\"Vou te dar um papo reto\": linguagem e questões metodológicas para uma etnografia do funk carioca. Candelária (Rio de Janeiro), v. jul-de, p. 99-108, 2009.

September 30, 2017 | Autor: Adriana Facina | Categoria: Funk Music History, Antropologia Urbana, Linguagem
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“Vou te dar um papo reto”: linguagem e questões metodológicas para uma etnografia do funk carioca Adriana Facina Doutora em Antropologia social e professora do Departamento de História da UFF

- E aí, qual vai ser da parada? - O bagulho é de um camarada meu, parceirão. Festa regada, whisky e redbull liberado e mais o lance que a gente acertou. - Num é caô não, né, véio? - Que caô o que rapá! Tá maluco! Sô sujeito homem pô, vô te colocá em parada errada? - Tá maneiro então! Mas e o contexto lá? Sabe como é, outra facção ... pode bater neurose... - Que nada, cara! Lá o patrão é tranqüilão, sem neurose. E já tá tudo desenrolado. - Então já é. - Já é então. Fui!!!!

Diálogos similares a esse acima foram ouvidos por mim inúmeras vezes no trabalho de campo. No caso, trata-se de uma combinação para a apresentação de um MC num evento numa favela carioca, falado em bom favelês. Este termo foi publicizado por MV Bill e explicita um aspecto típico da cultura carioca: a existência de uma língua produzida a partir das interações sociais que ocorrem nas favelas e que impõem gírias e modas lingüísticas ao conjunto dos habitantes das cidades. Uma das maneiras de se conhecer e de se atualizar com as gírias do momento na cidade é justamente ouvir o funk, que hoje ocupa o lugar do samba na difusão e mesmo tradução desses outros falares urbanos do Rio de Janeiro. Minha intenção aqui é refletir sobre os problemas e questões com os quais venho me deparando na minha pesquisa de pós-doutorado em Antropologia, cujo tema é o funk. E é impossível estudar o funk sem se familiarizar minimamente com o favelês. Ao contrário dos estudos antropológicos que se voltam para povos distantes geográfica e culturalmente em relação ao antropólogo, na Antropologia Urbana as barreiras

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lingüísticas não costumam ser alvo de reflexões metodológicas mais aprofundadas. E, se no que diz respeito ao aprendizado de línguas diferentes da língua materna dificilmente conseguimos falar como os nativos, quando nos comunicamos na nossa própria língua também podemos nos encontrar em situações onde determinadas gírias e vocabulários nativos incorporados ao nosso falar também gerem estranhamento e marquem ainda mais nossa identidade de outsider, de estrangeiro, mesmo em ambientes muito próximos fisicamente de nosso lugar de moradia. Em contextos diversos, William Foote Whyte e Hermano Vianna relataram experiências em seus trabalhos de campo, o primeiro num bairro pobre de imigrantes italianos em Boston nos anos 1930 e o segundo em seu estudo sobre o mundo do funk carioca nos anos 1980, nas quais foram alvo de repreensão ou de ridicularização de seus informantes por terem se comunicado utilizando o linguajar local.1 No caso do diálogo acima, praticamente nada do que foi dito pode ser compreendido por quem não está minimamente familiarizado com o favelês. Traduzindo: - E aí, como será o evento? - O evento será organizado por um grande amigo meu, uma pessoa de confiança. Festa com fartura, whisky e redbull gratuitos e à vontade e mais o cachê que a gente acertou. - Não seremos enganados não, né? - Claro que não, rapaz! Tá maluco! Sou uma pessoa honesta, de caráter, de confiança, com palavra. Vou te prejudicar? - Tudo bem então! Mas e os traficantes de lá? Sabe como é, outra facção (criminosa, outro comando) ... podem cismar com a gente... - Que nada, cara! Lá o chefe do comércio de drogas é tranqüilo, calmo, não é violento. E já tá tudo acertado. - Então estarei lá. - Então tudo bem. Tchau!!!!

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  VIANNA, Hermano. 1988. O mundo funk carioca. Rio deJaneiro, Jorge Zahar e WHYTE, William Foote. Sociedade de esquina. A estrutura social de uma área urbana pobre e degradada. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005  

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Bagulho, parada, caô, neurose são termos cotidianos nesse linguajar. Orestes Barbosa, no livro Bambambã!, cujo título remete à denominação do malandro no Rio nos anos 1920, fala da importância dos malandros desenvolverem uma linguagem cifrada que não pudesse ser entendida pela polícia. “O malandro nacional fala uma língua estranha. O gatuno, principalmente, usa um vocabulário especial, com o qual pode falar junto dos policiais inexpertos e sem receio de ser compreendido.”

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E, até

hoje, muitas das gírias que ganham a cidade nascem primeiramente nas cadeias. Uma das suas características é uma certa carnavalização, segundo Bakhtin, que inverte sentidos ou confere ambigüidades às palavras, ressignificando-as.3 Um exemplo é a gíria simpático. Ser chamado de simpático nas favelas tem significado inverso ao uso costumeiro da palavra. Como está descrito na música Simpático, de Mr. Catra, a simpatia é atributo daqueles que adulam os bandidos que comandam o varejo da droga no morro e por isso se consideram fortes e valentes, desafiando os que ele pensa serem mais fracos por não possuírem intimidade com o “patrão”. A confusão que uma inversão dessas de significado pode causar me lembra um antigo comercial de um curso de línguas que brincava com situações nas quais a falta de domínio da língua espanhola criava situações constrangedoras devido ao uso inadequado de palavras como exquisito ou embarazada. Imaginem uma recomendação do tipo: “não converse com fulano, porque ele é cheio de simpatia.” Essa linguagem malandra, carnavalizada, obviamente não é utilizada somente por malandros e se difunde amplamente entre tipos sociais diversos na favela. Embora mais identificada ao universo jovem e masculino, também está presente nas falas de mulheres e de pessoas mais velhas. Uma exceção notável são os evangélicos, que não costumam compartilhar desses termos em seu vocabulário, preferindo adotar um falar mais formal e próximo das normas cultas da língua portuguesa. Outra característica a ser observada na linguagem das favelas é a rapidez com que gírias e novas expressões surgem e entram em desuso. Outras, por sua vez, acabam se enraizando na linguagem popular e permanecem. Um samba composto por Padeirinho e Ferreira dos Santos, chamado Linguagem do morro, e gravado pela                                                                                                                         2

BARBOSA, Orestes. Bambambã!. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1993, p.117. 3   BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. São Paulo, Hucitec; Brasília, UnB, 1993.  

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primeira vez por João Nogueira em 1980, demonstra essa dinâmica ao apresentar algumas gírias que hoje não são mais utilizadas em meio a outras que ficaram: Tudo lá no morro é diferente Daquela gente não se pode duvidar Começando pelo samba quente Que até um inocente sabe o que é sambar O outro fato muito importante E também interessante É a linguagem de lá Baile lá no morro é fandango Nome de carro é carango Discussão é bafafá Briga de uns e outros Dizem que é burburim Velório no morro é gurufim Erro lá no morro chamam de vacilação Grupo do cachorro em dinheiro é um cão Papagaio é rádio Grinfa é mulher Nome de otário é Zé Mané Esse samba também revela o papel da música como mediadora entre o morro e o asfalto, estabelecendo pontes por meio da tradução dos estilos de vida e da linguagem da favela para termos compreensíveis para os não iniciados. Como pesquisadora, tive algumas vantagens na minha iniciação ao favelês. Primeiramente, por ser carioca e ter vivido boa parte da minha infância em bairros populares. Além disso, a favela não era um ambiente estranho a mim antes da pesquisa em razão de minha militância política. Por fim, o fato de sempre ter gostado e freqüentado rodas de samba, ensaios de escola de samba e de ouvir funk (sobretudo proibidão), hip hop e Bezerra da Silva me ajudou bastante. Há toda uma literatura produzida a partir dos anos 1990, como Cidade Partida, Cidade de Deus, Abusado que narraram a favela de pontos de vista diversos e também traduziram, ainda que de modo

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contraditório e muitas vezes exotizante, essa linguagem para um público mais amplo. No entanto, ainda assim, há algumas dificuldades que aparecem tanto nas situações do campo quanto na análise das letras do funk. Em alguns contextos, não há como perguntar na hora sobre o significado de uma determinada palavra. Mas é preciso contar com interlocutores que possam servir de tradutores. E, como a performance é que define o significado das palavras que são carregadas de ambigüidades, é fundamental não se deter somente na análise das letras, mas perceber o contexto em que aqueles significados foram gerados. Isso requer freqüentar os bailes funk e também participar das sociabilidades faveladas. Conversas de botequim ou nas esquinas, festas, eventos são parte do estudo, já que é a vida na favela como um todo a fonte de inspiração para o funk. Sem esse contexto, muitas das letras do funk não fazem sentido e mesmo seus ritmos, assunto que não poderei aprofundar aqui. Com mais familiaridade com as gírias e com o contexto da vida na favela, é possível fazer das próprias letras fontes de informação, percebendo valores e dicas de procedimentos importantes para quem está imerso na observação participante. Um exemplo é a letra do funk Nem tudo que reluz é ouro, nem tudo que brilha é prata, do MC Galo, um dos artistas mais associados ao canto da vida na favela, seu cotidiano, bem como à crítica social e ao universo da malandragem, muito semelhante ao que Bezerra da Silva representa para o samba. Já no título o autor nos alerta contra as falsas aparências, ao mesmo tempo em que faz uma brincadeira com o brilho, gíria utilizada para se referir à cocaína. Vamos à letra:

Então vamo assim então ó Nem tudo que reluz é ouro, nem tudo que brilha é prata O sucesso sobe à mente só na cabeça dos babaca Eu sou o MC Galo, todo mundo me conhece Não trato com maldade nem aquele que merece Porque o meu sangue é puro, sou negão e sou da cor Minha corrente é forte porque eu tenho meu valor Se liga rapaziada no que agora eu vou dizer: Humildade é praticada, se falar deixa de ser

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Vamo DJ Vamo lá Sou história do funk isso eu tenho que falar Sou história do funk vc tem que respeitar Sou história, vivo sempre a cantar Solta o pancadão DJ, a galera quer dançar Nem tudo que reluz é ouro, nem tudo que brilha é prata O sucesso sobe à mente só na cabeça dos babaca Eu sou o MC Galo, todo mundo me conhece Não trato com maldade nem aquele que merece Porque o meu sangue é puro, sou negão e sou da cor Minha corrente é forte porque eu tenho meu valor Se liga rapaziada no que agora eu vou dizer: Humildade é praticada, se falar deixa de ser Oi Jacaré que dorme vira bolsa de madame Sempre estou de olho aberto por onde estou passando Porque hoje a judaria é problema mundial Tá ligado em São Paulo na Favela Naval? Oi Todos os meus momento eu sempre peço o nosso Deus Que proteja a mim e todos amigos meus Minha cara autoridade vê se não me leve a mal Eu sou um artista do funk, eu não sou um marginal Se me atingirem pelas costas, não ligo, estou contente É sinal, meus amigos, que eu estou sempre na frente Favela tão linda, a Rocinha é meu lugar Foi lá que eu comecei, lá eu quero terminar Na rua 1, Cidade Nova, A via Ápia, o Boiadeiro Mas é claro, meus amigos, Roupa Suja vem primeiro Paula Brito, 99, Fundação, Curva do S E as demais galeras cante com Galo esse

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É na palma da mão, o bicho vai pegar Estou indignado, eu vou fumar um classe A Estica o ratatá tá dando eu vou ficar Se liga rapaziada que o bicho vai pegar Tô em pé sem cair Deitado, mas sem dormir Preparado sem fazer pose, é o bonde dos MC Formiga de tamanco não sobe parede não Nem perna de barata é serrote meu irmão Barata viva não atravessa o galinheiro Por que o Galo está lá? porque é um cara maneiro Traz na mente da consciência, seu cabeça de bosta Rio que tem piranha jacaré nada des costa A música é paradigmática porque reúne vários elementos presentes nos funks: elogio da favela de origem do MC, crítica social (cita o episódio da Favela Naval, ocorrido em março de 1997, qdo policiais da Rota paulista agrediram gratuitamente várias pessoas e mataram um trabalhador em suas operações, fato que foi filmado por um morador e depois divulgado na TV), e, através de ditados populares, dá as dicas da malandragem necessária a pretos e pobres para sobreviverem tanto na favela, qto na sociedade como um todo. O valor da humildade, central na sociabilidade popular, também é tema do funk e não está associado a um “colocar-se no seu lugar”, submeterse, mas sim a não deixar contaminar as relações sociais pelo mercado, pelo poder obtido com fama ou dinheiro (ele revela isso ao elogiar a Rocinha e falar de toda as suas áreas). Por fim, uma consideração metodológica importante se relaciona com confrontação dessa linguagem com as normas do português culto. Muitos dos críticos do funk dizem que ele representa a falência do sistema público de ensino, o que se revelaria na pobreza das letras e nos “erros de português”. Claro que, como antropóloga, eu jamais poderia concordar com essa afirmação. A falência da educação pública é fato, mas é necessário relativizar e contextualizar os diferentes modos de apropriação da língua pelas camadas populares, pois eles envolvem sonoridades, sentidos e conformações históricas que criam elementos fora da norma culta e que não podemos entender como erros, sob pena de simplificar processos complexos de criação cultural.

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Recentemente, num programa de televisão, uma professora de português analisava um funk do grupo Gaiola das Popozudas que diz: “eu vou pro baile procurar o meu negão...” A professora entendeu a frase como um equívoco e sugeriu que elas cantassem “Eu vou para o baile ...”, o que inviabilizaria o ritmo, o andamento da música, caso sua sugestão fosse aceita, bem como diminuiria sua capacidade de comunicar algo a seu público de modo verossímil, pois essa verossimilhança está ligada exatamente à dinâmica da fala. Essa mesma linguagem que cria algumas dificuldades metodológicas para as quais o pesquisador tem de estar atento, permite que o funk seja um grande veículo de comunicação, falando diretamente ao seu público. Para entendermos o potencial de comunicação popular que o funk possui, é preciso levar em conta que ele é hoje o estilo musical mais difundido nas favelas e periferias cariocas. Estima-se que em todo o estado existam cerca de 5 milhões de funkeiros e podemos dizer que são poucas as festas e bailes da juventude carioca nas quais o gênero não é tocado. Os bailes funks, nas favelas ou no asfalto, reúnem milhões de jovens a cada semana e é possível encontrar em vários deles um público de mais de 5 mil pessoas. Além de ser um tipo de música, o funk também configura estilos de vida e consumo que são identificados às favelas. Com isso, o funk pode ser compreendido como um meio de comunicação popular com grande influência sobre a juventude pobre. Expressando realidades múltiplas,

servindo

como

diversão,

transmitindo

mensagens

e,

sobretudo,

transformando em registro artístico a linguagem da favela, cheia de gírias e sentidos diversos da língua culta. Como o funk, que se origina nas favelas, chega ao asfalto também com grande impacto acaba servindo de mediador entre as diferentes línguas da cidade, contribuindo para incorporar ao português carioca os falares do morro. Num contexto no qual cada vez mais as favelas são guetificadas por uma política de (in)segurança pública que é marcada pela criminalização da pobreza, o funk ganha uma importância comunicacional ainda maior, espécie de “jornal popular”, no dizer de Mr. Catra capaz de, em alto e bom favelês, mandar o papo reto para toda a sociedade brasileira.  

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Resumo: O artigo se volta para os desafios do trabalho de campo nas favelas cariocas no que diz respeito à questão da linguagem. O favelês é o parte dos falares urbanos e possui especificidades e contextos próprios de interação verbal que devem ser apreendidos pelo pesquisador que investiga sociabilidades populares, sobretudo o funk. Palavras-chave: favela, funk, linguagem.

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