Vox, voces: memorial

October 8, 2017 | Autor: F. Silva | Categoria: Brazilian Studies, Brazilian Dictatorship
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Neste Memorial não estará presente, por total falta de tempo e pelo fato de que jamais pensei, após o concurso de titular na UFRJ, em fazer um novo concurso público, inúmeras participações em bancas de monografia, dissertação, teses e de concursos públicos para professor – simplesmente não guardei o material e não registrei ( nem mesmo existia, de início ) na Plataforma Lattes. Assim, "deitado em berço esplêndido", desprezei comprovantes, incluindo de dezenas de palestras e similares, e não mantive os dados dias – creio que isso será em benefício dos leitores. Da mesma forma, alguns livros e artigos que publiquei simplesmente sumiram, estão esgotados ou o empréstimo os levou sem volta, como no "rapto do serrote". Desta forma, desculpo a mim mesmo pelas ausências aqui contidas, com o atenuante de não contar com os desaparecidos como "baixas de guerra" em benefício, desta feita, próprio. Aproveito, sob o disfarce curto da pressa, para lamentar os erros, em especial de digitação, aqui cometidos.
AGULHON, Maurice. Essais de Ego-Histoire. Paris, Galimard, 1987 - hoje, ao escrever esta narrativa, me dou conta que este livro, que tanto me influencia agora, foi um presente de Maria Yedda Linhares.
MOSSE, George. Confronting History: a Memoir ( 1999). Wisconsin, University Press, 2000.
Com uma pitada de sabedoria abandonei, desde logo, as considerações sensíveis e ricas do último livro de Tony Judt (1948-2010) chamado "O Chalé da Memória" (Rio de Janeiro, Objetiva, 2012). Neste caso, a narrativa de memórias de Judt – um dos mais importantes historiadores do Tempo Presente – importava em um esforço titânico de um homem de riquíssima formação acadêmica e humanista aprisionado pelas teias de uma doença paralisante, para manter-se pensante. Para Judt, no seu "chalé da memória", tratava-se de garantir a lucidez e comunicabilidade. Estou longe de qualquer experiência comparável. Trata-se aqui de algo mais banal, muito mais simples. Mas, do livro de Judt guardei, mesmo que não alcance a meta, a opção pela simplicidade e o abandono do barroco dos "palácios de vestígios e lembranças", esperando bem mais o conforto de um simples chalé de memórias vividas.
Os documentais fundamentais, comprovantes, como carteira de identidade, titulo de eleitor, e os diplomas ou certificados de graduação (bacharelato e licenciatura), especialização, mestrado ( no Brasil e Alemanha), doutorado, comprovação de titularidade e de emerência estão, todos juntos, na pasta sob esta rubrica DOCUMENTOS SÉRIE 1.
"Fita Amarela", de Noel Rosa ( 1910-1937), de 1932.
Tive, então, uma curta e impactante passagem pela FUNAI, onde fiz o curso Indigeanismo e depois fui nomeado chefe de posto indígena, que me marcaria profundamente, em especial no respeito pela diferença, pelas formas não produtivistas de viver a vida e de se relacionar com os outros e com a natureza e, ao mesmo tempo, por uma desmitologização da condição indígena. Ver DOCUMENTOS SÉRIE 1.
Para um amplo debate sobre os anos de chumbo da FnFi/IFCS ver: WERNECK DA SILVA, José Luis. A Deformação da História. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1985 e FALCON, Francisco. J.C "A Cadeira de História Moderna e Contemporânea e o ensino e a pesquisa históricas na FNFi-UB"; in : Mattos, Ilmar R. de (Org.) Histórias do ensino da História no Brasil. Rio de Janeiro, Access, 1998 , pp. 111 – 134 e Idem. "Historia e Historiografia nos anos 50 e 60 do ponto de vista da Cadeira de História Moderna e Contemporânea da F.N.de Filosofia" in: TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos, Mattos, Hebe e FRAGOSO, João. (Organizadores) Escritos sobre História e Educação. Homenagem à Maria Yedda Leite Linhares. Rio de Janeiro, Mauad& FAPERJ, 2001; pp. 599 – 612.
Em concurso público pouco tempo anterior ao meu próprio concurso em 1993, a UFRJ alistou jovens professores como Silvio Carvalho, Maria Paula Araújo e Clara Goés. Estes formavam, ao lado do "velhos" Francisco Falcon, Adilson Monteiro e Maria Yedda (anistiados) a área de História Moderna e Contemporânea no pós-regime civil-militar.
Hoje lá funciona o colégio estadual Amaro Cavalcanti. Trata-se de um belo prédio neoclássico construído por dotação pública decorrente da oferta de uma "espada de ouro" ao imperador, em virtude da vitória na Guerra do Paraguai. Com a recusa imperial em receber tal equívoca homenagem, e sob sua sugestão, foi construído o prédio que viria abrigar, muito mais tarde, a UDF.
Helio Vianna, filho de um comendador mineiro nascido em 1908 em Belo Horizonte, formou-se em Direito na antiga Faculdade Nacional de Direito, do Rio de Janeiro, mais tarde incorporada a UDF e Universidade do Brasil – e suas aulas e seu livro-texto guardaram sempre seu leguleio e apego ao formalismo, longe da heurística de Delgado de Carvalho. Integrou-se, a convite de Plínio Salgado em 1931, a Ação Integralista Brasileira/AIB, onde era responsável pela versão integralista de textos e cursos de História do Brasil, chamada então "História pátria", criando uma vulgata fascistizada da "História Nacional". Com Lourival Fontes criou, e foi redator, da revista "Hieraquia", onde defendia idéias e soluções de extrema-direita para o Brasil. Em 1939, em pleno Estado Novo, e graças a suas relações com o diretor do DIP, foi nomeado o primeiro catedrático de História do Brasil da FnFI. No cargo manteve uma postura repressiva a qualquer tentativa de organizar um setor de pesquisa, considerando seu livro "História do Brasil: 1822-1937", que seguia, ainda em 1945, sua "História do Brasil Colonial" como texto acabado e insuperável da História do Brasil. As características do ensino de História do Brasil, sob Helio Vianna, pontuavam claramente o ideário fascista do Integralismo: as origens puramente europeias do Brasil, a invisbilidade de índios e negros – exceto nas fantasias nacionalistas típicas do Integralismo para os índios – e uma grande ênfase nos chamados "Movimentos Nativistas", pressupondo teleológicamnete a existência de um Brasil desde a Aclamação de Amador Bueno até a instalação do Estado Nacional em 1937.
Ver DO VALE, Nayara Galeno. Delgado de Carvalho e o Ensino de História: livros didáticos em tempos de reformas educacionais (1931-1946). Dissertação de Mestrado, PPGHIS/UFRJ, 2011.
Neste período, retornando da Europa, estive muito próximo de Maria Yedda no Governo do Rio de Janeiro. Embora não tivesse cargo algum – amigos e desafetos diziam que eu era "o secretário da Secretária" – trabalhei intensamente no Programa dos CIEPs. Foi uma experiência notável. Além disso, era o fim da Guerra Fria e o Brasil se democratizava e o Rio era sua vitrine de benfeitos e de mazelas. Assim, fui responsável pela organização de visitas e programas de personalidades estrangeiras como Mikhail Gorbachov, François Mitterrand, Nelson Mandela, Mario Soares e outros – o que me permitiu ver de perto os, hoje, meus objetos de pesquisa. Mas, tarde – ainda com fortes dúvidas – fui chefe de gabinete da Secretaria de Estado de Educação, Subsecretário de Estado e Secretário de Estado eventual, com a finalidade de montagem dos CIEPs. Posso dizer que participei ativamente da montagem de 560 grandes escolas – cada uma com cerca de 800 estudantes - em todo o Rio de Janeiro. Ainda hoje, malgrado o abandono da Educação básica no país, quando passo por um CIEP – esta combinação de paixões e vontades, desde a pedagogia do "Doutor Anísio" até o radicalismo maragato de Brizola, tudo coroado pela arquitetura de Oscar Niemeyer – sinto orgulho. Ao menos tentamos e eu fui parte...
Não se falava, então, de "Educação de Qualidade", um chavão recorrente depois dos anos de 1980 e o qual nunca entendi bem – ou a educação é, por princípio, de qualidade, ou não resulta. Logo, o nosso projeto era, por essência, qualitativo, visto que buscava a emancipação social pela educação. O projeto pedagógico dos CIEPs implicava em grande esforço de formação em língua portuguesa e matemática, na busca de elementos do cotidiano dos alunos para a problematização do processo de aprendizado e uma formação contínua, sem cessar, dos professores. A permanência das crianças na escola – o "turno integral" – e a presença de equipamentos sociais, além dos recursos pedagógicos, era um ponto central no projeto. Devemos lembrar que na ocasião, em plena crise econômica e social, cerca de seis mil crianças "moravam" nas ruas centrais do Rio de Janeiro. Infelizmente, na Constituinte de 1988, malgrado os esforços do firme e doce Prof. Florestan Fernandes, deputado constituinte pelo PT, a obrigatoriedade da escola de tempo integral como regra não foi incluída, conforme projeto da bancada do PDT fluminense. Sob lobby cerrado do ensino privado, religioso e laico, votou-se contra, incluindo aí o voto majoritário do Partido dos Trabalhadores.
A campanha da direita era, então, virulenta contra o projeto emancipatório de educação. O jornal O GLOBO, em 16 de setembro de 1962, publica um longo editorial onde se declara escandalizado em razão dos professores da nova UNB darem aulas de "calças de brim" de tipo "blue-jeans" e barbados "como Fidel Castro". Na ocasião, os professores da UNB haviam redigido um manifesto pela educação pública e laica, noticiado como "subversivo". O GLOBO, "Manifesto subversivo em Brasília", 16/09/1962. Da mesma forma, quando do lançamento do Programa de Educação Especial, por Darcy Ribeiro, em 1984, o mesmo jornal manifestava sua oposição, afirmando que o estado precisava de mais presídios e as escolas de tempo integral eram manifestações de "populismo".
Vou aqui reproduzir um trecho de uma popular enciclopédia digital sobre a morte do "Doutor Anísio" visando marcar, não esquecer, as condições do ocorrido: "...Depois da última visita, ao lexicógrafo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Anísio desapareceu. Preocupada, sua família investigou seu paradeiro, sendo informada pelos militares de que ele se encontrava detido. Uma longa procura por informações teve início — repetindo um drama vivido por centenas de famílias brasileiras durante a ditadura militar. Mas, ao contrário das desencontradas informações e pistas falsas, seu corpo foi finalmente encontrado no fosso do elevador do prédio do imortal Aurélio, na Praia de Botafogo, no Rio. Dois dias haviam se passado de seu desaparecimento. Seu corpo não tinha sinais de queda, nem hematomas que a comprovassem. A versão oficial foi de "acidente". Calava-se, para um Brasil mergulhado em sombras, uma voz em defesa da educação — portador da "subversiva" ideia de um país melhor. Era o dia 14 de março de 1971" In: http://pt.wikipedia.org/wiki/An%C3%ADsio_Teixeira

O concurso foi para Maria Yedda uma imposição. Ela não se sentia preparada, mas as normas burocráticas foram imperiosas e a banca, com Eduardo França d´Oliveira e o próprio Delgado de Carvalho foi duríssima, declarando, desde o início, que a arguição seria "toute de le programme" e não apenas da tese. Falcon desempenhou um forte papel na preparação da tese, lendo e anotando autores que a própria Yedda, envolta em dezenas de volumes de atas dos Ministérios do Exterior da França e da Inglaterra, não conseguia ler. Os dois fechavam capítulos e subcapítulos à noite, pelo telefone, o que acabou por se tornar um vício de Yedda.
Foi na direção da Rádio MEC que Maria Yedda Linhares tomou a dificil decisão de colocar-se ao lado dos resistentes ao golpe de 1961, apoiando a resistência de Leonel Brizola no sul.A Rádio acabaria sendo invadida por ordens do então Governador Carlos Lacerda, tendo a ação sido feita por estudnates, inclusive de História, do CCC. Um deles, seria – por "serviços prestados" – o substituto a manu militari de Maria Yedda e, ainda, o responsável pela minha primeira prisão, quando ainda aluno do IFCS.
SODRE, Nelson Werneck et alii. A História Nova. São Paulo, Edições Loyola, 1993, p. 53 e SS.
O historiador francês Jean-François SIRINELLI tratou, amplamente, do papale dos intelectuais e de seus manifestos. Ver J-F. SIRINELLI. Génération Intelectuelle: khãgneux et normaliens dans l´entre-deux-guerres. Paris, Folio Histoire, 1993.
O Professor Ernst Nolte – longevo -, nascido em 1923, lecionou, depois de uma longa e produtiva carreira, na Universidade Livre de Berlin entre 1973 e 1991, quando deu-se o "Historikerstreit" ( a Querela dos Historiadores ), da qual falaremos um pouco mais à frente. Na ocasião suas declarações ao semanário DER SPIEGEL sobre a inevitabilidade de um partido "nazista" na Alemanha foram mal interpretadas, gerando um clima extremamente negativo e, mesmo, hostil ao velho professor.
1991 foi um ano difícil na História recente da Alemanha. Após a derrubada do Muro em 1989, a História, num claro processo de aceleração do tempo, impôs da Reunificação ( die Wiedervereinegung, em 3 de outubro de 1990 ), processo que foi acompanhado por uma explosão de movimentos de "Ressurgência" nazista – não creio que seja, verdadeiramente, um "neo" ou "pós" fascismo, com marchas, pichações e inúmeras agressões a estrangeiros –das quais não fiquei isento, incluindo aí momentos de alto risco pessoal. Assistir tal processo, ao mesmo tempo que tinha seminários sobre a queda da República de Weimar e a tomada do poder pelos nazistas e escrevia uma tese sobre as origens do fascismo, foi uma experiência existencial única.
TEIXEIRA DASILVA, Francisco C. Camponeses e Criadores na Formação Social da Miséria: o sertão do São Francisco entre 1820 e 1920. Dissertação de Mestrado realizada na UFF, sob orientação de Francisco Falcon e co-orientação de Maria Luiza Marcílio. Banca examinadora formada por Robert Slenes e Ciro Cardoso, Niterói, 1981.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. A Morfologia da Escassez. Crises de fome no Rio de Janeiro e no Recôncavo da Bahia, 16801780. Tese de Doutorado realizada na Universidade Livre de Berlin e na UFF, sob orientação de Maria Yedda Linhares e Reinhard Liehr ( Berlin ). Banca examinadora Vera Lucia Ferlini, Ciro Cardoso, Kalus Woortmann e Francisco Falcon. Niterói, UFF, 1990.
Creio que a "escapada" anti-economicista de tais trabalhos, numa época que ser historiador era quase obrigatório ser historiador econômico, se deveu a influência de uma leitura marcante que me foi oferecida, em 1977, por Maria Yedda Linhares. Tratava-se de Albert Mathiez (1874-1932) com sua grande obra La vie chère et le movemment social sous la Terreur. Paris, Payot, 1927. Esta obra, fortemente influenciada pelo socialismo de Jean Jaurès, deixará marcas importantes nos meus trabalhos iniciais sobre o abastecimento e as crises de fome, temas das duas primeiras teses.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. O Concerto Europeu: as idéias conservadoras na obra de Leopold von Ranke. Tese de Titular defendida na UFRJ, Rio de Janeiro, 1993.
O Andreas Kneippe – hoje "HarDie´s Café" o mais antigo bar gay da Alemanha, ainda em funcionamento, no mesmo local, malgrado a vandalização de que foi alvo no início da era nazista, com a prisão de seus proprietários, levados para campos de extermínio (KZ). Até o seu fechamento, em 1938, uma velha Senhora, Frau Trude, gorda e anciã, postava-se no bar para enfrentar a polícia do Sicherheistsdienst, de depois da Gestapo, para evitar a prisão de gays. Atos como estes mostram que nem todos aderiram e que alguns, mesmo com risco de vida, tomavam a decisão de resistir, mesmo numa sociedade tão ditatorial.
O livro encontra-se em fase de edição pela editora Mauad do Rio de Janeiro, previsto para março de 2013..
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. Dicionário Crítico do Pensamento de Direita. Rio de Janeiro, Mauad, 2000.
BÉDARIDA, François. L´Histoire et le metier d´historien em France. Editions de la Maison des Sciences de l´Homme, Paris, 1995

Ver para isso o seminal livro de BÉDARIDA, François. Histoire, critique et responsabilité, IHTP-CNRS/Complexe, coll. « Histoire du temps présent », Paris/Bruxelles, 2003.
Ver sobre este debate o artigo "Memórias, esquinas e canções"[ Documento 5], que escrevi em 1996, num dos primeiros debates abertos sobre as possibilidades da História do Tempo Presente no Brasil, a partir do conceito de ruptura e indo além da historia polkítca tradicional ( ou seja, com outras fontes, buscadas no cotidiano e atores trazidos de dimensões imprevistas pela história política tradicional, como o mundo da cultura e dos atores coletivos ) para a Revista Acervo, do Arquivo Nacional, no. 9, jan/fev, 1996, pp. 7-25, disponível em: http://www.google.com.br/search?sourceid=navclient&hl=pt-BR&ie=UTF-8&rlz=1T4ACAW_pt-BRBR409BR414&q=luci+valensi . Da mesma forma, alguns anos mais tarde, utilizei a MPB, que me corre pelas veias como meu próprio sangue, para falar de memórias. Decorrente de um convite de Santuza Cambraia, amiga que nos falta, escrevi um artigo denominado "Da Bossa Nova à Tropicália: as canções utópicas", In: NAVES, Santuza Cambraia e DUARTE, Paulo Sérgio. Do samba-canção à Tropicália. Rio de Janeiro, Relúme-Dumará, 2003, PP. 138-149 [Documento 6].
A primeira vez que fiz um debate multidisciplçinar sobre a "Ressurgênciua" dos fascismos na Europa contemporânea na UFRJ fui confrontado, com veemência, por defensores da tese da "patologia" e da total irracionalidade dos fascismos. Esta abordagem, uma recusa do historiador em buscar o entendimento ( "Verstehen" ) do fenômeno ( e não me refiro ao explicar, "Erklären" ) deve-se, em grande parte a insistência de se pensar o fenômeno fascista do ponto vista político, moral e teórico do pensando iluminista, seja em sua vertente liberal, seja em sua vertente marxista – exatamente o que os fascismos negavam. Este era um ponto fulcral do "Historikerstreit" dos anos ´80 e que ao final dos anos ´90 ainda não fora debatido na universidade brasileira.
O debate inicial da "Querela dos Historiadores" deu-se através de um pequeno, denso e desafiante artigo do Dr. Ernst Nolte no jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung, no dia 6 de junho de 1986, intitulado: "Vergangenheit, die nicht vergehen will: Eine Rede, die geschrieben, aber nicht mehr gehalten werden konnte", servindo como um gatinho para um debate que envolverá grandes nomes da historiografia contemporânea.
Um produto direto da "Querela dos Historiadores", e com a capacidade de atingir milhões de pessoas – ao contrário do debate acadêmico – foi o filme de Michael Verhoeven chamado "Das Schreckliche Mädchen" ( "Uma cidade sem passado"), de 1989, onde o esquecimento é visto como uma benção e a reconstrução e exposição do passado como "terrível" ( "schrecliche"). Mais uma vez, como no caso dos filmes de Louis Malle sobre a ocupação e a colaboração na França, ou os trabalhos de Costa-Gravas ( seguindo os passos de Rolf Hochhuth) sobre os silêncios apaziguadores da História anteciparam-se, com coragem, aos historiadores. Ver ( e isto é também um aconselhamento) sobre o tema: de Louis Malle (1932-1995) "Adeus Meninos", de 1987 e "Lacombe Lucien", de 1974, e de Costa-Gravras ( nascido em 1933), "Uma Seção Especial de Justiça", de 1975.
Logo ao chegar pela primeira vez em Berlin (Ocidental), no inicio de 1978, em busca de um possível caminho de estudos e um porto mais tranquilo, me lembro de um grafite na parede do Institut Friedrich Meinecke, em Dahlendorf: "Nunca pergunte o que seus pais faziam durante a guerra". Mais, tarde, gravou-se em minhas lembranças um outro grafite, do tipo socilogia de porta de banheiro: "Qual seu nazista predileto? (a)Adolf Hitler; (b) Herman Göring;(c) Joseph Goebbels;(d) Vovô.
Há pouco, na Unirio, num seminário sobre "fascismos, neofascismos e Integralismo" compus uma mesa-redonda com colegas de extrema competência. E então percebi a diferença da históira vivida e a história estudada. Um colega, jovem e erudito, falava das narrativas e das suas validações, com a estamparia múltipla e coloriada das figuras de linguagens e, outro, bem mais velho, afirmava o seu medo perante uma históira militante, afirmando que a militância antifascista era tão fanática, e nisso se igualavam, aos fascistas. Talvez, pensei eu, a diferença resida na contagem de corpos...
Certa madrugada, de 1983, esquadrilhas de aviões soviéticos MIG-29, então os caças de combate mais modernos do mundo, romperam a barreira do som sobre Berlin. Havia uma crise internacional e o Kremlin reafirmava, de forma acachapante, seus direitos sobre a ex-capital do Reich. Janelas, armários, garrafas de campagne, prateleiras explodiram em centenas de casas em toda a Berlin. Minhas janelas tilintaram e explodiram em fagulhas de vidro. Milhares de pessoas, de pijamas, nus, cobertos por mantas, correram para as ruas sob o frio do inverno berlinense buscando no céu a aurora nuclear... Poucos minutos depois carros da polícia percorriam a cidade avisando, em seus alto-falantes, que não era a guerra... desta vez!
FEST, Joachin. Conversas com Albert Speer. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2012.
Vidal-Naquet (1930-2006), resistente e vítima do Holocausto, apontou com exatidão para a permanência de métodos e recursos de negação da história. Ver: VIDAL-NAQUET, P. E. Les Assassins de la Mémoire. Paris, Éditions du Seuil, 1995.
MOMMSEN, Hans.Herrschaftsalltag im Dritten Reich: Studien und Texte . Studies and Texts), Munique, DTV, 1988
KERSHAW, Ian.Stalinism and Nazism: Dictatorships in Comparison, ( em parceria com Moshe Lewin ), Cambridge, University Press, 1997.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. O Século Sombrio. Rio de Janeiro, Campus, 2002.
NEUMANN, Franz. Behemoth. The Structure and Pratice of National-Socialism, 1933-1944. Nova York, Lyndon & Co., 1944. Devemos destacar aqui um fato importante para a história do debate historiográfico sobre o nazismo ( e os fascismos em geral) na República Federal Alemã – quer dizer, antes da reunificação de 1991. Embora a maior parte dos trabalhos historiográficos aceitem hoje a questão da dinâmica interna das ditaduras fascistas e do choque de forças em seu interior ( a tese da rivalidade interna entre os "bloco of powers") nenhum dos autores clássicos sobre o tema, incluindo Ian Kershaw, citam Neumann como o autor do primeiro trabalho a defender e explicitar a tese da poliarquia ( muitos inclusive utilizam o termo poliarquia sem citar a origem )..
A leitura atenta das memórias de Albert Speer ( 1905-1981)– arquiteto de Hitler e depois ministro das indústrias e dos armamentos - talvez o documento mais interessante sobre o funcionamento cotidiano do Terceiro Reich - nos dá uma ampla visão do choque entre as diversas burocracias do Estado, do Partido, as FFAA e o Gabinete com o recurso permanente entre as partes em conflito a arbitragem do Führer. Ver SPEER, Albert. Spandauer Tagebücher, Hamburgo, Ullstein, 1991.
KULK, Otto Dov (February 2000). ""The Role of Hitler in the 'Final Solution'". Yad Vashem.http://www1.yadvashem.org/about_HOLocaust/studies/vol33/abs_Otto_Dov_Kulka.html. Retrieved 2009-05-05
Tais visões da "nação resistentes" e "vítima" foram popularizadas no pós-Segunda Guerra Mundial por grandes produções de cinema que popularizaram o "heroís00mo" coletivo e a "unidade" contra o inimigo. Esta é a versão, por exemplo, do mito gaulista em "Paris está em chamas?" ( Paris brûle-a-til?), de René Clement, 1966 ou da Itália vitimada pelos nazistas e fascistas em "Roma, cidade aberta" ( Roma, città aperta), de Roberto Rosselini, 1945.
DOMENECH, Jean_Marie. La Propagande Politique. Paris, P.U.F., 1959.
Ver NOLTE, Ernst. Die faschistischen Bewegungen. Munique, DTV, 1966 e, ainda, STERNHELL, Zeev. La droite revolucionaire: les origines françaises du fascisme. Paris, Fayard, 1978
O Trabalho inicial nesta direção, em inconformidade com o uso tradicional do conceito de propaganda, foi MOSSE, George. Nazi Culture: Intellectual, Cultural and Social Life in the Third Reich. G.L. Mosse, 1966. Em anos seguidos Mosse porduziu um bom número de obras sobre o tema, com destaque para: The Nationalization of the Masses: Political Symbolism and Mass Movements in Germany from the Napolionic wars throught the Third Reich, 1975; Masses and Man: Nationalist and Fascist Perceptions of Reality, 1980 e, talvez a obra mais polêmica e rica, seja: The Image of Man: The Creation of Modern Masculinity, 1996.

PAXTON, Robert. A Anatomia do Fascismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2009 A edição original é de 2004.
Ver para este debate: MOSSE, George. Nazism: a Historical and Comparative Analysis of National Socialism, 1978
TEIXEIRA DA SILVA,Francisco C. "Os fascismos" in: REIS FILHO, Daniel ET alii. O Século XX. V.2, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, pp. 109-165[ Documento 7]; TEIXEIRA DA SILVA,Francisco C. "Cultura Operária e Resistência Antifascista... In: PARADA, Mauricio. Fascismos: conceitos e experiências. Rio de Janeiro, Mauad, 2008, pp. 125-170 [Documento 8]; TEIXEIRA DA SILVA,Francisco C. "Fascismo e Neofascismo: a questão da ressurgência" In: REICHEL, Heloisa e GUTFREIND, Ieda. "América Platina e Historiografia", São Leopoldo, UNISINOS, 1996, pp. 150-173 [Documento 9]. Ver ainda o já citado O Século Sombrio, São Paulo, Elsevier, 2002.
Tenho publicado artigos sobre o tema seguidamente na Revista Carta Maior, com grande impacto sobre o público não especializado e ajudando a divulgar os termos de um debate por demais restrito ao ambiente intramuros da academia. Muitas vezes tal debate transborda e atinge patamares bastante desagradáveis e agressivos. Para ver o conjunto de artigos: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5624. Nas últimas semanas as ameaças tornaram-se tão pessoais que a Presidência da ANPUH, da Comite de Coordenação de Programas de Pós-Graduação de História da Capes e a Comissão nacional de Direitos Humanos resolveram vir a público manifestar sua solidariedade.

Sou atualmente Pesquisador Nível III do CNPq. Gostaria de explicar isso ( e talvez entender ). Sou bolsista de produtividade do CNPq desde 1984 (quando não era obrigatório ser doutor), chegando no seu nível mais alto. No período recente, sendo diretor da Faperj e depois assessor da presidência da Finep para acervos culturais, achei de bom tom suspender minha bolsa de produtividade, evitando qualquer mal-estar. Em 2011, ao retornar "ao sistema" foi declarado que deveria ser considerado "pesquisador novo". Ok, sem problemas! De qualquer forma sou membro dos comitês Pro-África e Renato Archer, do CNPq e do Comitê CAPES-DAAD.
TEIXEIRA DA SILVA,Francisco C. "Tribunais da Ditadura: o estabelecimento da Lei de Segurança Nacional no Brasil: 1935-1937" In: MARTINHO, Francisco e COSTA PINTO, Antonio. O Corporativismo em português. Vizeu, Imprensa das Ciências Sociais, 2008, pp. 279-321. A edição brasileira é de 2007 pela Editora Civilização Brasileira [ Documento 10 e 11].
Sobre a divisão dos militares e a recusa de praças e altos oficiais em aderirem ao movimento anti-Jango ver o notável depoimento de TAVARES, Flávio. 1961: o golpe derrotado. São Paulo, L&PM, 2012.
Ver os trabalhos já citados de Francisco Falcon.
Para um debate intenso, imposto após a grande crise das ditaduras nos anos ´80, sobre as diversas funções da história e das relações do historiador com o espaço público e em especial perante as diversas comissões e inquéritos sobre a apuração de responsabilidades ver: DAMAMME, Dominique e LAVABRE, Marie-Claire. "Les historiens dans l´éspace public" In: Revue des Sociétés Contemporaines, Paris, no. 39, 2000, pp.5-21.
TRINDADE, Hélgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 1930. São Paulo, Difel, 1974.
TEIXEIRA DA SILVA,Francisco C. "Crise da Ditadura Militar e o Processo de Abertura Política, 1974-1985" In: NEVES DE ALMEIDA, Lucília e FERREIRA, Jorge. O Brasil Republicano, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, pp.243-282; TEIXEIRA DA SILVA,Francisco C, "Transição Política, democracia e crise: esboço de uma história comparada das instituições" In: MARTINHO, Francisco. Democracia e Ditadura no Brasil. Rio de Janeiro, 2006, pp. 165-179.
Trata-se da amplamente debatida Reforma Universitária de 1968, Lei 5540 ( de 28/11/1968), também chamada de "Acordo MEC-USAID", que extinguiria a Faculdade Nacional de Filosofia/FnFi, criando em seu lugar o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/IFCS. Ao mesmo tempo a Universidade do Brasil seria igualada às demais universidades federais – com a federalização de unidades isoladas e institutos privados, como no caso da UFF – para dar lugar a UFRJ. A USP, como instituição estadual, escapou às imposições do regime em 1968, mantendo sua estrutura administrativa e acadêmica original. Em 2001, por ato do, então, reitor, a UFRJ adotou a denominação "UFRJ/Universidade do Brasil".
Para uma narrativa detalhada do clima de delação e rebaixamento moral na FnFi/IFCS neste momento ver o trabalho já citado de José Luiz Werneck da Silva.
BLOCH, Marc. Estranha Derrota. Rio de Janeiro, Zahar Editores, (1940), 2011.
Em 2011 tivemos cerca de 350 mil acessos, com centenas de "downloads", incluindo um grande número de consultas internacionais.
Tomo a expressão de ALAVY, Daniel. Essais sur l´acélération de l´Histoire. Paris, Éditions du Fallois, 2011.
Uma lista com todos os artigos, cerca de 100 até maio de 2012, está disponível em http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5624 .Da mesma forma não estou incorporando aqui, talvez por total vitória do "djin" da preguiça, as resenhas e artigos publicados na grande imprensa sobre livros e fenômenos históricos.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. ( org. ) História e Imagem. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1998.
Ver OSBORNE, Peter. "Vitórias de pequena escala, derrotas de grande escala: a políitca do tempo de Walter Benjamin" In: OSBORNE, Peter. e BENJAMIN, Andrew. A filosofia de Walter Benjamin. Rio de Janeiro, Zahar editores, 1977, pp. 72-121.
Este último filme, que será o último da carreira, ainda não fora rodado quando escrevemos o trabalho sobre Kubrick, mas com certeza reafirma a temática do tempo presentificado como forma de expressão da alienação contemporânea..
Ao menos dois outros filmes, mais ou menos contemporâneos aos exercícios de Kubrick, desenvolveram linhas paralelas de desconstrução do tempo enquanto tempo linear e sua paralisa no presente. De um lado o fantástico trabalho de Jim Jarmush "Mystery Train", de 1989 e, claro, o desconcertante "Ano Passado em Marienbad", de 1961, de Alain Resnais.
BENJAMIN, Walter. "Zur Kritik der Gewalt" in: Gesammelte Schriften, vol. II,1, Org. de R. Tiedemann e H. Schwesppenhäuser. Frankfurt, Suhrkamp, 1999, pp. 179-204.
SORLIN, Pierre. Clio à l´écran ou
l´historien au noire. Revue d´Histoire Moderne et Contemporaine, 4-6, Paris, 1974.
Ver De LAGE, Christian. " Cinéma, Histoire: La répropriation dês récits" In: Vertigo/Histoire du Cinéma, Parais, Jean Michel Ed., no. 16, 1997, pp. 13-25 e JAMESON, Frederic. Marcas do Visível. Rio de Janeiro, EDUFRJ,
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. "Cinema, Rock´n e Identidade" In: ANAIS X SIMPÓSIO DE HISTÓIRA/ANPUH, Vitóira, 1997, pp.7-16.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. "Cinema e Guerra: um encontro no tempo presente" In: TEMPO, Revista de História da UFF, no. 16, 2004, pp. 93-114.
Ver, para análise dos esportes como parte da educação vitoriana, GAY, Peter. O Cultivo do Ódio. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
AGOSTINHO, Gilberto. Vencer ou Morrer. Rio de Janeiro, Mauad,..... Por pudor, e talvez por egoísmo, não vou apresentar neste memorial o livro de Gilberto e sua bela seleção de fotos e o ensaio/prefácio que escrevi.. Não quero que nada, nem ninguém, contabilize a relação que tive com Gilberto, a quero lembrança livre e solta, sem qualquer compromisso ou lucro que dela possa resultar..
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. "Política e Futebol: Pra frente Brasil" In: MELO, Victor. "O Esporte vai ao Cinema", Rio de Janeiro, SENAC, 2005, 21-31.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. ET alii. Memória Social dos Esportes. Rio de Jnaiero, Mauad, 2001.
Ver.....
O Vasco da Gama não foi o poirmneiro time brasileiro a escalar negros – a primeira esclação documentada foi de Francisco Carregal pelo Bangu Footballl Club, em 1910, antes mesmo da "explosão" de Friedenrich, sobre o qual se manteve um adequado silencio, á época, quanto às suas origens étnicas. Foi o Vasco, entretanto, que montou uma significativa equipe em 1921, 1922 e 1923, que viria a ser campeã invicta fluminense, com negros e se recusa a retirá-los do time como exigido pela AMEA/Associação Metropolitana de Espçorte Amador do Rio de Janeiro. Ver TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. "Futebol no Brasil e na Alemanha: as origens de uma paixão coletiva" In: Palestras na Happy Hour/DAAD/Berlin/Rio de Janeiro, 2006, pp. 35-50.
Nunca perguntei ao Almiranate Afonso, hoje um amigo, secretário executivo do Minsitério dos Esportes, por convite do seu atual titular, o deputado Aldo Rebelo ( PCdoB), como ele chegou ao meu nome. Desconfio que tenmha sido através da TV GloboNews, onde, de 1994, eu tenho uma contribuição, como comentarista de política internacional, constante. Mas, pode ter sido através dos amigos do PCdoB.
Para um amplo debate sobre as diversas teorias e doutrinas, conforme entendo a questão, ver TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. "Introdução: as doutrinas militares do século XX" In: Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX, São Paulo, Campus, 200... e, para pensamentos divergentes e extremamente criativos, COUTEAU-BÉGARIE, Hervé. Traité de Stratégie. Paris, Institut de Stratégie Comparé, EPHE-Sorbonne, 1999.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. Enciclopédia de Guerras e Revoluções, Rio de Janeiro, Campus/Elsevier, 2004.
VIDIGAL, Aramando e ALVES DE ALMEIDA, F.E. Guerra no Mar, Rio de Janeiro, Editora Record, 2009.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C.; CABRAL, Ricardo e MUNHOZ, Sidnei. Imérios na História. Campus, São Paulo, 2009.
JOBIM, Nelson, ETCHEGOYEN, Sérgio e CASTRO, Celso. Segurança Internacional. Rio de Janeiro, FGV, 2010.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. ET alii ( organização). O Brasil e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro, Multifoco, 2011.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. e CHAVES, Daniel ( organizadores ). O Terrorismo na América do Sul. Uma ótica brasileira. Rio de Janeiro, Multifoco, 2011.
ZHEBIT, Alexander e TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. Neoterrorismo: reflexões e glossário. Rio de Janeiro, Gramma, 2009.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. "Lições de Guerra... " In: ARIAS NETTO, José Miguel. História: Guerra e Paz. Londrina/Finep, ANPUH, 2006, pp. 160-220.
SOARES, Luis Carlos e TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. Reflexões sobre a Guerra. Rio de Janeiro, Sete Letras, 2010. Nos referimos, aqui, aos estudos dos "assuntos militares", ou da história militar, como aqueles trabalhos voltados para as instituições militares e sua função precípua, a guerra. Neste sentido nos destacamos dos trabalhos, já enraizados na tradição da ciência política e da sociologia, sobre "militares" e que buscam suas bases modelisticas na sociologia das organizações complexas.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. "Estratégia, Segurança e defesa no Horizonte de 2008" In: ANAIS DO IV SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS ESTRATÉGICOS. Rio de janeiro, EGN-Ministério da Defesa, 2007, pp. 39-69.
Lembro aqui aos leitores que por razões de tempo, espaço e absoluta falta de paciência optei por não introduzir nesta narrativa a produção de resenhas, resumos, prefácios e introduções, além de entrevistas e artigos em jornais de grande circulação.
TEIEXEIRA DA SILVA, Francisco C. "Prefácio" In: VIDIGAL, Armando ( org.). A Amazônia Azul. Rio de Janeiro, Record, 2006.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. e COSTA, Darc. Mundo Latino e Mundialização. Rio de Janeiro, Mauad, 2004 e TEXEIRA DA SILVA, Francisco C. Organização em BETANCOURT,Ingrid, Cartas à Mãe. Direto do Inferno. Rio de Janeiro, Editora Agir, 2008.
Artista Paulo César Barcelar, 1960-1998, um dos bailarinos e humorista do Grupo Dzi Croquettes e ator em novelas – "Dancin´Days" – em programas como Chico City, de Chico Anísio.
Me refiro aqui ao filme documentário de Rafael Alvarez e Tatiana Issa "Dzi Croquettes", de 2009.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. "Élevage et marché interne dans le Brésil de l´époque coloniale" In: CROUZET, François (org.). Pour l´histoire du Brésil. Paris, L´harmatan, 2000.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. "Produção de Alimentos e Trabalho Escravo no Brasil" In: Quiestões e Debates/APAH, Curitiba, julho de 1988, pp. 66-82 e TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. "A Pobreza na História" In: ANAIS DO 11. ENCONTRO DE FACULDADE DE CIO~ENCIAS AGRONÔMICAS/UNESP/Botucatu, 1986, pp.276-303.
BARRINGTON-MOORE Jr. Social Origins of Dictatorship and Democracy: Lord and Peasant in the Making of the Modern World. Boston, Beacon Books, 1966.
SKOCPOL, Theda. States and Social Revolutions: a comparative analysis of France, Russia and China. Cambridge, University Press, 1979.
Ver TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. et alii. Mundo Rural e Política. Rio de Janeiro, Campus, 1998 e TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. "Wedding Vermelho:um bairro operário em Berlin ( 1919-1939). In: CARVALHO COSTA, Luis Flávio. Mundo Ruiral e Tempo Presente. Rio de Janeiro, Mauad, 199, pp. 13-43.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. Sociedade Feudal: guerreiros, sacerdotes e trabalhadores. São Paulo, Brasiliense, 1982.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. e VIANNA, Alexander. Memórias do senhor Duguay-Trouin. Brasília, Arquivo Nacional/UNB, 2003.
LINHARES, Maria Yedda. História do abastecimento: uma problemática em questão ( 1530-1918). Brasília, BINAGRI, 1979 e LINHARES, Maria Yedda e TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. História Política do Abastecimento ( 1918-1974). Brasília, BINAGRI, 1979.
CPDA/FGV. Evolução Recente e Situação Atual da Agriocultura Brasileira. Brasília, BOINAGRI, 1979. A minha participação neste livro foi sua Parte I: "A Agricultura brasileira e seus esquemas explicativos...", pp. 25-86.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. Encontro de Civilizações. Rio de Janeiro, SENAC, 2001 e TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. Mutações do Trabalho. Rio de Janeiro, SENAC, 1999.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. "Footgrafando a Grande Trasnformação" In: KAZ, Leonel et alii. Jean Manzon: retrato vivo da Grande Aventura". Rio de Janeiro, Aprazível Edições, 2007, .
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco e LINHARES, Maria Yedda. Região e História Agrária. Revista Estudos Históricos, no.15, ano 1995, pp. 17-26 e TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. "Questionss auxquelles il faut faire face aujourd´hui dans le domaine social em France et au Brésil" In: CBCISS. Le Travail Social France Brésil, São Paulo/Paris, 2011, pp. 229-237 ( há edição brasileira).
LINHARES, Maria Yedda e TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. História da Agricultura Brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1982.
Alvaro Vieira Pinto (1909-1987) foi professor da antiga UDF, antecessora da Universidade do Brasil/UFRJ, e um dos fundadores da FnFI, onde foi o titular de Filosofia, até sua cassação em 1969 pelo AI-5. Foi, ainda, um dos fundadores do ISEB, do qual foi presidente até sua cassação, sendo entre 1961 até 1964 alvo de uma violenta campanha de difamação mantida pelo jornal O GLOBO. Ver o empolgante trabalho de CORTES, Norma. Esperança e democracia. As idéias de Álvaro Vieira Pinto. Rio de Janeiro: IUPERJ, 2001 (tese de doutorado).
As piadas d´O Pasquim eram uma fonte inesgotável de chacotas contra os professores de História do IFCS. Dentre elas ficaram notórias casos como da professora de Civilizações Orientais que pediu um prova baseada no seriado televisivo "Kung-Fu" ou do professor de história contemporânea que afirmava ser a derrota dos árabes em 1967 derivada do fato de que as armas eram russas e a munição tcheca... Além, claro, da badalada história do bidê preto do gabinete do Eremildo Vianna – com certeza "inventada" por Sérgio Porto, o genial Estanislaw Ponte Preta, o que causaria sérios problemas a amiga Angela Porto.
O decreto 477, de 29 de fevereiro de 1969, era o AI-5 das universidades e baseando-se nos plenos poderes dados ao presidente da República podia expulsar das universidades, sem processo legal, qualquer professor, aluno ou funcionário acusado de atividades políticas. O "477" foi aplicado contra Elio Gaspari, que jamais perdoaria Eremildo, imortalizado, como "o idiota".
Filme de Ruy Guerra e Nélson Xavier, de 1976.
Em outra ocasião, a qual não estou autorizado a dar nomes, Neyde Theml manteve um aluno embaixo de sua mesa, durante uma aula, enquanto a polícia vasculhava as salas. Neyde, e todos os alunos, não arredaram pé, não cessaram a aula, enquanto a polícia não abandonava o prédio do IFCS.
Foi vítima de uma destas terríveis campanhas de difamação pessoal, desta feita entre 1976 e 1977, a profa. Nara Saleto, de História Medieval, que, recém chegada da França, onde estudara com Georges Duby ousou discordar de Eremildo Vianna, isso bastava. Na ocasião, sob alegações "morais" armava-se a demissão de Nara, coube a Norma Musco e Neyde Theml erguerem-se, como mulheres e profissionais, e enfrentar Eremildo Vianna, afirmando que testemunhariam pela professora. Nara não foi demitida.
Atenção, amigos, muita atenção: para todos os efeitos o Memorial acabou na página anterior. O que segue aqui, e creio, nada vale para efeito legal e é desprovido de valor acadêmico, trata-se apenas de um jorro, um efeito colateral, soluço que não consigo deter. Rompidas as represas, o rio de memórias de feitos e não-feitos escorre ladeira a baixo. Por alguma gentileza com o leitor, tudo isto veio parar aqui, ao final. Assim, peço, poupem-se ao cansaço e abandonem a leitura.
Me refiro aqui aos dois filmes que roteirizei, e em parte produzi ( com João Carlos Nogueira, um amigo e ex-aluno), sob a direção de Erik Rocha, por coisas do destino, filho de Glauber Rocha, e produzidos pela Urca Filmes. Um deles foi "Pachamama", de 2007, com uma boa carreira de prêmios internacionais. O outro foi um documentário em quatro episódios denominado "Da Selva à Cordilheira", de 2009, exibido no Canal Brasil.
VELOSO, Caetano. Canções e prosa. São Paulo, Abril Cultural, 1988, pp. 61-64.).

MEMORIAL PARA CONCURSO PÚBLICO
(Em História Contemporânea)
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO/USP

Francisco Carlos Teixeira Da Silva
Professor Titular de História Moderna e Contemporânea
Universidade do Brasil/Universidade Federal do Rio de Janeiro

Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior/ECEME
Ministério da Defesa







2012



A terceira chance







A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios.
Charles Chaplin.











ÍNDICE
Cerimônia de Apresentação d´Armas, p. 4
1. Professor de História Moderna e Contemporânea da UFRJ, p.11
1.1 A universidade que acabou, p. 14
1.2 A opção definitiva pela História Moderna e Contemporânea, p.21
2. O Tempo Presente da UFRJ: por quê? p.29
2.1 O Debate do Tempo Presente, p. 31
2.2 Uma (boa) Querela de Historiadores, p. 36
3. O Tempo Presente: as ações de um laboratório de pesquisas, p. 49
4. Entrando em campo: o Tempo Presente de chuteiras! p. 64
5. O Tempo Presente vai à guerra, p. 71
6. Aprendendo a ser professor, p. 80
6.1 Os melhores anos, p. 82
6.2 No CPDA e na UFF: história agrária e história moderna, p. 87
6.3 Os anos na IV Internacional, p. 93
7. A Casa das Almas Sujas, p. 96
8. O Colégio Pedro II: uma viagem a bordo de uma canção, p. 104
8.1 A Descoberta do Mundo, p. 106
8.2 A História como Teatro, p.110
8.3 O ponto de partida, p. 113
8.4 A Descoberta de ser americano, p.118
9. Tempos opacos, descobertas, p. 122.

CERIMÔNIA DE APRESENTAÇÃO D´ARMAS
( à guisa de introdução)

"Na verdade, nem sempre os deuses estão dispostos a satisfazer os desejos dos mortais"
Homero, A Ilíada.

E
screver um memorial é um desafio de estilo (não há, creio eu, um modelo fixado na nossa prática acadêmica) e, ao mesmo tempo, um desafio de inteligência (no seu sentido maior de inteligibilidade). Como fazer as escolhas dos eixos centrais da narrativa que se quer, ex-oficio, sobre o próprio "eu", sem ser (muito e constantemente) cabotino e minimante fiel ao nosso próprio histórico de vida? É esta, a meu ver, a questão inicial que se impõe ao escrever um memorial. Trata-se de definir qual o modelo a ser adotado ou, mesmo, inventado.
Desde que me tornei titular, na UFRJ em 1993 (posse em 1994), li dezenas de memoriais de titular, de livre-docente, e, mais recentemente, aqueles derivados de provas de promoção de professor-adjunto e de professor-associado. Cada um deles, não pelas vidas neles contidos, mas, sobretudo, por estilo, era único. Havia os secos e austeros, voltados para uma narrativa cronológica de provas, concursos e produções. Outros, românticos, até ingênuos, buscavam convencer o leitor da total adesão – "from the blosson to the tumb" – ao campo de trabalho escolhido. Não é o meu caso. Não posso, simplesmente, dizer isso. Na verdade, destruindo a magia, declaro de forma solene, que a História foi uma segunda opção, nascida da raiva e da força. A epígrafe de Charles Chaplin, que abre esta narrativa, é a primeira paixão.
Claro, havia também, aqueles cobertos de homenagens, sempre devidas, aos pais e aos amigos, a quem devem a carreira. Aqui também faltaria com a verdade. Meus pais, sinceros defensores da educação de qualidade dos filhos, tinham certeza de que eu morreria de fome como historiador. Só tiveram um pouco de descanso porque a primeira paixão, era, seguramente, a pior opção. Alguns outros memoriais, poucos, eram robustos, eruditos, e esclareciam - para além da trajetória dos seus autores – um pouco de uma época, da história de uma ou mais instituições, na qual viveram e ajudaram a construir. Um e outro, e apenas isso, por sorte, "auto-laudatórios", e até mesmo arrogantes. Em fim, conheço bem os memoriais ( incluindo aí os memoriais que ficam pelos "aires"), e isso sem dúvida torna esta tarefa ainda mais custosa.
De todas estas variações, e suas subespécies quase infinitas, os memoriais mais robustos em massa "social", voltados para o seu tempo, para as instituições e a descrição do clima intelectual de uma época, são os que mais me impressionaram. Não vou citar nomes, por uma questão de puro pudor. Mas, sem dúvida, os chamados "Essais de Ego-Histoire", como inaugurados pelo brilhante e erudito Maurice Agulhon, nascido em 1926, (seguido da publicação de vários outros trabalhos nesta mesma linha de Pierre Nora, Jacques Le Goff e tantos mais) me impressionaram muitíssimo. Por outro lado, a "Introdução" de Eric Hobsbawm, judeu, socialista e cidadão britânico (nascido no Cairo em 1917), a qual poucos tem dedicado uma atenção adequada como texto normativo das relações entre indivíduo e história, ao seu livro "A Era dos Impérios", traz à tona um notável enlace entre história, memória e vivência pessoal. Além disso, ainda há um modelo proposto por George Mosse. Um historiador que me marcou com seus livros e sua verve falsamente desinteressada e tranqüila – lembro-me, com clareza, de seus debates em Berlin pouco antes de sua morte -, escreveu um texto belíssimo sobre a passagem do tempo, o envelhecimento como experiência pessoal e o trabalho do historiador. Com certeza, estou longe destas reflexões: falta vida, no sentido em que estes homens viveram, e, claro, "engenho e arte".
Tais textos, contudo, me apaixonaram e li neles mais do que um esforço, contido e humilde, de uma biografia. Nestes autores – Agulhon, Mosse e Hobsbawm, por excelência - existe um esforço em descrever uma época e as razões de escolhas, de acertos e de erros. Este é, a meu ver, uma escolha meritória. O diabo – e o tinhoso sempre mora nos detalhes! – é que seria preciso viver a vida, e produzir a obra, de Agulhon, Mosse ou de Hobsbawm, para escrever textos tão belos e ricos! Seria preciso ter vivido o apogeu e crise dos Imperialismos e ter convivido com uma intelectualidade boêmia que namorava, perigosamente, com Stálin, Sartre ou Benjamin.
Assim, mesmo sabendo como fazer, o que fazer, para ser meramente útil, com certeza não conseguirei fazê-lo – o "Tinhoso", neste caso em forma de um "djin" musculoso, "bombado", dito "da arrogância", se erguerá saltitante aqui e acolá, roubando o bom-senso e a modéstia, insuflando cenas de cabotinismo explícito. Farei o esforço de dizer pouco, o substantivo, sobre mim mesmo e minha carreira – mas, como saber? Será, contudo, esforço. Isso é uma promessa, mas sem quaisquer compromissos com os resultados...
Outra dúvida, plantada por outro "djin", desta feita o pequeno e magricela "djin" da preguiça, residia no fato de já ter escrito um memorial acadêmico de longo fôlego. Longo, talvez excessivamente explicativo e comprobatório, em vista das dúvidas e dos medos da ocasião: o concurso de professor titular de História Moderna e Contemporânea para a UFRJ. De fato uma das exigências do concurso de titular era o memorial "circunstanciado". Trata-se, posto que ainda lá está em minhas estantes, do "Memorial Para o Concurso Público de Professor Titular de História Moderna e Contemporânea", escrito em 1992, para o concurso homólogo da UFRJ. A tentação de simplesmente ir lá, atualizá-lo e dar a tarefa por encerrada ao cabo de alguns poucos dias, foi imensa. Confesso! Contudo, atualizar memorial de 1992, por contradição, seria uma tarefa imensa e complicada, posto que do ano de 1991 – a crise final do "socialismo real" - até, digamos hoje (um dia qualquer de maio de 2012) tanto se passou e muito aconteceu, o que faria da tarefa, de qualquer forma, um desafio penoso. Além disso, a pessoa que eu era em 1992, e que carrego comigo como conseqüência e circunstância, já é outra. O vivido de duas décadas, os projetos e certezas, isso é seguro, mudaram bastante. A pessoa existente naquele Memorial, embora fosse real (inclusive em suas promessas e na sua "auto-retratação") e, malgrado o fato, de que ainda viva em mim como parte de tudo que sou, esta pessoa já não mais existe e eu estaria cometendo um crime de falsidade ideológica afirmando ser hoje o que fui somente até ontem.
Além de tudo, no cálculo de custos, nada acabaria sendo positivo, posto que em 1992 eu ainda não escrevesse com computador e apensas a tese de titular fosse digitada, e assim mesmo por um "profissional". Logo, o próprio trabalho "pesado" teria que ser feito de novo.
Gol contra do "djin" da preguiça!
Assim, no afã de ser leal e, ao mesmo tempo, concluindo que o crime não compensaria, me obriguei a escrever um novo memorial. Para isso tomei a decisão corajosa, ou quase suicida, de não reler o antigo: ninguém, em verdade, passa a vida a limpo!
Logo, as soluções de 1992, e nem aquelas presentes nos vários memoriais que li desde então, me serviriam de modelo, ou consolo. O documento de 1992 por ser, como disse antes, por demais comprobatório – ou seja, aos 38 anos de idade, quando me tornei titular – ok, vamos começar logo com os ataques de cabotinismo: o mais jovem titular de toda UFRJ [Documento Série 1]- eu tinha uma necessidade, clara, de dizer à banca, e "Urbi et Orbi", que era capaz de portar o título que me seria conferido. Assim, o pesado volume que então escrevi – objeto de crítica do Prof. Francisco Falcon por seu exagero documental - era um imenso esforço de convencimento (e creio que boa parte deste esforço era dirigido a mim mesmo!). Naquele momento, jovem (bem, depois dos cinquenta anos, todos em torno de mim começaram a me parecer extremamente jovens!) sofria de aguda insegurança, temor claro, de um desastre num concurso de titular para a UFRJ. Além disso, a banca era "clássica" e, ao menos três dos seus membros (Francisco Iglesias, Maria Yedda Linhares e Eulália Lahnmayer Lobo), haviam feito concurso de "cátedra", ainda no velho estilo da universidade brasileira. E outro deles, Francisco Falcon, fizera um duríssimo concurso de titular, com uma tese simplesmente monumental – e mesmo assim fora alvo de insidia. Com facilidade, e em pleno direito, a comparação com as exigências à "nova geração" seria natural e imediata para estes. Por isto, e outras razões, era um Memorial descritivo, comprobatório e cheio de afirmações. É exatamente por isso, e com próprio risco, que quero me afastar daquele texto, deixa-lo lá na estante, envelhecendo, tal como eu mesmo envelheço.
Para encerrar as honras fúnebres do "velho" Memorial, devo dizer, que "narrar sua trajetória, suas escolhas e experiências de vida de forma circunstanciada" aos 38 é uma exigência cruel. Pelo menos quando não se é nem Aquiles, nem Alexandre, e muito menos Kurt Cobain ou Heath Ledger... Isto obrigou o pobre e presunçoso autor a dar importâncias e ares de sapiência a uma série de atos e resultados que estariam mais bem ornados com os atributos da rotina e da banalidade, do simplesmente necessário ao registro de um professor. Mas, naquela ocasião, creio eu, foi cabotinismo exatamente o que eu fiz. Bem, de qualquer forma, o resultado foi positivo. Mas, ainda tenho dúvidas de que isso tenha decorrido do próprio texto..,
Fazê-lo aos 57 anos é outro tipo de crueldade. Trata-se agora, querendo ou não, de um balanço, de um amplo rol de não-feitos e não-acontecidos, todos amarrados por elos invisíveis de feitos e de acontecidos. É quase um balanço e, neste sentido, poderia, por demasia, assemelhar-se a um "cursus honorum", um ocaso de vida ou, pior ainda, uma versão pós-moderna da "Senectude". Pensei em fugir de tudo isso, abandonar a empáfia de jovem – e talvez esta já seja uma empáfia de velho! – e, ao mesmo tempo, evitar o elogio ciceriano à senectude. Ninguém é melhor ou mais sábio por ser simplesmente mais velho. Existem, e aos montes, velhos tolos. Nem mesmo no caso do diabo, malgrado o dito popular, a sabedoria veio com a idade, posto que jamais se regenerou no vão combate!
Creio, assim, que posso trazer esta narrativa para outro campo, o de um novo projeto de vida, uma "Vita Nova", que me disponho neste momento a construir com os anos que virão, agora já despido das presunções e ilusões que marcaram outras vidas que vivi. Depois dos anos de formação, digamos entre 1968 e 1980 – vividos no Colégio Pedro II, no IFCS da UFRJ, no CPDA da UFRRJ e na UFF, cruzando as águas da Guanabara em "cursi e ricorsi" entre o Rio de Janeiro e Niterói, e mais tarde pelas ruas divididas de Berlim (e passagens pela França, a então Tchecoslováquia e Itália). Estes seriam os anos de formação. Depois disso, minha maturidade se deu no retorno ao IFCS, de 1993 até difícil decisão de minha aposentadoria em 2012, na condição de Professor Titular de História Moderna e Contemporânea. Em especial se pensarmos que a maturidade é a perda da inocência, o tempo do desencanto do mundo e de uma certa paciência tranquila com a ilusão alheia, o IFCS, hoje Instituto de História, foi bem este desencanto, a perda de toda a inocência na possibilidade da universidade ser o casulo de um mundo melhor. Período rico, difícil, e que agora encerro, na aposentadoria precoce, "sem choro, nem velas": como no samba carioca, e caso choro haja, "só quero choro de flauta, violão e cavaquinho" . Abrir-se-ia agora, caso isso seja merecido, a possibilidade de uma "terceira vida", uma nova chance de começar, numa nova instituição, numa nova cidade – que apreendi a amar quando fui jovem em São Paulo – e numa nova cultura intelectual e social, esteio de uma forte tradição universitária. Creio ser isso uma oferta que a vida não faz a todos, um bônus recheado de marzipã e acompanhado de vinho moscatel da Vila do Azeitão de Baixo.
Será preciso saber saboreá-lo.
Assim, fiz uma opção por um memorial que fale bem mais das instituições onde vivi e do impacto destas sobre minha vida acadêmica, minhas relações com as mesmas, com as pessoas, as ideias e as experiências que em tais instituições pude viver, buscando até o limite de minhas capacidades, descrever uma época que creio muito rica e, naturalmente, mais interessante que meu próprio currículo. Eis aqui os ecos dos "lares" protetores: Agulhon, Mosse e Hobsbawm.
É desta forma que o Colégio Pedro II – na inesquecível passagem entre os anos de 1960 e 1970, o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, o IFCS da UFRJ (nos anos 1973/76, incluindo o terrível "Ano Herzog" de 1975), o Centro de Pós-Graduação em Desenvolvimento Agrícola (CPDA) da Fundação Getúlio Vargas e, hoje recriado na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (entre 1976 e 1980), o Departamento de História da UFF (entre 1977 e 1993) e, novamente o IFCS (depois de 1993) da UFRJ, transformado e autonomizado em Instituto de História da mesma UFRJ, serão personagens bem mais centrais deste memorial.
Eu, de forma a mais discreta possível – para alguém que é naturalmente "tímido espalhafatoso", na genial expressão de Caetano Veloso – tentarei dizer como vivi desde 1968 até 2012, este quase meio século, a minha profissão de historiador. Ao contrário do que seria esperado, não tentarei fazer uma história, como seria o natural de um historiador, cronológica de "... tijolo com tijolo numa construção mágica (ou lógica?)". Não houve mágica e a lógica foi tortuosa. Houve apenas esforço, aqui e ali erros e, em momentos muito importantes, a presença de mestres e amigos que permitiram que eu avançasse por entre tais percalços – aqueles, amigos e mestres, estão aqui, junto de mim – memória! -, e eu terei a chance, e dever, de apresentá-los a vocês da forma como os conheci. Outros terão, é claro, outras descrições destas pessoas... Não importa, estes serão meus "lares", cujo fogo ainda brilha em minha memória!
Os meus erros – grandes e pequenas derrotas -, com mil desculpas, deixarei para trás sempre que possível, exceto quando tenham sido pedagógicos – o que, em verdade, penso ser raro. Erros doem e apenas em casos raros nos ensinam algo. Logo, erros, com os quais nada apreendemos, não valem a própria dor, portanto, não são dignos de memória. Assim, devo confessar que será uma memória seletiva – aquilo que Tony Judt denominou, com generosidade, de "estímulo para as lembranças agradáveis"-, e devo advertir, construída e inteiramente parcial na defesa do autor! Aqui, como o personagem do historiador de Jean-Paul Sartre, em "A Náusea", procederei "a captura da memória", escolhendo e organizando-a conforme a lógica da minha própria vivência. Por isso mesmo, esta vivência será única e, no limite, ficcional para o outro. Só nos espaços de encontro/desencontro das vidas vividas, a memória será comum e, ainda assim conflitiva, como descobrirá o historiador de "A Náusea". Desta forma, esta narração sempre permanecerá única.
Claro, não me furtarei a alguns momentos difícies. Mas, neste caso serão momentos de esclarecimento, de auto-compreensão, de vida vivida, mesmo que nada possam ensinar a ninguém mais, foram momentos que compreendi eu mesmo, construindo o que penso que eu sou.
Para fazer jus ao que tenho pesquisado e escrito, começarei pelo tempo presente, nos passos da "História da Catalunya" de Pierre Vilar (1906-2003), fazendo "flashbacks", e ainda indesculpáveis "forwards", cometendo, por vezes, "dejá vu". Por vezes. retrocederei no tempo, e quando isso me permitir ou exigir, farei enlaces com o presente e saltarei sobre o passado, e fazendo pausas que possam aclarar escolhas, que ao seu tempo, não eram vistas ou sabidas e que somente agora revelam todo o seu significado – "a captura do tempo", que nos fala Sartre!. Ou somente agora eu possa atribuir-lhes, por alguma (auto)comiseração, algum significado. Memorial: é, então isso, a captura da memória numa narrativa dotada de um sentido.
Assim, aceito, desde já, a crítica de ser, ao longo desta narrativa, arbitrário e ter escolhido "os melhores momentos", "the old good times" e, mesmo, idealizado estes tais "bons velhos tempos". Apenas me defendo afirmando minha alegria com os dias de hoje, os dias que vivo e que ainda viverei...
Bem, já que o modelo não está fixado e as formas são múltiplas, optei, repito, pelos riscos de uma construção não linear, em "flashback", e sendo justo, com os momentos que considero significativos para mim, os melhores – embora nem sempre os mais felizes. Não vou narrar derrotas e frustrações, nem mesmo para comover os leitores, e deixo a tarefa, se é que interessa para alguém, para os desafetos, que numa mesa de bar, serão muito mais justos com meus fracassos do que eu mesmo – ao menos se forem verdadeiros desafetos. Talvez mesmo possa ansiar, neste dia, com o consolo esperançoso de Noel Rosa, na mesma bela canção, em acreditar "Que meus inimigos que hoje falam mal de mim/dirão que nunca viram pessoa tão boa assim".
E haja cavaquinho!










1. PROFESSOR TITULAR DE HISTÓRIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA NA UFRJ.
A "escolha" da UFRJ

"Estamos todos condenados à nossa própria existência"
Jean-Paul Sartre

C
omo muitas vezes na minha vida, o leitor poderá ao final constatar isso, os acontecimentos possuem uma inacreditável capacidade de me atropelar. Muitas vezes, creio, avanço aos saltos, soluços e sustos. Esta foi a condição – em saltos e sustos! - na qual fiz o concurso de professor titular de História Moderna e Contemporânea da UFRJ. Na ocasião em que surgiu a possibilidade, em 1992, mal tinha concluído meu doutorado [Documento Série 1] e estava interessado em montar o setor de história agrária da UFF – órfão pela aposentadoria de Maria Yedda Linhares e que, então, dedicava maior parte do seu tempo a reconstrução da pesquisa na UFRJ ( ao lado de Eulália Lobo, José Luiz Werneck da Silva, Afonso Carlos Marques dos Santos e demais colegas ) e, ao mesmo tempo, a sua atuação como secretária de Educação da cidade ( e depois, do Estado do Rio de Janeiro). O horizonte de uma titularidade não era, de fato, no momento, algo que rondasse minhas preocupações. Além disso, não me ocorria, de forma alguma, sair da UFF, onde surgia, na ocasião, um poderoso programa de Pós-Graduação em História e eu mesmo era um dos coordenadores de curso de História. A UFF, com seu Departamento de História, era uma experiência nova, guiada com zelo e dedicação pela Professora Aidyl de Carvalho Preis, que conseguira reunir os antigos catedráticos e grandes nomes da historiografia carioca – Maria Yedda Linhares, Eulália Lobo, Nilo Bernardes, José Honório Rodrigues e "jovens" recém retornados ao país, após a lei da anistia, como Ciro Cardoso e Pedro Celso Uchoa Cavalcanti, Robert Slennes, além da chamada "prata da casa", como Francisco Falcon, Margarida Souza Neves – uma presença tranquilizadora! - e Ismênia Martins. Era uma equipe forte, coesa, de alta qualidade. Além disso, lá estavam colegas de trabalho (a maioria ainda cursando o mestrado) e que viriam a ser grandes nomes de nossa historiografia, como João Fragoso, Luis Carlos Soares, Hebe Castro e Ronaldo Vainfas. Um amigo, Daniel Aarão Reis Filho, também beneficiado pela Anistia, se tornara colega da mesma área. Em fim, a condição de professor-adjunto IV da UFF – em virtude dos anos de magistério (entrei na UFF por concurso em agosto de 1977 e possuía uma longa trajetória prévia de pesquisas e publicações no CPDA/FGV/UFRRJ). – e pelo adensamento do doutorado, eram elementos, então, bastantes para a construção da carreira.
Foi neste momento que Maria Yedda Linhares, então secretária de Educação do Rio de Janeiro, me convidou para jantar no velho e conhecido apartamento da Rua Cinco de Julho, em Copacabana. Fui, então, "comunicado" que faria o concurso de professor titular da "cadeira" – como a velha dama da história insistia em nomear o cargo e o título. Não havia uma consulta. No mais puro "estilo Maria Yedda" eu estava alistado para as provas! Havia sido sempre assim: com Francisco Falcon, com Arthur e Hugo Weiss e, mesmo, com Ciro Cardoso. Yedda "dixit". Na verdade eu não queria sair da UFF, mas cedo ou mais tarde haveria concursos de titular lá, e dos "jovens", eu era o mais velho, ao lado de Luis Carlos Soares. Mas, os argumentos de Maria Yedda eram irrecusáveis, posto que fossem políticos, de política acadêmica, é verdade, mas claramente políticos. Como Francisco Falcon era titular de História Moderna e Contemporânea na UFF ( desde 1976), lá não havia riscos para a "cadeira". Contudo, na UFRJ, cuja área (ou "cadeira") de História Moderna e Contemporânea ficara órfão, pela primeira vez, desde a aposentadoria compulsória e cassação de direitos políticos de Maria Yedda pelo AI-5, em 1968, e fora duramente atingida pela repressão contra a universidade nos anos de 1960, havia, sem dúvidas, riscos. Com o posterior exílio, as vagas abertas foram ocupadas, sem concurso, por figuras detestáveis, sem quaisquer méritos e, além disso, policialescas e que tornaram os cursos de História Moderna e Contemporânea um amontoado de sandices. Eu sabia bem disso, fizera o curso na própria UFRJ e sentia, como a própria Maria Yedda, a obrigação de recriar as condições de trabalho na universidade.
Maria Yedda nem sempre estava presente, em virtude de sua atuação no Governo Leonel Brizola (primeiro governo foi de 1983 até 1987, durante boa parte do qual eu ainda estava fora do país e, o segundo mandato foi de 1991 até 1994, quando ocupei vários cargos de responsabilidade política, mas isto já é um "forward", vou tentar me conter... ). Yedda, contudo, sentia uma afeição, obrigação ou responsabilidade, inquebrantável com a UFRJ e seu Departamento de História. Tratava-se, para ela, de recompor a linha do tempo, retornar a 1961, quando o Departamento, ainda no bojo da antiga FnFi e a "cadeira", eram um centro importante de debates e ideias. Na maré montante dos movimentos anti-coloniais, das lutas de libertação nacional na África e na Ásia, os cursos sobre Imperialismo e Colonialismo (e Neocolonialismo) tornar-se-iam o centro de grande mobilização política no Rio de Janeiro. As comparações com a situação de dependência do Brasil, e da América Latina, face aos Estados Unidos eram inevitáveis. O Imperialismo vivia para além das salas de aulas. Era uma época de extrema politização da História e do conjunto das ciências sociais. Historiador ou sociólogo eram, então, abusivamente sinonímia de "subversão". A foto abaixo, cedida por Margarida de Souza Neves, ilustra muito bem sua vocação de "passionária" de Maria Yedda naqueles anos de 1960. Tratava-se, então, de retomar os debates e a relevância da antiga FnFi... Aí residia o grande erro.
No retorno dos anistiados ao IFCS, já no início dos anos de 1990, com a possível e próxima aposentadoria de Francisco Falcon e de Adilson Monteiro, havia o risco de não termos uma retomada dos estudos de História Moderna e Contemporânea, como ela entendia tais estudos, na universidade que ela tanto amava e vivera (e sofrera) toda sua vida. Creio que o Projeto do Laboratório de Estudos do Tempo Presente, criado logo em minha chegada ao IFCS em 1994, atendia a estes apelos de Maria Yedda.
Somente Fátima Marschhausen, esta menina-fada, menina-bruxa, foi peremptória 1993, contra a saída da UFF e o abandono de relações e referências pessoais e profissionais que funcionavam tão bem em Niterói. Pois é, Fátima sempre foi capaz de adivinhar o passado e de lembrar do futuro. É isso. Era bem este o caso de lembrar o passado, tão amargo, para adivinhar o que seria o futuro no IFCS, aqueles duros anos de 1973 até 1976: valeria voltar ao IFCS e apostar o futuro como repetição do passado?


Foto de Maria Yedda Linhares no Instituto de Química da PUC-Rio, 1968, Acervo "Correio da Manhã", A.N.






1.2 A universidade que acabou

A educação é uma meta política!
Anísio Teixeira

A
UFRJ é uma descendente direta da Universidade do Distrito Federal, a UDF, criada em 1935 a partir de um projeto de educação democrática, laica e igual para todos, de Anísio Teixeira (1900-1971). Era, ainda, uma "quase" resposta "nacional", menos elitista, – ou getulista? – à criação da USP em 1934. Tratava-se, com certeza, de um projeto político, de uma meta emancipadora: "Educar é crescer. E crescer é viver. Educação é, assim, vida no sentido mais autêntico da palavra", insistia o "Doutor Anísio". Na UDF estavam grandes intelectuais do país como Brochado da Rocha, Afrânio Peixoto, San Thiago Dantas, Afonso Pena Jr. E claro, seu idealizador, Anísio Teixeira. Uma missão francesa foi buscada para a instalação dos novos cursos com nomes do calibre de Francis Ruellan, Henry Hauser, Eugène Alberti e Jacques Perrot. Contudo, de forma bíblica, o criador e a criatura não se mostraram fiéis. Já em 1937 a UDF era fechada no bojo da repressão que se seguia a proclamação do Estado Novo e, em seu lugar, surgiria, em 1938, a Universidade do Brasil, conservadora e repleta de expoentes do estadonovismo. Claro, que muitos dos espíritos livres, dos homens verdadeiramente de ideias, já não poderiam lá lecionar, entre eles o seu criador, Anísio Teixeira.
Maria Yedda, que começara seus estudos na UDF – ainda ao tempo do prédio do Largo do Machado - acabaria indo para Columbia, para o Barnard College, onde frequentaria cursos de Letras – inglês e francês, que permanecerão grandes paixões de sua vida. De volta ao Brasil, em meio a guerra, lutou pela redemocratização participando ativamente da fundação da UNE, da qual foi sua primeira diretora do Departamento de Cultura. Em 1946, com o curso já completo de "História e Geografia", seria chamada por Carlos Miguel Delgado de Carvalho – um intelectual singular, nascido em Paris em 1884, de uma família de diplomatas, perfeitamente "Ancien Régime" em hábitos e gostos, e profundamente erudito. Delgado de Carvalho pode ser, com justiça, considerado o fundador dos estudos contemporâneos no Rio de Janeiro e, creio, sem erro, de tais estudos no Brasil (faleceu, adequadamente, em Petrópolis em 1980).
Enquanto a noviça USP dedicava-se, de forma aprofundada, sob a égide de professores como Alice Cannabrava e Eduardo França de Oliveira, aos estudos de História do Brasil, no Rio de Janeiro a tradição do IHGB e a presença obsedante e obliterante de Helio Vianna impediam estudos realmente valiosos de História do Brasil. Neste vácuo Delgado de Carvalho conseguiu implantar com sucesso, e de forma autônoma, a "cadeira" de História Moderna e Contemporânea. Como Helio Vianna impedia, formalmente, qualquer pesquisa na área de História do Brasil – como um bom "coronel das letras" considerava a área como curral próprio -, os trabalhos de estudantes e professores centralizaram-se nos estudos contemporâneos (e também em América e História Antiga e Medieval, embora neste último caso sem o brilho dos estudos contemporâneos) facilitando, paradoxalmente, a profissionalização da "cadeira" de História Moderna e Contemporânea. Contudo, a História do Brasil, que evoluiria em São Paulo em uma dinâmica linha de pesquisa de Caio Prado Júnior, passando por Alice Cannabrava até Fernando Novaes (orientando desta), jamais vicejaria, nestes anos, com igual vigor nas terras da Guanabara.
Na UDF e na Universidade do Brasil a presença/ausência de Anísio Teixeira foi insuperável em razão dos objetivos e métodos que puderam, bem ou mal, sobreviver ao seu fundador. A ideia da educação como a busca da justiça social seria, apesar de tudo, um marco da nova universidade em especial na "Filosofia". Por isso, as metas da UDF, e depois da UB, seriam sempre a formação de professores, não de pesquisadores. Como fazer uma revolução educacional, libertadora, capaz de acelerar a emancipação social, se não havia professores suficientes? Era necessário – e aqui ouvimos as palavras do "Doutor Anísio" formar professores e estes professores deveriam ter a consciência de sua missão emancipadora e superadora da desigualdade social. Essa será a missão da UDF e, quando extinta, a "tarefa" da FnFi.
O papel da pesquisa e sua relevância só viria mais tarde e, mas, então, assentaria bases sólidas. Coube a Delgado de Carvalho criar e montar a "cadeira" que hoje ocupo ( honrado por isso!), a partir da utilização do "método", o seminário de história e de suas fontes, como procedimento pedagógico e que tornar-se-ia a marca da "cadeira". Assim, a nova Universidade do Brasil, mesmo sob o Estado Novo, seria, ainda que tolhida, expressão dos ideais de Anísio Teixeira e de Delgado de Carvalho.
Com o "Doutor" Anísio, como todos o chamavam, Maria Yedda e, mais tarde, Darcy Ribeiro – que vinha de outra tradição, a USP, onde conviveu com Claude Lévy-Strauss - voltaram-se intensamente para a questão da formação de professores e que iria marcar, como afirmamos, a docência na antiga FnFi. Avançando, em nossos "forwards" narrativos, ambos, Darcy e Yedda, voltaram ao projeto educativo do "Doutor Anísio", amigo e conselheiro mais velho, o responsável pelo projeto emancipador da "Escola-Parque", ainda em Salvador, e também o imenso programa de escolas públicas organizado no governo Pedro Ernesto no Distrito Federal, entre 1931-1936, no âmbito do "Movimento da Escola Nova". Anos mais tarde, durante a redemocratização do Brasil (nos anos de 1980), Darcy e Maria Yedda assumiriam as responsabilidades pela Educação no Governo Leonel Brizola (no primeiro governo entre 1983-1987, Yedda foi secretária municipal de Educação e Cultura e no segundo governo entre 1991-1994, secretária estadual). Lançaram, então, o projeto de uma escola republicana, laica, obrigatória e de tempo integral: os CIEPs. A grande contribuição de Anísio Teixeira, presente nos "escolões" de Brizola – reconhecida por seus amigos e familiares na contribuição direta ao modelo pedagógico dos CIEPs -, foi, sem dúvida, a crença que ele implantou, de forma generosa, nos corações dos amigos e alunos: somente a educação, a educação para todos, vence e supera a desigualdade social. Assim, a formação de professores compromissados com a mudança, o projeto inicial da FnFi, e as grandes escolas públicas, das escolas de Pedro Ernesto até os CIEPs, foram pensadas como resposta para a questão da superação do subdesenvolvimento. A presença de Anísio Teixeira – que se estendera nos anos de 1950-1960 na CAPES , no INEP e na idealização da UnB - foi uma marca insuperável na formação da UDF, da FnFI e, por fim, no projeto dos CIEPs. Nem sua estranha morte apagou esta presença.
Com Delgado de Carvalho seriam outras as influências. Da sua prática nas universidades europeias viria o "seminário" de História, a implantação do método. Delgado de Carvalho traria, de sua formação alemã – profundamente derivada do seminário como concebido por Leopold von Ranke na Universidade de Berlin ainda no século XIX – o método do estudo aprofundado dos textos, seu exame e suas relações com as fontes, recusando a fixação de esforços na memorização e na repetição de fatos e datas, e trazendo os estudantes para um minucioso estudo dos textos originais. Havia uma heurística voltada para o futuro professor, buscando estabelecer as práticas da crítica às fontes, a autonomia perante as narrativas tradicionais e a construção do texto histórico pelo historiador.
Na FnFi, depois de 1946, Maria Yedda teria aí, em torno de Delgado de Carvalho, sua formação e, mais tarde, já como livre-docente e depois catedrática escreveria suas duas teses, ambas rigorosamente em História Contemporânea – uma voltada para as relações anglo-egípcias no Sudão e outra sobre as crises marroquinas na Época do Imperialismo. Ocuparia de forma destacada, com um perfil proativo e rebelde, a cátedra – a mais jovem mulher a ser catedrática no Brasil. Por contraditório, Maria Yedda não queria a cátedra e nunca considerou suas teses – por mais rigorosas que tenham sido - como obras acabadas e, mesmo, objeto de edição. A Universidade do Brasil era, no seu entender, conservadora e se recusava a qualquer esforço de "aggiornamento". A modernização concentrava-se na "cadeira" de História Moderna e Contemporânea, com Yedda, e na "cadeira de História da América", com Eulália Lobo, após a comemorada aposentadoria do seu indescritível primeiro catedrático Silvio Júlio. Na área de História do Brasil a presença de Helio Vianna, como vimos, representava a tradição, o anti-Anísio Teixeira, com aulas e provas baseadas no memorização de datas e no papel dos "heróis" da História "nacional" tal como constava de seus livros, uma teleologia religiosa de movimentos ditos "nativistas", libertadores de um Brasil existente deste de 1500.
Os únicos momentos de criatividade em História do Brasil, e sem dúvida de humor cáustico – que lhe valeria a expulsão da universidade em 1968 – ficava por conta de Manuel Maurício de Albuquerque, o improvável assistente de Helio Vianna.


O Governador Leonel Brizola e Maria Yedda Linhares em sua festa de 70 anos. Na ocasião eu fiz o discurso de homenagem, Rio de Janeiro, 1992.

No grupo formado em torno de Maria Yedda, destacava-se Francisco José Calazans Falcon, ele mesmo erudito – malgrado ser, então, o "jovem" Falcon – e de uma imensa capacidade de trabalho. Um leitor voraz, capaz de criar um interminável mosaico de autores e teses, as quais aprazia desmontar. Ele deveria ser o sucessor na "cadeira", ocupando a cátedra criada por Delgado de Carvalho e revolucionada por Maria Yedda. Contudo, por sua associação com a mestra, suas próprias ideias e por sua participação numa das mais criativas experiências da área de história até então – o projeto "História Nova", em companhia de Pedro Celso Uchoa Cavalcanti – Falcon era um nome "queimado" em face da ditadura. Salvara-se, por quase mágica, do furor de prisões e aposentadorias, literalmente "esquecido", por estar, então, fora do Brasil, em Portugal. Ocupava-se, então, com as pesquisas de sua tese de cátedra – acabaria sendo defendida na UFF, como falamos antes, em 1976, já como trabalho de professor titular. Eu estava lá, bem no fundo da sala do velho Instituto de Filosofia da UFF, ainda na rua Lara Villela. Um jovem recém formado, convidado por Luis Carlos Soares para assistir a cerimônia, e pensei que jamais passaria por aquilo... Sua banca era composta por Profs. Drs. Eduardo d'Oliveira França (presidente), Fernando Antonio Novais, Victor Vicent Valla, Arthur Cezar Ferreira Reis e Fernando Sgarbi Lima – foi uma cerimônia dura, onde, talvez por insidia, ecos da FnFi ainda podiam ser ouvidos.
A presença de Francisco Falcon junto a cátedra de História Moderna e Contemporânea foi marcante. Durante um longo período de ausência de Maria Yedda – primeiro em um ano de docência nos Estados Unidos e França e depois ocupando a direção da Rádio Ministério de Educação e Cultura – Falcon, com jovens auxiliares como Pedro Celso e José Luiz Werneck da Silva, avançaram em debates e em abordagens novas e desafiadoras, incluindo aí a aproximação com o marxismo.
Particularmente, Falcon teve uma participação central – e nem sempre reconhecida – no grupo montado por Nelson Werneck Sodré, então no ISEB, para a construção de uma nova narrativa da História, militante e visando denunciar a "dependência" ( em face ao Imperialismo) através da explicação histórica da "realidade nacional". Tratava-se do grupo da "História Nova", com o próprio Falcon, Pedro Celso Uchoa Cavalcanti, Rubens César Fernandes, Pedro Alcântara Figueira, Joel Rufino dos Santos e Mauricio Martins de Mello e que teve um forte impacto sobre toda a geração de jovens que chegava à universidade nos anos de 1960. Com sua constituição em 1963, o grupo se expôs de forma intensa, despertando ódios e invejas, que cobrariam deles um alto preço em 1964. Tais atos de vingança expressar-se-iam, entre outras formas, com a criação de um Inquérito Policial Militar apenas para o Grupo da História Nova. Era um tempo em que escrever livros de história era um caso de polícia.
Assim, a FnFI, e sua "cadeira" de História Moderna e Contemporânea tinham a tradição da inovação, da militância e do desafio ao conservadorismo universitário vigente. Este era o espírito da História da FnFI nos anos de tormenta.
Era também uma época de "manifestos"! Professores e estudantes estavam sempre prontos para redigir e lançar – como se fossem, de fato, armas! – manifestos pela educação, pela reforma agrária, pela independência da Argélia, ou em apoio aos marinheiros e soldados ou, ainda, contra qualquer um dos muitos reacionários de ocasião. O artigo de O GLOBO ( ver nota 14) contra os porfessores, "de blue-jeans e barbudos", da UNB era exatamente o reconhecimento, por parate do "sistema", que então tais manifestos eram, de fato, armas poderosas.
Em fim, quando retornei ao IFCS – eis-me em outro "forward" -, em 1993 – tendo passado pela mesma cerimônia e tendo o próprio Falcon como o mais duro e justo arguidor do concurso -, não esperava, de forma alguma, encontrar a universidade exangue que deixara em 1976 – mesmo que purgada pela anistia – e profundamente dividida ao peso de uma herança de mediocridades. Talvez por influência de Maria Yedda, ou em verdade porque eu mesmo queria isso, buscava a universidade que existira, digamos, em 1961- pronta para uma ampla, autônoma e democrática reforma. Mas, esta universidade só existia nas memórias de Maria Yedda e eu, tolamente, confundira minhas memórias com as memórias alheias.
Por tais razões a aposentadoria, creio eu, mesmo que precoce, não me traz tristezas. Encaro como uma terceira chance, desta feita contrariando a regra dos "saltos, soluções e sustos", uma escolha em liberdade: a liberdade das circunstâncias e de suas contingências. Mas, com condições de fazer escolhas num estado nunca vivido de liberdade.





A opção definitiva pela História Moderna e Contemporânea

Buscar um mundo novo, vida nova
E ver, se dessa vez, faço um final feliz
Deixar de lado
Aquela velha história
O verso usado,
O canto antigo,
Vou dizer adeus,
Fazer de tudo e todos mera lembrança!
Gonzaguinha.

Q
uando eu mesmo entrei na UFRJ [Documento Série 1] para o curso de graduação já não tínhamos Maria Yedda, e professores "visados", como Francisco Falcon, viviam um exílio interno. Para ele, um único curso, colocado no fim do dia e sem o nome no quadro de disciplinas (o curso normal era exclusivamente diurno). Assim, mesmo, consegui matrícula em seu curso de História Moderna e Contemporânea, que era uma ilha de sabedoria num imenso deserto de mediocridade e, quando não, de pura sordidez. Naquelas tardes do IFCS, no Largo de São Francisco, pude entender meu apego pela História e minha vocação para a História Moderna e Contemporânea. Tudo confirmado nas aulas de Falcon. Oásis, estímulo e exemplo! Sua presença será, repetidas vezes, marcante na minha carreira: professor de graduação, membro de minha banca de concurso na UFF, meu orientador de mestrado e membro das bancas de doutorado e de concurso de titular.
Tinha, assim, um modelo, mesmo que não tivesse as virtudes.
Quando, em 1992, Maria Yedda, completava um ciclo, me investia das condições necessárias, mas não suficientes, para ser titular de História Moderna e Contemporânea. Entendi que a imagem mental que eu possuía de um professor titular fora moldada na observação e convivência com Francisco Falcon. Tive, então, uma longa conversa com "o mestre", ainda na sua casa no Ingá, Niterói, na presença de Maria Célia Falcon, professora e minha "chefa" no Departamento de História na UFF. Nesta conversa, como ele havia sido meu orientador de mestrado, busquei do "velho" professor (então mais jovem do que eu hoje!) duas respostas: de um lado, que ele não se sentiria melindrado por eu fazer o concurso, que era tecnicamente um direito dele; por outro, lado, uma resposta sem garantias, apenas, um aconselhamento de orientador: se havia risco de um fiasco? Não um honroso segundo ou terceiro lugar, mas um acachapante desastre. Em ambas as questões Falcon me acalmou, sempre de forma obliqua, quase irônico, sem garantias, mas afirmando que a chance era boa e vinha em boa hora.
Restava então a tese e as provas. O meu concurso foi o último da UFRJ no velho estilo, com a exigência de uma "tese" que comprovasse a erudição. A lista de temas, de livre escolha entre os dez definidos pela área, era exclusiva de História Moderna e Contemporânea, disciplina que lecionava desde 1977 na UFF.
Escolhi como tema "O pensamento romântico alemão no século XIX". O tema me enviava diretamente às inúmeras leituras que fizera nos meus anos de Alemanha, nos estudos de alemão no Colégio Pedro II [Documento Série 1] e no Instituto Goethe no Rio e em Heidelberg/Mannheim [ Documento Série 1]. Além disso, estava fascinado pelo cinema expressionista alemão, de Friedrich Wilhelm Murnau até Fritz Lang, e me surgia, o tema, como uma oportunidade de escrever sobre algo que sempre lecionara e que foram meus "Nebenfächer" – estudos conexos – em Berlim, na Universidade Livre/FU [Documento Série 1].
Na Alemanha, além de aprofundar meus estudos em História Agrária e História Econômica (com Victor Klagsbrunn, no Institut für Soziologie, ele mesmo um exilado da ditadura brasileira) e Arthur Imhoff e Reinhard Liehr no Institut Friedrich Meinecke, na Universidade Livre de Berlin, ocupei meu tempo, ao máximo, nos seminários de Ernst Nolte, Karl-Friedrich Bracher (nascido em 1922 e sempre presente nos debates berlinenses), Wolfgang Mommsen (1930-2004) e o mais progressistas dos historiadores alemães durante os anos de 1960, Dr. Hans Mommsen (nascido em 1930, irmão gêmeo de Wolfgang Mommsen e, ambos, sobrinhos do decano da historiografia alemã Theodor Mommsen). Nos anos de 1980, quando cheguei à Alemanha, estava no auge do debate sobre a natureza e as responsabilidades sociais e coletivas do povo alemão pelo nazismo. Tais debates lotavam os auditórios da Freie Universität Berlin/FU Berlin e iriam moldar minha formação no campo dos estudos das ditaduras, inclusive buscando o entendimento das ditaduras brasileiras através dos procedimentos que emergem da "Querela dos Historiadores". Bom, mas isso já é outro "forward" desta narrativa, que deixarei na sua íntegra para mais tarde...
Para além do fascismo - mais tarde vou insistir em "os fascismos", no plural, englobando todas as formas históricas de sua existência – me fascinava a reação das elites intelectuais alemães, desde o período da ocupação napoleônica, contra o Iluminismo e intelectualismo de tipo francês, dito como "estrangeiro" e estranho ao "Kultur" alemão. A emergência, no século XIX, de um pensamento alemão romântico, organicista e conservador centrado no Estado como um "anima" da sociedade, expresso nos temas da "Gemeinschaft" (e "Volksgemeinschaft") e sua "Kultur" (ou Geistkultur") será o cerne do entendimento de Leopold Von Ranke (1785-1888) e de Friederich Meinecke (1862-1954). Será a época de apogeu do pensamento "Völkisch". Ambos os historiadores, conservadores e responsáveis pelo protagonismo do Estado – enquanto realização da "Ideia" do "Kultur" na História, numa torção hegeliana "de direita" do clássico idealismo alemão –, serão meus personagens centrais por bom tempo e uma presença, talvez uma sombra, sobre o entendimento do advento do fascismo alemão. Mas, então, já estaremos na época da derivação fascista e racialista do "Völkisch", em seus criadores originais – Ranke e Meinecke – apenas uma "Kultur", distante da ideia de "raça" como motor da História. Voltaremos a isso.
A UFF, de forma muito generosa e cavalheiresca, mesmo ciente de minha possível ida para UFRJ, me permitiu um ano sabático em Berlin. Sob convite de meu professor-orientador, Dr. Reinhard Liehr, passei todo o ano de 1991 em Berlin, pesquisando na Biblioteca do Instituto Meinecke e participando, como docente-convidado, dos seminários de História do Dr. Liehr no Lateinamerika Institut, da FU. Sem a ajuda do Dr. Reinhard Liehr, sua generosidade em me acolher quando lá cheguei pela primeira vez ( depois de uma história tragicômica!) – além da simpatia genuína, "quase" latina de "Frau" Liehr -, não teria conseguido manter-me naqueles anos em Berlin. Em 1991 esta acolhida foi, mais uma vez, renovada.
Era um rompimento ""duvidoso" com minha relativamente longa pesquisa na área de História Agrária, iniciada como pesquisador do Centro de Pós-Graduação em Desenvolvimento Agrícola da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro [Documento Série 1], e que prosseguiria nos anos de UFF. Ou era mais ou menos um rompimento. Na verdade, nas duas teses feitas sobre história agrária – a dissertação de mestrado "Camponeses e Criadores na Formação Social da Miséria. Porto da Folha no Sertão do São Francisco, 1820-1920" [Documento 2] e "A Morfologia da Escassez: crises de fome na Bahia e no Rio de Janeiro, 1680-1780" [Documento 3] havia um claro viés de análise voltado fortemente para o estudo do Estado, da sua natureza e de suas relações com os grupos sociais, com ênfase no conservadorismo e na resistência à mudança e nos conflitos sociais. Neste último caso, a monarquia ibérica, com seu viés arcaizante embebido no "verão" tardio do aristotelismo definia, para além dos interesses mercantilistas, claras posturas sobre os ideais da "Bem-feitoria" – a noção ibérica de "Res Publica". A insistência com que a Coroa legislava sobre a "felicidade" dos súditos – aí incluindo as questões relativas à fome, às doenças e à ordem publica implicava em perceber uma visão de mundo marcada por forte organicismo social. R.H. Tawney, que eu utilizava intensamente em sala de aulas para estudar os Primeiros Stuarts e seu colapso ( 1603-1660) e Günther Barudio, utilizado para entender o "Ancien Régime" na Europa continental, serviam de norte para uma interpretação que se queria além do debate sobre "a Transição do Feudalismo ao Capitalismo". Em suma, a análise do poder e das suas instituições era uma constante e nunca me satisfazia com as "determinações" econômicas.
Assim, leituras centrais para o meu trabalho posterior, tais como os textos clássicos de Karl Mannheim e Norbert Nisbet sobre mentalidades e poder, bem como o seminal trabalho de Barrington-Moore (e a resposta de Theda Skopol) sobre as "vias" de construção da democracia e das ditaduras em sociedades agrárias já eram material de reflexão e de aula, para mim. Além das análises contundentes sobre a presença do latifúndio, a exploração camponesa e a formação das ditaduras, tais livros me mostraram um uso amplo e inteligente da história comparada, abrindo, muito precocemente, uma via de estudos que eu não mais abandonaria.
Assim, procurei recortar o tema, liberdade concedida pelo edital, e centrar toda a atenção num viés específico do romantismo conservador alemão: a passagem do pensamento conservador clássico para sua derivação "Völkisch". Tratava-se um fenômeno único, profundamente alemão, centrado no conceito de "Kultur", derivado de Herder e Hegel, e de "Kulturgeist" como usado na obra de Ranke. Sua racialização posterior (a derivação racista e biologizante sobre uma pretensa raça ariana nos anos de 1920 e 1930), independente dos pensadores originais do século XIX, irá alimentar o "mainstream" do fascismo alemão. A tese, em fim, centrada no pensamento e na obra de Leopold Von Ranke e de seus discípulos – "Europa ou concerto das nações na obra de Leopold Von Ranke" - foi, a meu ver, o trabalho mais teórico e denso que escrevi. Creio que o imenso acervo da Biblioteca Friedrich Meinecke, os Arquivos de Ranke, em Berlin e Atlanta ( no Memory College), e o generoso tempo disponível foram indispensáveis para sua realização. Permaneci, mais uma vez, todo um ano na Europa em 1991 – o ano da explosão "neonazista", logo após a "Reunificação alemã" e da queda da União Soviética. Mais um testemunho surpreendente vivido no calor da hora, depois da experiência da derrubada do Muro em 1989 em Berlin. Após os longos dias de pesquisa no "Preuβische Archiv", ou na Biblioteca do Instituto Friedrich Meinecke, em Dahlendorf, costumava ir um tomar um café, e um conhaque, no "Café Antifa" (Antifaschistiches Café), na Yorkstraβe 56, onde lia o "Le Monde" ou o "Süddeutschezeitung". Então conversava com um público variado, gente comum, transeuntes em sua parada para o café, ou o público típico de todas as tardes: socialistas, ecologistas, anarquistas, punks e intelectuais boêmios. Algumas vezes ia ao Andreas Kneippe, na Wittenbergplatz, onde não havia riscos de manifestações e agressões nazistas.
Data desta época minha amizade com Harald Schultz e Wolfgang Schmidt.
Mais uma vez, o centro de todas as atividades era a Universidade Livre de Berlin/FU, onde o Dr. Reinhard Liehr, meu ex-orientador – com Maria Yedda Linhares – de minha tese de doutoramento, me recebia pela segunda vez, depois do doutorado (a primeira fora em 1989), como professor convidado. Este foi um intenso ano de pesquisas, com uma agenda repleta, com aulas e seminários ministrados no "Lateinamerika Institut" e tardes inteiras nos arquivos e bibliotecas. A tese de titular resultou deste esforço, consolidando as pesquisas, os longos diálogos com os professores da FU, em especial do Dr. Wolfgang Benz, Hans Mommsen, George Mosse e as entrevistas com Ernst Nolte. Além disso, a possibilidade de visitas e programas, como o ciclo de Richard Wagner e de Richard Strauss na "Staatsoper" e o acompanhamento da programação de Claudio Abado na "Philarmonie", davam consistência e pistas para compreender a densa cultura alemã do século XIX e começo do século XX. Com Christian Deutschmann e Klaus Trappmann, ambos jornalistas e escritores, revia, quase todas as noites, ideias e referências – eram cerimônias oitocentistas, quase um "salon" fechado, com debates, música – Klaus é músico também – e um processo de conhecimento e aprendizagem de vinhos. Esta tese nasceu entre "lieder", canções, e taças.


O Centro histórico de Berlin em 1982, o Portão do Brandenburgo por detrás do Muro: a primeira visão do "Muro", tristeza cinza e marca insuperável da Guerra Fria e do "socialismo verdadeiramente existente". Foto do autor, 1982.
Sua defesa foi penosa e foi quando mais temi pela minha sorte. Sempre considerei a tese boa, na verdade diferente de tudo que fora escrito em português, e mesmo alemão, sobre o tema. Mas, temia a arguição do – é claro! – "Memorial" e o currículo de alguém de 37 anos numa universidade que ainda não generalizara o sistema de pesquisa pós-graduada, de publicações ou de bolsas (nunca tive bolsa de mestrado ou doutorado, mas fui um dos primeiros a ter bolsa de produtividade, ainda quando mestre). A banca era composta, como disse antes, por Francisco Iglesias, da UFMG, Francisco Falcon, pela UFF (que embora fosse meu chefe de área na UFF e meu ex-orientador de dissertação, foi quem fez a mais longa, dura e pertinente arguição), Eulália Lobo e Maria Yedda Linhares pela UFRJ e Maria Luisa Marcílio, pela USP.
O meu medo tinha razões pertinentes: havia quatro concursos de titular abertos. No concurso de Brasil e de América os professores da casa foram reprovados; no de metodologia da História os candidatos haviam desistido e, o último, de Moderna e Contemporânea, restava somente eu. Isso mesmo, ninguém mais se inscreverá e tive o pior de todos os medos: reprovar a mim mesmo.
Contudo o resultado foi maior e melhor do que jamais pensara: tive dez unânime em todas as provas (ok, mil perdões, este é o segundo ataque irrefreado de cabotinismo explícito!). A tese, finalmente, transformar-se-á em livro neste ano, 2012, sob o título – que sempre me era sussurrado no inconsciente – de "Genealogias do Fascismo" – infelizmente ainda não a tenho disponível para comprovação, posto o atraso na edição, derivado da correta implicância da editora Mauad com todas as citações em alemão - . De qualquer forma, as pesquisas da tese geraram dois trabalhos no mesmo campo. De um lado, a longa "Introdução" da obra coletiva "Dicionário Crítico do Pensamento de Direita", que organizei em 2001 [Documento 4], Nesta "Introdução" explico, claro, o trabalho coletivo - no qual contei com a experiência de Alexander Vianna (meu orientando, hoje professor da UFRRJ) e Sabrina Medeiros (também, então, minha orientanda e hoje Professora da Escola de Guerra Naval/ESG) – e avanço no estabelecimento do pensamento conservador como uma vertente da modernidade e, não, sua negação. Faço, então, a distinção, rara na literatura brasileira, entre conservadorismo, reação e fascismos, mostrando as variações, inclusive democráticas, do pensamento conservador. Este livro gerou um amplo debate, com páginas de jornal (contra e a favor, claro) e um artigo vitriólico de "Veja", sobre o atraso de se pensar o mundo pós-Muro de Berlin, ainda (para os editores) em termos de "esquerda versus direita", além de um grande número de programas de televisão, incluindo aí uma entrevista hilária (para os outros) com Jô Soares. Na verdade, o livro baseia-se em dois princípios que considero, em verdade, bastante modernos e atuais, e que a compreensão, talvez, escape dos desavisados. De um lado, a percepção da díade esquerda-direita como uma topológica decorrente das circunstâncias do debate político e, de outro, o fulcro de esquerda-direita assentado ( não em essencialidades abstratas) em condições comportamentais, indo além, e transpassando, meros quadros partidários (como no caso do aborto, da união civil de gays, de ações afirmativas, etc...).
Aprovado, depois de uma longa espera pela nomeação [Documento Série 1], me demiti da UFF – com pesar, com muito pesar! – iniciei meu percurso na UFRJ. Na UFRJ, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais e seu Departamento de História, hoje Instituto de História, fui recebido com alegria e fraternidade por colegas e alguns amigos, tendo desempenhado praticamente todos os papéis administrativos possíveis na estrutura rotineira da universidade: fui coordenador de curso de graduação, de Pós-Graduação na História Social e depois no Programa de História Comparada, fui vice-diretor e diretor do IFCS, fui membro de todas as comissões possíveis de ser imaginadas por nossa sanha "reunionista" (sic?!) e "plenarista" (sic?!) [Documento Série 1] em vigor na universidade desde os anos de 1970. Devo incluir aí, ainda na UFF, a criação da ADUFF, a associação de docentes da UFF, entidade pioneira no seu campo entre as universidades do Rio de Janeiro. Fui um dos vice-presidentes (o presidente era o médico Jorge Guimarães) e membro da diretoria da ANDES (sob a presidência do físico Pinguelli Rosa), o que, naquele momento, encerrava grave risco profissional.
















2. O TEMPO PRESENTE NA UFRJ: por quê?

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicidas, não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.
Carlos Drummond de Andrade

A
experiência mais importante tanto na UFF quanto na UFRJ foi na docência de História Moderna e Contemporânea. Tratava-se, para além de um emprego, de dar continuidade a uma tradição que se queria modernista e inovadora. No ambiente conservador da antiga Universidade do Brasil e da sua Faculdade Nacional de Filosofia (a FnFI, hoje IFCS/IH), o peso da repetição e da memorização era simplesmente arrasador. As engraçadíssimas, e sempre "cum grano salis", narrativas de Manoel Mauricio de Albuquerque – um resistente que pagou caro por suas ousadias! – das aulas, e principalmente das provas, do catedrático de História do Brasil, Hélio Vianna, eram um dos temas prediletos de nossas rodas de conversas extramuros (é, claro!) da UB/UFRJ. Neste sentido, os cursos de Maria Yedda Linhares, com Hugo e Arthur Weiss, Francisco Falcon e José Luiz Werneck da Silva, na "cadeira" de História Moderna e Contemporânea eram o que havia de novo, moderno e progressista no campo da história no Rio de Janeiro.
Foi assim, através da história "extramuros" – num tempo em que uma simples conversa de mais de três alunos nos corredores valia uma suspensão ou a abertura de um famigerado processo chamado "do Decreto 477" (que o professor. Eremildo Vianna acabou por usar contra o "jovem" Elio Gaspari) e que sucedia a Lei Lacerda-Suplicy de 1964, que nos familiarizamos com a modernidade dos estudos de História Moderna e Contemporânea.
Ao retornar ao IFCS da UFRJ, já em 1994 (de lá havia saído em 1976, com amargas lembranças em 1976), graduado e licenciado em História – Documento Série 1 – tinha a obrigação, como já expliquei, de retomar as tarefas do ensino e da pesquisa em História Moderna e Contemporânea na tradição de modernidade criada por Delgado de Carvalho, ampliada e consolidada entre 1958 e 1961 por Maria Yedda Linhares e seus assistentes e, depois, paralisada pela reação entre 1961 – quando Maria Yedda já estava afastada da FnFi – e 1964. Tal tradição é que deveria ser retomada com os concursos abertos pela UFRJ no início dos anos ´90.
Foi neste contexto, e com esta tarefa, que ao chegar ao IFCS "renascido" tomei a iniciativa central de criar o Laboratório de Estudos do Tempo Presente [Documento Série 1].
Na mesma época que fiz o concurso para a UFRJ, o amigo e parceiro de estudos João Fragoso, hoje titular de Teoria da História do IH/UFRJ, também optou para a UFRJ, tal como Anita Prestes na mesma ocasião, ambos saídos da UFF. No melhor clima de companheirismo João me pediu para ministrar os cursos de história moderna, posto que suas pesquisas – centrados no século XIX da Província cafeeira fluminense – cada vez mais se aprofundavam no Atlântico português dos séculos XVII e XVIII. Eu mesmo, por outro lado, aprofundava meu debate sobre o final do século XIX e adentrava o século XX até os fascismos dos anos de 1920 e 1930. Assim, na oportuna e útil divisão de trabalho, cada vez mais me voltava para o contemporâneo, para o nosso tempo, o tempo presente.
O Laboratório de Estudos do Tempo Presente/TEMPO, foi criado, em fim, em 1994, como parte dos esforços de renovação da história contemporânea no processo de democratização da UFRJ. Assim, tendo duas imperiosidades em mente – compreensão do fenômeno das ditaduras na História do Brasil, com as possibilidades de comparação com os demais fenômenos ditatoriais do século XX, e criar um núcleo inovador de História Contemporânea – que me decidi pela temática do Tempo Presente.
A tarefa não foi fácil. Pelos procedimentos burocráticos da UFRJ a proposta, sob forma de projeto de pesquisa acadêmico, deveria ser aprovada na plenária do Departamento (hoje Instituto) de História, depois na Congregação do IFCS e em fim no Conselho de Ensino e Pesquisa da UFRJ.
O parecer inicial dado ao projeto do TEMPO (como passou a ser chamado o novo Laboratório), emitido por um jovem sociólogo, opunha-se fortemente ao projeto, sob a consideração de tratar-se de temáticas "próprias e exclusivas" das disciplinas de ciência política, sociologia e, mesmo, da economia e, além disso, por tratar-se de uma temporalidade "não histórica". Contra todas as regras de Marc Bloch os muros eram, novamente, erguidos no âmbito da universidade. Para mim a recusa, inicial, não era, de forma alguma, uma novidade. Era, mesmo, esperada.

O debate do Tempo Presente

"A Alemanha desejou o fascismo"
Wilhelm Reich

O
esforço de criação do "Institut d´Histoire du Temps Présent", o IHTP, pelo Prof. François Bédarida (em 1980), a quem eu tinha acompanhado em Paris durante várias semanas em 1991, fora, em seu início, duramente criticado, obrigando-o a estabelecer a nova instituição fora do âmbito universitário parisiense. Assim, o IHTP foi criado como um instituto autônomo sob o patrocínio do CNRS. Da mesma forma, a criação, quase dez anos depois, do "Zentrum für Antisemitusmusforschung/ZfA" (Centro de Pesquisas do Antissemitismo), um lócus de pesquisa do "tempo presente" na Alemanha, pelo Dr. Wolfgang Benz, fora duramente criticado no âmbito do Instituto Friedrich Meinecke, onde eu então trabalhava, obrigando-se a um exílio como núcleo autônomo da Faculdade de Comunicação Social da Universidade Técnica de Berlin. Neste período da criação do ZfA, eu me encontrava, como disse antes, em Berlin realizando a pesquisa de minha tese de titular e pude acompanhar, em detalhes, todo o debate. Assim, não tinha muitas esperanças. Era bastante duvidoso que o ambiente acadêmico do Rio de Janeiro fosse mais acolhedor do que o ambiente universitário francês ou alemão. É verdade, que no caso francês e alemão, pairava sob o passado recente, um passado presente em cada detalhe do cotidiano, mesmo nas ainda sombrias ruínas urbanas de Berlin do início dos anos ´80, a sombra de tragédias imensuráveis. No caso francês, não só a derrota e a humilhação da Ocupação (a "estranha derrota", escreveria Marc Bloch), mas, e acima de tudo, a "Colaboração". O mito da França "resistente", da França "combatente", criado principalmente pelo gaulismo, obnubilava a existência de centenas de matizes, de trajetórias e de estratégias de sobrevivência sobre a "Ocupação", inclusive, claro, a pura e simples colaboração. Na verdade, a história contemporânea francesa, incluindo aí os notáveis estudos da chamada "École des Annales" – que me era tremendamente próxima e inspirara minhas teses de mestrado e de doutorado em história social e agrária – havia se calado sobre esta época recente, imediata, e em fim, denominada de "história presente" do país. O silêncio dos historiadores – na nova série dos "Annales" não houve sequer um artigo sobre a Ocupação/Colaboração ou sobre a contribuição francesa ao Holocausto até 1994 (embora estivesse pontuada por dezenas de artigos sobre a perseguição de bruxas e de curandeiros e pensadores heréticos na Idade Média e nos Tempos Modernos). Somente quando a medievalista Luci Valensi rompeu o véu do esquecimento, a revista se penitenciou publicamente de tais ausências. Da mesma forma, na Alemanha, o mito da responsabilidade exclusive de Adolf Hitler e seu seguidores imediatos (a Gestapo e os quadros centrais do Partido Nacional-Socialista), como especificada na chamada "Querela dos Historiadores" (´Historikerstreit´, dos anos de 1980, na Alemanha, e que nos marcaria profundamente como balizamento teórico para o estudo das ditaduras) pusera à nu as teses "intencionalistas", centradas no caráter "patológico" de Hitler e meia dúzia de líderes "degenerados" do Terceiro Reich. Os marcos deste silêncio, sob a forma de teses obscuras ou auto-explicativas, tais como: "conjunto da população alemã não sabia da existência dos campos e do que lá acontecia" e, ainda, fora ela mesma, a população alemã, "vítima do nazismo" ( e tendo sido igualmente "libertada" pelos Aliados, ocidentais, naturalmente!). Tais versões apaziguadoras da história, típicas da época do "Milagre alemão" não resistiriam a uma série pesquisa que se multiplicariam depois dos anos de 1980. Essa era a versão apaziguadora da história recente, do tempo presente, de Konrad Adenauer e dos refundadores da Alemanha no imediato pós-1945 (após a "Katastrophe"). Este era o peso, nas palavras de Ernst Nolte, de "um passado que não quer passar" ( "Vergangenheit, die nicht vergehen will").
Tal visão "apaziguadora" da História do Tempo Presente pode ser entendida, o que devemos ter claro, como uma busca de uma saída política e emocional para amparar o esforço de reconstrução e de instauração de um projeto de futuro, tanto na França quanto na Alemanha. Da mesma forma, pode-se constatar, numa chave psicanalítica, a recusa defensiva em reviver o trauma. Assim, a História do Tempo Presente constituía-se, desde sua origem, em um assunto inconveniente, numa forma de "cutucar" feridas que deveriam ser curadas "pelo esquecimento", evitando sua exposição pública e repetitiva. Para muitos, e incluindo aí os que viveram de formas diferenciadas a própria história dos fascismos e das ditaduras, toda a história deste tempo estava involucrada em formas anestesiantes e pacificadores, visando evitar as feridas recentes voltassem a sangrar. Tratava-se de reunir os cacos da sociedade que existira antes da tragédia – os fascismos no poder – e insistir em viver o presente da melhor forma possível e contar, só esperança então, com um futuro melhor. Na maior parte das vezes, sob as benções da fratura ideológica da Guerra Fria – ninguém queria, em verdade, saber exatamente o que acontecera durante a guerra e quem fizera o que. Eram perguntas incômodas a qual os jovens alemães, meus colegas na universidade no inicio dos anos de 1980, tratavam com amarga ironia.
( Excurso: uma breve notícia desde a Alemanha: Gostaria aqui de fazer uma pausa, abrir um parêntesis, neste relato para apresentar algumas reflexões estritamente pessoais e talvez sem quaisquer utilidades para leitores em busca de alguma objetividade. Eu sei, é uma dos muitos "flashbacks", sendo este em meio a outro, mas... Simplesmente veio aqui e agora, como teimosia de outro "djin", desta feita pedinte como um cão... Bem, creio que a viagem para a Alemanha e os anos lá passados, embora difíceis – como vistos negados e passaporte confiscado em decorrência das denúncias vindas do Brasil, lembremos que a Alemanha vivia, então, a época do Baader-Meinhof – foram fundamentais para minha formação. Cheguei à Alemanha no ano da desmobilização, pelas forças da ordem, das últimas células ativas da "Rote Armee Fraktion/Fração do Exército Vermelho", entre 1981 e 1982, conhecida por nós como Grupo Baader-Meinhof. A troca de informações entre as polícias do Brasil e da Alemanha, abastecida por relatórios de um professor, colega do ICHF da UFF ( o que só saberia muito mais tarde!), e informante, neste contexto, tornaram a minha vida – e de minha família – muito difíceis. A delação e a repressão possuem longos tentáculos. Os amigos alemães, como o jornalista Christian Deutschmman e a professora Silvia Kühl, ao assumirem minha "tutela" junto ao Comissariado de Refugiados da (rua) Kochstraβe, foram amigos solidários e inesquecíveis. Contudo isso, estar no local, pisar o chão dos acontecimentos históricos – não só em Berlin – as duas- , mas em Praga, Moscou, Varsóvia, ainda comunistas, e Roma e Paris – faria uma diferença brutal na compreensão da História Moderna e Contemporânea. De alguma forma a história está lá, em cada praça, nas marcas de cada rua e nos espaços que vão da bastilha até a Place de la Greve...
A primeira vez que entrei no pátio de desembarque de trens do KZ ("Konzentrationslager"), do campo de concentração, de Dachau tive um "flash", breve e intenso, do que é a solidão desesperançada que milhares de pessoas viveram ali mesmo, não há muito tempo atrás. Andar com a gola do capote, de couro e lã, fechada, com botas forradas e cachecol de lã no pátio açoitado de ventos de -17º. em Oranienburg-Sachsenhausen me faz "saber" melhor, saber vendo e vivendo, que ali milhares de judeus, prisioneiros russos, comunistas, gays trabalharam, de pés no chão, até a morte. Ali, só, abandonado a mim mesmo, fui assaltado pela história. O que nos obriga a repensar a própria condição humana, sua fragilidade, força e o seu natural perverso. Os fornos de Auschwitz ou as pretensas enfermarias de Sachsenhausen serão, para mim, a materialidade do mal. E esse mal é humano, demasiadamente humano. Não terei, nunca mais, meios ou mediação possível quer na história quer na vida, depois de caminhar em Sachsenhausen, de separar o historiador do militante. Depois de dez intermináveis minutos, só, em face dos trilhos e ganchos de carregar corpos humanos de forma "eficiente e rápida" em Auschwitz não posso mais pensar em uma razão objetiva e neutra na história. Ao ler cartas, nunca enviadas, de jovens gays que morreriam de fome, frio e tifo só por amar diferente, me dei conta que a história é um ato político. A verdade da história, com sua transitoriedade, esbarra em verdades universais construídas na dor e no sofrimento. Como igualar todas as narrativas ou aceitar que o passado é irrecuperável. Depois de Auschwitz eu sou o passado – trilhos, ganchos, fornos, cartas, estrelas e triângulos vivem em mim para sempre.
Já em 1991, quando fiquei todo um ano em Berlin, deparei-me como o fenômeno da Ressurgência do Nazismo e ficou claro para mim o peso desta "história que não quer passar", como diria meu velho professor. Assim, o debate sobre fascismos e ditaduras não é, de forma alguma, distanciado e teórico – eu vi o passado e, depois, vi o passado de calças jeans, blusão de couro escandindo palavras de ordem nas ruas em que eu caminhava. O debate vivia em mim e vazava para a vida – ou será que vida vivida hoje invadia as salas de aula e os manuais?. O fascismo não é um época da história encerrada em manuais: o fascismo é jovem, foi à escola e teve aulas de história. E, no entanto, berra pela morte do outro ali, naquela esquina.
Da mesma forma, o clima e a mentalidade da Guerra Fria eram, naquele momento, inescapáveis. Os exercícios de ataque aéreo e de guerra nuclear – com certeza inúteis para os milhões de habitantes de Berlin – eram uma constante. Uma ou duas vezes por semestre, em Berlin, as sirenes tocavam, em horários estranhos, e a cidade parava nos "bunker" e abrigos, algumas vezes nos túneis do metrô. Nos rostasx e nas mãos trêmulas de homens e mulheres mais velhos, que viveram os tremendos ataques aéreos anglo-americanos ( "Der Brand", o incêndio!), via-se a máscara do terror. Nas viagens, mesmo curtas, de bairro à bairro, as travessias do Muro eram um ritual tenso, humilhante e algumas vezes brutal. Ali eu vivi a história).
Ok, abandonemos, agora, este "hipertexto", excurso no excurso, e voltemos ao debate entre historiadores!
É interessante como o mito da unidade ( nacional) na resistência (nacional) – válido para França da IV República e transformado em história oficial na V República - se torna um fenômeno repetitivo em todos os momentos de pós-ditadura ( como na América do Sul). Dá-se, por parte de diferentes atores, claros esforços de apresentação de uma "folha de serviços" pela "Resistência" nem sempre confiável. Personagens que, sob a ditadura, mantiveram-se, no máximo, em situação de "atentismo" (de espera!) – e alimentaram o mito da vitimização – fundamental para o apaziguamento político e emocional do pós-ditadura e do pós-guerra, como na Alemanha (todos "vítimas de Hitler e de seu bando de degenerados) e na Itália (" invadida" pela Alemanha e "arrastada" para a guerra por uma má avaliação de Mussolini, até então um bom governante). Tal versão da história é, hoje, vastamente produzida para alguns aspectos ou personagens do Terceiro Reich, como no caso de Albert Speer . Nestes casos, como nos elogios a Albert Speer ou Heinz Guderian, objetiva restaurar algumas das premissas sociais e políticas dos fascismos e construir um "lado bom" e distanciado dos "degenerados" da Gestapo ou da cúpula do Nacional-Socialismo.
Algumas vezes ( creio que vezes por demais frequentes ) surge – como o caso da família Le Pen, na França, de Jörg Haider, na Áustria ou Gianfranco Fini, na Itália ou multidões de torcedores fascistas do Borussia ou do Lazio – como recuperação de uma passado, sob qualquer aspecto, indesculpável. Nestes casos, impunha-se, nas palavras de Jürgen Habermas, "o passado como futuro", bastando recobrir a guerra - uma fratura da razão, uma derrapagem da História - com uma boa camada de pátina do esquecimento para seguir em frente. Outros, de forma astuciosa, compararão o Holocausto com a matança dos índios norte-americanos, ou o uso da bomba atômica e, mesmo, a Guerra do Vietnã – tudo isso banalizando o processo sistemático, planificado e "industrial" do Shoah. Não me refiro aqui apenas aos chamados "negacionistas" – neste caso estamos simplesmente perante o assassinato da história através da negação da memória, como já foi demonstrado por Vidal-Naquet. Me refiro a obras mais banais, de amplo acesso popular, como a superprodução "Stalingrado: a batalha final", de Joseph Vilsmaier, em 1992, que enfatiza os dilemas morais de soldados alemães, traduzindo um episódio único, se o foi, em uma desculpa pelo horror. Mesmo obras-primas, de autores insuspeitos, como Roberto Rosselini(1906-1977) sucumbirão ao mito da "resistência nacional". Assim, em "Roma, cidade aberta" – filmado no calor da hora ( em 1945), com enxertos de cinejornais do Instituto LUCE, afirmaria a unidade nacional, reunindo como personagens resistentes padres, liberais e comunistas na luta contra os alemães ( e calando-se sobre anos de domínio fascista). No filme de Rosselini a única personagem italiana que ama os "nazistas" é uma prostituta drogada. Assim, só uma Itália corrompida amaria os alemães... Mesmo o grande De Sica (1901-1974) em "Ciociara' ("Duas Mulheres") traçara, em 1960, um perfil de vítima do povo italiano, ingênuo em seu amor pelo "Duce" e massacrado pelas tropas estrangeiras, tanto alemães, quanto pelos "Aliados". A ausência, quase completa no caso da Itália ( e da Áustria) de um "desfascistização" do país – incluindo aí as relações da atriz principal do filme, Sofia Loren, com o fascismo – e a emergência de um poderoso, e terrorista, movimento fascista na ocasião – anos de 1960 - , não merecerão atenção ( bem ao contrário do caso da filmografia de Luchino Visconti).
Assim, a vitimização do conjunto da sociedade perante um "Estado-máquina" todo poderoso e degenerado, manipulado e conquistado, por uma minoria, não só apaziguava as consciências como, também, incluía-se nas teses explicativas da Guerra Fria e criava um paralelo, uma continuidade, possível para demonizar o outro culto ao "Estado potência" representado pela URSS. Temos, como historiadores, de analisar e questionar o peso da Guerra Fria sobre este debate e sobre suas narrativas. Para alguns historiadores a Guerra Fria ainda não acabou...

Moscou, 1984: o secretário-geral do PCUS Konstantin Chernenko (1911-1985) - a visão da própria decadência da URSS - morria lentamente e o nome de Mikhail Gorbachev começava a ser apontado como uma esperança. O "heroico" Exército Vermelho era humilhado no Afeganistão.

Uma (boa) "Querela de Historiadores"

"Und wenn er auch nur noch die Kraft für eine einzige winzig kleine Bewegung hatte, auf die Freiheit hin, wie sinnlos und nutzlos diese Bewegung auch sein mochte, er wollte diese Bewegung doch noch gemacht haben."
Anna Seghers, Das Siebte Kreuz
A

historiografia especializada em fascismos incorporou, em definitivo, os termos dos debates da "Querela dos Historiadores" – "die Historikerstreit" -, dos anos de 1983 até 1986. Qualquer discussão historiográfica contemporânea, incluindo aí a natureza e formas das ditaduras e suas relações com a sociedade civil, deve levar em conta o debate que, ainda, está em curso. No momento exato em que estava fazendo meus créditos de doutorado na Universidade Livre de Berlin, o que foi para mim uma experiência insuperável. Defrontavam-se os especialistas da chamada "escola intencionalista" (aqui nos referimos a autores como Andreas Hillgruber, Eberhard Jäckel, Klaus Hildebrand e Karl Dietrich Bracher) e a "escola funcionalista" (o próprio Hans Mommsen) , avançando, amis tarde, em direção da tese chamada "working toward the Führer", como apresentada por Ian Kershaw num livro recente. Neste sentido poderíamos resumir – com o próprio Kershaw, e ainda Martin Broszat, Timothy Mason e Hans Ulrich-Wehler – algumas das características que afastariam os modernos trabalhos sobre fascismos das teses baseadas seja o no papel do grande líder e seu carisma (sem negá-lo, contudo), seja na tese de "ditadura reflexa ou defensiva", com Ernst Nolte, ou mesmo na ideia de totalitarismo como chave explicativa. As teses da "revisão da revisão" buscariam outros caminhos que apontariam para:
a natureza e as características do Estado são mais importantes do que a personalidade do ditador;
A atuação da chamada "caótica coleção de burocracias rivais" na expressão de Kershaw e Broszat, seguindo a proposta de Franz Neumann, como característica central do Estado fascista;
O caráter de "instável coalizão de blocos de poder", estes mesmos subdivididos em facções competitivas e mutuamente hostis, como arranjo político típico dos regimes ditatoriais.
Ian Kershaw e Martin Broszat fazem, então, uma dura e critica análise do uso do conceito "totalitarismo" para a história do nazismo. Para ambos a insistência em comparar os regimes do Terceiro Reich e da URSS, e mesmo em avaliar o grau de "maldade" existente entre os regimes, decorre do ambiente "combatente" da Guerra Fria e, pior de tudo, daquilo que Kershaw chamou de "german apologists attempting to white-wash the German past in various ways". Para Kershaw/Broszat a teoria do totalitarismo possui vários pontos interessantes, incluindo aí a análise do funcionamento de algumas instituições do Estado, mas não é capaz, por sua generalidade, de produzir uma análise do próprio Estado, retendo-se em aspectos formais das políticas de poder, como a propaganda enquanto categoria que tudo explica e que resumo o próprio Estado, tendo como consequência uma relação "enganosa" e estupificante com a sociedade, que sucumbe à magia de homens como Josef Goebbels. Voltaremos a este tópico um pouco mais a frente. Da mesma forma, o caso da URSS precisaria de um instrumental teórico próprio e adequado – o que leva Kershaw aos estudos de Moshe Lewin - ao tipo específico de ditadura que se desenvolveu sob o Partido Comunista. Como procedimento metodológico impor-se-iam os estudos das diversas instituições e burocracias que viabilizam o Estado ditatorial, como os corpos dos altos funcionários, militares, diplomatas, polícias, da Justiça, professores, etc... Da mesma forma, as novas burocracias emergentes – dos partidos – e sua colonização conflituosa do Estado – quando se deparam com as burocracias especializados já encastoadas (como os militares, a polícia ou os diplomatas) explicam a crescente radicalização espontânea dos regimes. Assim, a "radicalização cumulativa" e a correspondente "corrida" para satisfazer o "Führer" – seja ele o homem providencial, o partido ou uma ideia coletiva - e/ou prestar voluntariamente sua colaboração ao regime dissolve a velha oposição Estado/Sociedade Civil como chave explicativa das ditaduras. Os grandes corpos autônomos da sociedade, tais como associações de empresários, mídias, Igrejas e clubes e associações esportivas e culturais lançam-se no mesmo processo visando garantir a assunção, pelo Estado, de seus programas básicos. Normalmente exprime-se então o caráter classista, não determinada embora assumido, das ditaduras. Na maioria das vezes, tais instituições da sociedade civil, adiantam-se aos processos de expurgos entregando, excluindo e denunciando o "outro conveniente" existente em seus quadros. Desta forma, acelerando a radicalização do Estado, acumulam capital político para a defesa de seus interesses e o acatamento pelo Estado de seus próprios programas. Mesmo no nível mais microssocial, no local de trabalho por exemplo, indivíduos percebem nas ditaduras uma instituição capaz de servir aos seus interesses mais imediatos, oferecendo-se para a delação e espionagem de colegas e vizinhos, obtendo pequenas vantagens, tais como promoções, adicionais financeiros ou melhores moradias.
Neste contexto o papel da propaganda – como o uso de festas cívicas, do rádio, do cinema e, mais tarde, da televisão - como mecanismos de convencimento/sedução de massas, deve ser revisto e, bem mais compreendido, como a forma do típico agir político das ditaduras, substituindo as formas clássicas do agir como descrito na teoria política clássica. No seu papel, para além da sedução ("Verzauberung"), as manifestações massivas e públicas das ditaduras, buscam compor uma identidade única, coletiva, e excluir o "outro conveniente", mantendo, através de uma religião laica, cívica ou racial de Estado e para o Estado, os laços de lealdade, pertença e de adesão do indivíduo com o Estado ditatorial. Muitas vezes, em sociedades industriais de massa, perpassadas por sentimentos frustrantes e depressivos de alienação – "Verfremdung", em Marx; "Unbehagung, em Freud ou mesmo a Náusea em Sartre – tais cerimônias rituais de massa, com uso massivo do corpo físico enquanto tela dos projetos de futuro – restauram de forma neurótica um eu já aniquilado enquanto autonomia pessoal em busca da felicidade. Foi nesta chave de interpretação, na qual devo muito às leituras de Theodor Adorno, que trabalhei num dos textos que mais gosto sobre os fascismos.
Assim, a proposta de poliarquia como formulada por Franz Neumann, envolvendo a burocracia estatal, as forças armadas, a burocracia do Estado e a burocracia do Partido Nazista enquanto "blocos de poder" seria uma chave explicativa muito mais rica do que as tradicionais noções de monolitismo ou poder pessoal (sem falar nas teses patologizantes) e de um partido inconteste do Führer.
Tal explicação deveria, da mesma forma, ser desdobrada, por exemplo, na rivalidade existente no interior do próprio Partido Nazista entre a burocracia de "Gauleiter" – os governadores locais – e o aparelho repressor, como as SS, a Gestapo e a RSHA e, de outro lado, o Gabinete governamental, ainda preso às noções e práticas da gestão racional do Estado, abrindo, em desdobramentos cada vez mais intensos, novas possibilidades de pesquisa.
É neste contexto que o debate sobre o caráter da liderança do Führer ganha relevância, escapando das teorias escatológicas ou sobre a personalidade do Führer como fator explicativo da história. Neste debate Hans Mommsen (nascido em 1930) e Ian Kershaw (nascido em 1943) diferem ao tratar do papel da personalidade do líder. Assim, para além de um "ditador fraco", tese formulada pela primeira vez por Mommsen, teríamos em verdade a possibilidade de pensar um ditador "indiferente" ("lazy dictator") ou mesmo um ditador "distante e remoto". Visando buscar uma postura média, entre um Hitler onipotente e um Hitler "indiferente", Kershaw propôs a teoria denominada de "working toward the Führer": o regime assume um rápido processo de radicalização ("cumulative radicalization") em vista das crises internas, de um lado, e das disputas entre os "blocos de poder", de outro. Neste sentido, a burocracia do Estado, do partido e as FFAA disputam, por exemplo, interpretar as proposições antissemitas, exterminacionistas, de intervencionismo econômico e as medidas mais brutais de Hitler de forma cada vez mais aguda. Teríamos, então, que dar maior atenção as "initiatives coming from below in the ranks of the German bureaucracy" perante um ditador distante, ativo apenas nas questões militares e de política externa e sempre enfadado com a administração cotidiana. Na expressão de Mommsen, em detrimento de um programa por demais esquemático e pré-estabelecido desde o "putsch" da Cervejaria de Munique, em 1923, deveríamos, para entender a racionalidade do nazismo, voltarmo-nos para a autonomia e capacidade de auto-interpretação que os funcionários nazistas, imbuídos das diretivas do Führer, realizavam diariamente em busca de satisfazer o líder e, assim, melhor colocar-se na intensa disputa interna.
É nesta direção, de consenso provisório, que se busca a finalização do debate entre funcionalistas e intencionalistas: uma burocracia disponível e atenta em cumprir os desejos do Führer, mesmo quando não formulados sob a forma de ordens diretas . Esta seria uma contribuição importante para o estudo comparativo das demais ditaduras, como o caso das ditaduras clássicas e das ditaduras militares. No caso brasileiro, o debate sobre a autonomia da "comunidade de informações", as disputas no interior da burocracia de Estado – a percepção, por funcionários, de que as ditaduras representavam a "hora do acerto de contas" para velhas disputas de poder local ou institucional (que antecediam a própria ditadura) ou mesmo um atalho para a promoção, eliminando rivais mais habilitados –, o recurso à delação como forma de resolver litígios não políticos ou ideológicos, e mesmo uma forma de premiação, seria um dado importante para estudar o papel da sociedade civil, em especial da colaboração/adesão, nos regimes ditatoriais. O problema aqui seria superar tradições arraigadas neste tipo de estudo: de um lado, a insistência de heroicizar o conjunto da sociedade como vítima do Estado e nivelar todos como "heróis da resistência". Logo após a derrubada ou colapso das ditaduras dá-se uma imensa corrida para perfilar o maior número de pessoas como "resistentes". É comum, mesmo, que o próprio poder emergente se recuse a distinguir entre resistentes e colaboradores, na tentativa de evitar "novas divisões", como no caso da curta desnazificação alemã ou o limitado recurso a julgamentos de colaboradores na França ou, ainda, a total ausência de desfascistização na Itália ou Áustria, ou o "esquecimento apaziguador" buscado pelas elites políticas sul-americanas – emergindo daí a visão do conjunto da "nação, vítima e combatente" .
Outra discussão não realizada entre nós refere-se ao eterno retorno da explicação da vigência, aceitação e adesão aos fascismos – e por antonomásia a todas as ditaduras – através da propaganda. Para um grande número de pesquisadores a noção de propaganda acaba por explicar tudo, sem uma preocupação em questionar o próprio sentido e alcance do termo. Estaríamos mesmo hoje envenenados pelos truques, arranjos e montagens de Joseph Goebbels aceitando suas próprias explicações – um tremendo autoelogio! – para o seu papel dominante na construção do Reich e na aceitação popular do regime. Continuaríamos presos aos modelos explicativos propostos por Jean-Marie Domenech, largamente adotados (embora muito pouco citado) sobre o papel da propaganda política nos regimes de massas. Na verdade, desde os anos de 1950, Ernst Nolte – que fora meu professor em Berlin - já advertia para a singularidade da prática política sob o fascismo. Para Nolte a "política fascista" não se faz da mesma forma que o agir político liberal – formal, regulado, arbitrado – ou marxista – que ser quer revolucionário e de novo tipo. Na verdade, o agir político fascista seria uma "metapolítica" capaz de arrancar o homem comum da sua rotina enfadonha e estupidificante para uma aventura em direção à transcendência. Claro, uma transcendência totalmente teórica, longe da possibilidade de uma transcendência material e, portanto, revolucionária. Assim, o agir político fascista não seria propaganda e, sim metapolítica.
Mais recentemente George Mosse (1918-1999), um historiador caracterizado pelo inconformismo e pelas proposições novas e desconcertantes para a ortodoxia universitária, propôs rever todo o conceito de propaganda no fascismo, trazendo o debate para a prática política das massas. Neste sentido, cabe uma discussão de fundo que deve ser apreciada. Podemos verdadeiramente entender os fascismos a partir de abordagem caudatária da teoria política liberal? Esta é uma questão central. Um grande número de pesquisadores conclui muito rapidamente que os fascismos – inclusive, é claro, o nazismo! – não formam um pensamento coerente. Tratar-se-ia, bem mais, de um mal arrumado "patchwork". Sua capacidade de convencimento estaria no constante martelar da propaganda, que se constituiria, desta forma, em chave para análise dos fascismos. Reside aqui um grave problema de análise para a história dos fascismos: correríamos o risco, grave para cientistas sociais, de atribuir ao martelar da propaganda à capacidade de convencimento e mesmo a conquista do poder pelos fascistas. Ora, alguns trabalhos de grande fôlego, que mergulham profundamente no "agir" fascista – como Nolte e Paxton – acabam por perceber a clara diferença do "fazer política" liberal e do "fazer política" fascista aproximando a prática política fascista do conceito, caro para Paxton, de "paixões". O segredo da vitória fascista residiria bem mais no apoio que recebeu das forças tradicionais das sociedades europeias, muito especialmente dos partidos e movimentos conservadores e, mesmo, de liberais. Para explicar tal paradoxo Paxton busca um criativo conceito de "paixões mobilizadores" como o clima político, social e mental que permite a ascensão dos fascismos. Para Paxton tais "paixões mobilizadoras" implicam no sentimento geral de frustração e perda, no nacionalismo exacerbado e no sentimento de fazer parte de um grupo social vítima de uma injustiça coletiva – somente aí, e em tais condições, a propaganda teria um papel a desempenhar.
Estes são pontos, a nosso ver, extremamente pertinentes para a discussão dos fascismos, mas também dos sentimentos de perda que embalam vastas camadas sociais na Nova Ordem Mundial e, portanto, do advento da "Ressurgência" dos fascismos.
Tais questões abrem caminho para outros debates. Ao buscarmos as noções de participação, representação, partido, etc..., do pensamento liberal como ferramentas de análise dos fascismos estaríamos produzindo a próprio diagnóstico de "confusão". "anarquia" ou "improvisação" que são, tão frequentemente, atribuídos aos fascismos. O que Mosse chama a atenção é que estes – a mobilização massiva permanente - são, exatamente, os métodos do agir político fascista, com suas características próprias e não reduzíveis ao mundo teórico liberal.
Todo este debate, vivido em primeira mão em Berlin, me impeliu a discutir e debater o(s) fascismo(s), indo além da visão estruturalista de cunho marxista predominante no Brasil – no melhor dos casos! Assim, no Laboratório de Estudos do Tempo Presente me dediquei, com meus alunos, ao tema. Usamos uma abordagem comparativa – afinal, o grande e inovador centro de debates historiográficos em Berlin se denomina "Institut für Vergleichendegesgchicte" (Instituto de História Comparada), criado por Jürgen Coca nos anos de 1990 – dos fenômenos autoritários, fascistas ou não. Da mesma forma, a abordagem comparada da história dos fascismos, como apresentada nas obras de Ernst Nolte e de George Mosse – ao lado, é claro, de Paxton -, me convenceram que a análise do fenômeno fascista necessita, ao menos como ponto de partida, de um esforço comparado ou cruzado das várias de suas "formas históricas", ao menos em termos de um constructo de tipo weberiano. Daí emergiu uma série de trabalhos que, acredito eu, formulam, mesmo em termos de literatura alemã, um debate original. Ao menos tenho sido convidado, seguidamente, na Alemanha, para este debate.
O diabo era, e sempre o será, a dinâmica da própria história. O fim da Guerra Fria e a insistência de um reduzido grupo de historiadores, ao lado da ressurgência dos fascismos – e tenho sérias dúvidas se, na verdade, são neofascismos? – impediu que a versão edificante da história se mantivesse de pé. O solo em que nasceu Hitler e Mussolini, ainda produz frutos. A dúvida, ilustrada pela constante irrupção dos movimentos de "Ressurgência" (neo)fascistas na Europa pós-1945, reside, ainda hoje, se de fato o esquecimento é a cura.
Creio que fiz um esforço para participar de todo este debate, Tentei ser original, acompanhar em primeira mão o debate historiográfico internacional, com seus nunaces teóricos e políticos, e valer-me, sempre, de fontes arquivísticas originais para contribuir neste campo. Assim, o capítulo "Os fascismos", na coleção organizada por Daniel Aarão Reis Filho e Jorge Ferreira foi um passo nesta direção, centrando na documentação a ser disponível ao público brasileiro. Da mesma forma, na coletânea de Mauricio Parada – um ex-orientando – contribui com o capítulo "Cultura Operária e Resistência Antifascista no ocaso da República de Weimar ( 1919-1933)", buscando desmistificara tese da ascensão "pacífica e legal" dos nazistas ao poder. No livro de Heloisa Reichel e Ieda Gutfreind escrevi um capítulo intitulado "Fascismo e Neofascismo: a questão da Ressurgência nos anos 80/90", onde discuti as relações entre o que denominei de "fascismo histórico" e a "Ressurgência". Além disso, em "O Século Sombrio", organizado por mim, mais uma vez me dediquei ao tema dos fascismos e da extrema-direita racista e excludente, buscando aplicar os conceitos básicos de Theodor Adorno e Franz Neumann ao processo de fascistização e a adesão de grandes massas ao fascismo. Da mesma forma trabalhei o tema no já citado "Dicionário Crítico do Pensamento de Direita", não só em sua "Introdução", como ainda nos diversos verbetes específicos, buscando distinguir conservadorismo e as formas fascistas.
No caso do Brasil, à primeira vista, a resistência era menos emocional e política, mas tão somente uma resistência que se prendia ao conservadorismo inato das instituições universitárias brasileiras, na sua visão "departamentalista" e departamentalizada das ciências do homem e na sua eterna busca de nichos próprios. No entanto, com o avanço dos trabalhos no Laboratório de Estudos do Tempo Presente (após um novo parecer feito por uma comissão de professores-titulares de História, Ciência Política e Sociologia) emergiu resistências de caráter teórico e, mesmo, político aos conceitos e avanços decorrentes da "Querela dos Historiadores".
Nos dias de hoje, em especial no Rio de Janeiro, após a criação da Comissão "Memórias Reveladas", do qual sou membro pela segunda vez [Documento Série 1], e em especial com o advento da chamada "Comissão da Verdade", se coloca de forma aguda a relação entre a sociedade civil e os regimes autoritários, as ditaduras. A posição assumida por mim, em trabalhos e artigos recentes – incluindo aí artigos e resenhas em O GLOBO e na Revista Carta Maior, compartilhando da postura de um grupo significativo de pesquisadores como Daniel Aarão Reis Filho, Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat (todos da UFF), questiona, exatamente, a posição defendida de forma ampla e muitas vezes acrítica, de uma sociedade civil vítima e resistente das ditaduras. Na linha dos trabalhos, por exemplo, de importantes historiadores do Tempo Presente, como François Bédarida, Wolfgang Benz e Ian Kershaw, defendemos a posição de que parcelas importantes da sociedade civil, no momento de advento das ditaduras contemporâneas, tais como a mídia, empresários e suas associações, as Igrejas, lideranças sindicais isoladas em virtude do processo de politização dos sindicatos, lideranças acadêmicas, jurídicas apoiaram em grau variado e justificaram a instalação de ditaduras. Da mesma forma, no decorrer das ditaduras, grupos e indivíduos, mesmo sem clareza ideológica, por simples cálculo de sobrevivência ou estratégia de ganhos e de prestígio, aderiram e colaboraram intensamente com as ditaduras. Para além dos casos comprovados na Alemanha e na França, malgrado os mitos edificantes de uma "nação de resistentes" ou do véu apaziguador do "todos fomos vítimas", havia uma intensa colaboração e apoio aos regimes ditatoriais.
Assim, a delação e a colaboração – na universidade, nos locais de trabalho, incluindo aí hospitais e fábricas, e mesmo nas relações de vizinhança – eram uma realidade constante nas ditaduras. No caso brasileiro pude constatar o procedimento espontâneo de delação e colaboração através de um trabalho de análise dos processos do Tribunal de Segurança Nacional (1935-1954), durante o Estado Novo [Documento 10 e 11]. Trata-se, neste caso, da publicação da primeira parte do meu atual projeto de pesquisa no CNPq, intitulado "Tribunais da Violência: estudo comparado da Volksgerichtshof, do Tribunale de Sicurezza dello Stato e o Tribunal de Segurança Nacional (1933-1945)", com edições no Brasil e em Portugal.
Da mesma forma, o "outro lado" não era, de forma alguma, a síntese última do mal. Entre os militares brasileiros, entre 1961 e 1969, esboçou-se, e se materializou, forte resistência ao arbítrio e a violação dos direitos humanos, como é notório em militares como o Marechal Henrique Teixeira Lott (1894-1884), o Almirante Cândido Aragão (1907-1998) ou mesmo no revolucionário Almirante Júlio Birkenbach, ex-diretor da Escola de Guerra naval e o primeiro militar graduado a denunciar, no plenário do STM, a existência de torturas contra presos políticos. Além do notável caso do Capitão Lamarca. Logo, categorias fechadas, tais como "os militares", devem ser revistas, bem como as polarizações simples do tipo sociedade civil versus ditadura. E, claro, incriminações coletivas, sem uma análise detalhadas dos fotos e, bem como, o esquecimento de civis que contribuíram de forma aberta ou velada – como alguns dos professores da FnFi/IFCS nos anos entre 1960 e 1970.
Infelizmente, desde o início, este debate na UFRJ, no Instituto de História, tornou-se pessoal, ofensivo e envenenador, atribuindo a colegas o intuito de uma "anistia historiográfica" a violadores de direitos humanos (e esquecendo-se dos civis que violaram os direitos civis, democráticos e humanos no interior mesmo da UFRJ). Da mesma forma que, nos anos de 1960, se derramava sobre todos a bílis nefasta da desconfiança. Trata-se, mais uma vez do simples recurso ao "outro conveniente", na expressão de Peter Gay. Mas, a historia, como os indivíduos que a constroem, é bem mais complexa, tortuosa e torturada que as visões maniqueístas do passado. Quando assumi a responsabilidade, em dezembro de 2011, e depois na Carta Maior e no meu Facebook do debate sobre a natureza da ditadura no Brasil, em especial entre 1964 e 1985, o que me saltava da cabeça era o rico debate alemão, a "Querela dos Historiadores". Jamais podia imaginar que colegas e alunos, de centros de pós-graduação, assumissem uma postura raivosa, com injúrias e ameaças físicas. A universidade mostrava-se, ao menos na UFRJ, fechada ao debate, desinteressada em formar jovens críticos e atuantes e incapaz de cumprir sua missão básica de crítica e de inovação perante a História. O sonho do "Doutor Anísio" não mora mais lá! A noção de um espaço público e da atuação do historiador são, ao menos nesta "Casa de Almas Sujas", desconhecidas. Lá ainda paira o espírito de Helio Vianna e catera.
Em termos historiográficos creio que me esforcei para ter uma contribuição para este debate. Mesmo que não seja totalmente original, meu esforço – em adequação ao fato de ser professor de História Moderna e Contemporânea – foi trazer os fenômenos históricos brasileiros, no caso as ditaduras do século XX – para o bajo dos debates sobre as ditaduras europeias do mesmo período. As relações entre ambos os fenômenos – para além do reducionismo e do uso político de expressões (e neste caso não havia uso crítico de conceitos) como "fascista" ou "nazista" – deveria ter em conta esta ampla e rica literatura americana e europeia que, no mais das vezes, era ignorada pelos colegas que trabalhavam sobre as ditaduras brasileiras. A partir da difusão de trabalhos rigorosos, como o pioneiro estudo de Hélgio Trindade sobre o Integralismo brasileiro, abriram-se novas trilhas – na USP e UFF, principalmente – caminhando nesta direção. Da mesma forma, extrapolei a experiência e os conhecimentos sobre as ditaduras europeias para tratar das ditaduras brasileiras, como no meu trabalho atual de pesquisa sobre os tribunais de exceção. Nesta linha, pude ainda, trabalhar sobre as ditaduras sul-americanas no capítulo "Transição política, democracia e crise..." [ Documento 12], em livro organizado pelo Professor Francisco Martinho, também um ex-aluno, onde comecei um esboço de comparações sobre as instituições sul-americanas no pós-ditadura. Através de um convite de Lucília Neves e de Jorge Ferreira tive a sorte de poder contribuir para um trabalho coletivo com o capítulo numa grande coleção de balanço sobre a História do Brasil, com o capítulo "Crise da ditadura militar e o processo de abertura política no Brasil, 1974-1985" [ Documento 13]. Em ambos os casos destaquei o papel da participação popular tanto na consolidação das ditaduras quanto na sua liquidação.
Atualmente, no âmbito do Projeto Finep "Caminhos da Integração Sul-Americana" escrevo um amplo artigo – ou algo maior, na casa de 100 laudas – sobre nacionalismo, inclusão e democracia na América do Sul. Trata-se de uma oportunidade, que desde muito buscava, de fazer uma análise crítica do conceito, dos usos e dos abusos, de populismo na América do Sul.

3: O Tempo Presente: as ações de um laboratório de pesquisas.
"Tenho pra minha vida
A busca como medida
O encontro como chegada
E como ponto de partida"
Sérgio Ricardo

I
nstitucionalmente o Laboratório de Estudos do Tempo Presente/TEMPO é um centro de estudos de abrangência transdisciplinar, reunindo pesquisadores de diversos horizontes e trajetórias tanto da UFRJ, quanto de outras universidades. Está situado em prédio histórico no Largo de São Francisco de Paula, nº 1 sala 315, no Centro do Rio de Janeiro, capital. O prédio, embora tenha passado por inúmeras reformas descaracterizantes, foi construído a partir de 1749 para ser a catedral da Colônia, passou em seguida a sediar a Escola de Pontes e Calçadas do Império Português no Brasil, ou seja, sua primeira escola de engenharia militar, e, já no Império, a Escola Politécnica, em moldes napoleônicos. Mais tarde tornar-se a Escola Nacional de Engenharia que seria, em fim, incorporada a Universidade do Brasil, antecessora da UFRJ. Com a criação do Campus da Ilha do Fundão, depois de 1967, a Engenharia ocuparia os novos prédios lá construídos e o IFCS, recém criado (em decorrência da Reforma Universitária de 1968) , viria a ocupar o velho prédio. Era, então, um prédio abandonado, deteriorado, com umas apenas poucas salas em uso, com sérios problemas de hidráulicos e nenhuma capacidade de suportar novos meios de ensino. Sua própria localização – entre o Largo de São Francisco e a Praça Tiradentes – era característica. O anterior coração da boemia carioca, de grandes teatros de revista e casas de moda chique, havia se transformado em uma área deteriorada, povoada de bordéis e com seus amplos cinemas ocupados por sessões contínuas de filmes de "kung-fu" ou strip-tease de travestis. Ninguém imaginaria, passados quase quarenta anos, que o local voltaria a brilhar como, de direito, o coração da noite carioca. Bem, estamos, de novo, em pleno exercício de "avanços" e "recuos" no tempo. A boemia carioca terá sua chance...
Voltemos ao Tempo, desta feita o laboratório.
Desde a sua criação em 1994, o Tempo, dedicou-se em especial aos estudos dos processos de democratização do Brasil e da América do Sul, aos estudos sobre a participação política e as diversas formas de autoritarismo, ditaduras e resistências. Tratava-se, neste caso, de conciliar desejos e uma busca intensa de restaurar tradições. Ao assistir, de tão perto e tão intensamente, a "Querela dos Historiadores", imaginei que poderíamos avançar num debate contínuo nesta direção e, ao mesmo tempo, reviver os dias da FnFi, quando a História Contemporânea era a ponta da inovação acadêmica.
Este foi, desde o início, o fulcro das monografias, dissertações e teses apresentadas pelos alunos que passaram pelo laboratório, em especial buscando temas não diretamente centrados no aparelho de Estado, tais como cinema, rádio, televisão, imprensa, esporte, artes plásticas, a clínica psiquiátrica e suas ações duramente os regimes ditatoriais. O papel das burocracias de Estado e das associações da sociedade civil seria, ainda na linha do debate alemão, um alvo privilegiado. Creio que esta "safra" de dissertações e teses foi verdadeiramente importante. Em sua maioria, ainda seguindo os moldes de um "Seminarprojekt" - ou seja, cursos seguidos de temáticas interligadas e com participação intensa das pesquisas discentes – conseguimos uma coerência temática e teórica intensa. Os trabalhos de Alice Werner (professora na Economia da UFF), Mario Kleber Lanna Junior (professor na UFMG), Flavio Limoncic (professor na UNIRIO), Sabrina Medeiros (professora na EGN), Mauricio Parada (professor na PUC-Rio), Leonardo Bahiense (ensino privado), Cristina Buarque de Hollanda (professora da UFRJ) e Francisco Carlos Palomanes Martinho (professor da USP), Francisco José Alves (da UFES), Fábio Murici (da UFS) ou Angelo Carrara (da UFOP) entre outros, marcaram um avanço no debate das ditaduras e das suas formas de organização e de enraizamento social. Este grupo de jovens pesquisadores foram, sem dúvida, a melhor equipe de trabalho que eu poderia ter tido a sorte de reunir.
Organizamos, ainda, seminários e simpósios internacionais, com a presença de especialistas nos temas de ditaduras, como Wolfgang Benz (TU Berlin), Jörg Rüsen (Universität Bochum), Alexandro Portelli (Universitá de Roma), Peter Lagrou (IHTP, Paris), Jean Camus (Observatoire du Racisme, Paris), Gary Gerstle (University of Maryland), Barbara Wainstein (University of New York), Norberto Consini e Laura Bono (Universidad Nacional de La Plata), Magdalena Cajias (Universidad Mayor de San Andrés) e Pablo Corvalán (Universidad Nacional de Chile), Stefan Rinke (FU Berlin) entre muitos outros. Tal dinamismo "puxado" pelo Tempo foi fundamental para a "internacionalização" de nossos próprios mestrandos e doutorandos, posto que foi montada uma vasta rede de intercâmbio acadêmico – com suporte da Capes, DAAD, CNPq e Faperj – que possibilitou viagens e visitas aos centros europeus e americanos de pesquisa.
Hoje o Laboratório de Estudos do Tempo Presente trabalha em duas direções: de um lado, como um centro de referência sobre as transformações atuais na América do Sul – com um amplo "projeto-guarda-chuva" denominado "Caminhos da Integração Sul-Americana" ( apoio Finep ), sua democratização e resistências, dos seus movimentos sociais e de suas instituições. A grande ênfase dos seus estudo, neste eixo, alcança ainda as diversas ditaduras sul-americanas e os processos de democratização, desde os anos de 1930, bem como o papel da sociedade civil e suas instituições em face de tais acontecimentos.
Claramente esta escolha, tão marcada pelo debate alemão sobre o tempo presente, decorre, junto com a vivência e admiração pelo "Institut d´Histoire du Temps Présent" e pelo "Zentrum für Antisemitismusforschung/ZfA", de Berlin, de uma profunda inconformidade com o meu próprio curso de graduação em História no início dos anos de 1970. Após a expulsão dos professores de História Moderna e Contemporânea, e sua substituição por figuras policiais (que tiveram seus lugares por prêmio pela delação), o curso de História da UFRJ centrava-se quase exclusivamente nas disciplinas de História Antiga e Medieval, ministradas por figuras duvidosas ou notórias, como o Prof. Eremildo Luiz Vianna. Embora algumas jovens professoras, como Neyde Theml, Norma Musco e Nara Saletto fizessem um grande esforço de atualizassem e de distanciamento das práticas odiosas de delação e aterrorização praticadas no departamento contra alunos e professores, o clima era decididamente policial, o ar se transformava em areia e a sujeira e ruína do prédio colava-se à alma.
Não só os notórios professores Eremildo Vianna, Paulo Werneck da Cruz e Lucy Freire – esta já havia realizado seu trabalho de delação no ensino médio – aterrorizavam colegas e alunos, alguns marcados por expulsões sumárias e subsequentes prisões – como ainda funcionários do próprio IFCS eram corrompidos pelos serviços especiais do regime para espionar reuniões, aulas e conversas dos alunos.
Era esta época – uma época de almas sujas - que eu buscava superar e apagar ao retornar ao IFCS em 1993.
Naquele tempo, estudar História Contemporânea era um risco, ainda mais se esta história era do "tempo presente". Assim, invariavelmente os cursos de História do Brasil e de História Contemporânea encerravam-se nos anos de 1930, considerando-se que, depois desta data, o tempo não mais pertenceria ao campo da história. Tratar-se-ia, então, de ciência política ou sociologia. A Históira, numa versão depravada de Marc Bloch, era a ciência do homem no tempo "passado". O presente, povoado de "paixões perigosas", deveria envelhecer para ser História. Mal sabiam, ou fingiam não saber, do grande livro de Marc Bloch escrito entre julho e setembro de 1940, no calor da hora e sob troar dos canhões da Segunda Guerra Mundial,"Estranha Derrota". "Esqueciam" a disposição militante e o preço final pago por Bloch por ser um historiador do tempo presente ( para além de sua imensa contribuição, claro, aos estudos medievais ) e no tempo presente. Assim, o a História do Tempo Presente, e seu laboratório, são um produto direto e reativo do silêncio de tempos difíceis.
Um segundo eixo de trabalhos, muito importante desde a criação do Laboratório e produto direto desta teimosia com o que já foi chamado de história recente ou imediata, volta-se para os estudos das ditaduras clássicas, com trabalhos sobre instituições e personalidades de ditaduras como o Terceiro Reich, a Itália fascista, a Espanha de Franco, o peronismo, o salazarismo e outras formas de regimes autoritários.


Foto de Maria Yedda Linhares na reunião de fundação da ANPUH, em Marília, SP, 1961.

O TEMPO possui uma revista eletrônica – www.tempopresente.org -, indexada pela Capes/ME - normalmente é uma revista trimestral, temática, com cada número sob responsabilidade de um historiador especializado, podendo ou não ser da UFRJ. O objetivo deste sítio eletrônico, sob a forma de uma revista, é a divulgação do trabalho científico desenvolvido pelos professores, alunos e pesquisadores associados, de forma a tornar estreitos os laços entre a sociedade e o conhecimento acadêmico.
Os trabalhos realizados no Laboratório de Estudos do Tempo Presente conseguiram mobilizar um grande número de estudantes de graduação e pós-graduação em torno destas temáticas, com uma vasta produção de monografias, dissertações e teses, conforme as listas anexas e, creio eu, mantiveram uma relativa coerência com as temáticas expostas acima como fulcro do Laboratório do Tempo Presente.
O debate sobre o chamado "tempo presente" no Brasil suas várias possibilidades de periodização -, é algo ainda não estabelecido com segurança entre nós. Podemos, contudo, defini-lo, de forma abstrata (e levando em conta as experiências históricas alheias) como o momento de um corte dramático na História em direção a um novo momento, um outro arranjo, marcado pela superação brusca de tradições arraigadas. França, Alemanha e Itália em 1945 e os Estados Unidos na década de 1960 (a superação do apartheid interno, a revolta dos jovens e a fratura social em face do Vietnã) são exemplos estabelecidos em outras tradições historiográficas.
No caso do Brasil as datas já propostas, mesmo como meros balizamentos, sem querer, ao velho estilo, "datar o fato histórico", são discutíveis. 1930 é por demais recuado, estranho à maioria dos brasileiros como um corte gerador das condições atuais, por mais que seja tentador. 1945/46 pouco se sustenta como este "corte dramático", embora seja, sem dúvida, esta a cesura básica na História da Alemanha e da França. 1954: a morte de Vargas. Sem dúvida um momento dramático, de grande impacto. Mas, ao adiar em dez anos a crise das instituições e sem as rupturas estruturais na vida brasileira, acaba sendo um esforço de continuidade. Já discutimos também 1964 fartamente, mas alguns autores – entre eles Daniel Aarão Reis Filho – não estão convencidos e apontam em 1964 (ao desencadear o golpe, as formas que o moviam estavam próximas dos demais velhos "pronunciamientos" militares que eclodiram desde 1922). Ainda aí seria como continuidade ( talvez só rompida em 1965, com o AI-2, ou mesmo em 1968, com o AI-5, que institucionalizam uma tradição e um regime entre nós).
A questão da ruptura versus continuidade é, entretanto, poliédrica e implica num debate teórico prévio sobre como periodizar ou a partir do que periodizar : falamos das instituições e, por exemplo, da crise do chamado ( abusivamente) "populismo"? Neste caso a periodização tradicional sairia revigorada e 1945, 1964 ou 1968 teriam sua importância. Foi esta a proposição de Tancredo Neves quando em famoso discurso, pouco antes de morrer, declarou "a Nova República" em 1985. Numa chave mais estrutural e econômica seria o modelo de industrialização por substituição de importações, as transformações demográficas e a relação campo/cidade? A imposição e a crise do nacional-desenvolvimentismo? Ora, este só se exaure depois de 1973... E então, é tarde demais, o Brasil já é um país moderno.
Em verdade optamos por um feixe de elementos mais amplo, estruturais e comportamentais, focado numa data simples, de pouco brilho aparente, mas de grandes consequências: o espaço entre 1958 e 1959. Foram meses, dias, de "aceleração da História", o exato contrário do tempo parado e presentificado duração das longas estruturas estruturantes. Neste momento único da História do Brasil teríamos o término (formal) da construção de Brasília, com o início da interiorização do país, abrindo os vastos sertões do Centro-Oeste e do sul da Amazônia. É o tempo de homens como Bernardo Saião (1901-1959) e dos Irmãos Vilas Boas que povoam a imaginação de milhares de jovens brasileiros. A população urbana, pela primeira vez, superava a população rural e a indústria – a Scania montava o primeiro caminhão "brasileiro" e VW inicia sua produção de carros populares - surgia como uma nova riqueza, superando a afirmação secular de um Brasil "essencialmente agrícola". O descontrole monetário explode numa inflação que se manteria por quase trinta anos… O primeiro reator nuclear brasileiro entra em funcionamento na USP. Os militares, neste caso a FAB, se revoltavam em Aragarças, prenunciando 1964. Foi um período notável, em volto em crises e expectativas de modernidade intensas para o país e não são, somente, as tais mudanças "estruturais". Os comportamentos, gostos e formas de "fazer e pensar o Brasil" mudavam rapidamente. Adalgisa Colombo, que voava nos aviões da PanAir, passeava sua estonteante beleza pelo país causando uma imensa polêmica, enquanto João Gilberto, vencendo uma larga tradição musical, inaugurava com seu violão a Bossa Nova – "Chega de Saudades!". O CPC da UNE despontava com a vanguarda cultural do país, trazendo temas e formas novas de linguagens – Maiakovsky, Brecht, "o método Stalinavski" faziam sucesso. Marcel Camus, a partir de uma poema-ópera – "Orfeu da Conceição" - de Vinicius de Moraes, musicado por Tom Jobim e Luiz Bonfá, vence o Festival de Cannes e chama a atenção de todos para a mítica "realidade brasileira" – o morro carioca arrebata o "Oscar"! Gianfrancesco Guarnieri espanta e encanta os palcos com "Eles não usam Black-tie", quando a classe operária, pela vez primeira, vai ao teatro. Surgia o Campeonato Brasileiro de Futebol, a Taça Brasil, unificando a maior paixão do país pela primeira vez (numa final eletrizante do Bahia contra o Santos). Neyde Aparecida anuncia o milagroso "Linholene!". 1958: e o Brasil é campeão mundial! É Garrincha, é Didi, é Pelé! Anísio Teixeira publica "Educação não é Privilégio" e, em seguida, Raymundo Faoro entrega ao público a denúncia do eterno mandonismo brasileiro, "Os Donos do Poder"! O país interiro acompanha a Revolução Cubana vitoriosa em 1959. A política brasileira (e seus partidos e seus programas) jamais será a mesma depois da chegada de Fidel ao poder. Como diria o "Doutor" José Linhares é o ápice de intromissão das "Forças Alarmadas" do país na política, que viria para ficar ao menos vinte anos. Para uns era a fixação no "el paredón", ao esbulho dos direitos e no ódio ao ateísmo sem pátria, para outros a superação do atraso, das oligarquias e da dependência. Nós estávamos, definitivamente, na Guerra Fria. De qualquer forma, as décadas seguintes no Brasil serão marcadas pelas imagens de Cuba revolucionária.
Estas são, ao meu ver, algumas das características centrais da modernidade brasileira. São traços e tendências que construirão o nosso tempo presente. De qualquer forma, permanece um debate aberto. Para citar o "Doutor Anísio": não morro de amores pelas minhas próprias ideias!" Mas, devemos marcar a fixação da mídia brasileira com mini-séries, novelas, documentários e, mesmo do "novo" cinema novo brasileiro, em temas desta época – "anos dourados", "anos de chumbos", "revivals" da Bossa Nova e de personalidades como JK e Jango sublinham a relevância daquele momento para a História Contemporânea do Brasil.
Gostaria aqui de fazer uma inclusão – quase em um hipertexto no lugar dos "flashbacks" e dos "forwards" já utilizados – para tratar das relações entre mídia e a história do tempo presente. Desde 1994, quando foi criada a GloboNews – uma tv a cabo da Rede Globo – fui chamado com grande frequência para a participação em noticiários, programas de debates, documentários e para produção e assessoria de edições. Cheguei mesmo a organizar cursos curtos para toda a equipe de jornalismo da televisão, quase sempre sobre aspectos da política internacional, visando ambientar os jornalistas e produtores para o acompanhamento de alguns temas específicos, como o sistema eleitoral norte-americano ou a questão do terrorismo contemporâneo. Estas participações – para além de eventuais contribuições com resenhas e artigos para O GLOBO, A Folha de São Paulo ou outros veículos, possuem um tipo de impacto próprio, direto e com ampla repercussão típicos da televisão. A maioria dos programas é ao vivo, sem margem de erros ou de "corta e faz de novo". Aos poucos outros convites surgiram, em especial na TV Brasil, com o Programa Espaço Aberto ( depois "Olhar 2000" ), sempre no fim de noite, com debates amplos, dirigidos com maestria por Lucia Leme.
Tais experiências foram sempre muito ricas e, creio, decorrentes de um sentimento novo na sociedade brasileira, uma certa "fome de história" ( também expressa nas mini-séries, casos especiais, filmes e novelas já citados) que retratam este tempo presente brasileiro. Quase sempre são participações divertidas e altamente estimulantes, com dois tipos de intervenções: uma de 3.30´ e outra, quando o tema era mais nobre ou empolgante, de 7.00´. Em alguns momentos, como no 11 de setembro de 2001, ou na Invasão do Complexo do Alemão em 2011, fiquei mais de quatro horas no ar, incluindo aí assumir entrevistas e narração, ao vivo, dos acontecimentos. Acabei me especiualizando em transmitir o discurso presidencial do "State of the Nation", desde Bill Clinton até Barack Obama. Com som direto, normalmente com mais telas do que público, e sem acesso prévio ao texto, assumíamos uma imensa responsabilidade pela narração e comentários, algumas vezes de mais de 45`. Talvez o mais emocionante tenha sido a transmissão, ao vivo, sem tradução, do Julgamento de Pinochet pela Corte de Justiça da Inglaterra, tentando contar os votos – ditos num inglês jurídico arcaico e com citações em latim – dos diversos Lordes.
Por duas vezes a GloboNews me convidou para o corpo permanente da estação, uma delas com um programa exclusivo. Em ambas as vezes recusei o honroso convite em virtude dos compromissos de exclusividade do regime de trabalho da UFRJ. Devo registrar, ainda, dois pontos fundamentais, para mim, deste relacionamento com a GloboNews. Em primeiro lugar, nunca fui "pautado", "aconselhado" ou "restringido" de qualquer forma possível pela emissora. Com programas ao vivo, no calor da hora, tive sempre plena liberdade de expressão. Em segundo lugar, deixo claro que tais atividades na GloboNews, bem como no Canal Brasil, jamais foram remuneradas. Nunca houve qualquer forma de pagamento, em nenhuma das modalidades de participação, incluído a cessão de imagem para a emissora. Entendia, e entendo, que se trata de um papel de esclareciumento, de educação de massa, evitando lugares comuns e abrindo uma via direta entre a universidade e a população que a paga. Assim, nunca fiz questão de ser remunerado.
Vários alunos meus, indicados para comentar temas que eram mais específicos e que me escapam como foco de estudos, foram por mim indicados – como Sabrina Medeiros, Daniel Chaves, Rafael Araújo – e continuam como comentaristas da GloboNews.
A minha atuação na mídia, entretanto, não se restringiu a televisão. Desde 2005, por indicação do amigo Emir Sader, passei a fazer parte do corpo de colunistas da Revista Carta Maior. A revista é um produto da militância e das utopias generosas de Joaquim Palhares, seu fundador e animador. A Carta Maior – www.cartamaior.com.br – surgiu, no primeiro Forum Social Mundial, emn Porto Alegre, em decorrência da constatação da cobertura preconceituosa e parcial da grande mídia, voltada bem mais para o número de assaltos ocorridos ou a tonelagem de lixo recolhido do que para o conteúdo dos debates havidos. Assim, a Carta Maior – auto-intitulada "um portal das esquerdas no Brasil" – aderiu, desde logo, às ideias do FSM e a generosa luta "por outro mundo possível". Na qualidade de colunista, depois de alguma dificuldade com os cartórios de habilitações profissionais, pude acompanhar os diversos fóruns ( ou "fora" ) no Brasil e no mundo do FSM. Testemunhei a luta e debati as propostas de grupos os mais diversos, desde os independistas de Puerto Rico até os daliks da Índia, passando pela luta da Frente Polisário, das lideranças da Fejuve ( Federación de Juntas Vecinales ) de El Alto na Bolívia, até boas – ao menos para mim! – entrevistas com Evo Morales, Hugo Chaves e Gracia Liñera.

Em entrevista com "Dom" Evo Morales (e "El Che") durante a campanha eleitoral de 2005, Cochabamba, Bolívia.
Na Carta Maior, sem qualquer periocidade, publico regularmente artigos que oscilam do puro teor acadêmico – com notas, conceitos e discussão bibliográficas – até artigos de divulgação e debate, sempre no campo da História do Tempo Presente. Não vou citá-los, de per si, posto que os considero um trabalho extra-universidade. Mesmo que sejam diretamente vinculados ao que escrevo e debato academicamente optei por não incorporá-los aqui. Muitos destes artigos foram traduzidos e republicados em vários jornais e revistas mundiais. Assim, tenho textos publicados em francês, pelo Le Monde, em inglês no "Christian Science Monitor" e no "Los Angeles Times", em espanhol no "El País" ou em catalão em "La Vanguardia", da Catalyunia e em línguas em que mal distingo minha própria autoria, como húngaro, japonês e russo. Tive, ainda, a grande experiência de inaugurar, ao lado do jornalista e porfessor da USP Flávio Aguiar, a TV Digital Carta Maior, numa memorável entrevista com o Comandnate Hugo Chávez.
Ufa, creio que agora posso me abster de qualquer cabotinismo por ao menos três páginas!
O TEMPO foi, deste cedo, um centro de pesquisas e tivemos de forma constante apoio das grandes agências de fomento acadêmico do país. Em 1998 foi escolhido como um dos núcleos de excelência do primeiro programa PRONEX, através do projeto "Sociedade Agrária e Conservadorismo", em associação com o CPDA/UFRRJ, resultando na publicação de dois volumes de pesquisa: "Mundo rural e política" (Campus, RJ, 1998) [Documento 14] e "Mundo Rural e Tempo Presente" (Mauad, RJ, 1999) [Documento 15]. Este projeto foi uma das últimas coisas que fiz diretamente vinculado ao mundo agrário brasileiro, embora aqui o viés "conservadorismo" já tenha desempenhado um papel central na passagem para a nova história política contemporânea.
Mas, voltaremos às "raízes agrárias" pouco mais tarde.
No âmbito do projeto CAPES/PROIN, aprovado em 1999, a equipe do TEMPO foi selecionada para desenvolver a temática "História e Imagem: novas metodologias para o estudo da história", resultando no livro "História e imagem" [(Documento 16), premiado em 2000, como o melhor trabalho de inserção de alunos de graduação em projetos de pesquisa pela Capes. Tratava-se de criar as bases metodológicas para a utilização, para além do papel de ilustração (ou pior ainda, de preenchimento de tempo), do cinema como recurso didático e, principalmente, como fonte para história do tempo presente. Neste livro, além do trabalho – árduo, devo dizer – de organizar e publicar o volume em tempo recorde contribui com o artigo "Stanley Kubrick: o cinema do tempo presente", no qual busquei evidenciar a multiplicidade das narrativas no tempo e, ao mesmo tempo, sua construção presentificada no "aqui e agora" ("Jetztzeit", de Walter Benjamin) como chave de compreensão da narrativa fílmica e suas possibilidades de uso como ferramenta de desvelamento da História para o uso em sala de aula. Tratava-se, claramente, de um desafio que se colocava para o historiador num momento que intelectuais "em serviço" declaravam "o fim da história". A ideia de um tempo sempre presente, a presentificação da história, nivelando todas as sociedades e culturas, era, então, a afirmação de um mundo sem utopias, no qual o presente – ainda uma vez o "Jetztzeit" de Walter Benjamim – proclamava o fim de qualquer possibilidade de transcendência na História. O tempo presente destes homens significava a vitória sem apelações dos regimes liberais representativos como forma universal de exercício de poder e do mercado (dito) auto-regulável como forma única de organização econômica do mundo. Assim, a presentificação de todo o tempo em tempo presente, sem utopias (e, portanto, sem futuro), era mais uma versão da inevitabilidade e universalidade de um capitalismo que avançava sobre os direitos sociais e as formas de regulação da sociedade e substituía a política pela técnica. Traçava-se, então, o "road map" da catástrofe que se abateria sobre todos em 2008. Mas, naquele momento nos ainda não sabíamos, embora, já pressentíssemos que a nau avançava para o naufrágio...
Nas linguagens fílmicas desenvolvidas por Stanley Kubrick (1928-1999), em especial em "O Iluminado", de 1980 ( "The Shining", texto original de Stephen King ) e "Laranja Mecânica", de 1971 ( "The Clockwork Orange", texto original de Anthony Burgess ) e, em 1998, "De olhos bem fechados" ( "Eyes wide shut", do texto original de Arthur Schnitzler, "Traumnovelle") são constantes diálogos com as múltiplas formas de narração do tempo. Em todos eles podemos ver a obsessão de Kubrick sobre o tempo "congelado" e "prisioneiro" em uma moldura intranspassável, ahistórica, despossuída de qualquer devir, tal como era o mundo e o tempo nos retratos pendurados nas paredes do grande hotel de "O Iluminado". Podemos perceber em Kubrick o uso do tempo, e suas consequências dramáticas, enquanto um tempo morto, que não muda e que se mantém todo o tempo como tempo presente. Neste sentido a narrativa de Kubrick enlaça-se de forma profunda, afetuosa, quase sensual, ao conceito de "Jetztzeit" de Walter Benjamin. Nosso interesse ao tratarmos o cinema foi, neste trabalho, exatamente a problematização do tempo, em especial do tempo presente, ao qual chegamos através da leitura do triste filósofo judeu de Berlin.
Inúmeros trabalhos, entre monografias, dissertações e teses, originaram-se desta vertente de pesquisa, permitindo a irrupção de uma reflexão mais moderna sobre cinema e história. Assim, um bom número de alunos dedicou-se, em suas dissertações e teses, a tratar do cinema como "fonte" para história. Partíamos, para além de Marc Ferro, mesmo reconhecendo seu pioneirismo, da máxima do historiador do cinema Pierre Sorlin: "...todo cinema é sempre história contemporâneo". A paráfrase de Benedetto Croce, longe de qualquer "imperialismo de campo", supõe o método na história do tempo presente: o chamado "problema", o ponto de partida do historiador, é o presente, envolto em suas circunstâncias, buscando no passado as singularidades e, quando for o caso, regularidades. As relações entre cinema e história, nos textos de De Lage e de Pierre Sorlin foram de suma importância para a própria construção do campo da história do tempo presente. Assim, um filme como "O Sétimo Selo" (Ingmar Bergaman, 1956) nos diz bem mais do cansaço existencial, da vizinhança da "náusea", das sociedades afluentes da Europa da Guerra Fria do que sobre o mundo medieval... Da mesma forma, "Danton", de Andrezey Wajda, de 1989 – o ano do "Bicentenaire" da Revolção Francesa-, é bem mais um filme sobre a crise polonesa, o cansaço com o comunismo soviético, e sobre o duelo entre Lech Walesa (Danton!) e o General Jaruzelski (Robespierre!) do que sobre a Revolução Francesa de 1789. O cinema surge bem mais como metáfora, algumas vezes como alegoria e pastiche, conforme a tipologia proposta por Frederic Jameson, do que como documento. Particulçarmente divertida foi uma excursão pelas análises pós-modernas em "Cinema, Rock´n Roll e Identidade" [Documento 17] – decorrente da conferência de abertura do Simpósio Regional da ANPUH -, onde mais uma vez a questão das construções de identidades múltiplas perante o mal-estar contemporâneo foram norteadoras da análise fílmica.
Creio que tenhamos conseguido, neste campo, alguns avanços significativos. Um exemplo foi o artigo na Revista Tempo – em número especial organizado por Daniel Aarão Reis Filho -, da UFF, de "Cinema e Guerra" [Documento 18], onde tais propostas eram discutidas e apresentadas. O artigo, de cunho historiográfico – bem ao contrário do capítulo acima referido acima sobre o cinema de Stanley Kubrick – buscava uma ampla classificação dos filmes de guerra, conforme épocas e modalidades de conflito, visando seu uso como fonte para uma história das representações da guerra. Mesmo na "Enciclopédia de Guerras e Revoluções" coube a mim os verbetes dedicados ao cinema, onde discuto as diversas funções e uso do cinema. Um pouco mais tarde, trabalhado com Victor Melo, também do Laboratório do Tempo Presente, participei de num livro sobre as representações do esporte no cinema e suas relações com a política. Neste caso tratava-se do uso do cinema e do futebol durante a ditadura no Brasil [Documento 19].
Coube, ainda, ao Laboratório do Tempo Presente, com o apoio da FAPERJ, o desenvolvimento do Projeto "Dicionário Crítico do Pensamento de Direita" ( editado em livro pela Mauad em 2000 e atualmente na sua segunda edição ampliada e revista) e ao qual já me referi nesse memorial [Documento 12 Bis], e que continua a inspirar trabalhos e, claro, críticas. Grande parte dos verbetes deste "Dicionário" resulta diretamente dos trabalhos de jovens alunos da Pós-Graduação em História Social da UFRJ que estavam vinculadas aos seus temas de dissertação/tese.
Em suma, creio poder afirmar que meu compromisso com Maria Yedda ao retornar ao IFCS, em 1993, em buscar um esforço de renovação e ampliação dos estudos de História Contemporânea – do que ainda trataremos nos dois itens que se seguem - foi cumprido. O saldo ficará para avaliação de todos. Contudo, da minha parte, sinto-me livre e, doravante, descompromissado.








4: Entrando em campo: o Tempo Presente de chuteiras.
"Futebol se joga no estádio
Futebol se joga na praia,
futebol se joga na rua,
futebol se joga na alma"
Carlos Drummond de Andrade

A
partir de 1997 desenvolveu-se, no âmbito do Tempo, o Projeto "Memória Social dos Esportes", com apoio da FAPERJ, resultando na constituição de um grupo especifico de jovens historiadores reunidos em torno da paixão comum – e coletiva – pelo futebol. No Rio de Janeiro, o tema futebol já havia adentrado o campo das ciências sociais através de grandes artilheiros como José Leite Lopez e Roberto da Matta, no Museu Nacional da UFRJ, e de Mauricio Murad, na História da UERJ. Não se tratava, portanto, de um gramado virgem, tínhamos antecessores e um patamar de alto nível para nos inspirar e nos acompanhar. Tais trabalhos, contudo, possuíam um claro, e excelente diga-se, viés antropológico, buscando as razões e as formas de gestão espontânea por parte da população de um esporte, em sua (pretensa) origem considerado "aristocrático", cultivado nas "Public School" do Império Britânico. Outra vertente de narrativas do futebol, menos erudita e rigorosa, imperava nos meios de comunicação, em jornais e revistas especializados dedicados ao "nobre esporte bretão". Então, quando começamos nossos trabalhos, tínhamos outros autores com quem dialogar e tradições, às vezes obliterantes, para debater.
Os trabalhos desenvolvidos pelo Tempo, ao contrário de tais tradições, procuravam as origens populares, na Europa e no Brasil, do futebol, como esporte de massa, de ampla difusão entre os meios operários, e somente muito tardiamente "parlamentarizado" com regras e árbitros pelos ingleses. Tal parlamentarização do violento e popular "calcio", popular em toda a Europa latina antes de chegar à Inglaterra, acabaria, ao lado de outros esportes como o pólo, como mais uma forma de preparação da elite britânica para sua missão imperial. Mesmo no caso do Brasil procuramos trabalhar as origens populares do futebol, vindo através dos marinheiros ingleses e jogado nos "campinhos" e "várzeas" da região portuária do Rio de Janeiro, bem antes dos heróis fundadores, como Oscar Cox (1980-1931, diplomata britânico, um dos fundadores do "Fluminense Football Club", com suas regras e interditos classistas), no Rio de Janeiro, e Charles Miller (1874-1953, paulista, descendentes de ingleses e aluno de uma "Public School" britânica), em São Paulo, terem importado sua forma "aristocrática" e parlamentarizada no final do século XIX.
A participação do colega, amigo e parceiro Gilberto Agostinho – que me foi apresentado pelo aluno e amigo ( bom amigo!) Leo Bahiense. Gilberto era um historiador intuitivo, brilhante, e um amante obstinado do futebol do Botafogo. Sua presença no Tempo foi fundamental para o estabelecimento dos estudos de história do futebol como um "campo" novo de pesquisas. Coube a Gilberto dirigir boa parte da pesquisa que resultou nos dois volumes de história do Vasco da Gama, do qual falaremos em seguida, e na coleção de fotos, com suas análises, que acompanha a reedição, feita pelo Tempo, do livro "O Negro no Futebol", de Mário Filho. Entrementes, Gilberto escreveu, quase que de um único fôlego, um belíssimo livro sobre futebol e relações internacionais, intitulado "Vencer ou Morrer", publicado pela Mauad, com um prefácio meu... A ausência de Gilberto, uma ausência/presença "que coagula o jorro da noite sangrenta" é uma constante perda, uma dessas coisas que nos marcam para sempre. E de forma estranha, posto que sua presença fosse natural, nos fins de tarde, na boca da noite, como um sem cessar de estar lá... Era só estar e ficar, como se nos encontros e conversas, de bar em bar, fossemos parte da mecânica celeste. Encontrávamo-nos na noite do Rio com Ricardo Bull, Leo Bahiense, André Botelho e um ou outro "alien" capturado de passagem. Ainda hoje sua ausência dói, tanto tempo passado, quando vadio pelos bares da Lapa, da Carioca e ainda fumo e bebo no pátio do Cais do Oriente, onde Gilberto me contava suas mais deslavadas mentiras, cínico e amigo, para ao fim de rir de si mesmo. E então riamos juntos, sabendo que ao fundo ríamos, em verdade, de nós mesmos. Gilberto existe naquela demissão onde estão Alice e Tom, que morava no Kentucky e morreu no Líbano. Memória, memórias, contidas num gesto, numa canção ou num filme – tudo naquela mesa "onde está faltando ele e a saudade dele dói em mim!"
Um último trabalho com Gilberto Agostino, numa livro coletivo organizada por Victor Mello, foi uma obra derivada de um simpósio denominado "O Esporte vai ao Cinema", no qual reunimos alguns dos nossos maiores interesses e paixões. No meu caso, já citado quando falamos de cinema, coube a análise do futebol durante o regime civil-militar de 1964-1985, com o capítulo: "Futebol e Política: o caso do filme "Pra frente Brasil" [ Documento 20], onde pude reunir numa mesma análise as relações entre ditadura e sociedade , futebol e cinema debatendo o tema da adesão, sedução e convencimento nas ditaduras modernas.

O "Tempo de chuteiras": Chico Teixeira, Ricardo "Bull" Pinto, Leo Bahiense, Gilberto Agostino e André Botelho no lançando do "Dicionário Crítico do Pensamento de Direita", na Livraria da Travessa, Rio, 2001.

Com o total apoio da diretoria do Clube de Regatas Vasco da Gama, sob a direção do notório, polêmico e amigo Eurico Miranda, tive acesso aos amplos, dispersos e desorganizados acervos do clube e iniciamos o trabalho de identificação, catalogação e digitalização das fontes documentais vascaínas, hoje sob responsabilidade de Ricardo "Bull" Pinto. Daí resultou um amplo trabalho – uma caixa com um livro e três CDs – e depois um segundo volume intitulados "Memória Social dos "Esportes" [Documento 21 e Documento 22], nos quais fui o organizador da pesquisa e do processo de recuperação documental, tudo publicado em dois volumes pela Editora Mauad. Tivemos ainda o orgulho de organizar, editar e prefaciar uma obra fundante da história do futebol no Brasil, o clássico "O Negro no Futebol", do jornalista e cronista (um sociólogo natural, nascido com o dom da análise do comportamento dos tipos sociais brasileiros) Mário Filho – volta aos meus "flashbacks"!. A colocação em circulação, depois de quase três décadas de esgotada sua única edição, foi um fato que muito me deu prazer, permitindo que novos pesquisadores tivessem acesso a uma obra seminal sobre a sociedade brasileira e uma de suas manifestações mais expressivas [Documento 23].
Após tais trabalhos, e em especial dois pequenos artigos escritos para a Agência Carta Maior – um sobre Zidane e a maré montante da xenofobia em França e outro sobre a derrota do Brasil na Copa da Alemanha e polêmica sobre "futebol arte" versus "futebol de resultados" – dei por encerrada minha participação em campo. A chegada do jovem pesquisador Victor Mello, professor-doutor da UFRJ e autor de um belíssimo livro sobre a vocação esportiva do Rio de Janeiro, ao laboratório e sua dedicação ao tema, com a publicação de vários trabalhos (alguns com a minha participação discreta e resistente), me deram a garantia de que o tema "futebol e história", ou história dos esportes, continuariam a ser um dos eixos de pesquisas mais produtivo de nosso laboratório. Contudo, me orgulho (sem cabotinismo, desta feita!) de ter sido o criador do Centro de Memória do (glorioso!) Vasco da Gama, com o salvamento de milhares de documentos sobre o futebol brasileiro. Hoje, o centro está sob a direção de Ricardo "Bull" Pinto, um especialista em futebol, e um esportista, oriundo do Laboratório de Estudos do Tempo Presente e co-autor em vários trabalhos e um vetor criativo na história dos esportes no Brasil.
Foi com surpresa, e grande prazer, que me inteirei que o amigo e parceiro de trabalhos, Stefan Rinke, professor titular de História do Lateinamerika Institut, da FU Berlin, interessou-se em dedicar-se, também, aos estudos de história do futebol. Rinke orienta vários trabalhos neste campo e tenho recebido, no Rio de Janeiro, estudantes alemães interessados no tema. Disso resultou, em vésperas da Copa do Mundo da Alemanha (2006), um belo e amplo seminário sobre futebol, organizado pelo DAAD, onde fiz a conferência de abertura. Ainda em parceria com o DAAD/Deutscher Akademischer Austach Dienst publiquei uma edição bilíngue, muito simpática, de um artigo denominado "Futebol no Brasil e na Alemanha: sobre as origens de uma paixão coletiva", que seria mais tarde republicado no Brasil [Documento 24], onde procuro comparar dois times de futebol de grande popularidade e de grandes torcida em ambos os países. No caso, o Vasco da Gama e o Schalke 04. Ambos os times tiveram raízes amplamente populares, contrariando a tese das origens "aristocráticas", e diversidade étnica notável em uma época – os anos de 1920 e 1930 – marcada pelo racismo e exclusão. No caso do Schalke 04 tratava-se da admissão, no início dos anos ´20, como jogadores, de trabalhadores-mineiros ("Bergenleute"). Muitos destes atletas eram de origens polonesas ou húngaras e tornaram-se rapidamente populares fora dos quadros da elite. Pior ainda para a época, alguns eram católicos poloneses e húngaros. No caso do Vasco da Gama dera-se, a partir de 1920//23, a admissão de empregados do comércio atacadista (caixeiros e entregadores, e um bom número de marinheiros do Arsenal de Marinha) do Rio de Janeiro como atletas. Muitos deles – como o famoso "Bolão" – eram negros e mestiços. A reação, similar e contemporânea, das ligas alemã e fluminense, exigindo a expulsão foi típica da sua época – e não foi aceita por ambos os clubes, redundando na expulsão do Schalke e do Vasco das ligas oficiais. A presença de trabalhadores (mineiros alemães, poloneses e negros, vis-à-vis) em clubes que deveriam ser submetidos à regra do amadorismo reflete as práticas da exclusão social na República de Weimar (1919-1933) e na República Velha (1889-1030), permitindo um cruzamento de histórias e uma série de marcações extremamente esclarecedoras. É assim, seguindo ainda propostas de Peter Gay, que pensamos a história dos esportes como um prOcesso de educação e disciplinização das massas, em especial do futebol, como um campo aberto, ainda a espera de novos pesquisadores. Participei, ainda, da organização de um interesse dicionário alemão-brasileiro de futebol, também organizado pelo DAAD e a Universidade de Bochum [Documento 25].
Gostaria de fazer aqui uma pequena excursão por um trabalho que me remeteu para a questão do racismo e da exclusão na República Velha. Trata-se da edição comentada do romance de Adolfo Caminha "O bom-crioulo", publicado originalmente em 1895. Trata-se de um tema único e espinhoso, envolvendo os últimos anos da escravidão e do Impéria, o papel dos negros na cidade do Rio no pós-escravidão, tudo isso – como se não bastasse – ambientando um romance homossexual na Marinha de Guerra. O trabalho com este autor maldito, Adolfo Caminha, me permitiu expor e debater temáticas quase que inéditas, na época, a nossa historiografia. A nova edição, patrocinada pela coleção Biblioteca Carioca, foi uma encomenda, que muito agradeço, de Afonso Marques dos Santos, em 1986.
Ok, abusando irritantemente da paciência do leitor, vamos fazer aqui um "flashback no flashback". A criação do Centro Memória do Vasco da Gama e o trabalho de restauração documental lá em curso, me remete, ao período em que fui Diretor do Arquivo Público do Rio de Janeiro – cargo a que cheguei graças aos esforços de Celina Vargas, amiga e conselheira durante todo este período. No então abandonado APERJ busquei um trabalho, acima de tudo, de recuperação das estruturas de operação, corrompidas pelo abandono de décadas. Mais tarde fui Presidente do Conselho Nacional de Arquivos/CONARQ e membro de várias instituições da área, mantendo, até hoje, uma excelente relação com a comunidade arquivistíca brasileira. Por duas vezes, graças sem dúvida a atenção, amizade e cooperação mantida com Jaime Antunes, diretor do Arquivo Nacional e sua belíssima equipe ( incluindo aí Victor Fonseca e Silvia Ninita ) fui indicado, e hoje faço parte, da comissão instituída pela Presidência da República denaominada de "Memórias Reveladas" [ Documento Série 1]. As atividades da comissão combinam duas atividades que são muito próximas para mim: de um lado a pesquisa e o debate sobre os regimes autoritários e, de outro, o cuidado e consciência pela preservação documental no Brasil. Hoje, a Comissão Memórias Reveladas trabalha, graças a coordenação de Jaime Antunes, em sintonia com a Comissão da Verdade e a Comissão Nacional de Direitos Humanos. Me cabe, atualmente, uma especial atenção aos temas referentes ao ensino e aos curriculos do ensino médio referentes aos períodos ditatoriais brasileiros.
Foi assim que na condição de presidente da Conferência Nacional de Arquivos do Brasil participei dos debates da Assembleia Nacional Constituinte de 1988 e apresentei, ao então presidente da Assembléia Deputado Ulisses Guimaraes, o projeto do Artigo Constitucional do "Habeas Data". O próprio Dr. Ulisses Guimarães, impressionado com a abrangência e o significado do instituto para a democracia brasileira, assumiu a proposição do "Habeas Data" – redigido pela equipe do Arquivo Nacional e aprovado em reunião plenária do Conselho Nacional de Arquivos Públicos do Brasil – como sendo o "seu artigo", uma proposição do próprio presidente da constituinte para a "Constituição Cidadã".
















5: O Tempo Presente vai à guerra!

"A guerra é o diabo!"
General Sherman

E
m 1998, de forma totalmente inesperada, o Almirante Afonso, então diretor da Escola de Guerra Naval, me convidou, por telefone, para uma visita à Escola. Foi um verdadeiro susto. Na minha experiência com militares não costumava ser convidado para um almoço e uma conversa... Após me certificar que não havia qualquer erro de pessoa, acedi ao convite, com desconfiança e expectativas totalmente irrazoáveis. Após um simpaticíssimo almoço, precedido de uma recepção por guarda de honra e com armas, tivemos uma longa conversa sobre a situação política internacional, o papel do Brasil e a formação de novas FFAA para um mundo em mudança num país, agora, aferradamente democrático e com ancoras irremovíveis no Estado de Direito.
Alguns dias depois fui convidado a ministrar algumas palestras, livres, na EGN. Foi uma tarefa difícil, precedida de um estudo intenso, também factual como teórico, da guerra em geral e de algumas guerras contemporâneas. Para mim, até então, a guerra era um hiato entre o fim das negociações e o tratado de paz, aceitando, intuitivamente, o trinômio clássico de Clauzewitz (da guerra como a continuação da política por outros meios). Nunca lera Clausewitz, que conhecia através de Lenin e Mao, dois admiradores do general prussiano. Fiz leituras intensas, de Sun-Tzu até Raymond Aron e Henry Kissinger (abominados, até então! Bem, o último deles, mesmo reconhecendo o peso do intelectual e do estrategista de sucesso, continua sendo abominando por suas práticas e sua forma constante de adulterar a história em proveito de sua biografia). Estavam lá Tucídides, Tito Lívio, Maquiavel (os escritos da guerra e as "Décadas de Tito Lívio", já que "O Príncipe" era leitura antiga e "A Mandrágora" fora encenada por mim duas vezes), Jomini, o próprio Clausewitz – o chamado "Livro 1", de alta densidade teórica e ainda hoje insuperável em conceitos chaves como "atrição", "névoa de guerra", "escalada" ou "centro de gravidade") e, depois disso, uma gama imensa de textos modernos, nos quais eu destacaria Johan Keegan e suas histórias da guerra; Luigi Bonanatte e seus conceitos de guerra; o imenso e rico manual do prof. Couteau-Bégarie (que a EGN traduziu para o português) até os famosos coronéis chineses de "A Guerra Sem Limites" .
Através de intensas negociações foi assinado um acordo de cooperação entre a UFRJ, através da Coppead, e a EGN, criando um curso de pós-graduação ministrado na EGN pela UFRJ na própria Escola de Guerra Naval. Tratava-se de um curso de nível de mestrado, denominado CEMOS/Curso de Estado Maior para Oficiais Superiores (neste caso capitães de corveta e fragata) e um curso de nível de doutorado, o C-PEM/Curso de Pensamento Estratégico Militar (dirigido para capitães de Mar-e-Guerra). Em ambos os cursos, mediante este convênio, ministro uma disciplina denominada de "História do Tempo Presente". O curso trata da análise dos conflitos contemporâneos – o corte de periodização é o pós-Guerra Fria, em 1991 – onde discuto, e isso é literal, as formas modernas de conflitos e a permanência da guerra em nosso tempo.
Os resultados são animadores, e muitas vezes empolgante, emergindo uma realidade que jamais encontrei no IFCS e que se aproxima, em outro campo, da febre criativa dos tempos do CPDA da UFRRJ.
Motivado e empolgado pelo trabalho na EGN, organizou-se o projeto coletivo "Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século xx". Neste trabalho, precedido de uma extensa "Introdução" sobre a guerra moderna – que creio é uma contribuição ao campo de estudo dos assuntos militares – reunimos cerca de 300 verbetes, de especialistas nacionais e estrangeiros, sobre o tema da guerra e das revoluções [Documento 26]. Como já falamos, o trabalho foi um sucesso editorial e foi escolhido pelo MEC para compor o acervo de bibliotecas públicas em todo o país (neste momento preparamos um e-book atualizado).
Sob convite direto do Almirante Armando Vidigal, através do amigo, "afilhado" e orientando, e Comandante de Mar-e-Guerra Francisco Eduardo Alves de Almeida – um "nelsoniano" incorrigível! – participei, em 2009, de uma obra coletiva pioneira no Brasil: "Guerra no Mar", com o capítulo "A Batalha do Atlântico: a luta pelo domínio dos mares na Segunda Guerra Mundial" [Documento 27]. Foi um desafio exasperante e, em fim, o resultado – na opinião dos especialistas militares (ok, creio que este é o terceiro, ou será o quarto?, ataque de cabotinismo explícito!) – bastante bom. Ao contrário de outros autores, dedicados às clássicas batalhas navais, o meu tema era da história recente, polêmico, e envolvia a participação brasileira, sobre a qual já se escreveu muito. Coloquei algumas exigências para mim mesmo: trazer fontes novas para o tema, no caso a vasta documentação alemã, já que a maioria dos relatos é baseada em documentação anglo-americana e manter o alto nível das informações técnicas exigida pelas parcerias (uma maioria de comandantes da Marinha de Guerra). Reputo hoje este trabalho, e devo agradecer e a paciência do Comandante Alves de Almeida por viabilizar minha participação no livro, como o melhor texto "técnico" que já escrevi sobre guerra.
Desde 2001 passei a ser convidado a uma série de palestras na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército Brasileiro/ECEME, onde comecei a colaborar com o CPAEx, o Curso de Aperfeiçoamento e de Estado-Maior do Exército, onde ministro palestras sobre Política Estratégica Contemporânea. Na ECEME, mesmo quando há divergências, e elas existem em qualquer espaço de discussão teórica de bom nível e em liberdade, o respeito e a deferência são constantes, num clima permanente de companheirismo leal e aberto. Foi, em tais condições, convidado para fazer a reforma do currículo da Escola, uma honra e um respeito verdadeiramente notáveis. Coube-me, com uma jovem equipe da Geografia da UFRJ e do Tempo Presente, superar um programa ministrado aos jovens oficiais ainda centrado na Guerra Fria, introduzindo autores como Milton Santos e Maria Yedda Linhares na formação de jovens oficiais. A ECEME, de forma que muito me toca, numa cerimônia de fazer inveja ao Itamaraty, decidiu, por bem ou desavisadamente, me fazer Professor Emérito do Exército Brasileiro [Documento Série Assuntos Militares], em 2004, um título que muito me honra e que me permite, com prazer, continuar minhas atividades naquela instituição.
Da mesma forma, através do amigo e coautor, Professor Darc Costa, fui convidado a compor, na condição de Professor-Conferencista, os quadros da Escola Superior de Guerra, a ESG [Documento Série Assuntos Militares]. Fui recebido pelo General Leônidas Pires Gonçalves, ministro escolhido por Tancredo Neves como garante da transição e, depois, condestável do governo José Sarney. No seu discurso de recepção o general Leônidas, numa linguagem castiça bordada de jargões "quartelistas", acentuou as mudanças políticas e do clima ideológico do país, declarando só conhecer no Brasil de hoje dois "partidos": o de Tiradentes e aquele de Silvério dos Reis e que eu, decididamente, era do "Partido de Tiradentes"...
Juro, foi emocionante! Era como ver uma época se encerrar... Claro, faltavam outras decisões. Mas, não resulta adiantar o tempo, mesmo o tempo presente, além de seu próprio curso. De qualquer forma devo deixar claro um ponto: fui recebido, nas escolas superiores militares – e com especial deferência na Escola de Guerra Naval -, com respeito e, mesmo, com carinho. Em momento algum, sequer uma vez, fui pressionado ou meus programas de cursos ou bibliografias censurados ou examinados previamente. O debate, às vezes veemente, é livre e respeitoso, de tal forma que não posso dizer o mesmo acerca da universidade. Pode ser, e deve acontecer, que vez por outra me achem "esquisito", mas o respeito profissional e pessoal é a marca maior das relações interpessoais nas escolas. Muitas vezes tais relações evoluiriam para a amizade pessoal, como no caso do comandante-aviador Paulo Rohwer e do Fuzileiro Naval mais tempestuoso da corporação, comandante Simioni. Os Almirantes Reis e Jorge Alípio (meu comandante na viagem de circum-navegação) são amigos e, hoje, bons conselheiros. Já os comandantes de Mar-e-Guerra, e orientandos diletos, Alves de Almeida, Killian, Hartz e os coronéis André Novais e Carlos Penteado são colegas de trabalho, muitas vezes co-autores, nos quais encontro profissionalismo e amizade.
Neste sentido a tese defendida por alguns de um "habitus", ou uma cultura, invariavelmente autoritária existente, ainda hoje, nas instituições militares, talvez decorrente da hegemonia positivista nas forças e de sua auto-percepção como um "Poder Moderador" e tutelar na República, me parece "externa" e desavisada. Seria como falar na resiliência ( num sentido amplo) "stalinista" nos professores de esquerda universitários de hoje.
Ainda no campo dos "assuntos militares", organizamos, com o Professor Sidnei Munhoz, da UEM, e com o Professor (e oficial) Ricardo Cabral uma livro que deveria ser um amplo debate sobre as questões de hegemonia e estratégia mundial, ainda sob impacto das políticas chamadas "neoconservadoras" da Era Bush. Trata-se de "Impérios na História" [Documento 28], um amplo panorama da história mundial. Além da coordenação do livro, fui responsável por sua Introdução ( sob a forma de uma síntese analítica e por dois capítulos no mesmo livro ). Tivemos aqui a presença de especialistas de várias áreas, com destaque para os trabalhos do próprio Sidnei Munhoz, Cristina Pecequilo, Francisco Falcon e o último artigo escrito de Maria Yedda Linhares.
Outro trabalho coletivo, este diretamente solicitado pelo Ministério da Defesa, através do ex-comandante da ECEME, General Sérgio Etchgoyen, centrado no debate sobre a chamada "Nova Estratégia Nacional de Defesa", me levou a um amplo debate sobre a possibilidade da guerra, hoje, para um país como o Brasil. Destas reflexões surgiu o capítulo "Guerras e Doutrinas no século XXI em face da Nova Ordem Mundial" [Documento 29] organizado pelo então Ministro da Defesa, Nelson Jobim, e o especialista Celso Castro, denominado "Segurança Internacional".
De iniciativa exclusiva do Laboratório do Tempo Presente surgiram, também, alguns projetos voltados para a temática dos conflitos e guerras. Talvez o mais amplo, o mais completo, tenha sido o trabalho coletivo "O Brasil na Segunda Guerra Mundial" [Documento 30] – um vasto panorama, reunindo trinta e cinco estudos "regionais", a maioria decorrente de dissertações e teses acadêmicas, sobre a participação e o impacto da Segunda Guerra Mundial no Brasil. Aqui, creio eu, não se trata de cabotinismo, já que meu trabalho – para além do ensaio inicial – foi a reunião do que havia de melhor nas prateleiras acadêmicas sobre o tema. Karl Schurster, professor da Universidade Estadual da Bahia, meu orientando de doutorado, teve, em verdade, um papel central nesta publicação.
A temática do terrorismo internacional, em especial depois do 11 de Setembro, com a imperiosidade de seu entendimento, acabou por gerar dois trabalhos significativos. Um sob minha organização e de Daniel Chaves, jovem professor de História Contemporânea da UFRJ, e meu orientando de doutorado, intitulado "O Terrorismo na América do Sul" [Documento31], resultado de um seminário solicitado pela ABIN na área de contraterrorismo. Por sua vez o colega e amigo Alexander Zhebit, do curso de Relações Internacionais da UFRJ, organizou comigo um volume específico sobre o novo terrorismo, no qual contribui com o capítulo inicial "Os Estados Unidos e a Guerra contra o Terrorismo Global 2001-2008" [Documento 32], onde critico a ótica da Administração Bush sobre o fenômeno do terrorismo. O "glossário" que acompanha este livro é, por sua vez, produto de um projeto Faperj sobre a temática do terrorismo desenvolvido no Tempo sob a coordenação do próprio Alexander Zhebit. Coube ainda ao TEMPO a criação, em 2004, do Grupo de Análise e Acompanhamento do Terrorismo Internacional (GAATI), cujos resultados foram apresentados em seminários públicos de debate e pesquisa, bem como na realização de um mapa interativo sobre o Terrorismo Internacional, derivando daí o livro "Neoterrorismo", citado anteriormente e, sem dúvida, fruto da persistência do prof. Zhebit.
Em 2005, e em grande parte em decorrência dos esforços de José Miguel Arias Netto, da UEM, a ANPUH, reconheceu a importância do campo dos estudos militares ou de história militar, propondo como tema para seu XXIII Simpósio Nacional "História, Guerra e Paz", que realizar-se-ia em Londrina. Fui, nesta ocasião, convidado para proferir uma das conferências, que intitulei "Lições de Guerra: a guerra do Iraque e o terrorismo na era da assimetria global". O texto foi publicado, sob a coordenação do mesmo professor José Miguel Arias Netto em volume patrocinado pela ANPUH [Documento 33]. Pouco tempo depois o professor Luís Carlos Soares, da UFF, propôs uma retomada do texto, que foi amplamente refeito e ampliado para compor um trabalho à quatro mãos sobre a guerra e seu papel na História [Documento 34]. O resultado foi o livro "Reflexões sobre a Guerra", publicado em 2010. Este trabalho marca, de forma muito clara, a plena cidadania da guerra – para além de um hiato na história – como um tema relevante nas universidades brasileiras. Ainda no campo dos assuntos militares publiquei, como resultado do IV Simpósio Nacional de Estudos Estratégicos, que viria a dar origem a ABED, o artigo "Estratégia, Segurança e Defesa" [ Documento 35], onde trato do ocaso, trágico, da política estratégica da Administração Bush. Gostaria de acrescentar aqui, contrariando uma decisão tomada no início deste texto de não citar prefácios, um pequeno "Prefácio" escrito para obra organizada pelo Almirante Aramando Vidigal, denominada "Amazônia Azul" [ Documento 36] . Esta "auto-traição" se deve a relevância do livro, fundante de uma conceito estratégico central na nova "Lei da Estratégia Nacional de Defesa", aprovada pelo Congresso Nacional em 2008. A "Amazônia Azul" é o conceito que recobre estrategicamente a imensidão, e riqueza, dos mares brasileiros, exigindo novos, e hercúleos, esforços de preservação e defesa. Ter, de forma muito restrita, participado dos debates de formulação da Estratégia de Defesa Nacional e sido, honrosamente, convidado para escrever este prefácio representou, para mim, o reconhecimento de anos de dedicação ao estudo de assuntos militares.


Debate sobre política internacional a bordo do Navio Escola (N.E.) Brasil, em 2007, durante a viagem de circunavegação.
Por fim, devo dizer, que o relacionamento com as organizações militares, em especial as Escolas superiores, me levou a um entrosamento estreito com a instituição FFAA – uma instituição republicana, parte permanente do arranjo constitucional do Brasil e patrimônio de todo o povo brasileiro. Assim, mantenho, com orgulho, uma relação de cooperação e assessoramento, culminando em 2003 na minha disposição, pela UFRJ, ao Ministério da Defesa por três anos, o que não significou, de forma alguma, meu afastamento da docência na UFRJ. Tal cooperação se espelha em cursos, debates, seminários e simpósios – que em virtude de sua amplitude (e, para dizer a verdade, porque não pensava ter que comprovar currículo depois do concurso de titular) não estarão todos documentados aqui. De qualquer forma, devo destacar alguns momentos importantes, como o engajamento a bordo do N.E. (navio-escola) Brasil em sua viagem de circum-navegação em 2007, quando mantive à bordo as atividades de professor de história militar naval para a turma de guardas-marinhas da Escola Naval. Da mesma forma, a viagem de instrução ao CIGS/Centro de Instrução de Guerra na Selva, em 2010, entre muitas outras atividades foram experiências que, largamente, ultrapassaram o âmbito profissional, permitindo a construção de novas amizades e o entendimento, ao menos um pouco, da cultura e da vivência militares.
Infelizmente, na UFRJ, em virtude dos (autos)limites da burocracia universitária, não pude me dedicar nem ao curso de Relações Internacionais – onde lecionei por pouco mais de um ano – e nem ao curso de Defesa e Gestão Estratégica, criado de forma por demais açodada e sem uma consulta prévia à comunidade universitária para um balanço de capacidades instaladas e daquelas em potencial. O resultado – embalado em um clima de grave conflito entre profissionais – foi um total desastre. Em 2011 o reitor da UFRJ me nomeou, sucessivamente, membro de uma comissão de avaliação do curso e coordenador do mesmo. Não aceitei, malgrado a gentileza do Prof. Carlos Levi, em virtude da total ausência de condições mínimas de convívio universitário existente no curso. Permaneço, neste momento (dias de maio de 2012) na condição de conselheiro do curso, sem contudo quaisquer atividades de coordenação do mesmo.
Considero a existência autônoma, e precária, de ambos os curso – de Relações Internacionais e de Defesa – um desacerto e uma "deseconomia" – creio que os cursos deveriam estar no mesmo instituto e cooperar como áreas de concentração e áreas conexas entre si. Da mesma forma, a localização do primeiro nas ciências econômicas e do segundo nas ciências da saúde é, no mínimo, insólita. A perda de densidade, com a ausência de disciplinas comuns nas áreas de História e Ciência Política ( em especial de Teoria do Estado ) como uma imprevisão capaz de solapar a qualidade de formação dos estudantes, são defeitos de nascença.
Devo, ainda, acrescentar aqui – no âmbito dos assuntos militares e das relações internacionais – mais dois trabalhos: a organização, e participação, no livro "Mundo Latino e Mundialização", com Darc Costa, fruto de um seminário feito na Escola de Guerra Naval [Documento 37] e a organização, notas e prefácio do emocionante diário de cativeiro de Ingrid Betancourt, "Cartas à Mãe" [ Documento 38].





6. Apreendendo a ser professor!

Quando é lição de esculacho/olha aí, sai de baixo/Que eu sou professor!
Chico Buarque

O
período entre 1976 e 1993, quando trabalhei, quase simultaneamente no CPDA da UFRRJ e, em tempo parcial ( inicialmente ), na UFF foram anos intensos e de grande riqueza para minha formação, interrompidos pela estadia na Alemanha, primeiro em Mannheim e depois em Berlin. No CPDA, onde estudava e trabalhava sobre a mítica (perdão pela repetição, mas é deliciosamente inevitável!) "realidade brasileira" pude ler, ouvir e aprender dia-a-dia, com fome e prazer. Lá trabalhava, pela primeira vez, lado à lado, com Maria Yedda, Eulália Lobo e, por vezes, com Manuel Mauricio de Albuquerque, Jacob Gorender, Alice Cannabrava, Mauricio Tractenberg além de visitantes ilustres, como Waren Dean, Frédéric Mauro, Kátia Mattoso e Ciro Cardoso. As relações interpessoais eram boas, amigas, e lá encontrei colegas que viriam a ser meus melhores amigos, como Ly Lima e João Carlos Duarte.
Ao mesmo tempo, desde 1977, era professor da UFF, na área de História Moderna e Contemporânea, dirigida com natural autoridade por Francisco Falcon. Eram meus colegas de área Antonio Edmilson Martins Rodrigues e Berenice Brandão, hoje amigos fraternos. Na UFF eu fazia o meu mestrado, primeiro sob orientação de Vincent Valla e depois com o próprio Falcon. Alguns dias tinha seminários nas mesmas salas em que acabara de ter aulas com colegas "seniores" do Departamento, em especial Ismênia Martins, Nilo Bernardes, José Honório Rodrigues. Era um tempo de formação de comissões para quase tudo, com horas intermináveis de reuniões e debates e de extrema mobilização estudantil. Como era bastante jovem, com pouco mais de vinte anos, muitas vezes era confundido com alunos, que pensavam tratar-se de "aula trote" para calouros.
Ao mesmo tempo vivi, de forma intensa, a boemia artístico-intelectual-vadia do Rio de Janeiro. A Lapa, sempre a Lapa!, era um dos locais mais queridos, em especial a Adega Flor de Coimbra – ainda lá, com as mesmas paredes e mesas pretensamente "lusitanas", juntinho da Sala Cecília Meireles, era o meu fim de noite favorito. O cabaré "Casa Nova", abandonado aos sustos da modernidade, com seus travestis e "caricatas" e sua bandinha de músicos cegos era imperdível. Claro, havia ainda as gafieiras da Praça Tiradentes, o ( imperdível trocadilho!) "Café Thália" com suas "snouks". Boa parte de tudo isso – como os grandes cinemas de dois andares, com tetos que se abriam no calor da noite carioca – era só decadência. Os grandes teatros, onde brilharam Dercy Gonçalves, Bibi Ferreira e Fernanda Montenegro agora viviam fechados. Pensava que jamais veria a Lapa toda iluminada, borbulhando de gente e com um show de coristas na Praça Tiradentes. Mas, isso aconteceria, só que eu então não sábia... Creio que nem a Praça sonhava mais com o glamour perdido, abandonada aos seus mendigos, terminal imundo de ônibus. A ideia de que um dia eu estaria escrevendo este Memorial exatamente na Praça Tiradentes e que aqui teria meu escritório – "com meus discos, meus livros e meus amigos" – não me passava pela cabeça. Aqui foi um reencontro, duplo, comigo mesmo: num tempo e num lugar e numa prática de ser.
Aos sábados havia Ipanema – sempre bela, ao sol e ao sal de suas areias brancas. Ali havia longas conversas com os amigos. Dau Bastos, que editava a revista "Rádice". Havia Miguel, místico e zen. Era onde eu via José Carlos de Oliveira ( 1934-1986) – Carlinhos "o brasileiro por fatalidade"-, sempre escrevendo suas crônicas no bar Jangadeiros. Vez por outra encontrava Glauber Rocha, retornado, triste-eufórico. Prometi que organizaria seus livros e documentos... Foi só uma mentira piedosa, queria acalmá-lo.
Nas manhãs de Ipanema encontrava com Paulette, sempre de bicicleta, fazendo exercícios físicos enlouquecidos, e me contando coisas dos "Dzi Croquettes" e de uma forma louca de viver a vida. Paulette insistia em me convencer do fato revolucionário de ser gay – eu ouvia, pasmo e burro. Creio, e me arrependo disso, de nunca ter entendido todo o imenso e rico universo de Paulette. Talvez seja melhor. Assim ele permanece para mim como mais um anjo torto, "djin" do esculacho e minha própria "Estátua da Liberdade". Ao ver no cartaz do filme a cara boa e safada dele, com longuíssimos cílios cintilantes, senti uma puta saudade. Havia, também, Balalé, com seus filhos, cães e papagaios.
Quanta gente havia em Ipanema?
Gente de origens múltiplas, desvairadas, inteligentes, preguiçosas, caronas da vida. Todas as conversas tinham algo de Lacan – posto que Freud "já era!" -, uma ou outra citação de Brecht, algum vanguardista desconhecido, os Irmãos Campos, Ferreira Gullar e cinemas do mundo. Sobre a mesa restavam ecos d´O Pasquim" – a inteligência de Luis Carlos Maciel, por exemplo. Claro, havia o "desbun", o pós-organização, o pós-prisão, o pós-amigos: tudo aquilo que se afogava em cerveja, em fumaça e sexo, mesmo sem tesão. O preço viria em breve...
Eu ficava lá, até o Luna´s fechar e às vezes o Luna´s não fechava, apenas trocava os garçons – ou a Ly os mandava para casa, nunca soube! Lá no Luna´s sempre encontrava Homero. Onde anda tanta gente?
Estes, malgrado, sustos e atropelos, foram, sem dúvida, os melhores anos.

6.1 Os melhores anos!

Aqui, meu pânico e glória
Aqui, meu laço e cadeia
Conheço bem minha história
Começa na lua cheia
E termina antes do fim
Torquato Netto

E
stes foram ( no CPDA, na UFF, na Lapa e em Ipanema), sem dúvida, os anos mais ricos, de melhor aprendizado e de uma convivência em que se apreendia simplesmente ouvindo os mestres, e os que viveram mais, conversarem entre si. Mas, foram também, anos de incertezas, de asperezas e de tensão. A ditadura ruía, mas como as imensas árvores pobres, ao cair arrastava o que crescia no entorno. A repressão continuava a agir.
Creio que seja este o momento de falar, um pouco mais explicitamente da presença norteadora desta narrativa: Maria Yedda Linhares. Embora tivesse uma visão clara de seu papel na pesquisa histórica e na formação da FnFi da antiga Universidade do Brasil, onde eu estudara pouco tempo depois do AI-5 (em especial pelas menções amigas e solidárias de Francisco Falcon) só conheci pessoalmente Maria Yedda em dezembro de 1976 (pouco depois de retornar do exílio), num seminário de fundação do próprio CPDA. Era uma mulher pequena, severa, que iria fazer cinquenta anos, profundamente francesa em sua forma de vestir, de fumar e de organizar pessoas e eventos em sua volta. Houve uma identificação imediata e, ao lado de Ângela Porto – em quem Yedda, de pronto, viu a figura do pai e amigo, Sérgio Porto – e com Eli Lima, montamos a primeira equipe de pesquisa do recém-criado Departamento de História Agrária, do CPDA (ainda na Fundação Getúlio Vargas, de onde migraria, em 1981, para a UFRRJ). Yedda era, todo o tempo, cheia de iniciativas, criativa e desafiante e nem sempre consequente. Seu espírito irrequieto, às vezes terrivelmente desorganizada (desde as perdas constantes de isqueiros, óculos ou bolsas até o esquecimento de horários de aula!), impelia todos nós para uma constante mobilização.
Foi deste convívio que tudo aconteceu. Num gesto "de repente" – pouco pensado e com a solidariedade "kamikaze" de Fátima Marschhausen, sempre solidária, pedi demissão do cursinho de vestibular, e com uma brutal redução de salário, fui trabalhar no CPDA e decidi fazer o mestrado – até então adiado pela sobrecarga de aulas do cursinho...
Foi a melhor opção feita na minha vida e, por isso, não deixarei nunca de agradecer a ambas. Maria Yedda, por seu convite e pelos ensinamentos, e Fátima, por ter assegurado, por um bom tempo, as condições de continuar os estudos e manter a casa.
O convívio com Maria Yedda foi fundamental, insubstituível. Claro, o meu professor, aquele que de fato, em sala de aula, conformou minha formação (e foi meu orientador de mestrado, ao lado de Maria Luiza Marcilio, na USP) como professor de história moderna e contemporânea, foi Francisco Falcon. Mas, a formação como pesquisador e como profissional veio de Maria Yedda.
É neste sentido que reconheço, de forma permanente, sua presença e contribuição imensas para minhas opções profissionais. Por isso mesmo ela vive nestas linhas. Mas, mesmo fora da universidade pública, numa instituição como a FGV, a presença da ditadura era marcante e ameaçadora.
O grande debate do momento era a Reforma Agrária – que no campo teórico, para além dos programas dos partidos e organizações mais ou menos clandestinas, alinhava grandes intelectuais como Caio Prado Junior, José de Souza Martins, Otavio Guilherme Velho, Maria Helena Antuniassi e Maria Nazareth Baudel Wanderley, entre tantos outros. Presenciei, e participei (de forma desavisada!) de grandes embates teóricos, não só contra os, então, considerados modernistas conservadores, como Delfim Netto e Ruy Miller Paiva, mas ainda contra posturas proletarizantes, que consideram a Reforma Agrária uma proposta superada.
Talvez o momento de maior algidez tenha sido a reunião da SBPC de 1978, na USP cercada pela polícia, numa mesa-redonda com Maria Helena Antuniassi, Maria Yedda Linhares e Caio Prado Júnior, a qual se juntou Darcy Ribeiro, recém-chegado ao Brasil. O tema, ainda uma vez, era a Reforma Agrária, e me levou a um embate com Darcy, que num momento de impaciência, tão típico dele, me chamou de "menino", do alto de sua autoridade e de sua vivência... Sérgio (Salomé) Silva, ex-aluno da FnFi e professor da UNICAMP, me consolou afirmando que minha participação havia sido rigorosa e bem documentada... Mas, que diabos eu estava fazendo ali? De qualquer forma, foi memorável... E hoje, somente eu e Antuniassi somos testemunhas dos bastidores. Jamais esquecerei o abraço triplo de Caio, Yedda e Darcy...
No interior do CPDA, no entanto, havia pressões. Avisos que minha presença era considerada "excessiva" e que poderia ser prejudicial à própria Yedda. Na época era membro da TB/Tendência Bolchevique, da IV Internacional, com ampla atuação no Uruguai, Argentina e Brasil, embora sempre fosse uma entidade minoritária no conjunto dos movimentos políticos e, mesmo, do ME. A TB fazia, então, a transição para um partido politico de massas, legal, e voltado para as "reformas democráticas" da ditadura. Mais tarde, a TB iria criar um partido que deveria ser uma frente, a Convergência Socialista, que fundir-se-ia no PT. Neste momento não era mais membro do TB.
Meu primeiro afastamento se dera em razão de "risco de segurança". A "queda" do MEP/ Movimento de Emancipação do Proletariado, do Rio de Janeiro, levando para a prisão de inúmeros amigos, abria brechas de segurança em todas as organizações. Sob brutal tortura, no DOI-CODI da rua Barão de Mesquita, sabíamos que todas as organizações estavam em alto risco. Um tempo antes, um amigo, colega no cursinho (o gentil e leal Pedro Amaral) me avisara que policiais haviam recolhido minha documentação pessoal no RH do colégio onde dava aulas. Isso tinha um significado: abria-se um procedimento de sequestro e prisão.
Os dias de terríveis do inicio dos anos ´70, no IFCS da UFRJ, pareciam voltar. Contudo, continuávamos a trabalhar. Mas, a decisão de sair do país estava tomada.
A qualidade das discussões, debates e dos cursos no CPDA era, então e ainda o são hoje – extremamente sofisticada e de alto nível. Mais tarde, seja em universidades de Berlin ou Paris, não vi nada que fosse, no campo do debate da história agrária e da questão agrária, superior aos debates no Centro de Pós-Graduação em Desenvolvimento Agrário. Os "campesinistas", a partir da leitura de Anton Chayanov, passando por Ester Boserup, e desembocando em autores de peso como José de Souza Martins, da USP, compunham um forte segmento de pensamento no interior do CPDA. A questão central para a história residia na existência de um segmento autônomo camponês num país de origens escravistas. A tese de Ciro Cardoso sobre uma "brecha camponesa" no sistema ( ou "modo de produção escravista colonial") era uma surpresa e uma resposta, que buscávamos comprovar através da pesquisa arquivística. A minha dissertação de mestrado, sobre os camponeses do Sertão do São Francisco com suas terras comunais, era parte militante deste debate. Historiadores como Warren Dean, Sheppard Forman, e Stuart Schwartz iriam contribuir e produzir belas análises da história do Brasil agrário nesta direção. Em todo este debate os anos de estudo da Antropologia, no IFCS, teriam uma contribuição extremamente importante. Além, é claro, de Maria Yedda, Margarida Maria Moura e, mais tarde, Leonilde Medeiros que trabalhariam nesta direção. Havia, é claro, os defensores da tese da proletarização rural, num Brasil que nunca teria tido "camponês" como uma forma social e que passara direto do escravismo colonial para o trabalho assalariado. A tese, em sua origem exposta por Lenin em "As Origens do Capitalismo na Rússia", de 1899, contrapunha-se, naquela época e naquele país, às teses dos "populistas russos", os "narodnics" ( do movimento anarco-componês Narodnaya Volia ). O marxismo brasileiro, desde cedo ( exceto uma pequena fração trotskysta ), assumiu, como era de se esperar, as teses leninistas ( também embasadas no " Die Agrarfrage", "A Questão Agrária", de Karl Kautsky ). Os textos de Caio Pardo Júnior e, mais tarde, a monumental e seminal tese de Fernando Novaes, caminhariam pela mesma trilha, defendendo a tese de um capitalismo comercial, durante o período colonial, e em seguida uma transição lenta, atrasada e dependente para o capitalismo, sob a égide do Colonialismo e do Imperialismo – tudo isso numa época de hegemonia da chamada "teoria da dependência". O "sistema colonial", como Fernando Novaes o descrevia era, desde suas origens capitalista. No campo específico da Questão Agrária no Brasil (com autores de peso como Octavio Guilherme Velho do Museu Nacional/UFRJ e Maria Nazareth Baudel Wanderley, da UNICAMP) o acesso, posse e uso da terra – em suma, a relevância da Reforma Agrária no Brasil moderno – era, sob este ângulo de análise, uma luta equivocada e atrasada, multiplicadora da propriedade, em vez de caminhar em direção de formas mais avançada, "socialistas", da posse e uso da terra. Deste debate, em especial das formas consideradas subalternas e ancilares ao complexo agrário-exportador – ator principal de toda a história do Brasil – foi que surgiu um artigo, de ampla documentação primária, publicado sob o título de "Élevage et marché interne dans le Brésil de l´époque coloniale", numa obra coletiva organizada por François Crouzet [Documento 39]. Tratava-se de destacar, na contramão do pensamento dominante, não só a existência de setores subalternos extremamente populosos e fundamentais para o funcionamento da "plantation" – o que Maria Yedda uma vez chamou "o lado oculto da História do Brasil" - , como ainda registrar aí as origens e a natureza da miséria brasileira. Eram nestes segmentos subalternos da economia agro-exportadora, importantes para sua própria reprodução, enquanto segmentos subjugados e desarticulados tanto no período colonial, quanto no momento de sua desestruturação durante o avanço capitalista no campo (no pós-escravidão), que víamos os vícios de origem da extrema desigualdade social no Brasil . Tal temática, da produção de alimentos, do mercado interno e das origens da miséria no Brasil – que mereceu então forte anátema de Jacob Gorender et alii – acabou constituindo-se, creio eu, na maior contribuição feita pelo grupo da História Agrária do CPDA para a História do Brasil. Além dos livros e teses já citados, uma série de artigos balizaram tal debate, entre os quais "Produção de Alimentos e Trabalho escravo no Brasil" [ Documento 40] e "A Pobreza na História" [ Documento 41], sempre trabalhando nesta mesma direção. Foi no contexto deste debate que Maria Yedda me presenteou com um livro que marcaria profundamente minha formação e minhas opções de trabalho. Tratava-se de "As Origens Sociais e da Ditadura e da Democracia", de Barrington-Moore Jr. Já em seu subtítulo ("Senhores e Camponeses na formação do Mundo Moderno") havia uma ponte, cheia de afrescos e obras de arte, entre as questões do mundo agrário e as formas de poder e a configuração dos regimes políticos modernos. Além disso, como mais tarde o trabalho ( e de certa forma a continuação de Barrington-Moore ) de Theda Skocpol, oferecia as chaves de uma ampla análise de história comparada entre as democracias, a França em evidência, e as ditaduras, no caso especial da Alemanha e do Japão. Toda a construção do livro – as escolhas, a extrema erudição e o método comparado – iriam deixar uma marca profunda em minha formação.
Enquanto discutíamos a "realidade nacional", o Brasil mudava: eram ainda, tempos "memoráveis de nossa história".

6.2 No CPDA e na UFF: história agrária e história moderna.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida)
João Cabral de Mello Neto
O
s dois livros sobre o mundo rural brasileiro, produto do Projeto Pronex Tempo Presente/CPDA/UFRRJ, já referidos, em outro "flashback", foram os últimos trabalhos de fôlego em História Agrária. Claro, escrevemos depois disso, "Terra e Alimentos" [Documento 42]- uma luxuosa e bela edição organizada em 2000 com um grupo de colegas da UFF, através de um convênio com a EMBRAPA ( visando às comemorações dos 500 anos de Descobrimento do Brasil) mas, já então, era um trabalho de divulgação. Foram eles, então, o fechamento de um ciclo, aberto em 1977, com as primeiras pesquisas no Departamento de História Agrária do CPDA/UFRRJ, em torno do agrarismo no Brasil, suas permanências e ruptura.
As relações entre a história agrária e a história moderna e contemporânea não eram, de forma alguma, estanques. Basta lembrar, para comprová-lo, que os melhores e mais importantes trabalhos sobre o mundo rural provinham de historiadores "modernistas", como Jean Meuvret, Ernst Labrousse, Pierre Chaunu ou Le Roy-Ladurie. Muitos deles estavam diretamente envolvidos nos debates sobre a natureza e significado da Revolução Francesa, da revoltas camponesas do século XVII ou, em suma, como Pierre Goubert, sobre a natureza do chamado "Ancien Régime". Assim, os estudos de história agrária, como propostos por Maria Yedda Linhares, desaguavam de forma muito rica nas aulas de História Moderna na UFF. Havia, é claro, uma certa preferência pela História Moderna, em detrimento da História Contemporânea. Como era o caso de Francisco Falcon, que escrevia sua obra-mestra sobre Pombal e o Portugal oitocentista. No meu caso, e impulsionado pelo acordo tácito já referido com João Fragoso, os meus interesses de pesquisa impeliam para o presente, suas instituições e formas de organização do poder, abandonando o "Ancien Régime" na Europa e no Brasil. Um trabalho desta fase, e que não representou nenhuma opção de trabalho mais consistente, foi o livro "Sociedade Feudal" [Documento 42], no qual me utilizei dos amplos acervos bibliográficos e do treinamento obtido na leitura dos textos de história agrária (afinal, a sociedade feudal era modelarmente uma sociedade agrária). O livro teve, e ainda tem, inúmeras edições (quatorze, creio eu) e nenhuma atualização. Além disso, para meu espanto, foi adotado em cursos universitários. Gostaria de citar, ainda, uma pequena excursão, ao lado de Alex Vianna, professor da UFRRJ, ex-orientando brilhante, a organização do volume de memórias Duguay Trouin, a pedido do Arquivo Nacional [Documento 43].
A passagem da história agrária para a história das instituições e do poder no mundo contemporâneo (minha linha de pesquisa no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ) não foi dolorosa. Não era, exatamente, uma ruptura, houve em verdade uma recentralização de objetivos. Como já foi dito, desde o início de minhas pesquisas no CPDA, o poder e suas relações com a sociedade eram o fulcro dos questionamentos. As bases sociais do poder e suas relações com os grupos sociais, incluindo as morfologias que o poder, sempre metaformo, assumia em torno de relações diversas com a sociedade e os grupos sociais, eram as preocupações centrais nas duas teses anteriores e, principalmente, nos primeiros livros publicados. Em "História do Abastecimento: uma questão em questão" [Documento 44] – onde colaborei com o capítulo "O Grande Norte e suas drogas do sertão" (trata-se de um texto fartamente baseado nos documentos da Biblioteca Nacional sobre as crises agrícolas da Amazônia nos séculos XVIII e XIX) -, de 1979, a primeira parceria com Maria Yedda Linhares e, pouco depois, em "História Política do Abastecimento" [Documento 45], nosso segundo trabalho juntos, as relações estado-sociedade eram os elementos centrais de ambos os textos. Pouco depois, com a publicação coletiva do CPDA, "Evolução Recente e Situação Atual da Agricultura Brasileira" [Documento 46] me caberia a tarefa espinhosa (para qual tive que estudar como um monge!), e na qual aprendi como poucas vezes na vida, de "explicar" como a historiografia brasileira "explicou" a agricultura no Brasil.
Dois outros trabalhos dialogaram com tais temáticas. De um lado, um pequeno ( graficamente belo ) livro feito para o SENAC, por ocasião dos 500 Anos do Descobrimento do Brasil [Documento 47] e, outro, do mesmo SENAC, sobre as transformações do pós-Guerra Fria [Documento 48]. Ambos foram de grande contentamento em sua escrita.
Tratava-se de buscar a historiografia assentada, como nos textos clássicos que vinham desde a fundação do campo, com Caio Parado Júnior, Nelson Werneck Sodré, Sérgio Buarque de Holanda, Antônio Cândido, Gilberto Freyre, passando pelos "isebianos" até os "modernos" como José de Souza Martins, Ciro Cardoso e Fernando Novaes trataram a questão agrária no Brasil. Era um tema para lá de polêmico, com profundo enraizamento político e ideológico, colocando grupos e frações políticas em dança de guerra. Mas, era absorvente, empolgante. Com amplos recursos e a rede de infinitas relações de Maria Yedda Linhares trouxemos para a mesa de debates personagens da história da nossa história. Ali estava um reles jovenzinho recém-formado frente a personagens como Caio Prado, Florestan Fernandes, Jocob Gorender, Alice Canabrava, Paula Beiguelman, Warren Dean, Frédéric Mauro, Kátia Mattoso. Pelo Departamento de História Agrária passaram, ainda, "jovens" em meteórica via de ascensão como Alcyr Lenharo, Hebe Castro, Daniel Aarão Reis Filho, João Fragoso e, sempre, os "professores" Francisco Falcon, Ciro Cardoso e, muito mais na UFF do que no CPDA, Fernando Novaes. Creio que, então, todos nós queríamos saber como este Brasil Agrário e suas mazelas – tão presente nas telas de Almeida Júnior, sempre gravadas em suas cores-terra na minha mente – poderia ser superado. Um Brasil que já era história, mas era também tempo presente, resistência e resiliência.
Um resultado inesperado e, creio eu, muito belo de tais debates, vindo somente muitos anos depois, foi o livro "Jean Manzon: Retrato Vivo da Grande Aventura" [Documento 49] embora publicado muito mais tarde guarda uma relação direta com as ideias desenvolvidas ao tempo dos debates no CPDA. Trata-se de um livro organizado pelo amigo Leonel Katz – que fora meu colega no governo Leonel Brizola, na qualidade de secretario de estado de Cultura – reunindo o acervo fotográfico fantástico de Jean Manzon. Suas fotos são um documento das grandes obras, do cotidiano, do então chamado "high society" carioca nos anos ´40 até os anos ´60 do século XX. Por esta razão, e bem menos pelo meu texto, considero o livro – em formato grande, com excelente qualidade gráfica, um belíssimo livro. Devo, ainda, citar alguns trabalhos que considero relevantes, a saber o artigo escrito com Maria Yedda para a Revista Estudos [Documento 50] e o texto do Colóquio Franco-Brasileiro sobre Exclusão Social, onde volto a pensar os tipos excluídos do Brasil. Neste último, em especial, a exclusão, e o verdadeiro genocídio de gays e travestis, foi um tema central [Documento51].
Bem, neste caso não foi um "flashback", mas a oportunidade de um "forward" ligando pontos que esparsos no tempo são, de fato, muito conectados em minha mente.
Por fim, para ser justo com estes tempos, devo registrar um pouco do impacto da UFF na minha formação. O Departamento de História da UFF gozava, então, de grande liberdade de ação e de grande capacidade criativa. Era uma verdadeira ilha de liberdade acadêmica, uma exceção no conjunto do ensino universitário de história do Rio de Janeiro. O Programa de Pós-Graduação em História da UFF (sob direção discreta, mas atuante - e solidária com os professores vitimas da ditadura - de Aidyl de Carvalho Preis) destacou-se desde logo como um promissor centro de pesquisa e ensino. Após uma fase inicial de importação de professores americanos, conseguiu formar um quadro de pesquisadores extremamente criativos e originais (inclusive recuperando professores afastados pela ditadura), tais Maria Yedda Linhares, Eulália Lobo, Nilo Bernardes, Pedro Celso Uchoa Cavalcanti e Ciro Cardoso – tudo isso garantido pela ação incisiva e arrojada da "prata da casa": Francisco Falcon, Ismênia Martins e, mesmo, de José Honório Rodrigues. Coube ao departamento de história da UFF operar o surgimento de uma "segunda geração de historiadores profissionais" brasileiros. Foi através dos cursos, debates e de pesquisas que emergiu aí, em Niterói, uma nova geração extremamente bem formada e que, emancipada da discussão inicial centrada na história econômica e, mil perdões, na "realidade brasileira", pode abrir caminhos novos de investigação, propondo soluções e abordagens extremamente inovadoras. Devemos destacar aqui a flexibilidade, e capacidade de apoiar e incentivar a heterodoxia, desta "primeira geração de historiadores profissionais" – Falcon, Ismênia e os "velhos professores", nas suas relações com os jovens pesquisadores emergentes. Nunca houve imposição de temas, métodos ou abordagens, sendo, ao contrário, saudadas com simpatia e apoio as experimentações propostas pelos seus orientandos.
Foi assim que emergiram novos trabalhos que iriam superar os limites do debate historiográfico anterior.
Ao longo da década de 1980, operou-se uma cesura extremamente interessante. Neste momento a história econômica "tout court" brasileira – derivada da vigorosa história econômico-social de tradição francesa, tingida de marxismo, na qual "os velhos professores" haviam se formado - já mostrava sinais de esgotamento. Tal esgotamento, em grande parte derivado do próprio esgotamento do marxismo acadêmico e político que ocorria concomitantemente e que havia sido, por sua vez, sua fonte teórica. Assim, a própria natureza dos trabalhos desta "segunda geração de historiadores profissionais" optava por uma abordagem profundamente "antropologizante", buscando novas metodologias e outros quadros teóricos para suas análises. O discurso, as diferenças, os grupos sociais e suas representações substituíram largamente as análises estruturalistas anteriores. Novos nomes no cenário historiográfico mundial como Carlo Ginzburg, Thomas Keith, E.P. Thompson – todos sob um véu nebuloso da presença ora de Michel Foucault ora de Antonio Gramsci - informavam as novas abordagens. Podemos destacar neste procedimento, na UFF, os trabalhos de Ronaldo Vainfas, Hebe de Castro, João Fragoso e Manolo Florentino como os melhores exemplos desta "segunda geração de historiadores profissionais do Brasil".
Enquanto isso, na Pós-Graduação da UFF, Ismênia Martins desenvolvia seguidos seminários em torno da História da República, com ênfase na história da República Velha, do movimento operário e do sindicalismo brasileiro. Os seminários de Ismênia Martins eram, ao seu tempo, um dos mais importantes e atualizados grupos de estudos de história política do país. Sua ênfase, marcada pelas leituras de Eric Hobsbaum e Tompson, sobre o mundo do trabalho, representava uma forte renovação sobre a temática da participação política, da organização do trabalho e da experiência sindical. Coube ainda a Ismênia Martins a introdução da história oral como recurso rigoroso para a reconstrução das trajetórias e das estratégias de vida e de participação das classes trabalhadoras no Rio e nas suas cidades industriais entre 1889 e 1930. Mais tarde, a chegada de Eulália Lobo a UFF irá potencializar e ampliar os trabalhos já em curso dirigidos por Ismênia Martins. A larga experiência de Eulália Lobo na história sindical e na história das empresas atrairia um grande número de jovens pesquisadores, consolidando a UFF como um centro renovador de tais estudos.
Muitos dos futuros pesquisadores que viriam a renovar a história política no país participaram dos seminários de história da República Velha dirigidos por Ismênia Martins na UFF ao longo dos anos ´80 , em especial Israel Beloch e Marieta de Moraes Ferreira que viriam a ter um papel central no desenvolvimento da história política com a criação do CPDOC da FGV.


6.3 Os anos na IV Internacional

Em volta do fogo todo mundo abrindo o jogo
Conta o que tem pra contar
Casos e desejos, coisas dessa vida e da outra
Mas nada de assustar
Milton Nascimento


N
o interior do CPDA, no entanto, havia pressões. Avisos que minha presença era considerada "excessiva" e que poderia ser prejudicial à própria Yedda. Na época era membro da TB/Tendência Bolchevique, da IV Internacional, com ampla atuação no Uruguai, Argentina e Brasil, embora sempre fosse uma entidade minoritária em qualquer ambiente de atuação, fosse nas universidades, fosse nas fábricas da Baixada Fluminense ( onde fazíamos a nossa "proletarização" ). A TB fazia, então, a transição para um partido político de massas, legal, e voltado para as "reformas democráticas" da ditadura. Mais tarde, a TB iria criar um partido que deveria se uma "frente socialista", a Convergência Socialista, que, depois de inúmeros passos em falso e, mesmo, sem rumo, fundir-se-ia no PT ( mais tarde boa parte da CS, brigada com a "normalização" do PT como partido do jogo tradicional da polítca brasileira, original sairia para o PSOL e o PSTU ).
Naquele momento, contudo, não era mais membro do TB.
Meu primeiro afastamento se dera em razão de "risco de segurança". A "queda" do MEP/ Movimento de Emancipação do Proletariado, do Rio de Janeiro, levando para a prisão de inúmeros amigos, abria brechas de segurança em todas as organizações. Em virtude da brutal tortura dos militantes, quase todos estudantes da UFRJ e da UFF, no DOI-CODI da rua Barão de Mesquita, sabíamos que todas as organizações estavam em alto risco. Um amigo, colega no cursinho (o gentil e leal Pedro Amaral), me avisara que policiais haviam recolhido minha documentação pessoal no RH do colégio em dava aulas na Baixada Fluminense. Isso tinha um significado: abria-se um procedimento de sequestro e prisão.
Os dias terríveis do inicio dos anos ´70, no IFCS da UFRJ, pareciam voltar.
Assim, resolvi me afastar do CPDA, preocupado com a segurança de Maria Yedda, ainda sob vigilância e para evitar prejudicar os colegas, dependentes de verbas, bolsas e recursos do governo federal. Após pouco mais de uma semana Yedda, acompanhada do Dr. José Linhares, inventou um motivo pouco convincente para ir à minha casa no Grajaú e exigiu toda a verdade. Inteirada, recusou-se em aceitar minha demissão e manteve toda a equipe, após uma memorável reunião do colegiado do CPDA. Jamais esquecerei a solidariedade dos colegas.
Hoje, passados quase quarenta anos parece, não só distante, mas insólito que as coisas fossem assim e que vivêssemos sob permanente riscos de segurança pessoal, a ausência de garantia de empregos e, no limite, com medo de envolver amigos, parentes e colegas em situações que não podíamos explicar. Contudo, era assim.
A própria TB, por sua vez, considerou adequado meu afastamento por um tempo, evitando colocar em risco a organização. Medidas de proteção, incluindo contatos com organizações de direitos humanos no Brasil e no exterior, foram feitas, visando expor os mecanismos que começavam a rodar... Procurava evitar em 1976 e 1977, o máximo possível, os momentos vividos em 1973 e 1974.
Mas tarde voltaria amplamente à ação política com a montagem dos comitês de anistia, que acabaria por ser vitoriosa, na versão imposta pela ditadura, em 1979. O retorno dos professores cassados parta a UFRJ – uma cerimônia inesquecível – foi o ápice de um movimento que pensava, ingenuamente, ser capaz de reatar fios partidos da História. De qualquer forma, me orgulho de ter participado, incluindo aí difícil tarefa de convencer o Dr. Victor Nunes Leal (1914-1985), jurista, ex-ministro cassado e um dos fundadores de nossa sociologia política, a assinar a petição de anistia. Orgulhoso, ciente de seus direitos, Dr. Victor argumentava que não pedira para ser cassado, logo não pediria para ser "anistiado", ainda mais num processo jurídico que fora totalmente espúrio... Em fim, nosso autor de "Coronelismo, enxada e voto" assinou... Ainda hoje penso que o fez bem mais pela expressão de sofrimento desconsolado de um jovem militante que insistia em acampar em seu escritório de advocacia, ao lado do antigo Supremo Tribunal Federal no Rio, do que por seus sentimentos pessoais...













7. A Casa das Almas Sujas


De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
Vinicius de Moraes


C
heguei ao IFCS, da UFRJ, pela primeira vez em 1972, para fazer a inscrição para o vestibular. Tinha 17 anos, fazia teatro, usava cabelos longos, uma barba espessa, militava na periferia de uma organização clandestina, frequentava festivais e namorava Beth Roland. Lembro bem do livro que levava na mochila: "O Lobo da Estepe", de Hermann Hesse. Ou seja, eu era típico!
Fiquei estarrecido.
Era, orgulhoso, um ex-aluno do Colégio Pedro II, com suas regras de limpeza, sua administração rígida, mas proba, com seus laboratórios de idioma – onde eu estudava alemão, francês e inglês com os mais modernos sistemas doados pelo DAAD -, campos de esportes, teatros e amplo refeitório. Agora me deparava com um IFCS que se assemelhava a uma ruína. O que eu não sabia é que se tratava, naquele momento, para além de uma ruína física, de uma ruína moral e intelectual.
O Instituto, antiga FnFi, fora alojado, desde 1943, na "Casa d´Itália", antiga sede, tomada pelos estudantes, da Embaixada de Mussolini no Rio. Com o tratado de restabelecimento das boas relações entre Brasil e Itália, nos pós-Guerra, deu-se a devolução do prédio aos italianos. A FnFi fora deslocada, então, para um velho casarão na rua Marquês de Olinda, em Botafogo. Com a construção do Campus da Ilha do Fundão, em 1967, a FnFi, já IFCS, passou para o antigo prédio da Escola Politécnica ( ou Escola Nacional de Engenharia ) no Largo de São Francisco. Prédio histórico, datado do século XVIII, violado por duas vezes pelas invasões militares, profanado ao meu tempo por esbirros e delatores infiltrados entre os alunos, era um casarão sujo, com andares inteiros trancados e janelas quebradas. Pombos escolhiam o local como cemitério.
Ali beijei Fátima pela primeira vez!
Bem, lá estava eu, em 1973 começando os estudos. Ao clima de criatividade, de liberdade, garantido no Pedro II pela presença de Wandick Londres da Nóbrega – acusado de "reacionário" e "delator", mas em verdade o homem que ajudara e defendera professores de esquerda, como o filosofo Álvaro Vieira Pinto - sucedia-se, nos corredores, uma sensação de medo e de acuação. Eram os tempos do "Decreto 477": a matrícula, no IFCS da UFRJ, era condicionada a uma carta de apresentação de um oficial de alta patente. Antecedia o "Atestado de ideologia" (outra decorrência do AI-5).
Minha família foi buscar um velho militar da reserva para produzir a carta. Era um tempo em que o direito líquido e certo estava engarrafado!
O nível do curso, na História, era fraco, na verdade fraquíssimo. Eu que tinha lido no Colégio Pedro II "A Ilíada", "A Odisseia" – mesmo durante as aulas de grego utilizávamos tais textos para exercícios de gramática grega-, e, ainda, Luís de Camões, Machado de Assis, Eça e os modernos. No IFCS professores, e boa parte dos alunos, pareciam nunca ter lido um livro. Me assustava, em especial, a fragilidade dos professores. Alguns eram de dar dó... A "limpeza ideológica" feita na faculdade entre 1969 e 1970, com o ano sem alunos de 1971, obrigara a "direção" – leia-se, Eremildo Vianna – a "contratar", sem concurso de qualquer tipo, dóceis e incompetentes figuras que tremiam em frente de alunos que, não só sabiam mais, mas que eles mesmos sabiam que os alunos sabiam como eles tinham chegado a tais postos...
O curso era linear e cronológico, sem novidades... Desde logo percebi que os cursos de Ciências Sociais, onde a repressão tinha sido menos eficiente, eram, de longe, muito melhores. Alguns dos professores eram dignos do seu título e, mesmo, iniciadores de uma vasta modernização no campo das ciências sociais, tais como Gilberto Velho, Neyde Sterci, Stella Amorim, Jether Ramalho ("cujo filho era exilado", como murmurávamos então...).
Assim fiz dois semestres de Antropologia Brasileira com Luitgarde Oliveira. Esta foi uma decisão importante. O curso, de forma sistemática, me permitiu uma leitura densa de autores "fundantes" da compreensão do Brasil "antigo", tais como Antonio Candido e seus parceiros de Rio Bonito, Maria Silvia de Carvalho Franco descrevendo, de forma pioneira, os brancos livres e pobres no escravismo, Câmara Cascudo e suas narrativas caboclas, Ralph Della Cava trazendo o "Padim Ciço" – retraduzido por Maria Yedda -, Edison Carneiro e Ruth Landes, com quem me encontrei, pela primeira vez, com a questão do preconceito, do racismo e da exclusão no mundo silencioso dos negros brasileiros no pós-Abolição.
A tradição das ciências sociais, ao contrário da História, estava viva nas mãos destes jovens, e corajosos, professores. Max Weber, Talcott Parsons, Radcliffe-Brow, Malinowski, Marcel Mauss e, mesmo, Marx eram lidos. Stella Amorim, especialista em Weber, era a única – não sem humor! - que enfrentava Eremildo Vianna! Brava e bela mulher! Era ex-aluna e amiga dedicada de Maria Yedda Linhares. Mas, isso eu não sabia então...
Fátima Marschhausen fazia sociologia. Preferi, desde então, sempre que possível, os cursos de ciências sociais. Isso me ajudaria muito, mais tarde, no trabalho com a Questão Agrária, com os camponeses do Sertão do São Francisco, no concurso para a FUNAI... Bem, acho que já contei, em "flashback", esta parte... De qualquer forma, a intensa impregnação das leituras das ciências sociais terá um importante papel na percepção dos interstícios multidisciplinares da História do Tempo Presente.
No curso de História destacavam-se "tipos" de professores. Desde logo, Norma Musco e Neyde Theml – profissionais, buscando manterem-se vestais num tempo ( e no templo) de "neros" e "messalinas". Norma era monitora, mas como Eremildo não dava aulas – melhor para nós!-, ela era responsável pela turma. Era severa, distante, e justa – e, para sua juventude, surpreendentemente bem (in)formada. Outro perfil, bem diferente, era de Neyde Theml, professora de História Grega, para quem a vida na poleis e os gatos eram paixões enraizadas. Das poleis tirara seus ideais, a distinção entre heróis e ímpios. Isso fará diferença. Sempre. Esta, rapidamente se tornou amiga, quase íntima, capaz de distinguir, no "chiaro-oscuro" da época, os personagens da tragédia, no mais encenada como farsa, que se passava ante olhos de uma plateia inerte... Não tinha ilusões sobre Eremildo e os demais... Procurava interceder e impedir o pior... Seu epíteto era "irmã Paula"... Na verdade encobria noções antiquadas, para a época e a instituição, de lealdade e de amizade... Os cursos de ambas eram profissionais, rigorosos...
Havia ainda um outro "tipo", os dois grandes professores que "restavam": Fernando Sgarbi Lima, professor de História Moderna, ex-assistente de Maria Yedda nos anos de 1950 que se salvara da "limpeza ideológica" por estar, então, no processo de criação da UERJ, então UEG. Suas aulas eram eruditas, cultas, com uma bibliografia atualizada, inteiramente francesa e ele mesmo, com sua doçura, assemelhava-se um velho "connaisseur" de vinhos... No momento adequado mostrar-se-ia forte e decido. Na História Contemporânea, exilado em horários inencontráveis, estava Francisco Falcon, salvo da repressão pelo Marques de Pombal... Aí eram os grandes momentos, a erudição, o controle da literatura, as exigências duras e corretas... Com ele entendi o que é ser professor!
E os demais? Bom, era a fragilidade – alvo frequente de chacotas d´O Pasquim" – e de pequenas notas coladas clandestinamente nos quadros de aviso. Tanto mais fracos, tanto mais cruéis e vingativos. Eram estes, os abaixo da mediocridade, que ameaçavam e delatavam, que mantinham suas classes cheias e silenciosas sob a espada do "Decreto 477" . Eram, em verdade, uma lástima, das quais nos envergonhamos pelo vexame do outro... Sobre tudo e todos pairava a delação, o medo e a dificuldade de se relacionar com colegas, que não sabíamos bem se eram, de fato, colegas... Ao menos uma vez isso se passou: no amigo novo, e confidente, descobri um tenente do Cenimar!
De qualquer forma, a universidade não era mais importante, embora fosse rica a discussão com os colegas – no extramuros. Importante eram os grandes companheiros; um, dentre todos, seduzia – E, que viveria dias na barriga do dragão! - com suas histórias das cidades pequenas dos sertões de Minas, o culto a Guimarães Rosa e a paixão por Milton Nascimento. Assolava-nos, é bem verdade, a incerteza e a paranoia de ver em cada colega um inimigo oculto. A ditadura fazia mal. O pior, entretanto, era que ela disseminava o mal. Escondia esbirros nas funções públicas, transformava professores em delatores, colegas em espiões, como um Midas invertido que transformava em chumbo, ou em pior matéria, tudo o que tocava. Mais de três alunos reunidos era punição certa, grupos de estudo eram considerados "coberturas" da subversão e assembleias, nem pensar!
Cabia, contudo, organizar os estudantes. Desde o fechamento do instituto, em 1969, não havia entidade representativa estudantil na UFRJ. Deveríamos, então, montar os centros acadêmicos – organizamos as eleições, as primeiras eleições estudantis da Universidade Federal do Rio de Janeiro, depois do AI-5. Esta era uma tarefa conjunta: o MEP, o MR-8 e a TB se uniam, da forma possível, na tarefa de recriar as entidades representativas dos estudantes.
Fui eleito presidente do Centro Acadêmico, o primeiro presidente pós-AI-5. Bingo! Vitória contra a ditadura, pontos na organização. Mas, o cerco também aumentava: as regras eram claras e duras, nada de abrir a organização para estranhos – mesmo sob tortura dever-se-ia guardar silêncio. Para isso, para resistir à tortura, havia "cursinhos" na organização. Entretanto, havia a garota com quem eu saía, Fátima Marschhausen. Corria risco. O medo me fazia suar. Sabíamos de casos de tortura de familiares do militante preso para obriga-lo a falar. Eu temia por ela. Saíamos separados e nos encontrávamos em lugares marcados. Nossa vida pessoal tinha ponto de segurança. A 'abertura' corria solta, Geisel prometia a democracia, fechava o congresso e editava o 'pacote de abril'.
1975: nos porões morriam Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho. Chico Buarque voltara à cena: duro e poético, cortante como aço fino. A nova paixão era uma variante do teatro: Calabar (O elogio à traição): "A minha tristeza não é feita de angústias/ a minha surpresa é só feita de fatos, de sangue nos olhos e lama nos sapatos...". A canção falava de algo sobre o que todos se calavam – a tortura. Ah, como muitos se enganaram: Chico surgia agora desafiador, uma vez que anunciava o novo enquanto ainda se vivia do velho. Apesar de você, em 1970, no auge do frenesi da Copa, com o milagre brasileiro a esbanjar TVs em cores, fuscas e outras migalhas, dizia que "...o amanhã há de ser um novo dia". No ano seguinte, o rigor tornava-se estilo: sol, suor, sangue, cimento, asfalto. Concreto, concretismo, concretista: "Construção".
No cinema exibia-se "A Queda".
O maior monumento da ditadura, a ponte Rio-Niterói, cobrava um tributo de sangue a dezenas de operários desprotegidos. "Construção" e "A Queda, saudavam todos aqueles cuja morte era um estorvo, um engarrafamento, atrapalhando trânsito, fechando o sábado.
Veio, em fim, sem convite, o encontro com a repressão. Fora o meu professor de História Moderna e Contemporânea, Paulo Werneck da Cruz, membro do CCC, ligado ao grupo de "coronéis linha-dura" formado em torno de Carlos Lacerda, que faria a denúncia, a partir de algo inusitado: uma discussão bibliográfica em sala de aula sobre o malfado debate Maurice Dobb-Paul Sweezy.
Jamais souberam da TB. Por isso fico cismando quando vejo dissertações e teses centradas nos arquivos da repressão – tais arquivos falam, bem mais, dos repressores do que dos reprimidos.
De qualquer forma havia, aí, uma marca, a tara e a herança da FnFi/IFCS/IH: a facilidade, corriqueira, comezinha, de o debate historiográfico derivar para a denúncia.
Riscos, afastamento, duro retorno às aulas... Todos os dias marcados por sobressaltos e cuidados, circuitos alternativos de volta do trabalho. "Licença" da organização, medida de segurança. E então, outros "convites" sem hora marcada... Num deles, no próprio IFCS, Neyde Theml – que tudo sabia da desobediência de Antígona em face do poder – me retirou de sala minutos antes da prisão e, encolhido dentro do seu Fusca, rodamos quase três horas pelo Centro do Rio despistando a repressão. Hoje penso se aquela mulher sabia o que estava fazendo... Não sei dizer. Só sei que, de tanto ler Sófocles, portou-se como Antígona...
Mais tarde, já professor-titular, presenciei alguns alunos e colegas, todos chegados muito depois disso ao IFCS, acusaram Neyde Theml de "colaboração" com Eremildo Vianna – era, isso sim, sua assistente, e isso já bastava para aqueles. Por isso, pela obrigação da palavra, tenho que dizer, tenho que escrever esta história, este tempo, ou não serei jamais historiador.
Também penso, ainda agora, se as pessoas acreditam que gente é sempre a mesma, sempre igual, que nada nunca muda... Lembro-me do "meu" Jean-Paul Sartre, lido nos gramados do Pedro II, e as escolhas como dor, perda, e exercício da liberdade, escolhas que se dão no calor da hora, em todas as horas... Minha Professora-Antígona escolheu, no "Jetztzeit" de Benjamim, um caminho, e creio, os que aderem, delatam e acusam também escolherem seus próprios caminhos
Uma das experiências mais duras no IFCS, posto que estivessem no espaço da indignidade, era a calúnia a difamação, para além da delação política e ideológica, que vigia no IFCS. Maria Yedda fora acusada moralmente (além das acusações políticas), não foi a primeira e nem seria a última vítima. Em momentos diferentes, pessoas como Álvaro Vieira Pinto, Manoel Mauricio de Albuquerque, Nara Saletto tiveram que resistir a campanhas orquestradas de desmoralização e difamação de nível inteiramente pessoal. Mesmo depois da ditadura, pessoas como Yvonne Maggie, foram alvos de tais campanhas pessoais.

Maria Yedda Linhares, no já citado Congresso de Marília, 1961. Ao seu lado o Prof. Francisco Falcon, ao fundo o Professor Pedro Celso Uchoa Cavalcanti, Professor Nilo Garcia ( UEG ) e Professor Jorge Calmon (UFBA).

Talvez, apenas talvez, seja tudo uma herança penosa. Talvez, ainda uma vez, essa fratura moral advenha de todo ódio empregado pelos capatazes a infringir dor e sofrimento aos escravos que ergueram o prédio secular... Talvez, não mais do que isso, tudo isso tenha impregnado as largas parede de pedra, cal e óleo de baleia do IFCS. Todo esse mal, de um verde lodo denso, brota dos séculos e gruda na alma de pessoas. São almas sujas, uma casa de pessoas de almas sujas...

















8. Colégio Pedro II: uma viagem a bordo de uma canção.


O que foi feito amigo
De tudo que a gente sonhou...
O que foi feito da vida
O que foi feito do amor...

Milton Nascimento/Fernando Brant

S
ó o tempo permite alguma tranquilidade, um inesperado acesso de lucidez, para voltarmos ao passado, ainda recente ao menos para mim (com certeza pré-histórico para, por exemplo, meu filho), e relembrarmos tudo que fomos e amamos para, em fim, nos perguntarmos – tal como na canção – "o que foi feito amigo/de tudo que a gente sonhou?". Só então podemos distinguir o relevante do irrelevante e buscar no irrelevante os signos de todo um tempo. Trata-se, de forma humilde, de despir-se da fatiota do historiador, camisa de força, antolhos e grilhões para a compreensão de erros próprios e alheios, de acertos alheios e, um e outro, próprios. Mas, acima de tudo, para compreender os projetos acalentados, e tão queridos, de toda uma geração e deixados irremediavelmente para trás. Talvez fossem, por si mesmos, improváveis, juvenis e utópicos. Talvez. Talvez fossem, isso sim, belos demais para um tempo de guerra, de céu de chumbo e de chuvas ácidas. De qualquer forma, ainda como o poeta e o bardo, seja em fim a hora de rever aqueles tempos e, assim, rever o garoto que lá ficou, a bordo de uma canção, e de quem, ainda hoje, "longe, longe, ouço essa voz/Que o tempo não vai levar..."
Estudava na Escola Técnica Instituto Marques, no subúrbio carioca do Irajá, onde um ambiente de criatividade, malgrado os limites suburbanos do Rio, me dava acesso, pela primeira vez, a uma vasta literatura contemporânea. Ao lado de Machado de Assis, surgiam Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Os jovens professores, em especial de português, literatura, geografia e história, todos oriundos da FnFi/IFCS, nos contavam histórias de "gelar a alma". Ali, conheci em 1966 Ricardo Feghali – do "Roupa Nova" -, que será amigo por toda vida, e sua irmã Jandira, que mais tarde, no PC do B, será minha constante parceira e terá meu voto em inúmeras eleições. Ricardo, um apaixonado por canções, irá me levar para o mundo da música, que para ele virará profissão e para mim, uma paixão.


Na Escola Técnica com Ricardo Feghali (da banda "Roupa Nova"), Jandira Feghali (deputada do PcdoB) e eu. Rio de Janeiro, 1966.


1964: ocorria o golpe militar, era menino. Mas, atento, buscava entender tudo que meus pais, meus tios e meu avô conversavam. Já, de então, me recordo das ruas repletas de soldados, dos tanques ocupando a ponte de acesso à Ilha do Governador, da sede da União Nacional dos Estudantes – UNE invadida e depredada. Meu tio era retirado rapidamente do Rio de Janeiro, meu pai exonerado do Ministério da Educação e Cultura, onde exercera as funções de administrador do Palácio Capanema – o prédio do MEC construído por Le Corbusier, com seus desenhos de Oscar Niemeyer e Lucio Costa, jardins de Burle Marx e azulejos – os quais eu não me cansava de contar cavalos-marinhos – de Portinari. Eu crescia no interior de uma obra de arte, eu virava gente dentro do modernismo brasileiro.
De 1964 até 1968 a sucessão de acontecimentos definiria, claramente, um campo de atuação: éramos contra, todos em casa opunham-se à ditadura. Todos os dias, ao percorrer a Avenida Brasil em direção ao Colégio Pedro II, onde fora admitido logo depois, acompanhava as pichações – Contra o arrocho salarial, Fora gorilas, Abaixo a ditadura! – com um misto de curiosidade e orgulho: uma nova pichação era como um novo gol! Assim, a minha memória coincidia com o próprio golpe, a morte de Kennedy – acompanhada no rádio – e as notícias da revolução em Cuba. Aos poucos, por oposição, me definia como de esquerda, contrário àqueles que controlavam o poder e, mais importante, aos que tornavam possível a degradação de nossa vida econômica e social. O desemprego em família e a imposição de um mercado desregulado lançavam-nos na insegurança social, permitindo-me a clara associação entre ditadura e instabilidade social.
Como uma família que havia se estruturado em torno do mito da educação enquanto modelo de ascensão social, a luta por mais vagas na universidade e o drama dos chamados "excedentes" (estudantes aprovados no vestibular, nos anos ´60, para os quais não havia "vagas suficientes" na universidade) era uma luta nossa. Assim, estudar, ler e amar a cultura parecia medidas claras de garantia social.



8.1 A descoberta do mundo

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm

Fernando Pessoa

H
avia uma compulsão pela arte e pela cultura, e a memória desses anos é principalmente a memória da resistência cultural. De início, a revelação das artes para muito além da fruição, enquanto forma de resistência: os grupos de teatro Arena e Opinião; a montagem da peça Galileu Galilei (peça teatral de Bertold Brecht – 1898/1956 – escrita em 1938 e publicada em 1953, onde a questão da ética e do saber enquanto forma de resistência ao poder é colocada em toda sua amplitude) surgia como um grande impacto. Em seguida "O Rei da Vela" é como um soco: tudo estava ali... ( trata-se da peça de Oswald de Andrade, escrita em 1933 e publica em 1937, encenada pelo Grupo Oficina, sob a direção de José Celso Martinez Correa, em 1967 ). Mais que uma experiência literária – como Galileu Galilei – o "Rei da Vela" foi experiência vivida, existência. A primeira peça de teatro que vi, a primeira vez que entrava num teatro, sozinho e atônito perante um José Celso despudorado e anarquicamente criativo... Foi no Teatro João Caetano, ao lado do IFCS onde eu iria estudar e alguns passos de onde fica hoje meu "escritório", onde escrevo agora e, principalmente, leio, ouço músicas e fico com meus amigos... O coração do Rio. Mas, naquele momento eu não sabia nada disso...
Depois era a hora e a vez de conhecer essa tal de "realidade brasileira", de desvelar a existência de uma vida e uma morte Severina... poema-ópera, poema-rio, oceano e maré, escrito pelo poeta pernambucano João Cabral de Mello Neto, Morte e Vida Severina (publicado pelo Teatro da Universidade Católica de São Paulo, em 1965). O livro fora presente de Augusta Boal, com quem eu conversava quase todas as noites, quando podíamos... A visão do sertão, do sertão "severino", iria deixar uma marca tão forte que só seria purgada na minha dissertação sobre os sertanejos do São Francisco.
Estávamos definitivamente ganhos para a esquerda.
Já em 1968, éramos amantes compulsivos de teatro – é o ano-bomba e, ao mesmo tempo, o ano das casas cheias, das plateias participativas. A censura age brutalmente: Um bonde chamado desejo, de Tennesse Williams, descarrila: a América possível deveria ser próspera, feliz e consumista. Aquela outra América, claustrofóbica e mesquinha, de moral provinciana e pequeno-burguesa, chocava a opinião pública. Da mesma forma, a invasão do Teatro Ruth Escobar, onde estava em cartaz Roda viva – mais uma vez sob a direção de José Celso Martinez Correa -, de Chico Buarque de Holanda, em 1968 -, explicitava os limites da produção cultural e da liberdade de expressão no país.
Nós nos reuníamos no gramado do Colégio Pedro II e cantávamos, com violão, canções que não deveriam cruzar o umbral das salas de aulas. Um amigo trouxe Pedro Pedreiro, uma gravação de 1966, mas que só conheceríamos em 1968, e revelava um outro (será mesmo?) Chico: "Pedro pedreiro, penseiro, esperando o trem..." (mais tarde, no meu primeiro encontro com a repressão, um major do Exército insistiria – ante minha relutância treinada em falar de minhas convicções políticas – para que eu interpretasse Pedro Pedreiro). Pedro espera algo bem maior, que só então tomávamos como um rumo, como nosso norte: Pedro não sabe mas talvez no fundo/Espera alguma coisa mais linda que o mundo/Maior do que o mar/Mas pra que sonhar?" O que será, que será? Que já então todos esperávamos e que poderia ser a coisa mais linda que o mundo?
A ida para o Colégio Pedro II fora uma escolha minha, somente minha. A família era contra: tratava-se de uma escola "visada", onde a repressão agia contra alunos e professores. Havia medo. Escondido de meus pais vendi meu aquário e equipamentos para pagar a inscrição, falsifiquei a assinatura de meu pai e me escrevi. A família viajou e perdi a primeira prova... Fiz um recurso e somente com a prova de geografia e história (lembro bem hoje: "Descreva o papel dos Cem Dias na Carreira de Napoleão") consegui, bastante bem, uma vaga no colégio da elite carioca.


No Colégio Pedro II (Externato Frei Guadalupe), no Rio de Janeiro, em 1969.

No Pedro II discutíamos as relações da poesia com a política, líamos poemas como se fosse um ato político e, então, era exatamente isso: um ato político. Pedro nos lembrava de Severino: "Meu nome é Severino/não tenho outro de pia./Como há muitos Severinos/Que é santo de romaria/deram então de me chamar/ Severino da Maria..." enquanto "Pedro... esperando a morte, ou esperando o dia de voltar para o norte..." anuncia uma coisa mais linda que o mundo. O que será, o que será? Mas, o que nos deslumbrava era a finalização construída por Chico Buarque em forma de harmonia imitativa: "Pedro pedreiro, penseiro, esperando o trem/ Que já vem, que já vem, que já vem...". Era o tempo em que se fazia música como se vai para a guerra: venciam-se batalhas nos auditórios de TV e nos estádios, onde o futebol cedia espaço para as torcidas de Vandré, Milton, Chico.... E isso não era cômico. O cômico em tudo era que o poder se considerava derrotado por uma canção que falava das pessoas que acreditavam nas flores vencendo um canhão!
Mas, também estudávamos. Havia as aulas de alemão e literatura alemã de Marcelo Londres da Nóbrega. As aulas de literatura, sempre com Fernando Pessoa, de Maria Teresa Abelha. E, claro, de História com Regina Morrison. Eram boas. Mas, melhor do que tudo era sair à noite com aquela mulher inteligente, um pouco feia e, claro, mais velha e levemente triste: no teatro era "O Último carro", de João das Neves, e no cinema os filmes de Bergman. Ali havia ousadia, quebra de normas, que nos chocava e atraia. As aulas de literatura brasileira, durante dois anos ministradas por uma jovem professora, Maria Teresa Abelha, eram fantasticamente modernas, até certo ponto técnicas, mas cheias de paixão. Abelha concluía seu doutorado em Letras, sobre Fernando Pessoa. Todas as aulas, os exemplos, partiam de Pessoa. Passamos a conhecer e amar – já que entender estava além de um pequena vida até então vivida – a complexidade dos mundos do mundo do poeta português. Cada poema, cada estrofe e cada verso era uma experiência estética e de vida. Junto, como bônus, vieram Fernando Namora. Mário Sá Carneiro e Florbela Espanca. Ao mesmo tempo, nas aulas do jovem Marcelo Londres da Nóbrega – recém chegada de seu doutorado na Alemanha – tínhamos acesso aos novos poetas alemães, em especial Jürgen Becker e Ana Seghers. Mais tarde leria Christa Wolf e nada entenderia da nostalgia do que nunca fora... Ao menos até caminhar pelas ruas de Berlin nevada e, numa noite na Ópera, tomado de audácia, me dirigir a velha dama da literatura da "República Democrática" ( Alemanha Oriental ) e dizer: "Pardon, Madame! Sind Sie Frau Christa Wollf?". Mas, isso seria depois, muito depois... Mas, então, eu entenderia (e só então) a nostalgia de se perder o que nunca tivéramos... No Colégio Pedro II o mundo se abrira e por uma porta estreita passaram para minha vida personagens que jamais me abandonariam, de Ulisses aos operários socialistas da Berlin calada por Stálin.
Embora tivesse "escapado" da tentação "musical", para total desagrado de Ricardo Feghali, a vivência com Augusta Boal, com todas as "novidades" trazidas por seu irmão, – uma mestra informal, amiga e vizinha do "apartamento de cima" – o choque da montagem do "Rei da Vela" não saia da minha cabeça. No tempo d"O último carro" não havia mais volta. Foi então que formamos um grupo de trabalho. Brincadeira séria no Pedro II que evoluiria para um trabalho consistente e uma possibilidade de carreira, com curso e estreia, dirigido por Ziembinski.
O mundo dos amigos, quase todos do Pedro II, e o tempo dividido "ensaiando e ensaiando", me revelava contradições e tensões que não esperava encontrar. Limites inesperados, fraturas e não-respostas. Por insistência de Jacqueline di Boisi, professora de francês, começara a ler Jean-Paul Sartre – "O existencialismo é um Humanismo" – e as dúvidas se acumulavam.
A canção transformada em arma não podia acolher o pessoal, o íntimo; devia, isso sim, voltar-se para o coletivo e o popular, alcançando, através da tevê, a notoriedade que sempre sonhou o Centro Popular de Cultura – CPC da UNE. A arte era tarefa. Na verdade, os festivais travavam a mesma luta que o CPC concebera como estratégia para a arte militante, engajada, mas que nunca atingira, a não ser para um grupo restrito de universitários da classe média. Nestes anos de inocência, a tevê fez o que nenhum tablado conseguiu – em todo o país todas as famílias viam aqueles jovens desafiar o regime e exigir liberdade.


8.2 A História como teatro!

Há quem diga que eu não sei de nada
Que eu não sou de nada e não peço desculpas
Que eu não tenho culpa, mas que eu dei bobeira
E que Durango Kid quase me pegou
Sérgio Sampaio


O
Show-peça-ato político-performance Opinião, no Rio de Janeiro, em 1964 e 1965, dará a tônica daquilo que seria, daí em diante, o teatro para mim. Eu não fui ao Opinião – uma questão de data de fabricação!- mas poucos anos depois, meus professores de teatro só faziam "teatro-Opinião". A experiência de Augusto Boal e o Teatro de Arena viviam no apartamento de cima e, depois do jantar, me recitavam trechos e cantavam canções. Na verdade, assisti ao processo de criação e aos primeiros ensaios, mesmo não sabendo disso...
No "Opinião", através da presença de João do Vale dava-se a persistência da temática agrária, da ideia-força da desigualdade social, agora emplumada feito "Carcará". Tratava-se de traduzir em arte a persistência da Questão Agrária no Brasil – o tema que seria tônica dos anos no CPDA, só que eu então não fazia ideia que todas aqueles históiras calariam, para sempre, em mim. O latifúndio, e seu corolário o coronelismo, eram, então, a própria encarnação do atraso e da injustiça social. Carcará, do deste nordestino João do Vale (1964), tornar-se-ia ícone do latifúndio, construindo-se uma ave de rapina/ que avoa feito gavião/ em símbolo do latifúndio. Com Carcará – ave-maldade/bicho-valentão - tem-se um quase hino contra a exploração, caracterizada pelo animal-força, aquele que impõe seu império, lá no sertão, pelo medo e crueldade.
Em outro "flashback", de total impenitência a esta altura, devo dizer que as experiências promovidas a partir do show d´Opinião, dirigido exatamente por Augusto Boal – que instigariam a canção, nomearia o teatro e, depois, o jornal de oposição – foi tão impactante, em especial no nosso curso de teatro no Colégio Pedro II, e depois na antiga Fefierj (hoje, Unirio), que no próprio IFCS/IH, refiz, com meus alunos, a estrutura d´Opinião. Em 2008, nas comemorações de 1968 – este ano, como foi dito com gênio, "que nunca acaba" – montamos, somente com alunos de graduação de História e Ciências Sociais, um "pocket show" de canções e textos (enxertos e fragmentos de poesias), ao som de violão e com vozes dos próprios alunos. E, então, tantos anos depois, voltei para os ensaios e, após as aulas (que terminavam por volta das 22:00 horas...) ocupávamos o Salão Nobre do IFCS – o que mesmo que fora palco de tantos elogios ao regime civil-militar – e ensaiávamos, ensaiávamos até terminar, quase de madrugada, em um pequeno bar da Rua do Lavradio, ao lado da Praça Tiradentes. Outras vezes passávamos os domingos no velho casarão do Largo de São Francisco.
O show, denominado "1968 maios" foi um sucesso. Tivemos que repeti-lo inúmeras vezes, no IFCS, na Casa do Saber, em bares de amigos e até na rua, no centro do Rio, colhendo aplausos e adesões de populares.
Não se tratava, em 2008, (e nem aqui) de um "flashback" narrativo ou de nostalgia. Foi uma experiência de "re-vivência" e incrível criatividade para os alunos. E com grandes consequências. Dois deles se perderam para a história, com transferência, ao final do semestre, para Artes Cênicas e o outro para Belas Artes (e foi, ano passado, capa da Vogue!). Bom para eles!

Um momento de pausa nos ensaios de "1968" no Pátio do IFCS.


A cultura, em especial a canção e o teatro, eram desde cedo parte da antiga FnFi, uma tradição que apenas procurei manter. Ao final dos anos´50 o PCB começa a tornar-se uma força hegemônica nos redutos culturais tais como os DA´s da antiga Universidade do Brasil, em especial na FnFi. Em pouco tempo controla o Centro Popular de Cultura, o CPC da UNE, e espalha suas teses sobre a "realidade brasileira" por entre a maioria dos jovens universitários do país. Mesmo sem serem formalmente comunistas, com vinculação ou mesmo simpatia pelo velho Partidão, muitos estavam convencidos da necessidade de mudar as velhas estruturas coloniais, feudais ou simplesmente arcaicas do país. Nessa tarefa – ouvíamos com atenção! - desempenhava a história, e seu conhecimento, um papel central, com sua função, tarefa, de conscientizar o povo – era um tempo de Maiakovsky e de Brecht. A preeminência da história – bem como das demais ciências sociais – como ferramenta de libertação marca um processo efervescente de politização das salas de aulas, dos debates acadêmicos e dos cursos universitários, a ponto tal de transformar as profissões de historiador ou sociólogo em nickname de subversivo.
Uma dose de ingenuidade, alguma boa fé, grande talento e muita coragem levaram jovens artistas, inspirados em Eisenstein, Maiakovski e Brecht, a buscar na nossa história a prova maior que o bom combate valia à pena. Sérgio Ricardo, Carlinhos Lyra, Marcos e Paulo Sérgio Valle, Oduvaldo Vianna Filho, Torquato Neto, Vinicius de Morais, Sidney Miller, Edu Lobo, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, Capinam, entre outros – aos quais se uniriam poetas populares como Zé Ketti e João do Vale, e musas como Nara Leão, Maria Bethânia e Elis Regina marcariam a arrancada da resistência cultural contra a ditadura.
Na sua pedagogia da revolta o artista deveria sacudir a desilusão do povo, desmentir os velhos preconceitos arraigados sobre a passividade e o conformismo, fazer a Louvação da ação, como Gil e Torquato Neto: Louve quem espera sabendo/ Que para melhor esperar/ Procede bem quem não para/ De sempre mais trabalhar/ Que só espera sentado/ Quem se acha conformado... Por fim, o poeta/louvador anuncia o dia mais lindo que virá: Quando enfim se apresentar/ O dia certo e preciso/ De toda a gente cantar/ E assim fiz a louvação... A tarefa do artista acabará por constituir-se em uma crença, credo simples, na poderosa capacidade do próprio povo, iluminado por uma canção, em tomar seu próprio destino nas mãos, como afirma Milton Nascimento em Credo: Tenha fé no nosso povo que ele resiste/ Que ele insiste/ Que ele acorda/ Que ele assusta.
Era tudo isso que nos impelia para o teatro: talvez fossemos, nós mesmos, os personagens de uma peça de teatro.


8.3 O ponto de partida

E a alegria de poder olhar pra trás
E ver que voltaria com você
De novo viver neste imenso salão

Gonzaguinha

Às vezes, em meio a tantas canções, sobrava espaço para o pessoal – para a intimidade e a reflexão existencial -, para um certo desconforto, um arroubo de boemia – que mais tarde, no tempo "desbun" será moda. Isso era assim no Rio. Uma tradição de deixar para ver amanhã, num novo dia, como as coisas ficam. Um culto antigo ao amigo; apego à mesma mesa do bar; uma certeza triste de que até o amor termina. Era incrível como os jovens também podiam ser tristes. Foi assim com Helena, Helena, Helena, de Alberto Land, lamento cantado por Taiguara no Festival Universitário de 1968, na TV Tupi. Era a crônica de um amor adulto, sem floreios, vivido e perdido com fogo e frio, na cama, no relento e na mesa daquele bar. Por um momento todos fizeram uma pausa, calaram-se os fuzis, e a brevidade do amor romântico vencia, daí escorriam as penas da perda. O amor vencia? Ao menos havia espaço para escutar um lamento, misto de samba-canção e Bossa Nova, tingido na tristeza:

Helena, Helena, Helena
Nos meus braços pernoitou
Foi por acaso, por um caso
Ou até mesmo por costume
Pra sentir o meu perfume
Dar amor por um programa
Dar seu corpo num programa
Hoje vai e nem me chama
Um adeus é o que deixou

Depois foi a vez de Amigo é pra essas coisas, de Adir Blanc; relato de uma amizade carioca, de uma sensação que está em todos nós – a consciência de uma perda inevitável. Como Medéia da esquina, Antígone do subúrbio do Méier, sabíamos que todos caminhávamos para um destino, era uma questão de tempo, e pouco importando nossas ações: "A vida é um dilema/Nem sempre vale a pena..." diziam Silvio e Aldir Blanc.
Aos poucos o espaço aberto para dizer a perda individual, uma certa melancolia em choque com os espaços abertos da cidade, se fechará. O coletivo e o popular se imporão através da história de pessoas que amam de uma só forma, a forma certa, "...como os nossos país!" Isso será o politizado, um prolecult nacional, uma moral coletiva do resistente. A única exceção será aberta para a dor velha, já passada e, por isso mesmo, inofensiva. Um espírito de antiquário decidirá o que é bom: tudo que for "de raiz", intacto e não contaminado, virgem em face ao corpo aberto do outro. Um samba que não se faz mais, uma melodia que ninguém dança, um verso alexandrino que já se decorou e esqueceu. Numa mesa de bar, podia-se fazer o que se fazia sempre: falar de política e esquecer as canções.
Entre nós, entretanto, não havia consenso. Insistíamos.Todos discutiam, ora no gramado do Pedro II, ora em frente ao Teatro de Arena: eu, Jorge, Sérgio, Alcir, Anderson, Augusto, Rios, Uwe. Não aceitávamos o critério do antiquário. Não era só a importância da "letra", a poesia, como insistíamos em dizer, nem tampouco da pureza de um samba: nós curtíamos as novas soluções melódicas, a experimentação. Assim, a introdução e finalização instrumental polifônica de Gil para "Domingo no Parque", de 1967, nos parecia genial. Estávamos todos prontos para a experimentação, para o novo. Aí, surgiu no grupo um barato novo: estávamos cantando, batendo papo e um dos caras enrolou um baseado. Ele era mais velho e nós o achávamos muito legal. Vivera na Alemanha e nos Estados Unidos, conhecia toda a música americana de Bob Dylan ao "Creedence". Assistimos a manipulação perfeita, segura e destra do papel de seda; o amaciamento do fumo; a língua rápida a selar o cigarro, quase que mesmerizados. Um a um desistíamos de contar nossas vantagens e guardávamos um silêncio bento, de respeito religioso. Depois de pronto, Gunnar rapidamente guardou o cigarro e, sem lenço e sem documento, ficamos ali enraizados no gramado do Colégio Pedro II.
Já havíamos discutido sobre drogas, todos eram 'liberais'- palavra que ganhara, então, novo significado e ninguém imaginaria sua corrupção semântica posterior -, entretanto ninguém ainda o fizera. Partimos, então, para o que mais gostávamos e mais seguramente fazíamos: discutimos teoricamente o assunto. Todos a favor! Alguém lembrou John Lennon e procuramos cantar Lucy in the sky with diamonds, que John havia composto para a irmã morta. Na verdade, como nos ritos das sociedades secretas, derviches intoxicados por si mesmos, comportava um anagrama: Lucy, L; Sky, S; Diamonds, D = LSD. Tempos depois ouviríamos Sister morphine, dos Stones, no disco "da calça" ( LP Sticky fingers ).
Não sabíamos se era correto, embora já não fosse mais pecado...
O correto ou incorreto não se pautava mais pela moralidade vigente ( bem ao contrário dos tios do Partidão ) e, sim, se a droga era coerente com o enfrentamento da ditadura; em estar no mundo e lutar pela mudança - era possível ser de esquerda e usar drogas ou para mudar o mundo deveríamos permanecer caretas? E sexo... qual sexo? Há uma moral para o desejo? Surgia, então, uma fissura entre dois quereres de mudar o mundo, a diferença sobre o que deveria ser mudado.
Também passávamos por outras "transas": alguns gostavam cada vez mais de rock e pintava com toda a força o Led Zeppelin ( banda surgida em 1968, combinando versos pesados, rock duro e algum misticismo ) e o Creedence Clearwater Revival ( formada em San Francisco, em 1967 ). O teatro continuava, entretanto, uma paixão. Por essa época, 1969-1970, aprofundei os diálogos com Augusta Boal, agora professora do Colégio Pedro II, com quem passamos a discutir mais e mais o teatro. Líamos tudo da lietratura brasileira, de Lins do Rego e Graciliano Ramos até a obra do irmão, Augusto Boal.
Era o Brasil de severinos, lobisomens e de baleias: surgia aí o Sertão brasileiro, imenso, invasor e cruel. Eu ainda não sabia mas, em alguns anos, me perderia nestes sertões e só voltaria com minha tese pronta nas mãos.
Aos poucos ficava sabendo do exílio de alguns e indignado com a tortura de outros.
Em 1969, meu tio partia para o exílio em Moscou e eu perdia um interlocutor que me fazia sentir importante, posto que fazia perguntas e discutia minhas respostas. Meu pai, demitido do MEC, virara taxista. Em setembro, dia quatro, o pessoal sequestrava o embaixador dos Estados Unidos. Costa e Silva agonizava, física e politicamente. Era obra do pessoal Daniel Aarão Reis Filho, amigo e parceiro hoje... Mas, naquela época eu, também, não sabia...
Eu faltara ao evento da década: não fui à Passeata dos Cem Mil. Outro tio ainda estava na cadeia; meu pai temia ("eu ainda era muito jovem!" Como se isso fosse um evidente defeito de fabricação); meu primo apanhara da polícia; o Calabouço – restaurante popular no centro do Rio de Janeiro, frequentado por estudantes - estava fechado. Fechavam o Calabouço e abriam-se os porões da ditadura. Só Sérgio Ricardo ousaria ainda falar: "Cerradas portas do mundo/ Cala boca moço/E decepada a canção/ Cala boca moço/ Cala o peito cala o beiço/ Calabouço/Calabouço..."
Nesse meio tempo, surgia algo incrível – ou melhor, divino, maravilhoso. Desde 1968, Caetano lançava "Tropicália" e "Alegria, Alegria" – o que era isso? Beth Roland, que eu amava, cantava em voz de bossa nova para mim: "A entrada é uma rua antiga, estreita e torta/ E no joelho uma criança sorridente, feia e morta/ Estende a mão!".
Deus meu! Não era uma música ou um poema, era todo uma estética. Antes de Derrida assumir o Abbau, o desconstruir, de Heidegger, Caetano desconstruía a realidade do desenvolvimentismo, enquanto até então só quiséramos transformá-la. Era uma sensação nova: "Caminhando contra o vento/ Sem lenço, sem documento..." Não havia mais dúvida. A estética do coletivo ou o critério do antiquário não tinham mais lugar: Gil, Caetano, Tom Zé, Capinam e Torquato Neto vociferavam contra a mesmice e propunham uma música concreta, povoada de girassóis, a hipérbole das flores e urubus.
Nós nos encontrávamos nas dunas do Píer em Ipanema – as montanhas de areia da Praia de Ipanema surgidas da construção do emissário oceânico em 1970 -, "as dunas da Gal"; e não estávamos sós: lá estava também Caetano, Dina Sfat e o pessoal do MAU, o Movimento Artístico Universitário. Cesinha Costa Filho, Ivan Lins... De costas para a cidade, de frente para o Atlântico sul, do sol, do sal – estava escrito na Pedra do Arpoador - como uma velha tribo indígena, cultuávamos o fogo sagrado, passado solenemente de mão em mão.
Cada vez mais tínhamos a sensação de viver em trânsito, de sermos personagens de "Roda Viva", tudo era rápido demais: "O tempo rodou num instante/ Nas voltas do meu coração". Havia todo um modo ser e estar na vida que nos lançava contra a ditadura e, ao mesmo tempo, nos lançava contra todas as "outras" ditaduras. Era uma cultura informe, nebulosa, povoada bem mais por Sartre e Lacan, por Hesse e o Zen, do que Lênin e Mao. Adivinhávamos naqueles militantes certos e convencidos de suas verdades a mesmice dos homens no poder. A pura desqualificação – o "desbum" – ou a paternal condescendência com que toleravam a "periferia política", que amava lutar contra todas as opressões, não enganava ninguém. O que será, que será, quando chegarem ao poder?
E eu só queria estar "odara", joia rara!
Preferíamos um outro espaço, voltado para experimentação, contra a repetição. Desconfiávamos da Revolução de calça de nycron e camisa "Volta ao Mundo". A intensidade nos envolvia: a desconstrução de Caetano vencia; rompíamos com a ditadura do cabelo... Desde os Beatles - o argh!, era obrigatório, um esconjuro com o bom-mocismo, do qual agora se salvava George Harrison e sua aventura na Índia e John, forever John, com sua nudez branco-europeia a nos assombrar na capa do disco com Yoko Ono, Nós nos obrigávamos aos cabelos longos, Pajens e príncipes valentes de cabelos lisos que mal cabiam em nossa etnia brasileira. Caetano – mestiço brasileiro - nos libertava da mesmice europeizante: os cabelos eram soltos, enrolados, crespos... Por isso, um ano, o último no Pedro II, quase perdido: cabelos só penteados e com brilhantina, exigia a regra do bedel! A rebeldia valeu semanas de protesto solitário e suspensões e, então, o apoio de toda a turma, uma greve. Enfim podia entrar com o cabelo de mestiço que meu código genético me deu!
"Hair"!
Como isso tinha importância e o que enfrentamos por isso! Em casa, o ar de desgosto de pais e tios; a certeza de "que havia algo de errado com esse garoto, talvez drogas, ou algo disfuncional nos hormônios, talvez a masculinidade..." Havia ainda os amigos que ficavam para trás: aqueles que até os 15 ou 16 eram grandes chapas e haviam escolhido (e sobre isso tenho dúvidas) o trabalho no banco, na mecânica ou no armarinho e agora, ao passarmos sob nossos cabelos, nos olhavam com os olhos de sapo. Ainda uma vez: como isso tinha importância! Hoje talvez ninguém mais se lembre. "Hair" era o símbolo de uma época e de uma gente que amava as flores, o flower people, que lutava contra a guerra e a brutalidade. Falava-se em San Francisco. Havia uma canção. Era uma opção de vida. Na montagem brasileira, o desafio da nudez: ficavam nus Sônia Braga, Eduardo Conde, Armando Bogus... Perante o regime só de pelancas, rugas e adiposidades – Deus meu! – eram os corpos expostos do novo. Como eram velhos e feios os donos do poder ( e suas mulheres) – tínhamos sérias dúvidas se, além de sexo, tais homens fizeram alguma vez amor.
"Hair", cabelo, Caetano, urubus em Amaralina: agora era a vez de quebrar o consenso. O apoio doméstico falhava. Era fácil ser contra a ditadura, difícil era ser contra "as" ditaduras.



8.4 A descoberta de ser americano!

El nombre del hombre muerto
Ya no se puede decírlo
Quem sabe? Antes que a definitiva noite
Se espalhe em Latino América
El nombre del hombre es pueblo...
Gil/Capinam


A
América chegava até nós. Era uma América diferente, não mais a América de John Wayne, matador de índios, modelo velho e reprimido de macho paterno. Agora, 1969, era Easy rider, de Dennis Hoper, e Midnight Cowboy, de John Schlesinger: eles diziam tudo o queríamos saber sobre a América. A América era o Brooklin, do Central Park dos jovens queimando seus cartões de alistamento, de San Francisco e do flower´s people. Não sabíamos que era a América de sempre, da sua tradição on the road, de novos Sundance Kid e Jessie James, que agora montavam Harley-Davidsons e percorriam a Rota 66. Das Highways que eu, beatificado, atravessaria em 2007, como me prometera ao sair do Cinema 1, depois de ver "Easy Rider", ainda em 1969. Mas, como outras coisas, eu ainda não sabia...
De qualquer jeito, eram formas novas de solidariedade, uma amizade única e um encontrar-se no caminho. Era o ano de Woodstock, que fazíamos acontecer nas areias de Saquarema, na Praia de Jaconé. Apenas um genérico.
Havia mais, muito mais: tínhamos pela frente os filmes que traziam o momento de ruptura da América, quando a velha sociedade – paradigma de nossos pais – se rendia em face da contestação. Neste momento a grande recusa era The Graduate, o filme de Mike Nichols – com as canções de Simon & Garfunkel – de 1967, passado na mesma Berkeley que se revoltará no ano seguinte pelo "Free Speech". Era também Sidney Pollock, numa "Noite de Desesperados", de 1969, onde se pergunta: Shoot horses, don´t they? Vivíamos esta mesma ambiência, de recusa ao estabelecido, a tudo aquilo que denominávamos de "sistema".
E nós éramos os cavalos.
Aos poucos outras faces da América iam chegando, como no fantástico ano de 1971: Klute – mais uma vez era ela, Jane Fonda -, de Alan Pakula; Carnal Knowlegde, de Mike Nichols e Sunday, Bloody Sunday, de John Schlesinger. Mesmo em face ao Vietnã, não odiávamos a América: amávamos a sua capacidade de dizer a verdade, simples e dura, sobre si mesma.
Contudo, havia outras Américas, Américas que se desvelavam para nós através de suas canções, filmes e da mágica literatura.
Aos poucos o diagnóstico da então chamada, com certa pompa, "realidade brasileira" – mil perdões, Daniel ( Aarão Reis Filho ), mas hoje soa quase cômico, você mesmo o disse no Café Olé e, além disso, Maria Yedda atormentava todos nós com a piada de "Mao e as ovelhas asturianas"! - estender-se-ia ao quadro latino-americano: "Pois este canto latino/ Canto para americano/ E se morre vai menino/ Montado na fome, ufano..." como nos versos de Canto Americano, na parceria de Milton com Ruy Guerra, de 1971. Sem dúvida, o ponto de partida, ainda uma vez, se dava em 1968 e entre os jovens que mais desafiavam o "sistema": Gil, Capinam e Torquato Neto compunham Soy Loco Por Ti, América. Com um arranjo de Rogério Duprat falsamente intimista, na verdade sussurrando o que a censura já não permitia dizer, Caetano Veloso mostra-se cúmplice, quase parceiro, inventando uma linha melódica que busca a nostalgia sul-americana dos anos ´30 e ´40, atualizada por instrumentos novos e por uma temática desafiadoramente subversiva: Como Minerva, Soy Loco Por Ti, América saltava da cabeça de Gil/Torquato/Capinam como projeto pronto, acabado, capaz de fertilizar todas as imaginações. Gênero novo, que se queria latino e americano, síntese de "mambo-cumbia-calipso", misturando o castelhano e o português, tal como nos versos de Gregório de Mattos – amado e querido dos baianos – propunha uma síntese de "nuestra América" somando ritmos, inventando um idioma e evidenciando uma dor comum e despertando a admiração perplexa de poetas como Augusto de Campos. A cristologia do Che entrava pela canção de Gil/Capinam/Torquato, definitivamente no imaginário da esquerda brasileira.
O jornal Versus, editado em São Paulo, assumiria a vanguarda do latinoamericanismo enquanto proposta política unificadora das esquerdas latino-americanas e seria, por bom tempo, a voz da Tendência Bolchevique, a qual eu só via, então, a periferia.
Mercedes Sosa, - la negra com "su eterno tambor" -, tornar-se-ia uma figura amada, que encontraria no Rio, em Berlin e em La Paz. Seus temas, buscados na história – como "Los Pueblos de Gesto Antiguo"; na exploração, como "Drume Negrita" e na esperança em novos tempos, como "Cuando voy al trabajo" casavam à perfeição com nossas próprias denúncias. A adversidade política, numa era das ditaduras sob o sol das Américas, criava as condições de circulação de gente e ideias por toda América – "...num tempo, página infeliz de nossa história / passagem desbotada da nossa memória... /quando seus filhos erravam cegos pelo continente...", como nos versos de Chico Buarque... hippies, alternativos, místicos e curiosos faziam a rota de Santa Cruz de La Sierra demandando as terras míticas – para muitos místicas – dos, ayamaras e quéchuas. No caminho acontecia de um, tudo: encontros com jovens latino-americanos, como nós; os alucinógenos, o ayahuasca; a guerrilha e a floresta, imensa e devoradora. Tudo isso viraria filme, que eu mesmo roteirizaria e produziria, mas então só me prometia... As ditaduras floresciam na América como cogumelos em chão apodrecido, espalhando seus filhos pelo exílio. Brasileiros, no Chile; argentinos e uruguaios, no Brasil; sul-americanos, no México; um pouco de todos, em Cuba, fazia com que fossemos estreitamente latino e americanos.
As ditaduras ao perceberem que haviam feito um belo esforço em irmanar todos os inconformados da latino América inventaram, então, sua cura: a Operação Condor.
Em 1976 Milton gravaria, em Geraes, a canção de Violeta Parra Volver a los 17, em dueto com Mercedes Sosa, anunciando simbolicamente o futuro: "...de par en par la ventana/ se abrio como por encanto!", como o Brasil e seus jovens se abriam às Américas. Ouvia a canção ao lado de Balalé, com seus filhos e papagaios, pouco antes de ser arrancado de nós pela Aids. Seria uma epidemia, a qual o amigo/irmão João Carlos Duarte ( Axé, Eli, ele vive contigo!) seria ceifado. Mas, então, eu ainda não sabia...
No mesmo ano o Grupo Tarancón gravava Violeta Parra e Ataualpa Yupanqui, entre outros compositores latino-americanos. Enquanto Belchior explode, amargo e cortante, gritando num rock de forte acento nordestino: Eu sou apenas um rapaz/ latino-americano, sem dinheiro no banco/ sem parentes importantes/ vindo do interior!




















9. Tempos opacos, descobertas...

Perdi-me dentro de mim,
Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Mário Sá Carneiro


1968
: havia a Junta Militar, o Congresso era fechado e mais pessoas eram presas. No Vietnã, tio Ho derrotava os americanos na ofensiva do Tet, o novo ano lunar. Eu conhecia o mundo zen. Paulo Francis escrevia n'O Pasquim um pungente libelo anti-guerra: "A iniciação de Panthi Mao à democracia" – era o relato do abuso, da violência, do assassinato cometido pelos mariners em My Lai em nome da liberdade. Não havia só solidariedade pelos camponeses do Vietnã, havia admiração e acercamento com a cultura que vinha do Oriente. Primeiro George Harrison com as canções e a cítara de Ravi Shankar em Hai Bangla!; depois as experimentações zen de Lennon e por toda a parte a literatura de Herman Hesse: O lobo da estepe, Demian, Sidarta... que circulava de mão em mão no Pedro II. Nunca fomos tão abertos ao outro, ao diferente. A canção dizia que eram new ages. A era Aquarius!
Eu passava pelo Jangadeiros, um boteco em Ipanema, e via o Carlinhos de Oliveira escrevendo O pavão deslumbrado, seu livro de dor e crônicas, com seu copo de uísque ao lado. No dia seguinte, lia as crônicas escritas com soda cáustica: qual a alquimia que transforma álcool em ácido, de onde vinha tanta dor? Em breve saberia...
Boal, é preso e depois exilado, estabelece-se o silêncio no apartamento de cima; Zé Celso é preso, torturado e exilado. Não acontecem mais as reuniões de teatro no amplo apartamento da rua Uruguai... Na prisão de Julien Beck, o escândalo das drogas; Lane Dale, idem. "Vovó só tem pelanca/ Vovó só tem pelanca...", como na canção d´"Os Mutantes", gritava-se para a ditadura. Paulette será sucesso em Paris!
Aqui surge um divisor, um fosso que nos separa de nossos pais, que tanto amávamos: já sabíamos que o conservadorismo social casava bem com progressismo político.
Vinha a primeira, de outras prisões: no cinema Rian vendo pela quinta vez Woodstock... Nosso panteão de heróis aumentava – a sonoridade lisérgica de Hendrix e, ao mesmo tempo, as baladas suaves de Joan Baez enchiam a noite... Gritos primais de Jane Joplin banhando-se nas águas do Atlântico Sul. Surgia. ao lado do culto do novo Cristo, outros heróis. El Che já não estava só: "El nombre del hombre muerto/ Ya no se puede decirlo". O novo culto é centrado num herói que morre jovem; colocado perante uma escolha muito antiga: a longa vida, segura e medíocre de um funcionário do partido, ou herói a viver na memória de gerações? El Che escolheu o destino dado a Aquiles ou Alexandre – mesmos heróis a quem citei no início desta narrativa, porque eu, então, já sabia...
Em 9 de outubro de 1966, nas selvas da Bolívia, pobre e campesina, "dentro de uma noite veloz", as tropas de um ditador matam um homem e criam um mito. Ao seu lado, numa psicodélica procissão, iam Brian Jones, sempre obsceno e risonho; Hendrix com sua guitarra e Jane Joplins com flores no cabelo... Como na canção nossos heróis morriam de overdose ou tiro...
Para mim, chegava à decisão de que não bastava brincar de teatro, queríamos fazer teatro: com Ziembinski buscava-se a profissionalização – eu fazia laboratórios de Stanislavski e representava Brecht; na peça de estreia, eu fazia o operário que na boca de cena empunhava o fuzil e gritava: Por Juan! Era um teatro didático, que ensinava o bem e o mal, e condenava ao desprezo os que tinham dúvidas e ficavam no meio do caminho. Éramos todos personagens de "Os Fuzis da Senhora Carrara" ( B.Brecht, Die Gewehre der Frau Carrar, 1937 ), que encenávamos no Rio.
Como tinha dúvidas, optara por seguir em frente e tomar a decisão final: primeiro uma longa conversa com alguém que eu não conhecia; me perguntava sobre minha vida, o que eu lera e o que pensava sobre isso e aquilo. Me dera um texto para ler e eu devia discuti-lo na semana seguinte. Não parecia em nada com a adesão a um partido clandestino e, ainda mais, revolucionário. Me lembrava a autoridade e arrogância intelectual de meu professor no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS (mais tarde reencontrei o cara, militante partidário, já médico formado e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, falando em um reunião acadêmica com o mesmo tom professoral com que outrora recrutava membros para o partido). A reunião seguinte era na Igreja... – bem aí estava um subproduto da Igreja e da sua organização canônica. Não, assim não: como aprendera n "'O rei da vela", a única coisa que a Igreja que dá de graça é badalada de sino!
Mais uma tentativa: um papo de igual para igual, uma viagem de olhos vendados num carro, uma casa distante, três dias e duas noites de reuniões – mais um "flashback". Enfim, eu estava dentro! Era a IV Internacional, com Alan Krivine. Impunha-se a rebeldia contra todas as ditaduras, inclusive contra Moscou! Meu contato era o amigo Julinho Tavares, hoje professor na UFF.
O teatro permanecia: eu atuaria, ainda, em "Capitu" e a "Compadecida", com a censura comprando todos os ingressos e fechando a casa. As expectativas diminuíam e as opções por trabalho se impunham: formar a frente de professores, montar o CEP, depois SEPE, como entidade autônoma e infiltrar-se no sindicato dos professores, concorrendo com os velhos (e, por isso, considerados por si mesmos sábios) comunistas. As prisões continuavam, agora ao sair da Cinemateca do MAM, depois de assistir Hiroshima, mon amour, de Alain Resnais deparava com a "dura" de tocaia! De tudo, lembro da raiva; a raiva incontida e transbordante contra a garota da fila da frente que comia pipocas – raios! Onde achara pipocas na Cinemateca do MAM? – enquanto Emanuelle Riva dizia o diálogo, escrito por Marguerite Duras, para Eiji Okada, ela mastigava prazerosamente suas pipocas! A cara dos agentes, esqueci... Será que eles iam ao cinema? O que viam? Bem... era a época do estouro do cinema de Hong-Kong e com certeza adoravam o cinema ( e nada sabiam ) de Bruce Lee – é, não havia papo. Contudo, nada muito difícil acontecia. Era tudo rápido, mesmo quanto doloroso, por enquanto...
A ditadura não lia poesia: Chico partia, Gil partia, Caetano partia... Outros já estavam na estrada: Boal, Vandré, bem... Vandré: o que a vida faz de nós? De Londres, Caetano escrevia para O Pasquim:

Na letra de um dos seus sambas, Chico contrapõe a lua e a televisão, a rua e a sala. Digamos que eu, vivendo na minha séria cultural brasileira, estou na sala, vendo televisão. A minha irmã Carolina está na janela vendo a rua e o meu amigo Chico está na janela vendo a lua. A minha namorada Carolina está no vídeo, eu estou na sala, meu sogro Chico está na rua. Eu estou no vídeo, a minha namorada Carolina está no vídeo e meu inimigo Chico está no vídeo. Eu estou na rua, a minha desconhecida Carolina está na janela e o meu amigo Chico está no vídeo.

Às vezes, ou quase sempre, a vida era assim, não fazia sentido mesmo. Perdíamos pessoas, perdíamos vidas, e o pior, perdíamos amigos – V., quem sabe, quem viu? J. C., o Carneirinho, de barba e cabelo louro encaracolado: eu sei e eu vi, preso, maltratado, enfim levado, com apoio da família – era ao menos uma liberdade -, para uma casa de saúde e submetido a choque e sonoterapia (um tempo depois, alguém me pegou pelo braço, na rua, e disse: - Chico, sou eu! Perplexo eu percebi: ele não sabia, mas não era mais ele!). E. E., o leitor de Guimarães Rosa, mais velho, mais sóbrio, forte e fonte interminável de histórias mineiras, ao lado de quem via filmes de Bergman, e com quem passava as noites na casa da rua Correia Dutra. Fora preso e torturado, humilhado como não se faz com um homem no DOI-CODI da rua Barão de Mesquita. Dias de dor e apreensão ao lado de Nara Saletto, buscando informações e advogado. Quinze dias na barriga do dragão. Na saída, não houve carinho, não houve efusão: silêncio, telefone mudo, a casa com seu jirau de ipê fechada. Que diabo, onde estava E.? Algum tempo depois um bilhete, três linhas, sem endereço, sem telefone: "Chico, eu disse teu nome, tive que dizer. Mas disse que era do MR-8. Assinado E." Logo MR-8, aqueles stalinistas! Agora havia medo, palpável, úmido e pegajoso. Era procurado nos locais de trabalho, os donos de escola eram pressionados a me demitir, alguém me seguia permanentemente. Enfim, um processo no Cenimar... Uma longa entrevista com "especialistas", a oportunidade de provar uma série de coisas a mim mesmo, o medo falseando a voz e passando recibo. A dor não é nada, a dor não existe... Mais, tarde, por vingança, cobriria meu corpo com tatuagens... Mas, então, eu não sabia...
De tudo que sinto falta, o que mais me incomoda é a perda das longas conversas com E., da proximidade e da fala mansa, calma, da mineirice pausada com que me contava histórias. Foi com ele que apreendi a magia das cores: os vermelhos e ocres de Bergman; os amarelos de Kurozawa; o sépia de John Houston... Foi dessa altura que mergulhei num mar calmo e quente, flutuando a alma livre por sobre meu corpo, passageiro de uma canção... Perante a repressão, perante a mim mesmo, perante o gesto dele, me sentia um pequeno rato, atemorizado e feroz – ferocidade transformada em força. Cega. Bruta.
Não havia mais teatro, pouco trabalho e full time na universidade: tarefas de sanar a alma. Resistir aos donos das salas de aula que substituíram os professores era fácil, posto que eram simplesmente burros – Deus meu, como a universidade era burra!. Aqui e ali, na História e nas Ciências Sociais, havia apoio, seriedade e solidariedade. Ouvia-se em murmúrios a história daqueles professores que tinham sido presos, exilados, aposentados. Agora alguns se afastavam de mim. O poder, sempre de terno impecável, barriga proeminente e cabelos tingidos era Eremildo Vianna, o idiota ( Não, não se trata de um personagem de Dostoiévski atingido pela crise existencial – trata-se de um personagem de Elio Gaspari, idiota no sentido nelsonrodriguiniano de se ser idiota! ).
Podia-se tentar começar de novo: reconstruir o núcleo de amigos, estudar juntos. Uma decisão entretanto estava tomada: a história contemporânea. Estava decidido a não ceder, a vingar a perda e a reagir, contra os que destruíam pessoas.
Descobri, então, espaços vazios, pequenas fendas, interstícios de intimidade na noite do Rio de Janeiro. Na sala Corpo e Som, no Museu de Arte Moderna – MAM, víamos João Bosco e "...todas as glórias das lutas inglórias ao longo de nossa história"; na Associação de Servidores Públicos, Gonzaguinha cantava "Página 13", a história de "...um jovem que pensava nisso todo dia – a segurança, o futuro, a garantia da família!" Havia sessão de meia-noite no Cinema 1 – Kurosawa, Bergman, Godard e longos papos, principalmente com Luís Carlos Soares. No fundo das noites do Rio ainda latejava a dor: quem substituiria amigos perdidos? Com que mãos tocaria outros corpos, se no meu corpo ainda vivia o corpo morto do outro?
Pela noite do Rio podia-se caminhar até as três da manhã, assistir o sol nascer no Arpoador e deitar nas areias de Ipanema. Sapos, lobos, corujas povoavam uma selva falsa, animais solitários e arredios, com muitas histórias a contar. Buscava-se a solidariedade dos animais famintos, de todos que além de esquerda eram gauches, mesmo os que não sabiam. Balalé, meu Deus, Balalé morreu! Como é duro se acostumar com uma sucessão de mortes quando se é vivo! Eram vidas famintas, vampiros de olhares ternos e duros, sedentos de calor humano – sós, em meio ao vaivém da cidade. Alguns, misto de coruja e guaxinim de barbas ruivas, ouviam Elis, suspensos nas transversais do tempo, encostados em colunas que sustentavam o nada; a vida contida num engarrafamento. Olhares cansados e carentes, cuidadosamente desinteressados, que impediam e acenavam um "olá, como vai?" Vagar em silêncio pelas ruas vazias, nas noites pegajosas do inverno do Rio, sentar em bancos e contar uma vida por todos já sabida. Começávamos a perceber como simples e cruel era a imposição de um mundo partido entre o bem e o mal; como a forma certa podia ser errada e como 2 e 2 são 5. Cantávamos uma dor não percebida e jogávamos com nossas vidas como se cada ato fosse uma rebelião: "Pena que pena que coisa bonita, diga/ Qual a palavra que nunca foi dita, diga/ Qualquer maneira de amor vale aquela/ Qualquer maneira de amor vale amar/ Qualquer maneira de amor vale a pena".
Caetano, em carta de dezembro de 1969, dizia:

Talvez alguns caras no Brasil tenham querido me aniquilar; talvez tudo tenha acontecido por acaso; mas eu agora quero dizer aquele abraço a quem quer que tenha querido me aniquilar, porque conseguiu. Gil e eu enviamos de Londres aquele abraço para esses caras. Não merecido porque agora sabemos que não era tão difícil assim nos aniquilar. Nós estamos mortos!

Talvez eu tenha morrido naquele momento, resta alguma dúvida. Creio que morreu alguém com vocação para o teatro, mal militante, indisciplinado, descabelado e sem saber direito o que ou quem amar. Talvez, por isso mesmo, de tantas mortes morridas, e outra matada, tenha agora a chance de uma terceira vida.
Anoitecia no Jangadeiros, era Ipanema. Carlinhos de Oliveira, em frente a um copo de uísque, escrevia com ácido uma crônica e eu agora sabia porque.









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