Walter Hugo Khouri: a coisa da imagem e a preponderância do afeto

May 19, 2017 | Autor: Fernão Ramos | Categoria: Film Theory, Brazilian Studies, Film History, Brazilian Cinema, Cinema Studies
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A coisa da imagem e a preponderância do afeto


Fernão Pessoa Ramos (Professor da Unicamp, autor
de "Cinema Marginal - A Representação em Seu
Limite" e organizador da "Enciclopédia do Cinema
Brasileiro)


Walter Hugo Khouri é um diretor singular, que atravessa a
segunda metade do século XX com uma obra marcadamente pessoal. Dos muitos
traços estruturais que podemos eleger para abordar sua filmografia, talvez
um possa ser destacado: a singularidade de ser paulistano. Khouri é antes
de tudo um cineasta nascido em São Paulo, debatendo-se com as contradições
e o isolamento da metrópole no cenário cultural brasileiro. Nenhuma outra
origem poderia lhe dar densidade suficiente para criar uma obra extensa,
girando em torno de um tema central obsessivo, que passa ao largo das
grandes questões sociais que marcam nosso cinema nos anos 60 e 70. Na obra
do diretor há um grande ausente, chave para a compreensão de sua
singularidade: a questão popular não está no horizonte de seus filmes, nem
aparece como móvel recorrente para seus personagens. Os dilemas provocados
pela má-consciência na representação da cultura popular, atingem
frontalmente a maior parte dos grandes autores do Cinema Brasileiro. Cedo
ou tarde, os cineastas nacionais parecem ter a obrigação de dedicar-se a um
acerto de contas com a vida cultural e social, existente do lado de lá da
fratura social brasileira.
Em Khouri, os dilemas de Marcelo e de outros protagonistas, passam ao
largo deste excelente móvel para a ação dramática. A grande metrópole e o
estilhaçamento das tradições, fornecem-lhe substância para dar corpo à
característica 'blasé' de seus personagens, permitindo que estes possam
evoluir, sem a exasperação existencial gerada pela exclusão social. Os
personagens de Khouri mergulham na vida da metrópole em busca de uma
espécie de afirmação sexual que vai além da conquista. O que move estes
personagens (e, em particular, Marcelo) é o narcisismo masculino. No cinema
de Khouri respiramos o universo da realização masculina, do masculino em
busca reiterada de afirmação. A chave para esta realização (para que a
libido sexual retorne ao ego, narcisicamente satisfeita) é a conquista
sexual da mulher. Mas isto não pode transparecer deste modo, enquanto
busca. O revelar-se, afirmando-se enquanto carência, impediria, na mesma
medida, sua realização. E é neste ponto que aflora o verniz cultural que
cerca Marcelo: os constantes planos com livros -com preferência para
títulos ligados ao existencialismo-; os quadros e esculturas que cercam
suas finas residências; o gosto pelo jazz. Sua filosofia niilista é exposta
nestes momentos, quando a satisfação pela conquista da "presa" feminina
ameaça tomar conta da ação. O niilismo que Marcelo ostenta é uma fachada,
que necessita sustentar um motivo para além do que realmente interessa: a
conquista sexual. Marcelo dedica-se, obsessivamente, à tentar articular uma
combinação, pouco convincente, entre niilismo e avidez sexual. A repetição
da idéia talvez seja o sintoma de sua impossibilidade. O que está em jogo,
como móvel, por detrás desta fachada, é a afirmação narcisista do "Eu"
masculino[1].
O niilismo de Marcelo e o tom 'blasé' que envolve os protagonistas
masculinos khourianos (os femininos, em geral, debatem-se sobre a rejeição
masculina), tomam sua real densidade ao terem por pano de fundo a metrópole
paulista. É no anonimato da cidade, excessivamente grande, na sobreposição
de valores, gerada pela oferta exuberante, que o tom 'blasé' encontra meio
adequado para expressão. O longo monólogo sobre São Paulo que inicia Eros o
Deus do Amor, é significativo desta postura. Eros é um filme retrospectivo
e a cidade/metrópole parece ser cenário feito sob medida para as
recordações/mulheres que aglomeram-se sem sentido nem gravidade. O vazio
khouriano é o vazio das aglomerações urbanas gigantescas, sem raízes
históricas, sem tradições culturais orgânicas, onde os estímulos são tantos
que acabam perdendo a valoração. O tom 'blasé' é o tom próprio de São
Paulo, face ao caleidoscópio cultural que lhe atravessa indiferente, face
aos outros "sonhos felizes de cidade" que constantemente lhe chegam aos
olhos, como Marcelo olha o passar das mulheres[2]. E neste tom podemos
incluir crenças políticas e o deslumbramento provocado pelo populismo nos
anos 60.
Talvez possamos distinguir na filmografia de Khouri três fases
distintas. A primeira surge ligada às conseqüências do declínio da Vera
Cruz e à afirmação do chamado "cinema independente". Tem início com O
Gigante de Pedra (seu primeiro filme, de 1952/53) e possui em Estranho
Encontro (1957) sua realização mais bem acabada, juntamente à Na Garganta
do Diabo (1959), um clássico de Khouri mal conhecido. Estilisticamente,
esta fase caracteriza-se por uma decupagem que não tem a significação de
tempos mortos em seu eixo, marcada pela estrutura de campos/contracampos do
classicismo cinematográfico. A trama narrativa também obedece à
estruturação clássica, na relação entre motivo e ação dramática. A partir
de Noite Vazia (1964) sentimos um flexão em sua obra, sob a influência do
novo cinema europeu dos anos 60. Respiramos Antonioni em obras desta época.
Noite Vazia, Corpo Ardente (1965), o episódio de As Cariocas (1966) e As
Amorosas (1968) são filmes carregados de planos mais extensos e de olhares
sem articulação actante. O quadro da imagem e sua extensão temporal, no
plano, tensionam a representação em busca de um ritmo que estoure a face
mais imediata da ação ficcional. A utilização do recurso do "faux raccord"
(montagem, com salto, fora de continuidade, onde o gesto/ação é repetido em
cascata), liga Khouri às experiências dos "novos" cinemas. A busca do vazio
existencial encontra uma correspondência estilística madura, conformando um
todo autoral consistente. A floração estilística de Noite Vazia é
pressentida pelo próprio autor, em depoimento: "com Noite Vazia houve para
mim um estalo, algo que de repente aconteceu depois de uma longa
espera"[3]. Alguns consideram estes filmes dos anos 60 como seu momento
mais significativo.
A terceira fase da carreira de Khouri é marcada pelo encontro com o
universo temático, estilístico e de produção, do Cinema da
Boca/Pornochanchada. Mais uma vez, a relação com São Paulo surge na
interação com o cinema que caracteriza a cidade. Da Vera Cruz e seus
espólios, passando pelo "Cinema Independente", excluindo o universo
cinemanovista e adentrando fundo na temática da pornochanchada, Khouri
mostra uma filmografia que tem a cara do trajeto do cinema em São Paulo.
Talvez seja um pouco provocativo dizer que Khouri, juntamente com Carlos
Reichenbach, são os dois grandes autores da pornochanchada, gênero tão
desconhecido quanto desprezado. Afirmação provocativa, pois a obra de
Khouri (como a de Reichenbach) não se esgota nesta relação. Mas é nítida a
presença, nos filmes desta fase, de traços estilísticos do gênero.
O exibicionismo do ato sexual talvez seja o primeiro deles. Na
pornochanchada a ação ficcional é interrompida por longos períodos
descritivos (coisa rara na narrativa clássica), para a representação do
sexo. Também em Khouri este tipo de estruturação narrativa descritiva é
bastante comum. Outro elemento recorrente na obra de Khouri (e que
encontramos na pornochanchada) são os "diálogos de papel". Sintomáticos de
um trabalho excessivamente pessoal (ou com pouca elaboração) de roteiro,
trazem frases que soam bem no papel mas que parecem recitadas, mesmo se
pronunciadas pelo melhor dos atores. Deve-se também realçar o grupo
significativo de atores, técnicos e produtores da pornochanchada, que
trabalham em filmes do diretor nos anos 70 e 80[4]. A proximidade fica
ainda mais evidente quando os dilemas da "dialética do comer e do
comido"[5], passam a ocupar o primeiro plano das preocupações de Marcelo e
de outros protagonistas khourianos. O domínio do sexo e pelo sexo, o sexo
na cabeça, fechando o horizonte das preocupações, é uma característica da
obra do diretor, que vai tornando-se cada vez mais dominante no decorrer
dos anos anos 70 e 80. Particularmente, em obras como O Prisioneiro do Sexo
(1979), Convite ao Prazer (1980), Eros o Deus do Amor (1982), Amor Estranho
Amor (1982), Eu (1986), Forever (1988/90), a questão sexual é obsessiva,
sendo explorada em todos seus limites e direções. A linha do incesto é
várias vezes infringida, na evolução, sem retorno, para a realização (nunca
alcançavel e daí a angústia) do narcisismo pleno. O recorrente tema do
incesto aponta para a falha geológica onde está o limite absoluto no
narcissismo de Marcelo. O imenso ego masculino tem sua realização
diretamente relacionada ao domínio sexual (ainda que, às vezes, disfarçado
em postura submissa) sobre o sexo oposto. A mulher aparece em Khouri sempre
modulada por este insaciável ego masculino. O recorte não está longe do
eixo dominante na pornochanchada. Protagonistas femininas em Amor Estranho
Amor, Amor Voraz, Forever, e mesmo em Corpo Ardente, acabam por definir-se
existencialmente em relação ao marido, ao pai, ao amante ou ao filho, mas
nunca em relação à elas mesmas.
O estilo de Khouri é uma pérola única no cinema brasileiro. Em um
cinema dominado pela exasperação e pela ação, a imagem de Khouri é a imagem-
afeto. Khouri deixa a coisa da imagem respirar. Longos afetos delineiam-se
no olhar (no olhar feminino, principalmente). A mulher olha, mas uma pedra
também olha (e como olha a pedra, no jardim, de Paixão Perdida; ou as
pedras das montanhas de Itatiaia). As coisas, no cinema de Khouri, ocupam
um primeiro plano que muitas vezes desbanca a ação. Embora a imagem-afeto
seja dominante na segunda fase de sua carreira, a encontramos novamente em
primeiro plano em filmes como Amor Voraz e Paixão Perdida, constituindo um
traço estilístico estrutural que percorre o conjunto da obra. Amor Voraz
traz a lembrança da imagem animista de Tarkovsky, na representação dos
líquidos e das coisas. O cinema de Khouri é um cinema de olhares, onde o
vazio da ação periodicamente dá lugar à preponderância do afeto.
A imagem-afeto de Khouri é carregada de uma interioridade melancólica
que vibra bacante ao mais leve toque da sexualidade. Filhas, amigas,
amantes, esposas, à todas é necessário afirmar repetidamente que o tédio
tudo circunda. Mas isso vale desde de que elas mantenham-se tesas de
desejos, anuladas em qualquer intuito de negar o império da vontade
masculina. A imagem-afeto khouriana tem o ritmo próprio destas imagens,
deixando respirar o mundo carregado de interioridade que significam. Mas
traz um jogo de cartas marcadas. O desejo tem uma linha reta que não pode
ser assumida (inclusive por ser excessivamente crua). Sua multiplicação
satisfaz, mas é a negação refinada que pode ser estampada. Para além de
dilemas nórdicos ou existencialistas, o cinema de Khouri lida com o
universo das angústias de alcova, bem mais próximo de nosso horizonte
cultural. Esta é a veia que faz vibrar o autor e seus personagens, na
configuração de uma obra marcadamente coesa e autoral.
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[1] Alguns repórteres parecem ter dificuldades em acompanhar as
ambigüidades da obra de Khouri. A afirmação narcissista de Marcelo atinge
seu ápice em Forever (1988/90), na cena do incesto e em sua morte. Morte
que é acompanhada da retomada da temática/personagem Marcelo, em obras
posteriores cronologicamente. Eros, o Deus do Amor(1981) traz uma
interessante experiência narrativa em estilo subjetivo indireto: uma câmera
substitui o personagem que desaparece como corpo/rosto. À esta desaparição
do corpo/rosto Marcelo corresponde o hiperdimensionamento do olhar na
imagética khouriana, abordado adiante. Uma detalhada abordagem da câmera
subjetiva em Eros pode ser encontrada em Pucci, Renato. O Equilíbrio das
Estrelas - filosofia e imagens no cinema de Walter Hugo Khouri. Annablume,
São Paulo, 2001.
[2] Em artigo recente, intitulado "Te Manduco-Não-Manduca" publicado no
Suplemento Mais (Folha de S.Paulo, 29/07/2001), José Miguel Wisnick
desenvolve interessane análise sobre singularidades da MPB paulista no
cenário nacional, tendo a atitude 'blasé' no horizonte (uma "sensibilidade
da insensibilidade").
[3] in Folheto Promocional da "Mostra 80 Anos do Cinema Brasileiro".
Arquivo Cinemateca do MAM.
[4] Um dos melhores comentadores de Khouri, José Mario Ortiz, aponta para
esta relação em "O Cinema Brasileiro Contemporâneo (1970-1987), in Ramos,
Fernão (org.). 'História do Cinema Brasileiro'. Art Editora, São Paulo,
1987.
[5] Sobre a presença desta temática na pornochanchada ver A Dialética do
Comer e do Comido e Outros Babados, artigo de minha autoria publicado na
Revista USP (São Paulo, nº 17, 1993).
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