oralmente de geração em geração. Diegues (1996) é bastante assertivo ao esclarecer:

Comunidades tradicionais estão relacionadas com um tipo de organização econômica e social com reduzida acumulação de capital, não usando força de trabalho assalariado. Nela produtores independentes estão envolvidos em atividades econômicas de pequena escala, como agricultura e pesca, coleta e artesanato. Economicamente, portanto, essas comunidades se baseiam no uso de recursos naturais renováveis. Uma característica importante desse modo de produção mercantil (petty mode of production) é o conhecimento que os produtores têm dos recursos naturais, seus ciclos biológicos, hábitos alimentares, etc. Esse 'knowhow' tradicional, passado de geração em geração, é um instrumento importante para a conservação (1996, p.87).

Diante da necessidade premente de garantir sustentabilidade e desenvolver nas comunidades o sentido de preservação, possibilitando que os indivíduos constituintes possam igualmente desenvolver suas potencialidades pessoais e profissionais, torna-se salutar a necessidade de valorizar e legitimar seus saberes, sendo este o desafio da contemporaneidade. Partimos, assim, dos seguintes questionamentos para equacionar estas reflexões: Serão os saberes locais, responsáveis pela sustentabilidade das comunidades tradicionais? Em que medida a interligação entre os saberes locais e os saberes acadêmicos constituem mecanismos a desenvolver estas comunidades? O senso comum pode ser caracterizado como o que chamamos de cultura/saber popular, que mesmo não fazendo parte de uma estrutura de difusão organizada como o que se observa no conhecimento científico, é capaz de penetrar profundamente na consciência humana, assumindo funções sociais importantes. Assim, Santos (1989) faz proposições, no intuito de superar os problemas que advém das relações ciências/senso comum. Para o sociólogo

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português “[...] a oposição ciência/senso comum não pode equivaler a uma oposição luz/trevas”, pois, “[...] se os preconceitos são as trevas, a ciência, como hoje se conhece e se verá adiante, nunca se livra totalmente deles” (SANTOS, 1989, p.38). Ainda para Santos:

[...] pretende-se um senso comum esclarecido e uma ciência prudente; um saber prático que dá sentido e orientação à existência e cria o hábito de decidir bem. Trata-se de combinar o caráter prático e prudente do senso comum com o caráter segregado e estilista da ciência (1989, p.41).

A união de saberes dá sentido e legitima o senso comum e os saberes locais, levando o conhecimento científico a transformar-se nele e, conferindolhes racionalidade ambiental. E, apesar dos desafios epistemológicos trazidos por uma nova racionalidade ambiental, é fundamental reconhecer a gama de conhecimentos gerados e as práticas ambientalmente positivas que esta nova realidade apresenta. Neste contexto, Leff afirma:

A racionalidade ambiental incorpora assim as bases do equilíbrio ecológico como norma do sistema econômico e condição de um desenvolvimento sustentável; da mesma forma se funda em princípios éticos (respeito e harmonia com a natureza) e valores políticos (democracia participativa e equilíbrio social) que constituem novos fins do desenvolvimento e se entrelaçam como normas morais nos fundamentos materiais de uma racionalidade ambiental (2001, p.85).

A vivência do saber ambiental interliga homem a natureza, afinados a uma perspectiva da complexidade, haja vista que, conforme afirma Rousseau (2010), possuem organização fisiológica perfeita, tem suas necessidades saciadas pois a natureza, no sentido físico do termo, tudo dá. Neste sentido, somente a partir da conservação dos traços originais será possível a convivência harmoniosa do ser consigo mesmo. Os saberes locais das comunidades tradicionais, portanto, representam o conhecimento repassado de geração a geração, transmitindo hábitos culturais e ou sociais que permitem aos seus indivíduos constituintes, reflexão, reprodução, transformação e adaptação.

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3 Territorialidade como conceito primordial para pesquisa em comunidades tradicionais A luta das comunidades ao acesso a terra representa também a preservação da memória e das práticas sociais, os sistemas de classificação e de manejo dos recursos, os sistemas produtivos, os modos tradicionais de distribuição e consumo da produção. O território, em seu sentido material e simbólico, também faz parte da cosmologia do grupo, referendando um modo de vida e uma visão de Homem e de Mundo; ele é apreendido e vivenciado a partir dos sistemas de conhecimento, portanto, encerra também uma dimensão lógica e cognitiva. Além de assegurar a sobrevivência dos povos e comunidades tradicionais, os territórios constituem a base para a produção e a reprodução dos saberes tradicionais (BRASIL, 2007). A este sentido simbólico dado e vivido no território material, chamamos de territorialidade. Haesbaert (2004) destaca que a territorialidade além de incorporar uma dimensão estritamente política, refere-se às relações econômicas e culturais, pois está diretamente relacionada às formas que os grupos possuem de utilização da terra, de organização no espaço e como dão significado ao lugar. Sack afirma que “A territorialidade, como um componente de poder, não é apenas um meio para criar e manter ordem, mas é uma estratégia para criar e manter

grande

parte

do

contexto

geográfico

através

do

qual

nós

experimentamos o mundo e o dotamos de significado” (SACK,1986, p.219). Raffestin caracteriza territorialidade: “[...] como um conjunto de relações que se originam num sistema tridimensional sociedade-espaço-tempo em vias de atingir a maior autonomia possível, compatível com os recursos do sistema” (1993, p.160). Para o autor “é a ‘face vivida’ da ‘face agida’ do poder”. Portanto, viver, valorizar a historicidade e os saberes locais, cuidar do ambiente e dele tirar o sustento, preservar bens e culturas, é viver e agir a territorialidade de cada um dentro da comunidade, como mecanismo de/para torná-la sustentável. A territorialidade supõe ainda, “estar em”, “viver com” ou “viver para” tendo como substrato o lugar onde esta territorialidade se efetiva. É, portanto, a

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capacidade de expressar suas externalidades no espaço delimitado do território, o que para Guatari é tanto relativo ao “espaço vivido” quanto: [...] a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente 'em casa'. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos (GUATARI, 1996, p.323).

Neste sentido, Milton Santos afirma que:

[...] o território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas. O território tem que ser entendido como território usado, não o território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer aquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida (2002, p.10).

A partir desse entendimento, podemos considerar a territorialidade como a forma através da qual um determinado grupo social se apropria, vivencia e experimenta o espaço-território. Segundo Paul Little (2002, p.03), “[...] a territorialidade é o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu território ou homeland”. É importante destacar que as ações do grupo são resultado da composição das ações individuais e que,

cada indivíduo presente no território elabora as suas estratégias de produção de acordo com seus interesses, recursos disponíveis e objetivos a alcançar. Contudo, dentro destas relações estão envolvidas diversas relações de poder que se choca com outras estratégias de produção. Nesse embate de interesses, a produção do espaço e consequentemente a formação dos territórios vão se configurando. (MENDES, 2012, p.44-45).

Isto porque “as imagens territoriais devem ser entendidas como resultados da produção e do trabalho sobre o espaço, munido pelas relações de poder que interferem significativamente na estrutura social, econômica e política”

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(MENDES, 2012, p.44). Não há ação sobre e no território que não traga repercussões para a coletividade. Desse modo, a territorialidade é um dos componentes fundamentais para o entendimento dos processos políticos, econômicos ambientais e culturais que ocorrem no espaço. É um componente que nos permite compreender as interações entre os sujeitos e a imaterialidade do território (SAQUET, 2011, p.93-94). Isto porque, concordamos que:

As identidades, fundamentais na organização política, significam pertencimento, afetividade, coesão e possibilidade de resistência e projeção coletiva do futuro respeitando as diferenças. A identidade é construída coletivamente pelos sujeitos locais, interagindo entre si e com o milieu e significa uma forma para, politicamente, dinamizar as singularidades em favor do desenvolvimento local: os princípios organizativos de uma sociedade local permitem-facilitam a reunião, a discussão e a projeção do futuro (SAQUET, 2011, p.94).

Partindo destes pontos de reflexão, a nossa proposta é de que pensemos a pesquisa em comunidades tradicionais a partir de dois vetores fundantes: a Territorialidade e a Pedagogia Griô.

4 Metodologias Participativas: a Pedagogia Griô e suas aplicações nas práticas socioambientais em comunidades tradicionais A pesquisa em comunidades requer uma ruptura metodológica, ou seja, a prioridade dada à experiência pessoal do “campo” (LAPLANTINE, 1987). Os grupos humanos existem num determinado espaço com formação social e configuração cultural específicas. Toda investigação social necessita registrar a historicidade humana o que Minayo (2010) chama de consciência histórica. “Não é apenas o investigador que dá sentido a seu trabalho intelectual, mas os seres humanos, os grupos e a sociedade dão significado e intencionalidade e interpretam suas ações e construções” (MINAYO, 2010, p.14). Essa autora aponta que, com desenvolvimento das forças produtivas e com a organização

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particular da sociedade e de sua dinâmica interna, criam-se visões de mundo com nuances e diferenciações relacionadas às condições de vida e heranças culturais. O trabalho de pesquisa em comunidades deve buscar aproximar-se do que Geertz (1987) chama de “experiência próxima” que é um conceito que alguém – um paciente, um sujeito, no caso do pesquisador, um informante – usaria naturalmente e sem esforço para definir aquilo que seus semelhantes veem, sentem, pensam, imaginam, etc. e que ele próprio entenderia facilmente, se outros o utilizassem da mesma maneira. Um conceito de “experiência-distante” é

aquele

que

especialistas

de

qualquer

tipo,

tais

como

analistas,

pesquisadores, etnógrafos- utilizam para levar cabo seus objetivos científicos, filosóficos ou práticos. Segundo Paulo Freire, o indivíduo traz dentro de si motivação para posicionar-se de forma ativa diante da realidade, mas para isso precisa ser desafiado para romper com uma postura fatalista em relação à realidade vivida. Portanto, torna-se necessário:

[...] propor ao povo, através de certas contradições básicas, sua situação existencial, concreta, presente, como um problema que, por sua vez, o desafia e, assim, lhe exige resposta, não só no nível intelectual, mas no nível da ação (FREIRE, 1987, p.86).

Na pesquisa participativa a verdade se constrói com base em aproximações sucessivas ao objeto pesquisado, que é constituído por sujeitos. Trata-se de uma relação de troca de conhecimentos entre os sujeitos ou de exercício de uma razão comunicativa (SANTOS, 2005). O pensamento de Paulo Freire influenciou e continua a influenciar diversas áreas do conhecimento e na constituição e/ou fortalecimento de espaços públicos socioambientais tem contribuído, para: valorização do diálogo, valorização da diversidade, protagonismo do sujeito, estímulo à participação, reflexão (prática problematizadora), intenção explícita de promover ações. As metodologias participativas estimulam a articulação dos atores em rede para construção dos espaços locais a partir da necessidade de trabalhar mais juntos fortalecendo o protagonismo dos atores sociais no processo de

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aprendizagem, tomada de consciência da realidade. Dessa forma, os atores fortalecem a participação nos processos de planejamento, tomada de decisões e avaliação dos processos socioambientais nos espaços públicos (SANTOS , 2005). Um bom exemplo de metodologia participativa ainda pouco conhecida e utilizada pela academia e que apresenta grande potencial indutor de pesquisa e práticas socioambientais efetivas em comunidades tradicionais é a Pedagogia Griô idealizada por Líllian Pacheco coordenadora pedagógica da ONG Grãos de Luz Griô na Bahia. A Pedagogia Griô tem como objetivo a valorização dos mestres e mestras portadores dos saberes e fazeres da cultura de tradição oral, criando um diálogo entre educação formal e a cultura popular. Trata-se de uma metodologia de pesquisa/extensão que visa reinventar métodos de educação, tendo como princípio a participação e encantamento do social, a valorização da expressão da palavra, dos afetos, da memória, da história, das cantigas, das danças e dos rituais de tradição oral. Essa metodologia tem como referenciais teóricos e metodológicos a educação Biocêntrica, de Ruth Cavalcante; a educação dialógica, de Paulo Freire; a educação para as relações étnico-raciais positivas, de Vanda Machado; a arte educação comunitária, de Carlos Petrovich; a educação que marca o corpo, de Fátima Freire; e é inspirada na pedagogia de todas as expressões culturais de tradição oral, principalmente de raízes afro-indígenas (PACHECO, 2006). O termo Griô surgiu na região do noroeste da África no Mali, região onde houve a colonização francesa, por isso, os mestres eram chamados griots, que denomina figuras como contadores de histórias, genealogistas, mediadores políticos, comunicadores, cantadores e poetas populares. Os griots têm diversas formas de expressão, mas em comum são responsáveis pela biblioteca viva da tradição oral. No Brasil a palavra foi “abrasileirada “como Griô (PACHECO, 2006). A pedagogia Griô valoriza a territorialidade das comunidades tradicionais, pois estimula a vivência afetiva e cultural que facilita o diálogo entre as idades, entre a escola e a comunidade, entre grupos étnico-raciais interagindo saberes ancestrais de tradição oral e as ciências formais para a elaboração do

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conhecimento e de um projeto de vida que têm como foco o fortalecimento da identidade e a celebração da vida (PACHECO, 2006). De acordo com Both (2002, p.83) “[...] as lembranças dos mais velhos podem contribuir para o enriquecimento da percepção dos mais jovens, o que se pode aplicar aos saberes e práticas de conversação ambiental”. Ao trabalhar a consciência da ancestralidade e a consciência de si mesmo, a pedagogia

Griô

territorialidade

consegue da

fortalecer

comunidade,

a

identidade

apresentando

dos

sujeitos

grande

potencial

e a de

fortalecimento das práticas socioambientais ao favorecer o protagonismo individual e comunitário, a participação política numa perspectiva que vai do local ao global (Figura 1).

Figura 1- Princípios metodológicos Pedagogia Griô (Pacheco, 2006)

Essa metodologia vem sendo utilizada pela ONG (Grãos de Luz e Griô – Chapada Diamantina/BA) e vem obtendo resultados positivos tais como: maior interação com comunidades quilombolas, a exemplo de Remanso, onde vem sendo feito um trabalho de valorização e resgate da cultura local e do espaço natural que cerca a aldeia de pescadores. Além do trabalho nas comunidades a pedagogia Griô vem sendo utilizada na formação de professores.

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A metodologia apresentada proporciona um clima de interação e possui grandes possibilidades de aplicação nas atividades de pesquisa que utilizem a oralidade e as diversas manifestações artísticas e culturais como forma de apreender os modos de vida de uma comunidade. Na extensão, destacam-se o potencial de fortalecimento da coesão social, do protagonismo dos sujeitos, da participação social e política, fatores de extrema importância para a sustentabilidade de ações e projetos e, principalmente, de transformação social das comunidades tradicionais.

5 Considerações Finais Como premissa primeira para a realização desse estudo, temos o envolvimento do pesquisador. Envolver-se é deixar-se entrar no território alheio, que a partir do envolvimento, deixa de ser desconhecido e passa a ser vivido. O envolvimento é também uma das premissas da vida nas comunidades tradicionais, tendo em vista que esta pressupõe, para além do envolvimento afetivo e pessoal, um envolvimento político, social, econômico e ambiental que possibilite a sustentabilidade dessas comunidades. Estar em comunidade, portanto, requer que cada indivíduo reconheça-se como integrante, reconheça os limites territoriais que a circundam, vivenciem sua cultura, seus saberes, suas potencialidades e fraquezas, inventarie seus recursos naturais e culturais e, principalmente, caracterizem as territorialidades dos seus integrantes, a fim de configurar os sentimentos de pertencimento que caracterizam a boa convivência nas comunidades. Reconhecer as territorialidades como um esforço individual e coletivo, é garantia de identificação do ser com o espaço delimitado. Estas relações requerem pertencimento social e afetivo, na medida em que, ocupar, usar e controlar o ambiente carece tão somente, de atitudes conscientes e necessárias ao bem estar dos envolvidos. Para tanto, desenvolver nestas comunidades, metodologias de participação popular, supõe munir das ferramentas necessárias, um indivíduo que já se identifica como pertencente daquele lugar, na medida em que, vivência as experiências, os saberes, as

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transformações e expectativas nestas comunidades. A pedagogia Griô surge como uma dessas metodologias participativas, pois além de interligar os saberes locais à educação formal, promovem o encantamento social, valorizam a oralidade, os afetos, a memória, a história, as cantigas, as territorialidades e legitimam a identidade do lugar, através de rodas de conversas que se ajuntam por idade, privilegiando o diálogo entre os pares. O êxito da pedagogia Griô reside exatamente no fato de que, ela possibilita o fortalecimento consciente da ancestralidade, do indivíduo para consigo mesmo, das práticas socioambientais, do protagonismo individual e comunitário, das identidades pessoais e da celebração da vida.

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CAPÍTULO 4 ANÁLISE DO CONTEÚDO: PERCURSO METODOLÓGICO NA AVALIAÇÃO DE SENTIDOS DA CONSERVAÇÃO EM COMUNIDADES TRADICIONAIS Sindiany Suelen Caduda dos Santos1 Rosemeri Melo e Souza2

Resumo Este artigo científico demonstra de maneira prática a aplicabilidade da técnica de pesquisa análise do conteúdo na investigação dos sentidos da conservação atribuídos pelas comunidades tradicionais de Jatobá, Barra dos Coqueiros, Sergipe. Estruturalmente, o artigo está subdividido em seções que abordarão ao longo do texto: os procedimentos técnicos utilizados para construção da pesquisa prática, construída a partir das recomendações dos procedimentos de análise do conteúdo (AC) de Bardin; os resultados e discussões da pesquisa prática a partir das aplicações metodológicas da AC; e as considerações finais acerca do que a abordagem AC foi capaz de fornecer sobre os sentidos da conservação conferidos ao ambiente de dunas pelas comunidades tradicionais do povoado Jatobá. Ao final, o leitor observará que por meio das recomendações metodológicas da AC, descritas por Bardin, foi possível investigar a realidade desconhecida de comunidades tradicionais que fazem parte do contexto da conservação das áreas dunares no povoado Jatobá e ver de que maneira os sentidos da conservação são revelados em cada categoria de análise que fora definida durante o processo de investigação. Palavras-chave: Análise de conteúdo. Comunidades tradicionais. Sergipe.

1

Sentidos

da

conservação.

Bióloga. Mestre e Doutoranda em Desenvolvimento e Meio Ambiente-Universidade Federal de Sergipe. Estudante associada ao Grupo de Pesquisa em Geoecologia e Planejamento Territorial-GEOPLAN/UFS. Pesquisadora Associada da Fundação Mamíferos Aquáticos. [email protected]. 2 Pós-Doutora em Geografia Física - GPEM/The University of Queensland; Drª em Desenvolvimento Sustentável/Gestão Ambiental – UnB; Professora associada do Núcleo de Engenharia Ambiental - Universidade Federal de Sergipe; Líder do Grupo de Pesquisas Geoecologia e Planejamento Territorial - GEOPLAN/UFS; [email protected].

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CONTENT ANALYSIS: METHODOLOGICAL APPROACH TO ANALYSIS OF SENSES OF CONSERVATION BY TRADITIONAL COMMUNITIES Abstract This research paper aims to demonstrate a practical way the applicability of the content analysis method in the investigation of conservation of meanings attributed by traditional communities of Jatoba, Barra dos Coqueiros, Sergipe. Structurally, the article is divided into sections that will address throughout the text: the technical procedures used to practice research building, constructed from the recommendations of the procedures for examining the Bardin content; and the results and discussions of practical research from the methodological applications of AC; and the final considerations about what the AC method was able to provide on the conservation senses conferred to environment of sandbanks by traditional communities of Jatoba. In the end, the reader will notice that by means of the methodological recommendations of the AC described by Bardin, it was possible to investigate the unknown reality of traditional communities that are part of the context of the conservation of dune areas in Jatoba and see how the senses of conservation are revealed in each category of analysis which was set during the investigation process. Keywords: Content analysis. Senses of conservation. Traditional communities. Sergipe.

1 Introdução A pesquisa que separa homem e universo não fornece descrições de experiência de pessoa e mundo, os quais formam um conjunto inseparável. Nessa lógica, natureza e sentidos a ela atribuídos não devem ser vistos como eventos isolados, pois de acordo com Schopenhauer (2005), é o homem quem percebe as paisagens através de suas vivências e lhes dá significados e valores. O povoado Jatobá, na Barra dos Coqueiros, Sergipe, por exemplo, conta com a exibição das belezas naturais dos manguezais e restingas 3 que se 3

Dentro do complexo de restingas é encontrado o ecossistema de dunas (RIZZINI, 1997). As dunas são marcadas pela diversificação de ambientes costeiros que podem variar em função dos diferentes nichos, os quais existem em virtude da intercomunicação das distintas características biológicas, geomorfológicas e climáticas (CORDAZZO et al. 2006). Além disso, são evidenciadas por sua importância ecológica, social e econômica, ressaltam os autores.

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revelam ao longo do litoral sergipano. Esses ecossistemas, por sua vez, representam fonte de sobrevivência para populações tradicionais, as quais compõem indivíduos históricos, possuidores de conhecimento particular que deve ser parte fundamental dos processos de conhecimento e, especialmente de gestão e manejo das áreas naturais (DIEGUES; NOGARA, 2005). Por outro lado, o povoado Jatobá, assim como todos os municípios de Barra dos Coqueiros, tem vivenciado o aumento contínuo da especulação imobiliária na região, especialmente depois da construção da ponte “Construtor João Alves”, no ano de 2006, que liga a cidade de Aracaju ao município de Barra dos Coqueiros. O cenário após a construção da ponte é representado pelo aumento desenfreado de casas, indústrias e loteamentos que ocasionam a redução contínua de áreas de extrativismo de colheita da mangaba4 e da pesca, provocando a migração de muitas dessas populações para áreas urbanas. Nesse processo, os atores sociais tradicionais têm passado de produtores que garantem a sobrevivência pela pesca ou extrativismo para consumidores urbanos, que sofrem os impactos de uma sociedade urbana da qual nunca fizeram e não farão parte. Juntamente com os meios de produção, essas comunidades perdem progressivamente seus traços identitários, pois não são nem de ambiente rural e nem também de ambiente urbano (MATTOSO, 1979 apud DIEGUES; NOGARA, 2005). Desse modo, é possível chegar à conclusão de que deixar o modo de vida tradicional por circunstâncias de uma sociedade urbana é traçar um caminho rumo à perda de identidade das comunidades tradicionais. Além disso, as comunidades tradicionais do povoado enfrentam desde 2011 a ideia da criação de uma Unidade de Conservação de Proteção Integral 5 na região, o que também pode comprometer a permanência dessas comunidades 4

Fruto extraído da área de restingas pelas comunidades extrativistas tradicionais de catadoras de mangaba, espécie Hancornia speciosa Gomes (Apocynaceae). 5 A tipologia unidades de conservação está subdividida em 12 categorias de áreas protegidas. Elas foram instituídas por meio da lei nº 9.985 de 18 de julho de 2000 que criou o Sistema Nacional de Unidade de Conservação (SNUC) (MEDEIROS; GARAY, 2006). Além disso, as UCs contam com as designações do decreto nº 4.340 sobre as unidades de conservação, regulamentado no ano de 2002 (BRASIL, 2002). As Unidades de Proteção Integral têm como objetivo básico a preservação da natureza. Elas permitem o uso indireto dos recursos naturais de acordo com os fins previstos em lei e dispõe de particularidades para cada categoria (BRASIL, 2000). Para maiores detalhes a respeito da criação da Unidade de Conservação de Proteção Integral, cogitada desde o ano de 2011, denominada Parque Estadual das Dunas, em Jatobá, consultar a dissertação da autora, no banco de teses e dissertações.

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como agentes de conservação6 da área e como atores sociais atuantes no equilíbrio ambiental. Entretanto, no que se refere à investigação da relação homem natureza, compreender de que maneira o processo de análise científica se dá, não é uma tarefa simples. É preciso ter cautela no momento de fazer as escolhas dos objetos de investigação e principalmente ter cuidado na seleção da abordagem teórica que irá guiar todo percurso metodológico. Assim, partindo das inquietações sobre a falta de estudos científicos acerca de uma comunidade que vive diretamente da forma tradicional de vida; da ausência de investigações sobre a relação das comunidades de Jatobá com o ambiente; e da necessidade acadêmica de gerar informações sobre populações que ainda mantém um estilo de vida tradicional, mas que pode ser rompido pelas novas formas de vida impostas pela sociedade, surgiu o desejo de investigar a representatividade dos ambientes de restinga para essas comunidades e as implicações favoráveis e desfavoráveis geradas em meio à criação de uma Unidade de Conservação de Proteção Integral. Para tanto, foi necessário previamente escolher a técnica de pesquisa que conduziria o processo de investigação científica. Nesse propósito, a técnica de pesquisa análise do conteúdo (AC) foi escolhida como eixo para guiar toda a investigação, e Laurence Bardin foi o autor responsável pela fundamentação teórico-prática da abordagem. Bardin trata da AC como um conjunto de técnicas que analisa as comunicações através de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, busca a obtenção de indicadores, sejam eles quantitativos ou não, os quais permitem a inferência de conhecimentos ligados às condições de produção e ou recepção das mensagens, trazendo à tona as significações do conteúdo (BARDIN, 2006). É preciso deixar claro que a AC não está vinculada a uma abordagem filosófica (BAUER, 2005). Contudo, é reconhecida como procedimento analítico de dados originados de textos escritos, que podem ser jornais, diários, entrevistas entre outros tipos (BAUER, 2005).

6

Está associada à relação inseparável entre homem e natureza.

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Entretanto, para utilizar esta técnica, o pesquisador precisa refinar sua percepção para aprender a observar e analisar a mensagem que o objeto é capaz de transmitir, partindo de um rigor metodológico (BRANCO, 2014). Bardin (2011) trata da AC como um procedimento técnico que busca obter inferências objetivas sobre os dados de textos e para trabalhar com ela exigese que sejam seguidas etapas para análise, as quais podem ser observadas no quadro um. Quadro 1: Etapas para análise do conteúdo.

conforme trataBardin (2011) e consoante é abordado no quadro 1. Procedimentos de análise em AC 1) Delineamento amostral da AC

2) Exploração do material previamente organizado

3) Estabelecimento de indicadores para elaboração de categorias

 Corresponde à etapa de elaboração e organização do material a ser analisado;  Os textos a serem analisados devem estar alinhados com o objeto de estudo da pesquisa, o problema de pesquisa, as hipóteses e os objetivos de investigação;  É o momento de elaboração dos questionários, das entrevistas e da organização da transcrição dos dados coletados.  Etapa de codificação dos dados;  Fase de transformação dos dados brutos;  Momento da representação do conteúdo e de estabelecimento das unidades de registro analisadas no texto (poderão ser estabelecidas palavras-chave ou temáticas);  Estabelecer um valor para cada unidade de registro (contém a mensagem que expressa o modo como a amostra é apresentada);  Analisa-se a medida de frequência de cada unidade de registro (UR);  Inferência das mensagens existentes em cada UR;  Atribuição de sentidos a cada UR, de acordo com os interesses da pesquisa.  A categorização corresponde à classificação dos elementos que contém um conjunto por diferenciação e reagrupamento, conforme o gênero;  Todos os critérios de reagrupamento devem ser previamente definidos;  As categorias são rubricas ou classes que reúnem as unidades de registro, utilizando um título genérico;  O agrupamento deve ser feito em função de características comuns dos elementos.

Fonte: SANTOS (2015), adaptado de BARDIN (2011).

Sobre a etapa trêsexpressa no quadro um, deve-se considerar que fazer

Sobre a etapa três do quadro apresentado, o agrupamento das unidades de registro para criação de categorias exige que o pesquisador esteja extremamente envolvido com seu objeto de pesquisa, de maneira que as categorias consigam explicar os dados coletados. É função das categorias de

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análise permitir a transformação de indicadores brutos em dados organizados (BRANCO, 2014). Estes, por sua vez, são dotados de sentido e devem ser evidenciados na AC por meio da descoberta dos conteúdos e estruturas das mensagens, ressalta a autora. Apesar da AC não elaborar reflexões filosóficas acerca do que é a realidade, ela é capaz de elucidar os significados que as pessoas imprimem na realidade (BARDIN, 2011) e foi justamente a necessidade de conhecer os significados da conservação do ecossistema de dunas, relacionada à criação de uma Unidade de Conservação de Proteção Integral em Jatobá, atribuídos pelas comunidades tradicionais, que fez da AC, segundo as descrições de Bardin, a técnica de pesquisa chave para executar toda a pesquisa científica. Nesse contexto, este artigo científico objetiva demonstrar de maneira prática a aplicabilidade da técnica de pesquisa análise do conteúdo na investigação dos sentidos da conservação atribuídos pelas comunidades tradicionais de Jatobá, Barra dos Coqueiros. O povoado Jatobá está localizado a uma distância de 18 km a nordeste da sede do município Barra dos Coqueiros. Esta cidade está situada, segundo as coordenadas geográficas, de latitude 10˚54”23” e de longitude 37˚12’02”, na zona do litoral - leste sergipano (PLANO DE DESENVOLVIMENTO URBANO DA BARRA DOS COQUEIROS, 2001). Do ponto de vista estrutural, o artigo está subdividido em seções que apresentarão: os procedimentos técnicos utilizados para construção da pesquisa prática, construída a partir das recomendações dos procedimentos de análise do conteúdo de Bardin; os resultados e discussões da pesquisa prática a partir das aplicações metodológicas da AC; e as considerações finais acerca do que o método AC foi capaz de fornecer sobre os sentidos da conservação conferidos ao ambiente de restingas pelas comunidades tradicionais de Jatobá.

2 Procedimentos técnicos utilizados para a construção da pesquisa prática

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a) Passo 1: pesquisa bibliográfica

Inicialmente foi realizada pesquisa bibliográfica acerca das temáticas de abordagem do artigo científico: análise de conteúdo e comunidades tradicionais.

b) Passo 2: observação e delineamento amostral

A observação foi importante para o reconhecimento dos atores tradicionais que compõem cada comunidade. Nessa fase foram feitos trabalhos de reconhecimento em campo no ano de 2011, a fim de conhecer líderes comunitários e representantes de Jatobá que pudessem indicar os atores participantes da pesquisa. Em seguida, para a definição da amostra, foram investigados apenas os pescadores, marisqueiras e catadoras de mangaba, nativos do povoado Jatobá, e aqueles que pertenciam à terceira geração, seguindo as sugestões de Diegues (2000) para estabelecer a amostra. Ademais, só foram entrevistados os adultos e aqueles indicados pela secretária de meio ambiente, agricultura e pesca do município de Barra dos Coqueiros no ano de 2010; pela presidente

da

Associação

de

moradores

do

povoado

Jatobá;

pela

representante da Colônia de pescadores da Barra dos Coqueiros e por uma das representantes do movimento das catadoras de mangaba de Sergipe. Por estas três últimas, as indicações foram feitas em 2011. Na etapa da pré-análise, que, segundo Bardin (2006), consiste na organização do material, foram elaborados questionários, os quais trataram da identidade social das comunidades tradicionais. Cada tipo de comunidade (pescadores, marisqueiras e catadoras de mangaba) teve suas perguntas direcionadas às atividades tradicionais desenvolvidas. Nos questionários elaborados foram traçados aspectos ecológicos, sociais, econômicos, políticos e culturais. A continuidade do trabalho qualitativo com as comunidades contou ainda com a realização de entrevistas semiestruturadas no ano de 2011, registradas por meio de gravações e anotações em diário de campo. As entrevistas foram

67

realizadas com 25 atores das comunidades tradicionais e incluiu pescadores, marisqueiras e catadoras de mangaba. O valor da amostra é justificado pela repetição das respostas dos participantes, não acrescentando informações novas e nem significativas às entrevistas e aos questionários. Quando as respostas passam a não acrescentar novos dados ou quando estes não são mais significantes no processo, isso quer dizer que a amostra atingiu seu ponto de saturação teórica (THIRY-CHERQUES, 2009) e a partir desse momento o pesquisador não precisará aumentar o número amostral.

c) Passo 3: exploração do material previamente organizado

Nesta etapa, também chamada de descrição analítica, a fim de compreender a mensagem a partir da decomposição do conteúdo revelado pelas comunidades

tradicionais,

em

fragmentos

mais

simples,

foi

feito

o

estabelecimento das unidades de registro dos dados obtidos durante os questionários e as entrevistas semiestruturadas.

d) Passo 4: estabelecimento de indicadores para elaboração de categorias

Foram criadas as categorias de análise que possibilitaram a descoberta dos sentidos dados pelas comunidades tradicionais às dimensões abordadas durante as entrevistas. A determinação das categorias foi feita considerando a forma como essas comunidades relacionam-se com o ambiente e desenvolvem estratégias singulares de conservação. Por isso, alguns trechos de conversas durante as entrevistas foram transcritos ao longo dos resultados e discussões apresentando simbologia com letras (P – pescadores; M – marisqueiras e C – catadoras de mangaba) e números. No caso dos números, estes foram determinados a partir do sequenciamento das entrevistas. Logo, P1 representa o primeiro pescador entrevistado, P2 o segundo e assim sucessivamente. O mesmo vale para marisqueiras e catadoras de mangaba.

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3 Resultados e discussões da pesquisa prática a partir das aplicações metodológicas da AC 3.1 Sentidos da conservação do ambiente de dunas para as comunidades tradicionais

Os sentidos da conservação foram atribuídos a partir das categorias de análise descritas adiante:

a) Representatividade dos ambientes de dunas e os recursos naturais enquanto objetos de usos sociais e sobrevivência.

A forma como as comunidades tradicionais do povoado Jatobá enxergam o ambiente circundante revela a importância do cenário expresso pelas dunas da localidade, bem como a riqueza natural que ainda existe. Em torno de 54% dos atores sociais moram há mais de 10 anos em Jatobá, embora existam pescadores e marisqueiras que residem há 46 anos no povoado. Todos eles carregam histórias de vida que permitem entender a atual configuração do cenário ambiental lá existente. A partir da investigação da representatividade dos sistemas de dunas para as comunidades locais entrevistadas, foi possível chegar à conclusão de que o ecossistema dunar possui, no sentido da conservação, significados de subsistência, proteção da natureza e lazer (Gráfico 1). Dos entrevistados, 33% disseram que as dunas representam a garantia de sobrevivência de inúmeras famílias na região. A assertiva foi observada nas falas de duas das catadoras de mangaba da região: C1 “Sobrevivo das dunas com minha família” C7 “As dunas são importantes pela presença das mangabeiras”

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Gráfico 1 – Representatividade do ambiente de dunas para as comunidades tradicionais

Fonte: Trabalho de campo (2011). Elaboração: Sindiany Santos (2011)

Os veranistas, donos de bares, turistas e comerciantes, fazem parte do contexto real de utilização dos recursos disponíveis, mas atuam de forma indireta. Estes atores usam os recursos através da compra feita aos pescadores, às marisqueiras e às catadoras de mangaba. Os 100% dos entrevistados revelaram durante os diálogos que as próprias comunidades tradicionais fazem a coleta dos recursos e os outros atores sociais apenas os compram. A presença de plantas nativas como a mangaba, em ambientes de restingas, e a manutenção de atividades tradicionais há mais de 10 anos, sem causar danos irreversíveis em Jatobá, traz indícios de um nível de distúrbio intermediário que mantém a diversidade de flora e fauna local e a sobrevivência

das

famílias

por

meio

de

práticas

tradicionais.

Estas

comunidades aliam sobrevivência e qualidade do habitat, o que se pode denominar na perspectiva de Diegues (1995) de manejo tradicional. As comunidades tradicionais revelam-se como sujeitos sociais dotados de conhecimentos que permitem a gestão e o manejo ligados às práticas simbólicas que são herdadas e que garantem a permanência do sistema natural. Além da garantia de sobrevivência, o ambiente de dunas é visto pelas comunidades tradicionais como meio de proteção para a própria natureza e por

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isso deve ser resguardado. Em uma das falas abaixo, o pescador P5 faz referência ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Para ele, o órgão fornece proteção ao meio ambiente, o que revela sua percepção de conservação que deve ser dirigida ao meio ecológico por entes públicos. Mais uma vez a preocupação destes povos com o habitat em que vivem é observada. Cerca de 30% dos entrevistados confirmaram a função protetora das dunas. P5 “Formação que a natureza faz. O vento sopra areia e faz as dunas. As dunas são um lugar intocável. O Ibama não deve deixar construir casa nas dunas”.

Os entrevistados acreditavam que dunas são “morros naturais” que funcionam como barreira natural contra a invasão do mar e contra a ação dos ventos sobre as casas. Dessa forma, embora as comunidades não enxerguem a natureza do ponto de vista da ciência, a visão de mundo ligada ao ponto de vista cultural, de que trata Diegues (1995) em seus textos, permite a estes povos a manutenção de práticas simbólicas contribuintes à proteção do habitat. As pequenas ações realizadas por eles, como um todo, mostram a preocupação em defender os ambientes dunares. C1 “Eu subo lá em cima da duna para pegar mangaba, a mangaba protege a duna e a duna protege mangaba... quando quebra uma galha do pé, a bichinha cresce sem força, não vai ser mais igual”.

Ao dizer “(...) a mangaba protege a duna e a duna protege mangaba (...)”, percebe-se que para a catadora existia nítida e inseparável relação entre meio abiótico e flora, especialmente no que se refere à planta da mangaba. Essa forma de ver a natureza conduz às comunidades a enxergar pressões antrópicas sobre o sistema dunar por parte de atores sociais que utilizam o ambiente como objeto de disputa material, sejam eles de natureza pública ou privada. Um pescador revelou como a especulação imobiliária tem influenciado de maneira negativa na mudança do cenário paisagístico do povoado Jatobá. As dunas têm sido substituídas ao longo dos anos por propriedades rurais, casas de veraneio e também por loteamentos onde grandes construções são feitas sobre dunas. P11 “Há 40 anos atrás existiam dunas, mas a presença de sítios modificou a área”.

71

Na visão do entrevistado as dunas não existem mais. A paisagem dunar naquela região há 40 anos era bem diferente do cenário que se observa hoje. Infelizmente o valor simbólico das dunas para este pescador foi perdido com as ações do homem. Isso prova, entre tantos fatores, que práticas humanas voltadas para o modelo de desenvolvimento econômico vigente modificam o cenário natural com o passar dos anos e os malefícios locais refletem simbolicamente na vida daqueles que valorizam a base de sustento. Para estes sujeitos sociais, as dunas também constituiam objetos de lazer. Em torno de 12% das entrevistas mostraram o quanto a beleza natural é favorável à diversão e ao turismo. Porém, ao afirmar que o lazer incentiva o turismo, as comunidades demonstraram que, o que está por trás do lazer é a condição da sobrevivência. Nesse sentido, elas dependem do lazer que as dunas oferecem aos visitantes do povoado Jatobá para sobreviver da venda dos seus produtos. Elas acreditavam que ao representar objeto de lazer, as dunas atraem o turismo e geram renda. As comunidades vendem seus produtos na beira da estrada para os diversos turistas que procuram no litoral norte a contemplação da paisagem e a diversão. Infelizmente, 24% dos entrevistados disseram não saber o que as dunas representam. Eles apenas afirmaram que os ambientes dunares deveriam ser importantes por algum motivo, mas não sabiam dizer qual. Deste contingente, 9% das opiniões foram dadas por mulheres catadoras de mangaba. A justificativa para isto é que estas catadoras possuem suas próprias propriedades rurais na região, onde catam a mangaba e vendem o produto nas estradas. Por conseguinte, elas não dependem da vegetação das dunas de áreas livres para sobreviver. Os outros 15% ficam por conta de pescadores e marisqueiras que ganham seu sustento com a pesca e a mariscagem e não julgam necessário prestar atenção em algo que não esteja diretamente ligado à existência própria. Para estes últimos, o que mais importa é de onde irão retirar o sustento, que neste caso é o mar e o rio Pomonga. Portanto, é essencial salientar que a importância minorada dada aos ambientes de dunas pelos atores sociais entrevistados refere-se ao ambiente físico de dunas, já que lhes faltam conhecimentos mais concretos sobre o valor

72

do ambiente físico para o homem. A relevância do ambiente para estas comunidades está associada ao conhecimento dos processos de conservação e manejo tradicional verificado.

b) Atores sociais e criação do futuro Parque Estadual das Dunas

A fim de investigar a concepção acerca de conservação e de Unidades de Conservação

com

as

comunidades

tradicionais,

as

entrevistas

semiestruturadas permitiram a criação das seguintes categorias de análise: aqueles que nunca ouviram falar em UCs e não sabiam o que significavam, mas emitiram opiniões próprias sobre conservação e b) aqueles que nunca ouviram falar, não sabiam o que são UCs, mas também preferiram não opinar. A primeira categoria está representada por 52% dos entrevistados. Nenhum destes entrevistados tinha ouvido falar com precisão sobre Unidades de Conservação (UC). Os 48% restantes correspondem àqueles que nunca ouviram falar, não sabem o que são UCs, mas também preferiram não opinar. Dessa maneira, o equivalente a 100% desconhecia a ideia de criação do futuro parque no povoado Jatobá. No que se refere aos entrevistados da primeira categoria, o fato de não saber o significado de uma UC não os intimidou. Eles fizeram questão de falar sobre o tema conservação, demonstrando que a sobrevivência, o lazer e o ambiente em que vivem estão diretamente ligados às práticas de conservação. P2 “Conservar é não destruir. É o governo criar um plano para vigiar, o meio ambiente”. P3 “A unidade de conservação deve ser para conservar algo, não sei o quê”.

Além de emitir opiniões sobre a importância de conservar, os entrevistados deixaram explícito em suas falas que a conservação está associada à participação das comunidades, o que denota o reconhecimento deles como parte integrante do meio ecológico. Ao perguntar sobre os benefícios da conservação, a partir da criação de uma UC, foram obtidas respostas que revelam a importância de se considerar a opinião de comunidades tradicionais nos processos de conservação,

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principalmente no que se refere à criação da Unidade de Proteção Integral, o futuro Parque das Dunas. P5 “O parque só irá trazer vantagens se houver participação das comunidades. As comunidades podem fazer trabalhos de conscientização na área do parque. O Ibama e as comunidades poderiam fazer um trabalho de conscientização. Prá gente salvar o planeta tem que fazer um trabalho de conscientização, não é só culpar o poder público. ..”. P6 “A unidade seria fiscalizadora da manutenção dos recursos naturais, da proteção. Nós seríamos a unidade e daríamos o toque de como proteger o meio ambiente”.

As falas desses pescadores, enquanto participantes de uma comunidade tradicional, seriam de extrema importância em uma audiência pública que consultasse a todos e não apenas uma parcela de agentes sociais que não entendem a realidade de quem a vivencia. Observa-se que o IBAMA aparece nas falas como instituição promotora da conservação para os entrevistados. O fato de o IBAMA ser órgão de fiscalização frequente do meio ambiente naquela região por conta da existência do projeto de Tartarugas Marinhas (TAMAR-ICMBio) leva às comunidades a crer que esta instituição é a responsável pela defesa do meio ambiente em Jatobá, inclusive pela criação da futura UC. Ademais, pode-se inferir que os entrevistados mostram-se à disposição, até mesmo dos órgãos públicos, quando se trata de conservar o ambiente, expressando o desejo de proteção do meio natural. Dando continuidade ao intento de desvendar a noção sobre os conceitos de conservação dos entrevistados, foi perguntado aos sujeitos sociais sobre as vantagens e desvantagens de uma UC na área para eles. Apenas 52% dos entrevistados que opinaram sobre o tema conservação falaram sobre vantagens e desvantagens da criação da futura UC. As respostas caracterizam mais uma vez que eles entendem que participarão da criação da futura UC7. Por outro lado, ao mesmo tempo em que acreditam nas vantagens de proteção ao meio ambiente trazida, eles declaram

7

A criação de uma Unidade de Proteção Integral coloca em risco a participação das comunidades, já que impede o uso direto dos recursos, de acordo com o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (2000).

74

ter medo do que este futuro parque possa causar para as comunidades tradicionais. P6 “Não existem desvantagens. A comunidade seria orientadora e faria o trabalho de conscientização”. P2 “Acho que o parque irá trazer emprego, segurança para as comunidades. A desvantagem é que muitas famílias vão perder o acesso. Tem gente que vive do caju, da mangaba...”

O temor que estas comunidades têm em relação à criação da futura UC na área é o receio do impedimento da utilização dos recursos da área, excluindoas dos processos de conservação da biodiversidade. Muitas famílias que vivem da mangaba na localidade, a partir dos desígnios do SNUC, não deverão mais praticar o extrativismo na área do futuro parque (atualmente de livre acesso), devendo procurar novas áreas para cata do fruto. Como a região é repleta de pequenas propriedades rurais, o mais provável é que aconteça o mesmo que ocorreu no povoado vizinho, Capoã: as catadoras pagam para retirar o fruto ou então invadem áreas particulares, as chamadas por elas próprias de “sítios de titio carreira”, de onde muitas saem ameaçadas quando são flagradas retirando o fruto. É importante considerar que os entrevistados que não emitiram opinião sobre a futura UC, expressaram nas falas a insatisfação com a forma como veem sendo tratados há anos no povoado Jatobá. Eles diziam que se sentem esquecidos, que programas sociais surgem na localidade, representantes destes programas colocam propostas, mas eles não enxergam os resultados. Para estes entrevistados, os benefícios não chegam até eles e isso faz com que se mantenham desacreditados de qualquer proposta. Isso pode ser observado na fala de um dos pescadores: P4“Aqui passa anos e anos e ninguém vem falar sobre isso. A gente tá cansado de ouvir e não acontecer nada”. P5 “ De todas as praias do Brasil a nossa é a mais esquecida. O governo e a prefeitura não dão assistência a gente. A praia de Jatobá é uma praia de muita paz, mas não tem assistência. É como se a Barra dos Coqueiros não existisse”.

A fala deste pescador expõe os anseios das comunidades por uma assistência ambiental urgente, especialmente ao povoado Jatobá, tanto no que se refere ao ambiente terrestre como ao ambiente marinho. Merece destaque a

75

forma como ele vê a conservação e vê nos processos de “conscientização” uma forma de ajudar a melhorar o meio ambiente como um todo a partir da participação comunitária.

4 Considerações finais acerca do que a técnica AC foi capaz de fornecer sobre os sentidos da conservação conferidos ao ambiente de restingas pelas comunidades tradicionais de Jatobá É sabido que os estudos voltados para investigações que envolvam o homem podem seguir diversas perspectivas metodológicas. Entretanto, é papel do

pesquisador

identificar,

a

partir

do

objeto

de

pesquisa,

quais

fundamentações teórico-metodológicas que darão a sustentação necessária para gerar resultados confiáveis e que atendam ao propósito expresso nos objetivos da pesquisa. Nesse sentido, para que isso aconteça, o pesquisador deverá fazer revisões sobre os diversos métodos, técnicas e metodologias de pesquisa. A ideia de trazer uma abordagem metodológica e revelar de maneira prática a forma como a pesquisa foi construída é algo que nos faz refletir acerca da possibilidade de fazer outras pesquisas que tenham o mesmo interesse científico e que possa trilhar um caminho parecido, no que se refere ao cumprimento do rigor científico para alcance de resultados satisfatórios. Seguindo as recomendações metodológicas da AC, descritas por Bardin, foi possível investigar a realidade desconhecida de comunidades tradicionais que fazem parte do contexto da conservação das áreas dunares no povoado Jatobá e analisar de que maneira os sentidos da conservação são revelados em cada categoria de análise que fora definida durante o processo de investigação. Intenções que só tornaram-se realidade em virtude da realização de um trabalho de observação prévio, que permitiu definir os atores a serem investigados; porque os questionários e as entrevistas foram construídos com base na realidade dos atores sociais; e porque as unidades de registro e categorias de análise foram definidas a partir de instrumentos de trabalho bem planejados.

76

Dessa forma, foi possível enxergar a realidade atribuída ao ecossistema de dunas, que se expressa em cada fala de pescadores, marisqueiras e catadoras de mangaba. Foi percebido que os principais significados dados ao ambiente de dunas pelas comunidades referem-se à subsistência, à proteção da natureza e ao lazer que abre portas para o turismo. Foi permitido identificar como essas comunidades são tratadas com esquecimento quando revelaram não saber sobre a criação e implementação de uma unidade de conservação na região. Além disso, observou-se a necessidade que eles têm de serem reconhecidos como participantes ativos dos processos de conservação da região. No mais, eles expressaram a necessidade da realização de trabalhos de assistência ambiental em Jatobá, por parte de órgãos ambientais do estado, a fim de despertar a valorização tanto da natureza, como das comunidades que representam uma parte indissociável do ecossistema costeiro de dunas. Investigações científicas como estas são capazes de tornar possível o reconhecimento de povos, outrora esquecidos e de despertar para uma nova forma de tratar as questões ambientais em locais não estudados, onde o homem pode ser protagonista no processo. Cabe ao investigador, portanto, escolher um relevante objeto de estudo, traçar os objetivos, escolher o método/técnica de pesquisa e trilhar o caminho metodológico de maneira rigorosa. Estes são passos-chave para a obtenção de resultados científicos fidedignos.

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CAPÍTULO 5 A PESCA ARTESANAL NA ILHA MEM DE SÁ: METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E O DESVENDAR DA REALIDADE-IMAGINÁRIO Miria Cássia Oliveira Aragão1 Rosemeri Melo e Souza2

Resumo O pescador artesanal, tradicionalmente herdou e aprendeu a lidar com ambiente natural, como também, possui um aguçado conhecimento do saberfazer de seus instrumentos de trabalho. O pescador artesanal pertence a uma atmosfera diferenciada na qual se coaduna suas relações sociais e o ambiente habitado, e estes elementos compõem o cenário de sua própria existência. O presente artigo apresenta as tramas evidenciadas na lida diária da atividade pesqueira na ilha Mem de Sá tentando estabelecer os elos relacionais entre ambiente e cultura, bem como, os impasses amalgamados no seio desta relação e evidenciados por metodologias participativas. O trabalho de campo foi realizado em um longo período (iniciou-se em março de 2009 com término em novembro de 2010), com base na observação direta, na observação direta elaborada, bem como na realização de roteiros de entrevistas. Deste modo, foram descobertos que os processos ecossistêmicos são revelados na lógica como a comunidade organiza a sua vida evidenciada pelo trabalho e no conhecimento tradicional que carrega. Palavras-Chave: Pesca. Artesanal. Relações sociais.

1

Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Sergipe, Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente. Professora da Rede Estadual de Educação do Estado de Alagoas. E-mail: [email protected] 2 Pós-Doutora em Geografia Física (Biogeografia) pela GPEM/ The University of Queensland Austrália. Doutora em Desenvolvimento Sustentável/ Gestão Ambiental (UnB). Pesquisadora do CNPq e Professora Associada do Núcleo de Engenharia Ambiental da UFS. Líder do Grupo de Pesquisa em Geoecologia e Planejamento Territorial Universidade Federal de SergipeGEOPLAN. E-mail: [email protected]

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THE ARTISANAL FISHERIES IN MEM DE SA ISLAND: PARTICIPATORY METHODOLOGIES AND THE UNVEILING OF THE IMAGINARY-REALITY Abstract The artisanal fisherman, traditionally inherited and learned to deal with the natural environment, but also has a keen knowledge of the know-how of their tools. The artisanal fisherman belongs to a different atmosphere in which sit well their social relations and the environment inhabited, and these elements make up much of his own existence. This article presents the plots evidenced in the daily grind of fishing activities in the Mem de Sa island trying to establish the relational links between environment and culture, as well as the impasses amalgamated within this relationship and evidenced by participatory methodologies. Fieldwork was conducted over a long period (started in March 2009 with completion in November 2010), based on direct observation, elaborate direct observation, as well as interviews scripts. Thus it was discovered that ecosystem processes are revealed in logic as the community organizes its life evidenced by the work and traditional knowledge bearing. Keywords: Fishing. Handmade. Social relations.

1 Introdução O presente estudo se propôs a analisar a lógica de sobrevivência refletida entre as sociabilidades e os saberes construídos no desenvolvimento das práticas pesqueiras de uma comunidade de pescadores artesanais3. A compreensão do modo de vida das comunidades de pescadores artesanais requer a constatação de que na pesca o trabalho não é contínuo, tendo seu ritmo ditado pela natureza e não por desígnios diretos das relações sociais, no entanto, o saber tradicional sobre os processos ecossistêmicos envolvidos na atividade é essencial para a existência do próprio pescador (VALÊNCIO; MARTINS, 2004). A comunidade Mem de Sá situa-se em uma ilha fluvial no estuário do rio Vaza-Barris, (11º29’26”S e 06’46”W), localizada em Itaporanga D’Ajuda

3

O presente estudo é um recorte da dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente- PRODEMA/UFS em 2011.

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(Figura1). Distante apenas 23 km da sede municipal e a 53 km de Aracaju, capital do Estado de Sergipe.

Figura 1 - Localização do cenário do estudo. Organização: Rodrigo Lima. Fonte: Atlas Digital sobre os Recursos Hídricos de Sergipe- SEPLAN-SRH (2004).

Tendo pesca como principal fonte de renda e vida para os seus habitantes a população da ilha é de aproximadamente 260 pessoas e a maioria dos pescadores é registrada na Colônia Z-9, em Itaporanga D’Ajuda. Algumas casas da comunidade são de taipa, porém, muitas delas já são de alvenaria. A comunidade possui uma escola (Escola Municipal Waldemar Fontes Cardoso), uma nova casa de farinha, uma igreja católica, uma igreja evangélica e os moradores estão organizados em uma Associação comunitária. A localidade tem energia elétrica, mas a água não é suficiente para o abastecimento permanente de todas as moradias. Houve a retomada do Grupo de Samba de Coco e do Reisado, bem como, no mês de dezembro ocorre à tradicional festa da padroeira do povoado, Santa Luzia, que por sua vez, precede a Festa do Caranguejo, realizada na última década pelos moradores da ilha (EMBRAPA, 2007).

2 Metodologias Participativas

81

No âmbito da construção sistemática da pesquisa as metodologias participativas começaram a ser desenvolvidas com a – Realização do Diagnóstico Rápido Participativo4 – DRP – do entorno da Reserva Ambiental do Caju, campo Experimental da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária- (Embrapa) tabuleiros Costeiros, no período de 2006-2008. No desenvolver das ações referentes ao DRP foi sendo construída uma relação de proximidade com a comunidade supracitada, como também, foi se estabelecendo

um

bom

relacionamento

com

os

comunitários

que

trabalhavam na sede da Reserva. O trabalho de campo foi realizado em um longo período (iniciou-se em março de 2009 com término em novembro de 2010), por dois motivos principais: devido à complexidade da temática abordada, como também, pelo próprio contexto da investigação científica – uma comunidade de pescadores artesanais – a qual tem um ritmo de vida diferente e requer antes mesmo da entrada do pesquisador para coleta de dados, um tempo de adaptação a realidade local. Foi necessária a utilização de instrumentos de pesquisa como: a observação direta livre, a observação direta elaborada, diário de campo e roteiros de entrevista. A observação direta tornou-se instrumento primordial em todo o desenvolver do estudo. Contudo, a distinguimos em dois procedimentos, a saber, livre e elaborada. A observação direta livre, ou seja, aquela aleatória, sem preocupação com fatos, situações e sujeitos específicos foi um procedimento utilizado em visitas a comunidade, as quais não eram realizadas reuniões formais entre a equipe de pesquisadores e a comunidade, como também, na observação geral do cotidiano. Já a observação direta elaborada, ou seja, previamente orientada por roteiro, basicamente foi utilizada em reuniões com grupos específicos da comunidade. Também foi adotado um diário de campo, pois foi um procedimento valioso, presente em quase todas as visitas a comunidade, além disso, para composição 4

dos

saberes

etnoictiológicos

e

etnoecológicos

esse

Método originário do trabalho de técnicos das agências governamentais de desenvolvimento europeias que atuam no setor agropecuário em países asiáticos e africanos.

82

procedimento foi de fundamental importância, pois eram anotadas geralmente as inúmeras dúvidas sobre o ambiente de pesca para posterior verificação com os pescadores artesanais. Foram realizados roteiros de entrevistas com diferentes segmentos da comunidade, os quais os informantes escolhidos seguiram critérios previamente estabelecidos: 

Informantes sobre a pesca artesanal: 1º ser nativo; 2º longa

experiência na atividade de pesca; e, 3º ser adulto ou idoso. Realizadas 4 entrevistas com 4 informantes.

É importante ressaltar que, os roteiros de entrevista nem sempre esgotavam a temática em apenas um dia. Nesse sentido, a realização dos mesmos por vezes, continuou por vários dias. Sendo alguns gravados em material audiovisual. Todas essas técnicas de investigação foram necessárias, pois o pescador artesanal, tradicionalmente herdou e aprendeu a lidar com ambiente natural, como também, possui um aguçado conhecimento do saber-fazer de seus instrumentos de trabalho. Assim, a relação do homem com a natureza mediada pelo trabalho requer especial atenção, pois, a construção do ser social é esculpida no âmbito do trabalho, condição modeladora dos ambientes naturais e construídos, além de condutor das práticas sociais e da reprodução humana.

3 O Desvendar da Realidade-Imaginário As relações cotidianas do trabalho na pesca artesanal são diretamente relacionadas e ao saber-fazer dos instrumentos, elementos envoltos em uma herança cultural tradicional que permeia a “arte da pesca”. Na concepção de Ramalho (2006) é impossível discutir a realidade da produção e da reprodução social dos pescadores, ao longo do tempo, sem valorizar a questão

pertinente

desenvolvimento.

ao

universo

do

trabalho,

de

sua

estrutura

e

83

Há uma maneira singular de se trabalhar na pesca, de viver na pesca e de construir as relações com as pessoas e com os ecossistemas. É uma maneira de viver organizada por um sentido interno, profundo e tradicionalmente esculpido. Os procedimentos metodológicos utilizados permitiram desvendar os engenhosos ciclos da reprodução natural, os pescadores artesanais desenvolvem uma aguçada sensibilidade de perceber o funcionamento dos ecossistemas, saberes imprescindíveis para o sucesso do trabalho. A pesca em estuário é intimamente relacionada à dinâmica dos manguezais, não obstante, na ilha Mem de Sá o manguezal tem grande relevância no tocante a diversidade dos construtos sociais, como também, para a manutenção da diversidade ecológica. De acordo com Nascimento (2008), os manguezais, ecossistemas costeiros, são importantes sistemas constituídos por comunidades altamente diversificadas que ocupam uma porção substancial das costas tropicais do planeta, devido a sua estrutura, criam numerosos nichos para vários grupos de animais que utilizam os diversos habitats para alimentação, reprodução, desova, crescimento e também proteção de predadores. O conhecimento sobre a estrutura do manguezal, de seu papel na cadeia produtiva dos ecossistemas e dos mitos que o envolvem são saberes revelados cotidianamente pelos pescadores artesanais locais. Esses saberes desvendam um conhecimento sensível, adquirido, adquirido e herdado, mas reconhecido e transmitido dentro dos círculos da construção da realidade. Existem pescadores artesanais diferenciados, como Seu Bebe, os quais são reconhecidos na comunidade como homens de conhecimento inigualável, inspiram respeito, são portadores da chave mãe, da alma da pesca, são pescadores muito experientes e muito sábios. No estuário, a pesca também depende muito do ritmo das marés e dos tipos dos bosques de mangue. Nascimento (2008) enfatiza que os bosques de mangue apresentam variabilidade quanto ao seu desenvolvimento estrutural decorrente da resposta da vegetação e vários fatores operam com distintas intensidades sobre o ambiente, na ilha Mem de Sá, os pescadores

84

artesanais reconhecem as diferentes peculiaridades dos bosques de mangue. O manguezal que margeia a ilha além de cenário da realidade concreta evidenciada nos saberes sobre o ambiente físico, também é palco de fenômenos sobrenaturais relacionados ao imaginário dos pescadores locais. De acordo com Diegues (2004), o processo de produção na pesca artesanal incorpora elementos simbólicos que atuam não sobre a natureza, mas sobre as forças sobrenaturais que garantem uma pesca proveitosa, e por vezes, castigam os pescadores demasiadamente ambiciosos. A caipora é um personagem sobrenatural que habita os mangues que margeiam a ilha Mem de Sá, segundo os pescadores artesanais locais ela gosta de fumo. Alguns pescadores relatam que não chegaram a ver a caipora5, mas já chegaram a ficar perdidos no mangue, rodando várias vezes pelo mesmo lugar sem encontrar a saída por efeito de feitiço. A caipora é um ser encantado que vive no mangue e gosta que os pescadores levem fumo pra ela, assim, quando contrariada pode desnortear os pescadores os fazendo ficar perdidos no mangue. O manguezal é compreendido como lugar de profundo conhecimento dos pescadores sobre o ecossistema, mas também esconde mistérios e seres sobrenaturais que permeiam o imaginário local. As tramas entre ambiente e cultura perfazem o seu trajeto imbuído em vários saberes e campos científicos, que vão além da esfera do trabalho desenvolvido na pesca artesanal, mas que estão interconectados nesta categoria analítica. Assim, relaciona-se com o conhecimento etnoictiológico e etnoecológico tecendo as reciprocidades entre o ambiente e a cultura. De acordo com Marques (2001), a etnoecologia é um campo de pesquisa (científica) transdisciplinar que estuda os pensamentos (conhecimentos e crenças), sentimentos e comportamentos que intermedeiam as interações entre as populações humanas que os possuem e os demais elementos dos ecossistemas que as incluem, bem como os impactos ambientais daí decorrentes. 5

De acordo com os depoimentos dos pescadores locais eles nunca chegaram a ver a caipora, ou talvez não possam dizer que viram temendo punições da caipora quando retornarem ao mangue.

85

O modo como o conhecimento, os usos e os significados dos peixes ocorrem nos diferentes grupos humanos é tema da investigação da etnoictiologia, inclusa no âmbito da etnozoologia (estudo científico das relações homem/animal), que por sua vez faz parte de uma disciplina mais abrangente a etnobiologia (COSTA NETO, 2001). Referente à etnoictiologia, observa-se que os pescadores artesanais da ilha Mem de Sá reconhecem e classificam o pescado de acordo com códigos próprios daqueles que habitem o território da pesca, pois, identificam o fruto de seu trabalho pela percepção morfológica, descrevendo e nomeando a topografia corporal. Segundo Begossi (2004), os pescadores artesanais, tanto de água doce como marinhos, não procuram suas presas ao acaso, mas as buscam em locais específicos do rio ou do mar. Na ilha Mem de Sá os pescadores reconhecem o posicionamento dos peixes em três níveis da coluna d’água que habitam o rio/estuário, quais sejam os peixes de “veia d’água”, “os peixes de mei‘água” e os “peixes de fundo”, compreendendo ainda as subcategorias dos “peixes que pulam” a dos “peixes que se enterram no costeiro” e a dos peixes que “viajam no canal”. Os peixes, geralmente capturados na veia d’água são tainha “peixe que pula”, sardinha, parú e xaréu, no costeiro, subnível situado abaixo da veia d’água propriamente entre as raízes do mangue é o local onde se enterram algumas espécies de peixes como mututuca, corombo, camuru. O canal, subnível visível na maré baixa, é o local próprio das tainhas que também podem ser encontradas na meia d’água e por fim o fundo onde se pode capturar robalo, carapeba, mero, bagre, arraia e vermelho. É relevante destacar que, o “fundo” é percebido como uma área pesqueira importante, pois a maioria das etnoespécies6 de maior retorno econômico para o comércio local, frequentam este nível, como as carapebas (gerreídeos) e os robalos (centropomídeos) (COSTA NETO, 2001). Contudo, na ilha Mem de Sá os demais níveis da coluna d’água também tem grande importância comercial, pois a tainha é a principal espécie comercializada. Sendo possível encontrar quatro etnoespécies de tainha na 6

Denominação para as espécies, geralmente de uma mesma família, com nomes diferenciados de acordo com características reconhecidas pelos nativos.

86

localidade, são elas: zeteira, tainha de olho preto, tainha de olho de fogo (vermelha) e tainha meio-olho. A classificação dos peixes é peculiar, pois também são identificados segundo atributos e categorias relacionadas com a vida humana, animais terrestres e aves, esses atributos referem-se tanto as características externas como as personificações: os peixes são espertos ou lerdos, alguns são mais sensíveis que outros (DIEGUES, 2004). Os pescadores da ilha Mem de Sá, assim como, os descritos em Siribinha no litoral baiano estudados por Costa Neto (2001), não apenas reconhecem onde e quando pescar, mas sabem como determinado peixe se comporta. Nesse sentido, o conhecimento tradicional da pesca é empírico e prático, combinando informações sobre o comportamento dos peixes, taxonomias e classificação de espécies e habitat, assegurando capturas regulares e, muitas vezes, a sustentabilidade, em longo prazo da atividade pesqueira (DIEGUES, 2004). Os saberes etnoictiológicos são os teares para o trabalho na pesca artesanal na ilha Mem de Sá, e os interligando aos saberes etnoecológicos foi possível delinear um calendário que organiza a vida dos pescadores artesanais. A partir da combinação dos procedimentos metodológicos foi construído um calendário etnoecológico com os principais fenômenos que influenciam e orientam o trabalho pesqueiro, sendo notórias as conexões e a interdependência entre os aspectos culturais e o ambiente, ou seja, o calendário etnoecológico destaca a circularidade dos conhecimentos compartilhados e transmitidos entre as gerações, os quais são de cunho ecológico,

mas

configurados

nas

“redes”

culturais

das

tramas

socioambientais ao longo do tempo (Tabela 1). Desta maneira, é reconhecido que a reprodução do caranguejo é de “andada”. Assim, no mês de janeiro os caranguejos estão “ovando” e em março já estão produzindo, época da “1ª andada”, no envoltório desse ciclo, culturalmente observa-se que na época do São João7 (junho) o caranguejo 7

As chamadas festas juninas reúnem as homenagens aos principais santos reverenciados no mês de junho: Santo Antônio, São João e São Pedro. As referidas festas têm no nordeste grande notoriedade e simbolismo.

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descasca, ou seja, troca de casco para dá continuidade ao crescimento. E justamente, nos meses antecedentes e precedentes ao São João é que se observa a maior produção do mangue. Tabela 01: Calendário etnoecológico elaborado a partir dos saberes dos pescadores da Ilha Mem de Sá, julho de 2010. QUARESMA Época do aratu descascar. “sumiço do aratu”

ovando

Janeiro

Fevereir

1ª andada

Época do

Do

Caranguejo

caranguejo

descascar

Março

Abril

Maio

o

Junho

Julho

Agosto Setembro Outubro Novembro Dezembro

São João

Tainha

Tainha

Tainha Produção Produção Produção

Robalo

Robalo

ovando

ovando

ovando

ovando

Ovando

do

do

do

mangue

mangue

mangue

Festa do caranguejo

Desova Desova Desova Época de Época de da

da

da

tainha

tainha

Tainha

captura captura da da

carapeba

carapeba “Época que dá mais peixe de fundo”

Época do caranguejo mole

Fonte: Marques (2001); Costa Neto (2001)

O conhecimento sobre os ciclos do aratu também é relevante ao contexto da comunidade Mem de Sá, uma vez que, o catado do aratu é um dos principais produtos comerciais da localidade. Nesse sentindo, nota-se que a reprodução do aratu é por maré, ou seja, tem “tufa” de oito em oito. A “tufa” dá em qualquer maré, “tufa” é a criação.

88

O calendário etnoecológico também demonstra que as relações de trabalho no ambiente pesqueiro, em especial com relação ao aratu, evidenciam fenômenos inexplicáveis e reconhecidos coletivamente como misteriosos e Divinos. No período da quaresma8 o trabalho da cata ou pesca do aratu é impraticável devido ser a época da troca de sua casca. O aspecto interessante é que a quaresma não tem dias e meses fixos podendo acontecer de março a abril de cada ano, no entanto, é reconhecido culturalmente pelos pescadores da ilha Mem de Sá que o aratu só descasca na data correspondente a da quaresma. No ultimo mês do ano, em dezembro, foi evidenciado no calendário etnoecológico a festa do caranguejo. Está festa, surgiu do anseio da comunidade em ter uma ressaca para a festa da padroeira Santa Luzia, assim, na segunda-feira posterior alguns moradores da ilha saiam para o mangue para capturar caranguejo e em seguida festejar junto à comunidade. Ao longo do tempo, a festividade cresceu e foram incorporadas comidas, bebidas e bandas de música. No entanto, o aspecto relevante da festa é a conexão entre cultura e ambiente, tendo o ambiente natural completamente enraizado nas relações cotidianas a comunidade recria expressões culturais baseadas nas relações de trabalho com o ambiente circundante. São expressos no calendário etnoecológico os meses propícios a alguns ciclos relacionados às principais espécies de peixes capturados pelos pescadores artesanais locais, a saber, tainha, robalo e carapeba, uma vez que, o trabalho de captura é orientado pelo conhecimento sobre os mesmos.

Considerações Finais O calendário etnoecológico demonstra, assim como afirma Diegues, (2004), que os pescadores artesanais vivem sob frequência os ciclos naturais, que determinam os períodos de aparecimento de certas espécies 8

A palavra Quaresma vem do latim quadragésima e é utilizada para designar o período de quarenta dias que antecedem a festa ápice do cristianismo: a ressurreição de Jesus Cristo, comemorada no famoso Domingo de Páscoa.

89

de pescado, bem como dependem muito fortemente das marés, destacando como em todos os países do mundo que a pesca artesanal é uma atividade cíclica com períodos de maior ou menor intensidade de trabalho, com horas de espera e horas de extremo esforço físico. Como também, salienta-se o caminho das relações culturais locais estabelecidas. Portanto, os processos ecossistêmicos são revelados na lógica como a comunidade organiza a sua vida evidenciada pelo trabalho e no conhecimento tradicional que carrega. Melo e Souza (2007), destaca que culturas e saberes desenvolvidos tradicionalmente podem contribuir para a manutenção da biodiversidade dos ecossistemas, de modo a conciliar suas práticas e seu conhecimento sobre os ambientes onde vivem para fins de conservação do substrato mantenedor de sua cultura que tais ambientes representam. Tendo nas metodologias participativas seu desvendamento.

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90

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CAPÍTULO 6 MULHERES DAS MARÉS: METODOLOGIA APLICADA NA ANÁLISE GEOGRÁFICA DO TRABALHO FEMININO NA PESCA Eline Almeida Santos1 Rosemeri Melo e Souza2 Resumo O presente artigo tece uma discussão sobre os aspectos metodológicos utilizados para a análise geográfica do trabalho feminino no espaço da pesca artesanal. O recorte territorial do estudo foi o povoado Taiçoca de Fora, localizado no município de Nossa Senhora do Socorro, Sergipe. A análise esteve fundamentada no método fenomenológico e os procedimentos metodológicos utilizados englobaram levantamento bibliográfico e pesquisa de campo (observação, registro fotográfico e aplicação de entrevistas) sublinhando os processos inerentes aos saberes dos indivíduos envoltos na pesca. O manguezal representa a conexão entre os pescadores, principalmente as pescadoras e o ambiente. Na comunidade analisada a jornada de trabalho diária é delineada através do fluxo da maré cheia e seca que determina as estratégias utilizadas, as espécies extraídas, os petrechos e o trajeto a ser percorrido para o trabalho nos pontos de pesca. O trabalho das mulheres pescadoras (marisqueiras) ocorre principalmente no mangue. A relevância do estudo está calcada na possibilidade de pôr em evidência grupos e fenômenos que por muito tempo foram negados nas discussões acadêmicas e político-sociais, bem como confrontar a teoria à prática vivenciada. Palavras-chave: Conhecimento científico. Fenomenologia. Pesca artesanal. Gênero.

1

Doutoranda em Geografia pelo PPGEO/UFS, Bolsista FAPITEC/SE, Estudante associada ao GEOPLAN, [email protected]. 2 Pós-Doutora em Biogeografia pela The University of Queensland (Austrália), Professora Associada do Núcleo de Engenharia Ambiental e da Pós-Graduação em Geografia e em Desenvolvimento e Meio Ambiente, Líder do GEOPLAN/CNPq - UFS, [email protected].

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WOMEN OF TIDES: METHODOLOGY APPLIED IN GEOGRAPHICAL ANALYSIS OF FEMALE WORK ON FISHING Abstract This article presents a discussion on the methodological aspects used for the geographic analysis of women's work within the small-scale fishing. The territorial clipping of the study was the Taiçoca de Fora village, placed on the municipality of Nossa Senhora do Socorro, Sergipe. The analysis was based on the phenomenological method and the methodological procedures used encompasses literature and field research (observation, photographic documentation and application of interviews) underlining the processes inherent in knowledge of individuals involved in fishing. The mangrove represents the connection between fishermen, mainly fisherwomen and the environment. In the community analyzed the daily working hours is outlined through the flux of high tide and low tide, which determines the strategies used, the extracted species, equipment and the route to be followed to work in the fishing places. The work of the fisherwomen (marisqueiras) occurs mainly in the mangroves. The relevance of the study is based on the possibility to highlight groups and phenomena that have long been denied in the academic and socio-political discussions, and also confront theory and experienced practice. Keywords: Scientific knowledge. Phenomenology. Small-scale fishing. Gender.

1 Introdução O conhecimento de hoje pode ser negado amanhã, o que faz da ciência um processo em constante criação e não uma verdade absoluta. A ciência dá soluções na medida em que levanta novos problemas. Assim, a ciência está muito mais próxima de nossa ignorância do que de nossas certezas. (GOLDENBERG, 2004, p.103)

Toda pesquisa parte da motivação em desvendar a realidade. Porém, esta é dinâmica e complexa, levando a uma busca instigante e contínua. A pesquisa permite a obtenção de novos conhecimentos no campo da realidade social e apresenta como objetivo fundamental descobrir respostas para os problemas mediante procedimentos científicos (GIL, 1999). Estes configuram o caminhar da investigação científica e conduzem o pesquisador no descortinamento do objeto analisado. Esse caminhar corresponde ao método,

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processo pelo qual se busca explicações para os aspectos não revelados e que engloba um conjunto de procedimentos técnicos e intelectuais sistematizados, fundamental na construção do conhecimento científico. Cabe ao pesquisador o entrelaçamento do teórico com os fenômenos investigados, pois ele é quem acumula os dados mensurados e, sobretudo quem nunca desiste de questionar a realidade, sabendo que qualquer conhecimento é apenas recorte (DEMO, 2006). As reflexões apresentadas neste texto resultaram da pesquisa desenvolvida no mestrado intitulada (Re) produção social e dinâmica ambiental no espaço da pesca: reconstruindo a territorialidade das marisqueiras em Taiçoca de Fora–Nossa Senhora do Socorro /SE, cujo objetivo foi analisar o papel das pescadoras na organização e manutenção da atividade pesqueira. O estudo esteve pautado não apenas na relação trabalho feminino e espaço pesqueiro, mas também nas transformações resultantes das inter-relações entre homens e mulheres no espaço socialmente (re) produzido através do trabalho, do modo de vida da comunidade e dos saberes que permitem fundar o sentido do grupo. Os estudos sobre a pesca no Brasil, sobretudo a artesanal, raramente são difundidos. Alguns autores (SILVANO, 2004; VASCONCELLOS, DIEGUES e SALES, 2004) apontam que grande parte dos dados disponíveis encontra-se em fontes secundárias, como teses e relatórios não publicados. A pesca artesanal é desenvolvida a partir da utilização de embarcações rudimentares

(canoa,

por

exemplo),

instrumentos

elaborados

pelos

comunitários e auxílio da família. O manejo e a gestão das áreas naturais são profundamente influenciados pela visão de mundo, práticas culturais e simbólicas dessas comunidades. A mulher atua na pesca artesanal, contribuindo para a conservação do meio e o sustento da família. Porém, enfrenta muitos obstáculos, especialmente quando o assunto é valorização e reconhecimento profissional, visto que há diferenças em termos salariais e direitos sociais. Rocha (2010) afirma que embora existam estudos sobre a produção da mulher no setor pesqueiro, pouco ainda se sabe sobre a realidade dessa produtora, e muito menos a dinâmica da sua atividade. Essa realidade ainda

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não é traduzida em números, uma vez que as mulheres não aparecem nas estatísticas oficiais. Diante desse quadro, torna-se relevante a discussão do caminho construído para a análise geográfica do trabalho feminino na pesca, considerando as relações que se estabelecem entre mulheres e homens nesse espaço. Os rebatimentos de gênero no espaço ocorrem a partir das relações estabelecidas na organização da atividade, nas transformações provocadas no espaço da pesca pelo trabalho feminino, levando em consideração a dinâmica ambiental e as atividades desenvolvidas pelas marisqueiras. Atividades consideradas de especial interesse para a Geografia e demais campos do conhecimento (Sociologia, Antropologia, Educação etc.) por permitir a investigação de novas problemáticas tais como: a análise de territórios do cotidiano, as questões entre gênero, trabalho e meio ambiente, reflexão acerca dos saberes tradicionais e sustentabilidade. Nessa perspectiva, este artigo discorre sobre os aspectos metodológicos utilizados para a análise geográfica do trabalho feminino no espaço da pesca artesanal. O artigo está dividido em duas seções, além desta introdução. A primeira traz a discussão sobre o percurso metodológico utilizado, com a descrição das etapas e técnicas empregadas, destacando o uso de instrumentos que delinearam a pesquisa qualitativa. A segunda seção ressalta os principais resultados obtidos no desenvolvimento do estudo, bem como a discussão das variáveis elencadas no percurso. Por fim, têm-se as considerações sobre os avanços e entraves vivenciados no desvelar do objeto analisado. Destarte, a relevância em apresentar o desenho elaborado para a análise da atuação da mulher na pesca artesanal está calcada na possibilidade de pôr em evidência grupos e fenômenos que por muito tempo foram negados nas discussões acadêmicas e político-sociais; salientar objetos que se encontram à margem do interesse de pesquisadores; confrontar a teoria à prática vivenciada; trazer à luz a organização da atividade extrativista, suas potencialidades e deficiências a fim de caminhar para um planejamento do uso dos recursos pesqueiros que leve em consideração a participação dos comunitários.

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2 Trilhando o conhecimento: o desvelar da pesquisa sobre mulheres na pesca artesanal “Você se recorda do que disse Kant: o cientista não é um discípulo mudo perante os fatos. Os fatos não falam. Em si, nada significam. São mudos e cegos. O cientista é o juiz. Faz perguntas. E pergunta, porque a sua razão só se satisfaz ao compreender o complô, a trama, a teia de relações que torna os fatos inteligíveis”. (ALVES, 2002, p.108)

2.1 Fenomenologia e abordagem qualitativa na análise geográfica em comunidades de pescadores artesanais

Demo (1996) enfatiza que a construção do novo conhecimento é efetivada através dos passos metodológicos, delineados em várias partes, por meio das técnicas e dos métodos implicados, das leituras e discussões enfrentadas, sobretudo da pretensão de cientificidade. A pesquisa sobre o trabalho das mulheres na pesca artesanal esteve foi fundamentada no método fenomenológico que permitiu analisar “o mundo ou a realidade como um conjunto de significações ou de sentidos que são produzidos pela consciência ou pela razão” (CHAUI, 2000, p.102, grifos da autora). A fenomenologia de Edmund Husserl é uma importante corrente filosófica iniciada no séc. XX. Ela “ressalta a ideia de que o mundo é criado pela consciência, o que implica o reconhecimento da importância do sujeito no processo de construção do conhecimento” (GIL, 1999, p. 33). Ela “se opõe à separação entre o produtor do conhecimento e o conhecimento. Toda consciência é intencional e o conhecimento é resultado da interação entre o que o sujeito observa e o sentido que fornece a coisa conhecida” (CIRIBELLI, 2000, p. 21). No método fenomenológico (NOGUEIRA, 2005), o espaço geográfico é analisado enquanto espaço das experiências vividas, como fenômeno por homens que nele vivem. Os sujeitos das pesquisas não são percebidos como meros informantes, mas são reconhecidos como autores, pois a experiência vivida por eles foi a principal fonte de interpretação para a reflexão.

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A abordagem metodológica que estruturou a pesquisa esteve norteada pelos aspectos de pesquisa qualitativa. Para Goldenberg (2004, p.14), na pesquisa qualitativa “a preocupação do pesquisador não é com a representatividade numérica do grupo pesquisado, mas com o aprofundamento da compreensão de um grupo social [...]”. Esse princípio demarcou toda a pesquisa, pois a análise da (re) produção social e da dinâmica ambiental na Taiçoca de Fora, área de estudo, foi pautada na investigação das transformações ocorridas no espaço pesqueiro a partir do trabalho de indivíduos envolvidos na atividade e na relação entre estes e o ambiente, no qual desenvolvem as atividades de pesca.

2.2 Recorte territorial e as técnicas implementadas no percurso metodológico

2.2.1 Área de estudo

O recorte territorial utilizado para o desenvolvimento da pesquisa foi o povoado Taiçoca de Fora, localizado no município Nossa Senhora do Socorro, Grande Aracaju, Sergipe e que possui uma população residente de aproximadamente 6000 habitantes (Cf. UBS3, 2011).

Ele está dividido nas

localidades de Bolandeira, Barreira e Canabrava (Figura 1). Existem suposições a respeito da origem do nome do povoado. Moradores antigos afirmam que o nome é formado da junção das palavras indígenas taóka (formiga pardo-avermelhada encontrada em área de manguezal) e oca (habitação típica dos povos indígenas). Eles justificam tal afirmativa pelo fato de ter existido há muito tempo uma tribo indígena na localidade. Estudioso da história de Nossa Senhora de Socorro, Manoel Messias (secretário de meio ambiente do município) acredita que o nome pode ser originado, além disso, de um tipo de capim que ali existia chamado taiçoca.

3

Unidade Básica de Saúde

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[...] taiçoca, dizem que existe um capim chamado taiçoca e que ali tinha... E taiçoca, também, vem dos antigos, dos índios. Uma palavra que vem de taioca [...] que é uma formiga grande. Diz que ali tinha muito também. Isso é história que contam os mais velhos. Como tinha essa taioca grande, que alguns indígenas chamavam de taiçoca [...] deu essa mistura de nome e deu taiçoca (Sr Manoel Messias).

Figura 1- Povoado Taiçoca de Fora e Localidades Fonte: Atlas Digital de Recursos Hídricos de Sergipe, SEMARH (2011); Banco de Dados dos Trabalhos de Campo (2012).

O ambiente natural do povoado é caracterizado principalmente pelo manguezal e a pesca se constitui como principal fonte de renda, pois cerca de 90% da população residente desenvolve a atividade. Dentre os animais capturados na localidade, destacam-se o sururu (Mytella guyanensis) e o sutinga (Mytella charruana). Atravessadores e pequenas famílias geram renda a partir do fornecimento dos moluscos que são capturados nos rios do Sal, Cajaíba e Cotinguiba, à margem da localidade.

2.2.2 Etapas da pesquisa

Para confrontar a visão teórica com os dados da realidade, fez-se necessário traçar um modelo conceitual e operativo do estudo. Com base nos procedimentos técnicos utilizados, a pesquisa contemplou as seguintes etapas:

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a) Levantamento bibliográfico e documental dos dados secundários

Os fundamentos teóricos foram construídos a partir das leituras de gênero, trabalho, territorialidade e representação social (categorias-mestras do estudo), sendo extraídos de livros, periódicos, anais de eventos, dissertações de mestrado e teses de doutorado. O levantamento documental baseou-se na coleta de dados sobre a pesca, aspectos socioeconômicos e atuação do Estado em sites da administração pública, tais como a Prefeitura Municipal de Nossa Senhora do Socorro e IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística); além da visita a órgãos públicos, a exemplo do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos

Naturais

Renováveis),

SEMAIMAP

(Secretaria

Municipal

de

Agricultura, Irrigação, Meio Ambiente e Pesca) e MPA (Ministério da Pesca e Aquicultura).

b) Pesquisa de campo

No período de investigação, foram realizadas 13 visitas a comunidade (de maio de 2011 a janeiro de 2012). Nas visitas ocorreram observações por meio das jornadas de convívio, momento em que a pesquisadora participou de reuniões com a comunidade, de eventos que traduziram as manifestações religiosas presentes na localidade (procissão de São Pedro Pescador) e de atividades no rio e manguezal. Além do mais, houve a aplicação de 35 entrevistas, realizadas em dois momentos: no primeiro, por meio de entrevista semiestruturada, foram inquiridos indivíduos que possuíam relação com a pesca (pescadoras, pescadores, representantes comunitários, representantes de colônia de pescadores e gestores públicos). No segundo momento, foram inquiridas apenas as marisqueiras (que tivessem a pesca como única fonte de renda, que desenvolvessem a pesca a mais de dez anos, que possuíssem mais de vinte anos de idade, que fossem residentes do povoado e que tivessem acesso facilitado à entrevista), utilizando-se a técnica de entrevista em profundidade.

99

A entrevista é uma técnica que permite a apreensão da realidade por meio da percepção e da vivência dos indivíduos nela inseridos. A entrevista semiestruturada utilizada na pesquisa em evidência corresponde à aplicação de um roteiro com questões abertas acerca da temática analisada. É relevante por almejar a compreensão de “uma realidade particular e assumir um forte compromisso com a transformação social, por meio da auto-reflexão e da ação emancipatória

que

pretende

desencadear

nos

próprios

participantes”

(FRASER; GONDIM, 2004, p.145). Enquanto a entrevista em profundidade, outro instrumento empregado no estudo, permitiu a apreensão da realidade a partir da análise profunda das questões apresentadas pelo entrevistado e da descrição de processos complexos nos quais o entrevistado está ou esteve envolvido. De acordo com Richardson (2007), a entrevista em profundidade visa obter informações detalhadas que possam ser utilizadas numa análise qualitativa. A seleção da amostragem ocorreu a partir da aplicação da técnica “bola de neve” (snowball), que consiste, na primeira etapa, na seleção de algumas pessoas que atendem a pré-requisitos estabelecidos. Essas pessoas são usadas como informantes para identificar outras pessoas que possam ser incluídas na amostra. O georreferenciamento foi outro procedimento utilizado no trabalho de campo. Com a utilização de GPS (Global Positioning System) de navegação Garmin Etrex, câmera fotográfica e gravador mp4 foram registrados os pontos de pesca mais utilizados pelas pescadoras (marisqueiras) e pescadores da Taiçoca de Fora. O levantamento dos pontos de pesca foi realizado com auxilio de informantes nativos (pescadores e marisqueiras) que possuíam um profundo conhecimento da área de estudo. Eles conduziram e orientaram todo o trajeto, percorrendo com um barco a motor os afluentes do rio Cotinguiba que banham desde a Taiçoca de Fora até Pedra Branca (Laranjeiras). Além de georreferenciar os pontos de pesca, foram levantadas as artes de pescas, lendas folclóricas, tipo de pescado e marisco que são extraídos em cada localidade.

100

c) Tratamento dos dados

Os dados colhidos nas entrevistas foram sistematizados de maneira a possibilitar a construção de gráficos, tabelas e quadros para uma melhor compreensão do problema de pesquisa, a partir de uma análise crítica e reflexiva na comunidade estudada. O levantamento dos pontos de pesca possibilitou a elaboração de mapas temáticos a respeito da área de atuação das pescadoras (marisqueiras) e pescadores nas proximidades da foz do rio Cotinguiba. Para isso, foram utilizadas técnicas de geoprocessamento em Sistemas de Informações Geográficas (SIG), através do software ArcGIS 10 e a construção de bancos de dados geográficos realizados em projeção cartográfica UTM, Datum SIRGAS 2000, zona 24 Sul.

3 Mapeamento do trabalho das pescadoras em Nossa Senhora do Socorro/SE Pescador é aquele que conhece os caminhos e segredos do mar e do estuário, o que produz um sentimento de pertença a um grupo e, consequentemente, a um território. O ordenamento e uso dos espaços naturais aquáticos são resultados da experiência e conhecimento de vida. (RAMALHO, 2006, p.56)

3.1 Perfil socioeconômico das pescadoras da Taiçoca de Fora/SE

O perfil socioeconômico foi traçado a partir de entrevistas realizadas a 14 mulheres que possuíam uma intrínseca relação com a pesca. Essas mulheres tinham idade entre 31 e 58 anos, o que favoreceu o entendimento da atividade pesqueira, devido ao conhecimento adquirido por elas ao longo dos anos. A maior parte das mulheres pescadoras entrevistadas possuía união estável (64,3%), elemento que traz uma relevância social para elas que atribuem ao homem o direcionamento familiar, mesmo que na realidade seja realizado pelas mesmas.

101

As famílias eram compostas em grande parte por mais de cinco pessoas (35,7%), tendo famílias que possuíam até onze integrantes. Tal número de componentes justifica-se pelo fato de os filhos auxiliarem no desenvolvimento da atividade e contribuírem para a complementação da renda familiar. O grau de instrução foi considerado baixo, pois as mulheres em sua maioria (64,3%) tinham o ensino fundamental incompleto. Havia aquelas que não sabiam ler nem escrever (14,3%) e uma pequena porcentagem que se encontrava no ensino médio. Muitas atribuem a baixa escolaridade ao trabalho árduo na maré que impossibilitou a freqüência à unidade escolar.

“Não

estudei, minha escola foi a maré” (Srª M. A., marisqueira da Canabrava). A baixa escolaridade evidenciada em comunidades que desenvolvem a pesca pode ser corroborada pelo distanciamento existente entre o currículo escolar e o calendário pesqueiro. Como não há uma integração entre o currículo e a realidade pesqueira, muitos pescadores são obrigados a abandonar a escola, havendo assim um elevado índice de evasão escolar. As mulheres pescadoras entrevistadas trabalhavam em média cinco dias, sendo cinco horas no complexo estuário-manguezal (podendo variar a depender da necessidade financeira): “Depende da fome quando bate” (Srª D.J.S, marisqueira da Bolandeira). Complementavam sua carga horária com os afazeres domésticos e no tratamento do marisco, atribuindo à pesca mais de onze horas diárias. Financeiramente o esforço diário não era recompensado, visto que a maioria (71,4%) vivia com até R$ 620,00 (seiscentos e vinte reais). Das mulheres entrevistadas, a maioria (43%) era registrada na colônia Z-6 (sede no Conjunto João Alves, em Nossa Senhora do Socorro) devido à proximidade ao povoado e por facilitar a resolução de problemas. Enquanto na Z-14 (caracterizada por ser a primeira colônia de Sergipe, por englobar pescadores de São Cristóvão, Nossa Senhora do Socorro, Aracaju, entre outros) estavam registradas 28% das mulheres inquiridas. Porém, um número significativo de mulheres não tinha registro (29%), em razão da idade ultrapassada para o registro, não credibilidade da colônia, registro cancelado, falta de informação e o distanciamento entre a colônia e os pescadores.

4

De acordo com o MPA-SE no primeiro semestre de 2011 existiam 7000 registros. Desses, apenas 2000 eram de pescadores de Aracaju.

102

O distanciamento existente entre colônia e alguns pescadores colabora para o enfraquecimento da luta da categoria pela visibilidade da pesca nas discussões na esfera pública.

3.2 Uso e manejo do ambiente pelas pescadoras do Povoado Taiçoca de Fora/SE

O manguezal representa a conexão entre os pescadores, sobretudo as pescadoras, e o ambiente. A sua dinâmica é intensamente influenciada pelas marés e isso reflete na dinâmica da atividade pesqueira que é configurada a partir do ritmo da natureza. A jornada de trabalho diária é delineada através do fluxo da maré cheia e seca que determina as estratégias utilizadas, as espécies extraídas, os petrechos e o trajeto a ser percorrido para o trabalho nos pontos de pesca.

É preciso saber da maré por causa dos horários. Não pesca qualquer dia. A cada dia ela muda uma hora. Quando ela “tá” cheia dá pra “pescá”. Quando enche de madrugada só dá pra “pescá” três ou quatro horas da tarde (Srª L.H., pescadeira da Canabrava).

No tocante ao trabalho na pesca, as mulheres pescadoras da Taiçoca de Fora capturam com maior frequência mariscos como o sururu (Mytella guyanensis) e a ostra (Crassostrea rhizophorae); os homens, por sua vez, desenvolvem atividades no canal fluvial extraindo espécies de peixe, dentre elas: robalo (Centropomus spp.), tainha (Mugil curema), bagre (Tachysurus spp), carapeba (Diapterus rhombeus), curimã (Mugil spp.) etc. Para a extração dos mariscos, as marisqueiras se deslocam em grupo para os pontos de pesca por meio de canoa motorizada, quando distantes; utilizam instrumentos simples para a sua coleta, confeccionados por elas, como o dedo de pau5, utilizado para a retirada do sururu. Este molusco também pode ser retirado com o dedo, técnica mais utilizada pelas mulheres da localidade e que consiste na retirada do molusco ao inserir o dedo no solo lamoso (Figura 2). Já a ostra é retirada das gaiteiras do mangue por meio de faca ou facão. 5

Arte de pesca confeccionada com madeira.

103

O sutinga (Mytella charruana), um dos principais mariscos extraídos na localidade, tem a sua coleta realizada predominantemente por homens, cabendo à mulher a separação do molusco da concha e a sua venda. Para a sua extração eles utilizam facão e é preciso que o pescador mergulhe para cortar o “tapete" que o marisco forma no leito do rio. Contudo, o mergulho é considerado perigoso por causa dos acidentes com águas-vivas que contribuem para as constantes queimaduras.

Figura 2- Marisqueira extraindo sururu em Taiçoca de Fora-SE Fonte: SANTOS (2011).

Diante do que foi apresentado, é evidente a íntima relação que as pescadoras possuem com o ambiente, relações estabelecidas a partir das maneiras de fazer cotidianas, do convívio com os demais e do conhecimento adquirido no manejo do ambiente estuarino.

3.3 Territorialidade do trabalho feminino na pesca artesanal em Taiçoca de Fora

Na relação entre comunidade, seu patrimônio ecológico (MELO e SOUZA; COSTA, 2011) e sua herança social é que são estabelecidas as territorialidades. Assim, a territorialidade manifestada tanto na exposição dos saberes locais quanto nas designações dos lugares possuídos podem revelar peculiaridades sobre a relação de trabalho e gênero. Os lugares possuídos correspondem aos pontos de pescas que se caracterizam como locais nos quais se realizam as pescarias e que são

104

demarcados a partir do conhecimento ecológico, das relações estabelecidas no espaço pesqueiro e da territorialidade manifestada em locuções do tipo lugar de, revelando a posse adquirida pelo uso consuetudinário do ambiente. Na

comunidade

analisada

os

principais

pontos

de

pesca

foram

georreferenciados. Com base nisso, nos relatos dos pescadores e no estudo de Khun (2009) sobre os territórios dos pescadores artesanais de São Francisco do Paraguaçu-Bahia foi elaborado o mapa apresentando a espacialização das atividades das pescadoras na foz do rio Cotinguiba. Na análise foram elencados três territórios produtivos (Figura 3), isto é, espaços apropriados para o desenvolvimento de atividades econômicas ligadas a pesca: carcinicultura, mariscagem e pesca (atividades desenvolvidas no estuário).

Figura 3- Territórios produtivos na foz do Rio Cotinguiba Fonte: Atlas Digital de Recursos Hídricos de Sergipe, SEMARH (2011); Banco de Dados dos Trabalhos de Campo (2012).

Khun (2009) salienta que é importante destacar que os limites dos territórios produtivos nem sempre são claramente definidos e que eles obedecem a lógicas distintas. As atividades de carcinicultura obedecem aos limites do manguezal. A mariscagem obedece aos limites dos recursos naturais (fauna e flora) e a pesca obedece aos limites do estuário, engloba os recursos naturais provenientes do rio.

105

O trabalho das mulheres pescadoras (marisqueiras) ocorre, em sua maioria, no manguezal.

Porém, sua territorialidade tem sido sufocada através das

atividades de carcinicultura e das poluições ocorridas no estuário, provenientes do lançamento de dejetos industriais e domésticos. As pressões externas têm levado as mulheres pescadoras (marisqueiras) desse povoado a adentrar o estuário, espaço em que se destaca a presença masculina. Neste território elas desenvolvem técnicas de coleta utilizando redes, anzóis, arpões, entre outras. O fato de as mulheres se inserirem neste território demonstra as estratégias elaboradas para a permanência na atividade. Nesse sentido, “a territorialidade constituída no tensionamento entre a identidade de resistência e a alteridade [...], enquanto mulheres pertencentes a um segmento cuja atividade encontra-se fortemente constrangida nos territórios analisados, aponta para intrincada teia relacional e de significados que enveredam entre o ethos discursivo das mesmas” (MELO e SOUZA; COSTA, 2011, p.15).

4 Considerações finais O processo de pesquisa constitui-se na busca por decifrar a realidade que nos cerca. Parte da premissa de que é preciso explicar os fenômenos e assim construir um conhecimento novo. Esse processo é permeado por esquemas, normas que tornam o caminhar científico; assim salientam os teóricos da filosofia da ciência. Contudo, não só de avanços é delineado o caminhar científico; existem os percalços que em alguns casos travam o desenvolvimento da pesquisa. O que se deseja destacar é que não existe um caminhar único, fechado. Ele é transformado de acordo com as necessidades de entender a realidade analisada. Assim ocorreu na investigação do trabalho feminino na pesca, visto que no processo algumas etapas tiveram que ser modificadas, a exemplo da substituição da técnica de grupo focal pela entrevista em profundidade. Isso aconteceu devido à realização de reuniões dos comunitários com os

106

advogados da Confederação de Pescadores por conta da poluição que havia afetado os pescadores que desenvolviam atividades no rio Cotinguiba. Outro ponto que pode ser levantado na discussão são os conflitos identificados no campo, requerendo do pesquisador maior cautela ao lidar com os envolvidos, uma vez que o objetivo era compreender a dinâmica local e não acirrar os problemas. No que tange aos aspectos positivos da temática apresentada, cabe aqui destacar que ela contribuiu para que o pesquisador aprendesse sobre os saberes dos pescadores a cada campo realizado. Cada visita à comunidade era permeada de descobertas e confronto entre a teoria apreendida na academia e a prática vivenciada. Além disso, foi muito importante evidenciar a necessidade de estudos e projetos governamentais no tocante a pesca artesanal, ressaltar o papel da mulher na socialização da atividade pesqueira e nas estratégias elaboradas para a manutenção da reprodução social do grupo. Portanto, pesquisar é condição essencial do descobrir e do criar; é também dialogar, no sentido específico de produzir conhecimento do outro para si, e de si para o outro; é demonstrar que não se perdeu o senso pela alternativa, que a esperança é sempre maior que qualquer fracasso, que é sempre possível reiniciar. No fundo, pesquisa passa a ser a maneira primeira de o ator político se colocar, se lançar, seja no tatear cuidadoso em ambiente desconhecido ou hostil, seja no medir as próprias forças diante de forças contrárias, seja na instrumentação estratégica da ocupação de espaço (DEMO, 2006).

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107

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CAPÍTULO 7 ETNOMAPEAMENTO DOS BANCOS NATURAIS DE SUTINGA (MYTELLA CHARRUANA) NO ESTUÁRIO DO RIO CAJAÍBA-SE Analee Cruz Alves1 Felippe Pessoa de Melo2 Rosemeri Melo e Souza3

Resumo A pesca artesanal do sutinga (Mytella charruana) apresenta grande importância para a comunidade da Taiçoca de Fora, situada no município de Nossa Senhora do Socorro-SE. Famílias inteiras sobrevivem deste nobre recurso, no entanto, os pescadores relatam a diminuição do sutinga ao longo dos anos. O presente trabalho objetivou identificar os bancos naturais do sutinga existentes ao longo do estuário do rio Cajaíba através da metodologia do etnomapeamento. A identificação cartográfica dos bancos naturais em atividade foi realizada unindo os saberes locais a ferramentas geotecnológicas e as cartas foram geradas através do software ArcGIS. Observou-se que os pescadores precisam percorrer longas distâncias até chegar aos poucos bancos de pesca ainda em atividade no rio Cajaíba. A partir deste trabalho foram produzidos dados sobre à distribuição dos pesqueiros ativos situados ao longo do manancial, conciliando subsídios geotecnológicos com os saberes da comunidade. O presente estudo contribuiu com a lacuna teórica e metodológica existente sob a temática, alertando a comunidade e aos órgãos competentes sobre a necessidade de um manejo sustentável para a gestão do recurso. Palavras-chave: Sutinga. Pescadores. Etnomapeamento. Bancos naturais. Gestão.

1

Engenheira de Pesca; Mestranda em Desenvolvimento e Meio Ambiente-Universidade Federal de Sergipe. Estudante associada ao Grupo de Pesquisa em Geoecologia e Planejamento Territorial-GEOPLAN/UFS; [email protected]. 2 Geógrafo; Mestre em Geociências e Análise de Bacias Sedimentares e Doutorando em Geografia-Universidade Federal de Sergipe; Estudante associado ao Grupo de Pesquisa em Geoecologia e Planejamento Territorial- GEOPLAN/UFS; [email protected]. 3 Pós-Doutora em Geografia Física - GPEM/The University of Queensland; Drª em Desenvolvimento Sustentável/Gestão Ambiental – UnB; Professora associada do Núcleo de Engenharia Ambiental - Universidade Federal de Sergipe; Líder do Grupo de Pesquisa Geoecologia e Planejamento Territorial - GEOPLAN/UFS; [email protected].

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ETHNOMAPPINGOF NATURAL BANKS SUTINGA (MYTELLA CHARRUANA) IN THE RIVER ESTUARY CAJAÍBA-SE Abstract The ‘sutinga’ (Mytella charruana) artisanal fisheries has a great importance for the Taiçoca de Fora community, located in the municipality of Nossa Senhora do Socorro-SE. This resource plays an important role for its families, however fishermen report that the sutinga decreased over the years. This aim of this study was to identify the natural stocksof sutinga along the estuary of the river Cajaíba by ethno-mapping methodology. The cartographic identification of the natural stocks in operation was carried out joining local knowledge along with geotecnologic tools and the maps were generated through the ArcGIS software. It was observed that fishermen have to travel long distances to reach only a few fishing stocks that remains in operation in Cajaíba river. From this work were produced data on the distribution of fishing assets located throughout the estuary, combining geotecnologic subsides to community knowledge. This study contributed to the existing theoretical and methodological gap under the theme, warning the community and the competent bodies about the need for sustainable management for the management of this resource. Keywords: Sutinga. Fishermen. Ethnomapping. Natural stocks. Management.

1 Introdução A pesca é uma das atividades mais antigas realizada pelo homem, inicialmente era realizada para fins de subsistência, com o passar dos anos a atividade ganhou evidência devido a sua grande relevância econômica e social (ARAGÃO; DIAS NETO, 1988). Dentre os grupos que praticam essa atividade estão os pescadores artesanais, integrantes de comunidades tradicionais que possuem seu estilo de vida e atividades ligados quase que de forma simbiótica a natureza e ao meio que vivem. Diegues et al. (2000), descreve o pescador artesanal como o trabalhador que tem a atividade voltada tanto para a subsistência como para a comercialização. O sistema de produção é basicamente familiar, na tripulação podem estar presentes parentes, amigos e conhecidos da família, grande parte desses pescadores reside em espaços urbanos ou periurbanos. A pesca

110

artesanal é caracterizada pela simplicidade de seus petrechos e por ser de pequena escala3. Como principais características estão:

A fragmentação das capturas por espécie e locais de desembarques, tornando bem difícil a conservação, distribuição e comercialização do pescado (...) predominância do baixo desenvolvimento tecnológico em todas as fases do processo produtivo, causa e efeito da insuficiente geração de capital para custeio e reinvestimento; acentuada distorção na distribuição dos benefícios, em virtude das relações de produção e número excessivo de intermediários, sempre desfavorecendo os pescadores; clara predominância do trabalho sobre o capital, em todo o setor produtivo (PAIVA, 1986, p.86).

Estima-se que hoje no país, existem aproximadamente 1 milhão de pescadores artesanais e que cerca de 45% da produção de pescado desembarcada nos portos nacionais é oriunda desta modalidade de pesca. As regiões que apresentam maior representatividade são a Norte e Nordeste, tendo como principais recursos capturados peixes ósseos, elasmobrânquios, crustáceos e moluscos (BRASIL, 2015). Os esforços da pesca artesanal estão concentrados em espécies que exigem menores custos de transporte, modo de armazenamento ou prestação de serviço. Em Sergipe, o município de Nossa Senhora do Socorro destaca-se pela larga pesca artesanal do sutinga (Mytella charruana) (Figuras 1A e 1B). Esta é tida como garantia de renda para a os moradores do povoado Taiçoca de Fora, que além da pesca vivem do beneficiamento do produto (Figuras 1C e 1D). Cerca de 90%4 dos moradores do povoado tem o marisco como principal fonte de renda. Os dados estimados para a extração de Mitilídeos segundo Thomé de Souza et al. (2011) foram de 44.939,6 kg para os municípios de Aracaju, Barra dos Coqueiros, Brejo Grande, Estância, Indiaroba, Pacatuba, Pirambu, Santa Luzia e São Cristóvão em 2011. Vale ressaltar que ainda não há estimativa específica para a produção do sutinga em Nossa Senhora do Socorro.

3

Pesca de pequena escala: As capturas são realizadas dentro do estuário, com petrechos simples e em curto período de tempo. 4 De acordo com matéria do Jornal da Cidade intitulada Sururu e sutinga dão bons lucros em Socorro, publicada em 11/01/2009, disponível em http://2008.jornaldacidade.net/2008/noticia. php?id=23375t>. Acesso em: 14 de jun. de 2015.

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Carriço et al. (2011) afirmam que a pesca do sutinga configura grande importância socioeconômica para a comunidade tradicionais local, no entanto, pescadores e marisqueiras da região relatam que nos últimos anos houve uma diminuição significativa na quantidade do sutinga capturado no estuário do rio Cajaíba.

A

B

C

D

Figura 1- A) Retorno da pesca do sutinga; B) Mytella charruana (sutinga); C) e D) beneficiamento primário do sutinga. Fonte: ALVES, A. C.; MELO, F. P. (2015).

Atualmente a pesca do sutinga na Taiçoca de Fora, está se tornando cada vez mais escassa, esta é realizada de forma desordenada, não existe no estado regulamentação que determina períodos propícios para essa atividade ou tamanho mínimo para sua captura do organismo, assim é comum que a pesca seja realizada durante todo ano, em alguns casos até o esgotamento do recurso em seu banco natural. O presente estudo tem como objetivo mapear os bancos de pesca ainda produtivos ao longo do rio Cajaíba, sendo os pesquisadores orientados pelo conhecimento da comunidade extratora local, técnica conhecida como etnomapeamento. De acordo com Acselrad:

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É a partir do diálogo de saberes que o conhecimento local pode se expressar. A interação entre sujeitos com conhecimento técnico e sujeitos com conhecimento tradicional deve ser objeto de reflexão por parte dos pesquisadores do processo cartográfico e seus métodos, de modo a se alcançar o diálogo entre técnicas e saberes e evitar a imposição de um sobre o outro, ou ainda que se excluam mutuamente. Isso implica na necessidade de que os sujeitos do conhecimento técnico construam junto com as comunidades e autoridades étnicas as estratégias do processo cartográfico (2013, p. 21).

Os etnomapas são importantes instrumentos de pesquisa pois possibilitam a identificação de territórios, o reconhecimento de pontos vulneráveis e a localização de recursos naturais (BARROS et al. 2013).

2 Percurso metodológico: da percepção ao mapeamento temático 2.1 Caracterização de área

As águas do litoral brasileiro apresentam grande biodiversidade e por consequência servem de incentivo à exploração comercial da pesca ao longo das 12 bacias hidrográficas existentes, tais áreas são consideradas patrimônio comum entre as comunidades que usufruem dos recursos pesqueiros. Apesar de deter apenas 18% do território nacional, a região Nordeste ocupa 41% da faixa de litorânea do país, com cerca de 3.300 km de extensão territorial, estando inseridos nesse espaço habitats variados; tais como mangues, baías, recifes, zonas estuarinas (VIDAL; GONÇALVES, 2010). O recorte espacial deste trabalho está inserido no município de Nossa Senhora do Socorro-SE, com coordenadas geográficas -10o 51’ 13” e -37o 07’ 30”, localizado ao leste do estado, distando aproximadamente 13 km da capital. O município de Nossa Senhora do Socorro possui 156.770 km² de extensão territorial, população total de 160.827 habitantes, estando 5.004 na zona rural. Como municípios limítrofes estão Laranjeiras ao Norte, separado pelo rio Cotinguiba; São Cristóvão ao Sul e Oeste, separado pelo rio Poxim Mirim; Aracaju e Santo Amaro das Brotas ao Leste, separado pelo rio Sergipe. O

113

clima local é do tipo mega-térmico seco e subúmido, e os períodos de maior ocorrência chuvosa são entre março e agosto (SERGIPE, 2014). O presente estudo foi desenvolvido no estuário do rio Cajaíba, tributário do rio Cotinguiba. Este afluente foi escolhido por ser alvo da larga pesca do sutinga pela comunidade local, a seguir o mosaico da área de estudo (Figura 2).

Figura 2- Mosaico da área de estudo. Fonte: ALVES, A. C.; MELO, F. P. (2015).

2.2 Instrumentos de pesquisa

A metodologia utilizada foi o etnomapeamento, gravações e registros fotográficos também foram feitos, a fim de compreender qual a técnica de pesca utilizada na captura do sutinga e a percepção dos extratores sobre o meio. Durante a saída de campo os pontos foram registrados com o auxílio do GPS (Global Positioning System). Para o mapeamento dos bancos do marisco, os pontos de pesca foram visitados de acordo com sua intensidade de pesca, divididas como baixa, média e elevada.

114

O etnomapeamento foi realizado com a cooperação dos pescadores do povoado Taiçoca de Fora (Figura 3A), que indicavam ao longo da travessia no rio Cajaíba os pesqueiros com elevada e baixa produtividade (Figura 3B).

A

B

Figura 3 - A) Pescadores no estuário do rio Cajaíba. B) Etnomapeamento. Fonte: ALVES, A. C.; MELO, F. P. (2015).

A estimativa da intensidade de pesca foi realizada levando-se em consideração a quantidade (kg) do sutinga capturado. A lata é o instrumento de mensuração da pesca do molusco (Figura 4).

Figura 4- Latas utilizadas para quantificar a produção. Fonte: ALVES, A. C.; MELO, F. P. (2015).

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3 Cenário geoambiental e economia local Durante o mapeamento verificou-se que a técnica utilizada para a pesca do sutinga é o mergulho, segundo o pescador mergulhador os pontos de coleta podem apresentar profundidades que variam entre 7 a 10 metros em maré cheia (Figura 5A), para estimar a profundidade do mergulho eles utilizam o remo como parâmetro (conhecido popularmente como vara), normalmente este mede 2 metros de comprimento. “A pesca do sutinga, ela é no fundo do rio. Tem ocasião que ele tá muito fundo, quatro, cinco varas, eles mergulham e vão buscar. E pra mergulhar minha fia, só quando a maré seca” (Sr. L. Pescador Artesanal).

O pescador mergulhador considera a maré-baixa a melhor ocasião para pescar, pois estando em seu menor nível a localização do “tapete” 5 ocorre em menor tempo. Os pesqueiros são guardados através da memorização de acidentes geográficos como rochas, tipo do mangue, pequenos portos (Figura 5B), corroborando com as ideias de Diegues et al. (2000) ao afirmar que os pescadores artesanais guardam cuidadosamente os pesqueiros produtivos através marcas do meio. Em seguida o pescador/mergulhador localiza o banco com o auxílio do remo, sentindo a presença do sutinga ao substrato, ele se lança do barco e retira o molusco do banco natural com uma faca (Figura 5C), no ato do desembarque o excesso de substrato é removido com o auxílio de uma cesta de fibra vegetal, conhecido como caçuá (Figura 5D). No decorrer da identificação dos pontos de pesca foi relatado pelos pescadores que à medida que o estoque cessa é necessário navegar por horas até se encontrar um novo banco natural em atividade, elevando o custo da pescaria devido ao maior uso de combustível fóssil. Em entrevistas realizadas na comunidade, foi relatado que atualmente novos pesqueiros são procurados nos municípios de Aracaju (Cajueiro) e Laranjeiras

5

Tapete: Definição dada pelos pescadores aos bancos naturais do sutinga.

116

(Pedra Branca). Sendo evitadas as regiões de banzeiros6 e os pontos próximos ao rio do Sal, pois segundo os entrevistados sempre voltam doentes da região. Épocas chuvosas não são consideradas propícias para a pesca, ocorrendo o emagrecimento do molusco por conta da baixa salinidade.

A

B

C

D

Figura 5- A) Pesca através da técnica de mergulho; B) Etnomapeamento de pesqueiro; C) Sutinga retirado do banco natural; D) Limpeza do sutinga com o auxílio dos caçuás. Fonte: ALVES, A. C.; MELO, F. P. (2015).

Ainda com base nos relatos e nas visitas de campo, foi determinado o que seria uma pesca de baixa, média e elevada intensidade. A tabela 1 demonstra a produção média em estados físicos distintos do organismo (magro ou gordo). Durante o etnomapeamento foi percorrida uma área total de 60,47 km² a fim de se estimar a intensidade de pesca do sutinga ao longo do rio Cajaíba, verificou-se que da extensão percorrida somente 8,66 km² ainda apresentava elevada intensidade de pesca; 9,08 km² apresentou média intensidade e 42,73 km² baixa intensidade.

6

Banzeiros: Perturbação nas águas do rio, sucessão de ondas.

117

Tabela 1- Produção (kg) de acordo com a intensidade de pesca e condição física do sutinga.

Condição Baixa Média Elevada

Magro (kg) 1-2 3-5 6-8

Gordo (kg) 2-4 5-9 10-16

Fonte: ALVES, A. C.; MELO, F. P. (2015).

O etnomapa foi construído através da identificação dos pontos de pesca utilizados pelos pescadores, em seguida os dados coletados foram processados através do software ArcGIS, gerando o etnomapa a seguir (Figura 6).

Figura 6- Etnomapa da estimativa do sutinga ao longo do braço do rio Cajaíba. Fonte- ALVES, A. C.; MELO, F. P. (2015).

Através da imagem gerada pode-se perceber que atualmente existem poucos bancos naturais em plena atividade. Os pescadores/mergulhadores da região atribuem a diminuição do recurso à pesca excessiva, assim como ao derramamento de amônia no rio Sergipe ocorrido em 2008, na época o desastre ambiental provocou grande mortandade de peixes e outros organismos aquáticos. “Depois desse desastre as coisas pioraram, o sutinga, até a ostra não quer cresce mais, não tem mais quase nada. A maré grande, quando tá de vazante é mesmo que uma cachoeira

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quando cai, detona, traz a droga toda” (Sr. J. Pescador Artesanal).

Em período de elevada intensidade de pesca podem ser pescadas até 8 latas por dia, equivalente a dezesseis quilos do produto, enquanto que no período de baixa intensidade essa quantidade pode cair até uma lata, equivalente a 1 ou 2 kg, a depender do estado físico do sutinga. O quilo do sutinga beneficiado é vendido a R$ 6,00 (seis reais) ao cambista7, já nas feiras livres o preço pode chegar a R$ 10,00 (dez reais) o quilo.

Considerações finais Os saberes das comunidades tradicionais são importantes ferramentas para promover à gestão dos recursos naturais, assim como meio básico para se alcançar a sustentabilidade. Conhecimentos, costumes, valores e visões desses povos podem nos guiar pelos caminhos do desenvolvimento (VERDEJO, 2006). O presente trabalho teve como finalidade aplicar uma metodologia cartográfica de mapeamento temático, o etnomapeamento, objetivando conciliar a percepção do pescador artesanal em relação ao potencial do recurso extraído aos pontos específicos de localização do mesmo. Dessa forma, os subsídios geotecnológicos foram unidos aos saberes da comunidade, de forma que a tecnologia veio a contribuir com a comunidade, indo de encontro a visão de que a mesma está a quem. Vale ressaltar que caso a dinâmica da paisagem estivesse em equilíbrio à pesca do sutinga representaria um baixo impacto sob o recurso hídrico, tendo em vista que a mesma é feita de forma artesanal, até mesmo o corte do mangue sapateiro (Rhizophora mangle) para a atividade de cocção do molusco ocorre de forma que o mangue possa se reestabelecer. Os dados produzidos no presente estudo contribuem com a lacuna teórica e metodológica existente sob a temática, principalmente em escala local. É latente a necessidade de um manejo sustentável, para a gestão do recurso,

7

Cambista: Pessoa que compra do pescador e revende o produto aos feirantes, conhecidos também como atravessador.

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mas para que isso venha a ocorrer deve-se levar em primeiro plano as necessidades local e ambiental.

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120

VIDAL, M. F.; GONÇALVES, M.F. O segmento da pesca marinha na costa nordestina: caracterização e mercado- Banco do Nordeste. Fortaleza, Brasil, 2010. p.154.

CAPÍTULO 8 UMA ANÁLISE FENOMENOLÓGICA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS NO LITORAL SUL DE SERGIPE Maria do Socorro Ferreira da Silva1 Gênisson Lima de Almeida2 Priscila de Oliveira Rocha3

Resumo Este trabalho tem como objetivo analisar o modo de vida das comunidades tradicionais nos povoados da APA do Litoral Sul de Sergipe a partir da fenomenologia-hermenêutica. A pesquisa foi realizada a partir levantamento bibliográfico e documental; entrevista com roteiro semiestruturado realizadas com representantes e membros das comunidades tradicionais; diálogos informais e observação sistematizada nos povoados pesquisados. As comunidades tradicionais, representadas pelas catadoras de mangaba, marisqueiras e pescadores artesanais que realizam práticas extrativistas passadas de geração para geração, têm sua base de sustento e seu modo de vida ameaçados devido aos impactos socioambientais provocados pelos usos atribuídos ao território, tais como: agropecuária e do turismo sem planejamento. Dentre os impactos pode-se citar a contaminação dos recursos hídricos, o desmatamento das restingas, vegetação de dunas, manguezais e campos de várzeas. No contexto local, faz-se necessário pensar em estratégias para reduzir os impactos provocados, conectar os fragmentos florestais, além de alternativas para possibilitar a conservação da biosociodiversidade de modo que possa reduzir os efeitos maléficos da injustiça ambiental. Palavras-chave: Atividade extrativista. Conservação. Biosociodiversidade. Modo de vida.

1

Doutora em Geografia. Profª Adjunta dos cursos de Graduação em Geografia e PósGraduação (PRODEMA) da UFS e Pesquisadora do GEOPLAN/UFS/CNPq. [email protected] 2 Graduando em Geografia pela UFS e Pesquisador do GEOPLAN/UFS/CNPq [email protected] 3 Graduada em Geografia pela UFS e Pesquisadora do GEOPLAN/UFS/CNPq. [email protected]

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A PHENOMENOLOGICAL OF TRADITIONAL COMMUNITIES ANALYSIS IN COASTAL SOUTH SERGIPE Abstract This study aims to analyze the way of life of traditional communities in the villages of the Environmental Protection Area of the South Coast of Sergipe from the phenomenology-hermeneutics. The survey was conducted from bibliographic and documentary survey; with semi-structured interview conducted with representatives and members of traditional communities; informal dialogues and systematic observation in the surveyed villages. Traditional communities represented for the pickers mangaba, shellfish gatherers and fisherfolk who perform past extractive practices from generation to generation have their basic sustenance and their way of life threatened by the social and environmental impacts caused by uses assigned to the territory such as: agriculture and unplanned tourism. Among effects can be cited water contamination, deforestation restinga, dune vegetation, mangroves, and wetlands fields. In the local context makes it necessary to consider strategies for reducing the induced impacts, connecting forest fragments plus options to allow conserving biosociodiversidade so that would reduce the ill effects the environmental unfairness. Keywords: Extractive activity. Conservation. Biosociodiversidade. Lifestyle.

1 Introdução

As

comunidades

tradicionais

são

consideradas

grupos

humanos

culturalmente distintos que reproduzem de maneira histórica seu modo de vida, com limitado grau de isolamento, tendo por base a cooperação social, mantendo determinadas relações equilibradas com o meio ambiente e seus recursos naturais, com o uso de técnicas de manejo tradicionais e sustentáveis (DIEGUES, 2000). A Lei 11.428/2006 define populações tradicionais como aquelas que vivem em estreita relação com o ambiente natural, dependendo de seus recursos naturais para a sua reprodução sociocultural, por meio de atividades de baixo impacto ambiental (BRASIL, 2006). No Brasil são consideradas comunidades tradicionais os povos indígenas, as quebradeiras de coco babaçu, quilombolas, caiçaras, sitiantes, roceiros tradicionais, ribeirinhas, pescadores artesanais e outros grupos extrativistas

123

que apresentam as características mencionadas na referida lei. Essas comunidades ajudam na conservação dos recursos naturais em função de suas práticas extrativistas e de seus saberes ambientais passados de geração para geração. Entretanto, enfrentam dificuldades para manter seu modo de vida, pois os territórios utilizados têm recebido outras atividades e/ou são reservados para fins turísticos, especialmente aqueles que dispõem de beleza cênica. Os avanços na legislação ambiental não foram acompanhados de medidas efetivas que na prática se traduz na conservação ambiental. No recorte empírico a apropriação, controle e uso dos territórios detentores de recursos naturais refletem a falta da criação e implementação de mecanismos de gestão ambiental para ordenar o uso do território, o que tem contribuído para a construção de empreendimentos, resultando na perda da biosociodiversidade (SILVA, 2012). A biosociodiversidade envolve o conhecimento cultural da biodiversidade (LEONEL, 2000), onde se pode ressaltar a importância da conservação da biodiversidade aliada à sociodiversidade (SANTOS; MENEZES; NUNES, 2005). O conceito de sociodiversidade defende a ideia de que a diversidade cultural é considerada componente significativo da biodiversidade (ALBAGLI, 1998). No litoral sul de Sergipe existem comunidades tradicionais - as marisqueiras, os pescadores artesanais, as comunidades quilombolas e as catadoras de mangaba - que resguardam saberes ambientais perspectiveis no seu modo de vida e na relação que tem com os recursos naturais ainda existentes. E, dispõe de recursos naturais usados pelas comunidades tradicionais. São os territórios da pesca artesanal, da mariscagem e da coleta da mangaba, os quais também estão ameaçados face às demandas do turismo, da monocultura, da carcinicultura e da pesca predatória. Nesse contexto, esse trabalho tem como objetivo analisar o modo de vida das comunidades tradicionais da APA do Litoral Sul de Sergipe a partir da fenomenologia. A APA, localizada na zona rural dos Municípios de Itaporanga D’Ajuda, Estância, Santa Luzia do Itanhy e Indiaroba, foi criada para conservar os remanescentes de Mata Atlântica associados com vegetação de mangue, de restinga, de dunas e associação secundária, e para e melhorar a qualidade

124

de vida das populações que vivem nesse território (SERGIPE, 1993). Entretanto, na prática as comunidades nem sempre tem acesso às áreas de manguezais e de restinga de onde retiram o sustento da família através de práticas extrativistas. Boa parte da vegetação foi substituída pelas construções, cultivos de coco e pastagem e o que restou vem sendo fortemente ameaçado pelos atrativos turísticos, principalmente as praias de Caueira, em Itaporanga D’Ajuda, do Saco, da Ponta do Saco, do Abaís e das Dunas em Estância, as lagoas, ambientes com vegetação de dunas, de restingas, os manguezais e os campos de várzeas. Tais atividades têm colocado em risco a biosociodiversidade.

2 A fenomenologia-hermenêutica na análise das comunidades tradicionais litorâneas No que concerne à abordagem metodológica, esta pesquisa apoiou-se nas bases de Edimund Husserl, filósofo fundador da fenomenologia, onde o mundo vivido e a realidade se sobrepõem, e de Martin Heidegger a partir da hermenêutica4-fenomenológica no sentido de conhecer o modo de vida das comunidades tradicionais que habitam o litoral sul de Sergipe. A fenomenologia tem sua base calcada na experiência vivida e adquirida pelo indivíduo, cuja preocupação volta-se para verificação da apreensão das essências, via percepção e intuição das pessoas. Portanto, a fenomenologia não é nem uma ciência de objetos, nem uma ciência do sujeito, é a doutrina universal das essências, em que se integra a ciência da essência do conhecimento (HUSSERL, 1989). As ideias advogadas por Heidegger enfocam que tanto a compreensão como a interpretação necessita do entendimento do funcionamento da totalidade da estrutura existencial, mesmo que a intenção do conhecedor seja apenas a de ler “o que está ai”, e de extrair fontes como realmente foi (GADAMER, 1999:396-397). 4

Etimologicamente, o termo hermenêutica deriva do verbo grego ερμηνεύειν, [herminévin hermeneuein] e da forma substantivada hermeneia, o que, segundo Emerich Coreth (1973 apud ARAÚJO, 2007:137) em sua extensão semântica, equivale a declarar, anunciar, esclarecer, traduzir e interpretar.

125

A hermenêutica heideggeriana tem como propósito compreender o ser a partir dos sentidos e das condições do ser humano como ser-no-mundo. Todavia, vale realçar que a questão fundamental da filosofia heideggeriana não é o homem, mas sim o ser, o sentido do ser. Seguindo a regra hermenêutica é necessário compreender o todo a partir do individual e o individual a partir do todo. Assim, a arte de falar, na hermenêutica moderna, foi transferida para a arte de compreender. Dessa maneira, o movimento da compreensão vai constantemente do todo para as partes e vice e versa formando o circulo hermenêutico (GADAMER, 1999). O método fenomenológico-hermenêutico é, antes de tudo, uma conversação dialógica crítica para a construção do projeto que revela, em si mesmo, a luz da possibilidade para se estabelecer, na pergunta e na resposta, uma vivacidade dialética do conhecimento científico no mundo onde a vida se dá (ARAÚJO, 2007). Á fenomenologia em Heidegger se define como uma hermenêutica para então constituir-se em pensamento hermenêutico sob a possibilidade que transparece no encontro e interseção entre o fenômeno e o sujeito (HEIDEGGER, 1999). Nesse contexto, a hermenêutica assume (ARAÚJO, 2007, p. 117) “uma dimensão afirmativa do estatuto da compreensãointerpretação e sua inter-relação com o indivíduo-sujeito dos saberes”. É somente no diálogo que se encontra o lugar da experiência hermenêutica, ou seja, é através do diálogo que se chega às coisas, onde o logos não é monólogo, e o todo pensar é um diálogo consigo mesmo e com o outro (GADAMER, 1999). No tocante a ciência e a pesquisa, Merleau-Ponty, que dá continuidade as ideias de Husserl, considera a experiência de mundo, pois é preciso entender o fato, as relações ser e mundo. Para Meleau-Ponty “Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 3).

126

Nesse arcabouço, esse método possibilitou a construção do conhecimento na área pesquisada a partir do contato direto com as comunidades tradicionais na perspectiva de compreender seu modo de vida a partir do sentimento de pertencimento do território onde construíram sua identidade cujos “saberes ambientais” norteiam as relações estabelecidas com o ambiente e ajudam na permanência das práticas extrativistas e no fortalecimento da identidade cultural. Por esse fio condutor, o caminho a ser percorrido, a luz do discurso sob mediação

da

linguagem,

forneceu

bases

teórico-metodológicas

para

interpretação tanto dos documentos legais que regulamentam as Unidades de Conservação (UCs) como a compreensão e interpretação do modo de vida das comunidades tradicionais, do seu espaço vivido, bem como de outros atores sociais que controlam, se apropriam, usam os recursos naturais na APA do Litoral Sul de Sergipe. Assim, buscou-se compreender e interpretar as ações e intenções dos atores sociais envolvidos (atores sociais) desvelando os sentidos do mundo vivido dessas comunidades, no recorte empírico, que se constituem simultaneamente na dialética da compreensão/interpretação na relação sociedade-natureza.

3 Procedimentos metodológicos: o caminho percorrido na pesquisa O desenvolvimento dessa pesquisa ocorreu mediante levantamento bibliográfico e documental; levantamento de dados secundário e primário; ordenamento e tabulação dos dados; e, análise e interpretação das informações.

3.1 Levantamento bibliográfico e documental

O levantamento bibliográfico e documental foi realizado nas literaturas que tratam do método de abordagem, da categoria de análise o território usado; da

127

política de conservação ambiental; das UCs; das comunidades tradicionais e de instrumentos legais que norteiam a política de conservação ambiental. A categoria de análise, território usado, permite uma leitura do território em sua totalidade, espaço banal, configurando-se enquanto recurso analítico, permeado de caráter político, econômico e socioambiental (SANTOS e SILVEIRA, 2001; SANTOS, 1994) possibilitando uma análise dos interesses envolvendo os atores pela apropriação, controle e uso dos recursos naturais, em especial daqueles que têm seu espaço vivido, sua base de sustento ameaçados, como é o caso das comunidades tradicionais pesquisadas.

3.2 Levantamento de dados secundário e primário

O levantamento de dados teve início a partir da busca de dados secundários pré-liminares junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos Renováveis (IBAMA) e ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) em Sergipe com a finalidade de obter informações sobre a criação e implementação da RESEX do Litoral Sul; ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) no tocante a regulamentação fundiária dos territórios que envolvem as comunidades tradicionais; e as Associações das Comunidades Tradicionais dos Municípios de Itaporanga D’Ajuda, Estância, Santa Luzia do Itanhy e Indiaroba, e ao Movimento das Catadoras de Mangaba para obtenção de informações sobre as comunidades. Essas informações foram fundamentais para organização da pesquisa empírica. A pesquisa empírica ocorreu por meio de instrumentos de coleta de dados, a saber: entrevistas semiestruturadas, diálogos informais e observações sistematizadas in loco com roteiro previamente elaborado. As entrevistas foram realizadas com representante do Movimento das Catadoras de Mangaba, da Colônia de Pescadores, e entrevistas com as comunidades tradicionais, cujas questões objetivaram conhecer a estrutura organizacional,

política,

histórica,

econômica,

social,

cultural

dessas

comunidades; os impactos socioambientais que dificultam seu modo de vida,

128

bem como seus anseios na luta pelo direito de continuar usando os recursos naturais como base de sustento. Foram realizados diálogos informais com os pescadores artesanais, as catadoras de mangaba e as marisqueiras. Vale ressaltar que houve necessidade de realizar diálogos informais, pois alguns membros das comunidades optaram por uma conversa informal. Para facilitar os diálogos e entrevistas foi necessário entrar em contato com representantes das comunidades tradicionais com a finalidade de identificar datas e horários de reuniões realizadas. Vale reforçar que essa estratégia contribuiu para o desenvolvimento dessa etapa, pois se trata de zona rural cujos acessos para alguns povoados ainda se faz por estrada desprovida de asfalto e a distância variava entre 70 e 100km de Aracaju. Para os membros das comunidades as entrevistas, realizadas nos povoados onde residem, as visitas foram feitas nos domicílios e em áreas onde desenvolvem suas atividades (Indiaroba e Estância). Outra estratégia adotada foi à visita a sede da Colônia de Pescadores Z4 em Estância, especialmente nos dias que os pescadores frequentavam essa instituição; e no Ministério do Trabalho localizado em Estância, onde pescadores estavam concentrados para assinar o benefício do Seguro Defeso. Essa estratégia permitiu dialogar com pescadores, catadoras de mangaba e marisqueiras bem como coletar depoimentos, a partir da transcrição na íntegra quando possível, que ajudaram a conhecer o modo de vida dessas comunidades. No total foram realizadas 40 entrevistas semiestruturadas, onde 18 foram destinadas para as comunidades tradicionais que residem em Indiaroba, sendo 11 membros entrevistados do povoado Pontal e sete de Terra Caída, e 22 em Estância, somando quatro no Povoado Rio Fundo, sete em Farnaval, sete em Porto do Mato e quatro em Reboleirinha. Nos outros povoados, ocorreram vários diálogos informais, cujas informações relatadas foram descritas no texto. Os roteiros para as comunidades tradicionais enfatizaram questões sobre suas condições históricas, culturais, simbólicas, socioeconômicas e ambientais, as atividades desenvolvidas e suas perspectivas face à criação da RESEX do Litoral Sul.

129

A visita in locu foi feita nos povoados que fazem parte da APA do Litoral Sul de Sergipe (Figura 1), onde os territórios são usados para a prática extrativista e cultivos (macaxeira, milho e feijão), cujas informações observadas foram registradas por meio de diário de campo, fotografias. Essa pesquisa também permitiu conhecer as relações estabelecidas com a natureza e o modo de vida dessas comunidades. Para realização da pesquisa contou-se com a equipe de pesquisa formada por dois alunos bolsistas de Iniciação Científica do curso de Bacharelado e Licenciatura em Geografia da Universidade Federal de Sergipe. Esses alunos realizaram leituras, auxiliaram na elaboração dos instrumentos de pesquisa e foram capacitados para a pesquisa de campo.

Figura 01: Povoados pesquisados na APA do Litoral Sul de Sergipe

3.3 Ordenamento, tabulação, análise e interpretação das informações

Quanto ao ordenamento e tabulação dos dados, ao término da pesquisa as entrevistas, os diálogos e as observações sistematizadas foram organizados para análise, descritas, transcritas no texto e outras receberam tratamento

130

estatístico. Nesse sentido, as informações foram analisadas na perspectiva de facilitar a compreensão e visualização dos fenômenos estudados. A análise e interpretação das informações adquiridas ao longo da pesquisa, ancorada

no

método

de

abordagem,

suscitaram

a

compreensão,

o

desvelamento e a análise crítica dos usos atribuídos na APA do Litoral Sul de Sergipe que ameaçam e/ou impedem o modo de vida das comunidades tradicionais.

Tais

análises

evidenciaram

que

as

relações

de

poder

estabelecidas nesses territórios são desiguais e contraditórias, resultado na injustiça ambiental contra os atores sociais menos privilegiados, as comunidades tradicionais. Diante dos resultados alcançados e das análises foi possível tecer considerações finais enriquecidas com sugestões apontando caminhos na perspectiva de amenizar a injustiça ambiental que tem repercutido na perda da biosociodiversidade.

4 Comunidades tradicionais no litoral sul de Sergipe A APA do Litoral Sul de Sergipe caracteriza-se por apresentar uma dinâmica de atividades desenvolvidas pelos fazendeiros, empresários ligados ao turismo e pelas comunidades tradicionais as quais tem forte relação com o lugar, cujas práticas predominantes são as práticas extrativistas: a coleta da mangaba (Hancornia speciosa Gomes), a pesca artesanal e a mariscagem. As comunidades tradicionais são caracterizadas como grupos que residem e usam o território como condição de subsistência, para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica. Seus conhecimentos, saberes ambientais e práticas são transmitidos de geração para geração. Em Sergipe as catadoras de mangaba foram reconhecidas enquanto comunidades tradicionais pela Lei nº 7.082/2010, cujo Art. 1º aborda que

“O Estado de Sergipe reconhece as catadoras de mangaba como grupo culturalmente diferenciado, que devem ser protegidas segundo as suas formas próprias de organização social, seus territórios e recursos naturais, indispensáveis para a garantia de sua reprodução física, cultural social, religiosa e econômica” (SERGIPE, 2010).

131

As comunidades tradicionais envolvidas na pesquisa evidenciaram ao longo dos diálogos e entrevistas que possuem saberes ambientais os quais foram passados de geração para geração. Era comum expressão como “aprendi a pescar com meu pai que me levava para o rio”, “aprendi a catar mangaba com minha mãe que me levava quando eu ainda era criança”. Além das falas de membros das comunidades, o conhecimento tradicional foi percebido quando pais e filhos juntos numa tarde consertavam as redes utilizadas na pesca artesanal manualmente. Entretanto, quando foram questionadas se faziam parte de alguma comunidade tradicional, todos os entrevistados afirmaram que não faziam parte de nenhuma comunidade. As catadoras de mangaba são mulheres, extrativistas, defensoras das mangabeiras, e desenvolvem a atividade como forma de subsistência. Essa atividade era realizada pelas mulheres que cuidavam da conservação da espécie, desenvolviam práticas e aplicavam seus saberes ambientais no tocante ao manejo, zelando por um patrimônio cultural (i)material. Durante as entrevistas realizadas, no sentido de conhecer as práticas extrativistas desenvolvidas, contatou-se que no passado havia uma divisão do trabalho, onde a coleta da mangaba era realizada, principalmente pelas mulheres; a pesca artesanal e a mariscagem pelos homens. Entretanto, a partir dos diálogos, observou-se na contemporaneidade, a pesca artesanal e a mariscagem são realizadas tanto por homens como pelas mulheres, especialmente no período da entressafra. Ademais, há relatos que os homens também ajudam na coleta da mangaba quando a maré está baixa, embora não participem da comercialização. No tocante as atividades extrativistas constatou-se que 94% dos entrevistados realizam a coleta da mangaba, mariscos e do pescado. Esse percentual é alto, pois as catadoras de mangaba também coletam mariscos e pescam, o mesmo acontece com os pescadores, que

além de pescarem

também fazem plantação para subsistência (milho, macaxeira e feijão) e catam mangaba. Dentre os principais produtos da pesca destacam-se: os peixes com nome popular niquim, lambreta, tainha, sardinha, robalo, bagre, pescada, xareu, carapeba e arraia. E na mariscagem pode-se citar: camarão, ostra, sururu,

132

aratu, siri, caranguejo, massunim e guaiamu os quais são coletados no rio e na maré. Já as frutas (murici e mangaba) em sítios próprios e dos vizinhos, sítios livres (terras da união) e privados. Todavia, a quantidade de peixes e mariscos encontra-se bastante reduzida se comparada ao passado, em função da contaminação dos recursos hídricos face à disposição inadequada de resíduos sólidos e efluentes domésticos; da instalação de viveiros de camarão em áreas de manguezais cujos dejetos são depositados nos cursos d’água; da pesca predatória onde pecadores de outros municípios sergipanos e do Estado da Bahia utilizam equipamentos como a rede de camboa a qual captura peixes menores; o aumento do número pescadores de outros municípios nos últimos anos. Nesse aspecto, o ator 1 reconhece essa redução quando ressalta que

“Infelizmente a pesca, encontra-se em um estado lamentável, pelas diversas irregularidades que surgem a cada dia, há ainda uma atividade predatória e clandestina exercida por diversos pescadores” (Ator 1, 2014).

Outros problemas também têm dificultado a realização da pesca artesanal, tais como: galhos de árvores deixados no leito do rio pelos pescadores; ataques das abelhas e cobras como consequência do desequilíbrio ecológico nesses ambientes devido ao desmatamento das margens dos rios; além do acesso proibido em áreas de manguezais. Essas áreas têm sido substituídas por cultivos, viveiros de camarão, residências de veraneio e empreendimentos ligados ao turismo. Embora reconheçam que o pescado vem diminuindo ao longo do tempo, é nítida a relação harmônica e, especialmente à gratidão dos pescadores no tocante aos recursos naturais que ainda garantem sua subsistência. Essa assertiva está evidente no depoimento do ator 2 “Graças a Deus que temos o rio e a maré pra obter os peixes pra comer e vender” (Ator 2, 2014).

Dos produtos coletados uma parte é destinada para consumo e a outra para venda realizada em sua porta (turistas), no local onde coleta, em feiras livres e

133

para

atravessadores

(cambistas).

O

valor

mensal

oriundo

dessa

comercialização variava em 2014 entre R$ 200.00 e R$ 500.00. Apesar do baixo valor, inferior a um salário mínimo, o ator 3 ressalta “Quando a maré ta boa e não tem tanto pescador na área, pescamos muitos peixes que da pra vender e pro nosso consumo, ao contrario pescamos quase nada, às vezes só dá pra tirar a comida do dia” (Ator 3, 2014).

Já a coleta da mangaba vem sendo dificultada e/ou impedida em função do desmatamento das áreas de restinga para construção de empreendimentos turísticos e de casas de veraneio; cultivos; proibição por parte dos fazendeiros que constroem cercas para impedir o acesso das catadoras de mangaba para coletar a fruta. Há relatos que as espécies de mangabeiras são retiradas das fazendas para evitar que as catadoras não retornem às propriedades. Essa e outras práticas elencadas contribuem para a perda da biodiversidade e tende a contribuir para que essas comunidades sejam espoliadas e/ou expulsas dessas áreas. Os diálogos e entrevista apontam para a insatisfação, pois no passado, quando ainda havia muitas espécies, realizavam suas práticas e na contemporaneidade são proibidas de realizar a atividade em algumas áreas. Para o ator 4 “Foi Deus que plantou a mangaba pra nós” (Ator 4, 2014).

Dentre as dificuldades enfrentadas pelas catadoras de mangaba encontra-se a falta de propriedade da terra, onde 77,5% não possuem posse de terras que possam utilizar para a coleta da fruta. Desse modo, essas comunidades acabam realizando a atividades em sítios de vizinhos e/ou parentes; terras da união “terras livres”; fazendas quando há permissão por parte do proprietário; ou buscando outras localidades, como por exemplo, no estado da Bahia. Essa assertiva reforça as análises de Diegues e Nogara (1999) quando elencam que o território dessas populações é diferente das sociedades urbanas, pois é descontínuo, marcado por vazios aparentes, o que sem dúvida os torna mais frágeis, no sentido mais restrito, no processo de espoliação dessas comunidades. Para Diegues (2008) o território é apenas um meio de subsistência, de trabalho e de produção para essas populações.

134

No tocante ao turismo que vem crescendo no litoral sul, todos os entrevistados não percebem que os impactos socioambientais, como resultado dessa atividade, interferem em suas práticas extrativistas.

Na visão dos

entrevistados, o turismo melhorou a comercialização dos pescados, marisco e mangaba. Essa afirmativa pode ser observada na fala do ator 5, o qual ressalta

“Principalmente quando chega na estação do verão, aparecem muitos turistas e a venda dos peixes, mariscos e mangaba aumenta, conseguimos vender bastante esses produtos” (Ator 5, 2014).

Apesar dos problemas mencionados são evidentes os laços afetivos com o lugar, pois mesmo com tantas dificuldades para a permanência do modo de vida, 36 (91%) entrevistados não têm interesse em sair de seus povoados em função das relações harmônicas com a natureza, com a comunidade e com os vizinhos. Ademais, 90% dos entrevistados moram nos povoado desde que nasceram e/ou quando ainda eram crianças. O ator 6 ressalta, “Moro aqui nesse povoado desde que nasci e não tenho vontade nenhuma de morar em outro local, nem na cidade” (Ator 6, 2014).

É comum a preocupação ambiental percebida através da descrição de ações feitas pelos entrevistados para ajudar a conservar o ambiente de coleta, como por exemplo, não dispõem resíduos sólidos na área utilizada para prática extrativista, não desmatam as áreas que possuem goiabeiras, mangabeiras e manguezais. No contexto da conservação ambiental há mais de dez anos vem sendo discutida a proposta de criação e implementação da Reserva Extrativista (RESEX) do Litoral Sul de Sergipe (SILVA, 2012). Entretanto, apesar das dificuldades para realizar as práticas extrativistas, apenas um entrevistado reconheceu a importância da criação da RESEX. Isso ocorre, principalmente pela falta de esclarecimento do que venha ser uma UC dessa categoria, por parte dos gestores aliado ao medo de perder suas casas. Essa preocupação pode ser percebida na fala do ator 7

135

“Se a RESEX viesse pra cá o povoado iria acabar” (Ator 7, 2014).

Vale ressaltar que essa preocupação foi unânime em apenas um dos povoados pesquisados. Nesse processo de criação da RESEX, a arena de disputa envolve interesses diversos e atores sociais vinculados ao poder Público Federal e Estadual, via órgãos gestores; aos proprietários de terras que tendem a dificultar a negociação no processo de desapropriação fundiária em função da existência de grandes latifundiários, onde a questão política é muito presente; atores ligados ao setor turístico; e as comunidades tradicionais que lutam pelo direito em continuar usando os territórios da pesca, da mangaba, da moradia. Contudo, pelo direito expressado no Art. 225 da Constituição Federal, e vários outros estabelecidos pelo SNUC, espera-se que a RESEX, caso seja efetivada, não seja mais uma faceta da “conservação ambiental” usada para fortalecer e defender os interesses econômicos de uma minoria de atores que tem poder de barganha e implique na perda da biosociodiversidade do Litoral Sul sergipano.

5 Considerações finais O

método

de

abordagem

fenomenologia-hermenêutica,

a

luz

dos

procedimentos metodológicos concebidos para a pesquisa, permitiu aprofundar o conhecimento do modo de vida das comunidades tradicionais que vivem no litoral sul de Sergipe. Essas comunidades que têm a pesca, a mariscagem, a coleta de mangaba, há muito tempo realizam essas atividades como forma de subsistência e têm seus espaços vividos ameaçados em função do avanço de outras atividades. Essas comunidades mantêm técnicas de manejo ancestrais, mantendo uma forma de organização onde os valores tradicionais são transmitidos de pai para filho, de geração para geração, mantendo durante séculos práticas associadas a esses conhecimentos. Entretanto, são perceptíveis as ameaças que tendem impedir sua reprodução cultural, política, social, econômica e ambiental. A atividade

136

turística

e

a

agropecuária

vêm

contribuindo

para

a

perda

da

biosociodiversidade em função dos impactos socioambientais provocados. Esses territórios possuem outras potencialidades além da turística capazes de efetivar a (re)produção dessas comunidades que durante muito tempo ajudaram na conservação ambiental. É preciso priorizar estratégias capazes de diminuir o desmatamento da Mata Atlântica; conectar os fragmentos florestais que correm o risco de serem extintos da paisagem; além de medidas efetivas para evitar e/ou reduzir a contaminação dos recursos hídricos. Quanto ao regime de propriedade para reduzir os efeitos da injustiça ambiental, é importante estabelecer áreas de livre acesso; parcerias com proprietários

particulares,

-

via

órgãos

oficiais

gestores;

propriedade

comunitária; e propriedade estatal visando fortalecer as atividades extrativistas das comunidades face a sua

relevância para ajudar na recuperação e

manutenção dos fragmentos florestais, podendo, assim, ser preparadas para a gestão dos bens comuns. No tocante aos equipamentos necessários para a realização das atividades extrativistas é relevante estabelecer estratégias via parcerias para facilitar a aquisição e/ou doação de kit para os pescadores artesanais: colete salva vidas, extintores, barco, rede. Há necessidade de outras alternativas para melhorar as condições de vida nos povoados: criação de postos de saúde; melhoria de infraestrutura básica, como coleta regular de resíduos sólidos domiciliares, ampliação da rede de abastecimento de água tratada, tratamento de efluentes domésticos, pavimentação de estradas de acesso aos povoados; campanhas educativas para incentivar e/ou ensinar a comunidade realizar o prévio tratamento de água. Na educação, é preciso ampliar e melhorar a qualidade das escolas para evitar que os alunos da zona rural se desloquem até a cidade, além da criação de biblioteca e sala de informática. Como se trata de uma UC é fundamental ouvir essas comunidades no momento da criação e implementação dos mecanismos de gestão ambiental. As campanhas de sensibilização e conscientização ambiental, envolvendo os líderes das associações e as comunidades tradicionais, também são de

137

singular relevância para que essas comunidades possam ter o direito de continuar usando os recursos naturais.

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138

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CAPÍTULO 9 O PAPEL DOS DISCURSOS NA DISPUTA PELO LITORAL SUL DE SERGIPE Thiago Valença e Silva1 Rosemeri Melo e Souza2

Resumo: Este trabalho aborda a importância das práticas discursivas nos conflitos territoriais em áreas de relevância ambiental e a perspectiva de estudo desses fenômenos pelos métodos da Análise do Discurso (AD) e da Hermenêutica, bem como a experiência de sua aplicação a partir de metodologia elaborada na pesquisa sobre os conflitos territoriais que permeiam a proposta de criação da Reserva Extrativista (RESEX) do Litoral Sul de Sergipe. Os conflitos territoriais se dão pela divergência de interesses quanto aos os usos e intenções que os diferentes atores sociais desenvolvem no espaço geográfico, o que significa disputas de poder. O território não se resume à delimitação espacial, mas espaços vividos, representados, seus usos; o que coloca as comunidades tradicionais – que há muito se estabeleceram e desenvolveram seu modo de vida, sua cultura – como um ator antagônico aos interesses do capital no território. A metodologia elaborada permitiu analisar as intenções, estratégias e posicionamento dos atores envolvidos na disputa registrada no processo judicial de criação da RESEX iniciado em 2005, e entrevistas realizadas no decorrer do trabalho. Palavras-Chave: Análise do discurso. Hermenêutica. Atores sociais. Conflitos territoriais. Unidades de conservação.

11

Graduando em Geografia Licenciatura – UFS, pesquisador do Grupo de Pesquisa em Geoecologia e Planejamento Territorial – Geoplan Prodema/UFS e professor de geografia nos níveis fundamental e médio. [email protected] 2 Pós-doutora em Biogeografia e Profª Associada da UFS do Curso de Graduação em Engenharia Ambiental e Pós-Graduação em Geografia/NPGEO/UFS e do Curso de Mestrado e Doutorado do PRODEMA, Coordenadora do GEOPLAN/UFS/CNPq, e Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. [email protected]

140

THE IMPORTANCE OF SPEECHS IN TERRITORIAL DISPUTES ON THE SERGIPE SOUTH COAST Abstract: This paper discusses the importance of discursive practices in territorial disputes in the areas of environmental relevance and perspective study of these phenomena by the methods of discourse analysis (AD) and Hermeneutics, as well as the experience of their application from methodology developed in research on the territorial conflicts that permeate the proposal to create the Extractive Reserve (RESEX) of the South Coast of Sergipe. Land disputes are given the divergence of interests as to the uses and intentions that different social actors develop in geographic space, which means power struggles. The territory is not limited to spatial delimitation, but spaces lived, represented their uses; which puts the traditional communities - who have long settled and developed their way of life, their culture - as an actor antagonistic to the interests of capital in the territory. The methodology developed allowed us to analyze the intentions, strategies and positioning of the actors involved in conflicts registered in the judicial process of creating RESEX started in 2005, and interviews conducted in the course of work. Keywords: Discourse Analysis. Hermeneutics. Social Actors. Territorial Conflict. Conservation Units

1 Introdução A

expansão

das

atividades

econômicas

possibilitada

pelo

avanço

tecnológico significa a imposição da racionalidade econômica por meio de discursos sustentados por instituições seculares poderosas, sintetizados no conceito de desenvolvimento. No entanto, a contradição inerente a esta racionalidade é manifestada na forma de esgotamento dos recursos naturais, na exploração acentuada da força de trabalho, no aumento da desigualdade entre as classes sociais e na sobreposição cultural do global ao local, de modo que essa expansão também produziu a crítica a esta proposta de relação entre sociedade e natureza, o que trouxe à tona a necessidade de preservação dos espaços naturais e dos modos de vida alternativos à racionalidade econômica. As Instituições públicas e privadas são pressionadas para uma maior

141

participação da sociedade civil na tomada de decisões sobre a exploração dos recursos naturais (FERNANDES, 2009) Nessa perspectiva, os conflitos territoriais são cada vez mais mediados pela esfera jurídica, em alguns casos com relativa visibilidade dada pela mídia e maior acompanhamento da sociedade em geral. Isto revela a importância das práticas discursivas no desempenho dos atores que representam os diferentes interesses e perspectivas de ocupação e produção do espaço (BOURDIEU, 1989 apud PEREIRA, 2008, p.175). O âmbito das discursividades é elemento central nesta modalidade de conflito, o que torna a Análise do Discurso (AD) e a Hermenêutica3 ferramentas fundamentais para compreensão dos processos de (des)territorializacão em áreas de relevância ambiental. As intervenções humanas no espaço exigem cada vez mais uma legitimação, um sentido, nesta complexidade de relações sociais que a sociedade pós-moderna apresenta. Os atores sociais apropriam-se de discursos, configuram enunciados que produzem sentidos, resultando em ações e acontecimentos em campos estratégicos, o que Foucault (2000) chama de “práticas discursivas”. Nesse contexto, as comunidades tradicionais têm exercido um papel de destaque nos conflitos territoriais envolvendo áreas propostas para a criação de unidades de conservação. Dotadas de uma identidade forjada por técnicas de subsistência e conhecimentos seculares do ambiente em que vivem, sofrem diretamente com as transformações nas relações produtivas do espaço provocados pela racionalidade econômica, mas também apresentam-se como atores sociais de resistência a esta lógica, desempenhando em muitos casos um papel decisivo na desterritorialização de atores representantes do capital hegemônico, valendo-se, nestes casos, de sua coesão social, de sua organização política e do seu modo de vida sustentável, proporcionados pela identidade formada e formadora de territorialidade, manifestadas em discursos que tem apresentado cada vez mais legitimação da sociedade civil (FERNANDES, 2009;ELIAS, 2000) .

3

“Dois campos do saber que implicam em posturas e recursos metodológicos para análise de

formações discursivas, textos e experiências sociais” (CARVALHO, 2005 p.201).

142

No litoral sul de Sergipe famílias desenvolvem secularmente atividades extrativistas como a pesca artesanal, a catação de mangaba, do côco – da – baía, de mariscos, do caranguejo-uçá, em uma paisagem com variedade de formações vegetais – restinga arbórea, campos de várzeas, vegetação de duna, manguezais, e floresta ombrófila densa – que compõem formações geomorfológicas de planíces litorânes, flúviomarinhas e tabuleiros costeiros, bem como as planícies fluviais dos rios Vaza-Barris e Real, resultando em estuários, campos de dunas, lagunas e pântanos (SILVA; SOUZA, 2010) de grande relevância ecológica. O estuário do Rio Piauí, por exemplo, é classificado pelo Ministério do Meio Ambiente como Área Prioritária para Conservação da Biodiversidade, denominada Complexo Estuarino Piauí – Fundo Real (MMA,2002 apud KILKA et al.,2010, p.3) e as áreas remanescentes de Mata Atlântica compõem uma das maiores em todo o estado de Sergipe A partir da última década do século XX, o incremento de redes possibilitou a integração da região ao contexto global e a entrada de novos atores e novas expectativas de uso, o que culminou na criação, pelo governo estadual, da Área de Proteção Ambiental (APA) do Litoral Sul de Sergipe em 1993, na justificativa de garantir a sustentabilidade da região com o advento da rodovia SE/100-Sul (SERGIPE,1995). Contraditoriamente, os anos seguintes à criação da APA apresentaram uma ampliação e diversificação das atividades econômicas e de ocupação do solo, constatado

facilmente

pela

intensificação

da

especulação

imobiliária,

monoculturas, indústrias e urbanização. Dentre estas, a carcinicultura proliferou-se na região, ocupando diversas Áreas de Preservação Permante (APP), os manguezais das bacias hidrográficas dos rios Piauí e Real, por exemplo. Devido as características técnicas de produção em larga escala utilizados pelos empreendimentos instalados na região, a atividade afetou diretamente as condições ambientais dos rios, provocando mortandade de peixes e crustáceos, a degradação da vegetação e consequentemente a cadeia produtiva das atividades econômicas associadas a extração desses recursos, e ainda, pelo fechamento dos acessos às áreas de catação de

143

mangaba e das margens dos rios, os “portos” que são pontos estratégicos para o escoamento da sua produção. A análise dos conflitos territoriais em torno da proposta de criação da Reserva Extrativista (RESEX)4 do litoral Sul de Sergipe em 2005 (solicitada pelas colônias de pescadores, catadoras de mangaba, e Organização Não Governamental Água é Vida) sob o foco nas discursividades permitiu a construção de uma metodologia que visa a observação dos posicionamentos dos atores, suas intenções e suas performances no universo dos textos que compõem o processo judicial, e nas falas extraídas em entrevistas realizadas ao longo da pesquisa. Desta forma este artigo tem o objetivo de demostrar a importância do papel dos discursos nas disputas territoriais e a elaboração da metodologia aplicada no caso do conflito envolvendo a área proposta para a referida unidade de conservação. Para tanto, empregou-se o método hermenêutico, que consiste no conjunto de técnicas para observação e interpretação dos sentidos e intenções embutidas nos textos (RICOUER,1990). Foi utilizado os critérios de análise e a observação das estratégias do ator social ao proferir discursos proposto por Foucault (2000). Sua interpretação surgirá pela classificação nas unidades de sentido identificadas por Cruz (2011) que revelará os desejos que projetam a intencionalidade; neste caso, o discurso dos atores envolvidos na disputa territorial e suas expectativas de uso do território.

2 Atores e discursos no jogo do poder A divisão do trabalho estabelece as relações de poder entre os atores sociais que constituem o território. O poder do ator e consequentemente os limites da tessitura que compõe seu território é a combinação de um tripé composto de trabalho, instrumentos e projeção. Como fruto do trabalho (e das relações de poder intrínsecas a este), o território não é mais o espaço, mas uma imagem do espaço vivido e/ou produzido, sustentado por uma 4

Uma das sete categorias de unidades de conservação que compõem o grupo das Unidades de Conservação de Uso Sustentável, previstas no Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, conforme Lei Federal 9.985 de 18/07/2000.

144

intersubjetividade e ideologia (RAFFESTIN, 2011, p.131). A conversão dos símbolos em trabalho, cria um valor ou sentimento com o espaço, o que podese chamar de identidade. Nessa lógica o discurso torna-se elemento central na manifestação da concepção de realidade e das intenções do ator social quanto à produção do espaço, pois essas podem ser ignorados pelos sentidos ou pela observação de dados quantitativos, pois o campo dos sentidos absorve apenas uma parte da realidade e muitos pontos de vista escapam. Porém, pela linguagem, fala-se de elementos não percebidos nas coisas, transcendendo todos os pontos de vista. O sentido e o dito são sintetizados no discurso, ou seja, o discurso revela uma projeção de mundo e mais ainda, a vontade que acaba por transmitir uma intenção (RICOUER,1990). Dessa forma, cabe destacar as considerações de Foucault a respeito das estruturas de poder e dos discursos que influenciam as práticas nãodiscursivas (decisões políticas e econômicas dos governos, práticas cotidianas, das lutas sociais e políticas) ao justificar decisões referentes à apropriação da natureza, onde a linguagem não é apenas um instrumento humano para descrever as coisas e os pensamentos, mas sobretudo uma prática social, e como toda prática, provoca efeitos, servindo para empreender e executar ações (IÑIGUEZ, 2001, apud MÉLLO et al, 2007, p.27 ). A linguagem, pela sua prática cotidiana, torna-se elemento fundamental na produção da realidade, segundo a intencionalidade e dentro do âmbito de poder que possui um ator, em determinada sociedade e tempo histórico, na forma de apropriação de discursos, configurações de enunciados, que produzem sentidos, resultando em ações e acontecimentos em campos estratégicos, o que Foucalt vai chamar de “práticas discursivas” (FOUCAULT, 2000). Assim, esta perspectiva a respeito da linguagem como “práticas discursivas” possibilita a identificação e análise dos posicionamentos e interesses dos atores, bem como as operações de sentido. Para isto, Foucault estabelece critérios, que são os elementos recorrentes nos enunciados dos diferentes atores (diante da base polissêmica da linguagem em que são empregados, bem como a forma como estão organizados), o reconhecimento da origem ou o

145

lugar institucional do discurso dos atores, e as estratégias do discurso proferido pelo autor. Os elementos recorrentes, ou unidades de sentido, fornecem os enunciados que tornam a aparecer no discurso dos diferentes atores por uma série de reformulações, apropriados sob perspectivas diferentes e que revelam posicionamentos e intencionalidades. Diante da formulação elaborada por Cruz (2011), temos três elementos recorrentes que prevalecem nas discursividades em disputa no contexto ambiental: desenvolvimento, ecodesenvolvimento e desenvolvimento sustentável (sendo este subdividido em econômico-liberal, ecológico e de participação democrática). O posicionamento que cada elemento recorrente indica é detalhado a seguir, segundo as considerações de Cruz (2011). O sentido dado à expressão desenvolvimento é, tradicionalmente, a crença na expansão econômica como eixo central para o bem-estar da sociedade, o caminho para a civilidade e prosperidade. Significa também a confiança nos avanços tecnológicos para a solução da crise ambiental. (CAMARGO, 2005 apud CRUZ, 2011, p.36) A concepção de ecodesenvolvimento defende o avanço tecnológico aplicado para viabilizar uma produção voltada para as necessidades das comunidades locais, valorizando sua cultura e seu potencial ecológico (LEFF, 2006 apud CRUZ, 2001, p.38) Dentre os elementos recorrentes nos discursos ambientais, o do desenvolvimento sustentável tem sido o mais difundido pelos atores sociais sobretudo a partir dos anos 1990: “é aquele que atende as necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades”. (CAMARGO, 2005 apud CRUZ, 2011, p.40). Tendo uma ampla disseminação este foi apropriado por diferentes atores que o reformularam a ponto deste ser subdivido em três posicionamentos: a abordagem econômica, a abordagem ecológica e a abordagem política de participação democrática. A abordagem econômica coloca a crise ambiental não como efeito da acumulação de capital, mas do fato de não haver outorgado direitos de propriedade (privada) e atribuído valores (de mercado) aos bens comuns (LEFF, 2006 apud CRUZ, p. 42). Na abordagem ecológica, a solução dos problemas ambientais é vista através de meios gerenciais, dentro de uma

146

perspectiva reformista e tecnocentrista, por isso encontra-se muitas vezes próxima da racionalidade econômica da abordagem neo-liberal (FREY,2001 apud CRUZ, 2011, p.42). A abordagem política de participação democrática defende a apropriação social da natureza, que significa uma participação popular na tomada de decisões e com uma produção voltada para atender as comunidades de cada lugar; ao invés da racionalidade econômica a autogestão. (SACHS, 2002 apud CRUZ, 2011, p. 43). Para compreender as diferentes configurações dos mesmos enunciados deve-se identificar a origem que legitima o discurso do ator perante a sociedade e qual o nível ou esfera social que este alcança (nas relações de poder), o que é chamado por Foucault de “lugar institucional”; e ainda, observar a condição existencial do ator ao proferir um discurso: sua identidade (sua classe social, sua religião, seu gênero, sua idade etc) (FOUCAULT, 2004). Na questão ambiental, esses são conceitos que sustentam as diferentes perspectivas da relação sociedade-natureza, e que constroem as justificativas do ator social. Dentro da discursividade ambiental três concepções prevalecem –

o

Biocentrismo,

o

Tecnocentrismo/Antropocentrismo

e

a

Vertente

Emancipatória- conforme Cruz (2011 p. 31). O Biocentrismo corresponde a uma concepção de preservação pela demarcação de áreas que ficariam livres de qualquer interferência humana. A natureza ao invés de ser vista como recurso, é colocada em igualdade de valor em relação à sociedade. (DIEGUES, 1996 apud CRUZ), O Tecnocentrismo/Antropocentrismo coloca a satisfação das necessidades humanas como legitimador máximo das ações. Nada possui maior valor do que a sobrevivência do homem. Acredita que a engenhosidade humana é capaz de contornar os problemas ambientais provenientes da produção capitalista. Finalmente, a Vertente Emancipatória busca atender às aspirações sociais e garantir a manutenção da diversidade de ambientes e culturas, dos valores e práticas que conferem identidade aos grupos sociais (MELO; SOUZA, 2007 apud CRUZ, 2011, p.33). Outra questão relacionada à análise do discurso é a estratégia empregada pelo ator ao proferi-lo, no intuito de cativar a atenção e a reflexão do interlocutor sobre suas próprias “verdades”; a saber, a legitimação, a credibilidade, e a captação; mediante a razão, (logos), a imagem social do

147

agente do discurso (ethos), e o efeito emotivo que provoca a reflexão ou a ação (pathos) (CRUZ, 2011, p. 35, 36). A legitimação significa a autoridade institucional ou pessoal do ator no contexto social. A credibilidade é a posição de verdade do sujeito do discurso, fundada na sua capacidade de dizer ou de fazer, produzindo um discurso de convicção, ou ainda, pelo distanciamento em relação ao discurso e a captação corresponde ao momento que o interlocutor entra no quadro de pensamento do sujeito do discurso, provocando um efeito emocional que acaba por desencadear uma ação. (Ibid. p. 35). Estes conceitos servem para construir a análise dos discursos diante das circunstâncias e das configurações diversas em que os enunciados são organizados para produzir as falas, os discursos e as ações que envolvem os conflitos territoriais. Cabe

destacar que

os lugares

institucionais da

discursividade ambiental podem ser apropriados por segmentos da sociedade com interesses distintos, por isso devem ser considerados em conjunto com os demais aspectos da análise dos enunciados.

3 Análise da disputa Diante do exposto, a metodologia empregada na análise da disputa considera os atores sociais (pela identificação, caracterização e as estratégias empregadas por cada um), os discursos (pela classificação dos elementos recorrentes e do lugares institucionais presentes nos enunciados), e as ações dos envolvidos na disputa. Estas informações são confrontadas e combinadas para revelar as performances dos mesmos. De modo resumido5, a aplicação desta metodologia pode ser demonstrada pelo quadro 1 que apresenta quatro dos dezesseis atores identificados na disputa pelo território proposto para criação da RESEX do litoral sul de Sergipe, as estratégias empregadas por cada um desses, e alguns discursos expressos nos textos do processo judicial ou em entrevistas realizadas. Em seguida ícones coropléticos (Figura 1) apresentam o lugar institucional nos quais os 5

Esse artigo é uma versão concisa e modificada da pesquisa de iniciação científica (PIBIC) intitulada “Conflitos territoriais em unidades de conservação: discursividades em disputa no processo de implantação da RESEX do Litoral Sul de Sergipe” concluída em 2014 sob orientação da Prof. Drª. Rosimeri Melo e Souza na Universidade Federal de Sergipe - UFS.

148

discursos buscam legitimação, a unidade de sentido assumida, e o posicionamento diante da proposição da Unidade de conservação. QUADRO 1: Identificação dos atores sociais

ATOR

ESTRATÉGIAS DO DISCURSO

DISCURSOS “[...] a efetivação de uma reserva extrativista

possibilitará

uma

melhoria das condições ambientais Legitimação: Autarquia federal regionais, uma vez que terá por Credibilidade: responsável pela objetivo

disciplinar

o

uso

e

criação, gestão e implantação da ocupação do solo, a exploração RESEX,

ICMBIO

a

partir

de normas dos

recursos

naturais,

científicas e segundo as políticas preservando

a

públicas vigentes.

espécies

biológica

das

integridade e

os

Captação: Diante da relevância padrões de qualidade ambiental ambiental

da

região

e

da [...]”

emergência de conflitos sociais, “[...] vimos que o movimento das coloca

como

fundamental

a catadoras está bem reconhecido, o

interferência do Estado como que proporcionou melhores preços gestor da área por meio da para mangaba, RESEX

fortalecimento

mas falta um local

para

que

cheguem mais políticas públicas e resolva o conflito por território[...]”. Legitimação: Líderes políticos “[...]A RESEX pode engessar a (prefeitos,

vereadores

deputados),

títulos

propriedade das terras. Proprietários de latifundios

e cidade, todos os pés de mangaba de tem dono[...]”. “[...]É preciso que se saibam que

Credibilidade: Poder político e se

for

criada

a

reserva

a

econômico

propriedade da terra deixa de ser

Captação:

Manifesta-se de vocês, onde vocês perdem esta

contrário Argumenta

à que

implantação área e esta passa a ser controlada a

população por um conselho gestor e vocês

beneficiada com a RESEX será ficarão com uma situação muito insignificante, que a mesma trará difícil quanto a este aspecto [...]”. engessamento

ao “[...] Quem é funcionário tem seu

149

desenvolvimento do município, a dinheiro. Na sarjeta estão vocês. carcinicultura

como

atividade Indiaroba foi local de colonização

geradora de emprego e renda e antiga. as

atividades

Coqueiros

não

são

extrativista

um extrativismo. Antes da abolição da

regresso econômico e social

escravatura tínhamos engenhos, não

é

extrativismo.

transformar

Vamos

laranjal

em

extrativismo? senão vou exigir que as super quadras de Brasília, que era cerrado sejam uma RESEX [...]”. “As comunidade só querem a RESEX por conta dos recursos prometidos, como no caso dos créditos rurais”. Secretaria “Qual é o sentimento do governo

Legitimação:

estadual responsável pela gestão do estado? Favorável à criação da da APA do Litoral Sul de Sergipe; Credibilidade:

nunca

discutimos

não

Conhecimento sermos favoráveis, discutimos a

técnico, respaldo legal e social Captação: SEMARH/SE

Resex,

amplitude, o tamanho, e o nível de a controle”.

Questiona

necessidade de uma reserva “[...] o Estado apóia a RESEX, mas federal

tendo

em

vista

a temos que levar em conta algumas

capacidade técnica do governo questões

como:

o

estado

é

estadual de exercer o controle pequeno para uma unidade de das ações de uma área em pleno conservação

considerada

tão

desenvolvimento para estado de grande; que uma UC atrapalha o Sergipe.

agronegócio

e

o

turismo

no

estado[...]”. Legitimação:

Comunidade “O fechamento dos portos da

Tradicional COL.ÔNIA DE PESCADORES Z-4;

Credibilidade:

região, quando de 22 existentes, Engajamento restam dois em condições de uso,

político, Atitude de denúncia, está se tornando um tormento para (deu início ao processo judicial) Captação:

sustenta-se

os

pescadores

artesanais,

na marisqueiras, catadoras de frutas

legislação que rege o SNUC, na nativas, catadores de caranguejo e

150

acusação

de

empreendimentos

que

os outros que precisam usá-los, fazer

recentes verdadeiras

excursões

ou

(carcinicultura e industriais) têm maratonas para chegarem aonde comprometido o meio ambiente e chegavam facilmente, quando não ameaçado seu modo de vida.

havia cercas”. “[...]Citaram aqui nesse instante o porto do maçadiço, que lá já houve até morte por causa da passagem de pescadores naquela estrada. No município de Indiaroba, morte já

existe,



desapareceu,



levaram barco e um pescador que foi enterrado na propriedade de seu Mar [...]”. Fonte: SILVA (2014)

CATEGORIA DO ATOR GESTORES PÚBLICOS AMBIENTAIS COMUNIDADES TRADICIONAIS ÓRGÃOS CONSULTIVOS EPREENDIMENTOS PRIVADOS

LUGAR INSTITUCIONAL TECNOCÊNTRICO/ANTROPOCÊNTRICO VERTENTE EMANCIPATÓRIA

UNIDADE DE SENTIDO DES. SUSTENTÁVEL DE PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA DESENVOLVIMENTO

FAVORÁVEL À RESEX? SIM NÃO

Figura 1: Ícones coropléticos de posicionamento dos atores Fonte: SILVA, 2014

151

Os ícones coropléticos sintetizam as análises pela interpretação dos discursos e ações. Cada ícone representa uma categoria de ator envolvido. Na categoria “gestores públicos ambientais” são encontradas autarquias federais e estaduais, órgãos públicos e empresas estatais. Dentre as “comunidades tradicionais” estão agrupados os pescadores artesanais, as catadoras de mangaba, marisqueiras e catadores de caranguejo, bem como associações e representantes da sociedade civil vinculadas a estes grupos, como as Colônias de Pescadores, o movimento Catadoras de Mangaba, Movimento dos Trabalhadores

Rurais

Sem

Terra

-

MST

e

Organizações

Não



Governamentais - ONGS. Na categoria “Órgãos Consultivos estão o Ministério Público Federal e o Ministério Público de Sergipe. Dentre os “empreendimentos privados” são encontrados empresas de diversos setores como o turismo, agronegócio e aquicultura, bem como proprietários de terras. Estas informações devem ser consideradas em conjunto, combinadas e confrontadas.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da análise, foi possível perceber como as novas modalidades de exploração do espaço que compõe o litoral sul de Sergipe são legitimadas

por

discursos

que

trazem

o

elemento

recorrente

do

desenvolvimento, como algo que trará prosperidade da região, pela geração de emprego e renda, melhoria ou criação de infraestrutura nas comunidades locais, ao mesmo tempo em que as atividades extrativistas (como a catação de frutas nativas e mariscos), e o modo de vida tradicional são citadas como miseráveis

e

retrógradas.

Estes

discursos

são

empregados

por

empreendimentos privados e por proprietários de terra. Dentre esses últimos, muitos também possuem poder político, já que alguns exercem, ou exerceram, cargos do poder executivo e legislativo (prefeitos, deputados e vereadores). As comunidades tradicionais, por sua vez, fazem uso do respaldo social que existe na atualidade pela preservação dos recursos naturais e dos modos de vida sustentáveis, manifestados nos princípios que regem o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, neste caso cabe destacar a

152

organização política de algumas comunidades como as colônias de pescadores que, devido a sua experiência de associação, conseguem enxergar esta possibilidade de resistência a ponto de mobilizar, juntamente com outros setores da sociedade civil como as ongs, por meio de instrumentos sociais e políticos de garantia de direitos junto a instituições públicas como o Minstério Público, o ICMBio, o INCRA e o IBAMA. Foram assíduas nas audiências públicas realizadas em torno da proposta de criação da resex, e muitas vezes denunciaram crimes ambientais e atos de violência contra pescadores e catadoras de frutas nativas, praticados por empreendimentos privados e proprietários de terra. Nesse contexto, as instituições públicas atuam, por um lado, no sentido de garantir o gerenciamento de políticas ambientais, utilizando-se de instrumentos e conhecimentos técnicos, os quais – dentro do que Foucault chama de “constelações discursivas” – assumem o poder central no estabelecimento de “verdades”, a ponto de serem o critério empregado para avaliar a viabilidade de implantação da reserva, ou ainda, de analisar a legalidade jurídica das relações sociedade – natureza, como no caso dos inquéritos civis públicos. Por outro lado, estão sob a administração política, e por isso apresenta suas contradições inerentes à disputa de interesses tanto no âmbito estadual como federal. Desta foma, o fato é que, até o presente

momento, as comunidades

tradicionais tem sido as mais prejudicadas, ja que têm sofrido cada vez mais os processos comuns à logica territorial capitalista de segregação, expropriação, que promove o êxodo rural, desemprego, desestruturação familiar, que afligem as

regiões

em

processo

de

reestruturação

produtiva

associadas

à

racionalidade econômica empregada pela lógica do mercado global, e vêem no cumprimento da legislação contida no SNUC, a esperança da garantia do uso sustentável dos recursos naturais para a sua reprodução social.

Referências BRASIL. Lei nº 9.985 de 18 de julho de 2000. Institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC. Brasília-DF, 2000.

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CAPÍTULO 10 COMUNIDADES TRADICIONAIS E TERRITORIALIZAÇÃO: METODOLOGIA APLICADA À ANALISE DE CONFLITOS TERRITORIAIS Luís Ricardo Rodrigues de Araújo1 Rosemeri Melo e Souza2

Resumo Contrapondo-se ao crescimento urbano desenfreado, as comunidades tradicionais vivenciam uma tentativa constante de aliar a conservação de sua essência clássica ao desenvolvimento social necessário aos seus componentes. Porém, esse fato descrito aqui é potencial gerador de conflitos territoriais que devem ser analisados a partir de metodologias que procurem entender as especificidades que são peculiares a tais situações conflituosas. Inicialmente é necessário verificar os atores sociais em questões (potenciais ou não) geradoras de conflitos territoriais e estabelecer as suas territorializações e seus interesses no processo conflituoso. Para tal, sugere-se, e aqui objetiva-se expor, metodologia aplicada durante pesquisa de mestrado de Araújo (2014), onde conflitos territoriais no processo de implantação da Reserva Extrativista (RESEX) do litoral sul de Sergipe foram analisados. Dados iniciais foram coletados, a área envolvida foi mapeada, as comunidades tradicionais e outros atores foram identificados para análise e posterior aplicação em fórmula proposta por RAFFESTIN (2008) e em unidades de paisagem pré-definidas. Os resultados produzidos e tratados em trabalhos que sigam os procedimentos aqui descritos, podem servir para os próprios agentes envolvidos nos conflitos como um material de sensibilização e autocrítica, auxiliando na busca por formas para mediação dos conflitos onde comunidades tradicionais sejam o foco. Palavras-chave: Territorialização.

1

Comunidades

Tradicionais.

Conflitos

Territoriais.

Mestre em Geografia – PPGEO/UFS Especialista em Gestão Ambiental - Faculdade Pio X. Graduado em Gestão de Turismo – IFS. [email protected] 2 Pós-doutora em Biogeografia, Pesquisadora do CNPq e Professora Associada do Departamento de Engenharia Ambiental da UFS. Coordenadora do GEOPLAN/UFS/CNPq e Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. [email protected]

156

TRADITIONAL COMMUNITIES AND TERRITORIALIZATION: METHODOLOGY APPLIED TO ANALYSIS OF TERRITORIAL DISPUTES Abstract In contrast to the rampant urban growth, traditional communities experience a constant attempt to combine the preservation of its classic essence to the social development necessary to its components. However, this fact described here is potential generator of territorial conflicts that must be analyzed from methodologies that seek to understand the specificities that are peculiar to such conflict situations. Initially it's need to check the social actors in issues (potential or otherwise) territorial conflicts generating and establish their territorializations and their interests in the conflictual process. To this end, it is suggested, and here the objective is to expose, methodology for Araújo master's research (2014), where territorial disputes in the implementation process of the Extractive Reserve on the south coast of Sergipe were analyzed. Initial data were collected, the area involved was mapped, traditional communities and other stakeholders have been identified for examination and application in formula proposed by Raffestin (2008) and pre-defined landscape units. The results produced and maintained on jobs that follow the procedures described herein, can be used to the agents themselves involved in conflicts as a material of selfawareness, helping in the search for ways to mediate the conflicts where traditional communities are the focus. Keywords: Traditional Communities, Territorial disputes. Territorialization.

1 Introdução

Contrapondo-se ao crescimento urbano desenfreado, as comunidades tradicionais vivenciam uma tentativa constante de aliar a conservação de sua essência

clássica

ao

desenvolvimento

social

necessário

aos

seus

componentes. Porém, esse fato descrito aqui é potencial gerador de conflitos territoriais que devem ser analisados a partir de metodologias que procurem entender as especificidades que são peculiares a tais situações conflituosas. As

comunidades

tradicionais

possuem

preocupações

pertinentes

à

manutenção de suas práticas históricas e às modificações em seu ambiente, e são exatamente nesses pontos que residem os conflitos territoriais, visto que o processo de construção territorial possui papel de extrema relevância no

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processo de formação e desenvolvimento dos mais diversos grupos de atores sociais. Para que os conflitos supracitados sejam identificados e analisados no contexto dos atores sociais que residem no cerne da discussão desse texto, são necessárias discussões que envolvam as territorialidades (aqui entendidas como relações de poder) geradas em um determinado território e aplicadas posteriormente em uma metodologia tal como a aqui apresentada. Inicialmente é necessário verificar os atores sociais em questões (potenciais ou

não)

geradoras

de

conflitos

territoriais

e

estabelecer

as

suas

territorializações e seus interesses no processo conflituoso. Para tal, sugere-se, e aqui objetiva-se expor metodologia aplicada durante pesquisa de mestrado de Araújo (2014). Na pesquisa do referido mestrado, conflitos territoriais no processo de implantação da Reserva Extrativista (RESEX) do litoral sul de Sergipe foram analisados. Dados iniciais foram coletados, a área envolvida foi mapeada, as comunidades tradicionais e outros atores foram identificados para análise e posterior aplicação em fórmula proposta por Raffestin (2008) e em unidades de paisagem pré-definidas. A metodologia aqui apresentada pode proporcionar resultados factuais acerca de conflitos territoriais relacionados à apropriação social do espaço envolvendo comunidades tradicionais.

2 Territórios e conflitos e paisagem: delimitando conceitos Território é entendido como um dos temas mais complexos na análise dos conceitos-chave da geografia. Por ser construído e desconstruído nas diferentes escalas temporais, os territórios podem ter o caráter permanente, mas também podem ter existência periódica ou cíclica, transformando-se assim em elemento da natureza espacial criado pela sociedade, cujo objetivo é lutar para conquistá-lo ou protegê-lo (HAESBAERT, 2006). A partir de Valverde (2004, p. 2) temos uma noção sobre o recente histórico de discussões sobre território:

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[...] a geopolítica dos anos 50 seguiu os mesmos princípios de território encontrados na teoria ratzeliana, estendendo a sua influência até os anos 80. Alimentadas pelas disputas geopolíticas por zonas de exclusividade de fluxos militares e econômicos de um dos pólos ideológicos, capitalista ou comunista, as áreas periféricas de desenvolvi-mento serviram como palcos da tensão e da disputa por territórios. [...] Porém, nos últimos 20 anos, o território ganhou um sentido diferente, mais amplo, para abordar uma infinidade de questões pertinentes ao controle físico ou simbólico de determinada área. Hoje um olhar geográfico sobre as fronteiras que separam os homens do século XXI irá necessariamente revelar a pluralidade das suas diferenças e a diversidade de suas formas de associação entre pessoas e espaços.

A mudança trazida por Valverde (2004) é baseada nas recentes alterações na ordem mundial, a partir do fim da guerra fria e de processos de territorialização e desterritorialização que se estabeleceram a partir do surgimento desta nova e atual ordem. O conceito de território, historicamente, é alvo de diversas discussões e divergências dentro da geografia. A partir desse cenário, Eduardo (2010) destaca as três vertentes básicas, defendida por Sposito (2005), da discussão acerca de território na Geografia:

“São essas vertentes divididas em: a) naturalista: “segundo a qual o território aparece como imperativo funcional como elemento da natureza inerente a um povo ou uma nação e pelo qual se deve lutar para proteger ou conquistar”; b) uma abordagem “mais voltada para o indivíduo [que] diz respeito à territorialidade e sua apreensão [...]. Aí temos o território do indivíduo, seu ‘espaço’ de relações, seu horizonte geográfico, seus limites de deslocamento e de apreensão da realidade”; e c) quando sua utilização se faz confundir com a noção de espaço. (p. 17)

A tradição naturalista segue a ideia de território pela ótica das relações instintivas entre animais, sendo que aos teóricos naturalistas, segundo Eduardo (2010), “devemos o mérito de serem os primeiros a sistematizar e difundir o conceito de território e de territorialidade”, enquanto a segunda vertente segue a ótica das relações de poder entre indivíduos em um determinado espaço. Já a terceira vertente, talvez a mais comum no cenário acadêmico, abarca definições baseadas em conceitos vagos sobre territórios e territorialidades,

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causando assim confusões com outros temas geográficos, como o espaço (SPOSITO, 2005). Sabendo-se da complexa relação entre conflitos, territórios, territorialidades e unidades de conservação, optou-se nesta pesquisa pela segunda vertente tratada por Sposito (2004), que segundo Eduardo (2010, p. 5):

Nesse caso, os sentimentos de pertencimento, de identidade, os espaços de representação, o enraizamento, entre outros elementos, interagidos com as demais dimensões do território, efetivam formas particulares de apropriação e de produção do espaço via a territorialidade.

Saquet (2003, p.4), teórico contemporâneo que tem realizado trabalho em busca de uma uniformização dos argumentos acerca do conceito de territórios e territorialidades na geografia, baseando-se em conceitos de dimensões sociais, espaciais e econômicas, afirma que: O território se dá quando se manifesta e exerce-se qualquer tipo de poder, de relações sociais. São as relações que dão o concreto ao abstrato, são as relações que consubstanciam o poder. Toda relação social, econômica, política e cultural é marcada pelo poder, porque são relações que os homens mantêm entre si nos diferentes conflitos diários.

Seguindo a mesma linha, Raffestin (1993, p. 143) explica que “território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza determinadas ações) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente [...], o ator “territorializa” o espaço”. Continuando mesma linha de raciocínio, Raffestin (1993, p.144) traz que: O espaço é, de certa forma, “dado” como se fosse uma matéria-prima. Preexiste a qualquer ação. “Local” de possibilidades, é a realidade material preexistente a qualquer conhecimento e a qualquer prática dos quais será o objeto a partir do momento em que um ator manifeste a intenção de dele se apoderar. Evidentemente o território se apóia no espaço, mas não é o espaço. É uma produção, a partir do espaço.

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O território, como afirma Saquet (2003, p. 24), “é um lugar de relações e este, um território, a partir da apropriação e produção do espaço.” Tais relações podem gerar conflitos de uso/apropriação de território. A partir das características sobre território, trazida por Raffestin (2003) e Saquet (2003) e, principalmente pela ideia de território como apropriação social, Araújo (2014, p. 40) propõe o seguinte esquema (Figura 1):

FIGURA 1 - CONFIGURAÇÃO DE DISPUTAS TERRITORIAIS. FONTE: ARAÚJO (2014).

O esquema proposto traz, primeiramente, de forma linear e simplificada, o “caminho” traçado pelas relações sociais, desde a ocupação do território até o surgimento de uma das principais consequências das territorialidades: os conflitos. Dentro desse esquema, destaca-se a fuga da linearidade, quando relações de poder e choque de forças antagônicas (conflito) podem gerar a apropriação social de novos espaços (ARAÚJO, 2014). Conflito pode ser interpretado como qualquer forma de oposição de forças antagônicas. Significa diferenças de valores, “escassez de poder, recursos ou posições, divergências de percepções ou ideias, dizendo respeito, então, à tensão e à luta entre as partes” (BREITMAN; PORTO, 2001, p.93). Para Warat (1999) são justamente os desejos, as intenções e os quereres que são evocados quando se desvela o material latente dos conflitos.

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Conforme Moore (1998, apud Ernandorena, 2008, p.120) existe uma outra espécie de conflitos, os emergentes, ou seja, ambas as partes reconhecem que existe uma disputa surgindo e ensejando uma troca de tons severos entre elas, que não sabem como resolver o problema. Leciona Moré (2003) apud Ernandorena (2008, p.120) que:

Em nossa sociedade o conflito se associa à rivalidade, a oposição, e à diferença, e esta é mal vista em nosso sistema de crenças. Muitas vezes se vive as diferenças como uma agressão. Mas o antagonismo não é destrutivo em si, nem bom em si, mas pode ser entendido como um elemento da evolução, e mais, um dos elementos da própria vida. Portanto, os antagonismos são parte integral do meio onde nascemos, nos criamos e morremos; de forma que não podem ser extirpados, já que fazem parte de nossos sistemas de interação.

Contextualizando de forma geral, conflitos ambientais podem ser definidos como conflitos sociais que expressam lutas entre interesses divergentes que disputam o controle dos recursos naturais e o uso do meio ambiente comum (ALEXANDRE, 1999-a, p. 23) Seguindo esta linha, Little (2001) define conflitos socioambientais, pertencentes a esta temática, como “disputas entre grupos sociais derivadas dos distintos tipos de relação que eles mantêm com seu meio natural”. Dentro deste conceito, a paisagem é importante item para ser destacado nesse contexto. Buscando esclarecer o conceito de paisagem, captando os diversos elementos das relações que a compõem, Kelting e Lopes (2011), de forma detalhada, destacam:

A paisagem é resultante da interação direta entre os quatro elementos da natureza – energia, ar, água e terra – e os seres bióticos, inclusive o homem. É formada pelas ações e relações constantes do homem, desde o seu nascimento até a morte, com o espaço natural. A paisagem, portanto, diz respeito à concretude da vida privada e coletiva, pois com ela o ser humano mantêm relação de pertence, de valorização, de afetividade, de simbologia e de sentimento estético, dependendo dela para viver e sobreviver.

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Paisagem, dentro do contexto geográfico, é componente que sucede o Território e, contextualizada em uma pesquisa geográfica, deve ser relatada e registrada

de

forma

fracionada,

analisando-se

seus

componentes

detalhadamente. A paisagem pode ainda ser dividida em unidades que segundo Fávero (et al, 2004apud BELEM,2013) “pode ser definida como uma síntese de inúmeros aspectos da paisagem que se repetem justificando a classificação como unidade.” Buscando entender o envolvimento entre Geografia e Paisagem, Kelting e Lopes (2011) elucidam:

A Geografia, em um de seus campos de investigação, trabalha na detecção de rupturas pontuais da paisagem, delimitando as fronteiras territoriais dos fenômenos, identificando seus atores, analisando o que levou ao corte e aos conflitos. Desse modo, diferentes paisagens sociais subsistem em uma mesma paisagem natural, em que a apropriação se processa de modo diferente.

A polissemia presente na conceituação de paisagem demonstra a importância de sua análise estrutural, sendo seus elementos investigados um a um de forma detalhada e relatados como elementos conjunturais que formam o elemento geográfico citado.

3 Procedimentos aplicados aos estudos científicos acerca dos conflitos territoriais Para que se construa uma análise ampla de situações conflituosas, deve-se esclarecer territorializações geradas a partir da interação de atores sociais pertinentes à pesquisa, valendo-se do levantamento de dados para compor a análise textual, mapas de uso/ocupação do solo, além da elaboração de um transecto que permita a contextualização do local analisado. No estudo da caracterização ambiental pode-se utilizar documentação oficial, além de fontes bibliográficas, sendo que estas últimas podem ser obtidas em trabalhos publicados por autoridades públicas e pesquisadores, privilegiando-se estudos

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mais localizados sobre a área envolvida em possíveis pesquisas. Com tais elementos, é cabível direcionar o trabalho de observação. Ao longo de uma pesquisa que objetive a análise de conflitos territoriais, sugere-se a realização de observações diretas, mediante a observação in loco da paisagem em estudo, assim como as indiretas através de materiais fotográficos e cartográficos obtidos em prévio levantamento, não sendo exigido, neste caso, o deslocamento até o local a ser observado. Através da coleta de dados é importante realizar o levantamento da localização e limites da área de pesquisa e das condições ambientais da região em estudo. Essa identificação contribui para a identificação de comunidades tradicionais e para visualização de possíveis áreas de conflito. Os dados coletados podem ser anotados em uma caderneta de campo e os mesmos descritos para posterior tabulação. Após a assimilação da realidade das comunidades tradicionais deve-se avaliar o conjunto de relações e de interações entre os atores envolvidos, estudando assim o processo de relações de poder entre eles. Em seguida, entrevistas semiestruturadas, com perguntas voltadas para exploração de valores e vivências, podem ser importantes ferramentas para otimizar a possibilidade de exatidão da análise, sendo que devem ser baseadas nas informações coletadas a partir dos procedimentos de pesquisas bibliográfica e de campo. Ao fim da coleta de dados sobre os atores sociais, sugere-se aplicação à fórmula proposta por Raffestin (2008), A(L-M-P)----R----S(Sn/So)=T/Ta, onde:

A: ator (individual ou coletivo, homem ou coletividade) que combina diversos meios para realizar uma ação no ambiente inorgânico e/ou orgânico e/ou social. Nesse nível de generalização não é necessário distinguir precisamente os diversos tipos de atores. É fundamental precisar que esta categoria deverá ser identificada com maior detalhe em um processo de produção territorial peculiar. L‡: trabalho à disposição do ator. O trabalho humano pode ser definido como uma combinação de energia e informação. A quantidade variável de energia e informação determina os tipos de trabalho (de produção ou invenção). No decorrer da história, a segunda sempre foi mais significativa que a primeira.

164

M: mediadores materiais, instrumentos diversos e/ou imateriais, conhecimento e/ou algoritmos à disposição do ator. São todos os instrumentos de trabalho que estão à disposição em um lugar e em um momento especifico. Podem existir mediadores que não são contemporâneos uns dos outros. P: programa do ator. O programa é o conjunto das intenções realizáveis e dos objetivos ou metas. Por exemplo, produzir um ecossistema rural ou urbano constitui um programa geral. R: relação efetivada pelo ator com o ambiente geral A relação é composta por uma grande variedade de ações particulares realizadas com o objetivo de atingir uma meta precisa. Sn: ambiente orgânico e/ou inorgânico. De acordo com a visão ecológica, o orgânico é assimilável ao conceito de biocenose e o inorgânico ao de abiótico; a noção de escala deve ser explicitada em cada contexto. So: Ambiente social. Todos os subsistemas sociais, da economia à politica e à cultura estão entre os elementos do ambiente social. S: ambiente geral (Sn + So) T: território produzido pelo ator no ambiente. Ta: conjunto das relações desenvolvidas pelo ator no território e territorialidade.

4 Entrevistas A entrevista é uma importante aliada desde que elaborada de modo flexível, contando com roteiro semiestruturado, com horários e datas agendadas junto aos moradores e autoridades selecionados, com um esquema básico que permitia as adaptações necessárias. A escolha de um roteiro semiestruturado ocorreu no sentido de proporcionar maior número de dados coletados nas respostas e pontuar os eventos mais significativos. Para aplicação das entrevistas (o número irá variar de acordo com o levantamento prévio de atores), aspectos como antiguidade na comunidade, nível de conhecimento acerca do tema abordado e disponibilidade devem ser levados em conta. Com relação às entrevistas a ser realizadas com autoridades do poder público, critérios como relevância, conhecimento e disponibilidade serão decisivos. Através da metodologia em destaque pode-se analisar os atores envolvidos e identificar seus interesses e manifestações acerca da área de estudo. Sendo

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levadas em conta também as suas interações, para que, a partir de uma tabulação comparativa de resultados, os conflitos possam ser indicados. Os dados devem ser reunidos e tabulados em planilhas ou tabelas para que seja procedida à análise das relações de poder dos atores envolvidos que resultam ou possam resultar em conflitos, durante a qual eles serão identificados, caracterizados e relacionados às políticas ambientais pertinentes ao tema desta pesquisa.

5 Procedimentos metodológicos aplicados às unidades da paisagem O cenário ambiental da área trabalhada precisa ser relacionado às implicações possivelmente ocasionadas por conflitos territoriais. Os resultados necessitam de análise sistêmica, apresentando uma integridade definida, gerando unidades de paisagem, elaboradas a partir de considerações sobre os conflitos territoriais evidenciados, em decorrência do controle sobre a área em análise. É com base neste procedimento descrito acima que deve ser construída toda a caracterização da área. A área de estudo foi identificada pelo aspecto da paisagem. Dias (2006) infere que “a ação do que o homem imprime nas paisagens é o resultado de sucessivas combinações de sociedades sobre o espaço e a relação estabelecida entre ambos”. Dessa forma, neste trabalho, a análise da paisagem foi feita ao longo das etapas definidas nas análises de Geossistema e territorializações, de forma multidirecional e interativa. Segundo Bertrand (1972) apud Dias e Leonardo (2007, p. 10), “a paisagem seria a exteriorização morfológica do momentum dos processos interativos que compõem o meio ambiente, independentemente dos limites entre as diversas feições e sua natureza”. Quando analisada no viés de conflitos territoriais, a paisagem merece uma investigação com enfoque socioeconômico, seguindo um perfil cultural, em que a origem das alterações da paisagem seja discutida, inclusive com cruzamento de informações de mapas relacionados a área onde foram detectados conflitos.

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Para uma análise mais profunda da paisagem, pode-se compartimentalizar a área de estudo em unidades de paisagem e, posteriormente, inseri-las nas discussões. Na definição das Unidades de paisagem deve-se contemplar a interação de fatores como a geomorfologia, o uso do solo e a cobertura vegetal. Interagindo de forma variada, esses elementos geram combinações específicas, representando o aspecto visível e homogêneo da paisagem.

6

Análise

final

da

pesquisa:

gerando

produtos

para

enriquecimento da pesquisa Ao final dos procedimentos tratados nesta metodologia proposta, os dados devem ser tabulados e apresentados considerando a construção da análise das unidades de paisagem. Esta integração deve ser reforçada com uma análise discursiva e elaboração de mapas que representam a realidade da área em análise, partindo-se dos dados coletados. Os atores e territorialidades podem ser expostos em mapas (como exemplificado na Figura 2) e esquemas que facilitam o entendimento da situação dos atores sociais e dos fluxos de relações de poder (fluxogramas). Tais materiais cartográficos devem demonstrar visualmente a distribuição geográfica dos conflitos (potenciais ou vigentes), sendo que cada um deles é discutido individualmente em campo teórico. Esse processo enseja a interpretação do material gráfico levantado e definição de elementos de paisagens a serem considerados.

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Figura 2 – Exemplo de material cartográfico que pode ser elaborado a partir da metodologia apresentada. Fonte: Araújo (2014).

Araújo (2014) definiu os atores pelos trabalhos e as intenções realizáveis na Unidade de Conservação em questão (L-M-P). Seus interesses expõem a relação afetiva entre atores e o ambiente geral (S), que é consequência de um ambiente conflitante entre o ambiente orgânico (Sn) e o social (So). Toda essa relação resulta em territorialidade(s) e o novo território (T/Ta) (Figura 3). Os atores formam uma linha de existência que interage com relação de interesses em comum ou não, tornando o cenário conflituoso. Os conflitos acontecem entrelaçados nas relações de interesses dos atores sociais que por sua vez resultam em novas territorialidades que permearão a implantação da Reserva Extrativista analisada por Araújo (2014).

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FIGURA 3 – EXEMPLO DE APLICAÇÃO DE FÓRMULA DE ANÁLISE TERRITORIAL. FONTE: ARAÚJO (2014).

Os interesses comerciais, extrativistas e conservacionistas interagem com os atores sociais envolvidos, sendo que estes estão dentro de um mesmo contexto espacial. Essa relação evidencia conflitos territoriais identificados no momento em que um interesse tenta sobrepor outro. Sendo assim, a Reserva Extrativista do Litoral Sul de Sergipe será reflexo de territorialidades (relações de poder), resultantes de todo um processo alimentado de interesses múltiplos. Através do cumprimento dos procedimentos metodológicos, os dados devem ser discutidos ponto a ponto. Quando houver, durante qualquer etapa da pesquisa, ausência de dados relevantes para a conclusão da pesquisa, devese proceder a mitigação ou supressão dessas lacunas.

7 Considerações finais Neste artigo foram apresentados procedimentos metodológicos para consecução da análise de territórios que são definidos pela delimitação e as territorialidades pelo controle, estas últimas, a partir do exposto no presente trabalho, pode evidenciar a partir de modelo equacional proposto por Raffestin, que considera os conflitos socioambientais face a relação de interesses expostos pelos atores sociais envolvidos em processos conflituosos

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A metodologia aqui exposta pode alimentar discussões sobre consolidação de novas relações de poder, podendo gerar análises sobre a formação de ainda mais territorialidades, com relações que deverão ser aperfeiçoadas durante o trato de conflitos territoriais identificados. A análise da territorialidade proporciona uma demonstração prática da nova configuração da Dinâmica Ambiental na região em que se demonstra situações conflituosas. Tal fato pode representar uma oportunidade de quebra de paradigmas exploratórios arraigados e de construção de novos baseados no desenvolvimento sustentável. Analisar conflitos territoriais que assolam comunidades tradicionais sob a perspectiva de territorializações inseridas em unidades de paisagem, pode proporcionar a descoberta de dados consolidados sobre a realidade de tais comunidades. Podem ser expostas múltiplas territorialidades que atingem os atores sociais envolvidos no processo a partir da apropriação social de um espaço, assim como também o processo de reapropriação social do espaço pelas comunidades tradicionais. Diante de tudo aqui exposto, resultados produzidos e tratados em trabalhos que sigam os procedimentos aqui descritos, podem servir para os próprios agentes envolvidos nos conflitos como um material de sensibilização e autocrítica, auxiliando na busca por formas para mediação dos conflitos onde comunidades tradicionais sejam o foco.

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CAPÍTULO 11 MODELAGEM GEOFÍSICA: SUBSÍDIOS PARA GESTÃO AMBIENTAL EM GARANHUNS-PE Felippe Pessoa de Melo1 Rosemeri Melo e Souza2

Resumo O presente trabalho objetivou explicitar a viabilidade da modelagem geofísica, como subsídio para gestão ambiental. Para tanto, utilizou-se o programa Surfer, tendo como base de dados as informações analógicas referentes a precipitação e temperatura, disponibilizadas pelo Instituto Nacional de Meteorologia e a cena 08S375ZN, fornecida pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. O método de interpolação das variáveis escolhido foi a krigagem, por não produzir resultados determinísticos. Analisando os resultados, observou-se que as informações oriundas dos processos de interpolação deram origem a produtos cartográficos compatíveis do ponto de vista estrutural, mas, com pequenas disparidades nas cotas máximas e mínimas (temperatura e precipitação), entre as informações introduzidas no banco de dados (BD) e os resultantes. O que não comprometeu a integridade dos dados, mas, reforçou a questão que a modelagem por si só não dá conta de explicar um cenário ou fenômeno, por mais simples que aparentem ser. Palavras-chave: Modelagem. Banco de dados. Krigagem. Interpolação. Gestão ambiental.

1

Geógrafo, Mestre em Geociências e Análise de Bacias Sedimentares e Doutorando em Geografia - PPGEO/UFS, Estudante Associado ao Grupo de Pesquisa em Geoecologia e Planejamento Territorial - GEOPLAN/UFS, [email protected] 2 Pós-Doutora em Geografia Física - GPEM/The University of Queensland, Drª em Desenvolvimento Sustentável/Gestão Ambiental - UnB, Professora Associada do Departamento de Engenharia Ambiental - Universidade Federal de Sergipe, Líder do Grupo de Pesquisas Geoecologia e Planejamento Territorial - GEOPLAN/UFS, [email protected]

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GEOPHYSICAL MODELING, GRANTS FOR ENVIRONMENTAL MANAGEMENT IN GARANHUNS-PE Abstract This study aimed to explain the feasibility of geophysical modeling, as support for environmental management. For this, it used the Surfer program, with the database: the analog information related to precipitation and temperature, provided by the National Institute of Meteorology and 08S375ZN scene, provided by the National Institute for Space Research. The interpolation method of variables selected was kriging, for not produce deterministic results. Analyzing the results, it was observed that the information from the interpolation processes, give source the cartographic products compatible from a structural point of view, but with small disparities in the maximum and minimum quotas (temperature and precipitation) between the information introduced into the database (BD) and the resulting. This did not compromise the data integrity, but reinforced the point that the modeling by itself does not account for explain a scenario or phenomenon, for more simple it appears to be. Keywords: Modeling. management.

Database.

Kriging.

Interpolation.

Environmental

1 Introdução Desde os primórdios o homem realiza alterações na paisagem para que ela venha a suprir suas necessidades de forma menos dispendiosa e mais rápida. Com o transcorrer do tempo, sua capacidade de modificação da paisagem aumentou de forma exponencial em intervalos temporais cada vez menores. Sendo assim, o processo de análise e interpretação dos resultantes das interferências antrópicas no meio, passaram a sentir a necessidade de informações síncronas e fugazes, por parte daqueles que estão envolvidos no contexto. Para Resende; Souza (2009), as transformações da paisagem natural em cultural, para suprir as necessidades do modelo econômico vigente têm desencadeado impactos ambientais que carecem de estudos. Dentre eles, a degradação da beleza cênica das paisagens e a redução das áreas verdes. Nesse contexto, as geotecnologias do Sensoriamento Remoto e Sistemas de Informações Geográficas (SIGs), são subsídios tecnológicos de suma

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importância para acompanhamento multitemporal dos fenômenos passivos de serem captados por sensores orbitais e manuseados em ambiente virtual, através dos SIGs. O recurso da modelagem de dados geográficos nas plataformas desses programas permite que o pesquisador interpole inúmeras camadas de informações matriciais e vetoriais, oriundas dos mais distintos intervalos cronológicos sem comprometer a integridade das informações. Isto é, desde que, o usuário realize os referidos procedimentos embasados por teorias e concepções científicas, e tenham a plena consciência de que a modelagem é capaz de realizar apenas um vislumbre de uma possível realidade. Fato esse, que não desmerece o referido procedimento. Mas, indica/alerta que a modelagem quando utilizada como um recurso dinamiza e facilita a compreensão de possíveis cenários ou fenômenos. Porém, se seus produtos forem usados como verdades absolutas, os resultantes induzirão análises e tomadas de decisões equivocadas. Logo, a introdução de informações em um banco de dados, fica atrelada a percepção do pesquisador sobre quais variáveis são pertinentes para mensuração do fenômeno ou cenário em questão, já que, o homem não é capaz de ponderar esses elementos e suas inter-relações de maneira fidedigna, torna-se impossível a realização de modelos fieis a realidade pretendida. A modelagem de sistemas ambientais está embasada no método hipotéticodedutivo, pois expressa configurações elaboradas em decorrência de hipóteses ou explicações. Os modelos são direcionados mais para a categoria e a introdução de valores específicos sobre as variáveis dos elementos, e suas relações descrevem as características e comportamento de um caso particular e sua ajustagem na classe referida ao modelo (CHRISTOFOLETTI, 1999). O presente trabalho teve como objetivo realizar a modelagem de dados geofísicos na poligonal urbana de Garanhuns subsidiado pelo método geoestatístico da Krigagem ou Kriging e utilizando como parâmetros geofísicos: relevo, precipitação e temperatura. O uso dos referidos dados ocorreu devido ao fato de que são variáveis que interferem diretamente na dinâmica socioespacial e ambiental.

174

O Kriging é um método de regressão usado em geoestatística para aproximar ou interpolar dados. É compreendido como uma predição linear ou uma forma da Inferência bayesiana (incertezas sobre as quantidades estimadas). Parte do princípio que pontos próximos no espaço tendem a ter valores mais parecidos do que pontos mais afastados. Assume que os dados recolhidos de variável se encontram correlacionados no espaço (SILVA, 2014).

2 Percurso Metodológico 2.1 Localização da área

O município de Garanhuns está inserido na região Nordeste, em Pernambuco, sendo delimitado pelas coordenadas geográficas de: -8° 51’ 37” / -8° 55’ 40” e -36° 26’ 06” / -36° 30’ 52” (Figura 1). Faz divisa com 11 municípios, ao norte com Capoeiras, Jucati; ao sul Correntes, Lagoa do Ouro, Brejão, Terezinha; a leste São João, Palmeirina; a oeste Saloá, Paranatama, Caetés.

Figura 1. Localização da área de estudo. Fonte: MELO, F. P. (2015).

175

Garanhuns possui duas rotas principais para capital (PE). A primeira pela BR 101, percorrendo um trecho de 242 km; e a segunda, passando por duas BRs 423/232, transcorrendo 80,6 km pela 423 até São Caetano, mais 151,4 km na 232 até Recife, totalizando uma rota de 232 km. Optar pela primeira rota implica em uma redução de 10 km no percurso, passando por uma paisagem marcada por vegetação de ambientes quentes e úmidos; já o segundo roteiro, possibilita o contato com Caruaru, importante polo comercial regional, e apreciação de paisagens distintas, desde as hiperxerófilas as perenifólias.

2.2 Principais características fisiográficas

O município de Garanhuns possui um relevo ondulado em forma de colinas, com cotas topográficas que chegam a ultrapassar 1.000 m de altitude, como no caso da superfície de cimeira do morro do Magano (772937,56 m / 9017673,73 m) que tem uma média altimétrica de 850 m, apresenta vales abertos com encostas abruptas, as quais suavizam-se ao passo que se afastam dos domínios urbanos formando superfícies aplainadas. Apesar de estar situado nos domínios do clima semiárido é uma área de exceção com o clima Mesotérmico Tropical de Altitude. Conforme o Instituto Nacional de Meteorologia-INMET (2015), sua precipitação média anual é superior a 80 mm, tendo o mês de julho com as maiores médias pluviométricas 155,8 mm. Apresenta temperaturas amenas, média anual de 21,6°c uma vez que o período mais frio vai de junho a setembro (19,6°c) e as temperaturas mais elevadas estão no quadrimestre dezembro/março (23,3°c). Originalmente possuía duas vegetações predominantes, sendo elas: caatinga hipoxerófila a sotavento e mata atlântica a barlavento. Esse fenômeno fisiográfico ocorre porque o município é um ecótono, estando inserido na zona de transição entre o Agreste e o Sertão.

2.3 Confecção dos modelos

176

Utilizou-se os dados meteorológicos do INMET (2015), correspondentes as médias das precipitações e temperaturas de 29 de junho de 2015, das estações convencionais situadas em: Garanhuns-PE (9014058, 43309 / 775663, 936793), Arcoverde-PE (9067239,70626 / 714091,976245) e Palmeira dos Índios-AL (8957787,75009 / 761317,180696), com distâncias máximas entre os pontos de 120,67 e mínima de 57,79 km (Tabela 1). A matriz referente ao Modelo Numérico do Terreno (MDE) é proveniente do Banco de Dados Geomorfométricos do Brasil (INPE), cena 08S375ZN, com resolução espacial de 30 m, formato GeoTiff (8 bits). De posse dessas informações confeccionou-se uma tabela (Excel) com as colunas A - X (longitude), B - Y (latitude), C (precipitação), D (altitude) e E (temperatura). Tabela 1. Matriz de espacialização das estações climáticas, distância em Km.

Estações Meteorológicas Convencionais ---------Garanhuns Arcoverde Palmeira dos Índios Garanhuns 0 81,18 57,79 Arcoverde 81,18 0 120,67 Palmeira dos Índios 57,79 120,67 0 Fonte: MELO, F. P. (2015).

Em seguida, no ambiente do Surfer v. 12, gerou-se duas grades de informações (Grid/Data) referentes à precipitação e temperatura; devido o formato dos dados topográficos foi necessário processá-los no software Global Mapper v. 16, para posterior exportação para o ambiente do Surfer, sendo assim ocorreu a importação (File/Oppen Data File), correção do datum de WGS84 para SIRGAS 2000 - ficando em conformidade com os padrões cartográficos

brasileiros,

exportação

dos

dados

no

formato

Grid

(File/Export/Export Elevation Grid Format/XYZ-GRID). No Excel o referido arquivo foi aberto, tendo a remoção dos pontos em excesso para não super amostrar o MDE e posterior exportação das informações no formato de planilha. Realizados esses procedimentos, gerou-se um novo Grid (topografia) no Surfer e confecção dos produtos cartográficos.

3. Análise dos modelos geofísicos

177

A interpolação das informações topográficas resultou em isolinhas com bastante similaridade com as formas do modelado (Figura 2), tornando o produto satisfatório. Em relação às cotas altimétricas ocorreram disparidades significativas. Podendo vir a comprometer análises de variáveis que envolvam em suas equações elementos como amplitude topográfica e declividade. No banco de dados (BD), a maior cota altimétrica introduzida foi de 1.030 m e a menor de 693 m. As isolinhas indicam que as cotas máximas podem chegar a 1.040 m e as mínimas a 680 m. Processo que gera uma diferença de 10 m na cota mais elevada e de 13 m na mais baixa. Isso ocorre, porque o método geoestatístico usado é o possibilíssimo, não existindo o critério de que os valores máximos e mínimos do BD não podem ser ultrapassados. Além de interpolar grandes quantidades de informações, a modelagem pode fornecer produtos temáticos em 3D (Figura 3), dinamizando e facilitando as análises, principalmente para os indivíduos que não retém os domínios técnicos operacionais necessários para realização da leitura de produtos cartográficos.

Figura 2. Classes altimétricas. Fonte: MELO, F. P. (2015).

178

Figura 3. Classes altimétricas em 3D. Fonte: MELO, F. P. (2015).

No caso da pluviometria, formaram-se 4 (quatro) isoietas mestras, com valores entre 27,5 e 29 mm, espacializadas de SE para NO (Figura 4). Observa-se que os dados referentes as precipitações seguiram o mesmo padrão dos topográficos, no que diz respeito às dissimilaridades entre os valores máximos (29,3 mm) e mínimos (10,1 mm) fornecidos ao BD. Faltando 0,3 mm, para alcançar a cota superior e excedendo a inferior em 17,4 mm. Essa maior discrepância entre os resultados em si comparando com a topografia deve-se a razão de que as informações pluviométricas foram oriundas da interpolação de informações de 3 (três) estações climáticas. Ao passo que, para topografia utilizou-se uma gama maior de pontos (pixels de 30 m). Uma matriz de espacialização mais robusta implica em dados mais concisos e com maior grau de fidedignidade. As razões das distâncias das superfícies constituídas em SIG se estabelecem, em médias de distanciamento entre pontos. Quanto mais elevado o valor desta média, maiores serão os espaços não preenchidos (FERREIRA, 2015). A disparidade geoestatística entre as informações não impossibilita a realização de novas interpolações (Figura 5). Entretanto, quanto mais secundários são os dados menor é o grau de confiabilidade do resultante.

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Ficando procedimentos como esses atrelados a necessidade do fenômeno ou ambiente que o pesquisador deseja representar e até que ponto as informações podem ser deturpadas sem comprometer a pesquisa. Modelar é antes de tudo ter plena convicção que as certezas não existem. Ficando a cargo da estatística espacial o preenchimento das lacunas existentes entre os pontos de controles através de regressão. Sendo assim, expressões como erro, probabilidade, média, incerteza e disparidade, sempre estarão presentes em procedimentos que envolvam interpolação. Caso contrário, o modelador das informações dará a entender para o leitor que o produto é totalmente fidedigno ao fenômeno ou cenário que se propôs representar. Em relação às isotermas, o padrão seguido foi semelhante o das isoietas, tanto em relação a espacialização como nas disparidades entre os valores introduzidos (mínimo 19,9 - máximo de 22,7°c) no BD e os resultados obtidos (Figura 6), com isso gera uma disparidade de 6,3°c na maior cota termal e de 7,6°c na menor. Conforme já foi mencionado, discrepâncias como essas podem vir a comprometer as análises dos cenários e de seus respectivos fenômenos. Isso ocorreu, porque as informações termais são oriundas das mesmas estações climatológicas, usadas para interpolação dos dados pluviométricos.

Figura 4. Classes pluviométricas. Fonte: MELO, F. P. (2015).

180

Figura 5. Sobreposição da precipitação no modelado. Fonte: MELO, F. P. (2015).

Dessa forma, as variáveis se comportaram conforme o esperado. O que levanta mais uma questão nos processos de interpolação, que é a similaridade do padrão de dispersão dos resultados, caso os pontos de controles para fenômenos distintos sejam os mesmos (Figura 7).

Figura 6. Classes termais. Fonte: MELO, F. P. (2015).

181

Figura 7. Sobreposição das isotermas no modelado. Fonte: MELO, F. P. (2015).

4. Deturpação da modelagem Com a difusão das geotecnologias no âmbito das ciências que necessitam de análises geoespaciais dos mais distintos fenômenos e cenários, os SIGs estão se tornando ferramentas cada vez mais imprescindíveis. Entretanto, suas aplicações não estão seguindo critérios e procedimentos científicos rigorosos. É cada vez mais comum a utilização de rotinas automáticas por parte dos usuários, sem levar em consideração a lógica empregada pelo SIG para confecção de um determinado produto. Segundo Ferreira (2014), uma parcela expressiva dos novos profissionais que atualmente utilizam um SIG para a solução de problemas de natureza espacial supostamente desconhece o significado de análise geoespacial. Talvez, porque tenham descoberto essa tecnologia por vias rápidas e menos consistentes, tais como: lendo e acessando manuais pela internet, por chats e tutoriais. Os quais estão mais concentrados em realizar o procedimento do que explicar/contextualizar as concepções teóricas implícitas nessas rotinas. Os procedimentos acima realizados, demonstram que a mera introdução de informações em um BD juntamente com a extração de dados secundários a

182

partir de um SIG, geram mais incertezas do que possíveis soluções. Problema esse, que não é levado em consideração por uma grande gama de usuários de SIG. Tornando-se cada vez mais comum a auto intitulação por parte daqueles que usam esses programas em especialistas em SIG. Consequentemente, disseminando procedimentos e produtos de origem duvidosa/questionável. A introdução de informações em um BD, e manipulação das mesmas em um SIG não faz do indivíduo um especialista nem tão pouco o produto resultante pode ser adjetivado de modelagem. O material oriundo de interpolações geoespaciais só pode ser considerado modelagem se estiver explicitado/explanado de forma bem objetiva e detalhada o conjunto de informações utilizadas, suas especificidades, que dentre elas sobressaem-se as escalas (temporal, radiométrica, métrica...), a geocronologia e o conhecimento teórico e operacional da parte de quem utiliza o SIG, dos princípios norteadores das operações que estão sendo realizadas. Haja vista que esses programas executam operações em planos euclidianos, ou seja, partem do princípio que a menor distância entre os pontos neles contidos são linhas retas, desconsiderando fenômenos como as superfícies de impedância existentes entre os pontos. Trabalhar com probabilidade não significa equacionar incertezas, muito pelo contrário, elas devem ser explicitadas e controladas através de parâmetros geoestatísticos.

5. Mapeamento temático controverso A cartografia tem como princípio chave a confecção de produtos cartográficos temáticos que sejam capazes de transmitir informações da maneira mais simples e precisa que for possível. No entanto, a simplicidade com que esses dados são transmitidos não implica dizer que não existe uma série de procedimentos complexos por traz. Sendo o mapa, a carta ou a planta, o produto final de uma gama de ações e procedimentos realizados em campo e gabinete. Etapas essas que são tão bem executadas, que ao analisar o produto cartográfico o usuário em muitos casos não se dá conta da complexidade das informações contidas nesse produto.

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Para Menezes; Fernandes (2013), os documentos produzidos pela cartografia temática tratam, muitas vezes, de fenômenos físicos ou humanos. Não tendo limitação, pois pode representar qualquer fenômeno que tenha distribuição espacial. Assim, tanto de ordem física como antrópica, que estejam distribuídos sobre a superfície terrestre, são passiveis de serem visualizados. Para tanto, um item proveniente de um mapeamento temático deve passar uma mensagem clara e objetiva, sendo assim, a beleza do produto cartográfico encontra-se em sua simplicidade de como passa as informações desejadas. O leitor desse artefato ao visualizá-lo de imediato tem que saber do que se trata. Excesso de dados em um item cartográfico provoca poluição visual, confundindo o leitor e o direcionando para análises e interpretações errôneas, indo de encontro aos princípios primordiais da cartografia. Conforme Castro et al. (2004) e Martinelli (2013), independente de qual seja o produto cartográfico/temático ele deve conter e responder no mínimo: 

Legenda - Traduzindo de maneira clara e objetiva os símbolos

existentes. Mas, o referido termo deve ser adjetivado para não ficar redundante; 

Símbolos da Legenda - Seguir a ordem: pontos cheios e logo após os

vazados do menor para o maior, linhas contínuas e posteriormente as descontínuas - das de menor comprimento para as de maior; 

Norte Cartográfico - Preferencialmente no meio do canto direito ou

esquerdo, desde que não comprometa a estética; 

Fonte(s) - Origem dos dados utilizados e especificidades primordiais;



Escala - Preferencialmente gráfica, pois possibilita calcular o coeficiente

de distorção, caso o produto seja alterado por terceiros; 

Sistema de Coordenadas - Ficando a critério;



Título - Respondendo os questionamentos: O quê? Onde? Quando?

A cada dia tem se tornado mais comum a confecção de produtos cartográficos temáticos sem rigor técnico, operacional e científico. Dando a falsa impressão que cada indivíduo pode confeccionar/organizar os elementos cartográficos conforme seu critério. Dificultando a leitura das informações e indo de encontro aos princípios cartográficos.

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Outro problema que deve ser mencionado é em relação a autoria do produto cartográfico. Se o operador manuseou uma base de dados pré-existente (primária) e através dela obteve produtos secundários, isso não o torna elaborador do item cartográfico e sim organizador dos dados cartográficos que deram origem a um produto. Desse modo, o referido usuário é a fonte de organização e não de confecção da base cartográfica.

6. Perspectivas da modelagem para a gestão ambiental A possibilidade de introduzir inúmeras variáveis em um BD equaciona a tomada de decisões, haja vista que, o referido recurso possibilita desde, a reconstituição de possíveis cenários pretéritos até a estimativa de ambientes futuros, desde que existam informações suficientes para tanto. A humanidade atingiu um estágio tecnológico que permite transformar os cenários naturais de maneira tão rápida e voraz que a natureza não consegue se recuperar, causando assim, danos irreversíveis a curto ou médio prazo, em muitos casos colocando em risco tanto a seguridade ambiental como a antrópica. Sendo cada vez mais comum notícias referentes à: deslizamentos, soterramentos, contaminação hídrica, formação de ilhas de calor nos centros urbanos e esgotamento de jazidas. Visto que a modelagem permite estimar os resultantes das ações antrópicas nos mais variados cenários e em escalas geocronológicas síncronas e assíncronas. Caracteriza-se não como uma solução, mas, como um importante recurso teórico e metodológico para essa problemática. Nesse contexto, a preocupação com a capacidade de suporte frente a níveis de modificações dos elementos biofísicos do ambiente, pelos impactos das ações dos fatores externos define-se como o objetivo do planejamento territorial, ou seja, de sua gestão eficaz (OLIVEIRA; SOUZA, 2009).

7. Considerações A modelagem demonstrou-se eficaz tanto no processo de interpolação das variáveis geofísicas como na confecção de produtos cartográficos temáticos. O

185

que não quer dizer que não ocorreram deturpações das informações introduzias no BD. Logo, para modelar é necessário ter a consciência de que sempre trabalhará preenchendo lacunas entre os dados. Haja visto que, um BD é composto de uma nuvem de pontos, os quais além de terem distintos valores atrelados a eles, possuem diferentes medidas de afastamento que são ponderadas no ambiente do SIG conforme o modelo euclidiano. A consistência ou maior grau de confiabilidade do produto resultante de uma modelagem seja ela qual for não estar apenas atrelada na quantidade de pontos de controle. Posto que a metodologia de como as variáveis foram utilizadas deve estar explicitada, de maneira que, outros usuários possam refazer os procedimentos e assim validar ou negar ou resultados obtidos. Porém, para tanto é imprescindível que os usuários dos SIGs estejam familiarizados com as concepções teóricas implícitas nas plataformas dos programas. Caso contrário, os resultantes não terão valor, pois são frutos de procedimentos desprovidos de domínio teórico. Em suma, não se modela sem conhecimento das teorias que fundamentam as rotinas dos SIGs.

Agradecimentos Ao Grupo de Pesquisa em Geoecologia e Planejamento Territorial (GEOPLAN), ao Professor José Antônio Pacheco de Almeida e em especial à Professora Rosemeri Melo e Souza.

Referências CASTRO, F. V. F. (org.); FILHO, B. S. S.; VOLL, E. Cartografia Temática. [S.l.]: Virtual Book, 2004. Disponível em: . Acesso em: 22 mai. 2011. CHRISTOFOLETTI, A. Modelagem de Sistemas Ambientais. ed. 7. São Paulo: Blucher, 1999. 233 p. ISBN 978-85-212-0177-9. COSTA, J. J.; FONTES, A. L.; GIUDICE, D. S.; LIMA, A. S.; NETO, E. M. L.; OLIVEIRA, A. C. A.; REZENDE, W. X.; SANTOS, E. C. B.; SANTOS, M. M.; SANTOS, S. S. C.; SOUZA, H. T. R.; SOUZA, R. M. (org.); SOUZA, R. R. Território Planejamento e Sustentabilidade: conceitos e práticas. São Cristóvão: UFS, 2009. 234 p. ISBN 978-85-7822-105-8.

186

FERREIRA, C. Iniciação à análise geoespacial: teoria, técnicas e exemplos para o geoprocessamento. São Paulo: Unesp, 2014. 343 p. ISBN 978-85-3930537-7. IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Geociências. Disponível em: < http://downloads.ibge.gov.br/downloads_geociencias.htm>. Acesso em: 10 jul. 2015. INMET - Instituto Nacional de Meteorologia. Estação Meteorológica de Observação de Superfície Convencional. Disponível em: < http://www.inmet.gov.br/portal/index.php?r=estacoes/estacoesConvencionais>. Acesso em: 10 jul. 2015. INPE - Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Banco de Dados Geomorfométricos do Brasil. Disponível em: . Acesso em 22 de jan. de 2014. MARTINELLI, M. Mapas da Geografia e Cartografia Temática. ed. 6. São Paulo: Contexto, 2013. 142 p. ISBN 978-85-7244-218-3. MENEZES, P. M. L.; FERNANDES, M. C. Roteiro de Cartografia. São Paulo: Oficina de Textos, 2012. 288 p. ISBN 978-85-7975-084-7. SILVA, J. R. S. Avaliação de Autocorrelações e Complexidade e Séries Climáticas no Brasil. Recife: UFPE, 2014. 100 f.

CAPÍTULO 12 COMUNIDADE ESCOLAR E GEOTECNOLOGIAS: METODOLOGIA INTERDISCIPLINAR EM PRÁTICAS SOCIOAMBIENTAIS Judson Augusto Oliveira Malta1.

Resumo As Geotecnologias são ferramentas provenientes do avanço da globalização e potentes recursos para o ensino interdisciplinar, para auxiliar numa abordagem integrada do espaço. A partir da união das geotecnologias com a internet e os dispositivos móveis pôde-se criar o geocaching. Essa atividade é um jogo esportivo de “caça ao tesouro”, praticado ao ar-livre ao redor do mundo com receptores de GPS dentro de uma rede social que é também uma WebGIS. A ideia base do jogo é dirigir-se até umas coordenadas geográficas e encontrar a geocache (recipiente do tesouro) escondida nesse local. O presente estudo busca refletir sobre a utilização das geotecnologias e suas características como ferramentas no processo de ensino-aprendizagem, apresentando uma proposta de utilização do geocaching como ferramenta pedagógica aplicada ao ensino interdisciplinar em práticas socioambientais. Esse artigo é fruto do Projeto Geocaçadores do Conhecimento que é uma proposta pedagógica para a utilização das geotecnologias de informação e comunicação(GeoTICs) no ensino. Nesse sentido foi utilizada a metodologia da pesquisa-ação na execução de práticas pedagógicas a fim de trabalhar conteúdos e competências dentro e fora da sala de aula no Colégio de Aplicação da UFS. A partir dos resultados pode ser observado que as GeoTICs são excelentes ferramentas de ensino que potencializam o processo de aprendizagem para além da sala de aula, estimulando a competitividade, criatividade e o contato com a natureza. Palavras-chave: Geotecnologias. Práticas pedagógicas. Interdisciplinaridade. Geocaching. Educação ambiental.

1

Professor da Rede Estadual de Ensino. Licenciado e doutorando em Geografia/UFS, estudante associado ao Grupo de Pesquisa em Geoecologia e Planejamento Territorial GEOPLAN/UFS. Projeto Financiado pela FAPITEC/SE e CNPq, [email protected]

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SCHOOL COMMUNITY AND GEOTECHNOLOGIES: INTERDISCIPLINARY METHODOLOGY IN SOCIAL AND ENVIRONMENTAL PRACTICES Abstract The Communication and Information geotechnologies (geoTICs) are tools developed by the advance of globalization and are also a powerful resource for interdisciplinary education that support new integrated approach for space. From the union of geotechnology with the internet and mobile devices could be created geocaching. This activity is a sports game "treasure hunt", practiced open-air around the world with GPS devices within a social network that is also a WebGIS. The game's basic idea is to go to a geographic coordinates and find the geocache (treasure container) hidden at that location. This study aimed to reflect about using geotechnologies as tools in the teaching-learning process, presenting a proposal that use geocaching as a pedagogical tool applied to interdisciplinary teaching in social and environmental practices. This article is a result of the “Knowledge Geohunters Project” which is a pedagogical proposal for the use of GeoTICs in teaching. The methodology used was action-research in the implementation of practices to improve content and skills inside and outside the classroom. The geoTICs are excellent teaching tools, potentializes the learning experience for beyond the classroom, stimulating competitiveness, creativity and contact with nature. Keywords: Geotechnologies. Pedagogical Geocaching. Environmental education.

practices.

Interdisciplinarity.

1 Introdução

Os processos contemporâneos da globalização trouxeram às tecnologias da informação e comunicação (TIC) características como: interoperabilidade, velocidade, proximidade, conectividade, virtualidade etc. Esses efeitos supõem uma visão ampla e dinâmica da comunicação, pois incluem interfaces interativas propiciando

novas competências

necessárias às dinâmicas

socioespaciais, ao exercício da inventividade, das demandas socioculturais e educacionais Neste cenário de possibilidades e de controvérsias, destacamos os processos educativos, os quais necessitam entrelaces teóricas e práticas com

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as novas técnicas e linguagens para que estas sejam aparelhadas no desenvolvimento psicossocial das novas gerações. Hoje, através da Geotecnologia temos potentes recursos para o ensino de geografia, para auxiliar numa abordagem integrada do espaço. São ferramentas como: as fotografias aéreas, imagens de satélite, Sistemas de Posicionamento Global (GPS) e de informação Geográfica (SIG) e mais recentemente as ferramentas da WebGIS. A utilização destes recursos em sala de aula muda, consideravelmente, a forma como os alunos concebem, representam e aprendem o espaço geográfico. A partir da união das geotecnologias com a internet e os dispositivos móveis pôde-se criar um esporte que surge a partir do início século XXI, o geocaching. Essa atividade, um jogo de “caça ao tesouro”, é praticada ao ar-livre no mundo inteiro com receptores de GPS dentro de uma rede social e de uma WebGIS. A ideia base do jogo é dirigir-se até umas coordenadas geográficas e encontrar a geocache (recipiente do tesouro) escondida nesse local. O presente estudo busca refletir sobre a utilização das geotecnologias e suas características como ferramentas no processo de ensino-aprendizagem, elaborando uma proposta de utilização do geocaching como ferramenta pedagógica aplicada ao ensino interdisciplinar em práticas socioambientais na comunidade escolar.

2 As geotecnologias, o geoprocessamento e os SIGs: suas características e potencialidades

A Informação geográfica é um determinado conjunto de dados que contém associações de natureza espacial e podem ser apresentados de diversas formas (gráfica, numérica ou alfanumérica). As geotecnologias utilizam o processamento de dados geográficos, ou seja, o geoprocessamento. Essas ferramentas se expandem a partir da década de 70, com o avanço da informatização computacional e o interesse comercial. O geoprocessamento abrange ferramentas desde a captura, armazenamento, processamento e apresentação das informações geográficas.

190

A definição que nos serve melhor é a de Rocha, que afirma que o Geoprocessamento é: Uma tecnologia transdisciplinar, que, através da axiomática da localização e do processamento de dados geográficos, integra várias disciplinas, equipamentos, programas, processos, entidades, dados, metodologias e pessoas para: coleta, tratamento, análise e apresentação de informações associadas a mapas digitais georreferenciados (ROCHA, 2002, p.17).

Além de explorar a definição de geoprocessamento ressaltando as informações geográficas e seu caráter transdisciplinar, SEABRA aponta a relação entre SIG e geoprocessamento no fragmento abaixo: Os SIGs incluem-se no setor tecnológico conhecido como geoprocessamento, cuja área de atuação envolve a coleta e tratamento de informações espacializadas, envolvendo equipamentos (hardware) e programas (software), com diversos níveis de sofisticação destinados a aplicações profissionais nos diversos ramos das ciências (SEABRA, 1999, p.32).

O Geoprocessamento é uma geotecnologia, ou seja, um conjunto complexo de técnicas formado por diversas ferramentas que muitas vezes são utilizadas de múltiplas maneiras. Sendo o principal elo a referência espacial, ou seja, as coordenadas geográficas que nos permitem sobrepor diversas camadas de informação atribuídas a uma localidade (Figura 1) e observar esses dados “in situ”.

Figura 1- Sobreposição Temática em geotecnologias. Fonte: ROCHA (2002).

191

O caráter de multiplicidade analítica em ambiente digital, vinculada a uma precisa localização espacial é o que torna esta tecnologia extremamente prática e maleável. É ainda, este caráter, a coluna angular que une diversas disciplinas e sustenta a sua aplicabilidade tanto na análise como na gestão da localidade. Ao analisar as representações computacionais do espaço em busca de uma fundamentação teórica para a ciência da geoinformação CÂMARA et. all (2001) apontam conceitos de espaço geográfico como noção-chave para a construção do conjunto conceitual sólido para esta nova ciência. A principal característica no que se refere à estrutura de organização de dados em SIG é a capacidade de estruturação topológica que não somente descreve a localização e a geometria das entidades de um mapa, mas também os relacionamentos entre as suas entidades como: conectividade, contiguidade e pertinência. Além de dados geométricos e espaciais, os SIGs possuem suporte a atributos alfanuméricos e quando associados com elementos gráficos, lhes atribuem informações descritivas.

3 As geotecnologias como instrumentos pedagógicos As geotecnologias têm começado a ser difundidas e utilizadas como ferramentas pedagógicas nos últimos anos. Pode-se observar aqui no Brasil alguns relatos dessa prática. A maioria destes se encontram no âmbito de graduação, pois o aporte teórico metodológico da geografia exige o conhecimento mínimo destas ferramentas.

O

conhecimento

básico

dos

Sistemas

de

Informações

Geográficas é algo que todos os departamentos entendem como essencial às bases curriculares dos cursos, mesmo que na prática seja necessário um laboratório com computadores por aluno. Apesar de, na maioria das vezes, os cursos de graduação de Geografia utilizar as geotecnologias, há também alguns relatos dessa utilização no ensino

192

fundamental e no médio (TERRA et al, 2011; PEIXOTO et al, 2011; NASCIMENTO e HETKOWSKI, 2011; CORREA et al, 2010). A maioria destes estudos são propostas metodológicas disciplinares que buscam trabalhar o conteúdo da disciplina geográfica, como: localização e representação da terra; iniciação cartográfica das novas gerações; novas tecnologias aplicadas à sala de aula; introdução a SIG, GPS e Imagens orbitais.

4 O geocaching: uma georede social interativa e dinâmica2. O Geocaching é um esporte baseado no jogo “caça ao tesouro” com a inclusão das geotecnologias, o esporte é praticado ao ar-livre no mundo inteiro com receptores de GPS. A ideia base do jogo é dirigir-se até coordenadas geográficas específicas e encontrar a geocache (recipiente que contem os tesouros) escondida nesse local por outro membro da comunidade geocaching. Os praticantes do esporte são chamados de geocachers. Todas as informações estão num Sistema de Informação Geográfica na web que funciona também como uma rede social geográfica, criada a partir do ano 2000. No site www.geocaching.com, o geocaching pode ser jogado seguindo as seguintes oito etapas:

1. Registre-se gratuitamente e obtenha uma Adesão Básica. 2. Visite a página "Esconder e Procurar". 3. Introduza o seu código postal e clique em "pesquisar". 4. Escolha qualquer uma geocache da lista e clique no nome. 5. Introduza as coordenadas da cache no seu dispositivo GPS. 6. Use o seu equipamento GPS para ajudá-lo a encontrar a geocache escondida. 7. Assine o livro de registos e coloque a geocache na sua localização original. 8. Partilhe as suas aventuras e fotografias de geocaching online.

2

A maioria das informações aqui presentes foram baseadas nos sites Geocaching.com e Opencaching.com

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Para fazer geocaching é preciso apenas de um equipamento GPS ou de um smartphone equipado com GPS para chegar até a uma geocache e de ser membro do Geocaching.com. As geocaches já estão por todo o mundo e até viraram um esporte muito praticado em países desenvolvidos como Portugal e Estados Unidos. É comum os geocachers esconderem caches em locais que lhes são relevantes, ou que mostram um determinado interesse ou capacidade do seu proprietário. Estes locais podem ser muito diferentes. Pode encontrá-las num parque natural perto de sua casa, no culminar de uma longa caminhada, debaixo de água ou numa rua de uma cidade. As regras do geocaching são simples, ao encontrar a geocache se tirar algo do recipiente, deixe outro item de valor igual ou superior. Escreva um pouco sobre a sua aventura no bloco de notas da geocache. Registe a sua experiência em www.geocaching.com. Os dois maiores sites do para a prática deste esporte são o Opencaching.com e o Geocaching.com sendo que o escolhido para o presente estudo foi o segundo por ser mais antigo e por ter maior número de membros e de geocaches. Há indícios de projetos utilizando o geocaching no ensino nos Estados Unidos, Austrália e em Portugal principalmente em âmbito universitário, mas ainda não haviam sido encontrados registros da utilização do geocaching como ferramenta pedagógica no Brasil na graduação ou no ensino médio quando o projeto geocaçadores foi criado em 2013. Nas pesquisas realizadas observou-se que a proposta mais completa da utilização do geocaching como ferramenta pedagógica foi elaborada por uma Organização Não Governamental da Austrália chamada “Nature Play” que busca realizar atividades de educação ambiental com crianças tendo contato com a natureza. O “Nature Play” disponibiliza três planos de aula exclusivos para atividades educativas com o Geocaching. Outra proposta que virou publicação foi elaborada pela Universidade de Turku na Finlândia, mas trabalha o uso do geocaching como ferramenta no ensino médio (IHAMÄKI, 2007).

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5 O geocaching como ferramenta pedagógica: a metodologia do projeto geocaçadores do conhecimento CODAP/UFS O geocaching foi a fonte de inspiração para o projeto geocaçadores do conhecimento que utiliza as geotecnologias no ensino e começou suas atividades em junho de 2013, em Aracaju\SE (MALTA, 2013). Esse projeto se expandiu formando uma rede no Colégio de Aplicação da UFS e na UFPA em Belém\PA, também nas escolas estaduais, Camélio Costa, Acrísio Cruz e General Siqueira (BRITO et al., 2014; PEREIRA et al., 2014; CAMPOS et al., 2014).

As

fotos

e

práticas

do

projeto

são

divulgadas

pelo

site

https://www.facebook.com/geocacadoresnordeste. O presente artigo aborda os resultados de uma das práticas no Colégio de Aplicação da UFS de junho a novembro de 2013. O Geocaching é um esporte que criado desde 2000 e está consolidado no mundo todo, a questão do atual projeto foi trazer a sua utilização para a prática de ensino interdisciplinar em práticas educativas para a comunidade escolar. Os alunos do primeiro ano do ensino médio foram contemplados formaram o nosso grupo focal, foram trabalhadas questões socioambientais e também as disciplinas curriculares: Geografia, Biologia, História e Educação Física. Os conteúdos e competências trabalhados foram: 

Utilização de novas tecnologias e redes sociais



Manipulação de sistemas de informação geográfica



Localização com GPS e orientação no espaço geográfico



Educação ambiental e ecoturismo



Leituras de cartas temáticas



Atividades de Esporte de Aventura



Cuidado com o ambiente e criatividade

A Metodologia utilizada pelo projeto geocaçadores foi a pesquisa-ação pedagógica, foram realizadas oficinas e práticas de ensino em campo, para demonstrar os procedimentos do Geocaching. Houve também o levantamento de dados por questionário, descrição e registro das atividades. Os alunos dos primeiros anos do colégio de aplicação foram divididos em grupos de 5 a 7 alunos. Em cada grupo haverá ao menos dois alunos com um

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smartphone androide GPS e os aplicativos “C:geo” e “Status GPS” que podem ser baixados diretamente da playstore do googleplay e são gratuitos. Algum aluno precisa fazer um cadastro no geocaching.com em nome de sua equipe. A partir deste momento o grupo escondeu dois tesouros, anotou as coordenadas do ponto com o GPS e realizou o cadastro na internet. Esses tesouros foram escondidos em lugares públicos amplos, mas com certa segurança na cidade de Aracaju. Em seguida os alunos foram procurar tesouros uns dos outros e ao mesmo tempo avaliar também a qualidade dos tesouros. Eles foram instruídos com relação a orientação no espaço geográfico e sensibilização socioambiental. Cada tesouro possuía um código único associado a questões sobre os conteúdos ministrados pelas disciplinas do projeto. Essas questões precisavam ser respondidas através de pesquisa, por isso os alunos necessitavam caçar os tesouros assim como o conhecimento para cumprir as tarefas. O projeto Geocaçadores foi realizado de julho a novembro de 2013. Os alunos tiveram aulas teóricas e práticas a fim de explorar a ferramenta e aprender a utilizar os aplicativos, assim como as regras do geocaginhig.com. Em resumo, as etapas do piloto foram: Projeto Piloto (UFS e Parque da Sementeira): 1. Ensino dos métodos e geotecnologias 2. Prática tutoreada de Esconder e Procurar na UFS 3. Cuidados Ambientais: Respeito e segurança 4. Escondendo Tesouros em equipes 5. Caçando e Avaliando tesouros das equipes 6. Compartilhando a experiência no CODAP e nas Redes Sociais 7.

Pesquisa de avaliação do projeto de ensino.

6 Resultados e discussões Durante as práticas, os alunos estavam realmente empolgados e entraram no ritmo de aventura. Eles se mostraram interessados e interagiram demonstrando desejo de explorar mais o esporte.

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“Gostei muito do dinamismo do projeto, foi muito bom trabalhar em equipe. A ideia dos caches e seus tesouros foi bem criativo e divertido. Eu adorei o contato com o meio-ambiente e os possíveis lugares para se esconder os caches” Aluna C do 1°B.

Os alunos e o professor saíram com o GPS para esconder e buscar o geocache, eles conseguiram encontrar a maior parte dos tesouros, mas alguns foram removidos no processo por transeuntes. Quando se aproximaram de um tesouro com distancia menor que 10 metros, os alunos desligaram o GPS e começaram a procurar com entusiasmo muitas vezes chamando a atenção de passantes e interagindo sempre em equipe. O aprendizado e as habilidades desenvolvidas pelos alunos foram tabulados e quantificados numa ordem de um a cinco, sendo um, muito pouco, e cinco, muito bom. No processo de ensino-aprendizagem foi avaliado: trabalho em equipe, entendimento sobre cartografia, mapas e localização; respeitar o meio ambiente; utilizar o GPS; e noção de espaço (Figura 2). “O contato com as geotecnologias e com o geocaching instigou um maior envolvimento para desenvolver de forma ampla a criatividade quanto aos enigmas, nomes e locais para esconder o cache, possibilitando de certa forma dinamismo, e enxergar a necessidade de trabalho e diálogo em grupo como fundamental para um bom convívio, associando estas as práticas ligadas ao meio ambiente e a sua conservação”. Aluno B do 1°A.

Figura 2- Gráfico de avaliação do processo ensino-aprendizagem. Fonte e Elaboração: trabalho de campo; MALTA (2014).

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Os dados presentes na figura demonstram que o maior destaque dos alunos foi na sociabilização do projeto, no qual eles precisaram trabalhar em grupo para conquistar os seus objetivos. De modo geral, todos os itens avaliados foram considerados pelos alunos como muito bons no processo de aprendizagem, resultado que se repetiu na avaliação sobre o desenvolvimento de habilidades e competências. “Aprendi a utilizar coordenadas geográficas e o gps, de modo que em uma situação de necessidade eu saiba como me dar bem, por exemplo: se eu estiver perdida no meio da floresta amazônica e tiver um gps, eu poderei chegar à alguma cidade próxima e me salvar...... Enfim. Mais ou menos isso.” Aluna E do 1°B.

As habilidades e competências desenvolvidas e avaliadas pelos alunos foram: pesquisa e leitura; capacidade de utilizar diversas tecnologias; ser dinâmicos; trabalho em equipe; conhecer e aprender a utilizar novas tecnologias; executar tarefas utilizando a criatividade (Figura 3).

Figura 3- Gráfico de avaliação do desenvolvimento de habilidades. Fonte e Elaboração: trabalho de campo; MALTA, 2014. “Aprendi a utilizar as geotecnologias e ter noção da importância das mesmas, bem como a utilização do gps e mapas, implicando a aprendizagem em me situar no meio em que vivo através das coordenadas geográficas (latitude, longitude, etc). Conheci mais os locais onde as atividades foram desenvolvidas, além de conhecer aplicativos que podem me ajudar em outros aspectos da minha vida”. Aluno C do 1°A.

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Os destaques para as habilidades desenvolvidas foram a criatividade, usar as novas tecnologias, o trabalho em equipe e dinamismo. Nos resultados do desenvolvimento de habilidades, acompanhamos a tendência do anterior com cerca de 90% das respostas de avaliação positiva, ou seja, como bom ou muito bom.

7 Considerações finais A partir dos resultados apresentados observa-se que a utilização das GeoTICs nas práticas da comunidade escolar são excelentes ferramentas pedagógicas, pois estimulam a competitividade e a criatividade além da capacidade de incluir os trabalhos manuais e o contato com a natureza. A interação entre as novas geotecnologias, o esporte e o ensino são meios de potencializar o aprendizado para uma experiência além da sala de aula que estimule todos os sentidos dos alunos nas suas percepções e estímulos para a sensibilização socioambiental. Dessa maneira, cabe ao professor, em sua prática pedagógica, o desafio de ensinar a ciência geográfica de forma a estimular a curiosidade, fazendo com que o aluno seja um agente de seu processo de aprendizagem. O professor precisa desafiar seu aluno de modo que este se torne leitor crítico da sua realidade, um cidadão integrado ao mundo. Para isso, deverá promover o diálogo entre o conteúdo curricular (formal) e a vivência, a história e individualidade deste. Democratizar o acesso à tecnologia e auxiliar o nosso aluno na alfabetização digital é dever da comunidade escolar, mas focos de resistência ainda podem ser encontrados na maioria das escolas brasileiras, nas quais existem uma série de empecilhos estruturais e conflitos socioculturais que se configuram barreiras para a difusão dessas práticas, todavia, avançar no debate faz-se necessário. A comunidade escolar precisa incluir no processo pedagógico abordagens que sejam voltadas ao nosso tempo, dentro da integração espaço-tempotécnica do capitalismo informacional. A globalização trouxe em si a grande capacidade de manipulação e geração de dados, o caráter pragmático das

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análises e a flexibilidade do ambiente digital na produção de representações espaciais. Essas são as principais características das geotecnologias responsáveis pela sua popularização em todo mundo e nas salas de aula nos países desenvolvidos, sendo ainda um grande desafio na realidade brasileira a incorporação das geotecnologias no processo educativo.

Referências

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Grupo de Pesquisa em Geoecologia e Planejamento Territorial

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