Viver um Mundo Antigo: Textos de Arte e Território (2012-2008)

August 23, 2017 | Autor: Luís Gomes da Costa | Categoria: Rural Development, Cultural policies, Anthropology and Art, Contemporary Art and Ecology
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Ficha Técnica Título: Viver um Mundo Antigo: Textos de Arte e Território (2012-2008) Autor: Luís Gomes da Costa Revisão do Texto: Rui Gomes da Costa Desenho Gráfico: Luís Gomes da Costa Edição: Edições Nodar, Novembro 2012 Número de Catálogo: nodar.006 Formato: Print on Demand ISBN: 978-989-97205-3-4 Edições Nodar é uma marca editorial da Binaural - Associação Cultural de Nodar Binaural - Associação Cultural de Nodar Caixa Postal Nº 119 Nodar 3660-324 S. Martinho das Moitas Portugal Telefone: +351 232 723 160 Web: www.binauralmedia.org Email: [email protected] © 2012, Luís Gomes da Costa Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor

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À Manuela, companheira de arte e vida

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Luís Gomes da Costa

Viver um Mundo Antigo Textos de Arte e Território 2012-2008

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Índice #00 {NOTA PRÉVIA} * NOVEMBRO 2012 ...................................................................................9 #01 {INTRODUÇÃO} * NOVEMBRO 2012 ................................................................................. 11 #02 {TEXTO DE TESTEMUNHO AUDIOVISUAL PARA O PROJETO “SOUNDS OF EUROPE”} * NOVEMBRO 2012 ........................................................................................... 13 #03 {ENTREVISTA A LUÍS COSTA POR MÁRCIA CARVALHO PARA O JORNAL NOTÍCIAS DE LAFÕES} * OUTUBRO 2012 ....................................................................... 15 #04 {TEXTO PARA REVISTA LURA DA OFICINA, CENTRO CULTURAL VILA FLOR, GUIMARÃES} * AGOSTO 2012 ........................................................................................... 21 #05 {TEXTO PARA PROJETO “MAIS SOCIEDADE” DE PROPOSTAS SECTORIAIS PARA O FUTURO DE PORTUGAL} ................................................................................... 25 #06 {TEXTO PARA FESTIVAL SOM E ARQUITECTURA RURAL ORGANIZADO PELA BINAURAL/NODAR EM 2012} * ABRIL 2012 ...................................................................... 33 #07 {ENTREVISTA A LUÍS COSTA POR SANDRA VIEIRA JÜRGENS PARA A REVISTA ARQ-A} * FEVEREIRO 2012 ............................................................................... 39 #08 {PREFÁCIO DE LUÍS COSTA PARA O LIVRO “CONTOS DO XISTO” DE AURORA SIMÕES DE MATOS} * JANEIRO 2012............................................................................... 47 #09 {TEXTO PARA FESTIVAL PAIVASCAPES #1 ORGANIZADO PELA BINAURAL/NODAR EM 2011 } * OUTUBRO 2011 .............................................................. 49 #10 {APRESENTAÇÃO DO LIVRO “IMAGENS DA BEIRA-PAIVA” DE AURORA SIMÕES DE MATOS} * JULHO 2011 .................................................................................. 51 #11 {INTERVENÇÃO DE LUÍS COSTA NO CONGRESSO LUGARES DE CULTURA, SANTIAGO DE COMPOSTELA} * DEZEMBRO 2010 ........................................................ 55 #12 {ENTREVISTA A LUÍS COSTA POR MARISA MIRANDA PARA A REVISTA BOA UNIÃO DO TEATRO VIRIATO, VISEU} * FEVEREIRO 2009 ........................................... 67 #13 {ENTREVISTA A LUÍS COSTA POR DANIEL MELO PARA O JORNAL GAZETA DA BEIRA} * NOVEMBRO 2008 .......................................................................................... 77

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#00 {NOTA PRÉVIA} NOVEMBRO 2012 >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Os textos que se reúnem neste volume, resultam de estímulos e reptos vários, mas incorporam todos eles um fio condutor comum: a vontade irresistível de pensar o rural enquanto espaço de pensamento e de expressão pregnante, livre e autêntica. Ao longo dos anos, quase uma década, que temos dedicado a nossa vida à criatividade em articulação com paisagens e comunidades rurais de montanha, nos maciços portugueses da Gralheira, da serra do Montemuro, nos vales do Paiva e do Vouga, temos percebido que o mundo rural presta-se a simplificações perniciosas, motivadas a maioria delas por vontades mais ou menos claras de criação de um corpo de representações úteis para o desenvolvimento de iniciativas económicas. Estas representações, sendo legítimas, resumem-se a meia dúzia de variáveis: natureza, ar puro, desporto, descanso, gastronomia, ou artesanato, o que para nós revela uma manifesta falta de aprofundamento sobre as complexidades imensas do mundo rural. O pensamento e prática territorial através da criatividade

contemporânea, assente em artes exploratórias em contexto específico, tem sido o nosso modelo de intervenção na Binaural – Associação Cultural de Nodar, o qual, parecendo relativamente obscuro para alguns, tem para nós o mérito libertador de colocar a tónica num sentido absoluto de crítica, de inovação e de participação coletiva, seja com as comunidades artísticas, seja com os habitantes locais. Em paralelo, tentamos desde que regressámos ao nosso território, manter um diálogo franco com figuras da cultura local, respeitadas pela dedicação de décadas ao aprofundamento do conhecimento da memória das suas aldeias. É o caso da escritora e poetisa Aurora Simões de Matos, de quem tivemos o privilégio de escrever dois textos a propósito das suas duas obras mais recentes, ambos incluídos neste volume. Por último, há que dizer que também publicamos estes textos porque o trabalho quotidiano, com o seu quê de solitário, que acaba por estar associado à intervenção em contexto rural de montanha, compele-nos a manter laços fortes com o “mundo lá fora”, pois só com comunicação livre e inovadora os espaços periféricos conseguirão sobreviver no futuro próximo. Um bem-haja a todos os que poderão achar estes textos úteis. Luís Gomes da Costa Nodar, S. Pedro do Sul, Novembro 2012

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#01 {INTRODUÇÃO} NOVEMBRO 2012 >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Comecemos pois a desfiar o intrincado novelo dos impulsos e ansiedades que nos vão fazendo. Por exemplo, uma imagem e um som. Há um rosto, o rosto de Judas quando interpela Jesus enquanto este é unguentado por Betânia em “O Envagelho Segundo São Mateus” de Pier Paolo Pasolini. Um rosto complexo, marcado pela vida. Um olhar temeroso, em crise, que mostra em certo sentido que todos teremos qualquer coisa de Judas, que a linha que separa a graça da desgraça é mais ténue do que possamos pensar. Há um som: em “São Francisco de Assis, o bobo de Deus” de Roberto Rossellini, um solitário leproso caminha de noite no bosque, ouvindo-se os lentos chocalhos que leva pendurados para avisar ao longe que de um leproso se aproxima, enquanto um pássaro “franciscano” chilreia a sua canção noturna. Um som que evoca a profunda raíz antropológica e histórica da paisagem sonora de cada território, em cada tempo. De alguma forma, a expressão sensível deste olhar e deste escutar são estímulos que nos fazem

enquadrar o amor por um território como o nosso, as montanhas escarpadas, ora xistosas ora graníticas, do maciço da Gralheira em São Pedro do Sul. Esse amor por um território é sempre declinado em pessoas concretas, na sua história, nos seus problemas concretos de hoje, nas suas faces marcadas pelo tempo, nas suas contradições, nos seus apegos divinos, nas suas expressões criativas, nas teimosias sociais e por aí fora. É a necessidade absoluta de empatia com quem nos está vizinho, aqui nesta terra remota, que serve de impulso irresistível para os vários aspetos da nossa intervenção pública, sejam os relativos ao desenvolvimento de práticas criativas contemporâneas nas áreas da exploração sonora, sejam os ligados às várias iniciativas de desenvolvimento rural e promoção do território. São então os dois temas invocados no título, a arte e o território, que balizam todos os textos deste livro, enquadrando uma escala de sentidos que vai do pragmático ao puro sensível, sendo que tentamos que o ponteiro dessa escala nunca toque os extremos, que nenhum momento da vida justifique o abandono do brilho cintilante do sentir nem da raíz densa do agir.

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#02 {TEXTO DE TESTEMUNHO AUDIOVISUAL PARA O PROJETO “SOUNDS OF EUROPE”} NOVEMBRO 2012 >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> PICOLLO TEATRO SONORO O primeiro som foi uma batida, marcando a alba do que agora fazemos. Era em 2006. Acolhemos artesãos sonoros no nosso território. Podeis chamarlhe albergue sonoro rural. Cortesia, aceitação, curiosidade e serviço são as ferramentas do nosso labor. Não o som, não o som. O som pode ser um rastilho para uma amplificação expressiva. É um género de linguagem... íntima... subtil... contigente... específica linguagem. Mas há muitos outros tipos de linguagem para uma aproximação a um lugar.

E os que gostamos são os que propiciam uma comunicação sincera com os locais. Nesse caso necessitamos de abordagens sociais, antropológicas, económicas, religiosas e.... empatia, sacadas de empatia com a paisagem e as pessoas. O som não é suficiente, o som não é suficiente. É por isso que não queremos ser engolidos pela nova onda de inteligentes pesquisadores sonoros. É por isso que suspeitamos de mapas sonoros globalizados, onde cada som arrisca ser destacado, desenraizado do seu contexto. Cavamos significados... antigos e esquecidos significados do nosso lugar. Somos mineiros sonoros, lavradores sonoros, tecedeiros sonoros, carpinteiros sonoros, titereiros sonoros. Piccolo teatro sonoro. Local não global, local não global.

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#03 {ENTREVISTA A LUÍS COSTA DE MÁRCIA CARVALHO PARA O JORNAL NOTÍCIAS DE LAFÕES} OUTUBRO 2012 >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Como pode definir em poucas palavras o projeto da BinauralAssociação Cultural de Nodar? Posso dizer sinteticamente que a Binaural/Nodar é uma organização que, desde a sua fundação em finais de 2004 e mais especificamente desde que começou, em 2006, a sua intervenção na zona do maciço da Gralheira (concelho de São Pedro do Sul), tem procurado ativar processos de questionamento e de expressão dos sentidos possíveis para o mundo rural de hoje. A ativação desses processos é eminentemente criativa e crítica, ou seja funciona através da imaginação livre (no sentido de não ter uma utilidade imediata e concreta) e através de ferramentas e media provenientes das artes e dos modos de pensamento contemporâneos. Alguns poderão perguntar, mas porquê esta vossa insistência em processos e métodos contemporâneos nesta zona rural ainda tão tradicional? A

resposta é simples e objetiva: pensamos que as zonas rurais, em paralelo com a sua cultura extremamente rica sofrem, desde há décadas, de enquadramentos políticos e sociais extremamente fechados e anquilosados. Os atores, inclusive os atores com responsabilidades políticas, empresariais, etc., independentemente de serem formados ou não, são em muitos dos casos intrinsecamente avessos à mudança e à reflexão crítica. Sentimos esse fechamento no nosso quotidiano e diria mesmo que na nossa zona são poucos os que verdadeiramente estão preparados para os tempos incertos e abertos que trilharemos cada vez mais nas próximas décadas. Existe uma figura arquétipa que é a do o jovem de origens rurais mas envergonhadas, presunçoso e ignorante em doses abundantes e que julga que já é moderno por dar umas caminhadas na natureza ou por ter uma BTT ou uma mota na garagem, mas que no fundo é mais retrógrado e muito menos autêntico do que os seus pais ou avós. Conheço inúmeros exemplos deste personagem paradigmático, com os quais é extremamente difícil de conseguir algo verdadeiramente frutífero, pois são pessoas desconfiadas, que jogam à defesa e que não se revelam na sua integralidade. Resumindo, perante este contexto social que não é fácil e que é muitas vezes limitador, a nossa missão tem sido a de abrir o nosso território ao exterior através da arte e da criatividade. Sentimonos pois como intermediários territoriais, colocando em contacto

16 populações rurais de montanha com artistas e investigadores nacionais e estrangeiros, de forma a colocar o território na vanguarda internacional da criatividade contemporânea em contexto rural e despoletando em paralelo toda uma série de reflexões relevantes para pensarmos quem somos, quem fomos e o que queremos ser no futuro, aqui neste nosso cantinho rural de montanha.

Na sua opinião, e ao fim destes quase 10 anos de trabalho, quais as principais conquistas da Binaural/Nodar? Com alguma imodéstia digo que conseguimos três vitórias em outros tantos eixos de relacionamento da Binaural/Nodar: em primeiro lugar, num plano estritamente local, ao fim de termos acolhido na região mais de uma centena de artistas nas nossas residências artísticas, existe hoje uma grande naturalidade no acolhimento a estas pessoas nas dezenas de aldeias onde trabalhamos. Sabemos que uma razão de peso para essa naturalidade é o fato de nós sermos da região (e de termos o tempo suficiente de vida para ter conhecido muita gente), mas sentimos verdadeiramente que houve uma evolução no sentido de uma maior abertura: com a promoção que realizamos, com a participação de populações nos trabalhos de campo dos artistas, com a itinerância dos nossos eventos por muitas aldeias do concelho e fora dele (já efetuamos apresentações nos concelhos

vizinhos de Arouca, Castro Daire, Vila Nova de Paiva, Moimenta da Beira etc.), gradualmente alguma resistência ou receio foi-se dissipando, de tal forma que hoje já nos perguntam: porque é que não vêm artistas à nossa aldeia? Ou seja, as aldeias ganham reputação local por nela terem artistas a trabalhar e a interagir com a paisagem e com os habitantes. Num segundo plano, obtivemos uma vitória ao nível da relação institucional com as entidades locais, particularmente com o município de São Pedro do Sul e de alguns concelhos vizinhos, mas também com as escolas públicas e profissionais, com a imprensa e com outras iniciativas de desenvolvimento local. Confesso que nem sempre estes processos institucionais locais têm sido fáceis: houve muitos avanços mas alguns recuos e o grau de aceitação que sentimos tem dependido muito de quem são interlocutores que temos encontrado. Em São Pedro do Sul, ao nível do governo municipal tenho que salientar o reconhecimento que sentimos hoje por parte do presidente e vice-presidente da autarquia, respetivamente os Dr. António Carlos Figueiredo e Prof. Adriano Azevedo, duas pessoas que têm uma visão própria (embora nem sempre coincidente) para o desenvolvimento do nosso território e que têm acrescentado qualidade ao nível de intervenção pública na região, independentemente de apreciações mais especificamente político-partidárias. Ainda ao nível local, estamos muito gratos ao

17 carinho que temos sentido na freguesia de Sul (que curiosamente será a freguesia de que fará parte a aldeia de Nodar após a reforma administrativa em curso) particularmente do empresário Dr. José Nicolau e do Dr. José Pedro Maurício, presidente da junta de freguesia de Sul. Para além das iniciativas já desenvolvidas em colaboração com a referida freguesia, foi graças aos dois que hoje temos um espaço de trabalho no centro de Sul, nas antigas instalações dos correios. Este espaço é para nós muito importante, pela proximidade que passamos a ter da serra e dos seus interlocutores e que foi dotado de condições em tempo recorde, no espaço de uma semana, o que evidencia uma vontade e um pragmatismo raros. Finalmente, em terceiro lugar, num plano supra-regional, temos que salientar o respeito crescente que sentimos por parte das comunidades artísticas e científicas, nacionais e internacionais, de tal forma que, por um lado, recebemos anualmente mais de 150 candidaturas de todo o mundo de artistas que querem vir às nossas residências artísticas (em 7 anos de residências já recebemos mais de 1.000 candidaturas de 45 países, o que é impressionante para um projeto em espaço rural) e por outro, somos regularmente convidados por universidades para darmos e orientarmos conferências, oficinas, residências artísticas etc. A nível nacional por exemplo temos parcerias em curso ou relações de grande proximidade com os departamentos de Ciências

Sociais e de Comunicação e Artes da Universidade de Aveiro, com a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, com o Curso de Arquitectura da Universidade Católica Portuguesa em Viseu e com o Departamento de Ciências da Computação da Universidade de Coimbra.

Como estruturam as vossas atividades? Poderia descrever os diversos tipos de iniciativas, de públicos e quais os princípios de atuação que seguem? Pensamos a nossa atividade como uma matriz, como um entrecruzamento entre tipologias de atividade e diferentes públicosalvo, de forma a termos em cada ano uma grande diversidade de intervenção e de podermos em paralelo comunicar com gente de diversas proveniências geográficas, sociais ou económicas. Concretizando, desenvolvemos as seguintes tipologias de atividade: residências artísticas, festivais de arte e território, documentação antropológica e paisagística, festivais tradicionais, projetos educativos e workshops técnicos em paisagens sonoras e composição musical eletroacústica, conferências universitárias, exposições de arte, publicações de CDs e livros, projetos para a web e um programa semanal na rádio Lafões, intitulado “Tramontana”, de promoção do património oral, musical e de paisagens sonoras. Por outro lado, identificamos os seguintes tipos de públicos: públicos locais, públicos de arte contemporânea, públicos ligados a

18 culturas tradicionais, públicos globais, públicos universitários e comunidades artísticas. E de forma a assegurar a referida articulação entre atividades e públicos, atuamos de acordo com os seguintes princípios de atuação: Ligar cultura tradicional à cultura contemporânea, de forma orgânica, enquanto formas complementares de comunicar com o território. Ligar local e global através, por um lado, de uma imersão no território, com os seus atores e dinâmicas quotidianas e, por outro lado, de um posicionamento global no contacto com as comunidades artísticas, universitárias etc., e da comunicação em inglês de todos os conteúdos produzidos. Dirigir parte dos projetos para o próprio território (trabalho de campo artístico, documentação antropológica, projetos educativos, rádio), adequando a linguagem à compreensão dos públicos locais com o pressuposto de que a linguagem funciona por camadas de complexidade crescente. Trabalhar com a memória da própria atividade, não esquecendo projetos anteriores, criando novos trabalhos com base em documentação anterior, integrando a documentação da atividade na organização do arquivo do território. E por último, encarar a criação artística como manifestação antropológica da ligação entre o exterior e o território: estimulando novas visões, novas escutas, novas ideias.

Quais os projetos principais da Binaural/Nodar para o próximo ano de 2013? Em palavras resumidas, o próximo ano terá duas grandes linhas de intervenção: ao nível do programa do Nodar Rural Art Lab (o nosso programa de residências artísticas) iremos dedicar todo o ano ao tema do património religioso nas nossas aldeias serranas, particularmente ao património sonoro e oral e vamos fazê-lo com artistas que já escolhemos e que são provenientes dos EUA, Inglaterra, Alemanha, Uruguai e Portugal e em articulação com a Diocese de Viseu, o que para nós é de extrema importância, já que queremos o mais possível despertar um debate profícuo sobre as novas expressões para a arte sacra, incluindo a arte multimédia, e fazê-lo em diálogo franco com a instituição eclesiástica. A segunda linha de intervenção será a do Arquivo da Memória de Lafões, dos Vales do Paiva e do Vouga, um projeto financiado pela União Europeia e integrado numa rede europeia de arquivos da memória, o qual se iniciou em Maio e se prolongará até ao final do próximo ano. Este é um projeto de documentação e catalogação de múltiplos aspetos da memória do nosso território que consideramos ser crítico, neste momento de transformação , em que aspetos ancestrais da cultura rural estão a desaparecer à frente dos nossos olhos. Em dezembro de 2013 esperamos de ter mais de 500 registos sonoros e videográficos arquivados e acessíveis à população e a todos os

19 interessados em aprofundar o conhecimento do território. O próximo ano é um ano eleitoral ao nível autárquico. Quais pensa serem os principais desafios para o nosso território a nível dos vários sectores de desenvolvimento? Agradeço a pergunta, já que considero existir uma certa falta de envolvimento de muitos na discussão pública sobre as alternativas de desenvolvimento para territórios rurais como o nosso. Considero que, ao liderar um projeto cultural como o da Binaural/Nodar, acabo por estar envolvido em processos que implicam um questionamento profundo dos caminhos de transformação. Se não vejamos: sendo o nosso foco de intervenção uma relação entre território, memória, inovação, cultura e educação, desde logo esse posicionamento multidisciplinar faz-nos estar envolvidos com os principais domínios do desenvolvimento rural. Assim sendo, não posso nem quero colocar-me de fora da necessária discussão programática e até do envolvimento em processos de foro mais político, neste momento tão crítico para o nosso país. Concretizando a resposta a sua pergunta, Em termos gerais, penso que os próximos tempos exigem o aprofundamento de políticas de sustentabilidade mais do que grandes investimentos. Dito isto, posso elencar algumas linhas orientadoras que defendo para a política local do nosso território: a) Dar um sentido de abertura ao

exterior: internacionalizar a ação municipal (ainda tão paroquial), promover o concelho em novos mercados, ter gente que saiba línguas, colaborar com universidades, ser inovador nas indústrias a acolher. b) Implementar um sentido de articulação territorial (com os concelhos vizinhos, mas também com zonas rurais de outros países), promovendo uma maior circulação e de promoção recíproca de projetos, ideias e pessoas. c) Otimizar a utilização dos recursos humanos do Município (muitas vezes com períodos mortos de atividade ou com uma produtividade longe de ser a ideal, como sabemos) em projetos e iniciativas comunitárias, associativas, das juntas de freguesia. Pensar nesses recursos humanos como ativos não aproveitados na íntegra e como tal passíveis de promover a ação do município em novos domínios, e sem mais dinheiro. d) Promover o nosso riquíssimo património material e imaterial local. Tenho que o dizer, mas São Pedro do Sul é dos concelhos da região que pior promove o seu rico património, que muitas vezes parece ter vergonha da cultura autêntica do povo, que se reduz à cidade de São Pedro do Sul, achando que a serra é território de gente sem formação. Quando é exatamente o inverso, é na serra que existe um diamante por lapidar, o mesmo que a Binaural/Nodar tem trabalhado desde a sua fundação. e) Promover a participação coletiva na deteção de riscos ambientais e de incêndio e a resolução da poluição do Vouga. f) Colocar um foco bem

20 nítido na solidariedade com os mais desfavorecidos. Solidariedade que pode ser desenvolvida muito com o contributo da juventude, com projetos em rede, com as tecnologias de comunicação, no fundo sem mais dinheiro.

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#04 {TEXTO PARA REVISTA LURA DA OFICINA | CENTRO CULTURAL VILA FLOR, GUIMARÃES} AGOSTO 2012 >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> A INCOMODIDADE DA COMUNIDADE: APROXIMAÇÕES CRÍTICAS AO TRABALHO CRIATIVO COM COMUNIDADES 0. Um prólogo “Eu sou uma força do passado. Apenas na tradição está o meu amor. Venho das ruínas, das igrejas, dos retábulos, das aldeias abandonadas (...) onde viviam os meus irmãos. (...)” (Pier Paolo Pasolini, “Poesie mondane,” Bestemmia 619) O que se segue são reflexões pessoais que não pretendem servir de cartilha a ninguém. Partem apenas de ansiedades crescentes com muito do que vejo, ouço e leio sobre arte comunitária, inclusive (há que dizê-lo com frontalidade) com projetos acolhidos no nosso Nodar Rural Art Lab da Binaural/Nodar. A fragilidade que detecto em muito desses

“projetos” é provavelmente apenas minha. Não obstante, sinto ser útil dizer porque penso o que penso, nem que seja para ajudar a responder àqueles que nos perguntam: como têm paciência para trabalhar arte, som e média no vosso contexto rural, sem se cansarem, sem quererem debandar na senda de outro Graal?

1. Comunidade: um conceito que se vai tornando incómodo (pour moi). Então como é? Fazeis das vossas relações sociais palimpsestos incessantes, nuvens de átomos saltitantes (e incertos, como postulou Heisenberg), enxames de indiferença sorridente (tchim tchim) em que os arcaicos sentidos da comunidade (família, trabalho, necessidade, território) foram sendo progressivamente obnubilados, e agora quereis angelicamente redescobrir aqueles perseverantes marginais (por estarem nas margens do foco, seja nas favelas, nos bairros históricos, nas aldeias rurais, nos orfanatos, nos asilos de idosos, nas fábricas), que vivem a necessidade quotidiana, que não esquecem o(s) que já foram ou que se desviam da atenção inusitada. Tendes toda a legitimidade, claro, mas às vezes estranho o interesse. Porque, como nos têm dito (Toni Negri, Giorgio Agamben, Jean-Luc Nancy, Maurice Blanchot, ou mesmo Pier Paolo Pasolini), vivemos uma “crise do comum”. O comum é hoje fundamentalmente espectral pois feito de formas espetaculares, aceleradas, unitárias

22 e efémeras. E então o risco é precisamente o de embarcardes com os vossos projetos de criação em ligação com comunidades em apenas mais um exercício de cinismo mediático, ao saberdes que para vós é apenas mais um projeto, que ajudará à vossa legitimação artística/social/universitária, ao pressupordes estabilidade em comunidades que não o são (estou a fazer um projeto com a comunidade moldava em Alfama. Não é fantástico?), ao trabalhardes com clichés bem identificados desde o pós segunda guerra mundial (“os clichés da relação, os clichés do amor, os clichés do povo, os clichés da política ou da revolução, os clichés daquilo que nos liga ao mundo” como refere Peter Pál Pelbart a propósito de Deleuze). É pois importante termos noção exata do que queremos (qual a necessidade, para mim e para a comunidade, deste projeto? Em que riscos incorrerei? Como obviar a esses riscos? O que darei em retorno?) e de como o queremos fazer (rapidez vs. lentidão, discrição vs. exposição, extensão vs. intensidade), antes de entrarmos numa comunidade para propor e desenvolver projetos artísticos/criativos.

2. (Para mim) não há projeto viável em comunidade sem vida em comunidade Vivemos desde há sete anos (como o tempo passa) num contexto bem preciso: o mundo rural de montanha (Maciço da Gralheira,

São Pedro do Sul). Fizemos um caminho de retorno, difícil mas necessário, às origens, como forma (também) de limpar muito do excesso acumulado em vivências urbanas: desejos tão intensos quanto supérfluos, sociabilizações tão aceleradas quanto efémeras, leituras tão densas quanto inócuas, opiniões tão veementes quanto transitórias. Foi também este exercício de autocrítica (o que estou aqui a fazer?) que tornou possível (sustentável como agora se diz) escolher uma nova Weltanschauung (cosmovisão?): pensar mais em profundidade e menos em extensão, sair de casa com vontade de estar com o outro e não para me desviar do outro (com medo de tropeçar), aceitar o semelhante na sua totalidade (seja agricultor, seja o que for), renovar o sentido perdido da família (descobrindo por exemplo a árvore genealógica), aceitar a religião enquanto mediação fundamental entre espaço, comunidade(s) e devir, deixar o tempo correr lentamente para aceitar muito do que vem até nós (em vez de esgravatar ansiosamente cada “janela de oportunidade”). Afinal, no fim de tudo estaremos mortos, não é? E só assim, depois de limpar a vida individual, houve coragem para construir alicerces de trabalho criativo em comunidades específicas. Só o estar, viver um território na íntegra nas pregas do tempo, seja ele Kronos (o tempo cronológico sequencial, o que nos dá noção do que passa irremediavelmente, como a morte dos entes queridos), Kairós (O tempo de Deus, ou o tempo

23 cósmico, ou, porque não, o tempo da arte) ou ainda Aión (o tempo da vida que não morre, como o das estações do ano), conferiu suficiente densidade a essa vivência para se transformar em ações concretas, prenhes e necessárias com pessoas reais (ou seja com nome, com história que conhecemos e que acompanhamos).

3. O trabalho em comunidade como desejo de viver narrativas perdidas Que não nos desenganemos: Nem tudo são rosas neste nosso reino rural. Pelo fato de na Binaural/Nodar simultaneamente desenvolvermos criações artísticas próprias que são fundadas na permanência e vivência quotidiana junto com as comunidades locais e, por outro, de acolhermos criações de artistas residentes que não conhecem o território de antemão e que trabalham na zona apenas por algumas semanas, colocamo-nos bastas vezes na posição difícil (esquizofrénica?) de acolhermos abordagens que precisamente tentamos evitar. Como lidamos então com esta dualidade metodológica? Desde logo, há que perceber que o artista representa também um feixe de comunidades e, como tal, chega ao território com a sua carga de representações sociais: de origem, de prática, de ideologia, de valores, de aceitação da diferença, etc. Como tal, tivemos que perceber que muitos dos que querem criar em Nodar, fazem-no também por um desejo de viverem

uma narrativa perdida (no caso, uma narrativa rural com comunidades de montanha prenhes de uma cultura arcaica em comunhão com uma paisagem imaculada, o que só é verdade em parte, claro), tendo em conta precisamente algum mal-estar que evidenciam por viverem vidas incessantes feitas de projetos, viagens, vida social e cultural intensa, sem tempo para sedimentar ideias e caminhos. Perante a compreensão recíproca e honesta das ansiedades e representações em jogo, atuamos no terreno com os artistas de forma permanente, mediando o trabalho de campo, sugerindo abordagens, tentando evitar equívocos, promovendo atitudes sensatas (de parte a parte), desmistificando a necessidade de compreensão do outro (os malentendidos são quase sempre mais prenhes em termos criativos do que a plácida aceitação), falando sempre com todos, exigindo sempre o encontro/confronto final do artista com a comunidade documentada em apresentações públicas que são sempre organizadas na região.

4. O artista na era da hipersensibilidade social Em jeito de conclusão, vamos compreendendo as dificuldades crescentes de desenvolver/acolher projetos artísticos em articulação com comunidades num contexto cada vez mais socialmente correto, em que a adesão a causas sociais ou ecológicas é tão rapidamente consumida quanto qualquer outro

24 bem, serviço ou sonho de sucesso. Como consequência, são muitos os jovens criadores saídos das universidades de artes os quais, sem a densidade desejada, se deixam seduzir por ideias formatadas e as aplicam à primeira comunidade que lhes aparece pela frente. Como gosto de dizer: quando um conceito ético chega à publicidade de uma empresa, há que abandoná-lo sem contemplação e substituí-lo por outros mais densos, mais complexos, menos sujeitos a simplificações e inclusive a utilizações politicas e mercantis. É que o hoje acontece com conceitos com os comunidade, sustentabilidade, solidariedade, biodiversidade, responsabilidade social etc. conceitos que se afastaram irremediavelmente dos seus impulsos de base, sendo por exemplo utilizados pelas empresas, pelos municípios para se tentarem diferenciar dos demais e, globalmente, pela sociedade contemporânea para criar um “manto” moralista que de alguma forma a exonere de responsabilidades quotidianas mais árduas de gerir. Tentamos obviar a estes riscos com escolhas temáticas que propomos para as obras a criar (para que, de alguma forma, sejam limitadas as sobre-simplificações das criações e seja promovido o contato com realidades escondidas da vida quotidiana), e com uma análise rigorosa prévia do percurso artístico e teórico do artista a acolher. Não se trata tanto uma questão de valorizar a extensão de um currículo criativo, mas mais uma busca de ângulos particulares

de temas, de “pregas” estéticas que antecipem uma intervenção exigente na relação com o território e com os processos criativos. Sendo certo que não existem garantias num terreno (o da arte socialmente empenhada) tanto mais popular quanto instável, penso no fundo que há pelo menos um nível de exigência que assegura alguma validade no trabalho criativo comunitário: a comunicação desassombrada e incessante com a pregnância autêntica do real, nos seus detalhes mais ínfimos e mesmo nas suas contradições e impossibilidades.

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#05 {TEXTO PARA PROJETO “MAIS SOCIEDADE” DE PROPOSTAS SECTORIAIS PARA O FUTURO DE PORTUGAL} ABRIL 2012 >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> A CRIATIVIDADE CULTURAL AO SERVIÇO DAS COMUNIDADES

I. Diagnóstico de partida A cultura é um sector de atividade considerado por muitos como incontornavelmente deficitário e dependente de ajudas financeiras do Estado. No entanto, a visão corrente de que o sector cultural se insere no conjunto mais alargado e emergente das indústrias criativas, leva muitos a referir que afinal existem oportunidades de sustentabilidade para o sector, tendo em conta a importância dos “conteúdos”, das “experiências” e do “ócio” no mundo global pós-industrial e maciçamente tecnológico. Esta visão, sendo válida em linhas gerais, não pode fazer esquecer o papel do Estado na defesa do património e na promoção de uma

dinâmica cultural forte e inovadora, tendo em conta nomeadamente os impactos críticos noutros sectores como a educação e o turismo. Em simultâneo é importante não esquecer a dinâmica crescente das muitas organizações culturais existentes de norte a sul do país na criação artística e na produção, acolhimento e promoção de eventos culturais de qualidade. Esta dinâmica faz crer que a eventual crise do sector não se relaciona com a capacidade criativa dos agentes culturais nacionais. Não obstante este dinamismo crescente dos agentes culturais, existem áreas artísticas que vivem um cenário de crise, a que não são alheios os seus elevados custos de produção. Os exemplos mais óbvios são o cinema e o teatro. Esta situação compara com outras áreas artísticas emergentes (performance, criações vídeo, dança, música, etc.) dotadas de grande flexibilidade operacional e tecnológica, o que se reflete em obras e espetáculos mais baratos e com capacidade de serem apresentados em múltiplos locais (salas de espetáculo, bibliotecas, galerias, espaço público, etc.). Nos últimos anos, para além de uma certa normalização processual dos apoios financeiros concedidos pelo Ministério da Cultura às diversas áreas artísticas, não existiu uma estratégia forte que desfizesse o nó górdio deste sector: apesar de percentualmente a cultura apenas representar cerca de 0.4% do Orçamento do Estado

26 (sendo que a componente de apoios representa menos de 10% do orçamento do sector), existem pressões de largas franjas da sociedade para que exista uma redução ainda maior dessa percentagem, tendo em conta a ideia de que muitos dos projetos culturais nacionais são demasiado elitistas ou “intelectuais”, os públicos escasseiam (o caso evidente é o do cinema português) e o dinheiro dos contribuintes é gasto sem critério ou com critérios que o Português “médio” não entende. Existem algumas vozes que advogam a eliminação ou redução drástica dos apoios financeiros a estruturas de criação e programação cultural, contrapondo que o orçamento do sector deve ser gasto fundamentalmente na defesa e dinamização do património construído, na promoção da língua e da leitura e em medidas de fomento da vertente empresarial do sector, ou seja das as indústrias culturais. Por outro lado, na última década assistiu-se a um forte investimento na construção de novos equipamentos culturais um pouco por todo o país, a maioria com uma forte componente de financiamento comunitário, no entanto, sem que tenha havido um esforço sério na promoção de capacidades de programação e dinamização cultural por parte das autarquias. A triste realidade é que muitos dos modernos equipamentos culturais fora dos grandes centros urbanos estão

praticamente vazios, com programação escassa e/ou de fraca qualidade artística. A falta de meios financeiros é apontada como a razão primeira para este cenário, no entanto fica a ideia que o papel dos agentes e programadores culturais de qualidade existentes no território não tem sido suficiente promovido, o que é por ventura fruto de uma tradição municipalista existente em Portugal que ainda estabelece barreiras no acolhimento das dinâmicas e ideias provenientes da sociedade civil. Fica também a impressão de que muitos dos esforços de décadas na promoção do Mecenato cultural como forma privilegiada de financiamento da cultura, não obtiveram os resultados desejados, sendo que são essencialmente algumas multinacionais ou grandes grupos económicos que apostam por esta via, normalmente apoiando eventos ou instituições culturais de “prestígio” em Lisboa e Porto, não tanto a disseminação da cultura pelo território. Por último, há que referir que é extremamente difícil obter dados estatísticos detalhados e atualizados sobre o sector, de forma a ser possível a avaliação do impacto das várias políticas que têm sido seguidas. O Observatório para as Atividades Culturais tem neste domínio responsabilidades evidentes.

II. Objectivos a atingir por uma nova política cultural

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Propõem-se que a missão de uma política cultural seja a defesa da coesão territorial e social, a promoção turística e a preservação da memória do país. Tendo em conta esta missão, proponho uma série de objectivos orientadores para as politicas do sector cultural: 1 – Disseminar o pensamento e ação criativos no território e na sociedade, com especial incidência nas zonas geográficas ou grupos sociais periféricos (pobres ou excluídos, zonas rurais ou suburbanas, etc.), nas crianças, nos jovens e nos mais idosos. A criatividade deve ser cada vez mais entendida como um elemento útil para a felicidade e plenitude do indivíduo, aumentando a capacidade de entender e sentir o “eu”, os outros e o mundo em que vivemos. Particularmente, num contexto de crise como o atual, o papel da cultura é fundamental para a promoção de uma vida mais rica intelectualmente, mesmo que mais difícil em termos materiais. 2 – Potenciar o enquadramento tecnológico existente para a inovação cultural, ajudando a colocar os projetos culturais nacionais (de criação artística, de documentação, de edição) num novo patamar de excelência e de contemporaneidade. 3 – Dotar os equipamentos culturais existentes no país de uma programação coerente com o tipo de espaços e com o

enquadramento sociológico de cada região, que seja rigorosa em termos financeiros. 4 – Incorporar princípios crescentes de viabilidade financeira na apreciação dos projetos culturais e de preservação do património e ajudar os agentes culturais a encontrar fontes de financiamento complementares às provenientes do Orçamento de Estado. 5 – Promover uma cultura de urgência e de responsabilidade colectiva na preservação da memória, seja a memória do país como também a memória das pequenas comunidades, das pessoas e famílias, através de projetos disseminados no território e não tanto centralizados em grandes instituições. Portugal tem estado a assistir nas últimas décadas a profundas transformações sociais e nomeadamente os últimos guardiões da memória da primeira metade do séc. XX vão paulatinamente desaparecendo. 6 – Articular a estratégia cultural e a estratégia turística do país. A cultura constitui uma das razões principais para a tomada de decisões ao nível da escolha de destinos turísticos. Uma programação cultural rica, diversificada em termos das áreas artísticas, disseminada no território, com mecanismos de promoção coerentes e articulados com as regiões de turismo, constitui um inegável factor de suporte ao desenvolvimento

28 económico. Ou seja, mesmo que as atividades culturais possam não ser lucrativas em si mesmas, o seu valor intrínseco é muito superior se estiverem articuladas com a estratégia turística de cada região. Naturalmente que deverão acima de tudo ser apoiadas as iniciativas culturais que se relacionem diretamente com o território, as suas paisagens, monumentos e história, de forma a que a experiência sensorial do público/turista saia enriquecida.

III. Eixos estratégicos e medidas propostas Definem-se cinco eixos de intervenção, com indicação em cada caso de algumas medidas concretas a tomar: 1 – Memória: Um desígnio nacional a) Criar o Portal Nacional da Memória que agregue de forma participada (seguindo os princípios da Wikipédia) conteúdos audiovisuais relativos à memória do país, de cada região, comunidade, grupo profissional, social, etc. Criar e disseminar princípios de catalogação de material audiovisual que possam ser assumidos por todos os interessados em recolher, arquivar e/ou difundir componentes da memória nacional. Desta forma a recolha da memória será muito mais célere, mais personalizada, menos enviesada e menos onerosa do que se for feita exclusivamente por instituições centralizadas do Estado.

b) Apoiar financeiramente projetos regionais de preservação da memória (nomeadamente audiovisual) – da responsabilidade de autarquias, associações e empresas locais. c) Criar a figura do Patrono de cada elemento do património histórico construído, de forma a que sejam diversificadas as fontes de financiamento para a sua reabilitação, manutenção ou utilização dos milhares de edifícios históricos de interesse público existentes um pouco por todo o país. O patrono investe financeiramente na preservação do património mas tem a notoriedade social correspondente. d) Privilegiar, em termos de apoios financeiros do Estado, projetos de criação artística que trabalhem temas específicos da memória do território em que se inserem. Não se propõe a criação de um apoio específico adicional, mas sim ajustar critérios de seriação dos apoios já existentes.

29 2 – Educação Cultural: um direito de todos a) Estabelecer mecanismos simplificados de certificação das organizações culturais com projetos educativos, conferindo maior transparência e rigor à gestão dos mesmos. b) Facilitar a participação de organizações culturais a atuar no território na gestão de projetos de ensino artístico extracurricular nas escolas básicas do estado, como forma de reforçar a relação dessas organizações com a comunidade educativa e de mitigar os efeitos da crise em muitas das organizações culturais. c) Criar uma bolsa online de projetos educativos culturais, em que as escolas/IPSS e os potenciais prestadores dos serviços possam encontrar as respectivas necessidades com celeridade e transparência. d) Criar um projeto de eBooks fundamentais da história e cultura Portuguesa, a serem distribuídos gratuitamente pelas escolas, bibliotecas e a todos os alunos aos quais foram atribuídos computadores Magalhães.

3 – Investigação criativa de base tecnológica e científica a) Lançar um programa de projetos multidisciplinares sobre aspectos do território (por exemplo em colaboração com áreas das ciências sociais, arquitetura, etc.) em que participem agentes

culturais e universidades, ajudando a promover junto dos habitantes uma cultura de promoção da ciência e da investigação e o papel da cultura na ligação entre áreas científicas diversas. b) Fomentar através de um programa integrado com diversas universidades e o Ministério da Cultura, a utilização de protótipos tecnológicos em projetos de criação artística, como forma de difusão da investigação científica tecnológica feita em Portugal. c) Fomentar a concepção de projetos transversais de I+D que liguem cultura, design, gastronomia, artesanato, turismo, etc. e que ajudem a criar valor a produtos e serviços nacionais, aumentando a capacidade de exportação dos mesmos. O Estado (por exemplo através das Direções Regionais de Cultura) deve assumir o papel de dinamizar os contactos entre entidades que muitas das vezes não se conhecem por atuarem em sectores diferentes.

4 – Financiamento à cultura: um novo paradigma precisa-se a) Assegurar continuidade legislativa no sistema de apoios às artes e ao cinema e aumentar os prazos de apoio estrutural, de forma a facilitar a gestão de expectativas do sector e de não criar “ruído” adicional e desnecessário, num contexto atual já de si exigente e complexo.

30 b) Reduzir gradualmente os montantes de apoio financeiro do Ministério da Cultura a atribuir às instituições com orçamentos mais elevados (nomeadamente aquelas sob gestão direta do Estado e/ou com uma proporção mais elevada de custos de estrutura), de forma a apoiar um maior número de instituições e criadores, nomeadamente aquelas que promovam a programação regular em equipamentos culturais de zonas desfavorecidas. No fundo propõem-se uma lógica semelhante à que privilegia o apoio às PMEs por contraposição ao financiamento do ineficiente sector empresarial do Estado. c) Criar Fundo Empresarial de Mecenato Cultural, através do qual as médias e grandes empresas a operar em Portugal possam cofinanciar sob o patrocínio do Ministério da Cultura os criadores e organizações culturais com melhores classificações nas candidaturas a apoios financeiros do Estado. Desta forma, instituições culturais mais pequenas mas de qualidade reconhecida podem beneficiar de uma fonte de financiamento até aqui quase exclusivamente orientada para os grandes projetos ou eventos culturais. d) Reduzir o montante de apoio máximo por obra ao cinema português, área artística com um rácio de custos por espectador mais elevado. Os apoios devem incidir cada vez mais nas primeiras obras de realizadores emergentes e no cinema documental (pela qualidade do documentarismo

nacional e pela sua implicação em termos de construção da memória do país). A produção cinematográfica nacional de realizadores consagrados deve ser orientada para coproduções Europeias ou para projetos viáveis em termos de público e/ou de distribuição em DVD, televisões, etc. e) Instituir uma cultura de rigor e de mérito através, por exemplo, da publicitação na Imprensa dos resultados dos concursos de apoios à criação artística, da criação do estatuto dos profissionais do sector cultural e da criação de um prémio anual de boas práticas na gestão de organizações culturais em cada região e área artística. f) Criar medidas que fomentem o empreendedorismo cultural, como uma bolsa de ideias culturais que possam ser aproveitadas por empreendedores e a promoção do “fund raising” internacional de projetos culturais de valor (seguindo por exemplo a metodologia de “fund raising” disseminado de websites como o “Kickstarter”) . g) Incluir o sector do livro no conjunto das áreas artísticas a serem apoiadas pelo Estado, nomeadamente obras que explorem novos caminhos tecnológicos (livros interativos, eBooks, etc., áudio-livros, etc.).

5 – Cultura, turismo e a promoção dos territórios

31 a) Fomentar um diálogo regular entre as Agências Regionais de Promoção Turística e os agentes culturais de cada região, no sentido de estes conceberem projetos articulados com os objectivos de promoção territorial definidos. b) Alocar fundos do QREN para a dinamização dos territórios a projetos culturais propostos pelas estruturas de criação e de programação artística existentes em cada região. Fomentar uma cultura de transparência na gestão destes fundos, obrigando por exemplo as Câmaras Municipais a convocar os agentes culturais do território para colaborar e participar em projetos financiados. c) Criar um programa de dinamização dos monumentos históricos de cada região, através de mecanismos de facilitação da autorização de realização de eventos ou ações artísticas no interior desses monumentos (por exemplo por associações culturais), aumentando assim a sua notoriedade para o público em geral. d) Programar anualmente um evento cultural / turístico de grande visibilidade em cada Distrito que seja um agregador do património material e imaterial da região e dos projetos culturais de valor existentes em cada território.

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#06 {TEXTO PARA FESTIVAL SOM E ARQUITECTURA RURAL ORGANIZADO PELA BINAURAL/NODAR} ABRIL 2012 >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> AVENTURAS DE UMA RESIDÊNCIA ARTÍSTICA EM ESPAÇO RURAL: REFLEXÕES EM TORNO DA (F)UTILIDADE DE UM CONCEITO Quando por volta de 2004 começou a germinar em nós um possível modelo de retorno à nossa aldeia de Nodar (situada no concelho de São Pedro do Sul, na fronteira com o concelho de Castro Daire, ambos no distrito de Viseu), recanto quase paradisíaco à beira-Paiva onde tantos sonhos, memórias, vozes e rugas passaram pelos nossos olhos e corpos de infância e juventude, a equação das vontades possíveis começou a reduzir o seu número de variáveis até que chegámos em 2006 a um conceito quase milagroso: pois comecemos um programa regular de residências artísticas. Temos à disposição uma casa recémconstruída seguindo escrupulosamente a arquitectura tradicional de xisto, com condições de acolhimento e

trabalho até um máximo de seis pessoas, casa essa que não tinha uso contínuo. E mais pensámos: façamo-lo de modo a que quem venha se exponha ao território, façamos de modo a que a partir de Nodar se imanem feixes de criatividade, inovação e de questionamento que ajudem ao magma de ideias de que este território montanhoso do Maciço da Gralheira tanto necessita. Este nosso modelo de intervenção criativa rapidamente se tornou exequível, a partir do momento que o Estado, através do exMinistério da Cultura (atual Secretaria de Estado da Cultura) decidiu apoiar regularmente o Centro de Residências Artísticas de Nodar, dando-nos os instrumentos financeiros para suportar toda a logística (do corpo e da mente) inerente ao acolhimento e acompanhamento de cerca de quinze artistas por ano, da Primavera ao Outono. A casa começou a ganhar vida feita da acumulação incessante de experiências e de personalidades (umas mais fáceis do que outras é certo) oriundas dos quatro cantos do mundo. A casa ia sendo reconfigurada sempre que necessário, uma cama ali, uma mesa de trabalho acolá, muda-se aquele sofá, improvisa-se um estúdio de gravação na arrecadação, monta-se uma longa mesa de refeições no terraço, sempre com um enorme sentido de flexibilidade e de adaptação às circunstâncias, que são também uma marca vincada do modo de vida destas aldeias.

34 A casa de Nodar começa a partir de 2008 a tornar-se razoavelmente conhecida depois da visita de televisões e jornais nacionais… com o tempo, cada vez mais gente nos procurava, batia à nossa porta, tentando perceber o segredo, ou simplesmente alimentando a curiosidade de como seria esta tal "casa de artistas". Percebíamos então que estávamos a trilhar um caminho virgem em Portugal, tal o número de solicitações recebidas vindas de artistas, municípios, empresários turísticos de muitas zonas rurais. Confesso que sempre estranhei este interesse inusitado, às vezes insistente, sobre o que estávamos a desenvolver: de alguma forma tornava evidente a tendência nacional de copiar modelos, de olhar para o lado em vez de escutar as pulsões próprias. O tempo ia passando, um, dois, três, quatro, cinco anos de atividade regular. Caras regularmente renovadas, novos trabalhos artísticos, novas aldeias exploradas em trabalho de campo, múltiplas recolhas audiovisuais: no fundo um trabalho que ia ganhando forma no território, na paisagem, nas casas dos habitantes e em que a "casa dos artistas" ia nas nossas mentes perdendo importância em si mesma. Daí até começarmos a responder à pergunta - O que é uma residência artística? - com um lacónico "é uma casa onde artistas comem, dormem e carregam as baterias dos equipamentos audiovisuais que utilizam em trabalho de campo", foi um ápice. Sem que nos déssemos conta, o conceito de "residência artística"

começou a ser um fardo conceptual para nós. De alguma forma começou a representar um certo "gueto" criativo, associado aos novos usos do espaço rural, algo que nos começou a soar tremendamente pretensioso, quando o mais interessante passava-se precisamente fora da casa. Corria o ano de 2010 quando um bem intencionado estudante de mestrado em arquitectura me escreveu a propor um conceito por si desenhado de aldeias de produção criativa, com tipologias de reabilitação de casas e currais de aldeias abandonadas em função dos usos, e questionando-me concretamente quais as tipologias que eu achava mais adequadas quartos individuais com espaço de trabalho comum? dormitórios comuns com zonas de trabalho separadas? quantas casas de banho por artista? currais-estúdio audiovisuais, sim ou não? - No fundo este estudante propunha uma translação do sentido de produção agrícola aos novos modos de produção criativa, uma utopia feita de um caminho da agricultura à cultura sem mais em que dezenas de aldeias se habitariam de jovens artistas de todo o mundo, (pro)criando, banhando-se em águas límpidas e imaginando futuros luminosos em que a paz, o amor e a criatividade serão finalmente a divisa vencedora. Confesso que esta proposta foi provavelmente a gota de água que fez transbordar o nosso copo conceptual: havia que, o quanto

35 antes, manietar o conceito de residência artística, já que tínhamos então a certeza de que o que fazíamos estava nos antípodas do que normalmente se associa a esse conceito. Antes de contar como decidimos manietar a "coisa", é útil partilhar parte da resposta que dei ao jovem e promissor arquitecto: "Como ponto prévio, é oportuno comentar o seu texto introdutório de sustentação do modelo de aldeias de produção artística. A ideia de que o mundo rural, no sentido de um conjunto de atividades produtivas agroflorestais-pastoris e de atividades complementares que em conjunto enformam o que se pode designar por cultura rural (“civiltà contadina” na feliz expressão italiana), já não existe ou caminha para um irremediável fim é a nosso ver uma ideia muito urbanocêntrica que carece de verificação cuidada no terreno. Sendo certo que o número de pessoas que permanece no meio rural diminuiu muito nos últimos 40 anos, existe na última década uma certa estabilização, se não mesmo algum crescimento populacional em zonas rurais Portuguesas. Por exemplo, na zona que melhor conhecemos (Vale do troço médio do rio Paiva, correspondente aos concelhos de S. Pedro do Sul, Castro Daire, Cinfães e Arouca), podemos assistir a um regresso gradual de emigrantes, quer de países como a Suíça, França ou Alemanha, quer dos que emigraram internamente para Lisboa ou Porto, e ainda de novos habitantes, nomeadamente gente

nascida em contextos urbanos que regressa ao campo para se aproximar das suas raízes (é o nosso caso). Ligando esta nota inicial a questões construtivasarquitectónicas podemos dizer que muitas das construções em ruínas que existem no mundo rural são o resultado dos processos de abandono iniciados nos anos 50/60 do século passado, não tanto de processos recentes. Podemos mesmo afirmar que na última década a paisagem rural que conhecemos mudou radicalmente por motivos felizes: grande parte das habitações degradadas / em ruína foram reconstruídas e muitas outras foram reconstruídas de raiz. E das que estão abandonadas, diria que muitas são mais úteis continuando abandonadas do que forçando novos modelos utópicos exógenos. Para nós esta ressalva é de crucial importância, já que é bem diferente desenvolver um projeto de criação artística sobre os despojos de um mundo morto ou moribundo, outra coisa é acompanhar um organismo socialpaisagístico vivo, com naturais mutações e contradições, mas também com vastas lições e possibilidades. O projeto do Centro de Residências Artísticas de Nodar, coordenado pela Binaural, tem como pressuposto precisamente a ideia de que o mundo rural é dotado de características que o tornam prenhe de interesse para um modelo de criação artística contemporânea empenhada, comunicativa e verdadeiramente critica. Resumindo, um centro de

36 residências artísticas em espaço rural não deve posicionar-se como um gueto cultural. Ao invés deve escavar bem fundo no contexto local, nos aspectos vivenciais passados e presentes e deve promover mecanismos comunicativos com as populações autóctones, com a inerente carga de risco e até de confronto. Antes de avaliarmos a possível adequação do modelo proposto, é oportuno analisar a sua oportunidade ou a relevância à luz dos elementos que se podem considerar críticos para o trabalho artístico em meio rural. O modelo proposto de “aldeias de produção artística” nas suas variantes é essencialmente um modelo de conforto. Na escala de prioridades de um projeto como o nosso cremos que as questões de conforto, sendo relevantes, se situam num plano inferior face a outras variáveis. Dito de outra forma: desde que cada artista que hospedamos posa ter condições básicas de alojamento, trabalho, higiene e alimentação, em linha com as condições médias de conforto existentes na própria aldeia (com as necessárias adaptações à natureza da atividade artística), o assunto fica na essência resolvido. Nesse sentido, é um pouco irrelevante se a casa de banho ou a cozinha são comuns ou privadas. Pela nossa experiência o artista que reside temporariamente em espaço rural tem que se adaptar aos diversos elementos (alimentação, habitantes, outros artistas, paisagem, cheiros, etc. etc.) para melhor entender e trabalhar sobre

o ambiente local. A flexibilidade é pois a palavra de ordem, pelo que (e analisando as várias tipologias arquitectónicas apresentadas pelo seu modelo) cremos que é melhor um espaço de residências ser dotado de espaços abertos (cozinha, espaços de convivência social, de trabalho) que possam ser reconfigurados em função da tipologia e dimensão dos projetos em curso (com biombos, etc.), do que espaços compartimentados que possam limitar algum tipo de utilizações. Naturalmente que tudo depende da dimensão dos edifícios disponíveis (uma grande casa rural vs. pequenos currais ou moinhos reconvertidos). Não obstante o que referimos atrás, e dada a natureza de experimentação audiovisual que o nosso projeto envolve, é critica a existência de pelo menos uma zona na residência que esteja dotada tecnologicamente com um mínimo de equipamento colocado à disposição dos artistas (câmaras de vídeo, gravadores de som, microfones, softwares de edição de som e imagem, etc.). Ou seja mais do que o espaço arquitectónico são relevantes os equipamentos de que a residência dispõe." Sendo certo que hoje provavelmente não escreveria algumas coisas do que escrevi, nem utilizaria um certo tom messiânico que acabava por transparecer do nosso entusiasmo, a reflexão associada à resposta que dei a este estudante, constituiu o ponto de viragem decisivo para a inflexão conceptual que encetámos recentemente.

37 Termino o artigo precisamente com o texto que enviámos em Dezembro de 2011 à Secretaria de Estado da Cultura anunciando a morte do Centro de Residências Artísticas de Nodar e a anunciar o simultâneo nascimento do Nodar Rural Art Lab. Novo nome, mas muito mais do que isso, novo conceito de ligação entre criatividade e território: "Não obstante a validade genérica do modelo de intervenção seguido até aqui pela Binaural/Nodar, estamos em crer que existem aspectos que devem ser aprofundados para fazer face a certas “inquietações” que fomos identificando nestes últimos anos em termos da relação entre o sentido de contemporaneidade do projeto e as características do território rural onde se desenvolve a atividade, o qual encerra elementos arcaicos notórios, se bem que igualmente sujeitos a profundas transformações. Desde logo, iremos proceder a um questionamento do modelo tradicional de residências artísticas, tendo em consideração a necessidade de aprofundar um sentido de utilidade percebida pelas comunidades para os projetos acolhidos em residência. De alguma forma, pretenderemos obviar ao carácter efémero de muitas das obras de arte criadas, tornando sempre que possível o esforço criativo mais visível, duradouro e útil. Este propósito implicará fundamentalmente a detecção prévia de necessidades / utilidades possíveis no território e a escolha de projetos artísticos que assegurem uma reflexão e praxis

condizentes com a busca (com algum grau de especulação e utopia é certo) desse sentido de utilidade em potência. Pretendemos tornar o trabalho de criação como um bloco importante dos processos de desenvolvimento territorial, tornando mais vincado o sentido de responsabilidade social dos artistas perante as comunidades que os acolhem. Por outro lado, iremos promover uma relação mais próxima entre criação artística e investigação científica em contexto rural, através do acolhimento de alguns projetos multidisciplinares que reúnam simultaneamente artistas e investigadores em diversas áreas (ciências humanas, agrárias e/ou tecnológicas). Em 2012, o tema escolhido para os trabalhos acolhidos são as “arquitecturas rurais”, no âmbito do qual iremos, por um lado, curar e acolher obras artísticas sonoras em espaços arquitectónicos da região (nomeadamente em estruturas abandonadas) e, por outro, convidar alguns jovens arquitectos portugueses a desenvolver breves trabalhos de arquitectura experimental, que possam servir influenciar positivamente novas ideias para o território. De forma a vincar para o exterior esta mudança de abordagem, alterámos recentemente o nome do projeto de acolhimento de artistas: em vez de “Centro de Residências Artísticas de Nodar” passaremos a utilizar a denominação “Nodar Rural Art Lab”. Pretendemos com esta alteração afastar-nos da ideia de residência artística enquanto

38 espaço de certo modo “ensimesmado” em que o acolhimento (residência) é a valência que enforma o projeto, para um modelo (de laboratório) em que é a tipologia de trabalho criativo e inovador, em articulação permanente com o território, que dá razão ao projeto."

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#07 {ENTREVISTA A LUÍS COSTA POR SANDRA VIEIRA JÜRGENS PARA A REVISTA ARQ-A} FEVEREIRO 2012 >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Para começar, quais as circunstâncias e os processos que desencadearam a criação da Binaural/Nodar em 2004? Formalmente, a Binaural/Nodar foi constituída em Lisboa no ano de 2004 por três artistas sonoros, Rui Costa, Paulo Raposo, André Gonçalves e eu próprio, nessa altura uma carta diletante fora do baralho de um coletivo artístico que se posicionou, num primeiro momento, para valorizar no contexto português uma emergente forma artística, a arte sonora, que afinal não é mais do que uma refeição conceptual para a qual artistas como John Cage, R. Murray Schafer, Luc Ferrari, Dick Higgins, Brion Gysin, La Monte Young, Henri Chopin, Karlheinz Stockhausen e tantos outros aportaram nas décadas precedentes a sua dose de ingredientes. Ou seja, ao coletivo interessou num primeiro período (entre 2004 e 2006) procurar dinamizar estas práticas híbridas baseadas na relevância do som

enquanto matéria plástica, algures entre a instalação media, a música electroacústica, a improvisação livre ou as paisagens sonoras, como forma de anular algumas fronteiras, de certo modo anquilosadas (naquele tempo e em Portugal) entre a música erudita, a música improvisada e as artes visuais. Em paralelo, eu e o meu colega de direção (e irmão) Rui Costa congeminávamos há pelo menos dez anos formas possíveis de retorno à nossa região de origem (aldeia de Nodar, maciço da Gralheira, concelho de São Pedro do Sul), retorno não necessariamente definitivo (assim o pensávamos), mas pelo menos de, através de algum tipo de intervenção criativa, podermos ser uma parte um pouco mais ativa do que o mero ócio, de um território rural em transformação, ao qual sempre estivemos profundamente ligados através de raízes familiares antigas. Estes dois feixes de fatores coincidiram em Setembro de 2006 na organização pela Binaural do primeiro evento na aldeia de Nodar, um festival/residência de arte sonora e “site-specifc” intitulado Pushing the Medium e que reuniu cerca de vinte artistas de diversas proveniências geográficas e estéticas. No final de 2006, várias circunstâncias pessoais (um novo amor), profissionais (a decisão de abandonar a carreira de economista e de dedicar-me totalmente ao projeto) e reflexivas (que sentido fazia um projeto em espaço rural que não pressupusesse a sua vivência quotidiana?) trouxeram-me de vez para estas aldeias serranas. Em

40 Março de 2007 iniciámos o primeiro programa regular de residências artísticas de Nodar, momento que considero como o do fim do período “pré-histórico” da Binaural, em que a direção passou inclusive a assumir um caráter mais “familiar”: eu próprio, o meu irmão Rui e a minha companheira (e artista vocal e multimédia italiana) Manuela Barile.

Muitos aspectos do vosso projeto fogem da ideia de refúgio ou de uma relação com a cultura do local baseada num passado idealizado. Quais foram, sob a vossa perspectiva, os objetivos principais que determinaram o desenvolvimento da vossa prática artística num contexto comunitário e rural? Para além das tais raízes familiares que tornaram natural a escolha do contexto rural para epicentro da nossa prática artística, posso apontar algumas outras vontades que têm dado corpo ao projeto: a vontade de acompanhar um território em crise encarando esse mesmo território concreto como um laboratório infinito de possibilidades criativas, a vontade de escapar de uma certa tendência para o ensimesmamento do sistema da arte encarado enquanto universo reticular e codificado entre um conjunto bem preciso de atores (artista, galerista, público, crítico, etc.), a vontade de colocar em contacto direto artistas com comunidades quase sempre alheadas do mundo da arte com o consequente sentimento de

libertação que isso confere (o habitante rural que recebe o artista consagrado em sua casa sem saber de quem se trata ou o artista que percebe que tem que encontrar outras palavras que não o jargão de artista para explicar a sua obra a estas gentes), a vontade de pensar e expressar o (ou a partir do) real com métodos e ferramentas em contínua mutação pela diversidade de artistas acolhidos e pela nossa busca de propostas temáticas renovadas, a vontade de evidenciar e questionar certos aspectos ancestrais ainda presentes nas formas de vida nestas populações como a autenticidade, a hospitalidade, o sentido religioso, a ética do trabalho, a importância dos laços familiares, a relação entre homem e paisagem, a especificidade da cultura (oral, musical, artesanal) enquanto sistema espontâneo ligado em certa medida à necessidade de estar-em-comum, etc. Resumindo, digamos que, para além do interesse especificamente artístico, existem no nosso projeto motivações sociais/antropológicas bem evidentes, acreditando nós que existe uma validade operatória no contacto/confrontação entre diferentes formas de pensar o mundo e até nos mal-entendidos e tensões gerados no processo.

Gostaria que localizasse os conceitos específicos que passaram a formar parte do vosso projeto e os pressupostos em torno dos quais gira a vossa ação em Nodar. Tal como o apresentam, o termo “contextspecific art” seria um conceito

41 mais adequado do que o de “community-based art”, quanto aos objetivos sociais que o animam. Como distinguiria os fundamentos destas perspectivas associadas às artes em comunidades específicas? Sendo certo que os conceitos que temos vindo a adotar, nomeadamente no texto introdutório do catálogo “Três Anos em Nodar”, resultam em grande medida de um exercício a posteri daquelas que foram as nossas intuições iniciais e da sua reformulação gradual a partir da análise regular dos impactos do projeto junto do território e junto das comunidades artísticas, creio ser relevante referir que percebemos as limitações de dois termos que serviram (inclusive por nós próprios) para catalogar alguns aspetos do nosso trabalho: por um lado, “site-specific art” enquanto prática artística pensada e executada em relação a um local preciso. Sendo verdade que todas as obras realizadas em Nodar foram de fato concebidas em/para espaços determinados, pensamos que o termo é claramente redutor ao limitar aos aspetos espaciais a relevância da especificidade de uma obra. No termo “site” sentimos a falta de humanidade e de memória. Por outro lado, quando o nosso projeto é enquadrado nas práticas artísticas comunitárias (“community-based art”) pressentimos (e perdoem-me a eventual crueza) o socialmente correto a espreitar, o artista que ajuda à construção da autoconsciência da comunidade, a arte como arma para a

transformação social, o trabalho junto de comunidades desfavorecidas etc., conceitos (clichés?) que começam a tornar-se para nós insuportáveis pela manipulação a que estão sujeitos, nomeadamente pelos média ou pelos atores políticos e económicos. Confesso que me começa a parecer que certos projetos de arte comunitária existem ou são convocados para suprir eventuais lacunas do estado social, o que é se me afigura como uma degeneração clara do sentido das práticas artísticas. Ainda a propósito de comunidades, partilhamos com autores contemporâneos como Jean-Luc Nancy ou Giorgio Agamben que vivemos atualmente uma “crise do comum”, inclusive nestes nossos contextos rurais. Gosto particularmente da expressão “comunidade inoperante” de Nancy enquanto proposta de distância em relação à ideia de fusão identitária da comunidade, valorizando ao invés os seus elementos de pluralidade e alteridade. Em resumo, encontramos, pelo menos por ora, no termo “context-specific art”, arte em contexto específico, um conceito válido pelo fato de a palavra “contexto” poder encerrar uma diversidade de situações: tempo, espaço, gente, pensamento, memória, crise, etc., sendo nesse sentido mais livre e menos indutora de reducionismos.

Poderia fazer uma análise da pertinência e do valor destas experiências dentro dos processos contemporâneos de mobilidade

42 próprios da chamada globalização? Existe de fato um elemento paradoxal interessante no tipo de experiências artísticas que desenvolvemos à luz dos fluxos ou tensões atuais entre o “local” e o “global”. Por um lado, o modelo operatório do acolhimento e criação em contexto rural é, quando pensado na óptica de quem acolhe, relativamente imune a processos de globalização pois esse modelo significa em grande medida um aprofundamento (no limite, quotidiano) da relação com pessoas, paisagens, estruturas arquitectónicas e atividades bem específicas, bem locais. Mas, pensando ainda no papel da organização que acolhe, os processos associados à escolha dos artistas a acolher são totalmente decorrentes da mobilidade e da comunicação contemporâneas pois só elas permitem difundir o projeto junto das comunidades artísticas internacionais e tornar possível o acolhimento de criações relevantes (tendo em conta inclusive a especificidade artística do nosso projeto). Em paralelo, o artista tem que tomar conhecimento de que existe um proposta “local” de acolhimento para poder propor o seu projeto de criação e tem que viajar, muitas vezes de outro continente, para poder viver esse contexto de acolhimento. Por último, não obstante as obras criada na nossa região rural serem concebidas em íntima ligação com o território específico e para, em primeira linha, os próprios públicos locais, essas obras e a reflexão a elas

ligada será naturalmente itinerante, será difundida junto de públicos não locais, através de conferências, exposições, publicações, etc. Assim sendo, podemos dizer que, por ventura felizmente, são os próprios processos globais que facilitam o aprofundamento local do nosso projeto em contexto rural. Aí está o paradoxo global/local na sua evidência mais límpida.

A ideia de devolver a arte à vida, aparece frequentemente no vosso discurso e parece ser a chave das vossas linhas de atuação. Poderia definir essa ideia de um modo mais preciso? Desde logo, a ideia de impregnar reciprocamente arte e vida está ligada à nossa própria presença aqui nestas aldeias de montanha. Sentimos claramente que é o contacto sempre mais profundo, detalhado e quotidiano com a realidade local que tem gerado muito do edifício estético que temos vindo a construir. Dito de outro modo e tentando não ser auto-complacente, ao não estarmos em contacto permanente ou presencial com o cosmos (urbano) da arte contemporânea, percebemos que vamos trilhando um caminho quiçá mais pessoal feito em grande medida da valorização de aspectos, conceitos e temas que fogem às agendas ou às tendências do momento. Por outro lado, fomos percebendo o valor intrínseco da arte enquanto processo pelo próprio acompanhamento do trabalho de campo e mediação entre artistas e

43 habitantes locais, de tal forma que imaginamos ser possível criar “micro ações artísticas” relevantes que se aproximem “escandalosamente” da vida comum e revelem nesse instante a sua inteira pregnância, ou pelo menos que essa aproximação ao limite do quotidiano possa ser a nossa utopia. Por exemplo, através do tipo de eventos públicos que organizamos, micro-festivais frequentes, híbridos de tertúlias, apresentações artísticas nas aldeias e contactos multissensoriais (cheiros, sabores, cores, sons) com as culturas locais, sentimos que estamos a tentar afastar alguma encenação que tendencialmente existe quando se convocam públicos com uma finalidade, um local e uma hora concretas. Há que referir ainda que na própria escolha do projetos artísticos acolhidos valorizamos muito aspectos ligados à presença da subjetividade/fragilidade do artista na relação com um território até aí desconhecido, o que acaba por ser outra manifestação da presença do quotidiano (neste caso, do artista) nas obras criadas em Nodar.

De que forma a vossa ação e iniciativas podem contribuir para o reconhecimento e compreensão de uma outra forma de fazer arte associada à criatividade das comunidades rurais? Há que dizer a esse propósito que não estamos sós nestes processos de relação entre criatividade contemporânea e comunidades rurais, sendo que as organizações nossas parceiras são

essencialmente estrangeiras, nomeadamente de países do sul da Europa (globalização oblige). Ocorre-me pensar que, de fato, parece existir em Portugal um afastamento entre novas formas de fazer arte e o mundo rural, talvez pelo fato de muita da difusão de informação sobre territórios rurais se basear em aspetos como a pobreza ancestral, o despovoamento crescente ou a promoção turística/cultural feita de clichés paisagísticos, gastronómicos ou musicais, como tal elementos que estão nos antípodas do que são as propostas artísticas mais contemporâneas. Arrisco ainda a dizer que Portugal, sendo um pais que viveu a ruptura social decorrente da industrialização e da emigração mais tarde do que outros países europeus (que a viveram em grande medida a seguir à segunda guerra mundial), tem ainda bem presentes as vivências do abandono do rural (estão à distância de uma ou duas gerações), pelo que é mais provável existirem resistências ou ideias preconcebidas em relação a estes territórios. Estas hipóteses podem ajudar a explicar porque existem entre nós tão poucas criações artísticas contemporâneas em espaço rural ou até porque é que uma pequena percentagem dos artistas que acolhemos em Nodar são portugueses. No entanto, e aportando uma nota otimista, temos sentido um interesse crescente em relação a temas do rural por uma nova geração de artistas (abaixo dos 30 anos de idade), nomeadamente saídos recentemente de algumas

44 universidades cujos curricula parecem adequar-se melhor a formas não convencionais de criação em contexto específico.

Há uma recepção verdadeira destas práticas em relação aos modelos mais instituídos no campo da arte contemporânea? Em termos de recepção deste nosso tipo de práticas creio que somos na essência herdeiros dos processos de desinstitucionalização da criação/recepção artística iniciados nos anos 50 e 60 do século passado. Sendo certo que as rupturas de antanho são porventura parte do cânone de hoje, cremos que é legítimo afirmar que movimentos como o Fluxus incorporavam um sentido de urgência, vitalidade e de recombinação de formas artísticas que ainda permanece válido. No entanto, pensamos que não obstante o caráter lateral (não querendo dizer marginal) destas nossas práticas, assumimos de forma tranquila que fazemos parte do sistema global da arte contemporânea. Penso em resumo que uma praxis artística que tenha (também) como destinatários públicos não convencionais como os rurais não tem porque anular a possibilidade da sua inserção em alguns dos processos considerados correntes no campo da arte, não existindo no fundo qualquer incompatibilidade de princípio, apenas quiçá a necessidade de alguma cautela para que os elementos cruciais de comunicação entre artistas e

territórios se possam manter livres e férteis.

Para concluir, o tema das residências artísticas de Nodar deste ano é “arquiteturas rurais”. Pode explicar-me quais são as vossas propostas? Antes de entrar especificamente no tema das residências artísticas de 2012 julgo ser relevante referir que procedemos a partir deste ano a um questionamento do nosso modelo tradicional de residências artísticas, tendo em consideração a necessidade de aprofundar um sentido de utilidade percebida pelas comunidades para os projetos acolhidos em residência. De alguma forma, pretenderemos enquadrar o caráter efémero de muitas das obras de arte criadas, tornando sempre que possível o esforço criativo mais visível, duradouro e útil. Este propósito implicará fundamentalmente a detecção prévia de necessidades / utilidades possíveis no território e a escolha de projetos artísticos que assegurem uma reflexão e praxis condizentes com a busca (com algum grau de especulação e utopia é certo) desse sentido de utilidade em potência. Por outro lado, iremos promover uma relação mais próxima entre criação artística e investigação científica em contexto rural, através do acolhimento de alguns projetos multidisciplinares que reúnam simultaneamente artistas e investigadores em diversas áreas (ciências humanas, agrárias e/ou tecnológicas). Em 2012, o tema escolhido para os trabalhos

45 acolhidos são as “arquiteturas rurais”, no âmbito do qual iremos durante o mês de Abril, por um lado, curar e acolher obras artísticas sonoras em espaços arquitectónicos da região nomeadamente em estruturas abandonadas e, por outro, convidar alguns arquitetos portugueses a desenvolver breves trabalhos de arquitetura experimental, que possam servir para influenciar positivamente novas ideias para o território. A proposta que fazemos é, no caso das criações artísticas a acolher, a de evidenciar a profunda ligação existente entre paisagem, arquitetura e som. A paisagem rural é em grande medida uma paisagem antropológica e arquitectónica, transformada por uma miríade de construções utilitárias, muitas delas centenárias: moinhos de água, azenhas, canais de rega, casas de habitação, eiras, poços, lavadouros, espigueiros, minas, muros de pedra, capelas, igrejas, ruas, largos, etc. sendo que grande parte dessas construções rurais implicam uma especificidade acústica, de tal forma que é possível reconhecer a tipologia arquitectónica a partir da escuta desses lugares. A partir desta base conceptual pretendemos também questionar o sentido do abandono, nestes tempos em que parece existir um afã de superar todo o abandono rural, como se de uma vergonha territorial se tratasse e como se fosse possível reabilitar em poucos anos todas as estruturas que têm sido abandonadas no arco das últimas quatro ou cinco décadas.

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#08 {PREFÁCIO DE LUÍS COSTA PARA O LIVRO “CONTOS DO XISTO” DE AURORA SIMÕES DE MATOS} JANEIRO 2012 >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> “Os pés são o cérebro dos pobres. Nos pobres os impulsos não partem da cabeça mas sim dos pés.” Antonio Rezza “A vaca é nobreza, a cabra é mantença a ovelha é riqueza mas o povo é tesouro.” Provérbio popular Numa tarde solarenga de Janeiro, olhando uma lenta curva do médio Paiva desde o terraço de uma casa xistosa em Nodar, fecho serenamente a cópia de “Contos de Xisto” de Aurora Simões de Matos. E antes de elaborar qualquer juízo mais profundo, penso simplesmente: menos mal que há gente teimosa o suficiente para nos continuar a relembrar tempos, expressões, quereres, cheiros e cores da nossa terra. É pois o dom de persistência de Aurora Simões de Matos que nos concede mais um exercício de

convocação e invocação das aldeias das duas margens do rio Paiva. Parada de Ester, Meã, Corgo d’Água, Ilha, Pena, Canelas e Eiriz, unidas que estão pela negra mas luminosa presença da pedra de xisto, são elevadas à condição de símbolos de uma civilização agrícola que se vai desfazendo paulatinamente à frente dos nossos olhos tal como a conhecemos nos últimos anos, décadas, séculos.... milénios. Civilização agrícola, a expressão é mesmo essa. É a tradução possível da magnífica expressão italiana “civiltà contadina”, que coloca num plano paralelo às grandes civilizações Mesopotâmica, Egípcia, Grega ou Romana , os dois mil anos de relação do homem rural com a paisagem do sul da Europa. Uma civilização material austera e telúrica, feita de uma luta permanente pela sobrevivência, mas uma civilização imaterial de uma complexidade e riqueza únicas. Como foi possível que estes modos de vida difícil tenham durado tanto tempo, até ao dealbar do Séc XXI, ao mesmo tempo que o progresso tecnológico se vai afirmando de forma tão nítida? A minha singela resposta é que a perenidade desta civilização rural é devida em muito a um arcaico sentido de honra, a um respeito e amor quotidiano pelos demais um amor tão mais extraordinário quanto a vida árdua destas gentes e, tão fundamental nos dias de hoje, a uma firme ética de trabalho. Estas gentes sabem bem que é no trabalho que está

48 presente a glória da obra. Nesta época de crise, em que se fala tanto de exploração e de empobrecimento, de jovens sem trabalho e sem futuro, não podemos cair na indolência e na inflexibilidade, mas sim de aprender com os nossos egrégios avós e abraçarmos com flexibilidade e sem vergonha outras tipologias de trabalho, porque o trabalho é em si mesmo um bem social. O grande valor da obra já vasta de Aurora Simões de Matos é o de elevar a memória destas gentes e terras rurais, mas não esconder os novos presentes destas aldeias. Presentes feitos de abandonos, retornos, novas atividades e desafios, fascínios e contradições muitas, como que a lembrar-nos que nenhum desenvolvimento é linear e escorreito. Que audácia de alguns em quererem que o futuro destes territórios simples seja desenhado a fórmulas irrefutáveis, quando sabemos que desde sempre foi esculpido pela necessidade imperfeita da pedra de xisto. Deixamos o tempo esculpir a memória mas não sabemos porque esquecemos. Imaginamos a vida árdua mas escapam-nos os detalhes. Promovemos a paisagem mas ficamos aquém da civilização. Apreciamos o sossego mas precisamos da ética.

Notamos a mudança mas exigimos imobilidade. Olhamos as fotografias mas não compreendemos o quotidiano por detrás delas. Denunciamos o abandono mas somos incapazes do retorno. Tocamos a mesma pedra mas não mais vemos por quem por ela passou. Lemos as palavras mas já não ouvimos as vozes, nem cheiramos os odores. Aceleramos a vida mas esquecemo-nos dos ritmos arcaicos.

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#09 {TEXTO PARA FESTIVAL PAIVASCAPES #1 ORGANIZADO PELA BINAURAL/NODAR EM 2011 } OUTUBRO 2011 >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> FONOSFERA DE UM MUNDO ANTIGO Há uma paisagem. Imóvel na aparência. Paisagem ribeirinha. Ou melhor, cada vez mais paisagem ribeirinha apenas R-i-o P-a-i-v-a. Nessa ausência de consciência deliberada (alguns dirão abandono) pressentem-se camadas de memória. estratos prontos a serem remexidos e reativados Matéria. Forma. Densidade. Estrutura. Som.

Sons, sons em potência. “Potentia sonora antiqua” E eis que chega um grupo de ativadores, de arqueólogos desajeitados de uma fonosfera antiga Sem deus nem testamento guiam-se por regras instantâneas, individuais e colectivas Indagando, combinando intercalando, chapinhando, estrepitando, fundindo, fendendo. Camadas acústicas, eternas como o mundo. O que resulta então? Que sentidos se produzem nesses instantes? Talvez, a necessária regressão musical em tempos cacofónicos e a pureza da descoberta, da comunhão inocente com a terra. O que resta pode não ser arte maior. Mas é seguramente um necessário exercício de libertação dos padrões vigentes.

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#10 {APRESENTAÇÃO DO LIVRO “IMAGENS DA BEIRA-PAIVA” DE AURORA SIMÕES DE MATOS”} JULHO 2011 >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> O RETORNO NECESSÁRIO À BEIRA-PAIVA Quero começar esta minha intervenção com uma breve nota do que me liga a Aurora Simões de Matos. Conhecemo-nos pessoalmente recentemente, mas posso dizer que existe um longo rio de história que nos une: por um lado, a história de uma família de Meã, concelho de Castro Daire, a mesma de sua mãe e de meu avô materno e, por outro, o facto de os diversos ramos familiares de ambos terem cruzado bastas vezes o rio Paiva, tornando aldeias como Nodar, Sequeiros, Sete Fontes, Parada de Ester ou Meã parte de uma geografia íntima, alheia quase sempre a divisões administrativas do território. São as paisagens ribeirinhas do médio Paiva, o aconchego de ambos os lados do seu vale, terras de confim, terras de passagem, terras de comunicação, terras de novos horizontes que se avizinham – seguindo a Paiva para Noroeste,

Arouca, Castelo de Paiva e o Douro, o outro lado da serra do Montemuro a Norte, Cinfães, Resende e novamente o Douro, ou ainda, seguindo a mesma Paiva rumo à nascente, as terras aquilinas de Vila Nova de Paiva, Moimenta da Beira ou Sernancelhe. Muitos de vós não me conhecem, pelo que abro um pequeno parêntesis para me apresentar, já que muito do que direi fará mais sentido se souberem o que faço. Na pequena aldeia de Nodar constituí à cerca de seis anos um centro de experimentação artística nas áreas das artes multimédia. Anualmente convidamos artistas internacionais para desenvolverem projetos de criação em estreita ligação com o contexto geográfico e humano da nossa região. Paralelamente desenvolvemos projetos de documentação sonora, da paisagem - ecologia sonora e da tradição oral - antropologia sonora. Damos ênfase ao som como elemento fundamental da paisagem rural, muitas vezes menosprezado em detrimento da imagem. Vamos ao que interessa, em palavras curtas e espero que claras, como tento sempre fazer (talvez seja um defeito de profissão, pois nem todos sabemos ser poetas): Com total sinceridade vos digo que “Imagens da Beira-Paiva” constituiu para mim uma grata surpresa. Surpresa essa que se manifestou a cinco níveis: ! Em primeiro lugar, porque um livro que se integra naquilo que se pode designar por “literatura regional

52 tradicionalista” transcende em muito as limitações frequentes do género como o paroquialismo, o lirismo exacerbado ou a rigidez formal. Pelo contrário, não deixando de estar profundamente ancorado num contexto geográfico preciso – a beira-Paiva – pressente-se no livro um enquadramento geográfico e estilístico muito para além dos limites da “minha aldeia”. Não nos esqueçamos que alguns dos nossos imortais escritores foram profundamente regionalistas – o nosso “vizinho” Aquilino, mas também Torga, Nemésio, algum Vergílio Ferreira, Camilo Castelo-Branco e muitos outros. ! Em segundo lugar, todo o livro é prenhe de impressões que remetem claramente para domínios contemporâneos como a psico-geografia ou o cruzamento sensorial (de cheiros, cores, formas e sons). Diria mesmo, estabelecendo um paralelo com a minha atividade de “caçador de sons”, que o livro constitui também um autêntico manual de escuta da paisagem. E não me estranha, porque ninguém melhor que os poetas consegue pressentir o lento rumor do mundo. E hoje quantos de nós empreendemos estas viagens sensoriais, neste saborear de detalhes que ajuda a compreender o tempo e o espaço de onde partimos, que

habitamos ou que visitamos? Este livro é pois um grande ensinamento para estes tempos acelerados e globais. ! Em terceiro lugar, a profunda riqueza antropológica que emana de vários capítulos do livro: o trabalho agrícola, seus tempos, ritos e alfaias, a relação com os animais – de carga, de alimento, de companhia. a religião e suas apropriações populares, a língua, seus matizes, sotaques e vocabulários específicos. Dois exemplos paradigmáticos de uma riqueza incomensurável: o glossário de vocabulário local e a compilação de rezas para diversos males. De certeza que estes elementos antropológicos do livro me serão muito úteis para a realização de projeto educativos, artísticos e de documentação da memória oral. ! Em quarto lugar, tenho que referir o quão exemplar e raro constitui o permanente sentido de análise diacrónica do território incluído no livro. A memória aliada às transformações sociais, económicas e da paisagem, escapando assim a uma mitificação do passado enquanto tempo “ideal” que não volta mais. Por exemplo, os textos “Meã de sol a sol”, “Mudam-se os tempos” ou “Exemplos do empreendedorismo paradense” vão fundo na compreensão das dinâmicas

53 atuais que explicam o desenvolvimento de umas aldeias e a contração de outras, na análise das novas atividades e hábitos sociais que vão mudando paulatinamente a face destas aldeias. Compreender estas dinâmicas é fundamental para combater a resignação generalizada que muitas vezes se abate sobre as nossas aldeias da beira-Paiva. ! Em quinto e último lugar há que destacar o profundo sentido pedagógico de “Imagens da Beira Paiva”, o qual, a meu ver, devia tornar o livro, leitura obrigatória nas escolas dos concelhos rurais da região da beira-Paiva. Nestes tempos de globalização inapelável em que se vão colocando em causa todo o tipo de identidades, a aprendizagem das especificidades territoriais do mundo rural é fundamental para que o fluxo da memória não se interrompa e para que se restaure o sentido de pertença e de autoestima das populações. No fundo, para que nenhum jovem tenha vergonha do sítio ou lhe coube nascer, o que não raras vezes acontece (como bem sei, já que contacto regularmente com jovens das nossas aldeias nos projetos educativos que desenvolvemos).

Paiva” com o futuro desta e de outras zonas rurais de Portugal. Sim, porque o nosso rural tem que ter futuro, não apenas passado. O profundo paradoxo do nosso rural é que é lembrado e até valorizado, mas não deixa de continuar muito abandonado. A revolução que nos falta fazer é portanto a revolução do retorno ao rural, por exemplo ao nosso rural da beira-Paiva. Um retorno físico, de quem habita outras paragens ou um retorno mental, de quem foi perdendo o sentido de pertença, olhando por exemplo os apelos consumistas da cidade como um oráculo irrecusável. O retorno que terá que existir não será nem poderá ser concretizado em moldes semelhantes ao que foi o passado: terá necessariamente que incorporar educação, empreendedorismo, inovação e comunicação com o exterior. Mas esse retorno deve sempre retirar ensinamentos da memória do que fomos, porque no meio da pobreza e da luta árdua pela sobrevivência, existia nestas terras uma riqueza incomensurável: de autenticidade, de trabalho comunitário, de solidariedade, de frontalidade, de cultura própria. Tudo valores que se estão a perder nas sociedades contemporâneas e que colocam portanto o rural na linha da frente da defesa de um certo modo de vida de relação com os outros e de relação com a paisagem.

Depois da análise do livro, peçovos licença para duas ou três considerações finais mais gerais, que tentam ligar a memória retratada em “Imagens da beira-

Este é o sonho. E este é o projeto. Livros como “Imagens da beiraPaiva” de Aurora Simões de Matos e muitas outras iniciativas em curso pela defesa do património

54 rural constituem pequenos núcleos de uma esperança que tem que existir e tem que ser perseverante, tanto quanto a dos nossos agricultores que desde tempos imemoriais souberam sobreviver e moldar de forma única a nossa querida paisagem da beira-Paiva. Um grande bem-haja à Aurora e a todos os presentes.

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#11 {INTERVENÇÃO DE LUÍS COSTA NO CONGRESSO LUGARES DE CULTURA, SANTIAGO DE COMPOSTELA} DEZEMBRO 2010 >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> NODAR: ARTE E REALIDADE NUMA COMUNIDADE RURAL PORTUGUESA 1. Pontos de partida: A arte tal a qual a vemos hoje

#1 Eis-nos chegados a um tempo em que muitos sentem que quase tudo no que respeita à arte (conceitos, estilos, práticas, media) foi pensado, testado ou discutido. Utilizando a metáfora do jogo, podemos pensar que as peças estão há muito inventariadas, sendo que apenas faltarão experimentar algumas (e derradeiras) combinações.

#2 A própria noção de vanguarda é hoje em dia, e em grande medida, um cliché. Tantos se convocam (ou se fazem convocar pelos media) como fazendo parte de alguma

vanguarda ou alternativa, de tal forma que, no limite, podemos ironizar dizendo que são os clássicos os verdadeiros alternativos.

#3 Encontramo-nos hoje de frente a uma colossal poluição estética (nas cidades, na imprensa, na Internet). Imagens, formas e sons de todas as épocas e de todas as proveniências são reproduzidos, copiados, transferidos, descarregados, agregados, retalhados, difundidos, re/descontextualizados a um ritmo alucinante. Sendo que a arte não é a principal causadora desta situação (ao invés da publicidade, da moda, dos produtos e serviços de consumo massificado), muita da arte concorre cada vez mais para este excesso de estimulação audiovisual, rumo a uma plenitude total, a um aniquilamento sensorial (pelo excesso de estimulação), a uma fuga ao vazio e ao intervalo entre si mesma e o mundo.

#4 Mas é curioso: esta expansão de conteúdos estéticos flui quase sempre ignorando os “cansativos trilhos da memória” (na expressão do critico de arte Italiano Gillo Dorfles) ou seja é um vórtice cada vez mais sincrónico, que anula ou descontextualiza o passado. Uma imagem é uma imagem, ponto.

#5 A arte deste início de milénio continua a ser sedutora como a

56 arte sempre quis ser, mas esta sedução efetua-se menos através da simbolização ou mimesis dos valores da natureza (humana e geográfica) e cada vez mais através da simulação e da virtualidade. Ou seja, a arte dos nossos dias é propensa a tornar-se num mero simulacro ou fetiche.

#6 Muitas das práticas artísticas contemporâneas parecem afastarse dos impulsos sensíveis genuínos, ou por estarem demasiado dependentes de mecanismos de cultura de massas ou por terem na sua génese processos intelectuais ou tecnológicos que funcionam de forma circular ou isolada da realidade mais imediata (íntima, social, política). A ênfase generalizada dada pelos artistas e pela crítica aos media tecnológicos (“computer art”, “laptop music”, “video art”, etc.) e não tanto à expressividade em si mesma é uma de muitas evidências deste cenário.

#7 Assiste-se hoje a um inapelável processo de desmaterialização dos objetos culturais, de tal forma que tradicionais meios de fruição artística como os CD’s, DVD’s ou livros vivem uma profunda crise da qual parece não haver retorno.

#8 Muitos grandes museus e salas de espetáculo, mesmo aqueles com

uma programação mais exigente, entram no jogo do mercado, tentando captar novos públicos numa lógica mais massificada que a que conduziam na última década. A própria noção de espaço de fruição cultural é questionada pela explosão de novas formas de acesso a obras artísticas (Internet, mas também o espaço público).

#9 No caso específico das artes contemporâneas mais experimentais (sonoras, visuais ou performativas) é comum ouvir-se entre os seus seguidores ou artistas que os públicos são quase sempre os mesmos, na sua maioria outros artistas ou profissionais da cultura. Mais uma evidência de um sistema alimentado muitas vezes em circuito fechado.

2. Desafios. Ideias para uma outra forma de fazer arte #1 É indispensável que a arte recorra à “naturalidade” dos meios expressivos genuínos, que são e serão sempre insubstituíveis.

#2 A criação artística, mesmo aquela tecnologicamente mais avançada, exige materiais e sentimentos verdadeiros. Devemos manter “livre” uma parte nossa sensorialidade se queremos continuar a “ver com os nossos

57 olhos” e a “ouvir com os nossos ouvidos”.

#3 A crescente “virtualização” de muitas práticas artísticas deve ter um contraponto numa arte que possa caminhar rumo a uma nova materialidade e pregnância, em que os media tecnológicos são fundamentalmente elementos de registo, acesso, transformação, portabilidade ou difusão de realidades expressivas e os materiais não tecnológicos (nomeadamente aqueles de origem natural) continuam a ter a sua importância na ligação do artista à “essencialidade” do mundo. O conceito de multimédia pode incluir uma relação entre meios tecnológicos e materiais.

#4 É importante recuperar para a arte um sentido ético, perdido em algumas das últimas derivas estéticas – quando o horror, a mutilação ou a violência da sociedade são usados artisticamente, a denúncia que subjaz a essas obras muitas vezes (mas nem sempre) cola-se à realidade que se pretende criticar pela crueza das imagens utilizadas.

#5 A arte deve incorporar um sentido diacrónico em que a memória (pessoal ou social) seja menos informação para uma colagem “alucinada” de sons e imagens e mais algo de vívido, que parta de uma consciência de pertença a um

fluxo histórico, cuja alteridade inapelável não deve fazer esquecer a origem, a matriz.

#6 Urge cada vez mais devolver a arte à vida, potenciando a atenção às coisas mínimas, não tanto aos grandes ideais ou teorias. Essa amplificação sensorial do íntimo, do esquecido, do periférico é (ainda) hoje uma necessidade imperativa.

#7 Há que promover esta aproximação entre arte e vida de forma radical: colocando em comunicação direta artistas com realidades / comunidades não abrangidas pelos radares públicos ou políticos (periféricas, marginais, rurais, etc.). Esta radicalidade assenta num retorno a uma certa pureza original da arte, de um sentido menos mediado de forma exclusiva por processos de autorreferência e de crítica.

#8 A aproximação entre arte e vida pode ser facilitada por uma lógica multidisciplinar de saberes-fazeres não necessariamente artísticos: a arquitetura, a etnografia, a antropologia, a sociologia, a geografia, a história, etc.

#9 A recepção das formas artísticas deve cada vez mais incorporar um sentido de fruição alargado, valorizando a experiência (da obra,

58 do contexto da sua produção, de novas formas de apresentação / exibição) em detrimento do objecto em strictu sensu.

#10 Projetos culturais de ligação à realidade devem promover uma lógica de trabalho em rede com outros casos similares, como forma de reflexão e partilha de experiências e de criação de massa critica na organização de eventos de maior escala.

#11 As grandes instituições de produção, reflexão e fruição cultural (museus, universidades, auditórios) devem cada vez deixarse “contaminar” por lógicas mais próximas da realidade “vibrante”, nomeadamente através do acolhimento de propostas vindas de projetos / estruturas que desenvolvam trabalho contínuo no terreno e ajam de forma flexível, livre e em comunicação in situ. O macro deve deixar-se influenciar pelo micro, mantendo cada um a sua independência e lógica de funcionamento própria.

3. Possibilidades: Arte e especificidade hoje #1 Arte e especificidade. Um dos paradigmas gerados pelas rupturas estéticas dos anos 50 e 60, sujeito ao longo das últimas décadas a diversas mutações e

questionamentos. Não obstante, como prática e metodologia, pensamos que é ainda um paradigma válido para a produção de formas artísticas de ação e comunicação com a realidade, contando que alguns dos seus potenciais equívocos sejam acautelados.

#2 A história da arte em articulação com contextos específicos é complexa e ligada ao desenvolvimento de fenómenos artísticos como a instalação, a “land art” e a evolução da ideia de “arte pública”. No entanto, um dos seus aspectos principais consistiu no movimento para fora das galerias e dos museus, em direção a outros locais, com o propósito de exibir arte. As razões para este processo foram múltiplas: desde uma reação à “esterilidade” das galerias enquanto “espaços em branco”, passando pela oportunidade de jovens artistas em mostrar as suas obras fora do contexto institucional de produção e exibição, até à oportunidade de os artistas estabelecerem relações com públicos alheios ao esquema de produção de arte-factos (conceitos desenvolvidos nomeadamente pelos movimentos dada, fluxus ou situacionista)

#3 Uma forma particular de arte em contexto específico constitui a arte comunitária (“community-based art”), um conjunto de práticas (com origem principalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra)

59 que assentam na convicção de que a expressividade e a criatividade residem dentro de qualquer comunidade e de que o papel do artista comunitário é o de ajudar as pessoas a soltar a sua imaginação e de darem forma à sua criatividade. Esta ideia contrasta com as artes “estabelecidas” em que só alguns poucos felizardos – artistas com educação ou treino apropriado – podem incorporar essas capacidades, ou com a ideia (hoje ultrapassada) de uma certa esquerda em que a política cultural socialmente empenhada deve ser aquela que mostra a arte “elevada” às massas (ex. concertos de música de câmara nas fábricas).

#4 No entanto, muitos dos projetos de arte comunitária têm revelado alguma ingenuidade estética. Os trabalhos produzidos são em alguns dos casos murais colectivos, peças de teatro amador etc., importantes enquanto processo colaborativo, mas pobres enquanto obras de arte. Por esta razão, muitos artistas relevantes nas suas áreas vêm com alguma condescendência este tipo de trabalho articulado com comunidades. Hoje, com a ajuda de uma nova geração de artistas (nomeadamente os que trabalham nos domínios das artes media) e com o advento de instrumentos portáteis de registo sonoro e visual e do uso inteligente da Internet, as possibilidades expressivas aumentam consideravelmente (mapas sonoros de zonas geográficas, obras vídeo que

“entram” (pela mão dos próprios) na intimidade das comunidades, etc.).

#5 O trabalho artístico baseado na interação com grupos sociais não deve perder de vista a noção de que uma comunidade não constitui uma formação social coerente e uniforme, mas sim um “espectro instável e (em certa medida) inoperante” (na expressão de Miwon Kwon em “One place after another”). Neste sentido, fará mais sentido falar em “contextspecific art” do que em “sitespecific art” ou “community-based art”. “Contexto” como uma realidade mais dinâmica e abrangente, menos sujeita a derivações exclusivistas, puristas ou autoritárias.

#6 Neste paradigma, o artista deve assumir o desafio ou risco de trabalhar com contextos novos, a necessidade de adaptação a circunstâncias desconhecidas no contacto social direto, adaptando, reconfigurando e problematizando as linguagens, materiais e abordagens estéticas.

#7 É necessário um afastamento de um certo pendor antropológico em que a comunidade é pensada como uma mera portadora de histórias, de conhecimentos ou de vivências e em que o artista se limita a receber essa informação e a trabalhar a partir dela.

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#8 O que se deve procurar, ao invés, é um envolvimento mútuo, um encontro entre formas diferentes de viver, conceber e traduzir o mundo. O encontro entre o artista e o contexto não deve pois ser meramente instrumental (no sentido da recolha de elementos para o desenvolvimentos da obra) mas sim algo de orgânico, que se vai construindo naturalmente ao longo do tempo, que se baseia numa vivência quotidiana e comunicativa. É claro que este encontro exige disponibilidade mútua, abertura ao outro com o grau de “tensão” e de imprevisto que lhe são inerentes por natureza.

multiplicidade de temas que os espaços rurais e naturais enfrentam nos dias de hoje: ! Em primeiro lugar, o espaço rural português vive um processo de abandono que se reflete a várias dimensões (oportunidades de trabalho, infraestruturas, produção cultural, coesão social, visibilidade nos media), o que deixa as comunidades rurais com um sentido de identidade enfraquecido. ! Em segundo lugar, o paradigma agrário, o qual sempre foi central na história e no tecido social das comunidades rurais, encontrase num ponto de evanescência (quase) irremediável, estando inclusive a desaparecerem os guardiões dessa memória.

4. Arte e ruralidade #1 As comunidades rurais são dotadas de uma criatividade e de um potencial empreendedor e imaginativo que muitos desconhecem. São locais onde o passado arcaico e as transformações da vida moderna coexistem e como tal prenhes de interesse num ponto de vista estético e ético. Locais onde o rude e o espontâneo são também sinais de liberdade. Locais difíceis, mas com mais possibilidades do que alguns nos querem fazer crer.

! Finalmente, o emergente paradigma, que encara o espaço rural como um “parque temático” para ser experienciado por turistas apenas de forma superficial, constitui uma forma empobrecida de criação/manutenção de identidade, na medida em que tende a “congelar” o espaço rural numa “hiper-realidade” em que tudo deve ser “exatamente como nos tempos antigos”, deixando um espaço restrito para o progresso e autonomia das comunidades.

#2 A arte pode ser uma excelente forma de questionar a

#3 Estes factores concorrem para uma situação com contornos trágicos.

61 Este cenário de crise constitui um terreno fértil para a produção de trabalhos artísticos contemporâneos que questionem as contradições destes tempos de acelerada mutação do rural Português.

#4 Neste contexto, é desejável que a presença dos artistas em espaços rurais seja frequente e duradoira, de tal forma que os ínfimos detalhes dessa realidade sejam percebidos de uma forma profunda e se reflitam em obras de arte mais verdadeiras e empenhadas.

dominantes que presentemente conduzem as politicas rurais, agrícolas ou da paisagem.

5. O caso Nodar: Arte contemporânea em contexto rural

#5 A infeliz circunstância de as principais estruturas de produção de arte contemporânea revelarem um alheamento face a contextos rurais, sendo que a grande maioria dos artistas provêm de meios urbanos e naturalmente estabelecem uma relação mais empática com a cidade, conduz a uma dificuldade crescente na compreensão do “outro” e reduz a amplitude da intervenção artística.

#1 O Centro de Residências Artísticas de Nodar coordenado pelo colectivo experimental Binaural em parceria com a Associação Cultural de Nodar (uma organização comunitária local), situado numa aldeia rural de montanha no centro de Portugal (concelho de S. Pedro do Sul), organiza e produz o desenvolvimento de projetos artísticos multidisciplinares (com ênfase nas artes sonoras, vídeo, performativas e intermedia), seguidos de apresentações públicas na região. Os artistas residentes, no âmbito do desenvolvimento dos projetos artísticos, são encorajados a estabelecerem interações com o local, seu espaço geográfico e social, identidade e memória.

#6 Generalizando, é possível dizer que o estabelecimento de mecanismos formais de pedagogia, curadoria, pesquisa e prática associados às artes em meio rural deve contribuir para a criação de um aparato teórico e crítico e para o desenvolvimento de uma nova estética rural que sejam capazes de interrogar as ideologias

#2 A decisão de iniciar um centro de residências artísticas em Nodar foi motivada pela vontade dos membros da Binaural, um colectivo de artistas contemporâneos dedicados às artes media, em aprofundarem a investigação sobre as possibilidades de uma prática artística exploratória em estreita

62 interação com um contexto específico rural e em lançar as bases de uma plataforma de troca regular de ideias e de práticas com artistas e organizações internacionais atuando na mesma área. Estas motivações foram possíveis de pôr em prática pela coincidência de dois dos membros fundadores da Binaural serem originários da aldeia de Nodar.

#3 Desde Março de 2006 que residiram temporariamente em Nodar várias dezenas de artistas contemporâneos, os quais desenvolveram projetos artísticos em ligação com o espaço e as comunidades locais. Memória colectiva, lendas e mitos, identidade, género e idade, topografia, toponímia, música, património sonoro, paisagem, vegetação, água e fogo, dinâmicas de consumo e de ócio, artefactos e utensílios, vida e morte, língua, agricultura e pastorícia, foram alguns das realidades que serviram de base para a concepção e realização dos projetos artísticos.

#4 O Centro programa ao longo do ano diversos módulos de residências, de forma a estimular um ambiente colaborativo entre artistas de diferentes áreas artísticas e origens geográficas. Durante o decorrer das residências são organizadas diversas atividades paralelas, como conferências, palestras e workshops (nomeadamente orientados para a juventude local). No final de cada

módulo de residências é organizada uma sessão pública na aldeia, na qual os diversos projetos artísticos são apresentados e comentados pelos artistas e pela organização.

#5 O Centro de Residências Artísticas de Nodar é presentemente a única organização cultural Portuguesa dedicada de forma exclusiva e regular à prática artística experimental em interação com comunidades rurais, sendo hoje um centro de referência a nível internacional nas novas artes media comprometidas com uma reflexão sobre a realidade humana e geográfica.

#6 O Centro de Residências Artísticas de Nodar promove a realização de projetos artísticos exploratórios, os quais, por via de linguagens e tecnologias contemporâneas, dialogam com os diversos elementos que enformam um local. Muitos das obras artísticas realizadas em Nodar assumem um carácter transdisciplinar, ou seja cruzam diferentes práticas artísticas, anulando muitas vezes as respectivas fronteiras ao buscarem um sentido híbrido que amplifique as possibilidades expressivas.

#7 No entanto (e por razões operatórias) podem-se isolar três linhas de interação artística que

63 têm sido exploradas em Nodar: Som, Espaço e Gente: ! Interação com o Ambiente Acústico. Da equipa que gere o Centro de Residências Artísticas de Nodar fazem parte alguns artistas sonoros, os quais trabalham com a dimensão acústica de forma experimental. Como tal, o Centro colocou-se desde o início das suas atividades na vanguarda da reflexão e prática internacional sobre as chamadas “paisagens sonoras”, tendo passado por Nodar alguns dos mais conceituados artistas sonoros da atualidade, os quais, utilizando técnicas idiossincráticas de captação, edição e manipulação sonoras, criaram obras baseadas em aspectos particulares do contexto acústico de Nodar.

! Interação com o Espaço Geográfico. A paisagem que circunda Nodar é, por um lado, belíssima e multiforme (montanha, rios, grutas, arquiteturas de xisto, campos em socalcos, etc.). Por outro lado, assiste-se a um processo irreversível de transformação da forma como o espaço é ocupado pelas populações. Estas duas realidades têm constituído terreno fértil para a criação de obras de arte na natureza, as quais tanto captam o onírico dos aspectos intemporais da paisagem como questionam possíveis usos futuros da mesma.

! Interação com as Gentes. Temos estimulado desde o início das nossas atividades que os artistas interajam, questionem e até certo ponto “provoquem” os habitantes locais. Como resultado desses processos comunicacionais, foram desenvolvidos vários projetos artísticos em que tanto aspectos da memória colectiva mais arcaica como dos novos hábitos e experiências foram motivo de reflexão e expressão.

#8 O trabalho desenvolvido na região de Nodar (um processo concomitante de criação, documentação e reflexão) exige disponibilidade e tempo e é deliberadamente invisível (ou de visibilidade limitada). Não sendo um objectivo em si, é uma forma de atuar da forma mais livre possível, por processos de contacto individual (quer no que respeita aos artistas, à critica e aos públicos) e com paciência suficiente para se não esperar grandes transformações imediatas. Ou seja, com a mesma paciência do agricultor face aos ciclos de cultivo e às estações do ano.

6. Estratégias de interação criativa com a comunidade de Nodar #1 Desde que o Centro de Residências Artísticas iniciou a sua atividade, é já patente um

64 acréscimo da autoestima colectiva e individual na comunidade de Nodar (e comunidades vizinhas), pelo facto de os habitantes verem retratados o seu quotidiano, as suas memórias, opiniões e vivências, pelo facto de serem ouvidos, fotografados, filmados e, finalmente, representados nos trabalhos apresentados pelos artistas. É nossa convicção que, ao acompanharem os trabalhos artísticos desenvolvidos, as pessoas (tenham a instrução e a idade que tiverem) intuem os rudimentos dos processos de transformação sensível da realidade em arte e reconhecem essa realidade como sua, o que reduz de sobremaneira o hiato entre a criação e a recepção.

#2 É tão paradoxal quanto irónico como gente rural recebe de forma interessada obras que, na sua maioria, podem ser caracterizadas como experimentais. As mesmas obras que nas grandes cidades poderiam ser encaradas como curiosidade ou de forma indiferente, dado o número de manifestações culturais a decorrer em simultâneo, num tempo em que existe a impressão de que já se viu e ouviu tudo.

#3 Um dos principais compromissos do Centro de Residências Artísticas de Nodar é o de estabelecer uma comunicação bidirecional com a comunidade de Nodar e com as zonas adjacentes,

através de uma praxis artística profundamente comprometida com a realidade local e com a sua riqueza cultural, procurando reforçar um sentido de integração da comunidade numa realidade cultural mais vasta (nacional / europeia / mundial).

#4 Os pilares da referida ligação do Centro de Residências Artísticas de Nodar à comunidade local são de vária índole: ! Projetos de criação artística que potenciem uma compreensão e questionamento de certos elementos, tanto históricos como contemporâneos, da organização sócio-culturalgeográfica de Nodar e um envolvimento da população na preparação dos projetos artísticos (entrevistas, ajuda na disponibilização de materiais e documentos, apoio logístico, etc.);

! Apresentações públicas na própria aldeia de Nodar de todos os projetos artísticos desenvolvidos em residência, com uma detalhada explicação à população da sua génese, objectivos e métodos;

! Recolha documental como atividade complementar à criação artística, constituindo em Nodar um centro de documentação, escrita, sonora, fotográfica, e de vídeo sobre a

65 comunidade e disponível para a população, para investigadores e para todos os artistas que desenvolvam projetos no futuro;

! Componente educacional que se desenvolve através de uma série de actividades articuladas com o desenvolvimento de projectos artísticos e dirigidas a crianças e jovens em idade escolar: workshops de captura e edição criativa de áudio (projeto “aldeias-sonoras.org”) e vídeo, construção de objetos sonoros, etc. É expectável que estas ações tenham a médio prazo um impacto significativo na vida social e cultural da comunidade, facilitando, nomeadamente, o processo de compreensão e de envolvimento nos projetos artísticos desenvolvidos pelo Centro de Residências Artísticas de Nodar.

#5 Não obstante as estratégias enunciadas atrás, a existência de um centro de residências artísticas em artes experimentais numa comunidade isolada de montanha é, pela sua absoluta novidade, um motivo de curiosidade mas também de alguma tensão. A maior parte das pessoas pela primeira vez contactaram com estrangeiros através das residências, o que é um sinal claro do quão isoladas têm sido estas comunidades.

#6 No entanto, a estranheza tem um grau de reciprocidade elevado. Também para muitos dos artistas presentes nas residências, o facto de existirem comunidades como as de Nodar e arredores, mostra até que ponto o mundo rural “puro e duro”, ancestral, minifundiário e de montanha é muitas vezes incompreendido e estranho, mesmo para pessoas habituadas à interação com a diferença e com um grau de preconceitos inferiores à média da população (assim se pressupõe, pelo menos).

#7 Na comunicação entre artistas e habitantes, o papel dos coordenadores da residência assume uma relevância importante. Com raízes familiares profundas na região e, em simultâneo, acompanhando as intenções estéticas dos artistas, acabam por servir de mediadores na maior parte dos momentos de comunicação. Esse elemento de mediação amortece muitas das tensões. Dá segurança e explica as motivações de parte a parte.

#8 Em paralelo, cada artista evidencia uma estratégia particular na comunicação com os habitantes. Alguns trazem uma receita previamente estudada, outros deixam que sejam as circunstâncias a ditar a sua lei. De alguma forma, não se impõe qualquer orientação, existindo a disponibilidade da equipa

66 coordenadora do Centro para se adequar à abordagem que for mais confortável para o artista.

#9 Em resumo, pensamos as residências artísticas enquanto uma troca. O que é que o artista e o habitante local dão e esperam em troca? Será que a relação estabelecida entre eles não está enviesada, pois para o artista é (em princípio) perfeitamente claro o que é que ele(a) necessita das pessoas, mas para estas o mesmo não acontece necessariamente? O artista não terá, pois, uma supremacia sobre o habitante local? Pensar esta problemática é para nós crucial. Este é um exercício que necessita ser aprofundado ao longo do tempo.

7. Leituras de referência Careri, Francesco – “Walkscapes. El Andar Como Practica Estética / Walking as an Aesthetic Practice”, Land&Scape Series, Gustavo Gili, 2002 Dorfles, Gillo – “Horror Pleni: La (In)civiltà del Rumore”, Alberto Castelvecchi Editori, 2008 Ehrlich, Ken & Labelle, Brandon (editors) – “Surface Tension: Problematics of Site”, Errant Bodies Press, 2003 Gravano, Viviana – “Paesaggi Attivi – Saggio Contro la Contemplazione”, Costa & Nolan, 2008 Groth, Paul & Bressi, Todd W. (editors) – “Understanding

Ordinary Landscapes”, Yale University Press, 1997 Kester, Grant H. – “Conversation Pieces: Community and Communication in Modern Art”, University of California Press, 2004 Kwon, Miwon. “One Place after Another - “Site-Specific Art and Locational Identity”. MIT Press, 2004 Labelle, Brandon - “Background Noise: Perspectives on Sound Art”, Continuum International Publishing Group, 2006 Spirn, Anne Whiston – “Language of Landscape”, Yale University Press, 2000

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#12 {ENTREVISTA A LUÍS COSTA POR MARISA MIRANDA PARA A REVISTA BOA UNIÃO DO TEATRO VIRIATO} FEVEREIRO 2009 >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> CENTRO DE RESIDÊNCIAS ARTÍSTICAS DE NODAR O SOM MORA EM TODO O LADO… BASTA QUERER PROCURAR Por estradas sinuosas e paisagens únicas, escondida entre vales e montes, espreita Nodar, uma pequena aldeia de montanha, do norte do concelho de S. Pedro do Sul, situada no vale do rio Paiva, ladeada por dois maciços montanhosos de Portugal: Gralheira/Arada e a Serra do Montemuro. Aparentemente enclausurada, desta aldeia emana a força plena da natureza. Distingue-se de outras, através de um puro e genuíno exercício de sustentação cultural e territorial. A criação do Centro de Residências Artísticas de Nodar é talvez o exemplo de como se pode desejar e alcançar essa meta maior de - através de um projeto cultural feito de firmes pressupostos artísticos, arreigado na certeza determinada de fazer

de cada casa da aldeia o seu espaço - gerar dinâmicas culturais numa pequena localidade mas, sobretudo, entre as gentes desses lugares e os artistas que chegam para desenvolver as suas criações (nas artes sonoras, vídeo e performance). Gerido pelo colectivo artístico Binaural e pela Associação Cultural de Nodar, o Centro de Residências Artísticas de Nodar organiza e produz o desenvolvimento de projetos artísticos pluridisciplinares, seguidos de apresentações públicas na região. Os artistas residentes, no âmbito do desenvolvimento dos projetos artísticos, são encorajados a estabelecerem interações com o local, com o seu espaço geográfico e social, com a sua identidade e a sua memória. E por este Centro de Residências Artísticas têm passado inúmeros artistas que se especializaram na captação sonora da paisagem, natural e humana. E a esse nível, Nodar tem provado guardar um património acústico muito rico, que outros procuram preservar, reclamando mesmo a sua proteção legal. Afinal, o som mora em todo o lado ou pelo menos “está mais presente do que muitas vezes nos apercebemos”. Quem o diz é o presidente da direção da Binaural Luís Costa, à conversa com a Boa União. O centro de residências de Nodar nasce da vontade de concretizar um regresso… às raízes…

68 Sim, esse foi um dos pontos de partida, mas não o único. Esta aldeia [Nodar, concelho S. Pedro do Sul, distrito de Viseu] está a viver um processo crítico de desertificação, em que os anteriores modelos de desenvolvimento estão esgotados. Por isso, mais do que resgatar as nossas raízes, desejávamos uma mudança. Acreditamos que a arte pode ser um instrumento muito interessante de especular/imaginar futuros possíveis, já que a arte é especulativa por natureza. A vibração de ideias e pensamentos que cada artista acaba por incorporar proporciona muita matéria de reflexão, mesmo em relação ao próprio contexto e não só em relação à arte em si. Sentimos um desejo de fazer algo por esta aldeia, por esta região, mas queríamos fazê-lo de forma inovadora. Dada a nossa ligação com a arte contemporânea experimental, que já mantínhamos há algum tempo, o objectivo era tentar incorporar alguns elementos de transformação na realidade de Nodar. Parecia-nos muito interessante pôr essa arte contemporânea, marcada por um elevado grau de experimentação, em confronto com um contexto rural, com elementos arcaicos muito profundos. Assim, na matriz do projecto vertemos muito do que fomos pensando em anos anteriores, e que estava relacionado com questões ligadas à relação da arte com a vida, à relação da arte com os contextos específicos, ao interesse de trabalhar a Cultura em ligação com a realidade e as pessoas.

Por outro lado, muitas vezes, pensávamos que a arte que é feita em contexto urbano entra numa certa rotina, seja em termos das temáticas, seja de públicos, que são quase sempre as mesmas pessoas. É frequente sentirmos um certo dejá-vu. E este factor também acabou por determinar a criação deste projeto em Nodar porque, de facto, a deslocalização de projetos artísticos para estas zonas rurais reveste-se de um sentimento quase libertador, de um sentimento de querer começar do zero, de querer começar a pensar tudo de uma forma completamente diferente.

E que arte é esta? Por um lado, as áreas artísticas que privilegiamos são: paisagens sonoras, a música e vídeo experimentais, a performance em espaço público e a “land art”, ou seja áreas com uma carga contemporânea bastante assumida. Por outro lado, todos estes projetos que recebemos têm uma característica comum: são projetos desenvolvidos sempre em articulação com o contexto local, que pode ser a paisagem, as comunidades, a memória ou qualquer aspecto da realidade. Não há nenhum projeto desenvolvido no Centro de Residências de Nodar que não tenha uma relação com este meio.

E todos esses projetos acontecem sem que o Centro de Residências Artísticas de Nodar tenha um espaço próprio?

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Preferimos nestes primeiros quatro anos de intervenção ocupar vários lugares da aldeia, lugares onde as pessoas comem, dormem, trabalham... quando chegam os artistas passam a comer, dormir, trabalhar e apresentar os seus trabalhos nesses lugares. Podemos dizer que o Centro de Residências é a própria aldeia, claramente! Claro que a facilidade que tivemos em montar o projeto desta forma também advém do facto de estarmos a falar de um contexto rural, onde já existiam as tais raízes familiares, portanto, o diálogo com as populações foi mais fácil. A própria cedência de espaços foi um processo simples. Mas o nosso objectivo sempre foi ter um projeto, dotado de projeção internacional, mas que fosse ao mesmo tempo muito flexível.

E portátil? Esse aspecto é fundamental. Hoje em dia, as próprias tecnologias que muitos dos artistas utilizam de registo audiovisual são absolutamente portáteis portanto podem chegar a qualquer ponto e pessoa. Um artista pode entrar na casa de um habitante e trabalhar com ele ou fazê-lo em qualquer paisagem. Essa portabilidade facilita muito a relação com o real.

É essa a verdadeira democratização da cultura? Diria que sim, pode ser um meio de democratização, mas de qualquer forma não pensamos

nisso dessa forma tão direta. Provavelmente, é o que estamos a fazer mas não o queremos fazer como bandeira. Simplesmente queremos estar aqui, queremos que as pessoas daqui nos considerem como mais uns habitantes da aldeia, que têm uma atividade que é diferente da deles, mas que pode ser uma nova atividade neste mundo também novo. E, sobretudo, queremos que não se note muito a diferença entre o que fazemos e o que as outras pessoas fazem. Não queremos assumir nenhuma diferença e achar que somos especiais, que temos uma missão e um programa muito claro de captação do interesse das pessoas. Obviamente, que temos estratégias para muito do que fazemos, mas não o queremos fazer de forma forçada. Queremos, simplesmente, com a paciência normal do próprio ciclo do tempo ir fazendo o nosso trabalho.

Sobre o vosso processo de seleção dos projetos artísticos... Em cada ano, temos uma candidatura aberta no nosso site, definimos as condições e características dos projetos que pretendemos acolher, quer em termos de áreas artísticas, quer em termos de interação com as comunidades. Cada artista apresenta um projeto, o seu curriculum, os seus dados biográficos e o seu portefólio. O repto que lançamos aos artistas é pensarem sobre um local e uma área que a maior parte deles não conhece. E, portanto, eles

70 concebem um projeto adaptado a esta realidade. Depois fazemos um processo de seleção, em que selecionamos cerca de quinze projetos em cada ano. Sobretudo, internacionais… Não tendo sido nenhum objectivo deliberado, no início, praticamente, todos os projetos que recebíamos eram estrangeiros.

A falta de candidaturas de projetos nacionais prende-se com o facto da arte sonora ainda ser uma área emergente em Portugal? Para justificar esse número reduzido de candidaturas nacionais talvez seja melhor destrinçar duas realidades. Uma, de facto, é essa: o número de artistas a trabalhar nestas áreas em Portugal não é muito elevado. Por outro lado, temos constatado que os artistas portugueses que trabalham nestas áreas demonstram uma menor propensão para pensar sobre o rural. Há uma carga muito urbana em grande parte dos artistas que trabalham na área do som e do vídeo experimental, ou seja, na área das artes mais experimentais. Há muitos artistas para quem não lhes interessa vir para um local destes fazer uma criação adaptada a este género de locais. De qualquer forma, nas candidaturas para 2009, notámos que há uma nova geração de artistas, muitos deles, muito novos, inclusive alguns deles recémsaídos das faculdades, apostados em trabalhar o rural. Talvez algo

tenha mudado no tipo de arte que é ensinada.

E como reagem os habitantes da aldeia à chegada desta arte e, claro, dos artistas que a promovem? Mais do que a reação, privilegiamos a interação. Privilegiamos a comunicação entre artistas e população, embora esta nem sempre seja estável e pacífica. No fundo, queremos promover um diálogo, carregado até com um certo grau de provocação, queremos pôr em confronto realidades diferentes. Cada artista quando chega a Nodar tem o seu contexto de origem (onde trabalha, o tipo de atividade que faz, as duas ideias) e essa bagagem que cada artista traz é posta em confronto com a bagagem das pessoas que aqui moram. E, para nós, esse diálogo do diferente é muito rico, sendo que nem sempre a comunicação é total. Aliás, procuramos que as próprias questões da dificuldade da comunicação sejam trabalhadas e já houve alguns projetos que trabalharam, especificamente, essa temática.

Por exemplo… Tivemos uma artista israelita, Vered Dror, uma performer em espaço público que, durante a sua residência encarnou uma personagem que só falava hebraico. Durante três semanas falou hebraico com os habitantes de Nodar. O seu objectivo passava

71 por pensar na comunicação para além da linguagem. Foi um projeto muito interessante… no fim da residência, as pessoas de Nodar já a percebiam, de facto, a comunicação existia muito baseada na expressividade, nos sorrisos. Tivemos um outro projeto, desta vez, de uma artista canadiana, Suzanne Caines, que trabalhou sobre os aspectos mais ligados ao consumo destas pessoas. Fez um trabalho de vídeo e performance, onde dava a provar às pessoas de uma localidade próxima de Nodar (Parada de Ester) uma sopa canadiana, ao mesmo tempo que tentava falar português, sabendo deliberadamente que não estava a falar bem português. E o que é certo é que ela deu essa sopa a provar a cerca de 20 pessoas e só uma é que aceitou provar. Mais uma vez, foram exploradas as questões do medo do novo, do que é diferente, e da timidez. E nesse processo de comunicação qual é o vosso papel? A nós, cabe-nos o papel de intermediários, função que é muito importante até para facilitar a convivência. Cada artista reside em Nodar cerca de três semanas e, por vezes, acolhemos três ou quatro, ao mesmo tempo. É importante que a comunidade perceba que pessoas são, de onde vêm, o que é que estão aqui a fazer, e depois também os próprios trabalhos e projetos podem ter uma componente muito concreta de comunicação, em que é necessário uma entrevista, obter alguma informação sobre o contexto ou a história. De facto, em cada residência, o nosso papel

é, claramente, de mediadores. Às vezes é necessário fazer uma mera tradução, mas também pode ser necessário lidar com questões mais complexas de intermediação pura de conceitos, de ideias… tentar aproximar os diferentes códigos de trabalho dos artistas ao dos habitantes. É necessário desmontar esses códigos para que a comunicação seja facilitada.

Alguns encaram a vontade de fazer projetos no meio rural como uma moda… Neste momento, penso que se assiste a uma certa redescoberta do rural em alguns sectores culturais de criação. Uma aposta que começou nos anos 60 e 70 e depois sofreu algum decréscimo. Agora há uma certa redescoberta que, na maior parte dos casos, aparece associada à tradição, no sentido utópico de recriar um certo tipo de ambiente que também remete muito para formas culturais mais ortodoxas; ao cinema documental e/ou à música. O nosso projeto tenta fugir a essa visão mais tradicionalista e colocar a tónica nos processos de mudança do mundo rural. Como tal não queremos fazer parte da moda do rural, no sentido de que recusamos algumas interpretações que possam não ser as mais corretas. Queremos muito trabalhar sobre os aspectos de crise, de mudança, da imaginação de futuros possíveis, e como tal, às vezes procuramos um certo afastamento dessa onda de projetos em espaço rural, sendo que, obviamente, estamos em

72 contacto com algumas associações que trabalham o mundo rural e que também têm este lado de reflexão e de pensamento, acabamos também por trabalhar muito com elas; outras que têm, provavelmente, uma visão menos reflexiva e mais pura e simples de organização de festivais e outros grandes eventos… interessam-nos menos!

É um projeto que é sustentado neste território… É uma mudança para onde? Não há nenhum programa nesse sentido. Não queremos antecipar que tipo de mudança é que desejamos. No entanto, ao relacionarmos arte e vida já estamos a entrar nesse processo imaginativo e especulativo de imaginar outros futuros possíveis e os próprios artistas colaboram nesse processo de levantar a poeira. A imaginação e criação são instrumentos propícios para esse exercício. Por outro lado, ao estarmos em Nodar, também já estamos envolvidos em processos de desenvolvimento local. De alguma forma tentamos trazer a nossa experiência para estas comunidades e ajudá-las a gerir alguns processos de mudança, nomeadamente, os mais ligados às componentes culturais e ambientais, nomeadamente, de agricultura biológica, de turismo ético e solidário, de promoção da cultura local, também aí tentando servir de intermediários, por exemplo, entre as possibilidades de financiamento que existem e aquilo que sabemos serem as

necessidades e desejos das populações. Ajudamos a que a informação flua. E nada disto é forçado, estamos a passar informação e a comunicar. O ponto fundamental é comunicar, depois o que as pessoas querem fazer com essa informação é com elas. Nem sequer queremos ser os salvadores desta e doutras aldeias da serra. Queremos, simplesmente, dizer que estamos aqui disponíveis.

Em 2009, a Binaural abraçou um projeto educativo, intitulado Aldeias Sonoras, alargando assim também a sua intervenção a públicos mais jovens. Em que é que consiste este projeto? O projeto Aldeias Sonoras (www.aldeias-sonoras.org) é bastante simples. Na prática consiste no mapeamento sonoro de uma determinada região rural, de um espaço geográfico, usando as tecnologias, quer de registo e edição áudio, quer de publicação online e mapeamento dos sons em mapas Google. Dado o know-how que temos desenvolvido em Nodar em relação ao som, achámos que era um projeto perfeito para ser aplicado num contexto educativo. É um projeto simples mas com muitas vertentes, quase multidisciplinar porque está relacionado com questões ligadas à escuta, à sensibilidade para a natureza e para os seus sons, para os sons das próprias aldeias e das pessoas. Este projeto estimula, precisamente, a escuta, aspecto para o qual a juventude, às vezes, acaba por ter mais dificuldade,

73 assim como as questões mais tecnológicas de registo e edição áudio, de publicação na internet e da contextualização dos sons com textos. Este é um projeto que é definido de modo muito simples mas que, de repente, pode tornar-se muito rico. É um projeto quase infinito, porque na prática ele só acabará quando não existirem espaços geográficos onde gravar sons e isso é mesmo impossível! Em 2009 começámos pelo concelho de S. Pedro do Sul, em colaboração com a Escola Secundária de S. Pedro do Sul. E em 2010 estamos em concelhos ao longo do rio Paiva, como Vila Nova de Paiva, Arouca etc.. A ideia é, de acordo com diferentes colaborações que se vão estabelecendo, ir a pouco e pouco abrangendo outras zonas rurais de Portugal.

Qual o balanço que pode já fazer desse projeto? Consideramos esta primeira experiência de “Aldeias Sonoras” muito positiva. Em primeiro lugar, contámos com o envolvimento quer da Câmara Municipal (que apoiou financeiramente o projeto) quer de um conjunto de professores da Escola Secundária de S. Pedro do Sul, coordenados de forma muito atenta pelo Prof. Paulo Paiva. Em segundo lugar, foi possível trabalhar, nas sessões de campo que efetuámos entre Março e Novembro com um núcleo estável de alunos, o que a meu ver gerou neles um sentido de aprendizagem e sensibilização

gradual para os sons da paisagem. Em terceiro e último lugar, pela projeção que o projeto teve: recebemos comentários entusiásticos vindos de organizações e especialistas de Espanha, Itália e França, apresentámos o projeto em conferências, o Carlos Pinto Coelho entrevistou-nos no programa de rádio “Agora Acontece”, o Fernando Alves dedicou uma crónica ao projeto no programa “Sinais” da TSF e o Jornal Público deu um destaque de página inteira no seu caderno P2.

O som mora em qualquer lado? E está mais presente do que muitas vezes nos apercebemos. No fundo, os elementos visuais sempre assumiram uma grande preponderância na Arte, até mesmo na própria vida, as pessoas são muito mais sensíveis à dimensão visual. A dimensão acústica, muitas vezes, é pensada apenas enquanto informação, discurso, palavra, pano de fundo ou poluição sonora, o que acaba por ser um bocadinho redutor. No fundo, o nosso trabalho é tentar incorporar no elemento sonoro a riqueza que é associada a outras áreas/vertentes. No fundo, procuramos dizer que o elemento sonoro é infinito, é infinitamente belo, há que pesquisá-lo, há que aprofundá-lo porque é um mundo infinito de infinitas possibilidades.

74 Qual é a repercussão da criação artística e dos trabalhos feitos em Nodar? Bem, há que distinguir duas realidades em relação ao trabalho que é desenvolvido em Nodar. Em primeiro lugar, há o nosso próprio trabalho de registo permanente sonoro da região e de catalogação dos sons, que a associação tem desenvolvido ao longo do tempo. Esse é um trabalho que tem um fim muito informativo e sistemático. Por outro lado, temos os trabalhos criativos que já foram desenvolvidos por artistas residentes que depois têm uma difusão a vários níveis: o próprio artista divulga o seu próprio trabalho, apresenta-o em mostras e em programas de rádio. Por outro lado, nós próprios além do trabalho que desenvolvemos em Nodar, temos a preocupação de divulgar o mais possível o que fazemos aqui junto de outros públicos, por isso, nos momentos em que não temos residências artísticas organizamos conferências, mostras de trabalhos, exposições, ou seja, há a preocupação de não cingir o trabalho que é feito em Nodar só às pessoas que aqui vivem e aqui vêm ver as apresentações finais. Procuramos promover a itinerância de tudo o que é feito.

Essa recolha documental será disponibilizada ao público? Essa recolha que estamos a fazer norteia-se por uma lógica de catalogação. Obviamente, que muito do que estamos a fazer

acabará por ser publicado online, aliás alguns registos já estão publicados, mas acima de tudo o objectivo é também proteger o património sonoro destas aldeias que pode desaparecer, tal e qual o património material. Procuramos pensar nos sons como qualquer outro património, que merece uma classificação como o outro. Por exemplo, a região autónoma da Galiza definiu, recentemente, o património sonoro como fazendo parte do património imaterial autóctone da região, inclusivamente, fala-se da criação de um museu do som na Galiza, isso mostra o quão eles são sensíveis a estas áreas.

E Portugal está alheio a essa realidade? Penso que sim, sobretudo, quando comparado com a Galiza. Penso que a Galiza como tem uma matriz rural muito forte, obviamente, está muito ligada à tradição, à música folk, na Galiza conseguem abranger uma série de outras áreas que acabam por estar ligadas e não há dúvida que a dimensão sonora é uma área que faz parte do mundo rural e como eles querem ser inovadores e competitivos acabam por lançar esses projetos. Em Portugal parece existir algum preconceito em relação ao mundo rural, e penso que é isso que nos faz estar um bocadinho mais atrasados nestes processos. Portugal é um país que se desenvolveu muito sobre o Litoral, mas em que a maior parte das pessoas vêm do rural, quase que diria que grande parte da

75 população portuguesa tem uma raiz no rural, mas há muita gente a viver na cidade que parece querer esquecer que tem essa herança, às vezes há alguma vergonha em reconhecê-la.

Falta a Portugal inovação na ligação entre arte, comunidades e territórios? Sim, no sentido de associar a criatividade a uma realidade o mais vasta possível, no sentido de pensar a cultura como sendo um elemento da vida que não pode ser dissociado dos outros aspectos da própria vida e como tal não deve ser colocada num pedestal. Acho que a força das indústrias criativas deve também residir no facto de evitarem isolarem-se em guetos desligados do resto da vida e dos territórios, sendo que a criatividade que interessa promover é aquela que é vital e quotidiana. No fundo, de alguma forma, devemos tentar que aquilo que fazemos assuma esse lado de criatividade quotidiana.

Procuram trabalhar outros núcleos rurais? Nodar é o epicentro da nossa intervenção. No entanto, também para evitar alguns riscos de esgotamento temático porque Nodar é uma aldeia muito pequena, vamos trabalhando num um raio de ação cada vez maior e que se estende um pouco a toda esta zona serrana à volta de Nodar, a estes dois lados da montanha: a serra do Montemuro, por um lado,

e o maciço da Gralheira por outro; a dois concelhos como Castro Daire e S. Pedro do Sul e também um pouco a de Arouca, num raio cada vez mais alargado. Por exemplo, estamos a dedicar todo o ciclo de residências artísticas de 2010 ao rio Paiva, que passa junto a Nodar e que é um símbolo de um Portugal que ainda sabe viver em harmonia com a natureza. Nesse sentido estamos trabalhar com os artistas selecionados desde a nascente do rio em Moimenta da Beira até à foz em Castelo de Paiva, passando naturalmente pelo concelho de S. Pedro do Sul. Este ciclo de residências, que se intitula “Paivascapes #1” irá culminar com um grande evento no início de 2011, em vários locais nas margens do rio, e onde serão apresentadas as criações desenvolvidas em residência, a par de conferências, concertos, mostras de vídeo, passeios sonoros, etc.

Outros projetos futuros? Por um lado, reforçar a componente educativa, expandir esses projetos em colaboração com um maior número de entidades. Sabemos que este é um dos caminhos fundamentais para uma maior compreensão desta temática, por outro lado, expandir a nossa área de intervenção, dialogando muito com os diferentes intervenientes, eventualmente, organizar algum evento de uma escala maior. Também queremos reforçar a nossa componente de criação artística própria, isto porque somos um colectivo artístico que

76 trabalha estas áreas do som, da imagem, da performance e da música experimental, sempre com a preocupação muito forte de manter uma reflexão, de dialogar com organizações que estão a trabalhar nestas áreas. Por último, iremos finalmente começar a reabilitação de um imóvel tradicional em Nodar propriedade da Associação, o qual irá albergar todas as nossas atividades a partir de 2012: Terá uma capacidade de acolhimento de 12 artistas em simultâneo, estúdios audiovisuais, uma zona de exposições temporárias, um auditório para eventos artísticos, conferências, etc. e irá albergar um arquivo audiovisual das aldeias serranas do maciço da Gralheira. Na minha opinião este é um projeto estruturante para a aldeia e para a região e que permitirá materializar muitas ideias e iniciativas em condições logísticas de excelência, seja para os utilizadores, seja para todos os visitantes, locais e externos. Resumindo, não temos todas as certezas do mundo, também temos muitas dúvidas, vamos adaptando o caminho em função dessa reflexão.

E qual é esse caminho, por onde passa? O nosso caminho é o da sustentabilidade. O que se pretende é pensar em várias dimensões em simultâneo: Por um lado, temos o nosso projeto artístico contemporâneo que tem uma certa lógica, que tem os seus intervenientes e públicos, mas

estando aqui faz-nos todo o sentido aprofundar outros aspectos, como o do desenvolvimento local e, como tal, acho importante este lado da responsabilidade que cada ator cultural tem de intervenção no seu espaço de atuação. Estar aqui dános uma responsabilidade que não queremos negar e que, no fundo, acaba por dar um sentido mais abrangente ao que desenvolvemos. Essa responsabilidade individual é para mim decisiva nestes tempos em que os grandes ideias de transformação social estão porventura esgotados.

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#13 {ENTREVISTA A LUÍS COSTA POR DANIEL MELO PARA O JORNAL GAZETA DA BEIRA} NOVEMBRO 2008 >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Luís Gomes da Costa, 40 anos, tem raízes em Nodar, freguesia de S. Martinho das Moitas, mas viveu grande parte da sua vida em Lisboa. Licenciou-se em economia, foi professor universitário, trabalhou em instituições financeiras, na área dos modelos econométricos e de gestão de risco e, posteriormente, numa empresa gestora de ativos financeiros, onde foi responsável pelos sistemas de informação. Manteve sempre uma ligação muito profunda com aquela que considera a sua aldeia e a sua região. Há dois anos tomou uma decisão radical, abandonou uma vida profissional estável em Lisboa e veio instalar-se em Nodar, para se dedicar inteiramente à Binaural, associação ligada às artes experimentais. Na casa da família montou um centro de residências artísticas, que tem trazido regularmente a Nodar artistas experimentais de todo o mundo, para fazerem trabalhos sobre a aldeia e a região envolvente.

GB – Qual é a relação que tinha com Nodar quando era criança? LC – O meu pai é de Nodar, a minha mãe, que faleceu há dez anos, era de Sequeiros, que é a aldeia ao lado. Portanto, toda a minha família é daqui. Sempre que havia uma oportunidade, vínhamos a Nodar. Sempre tive esta relação com as minhas raízes, também alimentada pelo meu pai. Mesmo em Lisboa esta região estava sempre no nosso pensamento. Portanto, sempre transportei comigo um desejo íntimo de, mais tarde ou mais cedo, retornar aqui.

GB – Como foi evoluindo essa relação com a região e as raízes? LC – Quando comecei a ter consciência de que os locais que conhecia desde a infância estavam a mudar, comecei a aperceber-me claramente de que ser apenas um espectador era insuficiente. Nomeadamente, houve um momento há cerca de dez anos em que percebi que estas aldeias estavam a começar a viver um processo de mudança que, se correr mal, até pode levar a que elas desapareçam. Em Lisboa lia os jornais daqui da zona e ia acompanhando o que as pessoas pensavam sobre as questões do desenvolvimento rural e destas aldeias mais isoladas, e comecei a preocupar-me com um discurso que, ou é derrotista e diz basicamente que o mundo rural vai desaparecer e portanto não há

78 muito a fazer, ou é um discurso mais empresarial que fala em aproveitar os recursos naturais, mas numa perspectiva de agentes exteriores que os exploram. Eu achava que as coisas eram mais complexas.

GB – Como surgiu o interesse pela arte contemporânea e experimental? LC – Foi um bocado obra do acaso. Gerou-se nos tempos de faculdade, em que eu estava a estudar economia e o meu irmão estava a estudar engenharia no Técnico. Foi ele que conheceu no Técnico algumas pessoas ligadas a estas áreas. Somos irmãos gémeos, portanto partilhávamos muitos amigos. Começámos a ir juntos a alguns concertos, a ir a museus, a ir a galerias e portanto foi um mundo novo que se abriu.

GB – O que levou à fundação da Binaural? LC – Por volta de meados dos anos noventa, o meu irmão começa uma carreira de músico contemporâneo, electrónico e experimental. Começa a convidarme para concertos, começa a compor, e dentro dessa rede de contactos das pessoas ligadas a essa área, eu, o meu irmão e mais dois outros músicos, começámos a congeminar a ideia de criar uma associação que conciliasse a criação artística e a realização de eventos artísticos, com um certo lado de reflexão teórica. Os objectivos iniciais eram

simplesmente criar uma associação que se dedicasse a estas áreas, pois não havia, naquela altura, outra estrutura com estas características. A ideia era também criar algo que desde logo tivesse uma componente internacional muito forte. Sendo que esta é uma área muito residual no contexto das artes em geral, para ter sentido era preciso incorporar experiências estrangeiras na nossa atividade.

GB – Porquê o nome Binaural? LC – Como o núcleo fundador da Binaural está muito ligado ao som, à prática artística baseada no som, binaural é uma técnica de captação de sons que reflete a forma como nós ouvimos.

GB – Com dois ouvidos? LC – É, na prática quer dizer isso, dois ouvidos. É uma questão técnica, mas é mais do que isso, é também uma forma de ouvir e estar disponível para os sons do mundo. Na prática, quem grava com um microfone binaural anda com um auscultador na cabeça e pode passear enquanto vai gravando os sons que são captados, da mesma forma que nós ouvimos.

GB – Como se deu a vinda da Binaural para Nodar? LC – Por volta de 2005, fizemos uma visita a um centro de residências artísticas na Estónia, num aldeia onde um conjunto de

79 artistas ligados mais ao menos às mesmas áreas que nós montou um centro de experimentação artística e de interação social e desenvolviam muitas atividades com as comunidades locais. Achámos que aquela experiência era muito interessante.

GB – Foi essa experiência que determinou a vinda para Nodar? LC – Foi essa experiência que foi determinante, claramente. Depois, essa visita teve uma correspondência prática em 2006, quando ainda antes do nosso centro de residências artísticas ser criado, organizámos um simpósio em Nodar. Foi uma proposta que nos foi feita por esta associação da Estónia. Na altura não tínhamos rigorosamente nada em Nodar e criámos este evento. Convidámos cerca de 20 artistas ligados à “performance”, ao vídeo, à música, ao som, para num período muito intenso criarem um conjunto de obras ligadas ao ambiente de Nodar. Foi uma experiência muito enriquecedora e a partir desse momento, Setembro de 2006, a ideia fica clara: é preciso fazer qualquer coisa de forma regular. No final desse ano, é quando eu decido vir para Nodar.

GB – Até que ponto a vinda para Nodar representou uma revolução na sua vida? LC – Sim, abandonei a minha vida profissional, que era muito estável na altura, e troquei o certo pelo incerto, numa altura da minha

vida, com quase 40 anos, em que a maior parte das pessoas já começa a pensar em segurança. Mas também pensei que se para criar alguma coisa tem de ser agora, enquanto tenho uma certa energia. Tive uma decisão radical, mas uma decisão segura e muito firme. Tive a felicidade de na altura ter conhecido a minha atual companheira, que também é cantora e “performer”, ligada a estas áreas, que durante aquele processo de decisão claramente me disse que queria vir comigo para Nodar e que queria fazer parte desse processo. A Manuela, nesse sentido, tem sido um elemento chave para aquilo que aconteceu.

GB – Abandonou por completo a sua profissão anterior, isto é, despediu-se? LC – Despedi-me literalmente. Foi um choque. Para eles, não para mim. Houve um momento em que toda a gente, quer os meus antigos colegas de trabalho, quer a minha família, achava que eu praticamente estava maluco. Mas as pessoas que me rodeavam começar a ver que as coisas tinham alguma sustentabilidade, quando nós candidatámos os projetos para financiamento e começámos a obter boas classificações e a obter subsídios em todos os eventos que começámos a organizar.

GB – E a nível europeu também têm tido apoios?

80 LC – A nível europeu também. Eu de alguma forma fico surpreendido, porque não há muitos projetos assim, mesmo a nível europeu. Esta ligação do local ao global, ao tecnológico, não é muito comum. A minha experiência pessoal, que liga o meu interesse por Nodar e estas aldeias com as artes experimentais de inspiração tecnológica, ajudou a fazer esta ponte. Aquilo que nós estamos a tentar demonstrar no dia-a-dia, nos eventos que organizamos, é que são mundos que podem comunicar.

GB – O objectivo é mesmo fazer deste projeto uma atividade autossustentável? LC – Sem dúvida, claramente. Para quem estiver envolvido neste projeto, esta atividade tem de ser sustentável. Ela tem várias componentes, educativas, artísticas, de reflexão, todas elas podem gerar proventos e é essa a ideia.

GB – Há também algum lugar para a agricultura em todo esse projeto de vida? LC – É um elemento que acaba por estar no meu pensamento. Há muitos campos em Nodar, nomeadamente campos abandonados, e também há essa consciência de que há algo a fazer. Mas não se pode fazer tudo ao mesmo tempo.

GB – Em termos muitos simples, podia descrever a atividades das residências artísticas de Nodar? LC – Uma residência artística é em primeiro lugar um espaço onde os artistas comem, dormem e trabalham. Convidamos em cada ano um determinado número de artistas, à volta de quinze, de diferentes países, com diferentes histórias de vida, com diferentes áreas artísticas. O que lhes propomos é que desenvolvam uma obra artística que tenha como contexto a região. O resultado final pode ser uma composição musical, um vídeo, uma “performance”, uma instalação, uma escultura, que reflita uma ligação com o local. Organizamos as residências em vários módulos. Em cada módulo, mais ou menos de dois em dois meses, estão sempre três ou quatro artistas a trabalhar na residência.

GB – Como reagem os artistas, nomeadamente os estrangeiros, ao ambiente que encontram em Nodar e na região à volta? LC – Alguns desses artistas nasceram em ambientes rurais e estabelecem comparações com o que conhecem, mas há um elemento comum, a maior parte deles quase não acredita como é possível no séc. XXI existirem aldeias como estas. Há uma harmonia aparente, para quem olha de fora, entre modernidade e tradição. As aldeias deles já desapareceram, no sentido em que se transformaram em pequenos núcleos urbanos. No Centro da Europa o elemento agrícola é um

81 elemento de produção de massa e depois há uma série de pequenas cidades e de pequenas vilas ligadas entre si que, na prática, estabelecem uma malha urbana. Esse lado também nos ajuda a pensar sobre as possibilidades que estas aldeias têm.

privado do espaço de trabalho, e consigamos ter uma atividade doze meses por ano.

GB – Na prática, o que foi preciso fazer para a poder realizar estas residências artísticas?

LC – Houve um primeiro momento, em 2006, quando organizámos o primeiro evento, em que houve uma grande curiosidade. De repente, numa aldeia que tem cerca de 25 habitantes permanentes, as pessoas veem aparecer pessoas de todas as idades, nacionalidades, aparência física e houve um misto de curiosidade e de receio. Houve também uma aceitação mínima, porque as pessoas também nos conhecem, a mim e ao meu irmão, o que atenuou o impacto. E depois, como os próprios projetos artísticos que são desenvolvidos em Nodar têm a ver com o contexto, e em parte envolvem conversas com as pessoas, entrevistas, fotografias, e os próprios artistas já têm experiência anterior e sabem lidar com pessoas que não conhecem, mesmo com barreiras linguísticas pelo meio, isso gera confiança. Depois, as pessoas também têm a consciência de que nada verdadeiramente interessante acontece na aldeia, e a hipótese de haver um conjunto de pessoas de fora que estão um mês na aldeia a trabalhar, é uma animação. Mas nem todas as pessoas, obviamente, aceitam da mesma forma. Há pessoas que não percebem muito bem o que nós estamos a fazer e que rejeitam.

LC – Nós chamamos centro de residências artísticas a uma casa. Para que uma casa seja um centro de residências artísticas é preciso que tenha pessoas, que somos nós, que dão apoio logístico e é preciso ter um conjunto de meios tecnológicos ligados ao vídeo e ao áudio, para os artistas poderem trabalhar e desenvolver as suas obras. Nós começámos este projeto numa casa que é uma casa normal. É uma casa que o meu pai construiu e é nela que temos desenvolvido o projeto. Na prática, uma semana antes de uma residência começar, viramos a casa do avesso, montamos estúdios de trabalho, preparamos toda a tecnologia, preparamos diferentes espaços, quer de trabalho, quer sociais. Esta condicionante não será um impedimento a que o projeto se possa desenvolver. Existe uma outra casa, uma das casas mais antigas de Nodar, que estava abandonada e que nós comprámos há alguns anos, precisamente para ser o futuro centro de residências artísticas, de forma a que consigamos albergar maior número de artistas, consigamos dividir o nosso espaço

GB – Como é que as pessoas de Nodar reagiram ao aparecimento do centro de residências artísticas e à vinda regular dos artistas?

82 Isso faz parte. Nós não queremos ser unânimes, aliás não se pode ser unânime quando estamos num ambiente de experimentação e nós próprios temos muitas dúvidas sobre o que estamos a fazer.

CD ou DVD às pessoas que estiveram envolvidas.

GB – Mas não houve inicialmente um choque de culturas?

GB – O nosso espaço vital não é só a aldeia de Nodar, a aldeia de Nodar é o epicentro, mas nós promovemos o alargamento do nosso espaço. Trabalhamos muito em Sequeiros, em Covas do Monte, em Covas do Rio, do outro lado, já em Castro Daire, na zona de Parada de Ester. Nós mostramos diferentes possibilidades e os artistas escolhem o local que gostavam de conhecer e de trabalhar. Também não temos limites geográficos.

LC – Fazemos sempre questão de dizer aos artistas que trazemos, não obstante a liberdade criativa que eles devem ter, que queremos que seja tudo fluído com a comunidade. Chocar as pessoas era fácil. Nós não queremos isso, queremos é comunicar.

GB – De que modo fazem o envolvimento da comunidade nos projetos artísticos? LC – O envolvimento da comunidade começou de uma forma bastante informal, pelo contacto espontâneo com os próprios artistas. O que nós fazemos é, por um lado estimular a colaboração pela via da curiosidade, e depois acima de tudo é no momento da apresentação final das obras que são desenvolvidas em Nodar, ser dedicado às pessoas, nomeadamente aquelas que estiveram envolvidas no processo, um tempo para explicar como é que uma obra que nasceu em determinadas circunstâncias, no final dá uma coisa diferente, já transformada. E como trabalhamos com meios audiovisuais, é muito fácil no final da residência dar um

GB – Qual é o território de intervenção das residências artísticas?

GB – Quais são as perspectivas futuras para o crescimento do projeto? LC – A nossa ideia base é sedimentar as raízes que fomos lançando. Estamos a tentar chegar a um ponto em que consigamos ter uma atividade doze meses por ano. Temos um plano de edições preparado, CD’s, DVD’s, catálogos. Estamos a preparar um catálogo dos dois primeiros anos de atividade, que vai ser bilingue e vai apostar numa distribuição internacional. Para além do trabalho em Nodar temos uma itinerância de conferências, de mostras de vídeo, festivais e mostramos o trabalho que está a ser feito em Nodar no maior número de contextos possível. Por exemplo, em Janeiro vamos ter

83 uma tournée de mês e meio em universidades dos EUA, da costa Leste à costa Oeste. Por outro lado, há a componente educativa. Temos um projeto, que em princípio vai arrancar em Janeiro, em articulação com a escola secundária de S. Pedro do Sul, dedicado ao som, que se chama Aldeias Sonoras, em que vamos pôr os miúdos e os jovens a gravar os sons de todas as aldeias do concelho de S. Pedro do Sul e a colocá-los num mapa Google. Tudo isso vai ser feito pelos próprios jovens. É um projeto inovador a nível nacional.

GB – Essa componente educativa pretende decididamente estender-se para além de Nodar? LC – Sem dúvida, Nodar também não tem escala para desenvolver um grande projeto. Estamos obviamente a efetuar algumas atividades a nível educativo com as crianças daquelas aldeias, a um nível mais informal, mas a ideia é agora com o tempo as coisas sejam colocadas e desenvolvidas de uma forma mais estruturada. Por outro lado, Viseu é o contexto urbano com maior dimensão aqui da zona, portanto temos uma série de atividades em Viseu para estimular esta ponte entre o rural e o urbano. Já fizemos uma mostra de vídeo no Museu Grão Vasco e agora estamos a apresentar um conjunto de obras sonoras no Teatro Viriato. Também há um interesse das instituições de Viseu em dialogar connosco e nas nossas apresentações em Nodar há cada vez mais gente de Viseu a

aparecer, pessoas ligadas ao mundo da cultura, ao teatro.

GB – A partir de quando vão ter a nova casa em funcionamento? LC – Apresentámos um projeto de financiamento comunitário, estamos à espera, mas queremos que as obras comecem em 2009 e que no final de 2010-2011 já esteja pronta. A ideia é que seja mais do que um centro de residências, que seja um centro o mais possível aberto à comunidade, vai ter também um espaço para as pessoas da aldeia se reunirem, fazer apresentações de cinema, um centro comunitário. Vai ser necessariamente um local dotado de meios tecnológicos.

GB – Como surgiu a ideia da rede das Aldeias de Magaio e como é que a Associação de Nodar se viu envolvida na sua dinamização? LC – Há um ponto de partida que está ligado à participação da Associação Cultural de Nodar nas atividades promovidas pelo Projeto Criar Raízes. Para além do projeto cultural que desenvolvemos em Nodar, achámos que devíamos também estar integrados neste circuito de atividades de cariz ambiental/turístico. O Criar Raízes tem sido importante na dinamização destas aldeias e portanto temos um percurso pedestre em Nodar, a Rota das Bogas, que foi concebido em ligação com o Projeto Criar Raízes, houve uma série de atividades, os

84 cursos de formação em guias de percursos pedestres, em socorrismo, desenvolvidas no âmbito das atividades do Criar Raízes, começámos gradualmente a conhecer as pessoas que estão à frente das associações das várias aldeias, e quando começámos a falar do que poderia acontecer após o fim do Projeto Criar Raízes, em 2009, comecei a pensar por que não criar uma estrutura que dê continuidade a estas atividades e que envolva diretamente as aldeias, em vez de serem geridos por uma entidade exterior. Se as pessoas já se conhecem, se já há uma nova geração de habitantes das aldeias que têm outras competências, que se articulam bem com as competências tradicionais das gerações mais idosas, em vez de cada aldeia desenvolver as suas atividades, por que não trabalhar em rede e em equipa, ter maior massa crítica? Estas ideias começaram a ser discutidas há menos de uma ano, houve uma série de reuniões entre os representantes das diferentes associações das aldeias envolvidas nas atividades promovidas pelo Criar Raízes e foi consensual a ideia de criar uma estruturachapéu, uma associação das associações, que não anule o trabalho individual que cada associação desenvolve, mas que tenha uma visão de conjunto na promoção das atividades, na organização de eventos turísticos numa perspectiva de ligação com o ambiente e com as comunidades. A ideia é que melhor do que as próprias populações das aldeias, não há. São elas que melhor conhecem a sua paisagem, a sua

história, a sua memória, as suas tradições, e se elas conseguirem aliar esse conhecimento de base a um sentido de organização das atividades, é melhor, do que estarem sempre dependentes de empresas de animação turística, ou da câmara, porque elas são detentoras do elemento mais rico neste processo.

GB – E que dificuldades encontraram nesse processo? LC – Não vou dizer que é um processo fácil. Na prática, a associação visa ser uma estrutura de promoção de atividades que são feitas pelas pessoas e pelas diferentes associações. No fundo é como criar uma marca, Aldeias de Magaio, que crie a ideia junto do exterior de que existe aqui um conjunto de aldeias que estão organizadas. Se este nome passar, se houver um conjunto de atividades interessantes desenvolvidas nas aldeias e no espaço geográfico adjacente, e a mensagem passar de que esta é uma zona a visitar e de que é um privilégio as pessoas poderem contactar com os próprios habitantes das aldeias que lhes mostram os seus saberes e a sua paisagem, e com essa ideia projetar esta nova prática.

GB – Mas que dificuldades são? LC – Para já as dificuldades, nesta fase inicial, são montar a estrutura e encontrar financiamento. A ideia é que esta associação não dependa de financiamentos exteriores, eles

85 são importantes, podem ser importantes em função dos próprios projetos que se queiram desenvolver, mas eu diria que é uma associação que tem de gerar receitas e não pode ser a típica associação que está totalmente dependente do financiamento da autarquia. Temos aqui um conjunto de ativos materiais e imateriais, saberes ligados à paisagem, ao artesanato, à própria experiência do rural, que podem ser capitalizados, gerar proveitos para os próprios associados, que são as estruturas representantes das aldeias.

GB – Que passos concretos pensa dar a associação Aldeias de Magaio para promover as aldeias e a Serra? LC – Há um momento inicial que é criar a marca que referi, as bases, o site internet, definir (isto falando deliberadamente numa linguagem empresarial) um conjunto de pacotes de atividades ou experiências, quer a nível cultural, quer ambiental, mas numa perspectiva integrada, em que alojamento, alimentação e as atividades sejam vendidas em conjunto. Porque o que acontece até aqui é que as pessoas, quando têm algum benefício, é o benefício que vem da atividade em si. Depois tudo o resto acaba por ir para outros. Isto pode passar por redes de alojamento particular nas várias aldeias, em que as questões da alimentação também são geridas pelas aldeias, e o benefício potencial é acrescido. Vender esses serviços, ter a marca Aldeias

de Magaio que permita por exemplo que a venda de artesanato ganhe uma escala diferente, fazer uma identificação muito clara de quem são os detentores dos vários saberes das diferentes áreas e selecionar talvez alguns produtos que possam ter alguma intervenção ao nível de design, em suma, pegar nos saberes tradicionais e projetá-los com um sentido de inovação.

GB – E os projetos que tinham sido desenvolvidos pelo Criar Raízes são para continuar? LC – Sim, eu diria que esses projetos acabam por ser o ponto de partida daquilo que vai ser feito daqui para a frente. Estamos a falar dos percursos pedestres e temos hoje uma rede de percursos pedestre muito completa em estreita ligação com as aldeias; depois a iniciativa Cinema nas Aldeias, que é uma iniciativa que o Criar Raízes coordena connosco, Associação Cultural de Nodar, que é obviamente para continuar. Existe a ideia de levar o cinema que se tem feito nas aldeias um bocadinho mais em frente e, por que não, organizar um festival de cinema de temática rural em diferentes aldeias, um festival que tenha uma projeção nacional. Acho que o Criar Raízes foi muito importante no sentido de gerar ideias, mas acho que o ponto fundamental é as pessoas cada vez mais sentirem que estas iniciativas podem gerar benefícios muito claros. Este é provavelmente o elemento mais importante da diferença que queremos

86 estabelecer em relação ao futuro. Não existe um lucro no sentido empresarial, mas o quem é anfitrião e quem participa com trabalho nestas atividades é quem deve receber os proveitos associados.

GB – Porquê o nome Aldeias de Magaio? LC – Magaio é uma divindade que provavelmente foi depois substituída pelo S. Macário nos tempos mais recentes. É também aquele monte, o S. Macário, enquanto símbolo de toda esta zona. Tem-se a ideia de que é uma divindade que está ligada a uma ideia daquele que cria, daquele que nutre, daquele que gera, o que é uma boa metáfora.

GB – Como se posiciona a Aldeias de Magaio em termos da relação com os restantes atores locais? LC – A Aldeias de Magaio posiciona-se duma forma completamente independente de poderes políticos e económicos. As associações de desenvolvimento regional têm um fim muito específico, por outro lado há as juntas de freguesias, mas às vezes sente-se que a palavra verdadeira daquilo que são as pessoas e as aldeias acaba por não ficar reflectida em nenhuma das entidades que existem, isto com exceção obviamente das próprias associações das aldeias. A ideia é criar uma entidade de diálogo, mas o mais possível que se demarque dos poderes mais conjunturais.

GB – O seu percurso de vida coloca-o numa posição muito privilegiada para confrontar mundo urbano e mundo rural. Que tipo de apreciação faz destes dois modelos de vida? LC – Eu diria que aquilo que o urbano tem de mais interessante é a quantidade de estímulos, de experiências que se pode ter, pessoas que se podem conhecer, oportunidades que se podem ter. Esse é o paradigma do urbano: as pessoas vão para a cidade pelo número de possibilidades. O que eu vejo é que, provavelmente, nos últimos anos as coisas estão a mudar, no sentido em que o paradigma urbano versus rural enquanto entidades completamente diferentes está a mudar. Há uma degradação da vida urbana, pode-se dizer que há mais pobreza na cidade do que no mundo rural e com todas estas crises a acontecerem vemos que o paradigma da cidade enquanto resolução de todos os problemas financeiros e económicos já não é tanto como era. Por outro lado, há uma vivência mais completa no contexto rural do que no contexto urbano, também no sentido em que hoje os meios tecnológicos ajudam imenso a que nunca se perca o contacto com o resto do mundo. As vias de comunicação ajudam imenso a que uma pessoa possa viajar, mesmo estando a viver num local. Hoje as pessoas, podendo viajar, faz sentido viver o rural como não estar a perder definitivamente outro tipo de experiências, o que torna o rural

87 um meio muito atrativo. Os próprios processos de globalização, que na prática também estão de alguma forma associados a um contexto urbano, também mostram que a autossubsistência de um país e nomeadamente das zonas rurais é um elemento que provavelmente vai ser cada vez mais importante. Penso que a crise mais recente veio provar que quanto mais cada país e cada região for sustentável, o potencial de sobrevivência é maior. Portanto, aí o mundo rural pode, num futuro próximo, readquirir um novo alento. Por um lado já não é tão afastado, tão arcaico, tão isolado como era há 30 anos, por outro lado, tem um conjunto de possibilidades interessantes.

GB – Até que ponto estaremos à beira de um certo regresso ao mundo rural? LC – Eu penso que ainda há muitos jovens que vão para Lisboa, muito por hábito. Por duas razões, porque veem os seus familiares há algumas gerações a fazerem o mesmo, mas também porque quando vão para a cidade vão à procura de um emprego fixo. E aqui, no mundo rural, o emprego certo é para poucos, nomeadamente para aquelas pessoas que vão para a sede do concelho trabalhar nalgum serviço. Penso que existem muitas possibilidades nesta zona, mas que dependem da iniciativa pessoal e, como tal, de um risco e Portugal é um país em que tradicionalmente as pessoas não arriscam muito. Os

jovens das aldeias que eventualmente possam estar a viver fora e que possam pensar em voltar, para isso têm de voltar com outra filosofia, não com mira num emprego fixo, mas com algum tipo de iniciativa, ou dedicada a estas novas áreas do ócio, do turismo, ou mesmo ligado às atividades normais, a agricultura, a indústria, o artesanato, a manufactura. A iniciativa é o elemento que pode fazer a diferença. Se houver essa mudança de mentalidade, podemos assistir a que muita gente possa regressar, nomeadamente os jovens. E por outro lado, o rural pode estar mais na moda do aquilo que alguns possam pensar.

GB – O que quer dizer quando diz que o rural pode estar mais na moda do que as pessoas pensam? LC – Ao haver um conjunto de novas atividades ligadas ao mundo rural que começam a ter alguma projeção, na prática, inconscientemente, estamos a dizer que o rural está na moda. Mas se o dizemos desta forma, algumas pessoas vão-se chocar, quando se fala nomeadamente das aldeias abandonadas e do envelhecimento das populações. Mas, se calhar, são duas realidades que estão a coexistir, de um lado um processo de envelhecimento das populações, ao mesmo tempo um conjunto de novas atividades que estão a aparecer.

GB – Por que são as pessoas que nasceram em ambiente urbano que o perceberam mais depressa?

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LC – Provavelmente porque vêm de um contexto em que a racionalidade é uma evidência e portanto, pensando nas possibilidades enquanto recursos, é quase uma equação, e as pessoas estão a perceber que as sociedades vão mudando e nomeadamente hoje em dia os aspectos ligados ao ambiente, por exemplo, têm uma preponderância que antes não tinham, é natural que tenham uma atração quase física pelo mundo rural. Hoje em dia, por via da razão pode-se chegar à conclusão de que é um mundo interessante, quer ao nível da vivência pessoal, e se calhar é o elemento mais importante, a busca da felicidade, viver uma vida mais completa possível e com estímulos positivos, a serenidade, de sentirmos que a nossa vida é rica. O mundo rural é muito rico a nível sensorial.

GB – Como pensa que pode ser estancado o processo de despovoamento das aldeias? LC – Eu penso que as pessoas quando abandonam a sua aldeia, fazem-no por razões pessoas, não sentem que estão a contribuir para algo irreversível, e muitas vezes há pessoas que simplesmente mudam de aldeia. Às vezes as aldeias não desapareceram porque todos foram para a cidade. É o caso da Drave, a aldeia desapareceu, mas muita gente da Drave vive em Covas do Monte. Na prática o que provavelmente provocou que uma aldeia desaparecesse foi provavelmente um conjunto de razões práticas e uma menor

consciência da importância que uma ação individual estava a ter numa coisa mais vasta que era a vida duma comunidade com 500 ou 600 anos. Se calhar para impedir que outras aldeias desapareçam, as pessoas devem ter consciência do que representam no fluxo histórico da vida duma aldeia, e do papel que têm as decisões que elas tomam na sua vida. Essa consciência pode levar a que as pessoas tomem umas decisões em vez de outras. Isto sem pensar na possível vinda de pessoas de fora. Pode ser uma via possível, não me parece nem mais nem menos interessante do que outras vias. Pessoalmente, não acho que as aldeias tenham de existir à força toda. Há uma coisa que é o fluxo normal, as aldeias sempre foram criadas e sempre desapareceram.

GB – Mas acha que isso é comparável com o processo que se está a viver agora? LC – É evidente, agora é um processo que parece que tem um sentido só.

GB – O que pensa do modelo de desenvolvimento que tem sido seguido ao longo dos últimos trinta anos para o mundo rural? LC – Acho que o ponto fundamental é que nunca as pessoas que aqui vivem foram tidas como importantes para a promoção do desenvolvimento. Há algumas iniciativas válidas nos últimos trinta anos, mas penso que

89 falharam nitidamente as questões de linguagem e de pôr as pessoas a fazerem parte. O que eu noto é que nitidamente as aldeias foram mantidas à margem dos vários quadros comunitários que foram aparecendo, com exceção de algumas iniciativas que foram acontecendo, mas em termos gerais não mudaram muito a vida das pessoas. Se olharmos para aquilo que são hoje as aldeias e aquilo que eram há 20 anos, obviamente que hoje têm saneamento – as que têm – têm eletricidade, mas basicamente eu diria que o dinheiro que foi ganho à volta do que é o mundo rural e do que é a paisagem rural é incomparavelmente maior do que aquilo que foi o benefício das próprias aldeias. Esta equação, para mim é a prova mais cabal de que algo esteve errado. Nomeadamente, penso que isto foi um bocadinho acentuado nos últimos anos, quando de repente toda a gente começa a perceber que afinal é o turismo que é o grande maná aqui da zona. Agora até vêm os quadros das empresas fazer atividades de “outdoor” e portanto esta região é óptima para essa gente toda. No fundo é o rural enquanto palco. O rural tem mais vantagens em ser um espaço de diferentes possibilidades, que coexistem, que são dinâmicas e em que os atores locais são tidos e achados para os caminhos que se escolhem.

GB – Acha que os objectivos de desenvolvimento que têm sido procurados para estes concelhos

são os mais adequados à sua realidade? LC - Eu penso que, em termos gerais, há uma consciência muito marcada do valor que os produtos agroalimentares locais têm, o que eu vejo acima de tudo, é que a forma como estes processos foram estruturados… quem os tentou implementar, raras vezes o concebeu de tal forma que este modelo pudesse funcionar em benefício das aldeias. Penso que quando o discurso é correto, a prática nunca chega verdadeiramente… E obviamente que os agentes económicos que se apercebem do valor disto tudo também se posicionam para capitalizar. Mas por outro lado, diria que há experiências interessantes que vão acontecendo, em Trás-os-Montes, no Alentejo, mas que são experiências isoladas, que depois em termos macro nunca chegam a gerar um modelo de desenvolvimento.

GB – Considera que os modelos de desenvolvimento adoptados são demasiado urbanos? LC – Eu acho que sim, eu acho que o rural foi visto nos últimos trinta anos como subsidiário do urbano. Provavelmente toda a gente pensava que isto, mais tarde ou mais cedo, vai acabar tudo, mas enquanto não acabar vamos aqui criar um megapalco para consumo urbano, seja a nível alimentar, seja a nível de experiências, e em que não se teve em consideração quem cá vive.

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Pode-se dizer que em termos gerais o turismo é uma atividade maioritariamente para consumo urbano. Mas a escala do turismo nesta região nunca pode ser acima de um determinado patamar. Se se pensa que uma paisagem, uma cultura local de uma determinada região têm valor, é preciso pensar que eles podem ser colocados em risco pela concentração num único modelo de desenvolvimento que por exemplo tenha só a ver com o turismo. Porque acima de uma determinada escala as coisas começam a ter mais efeitos negativos do que positivos. Acho que o nicho para esta região é claramente um turismo ético e solidário, pessoas que verdadeiramente percebem o que é estar numa paisagem rural, que respeitem, que comuniquem, e no que toca ao turismo, tem de ser esta a via para estas aldeias, não pode ser outra coisa. Depois tem de haver uma articulação com diferentes elementos ligados à agricultura (a agricultura nunca poderá ser em quantidade, mas enquanto qualidade e enquanto associada à experiência cultural). Vejo este caminho possível, diferentes formas de vender a experiência do rural, por via da agricultura, por via do turismo, por via da cultura, não obstante obviamente da iniciativa privada pura e dura, da indústria. O rural precisa de indústria e essa iniciativa privada industrial é importante; têm é de ser escolhidos bem os locais onde se podem desenvolver determinadas atividades.

GB – Que perspectivas se poderão abrir para a agricultura, mesmo para a agricultura tradicional, nestas transformações que estamos a viver? LC – Não falando de experiências numa perspectiva empresarial, que possam ser vendidas em grande escala, mas falando num plano transversal às várias famílias que compõe as aldeias, quanto mais autossubsistência as famílias puderem ter, melhor, nomeadamente nestes momentos de crise. Há muita gente nas aldeias que durante o dia tem um emprego e depois chega a casa e cultiva inclusive extensões de terreno grandes. As pessoas poderem conciliar a preservação do território agrícola, com uma produção para consumo próprio e alguma venda, mas que possa ser conciliada com outra atividade, é um elemento que pode ser facilitador para o mundo rural não desaparecer. Eu diria que poucos conseguirão definir uma estrutura de negócio de forma a que se dediquem a 100%. Por exemplo, a agricultura biológica pode ser um caminho possível mas nem todo o vão conseguir fazer na escala desejável. Mas as pessoas não têm de ter só uma atividade, e hoje em dia isso é perfeitamente possível, é um meio de reduzir o risco. Depois, provavelmente, há que selecionar determinados produtos que sejam mais apetecíveis, nomeadamente para um mercado mais vasto.

91 GB – Tudo isso passa muito pela iniciativa das pessoas? LC – É, sem dúvida e de as pessoas desta região perceberem que elas têm de assumir uma parte de risco para conseguirem, porque senão vão ser outras entidades a fazê-lo, entidades que estão mais do que habituadas a gerir riscos. As pessoas aqui ainda estão muito ligadas a um sentido de segurança e de estabilidade. As pessoas diziam em relação a mim próprio que eu era maluco, ao ter assumido o risco de deixar um emprego estável, isso é uma coisa que nitidamente não é bem aceite. Acho que é preciso as pessoas ganharem uma nova iniciativa, e perceberem que num mundo em crise, todos têm de ir à luta. Os tempos calmos, tranquilos em que havia certezas do princípio ao fim da vida, acabaram.

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