Ynaiê Dawson (MAM/RJ 2013) [LIVRO Linhas de Viagem - excertos]

July 22, 2017 | Autor: M. Lambert | Categoria: Aesthetics, Photography, Voyage
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Maria de Fátima Lambert

Ynaiê Dawson (MAM/RJ 2013) [LIVRO Linhas de Viagem - excertos]

“O viajante, no seu movimento incessante, vê tudo à distância. Silhuetas recortadas contra a paisagem. Imagens arquitecturais se destacando no horizonte. Pessoas e lugares que pretende encontrar depois da próxima curva. A viagem é produção de simulacros, de um mundo puramente espectral erguido à beira da estrada.1 “Será que o drama contemporâneo não vem do fato de que o desejo de errância tende a ressurgir como substituição, ou contra o compromisso de residência que prevaleceu durante toda a modernidade?”2

Em registo fotográfico, presentificam-se as imagens de existências, encenações e/ou simulacros com tópicos de genuinidade. Assim se demonstram subjectividades de autores nos territórios estéticos da fotografia. Numa fotografia, supostamente, congela-se o tempo e o espaço. Congelam-se as figuras individuadas no tempo pois deixam de ser pessoas e talvez sejam, transitoriamente, personagens. Estas localizam-se ou ausentam-se, consoante os casos e as estratégias estéticas dos autores. Inequívoca é a decisória presença do fotógrafo-viajante, aquele que concretiza acto e obra. Não é verdade? “Em minha opinião, não há nenhum [caminho] mais atraente do que andar no encalço das próprias ideias, tal como o caçador persegue a caça, sem procurar manter um dado caminho.”3

O próprio fotógrafo-viajante torna-se visível – em proposição de auto-retrato – ou oculto, consoante sua intencionalidade ou desejo. Mas é a sua afirmação de sujeito/agente artístico que determina a produção das fotografias que o “antecedem”, o estimulam e o acompanham a posteriori. Através do seu acto, que concebe e concretiza obra, mantém laços com as imagens fotográficas, conferindo-lhes – ad simultaneum – autonomia e projecção. Os fotógrafos1

Nelson Brissac Peixoto – “Miragens”, Cenários em ruínas – a realidade imaginária contemporânea, Lisboa, Gradiva, 2010, p.137 Michel Maffesoli, Sobre o Nomadismo, Rio de Janeiro, Record, 2001, pp.23-24 3 Xavier de Meistre, Viagem à roda do meu quarto, Lisboa, & etc, 2002, p.25 2

viajantes cativam pessoas e lugares, convertendo-os, respectivamente, em figuras/personagens e em paisagens.

“A paisagem não se entrega. O que você vê não se fotografa.”4

As paisagens, com alguma frequência, correspondem a tempos de respiração, quer do pensamento, quer da acção/actividade do fotógrafo. O ritmo da viagem decide os intervalos na paisagem, as consequências de sobrevivência de ideias ou de substâncias. Fragmentos, parcelas ou secções presidem às escolhas espontâneas ou morosamente destinadas pelo autor em jornadas, caminhadas e transportando-se. O veículo em que desloca condiciona o ritmo da captação de imagens; os momentos em que dispõe uma paragem ou a continuidade do seu movimento. As tomadas de vistas são distantes, conforme o viajante as realiza enquanto condutor de um automóvel (p.ex.) ou não. Assim, está-se perante tomadas de vista com ponto de fuga numa estrada ou encarada na lateral, esperando aquilo que se vai descortinando. Se a deslocação ocorre num comboio, a ambiguidade relativa entre a paisagem (aparentemente em movimento) e a ilusão hierática do viajante, gera imagens de uma cativação insustentável e precária. A paisagem que é consequente da mobilidade da viagem anatomofisiológica assume pressupostos diferenciados de uma viagem de indexação psicofisiológica…e assim por diante. A viagem preenche, recheia ou esvai a paisagem, propiciando uma reentrado no si mesmo do fotógrafo-viajante: “A paisagem em volta esvaziada de sentido, reflectindo-se nos meus olhos, brotava dentro de mim…”5

Definitivamente as pessoas alocam-se a lugares – mesmo que estes se possam configurar, teoricamente, enquanto “não-lugares” (seguindo Marc Augé) e, consequentemente, os espaços efectivos transcendem o tempo real, expandindo-se e adquirindo uma simbologia transfiguradora – independentemente de seu índice ou percentualidade documental. “Julgamos que nos libertamos dos lugares que deixamos para trás de nós. Mas o tempo não é o espaço e é o passado que está diante de nós. Deixálo não nos distancia. Todos os dias vamos ao encontro daquilo de que fugimos.” 6

Seja um deambulador, flâneur, Wanderer, peregrino, caminhante… et allie… uma qualquer, entre as distintas tipologias de viajantes…os fotógrafos asseguram para nós a autenticidade, 4

Bernardo de Carvalho, Mongólia, São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p.41, p.115 Yukio Mishima, O templo dourado, Lisboa, Assírio & Alvim, 1985, p.148 6 Carlos Drummond de Andrade – “Mãos dadas”, Antologia Poética, Lisboa, Dom Quixote, 2002, p.149 5

tanto quanto nos garantem uma gestante ilusão. Marcam, estipulam ou estabelecem com rigor – que pode oscilar entre o topográfico e o metafísico - lugares e territórios específicos, onde as confluências de imaginário e real definem o humano, onde paisagem e natureza entrelaçam vidas. “Dans un voyage, on évolue, on change, on se transforme. Et souvent, on rentre et out est annulé par le retour. »7

Nos apontamentos alusivos à Ynaiê Dawson na Série Linhas de Passagem, a fotógrafa refere: Interessa-me a idéia da viagem como processo, como metáfora da própria vida, um trilhar de caminhos sem destino certo, em busca de (auto-) conhecimento. Não importa aqui de onde se partiu e com que destino, importa apenas o estar ‘entre’. O que se descobre ou se revela ao longo desse ‘caminhar’, contínuo interseccionar das paisagens interior e exterior, contínuo fluxo de sensações a nos tomar conta da alma? A fotografia, em si mesma sempre um ‘entre’ – pressupõe um antes e um depois, temporal e espacial – e que por excelência conserva, busca aqui conservar apenas o desejo latente que desencadeou a produção de cada imagem e que continua latente nela, sempre se transformando, renovando, devindo desejo a cada vez que se estabelece um novo contacto entre as fotografias e um sujeito. 8

A concatenação de imagens fotográficas apresentadas, gerem intervalos que correspondem a etapas de jornadas empreendidas pela artista nestes últimos anos. Ao longo de viagens realizadas por diferentes países, ganhando seus destinos (ou inventando-os), os seus excertos de paisagens adquirem novas qualidades quando as fotografias são remontadas. Isso acontece em duas situações específicas: quando em situação expositiva e quando em publicação (catálogo e/ou livro. Salvaguardando as especificidades de uns e outros projetos, as fotografias se organizam através de seus recortes (vistos e dominados em imagem fixa ou vídeo) e, assim, definindo uma nova paisagem. Os movimentos de recomposição do real abordam quer a natureza crua e “vernacular”, quer aspetos que radicam no património edificado e urbano. Num e outro caso, a metodologia e a pragmática coincidem, por assim dizer. As fotografias são apresentadas em formatos e dimensões várias, sendo o formato consentâneo aos conteúdos, acompanhando a ideia de fluidez das linhas da paisagem que a autora consigna. 7

Raymond Depardon, Errance, Paris, Seuil, 2000, p.56. “Nesse contexto, a fotografia é tida não como representação, mas sim expressão. Expressão da multiplicidade de sensações ou intensidades de um sujeito, expressão de uma paisagem interior que encontra-se em constante processo de transformação, sempre a (re)criar-se a partir do apre(e)nder as forças das paisagens.” Ynaiê Dawson, excerto inédito, Julho 2011. 8

Em meados do séc. XX falava-se e dissolviam-se ideias acerca da decadência da paisagem composta, tema tratado, muito em particular por André Lhote, no seu Traité du paysage (1958). A pregnância da paisagem como conteúdo e escopo artístico e estético foi questionada. A paisagem como um dos géneros de pintura, transladou-se para a fotografia, cinema e vídeo, sendo inicialmente imposta por uma conivência / vivência naturalistas. Como “género” adquiriu consistência, na arte e cultura ocidentais, sob os desígnios das inúmeras correntes, movimentos e tendências, tendo servido de campo de exercício para linguagens (então) inovadoras, caso dos Impressionistas, dos Cubistas e, designadamente, de Piet Mondrian, a título de exemplo. Com o pintor holandês a paisagem, em seus elementos constitutivos, promoveu as condições para a estender até à máxima simplificação geométrica, donde a consignação da nova imagem da pintura, a imagem da abstração. Nas últimas décadas do século XX e nas primeiras décadas do séc.XXI, os propósitos das apropriações. revisitações figurativas e representacionais, em alguns autores, retomaram a abordagens picturalizadas e de afinidades singulares por relação à paisagem.

A paisagem é uma conceção inventada do humano, assinalou Anne Cauquelin, na sequência de outras afirmações nesta aceção. As suas origens remetem para a época helenística, detetável na obra de pintores topográficos ou “topiaires”, galgando o arco temporal, atingiu uma de suas culminâncias na pintura holandesa do séc. XVII e, em seguida, nos vedutistas do séc. XVIII. Quando a paisagem não descreve uma ambiência natural (reconhecível e determinada), pode fornecer ou impulsionar a polissemias e proceder a escolhas - parciais e orientadas para um certos ângulos e tópicos, mesmo quando o objectivo seja permitir a representação supostamente exata e documental da natureza. Com o advento da Land Art – nas suas variantes e derivações, das ações e incursões na natureza - a paisagem ganhou a corporalidade do artista que nela mergulha, desliza e perscruta. Por outro lado, o movimento verifica-se biunívoco, pois o artista recebe, precisamente em si, as emanações e existências do pensamento e concreção da paisagem. São pois múltiplas as travessias que na arte e com os artistas acontecem na paisagem, plasmando-a como tal. Bernardo Soares, no Livro do Desassossego, assinalou que: “Toda a paisagem não está em parte nenhuma”. Num leque inesgotável de particularidades e incidências, a paisagem pode

converter-se, mesmo, em algo que pertença a “sítio/lugar nenhum”, mostrando-se desencarnada, reveladora da iconoclastia antropológica vivida. Tal assunção, a meu ver, não lhe retira identidade, pelo contrário, fá-la aceder a uma plataforma quase ontológica, sem descurar o real. Esta convição de paisagem acontecerá quando o artista/autor decide internalizá-la e devolve-la, num processo quase autofágico, presentificando-a, todavia e ainda, a outrem. A incursão na paisagem (assim) estética reflete uma intencionalidade definitiva, pretendendo uma aproximação por via de “requalificação” filosófica, da crítica histórica da pintura (incidindo sobre si mesma), tendo significado, também, um retomar, de propriedade autoral, quer na própria pintura, quer na fotografia. Eric Corne designou quanto a: “paisagem pintada é subordinada à realidade humana.”9

No panorama filosófico e iconográfico europeu, a paisagem – ab initio – convoca a figura dos eremitas – atenda-se, p.ex. às representações de Joachim Patinir, relativas a S. Jerónimo ou a S. Cristovão. De certo modo, talvez alguns fotógrafos-viajantes se situem um pouco… na atualizada categoria de eremitas - estéticos, antropológicos, sociológicos ou ideológicos. As reflexões que Ynaiê Dawson procurou em autores emblemáticos da filosofia, sociologia, estética e literatura precisavam seu espelhamento nos atos de conceber as viagens e, obvio, de as concretizar. [De várias conversas com Ynaiê, por motivos de sua investigação, surgiu precisamente a proposta, que me foi endereçada, para que esta curadoria fosse delineada.] Atendendo à história e estética da fotografia no séc. XX, depara-se com casos paradigmáticos de fotógrafos que desenvolveram viagens, com um ritmo quase compulsivo, sendo os produtos de suas deslocações, permanências e trânsito consubstancializados em fotografias incomparáveis. Entre os muitos autores que se poderiam mencionar, reduziria a citação a Raymond Depardon, Bernard Plossu, Luc Delahaye… As motivações para a viagem prendem-se com antecedentes e contextos diversificados que se relacionam nalguns casos com a tradição de fotógrafo em cenários de conflito, fotografia mais diretamente documental ou projetos mais pessoalizados e auto-identitários. Se bem que, a meu ver, todos projetos fotográficos são, em certa escala e enfoque, de vertente auto-identitária versus auto-gnósica, tanto quanto de cariz societário. Lembro Sobre a relação das Artes Plásticas com a Natureza de F.W.J. Schelling e o quanto nele reside e é priorizada a concatenação entre a Filosofia da Natureza e a Filosofia da Identidade.

9

Eric Corne, Paisagens oblíquas, Lisboa, Museu Berardo, 2009, p.10

Com frequência os fotógrafos publicam livros com imagens fotográficas associadas a narrativas e/ou reflexões aprofundadas sobre os seus projetos, permitindo assim a um público mais vasto o conhecimento de suas fundamentações, ideias e realizações em obra. La quête du « lieu acceptable » est la quête du « moi acceptable ». C’est à dire d’une vie assumée comme sienne. L’homme qui s’exprime ainsi est un voyageur, un nomade, un photographe, un cinéaste etc. Mais d’abord un individu qui se cherche et qui ne trouve pas. Ou plutôt qui définit un angle, un cadre, un sujet (la route), une perspective, celle du chemin justement. 10

A busca de lugares, passíveis de serem denominados, quanto eventualmente “reconhecidos” pela vida do espectador, quase se projecta naqueles lugares (aparentemente) anónimos, propostos pelo fotógrafo. Promovendo extrapolações geográficas que galgam países e regiões…o “exotismo” adentro de uma paisagem portuguesa ou de uma qualquer e outra radicação, providencia, transforma e concretiza, de modo intenso, a ânsia de viagem de e para um público – doseando ou expandindo seus desejos ou demandas. Ou seja, e podendo aplicar-se a uma certa teorização da (por assim a designar) acção dos fotógrafos-viajantes, entendo como um dos denominadores comuns entre os 6 casos patentes (e em muitos outros que poderia referir) a constatação de certa gula de imagens em devir, convertidas em potenciais alvos de fixação por parte de um fotógrafo-autor. Ao longo do friso imaginário que – para mim – o ver os diptícos implica, confrontam-se aproximações e afastamentos, detalhes, pormenores e dissidências antropológicas e societárias que a poiésis subjacente, sabe ser coerente…, pois a vida, o mundo se constituem a partir de dissemelhanças, de similitudes, de ausências ontológicas mesmo quando todo aquele “material” que se converte em visibilidade aparentemente expandida, cujos conteúdos semânticos viabilizam campos perceptivos e argumentativos infindos. A decisão de “enxergar” na imagem fotográfica determinado fragmento do suposto “real” surge conotado com a circunstância do artista (lembre-se Ortega y Gasset). Talvez quando se viaja, se permaneça no mesmo “lugar”, pensando com Guimarães Rosa: “Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.”11

Maria de Fátima Lambert > Lx 2010/São Paulo/Porto 2013 10 11

« Rêves d’errances » - Pierre Givodan in Raymond Dépardon, Errance, Paris, Seuil, 2000, p.181. João Guimarães Rosa - “A terceira margem do rio”, Primeiras Estórias, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, (1962), 2004, p.80

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