Vozes deturpadas e a escuta sensível: por uma pedagogia dos calabouços do discurso

June 29, 2017 | Autor: Julio Roitberg | Categoria: Fotografia, Fotojornalismo, Leitura De Imagem, Narração
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Vozes deturpadas e a escuta sensível: por uma pedagogia dos calabouços do discurso. Julio Cesar Roitberg

A compreensão de que as palavras o vento as leva me faz aceitar que só vale o que foi registrado, e isto exige de mim a consideração do enorme valor das narrativas, muito além das palavras. Gestuais, fotográficas, escritas: tantas outras vozes, a que me chegam deturpadas, ou não. “Se um retrato é um espelho aberto, é possível lê-lo de alguma maneira coerente?” pergunta Mangueli. Entretanto, mesmo com tanta “incoerência”, é através das imagens que me autorizo, expondo-me. Cabe-nos produzir o que foi gerado pelo nosso esforço. O nosso texto, transformado, devolvendo- nos, através dele, às pessoas, com quem nos constituímos sociáveis. As vozes retratadas nas manifestações populares representam um bom exercício para a escuta sensível: elas compõem uma pedagogia do discurso. Das primeiras manifestações de que me recordo ter participado até a última, muita coisa mudou. Dos panfletos e cartazes, em cartolina, no início dos „80, até os compartilhamentos de fotos com legendas, na atualidade, há um ganho substancial: se antes usávamos os megafones, hoje, à velocidade dos bites, as informações atravessam fronteiras e interconectam, instantaneamente, através de um clique, usuários dos mais distantes lugares. O diferencial reside na escuta sensível. No elemento humano. Entretanto, há algo inquietante nestes tempos de cibercultura, de utilização das mídias móveis, muito além das indagações sobre formação de identidades, consciência de classe. As subjetividades passeiam “entre as determinações do grupo e as hesitações do indivíduo”ii. Torcemos, distorcemos, retorcemos, aplicamos filtros às nossa retinas a fim de adaptar as realidades ao que nos faz sentido. Cabe a lembrança de que “o mundo concreto existe, quer o signifiquemos ou não. O fato de que só temos acesso a esse mundo por meio da linguagem não quer dizer que tudo seja apenas linguagem e não haja nada fora do texto”iii. O comentário, em março de 2012, sobre a postagem de uma foto, de Byron Prujansky, em uma página do Facebook, sobre a “ manifestação contra a comemoração do Clube Militar” ilustra como as imagens online transpassam e recortam (recontando) as nossas narrativas. Como todo a narrativa é ideológica, o texto, que acompanha a fotografia compartilhada, vem acompanhado por palavras com uma grande carga emocional, a que se juntam os gestos, os olhares e os movimentos da fotografia. Como creio ser inaceitável a defesa de qualquer prática ditatorial, como aconteceu nos “anos de chumbo”, também não vejo como não registrar aquele momento (ou qualquer outro!) com total isenção, pois as fotos “cantam”iv . Nossas vozes, porque apaixonadas, desnudam as nossas almas. Se, conforme a socióloga Mira Mateus, “só a luta muda a vida”, nenhuma educação é isenta de responsabilidades, posto que comprometida com a emancipação social. Nela reside a esperança de uma sociedade justa, independente de nossos olhos míopes ou deturpados. Tanto pelas lágrimas derramadas pelas memórias ou lacrimejantes de gases. Nossas vozes roucas, porém, jamais abafadas. Julio Cesar Roitberg, 14/04/2012 i ii

MANGUEL, Alberto. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras , 2009; p. 205 SIMMEL, George. Ques tões funda mentais da sociologia . Rio de Janei ro: Zaha r, 2006; p. 40-42

iii iv

CEVASCO, Ma ria E. Dez li ções sobre estudos cul turais . 2ª edi ção. São Paul o: Boi tempo, 2008; p. 146 CAPUTO, Stela G. A canção da foto. In: lab-edui magem.pro.br/jornais/ed_img/a tual/pdfs/uma _imagem.pdf

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