Zoneamento ambiental: Avaliação de um instrumento sociotécnico para políticas públicas

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Zoneamento ambiental: Avaliação de um instrumento sociotécnico para políticas públicas DÉBERSON FERREIRA JESUS1

Introdução A crise ambiental ofereceu ao mundo nos últimos 40 anos uma crítica à degradação ambiental gerada pelo progresso econômico, e de forma mais generalizada pela racionalidade da modernidade. Neste ínterim, começou no campo da construção racional da sociedade o imperativo de um futuro sustentável através da preservação ambiental, do repensar do homem sobre suas ações e consequências a humanidade e as gerações futuras. Paralelamente ganha força o movimento ambientalista em amplitude internacional, entendidos os pressupostos de que os riscos ambientais são de produção local e distribuição global, provocando mudanças nas demandas da sociedade. A realidade na sociedade contemporânea que Beck (1997, 2010) e Giddens (1997, 2010) conceituam como sociedade de risco é marcada pelos conflitos e controvérsias socioambientais, intrinsecamente envoltas as discussões de defesa da humanidade, do planeta, e das futuras gerações. Os riscos naturais e ambientais, os riscos tecnológicos, os ligados à saúde, se exprimem espacialmente por meio de zoneamentos. Assinalar o risco em um mapa equivale 1

Licenciado em Sociologia, Bacharel em Ciência Política e Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política (PPGSP-UFSC). Pesquisador do Instituto de Pesquisa em Riscos e sustentabilidade (IRISUFSC). Florianópolis, SC, Brasil. Email: [email protected].

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a “asseverar o risco” em determinado território. Zoneamentos e a cartografia que o acompanham constituem a base de uma política de prevenção, vedação, restrições e alternativas de exploração de determinado espaço. O zoneamento define lugares em que há risco elevado, em que a ocupação deve ser regulamentada (ás vezes proibida), e outros em que o risco é menor ou mesmo está ausente. Nas palavras de Vreyet (2007), “ao apresentar um zoneamento ambiental, o mapa confere ao risco um caráter objetivo”. Produzir reflexões relevantes para entender problemas relacionados à inter-relação entre homem, política e meio ambiente é fundamental para a construção e avaliação de políticas públicas ambientais com vistas à utilização de constructos sociotécnicos como zoneamentos. A aplicação de métodos e técnicas de análise e avaliação de riscos pelos peritos, a cada dia ocupa mais espaço no cenário mundial de constituição, mediação e avaliação de políticas públicas, com o objetivo de embasar a tomada de decisões pelos agentes políticos, de forma a minimizar ou prevenir riscos de mercado, financeiros, de produção, políticos e sobre tudo às questões relacionadas à segurança e ao meio ambiente. Este é o caso histórico de zoneamento ambiental no Brasil, cujo desenho das políticas públicas ambientais e as regras que regem suas decisões, elaboração e efetivação, também influenciam os resultados dos conflitos inerentes às decisões sobre a política pública. Em nossa perspectiva construcionista: “o que passa a ser socialmente considerado um problema ambiental não implica meramente em uma leitura imparcial e neutra de um fenômeno real ou uma referência a fatos objetivos sobre a natureza, mas se trata de demandas construídas socialmente” (Guivant, 2002:73). O objetivo do artigo é discutir os zoneamentos ambientais enquanto instrumento sociotécnico na gestão de políticas pública. Discute-se as correlações históricas e políticas entre o conceito de zoneamento ambiental com a implementação de políticas públicas, planejamento, normas de controle, ocupação do território e uso dos recursos naturais. Pretende-se um trabalho de caráter exploratório qualitativo. Propõe-se uma reflexão teórica sociopolítica sobre o tema, sua lógica enquanto instrumento técnico científico da política nacional de meio ambiente e de gestão territorial. Este ensaio problematiza a elaboração, decisão política, e efetivação das políticas públicas baseadas no 2

zoneamento com consequência proibitiva enquanto instrumento cuja finalidade seria auxiliar a formulação de políticas e estratégias de desenvolvimento de um determinado território. Procura-se evidenciar através do conceito e marcos regulatório sobre zoneamento como os constructos sociotécnicos, em meio a controvérsias, podem fornecer os raciocínios que motivam as agências públicas, agentes do governo, representantes políticos, cientistas, grupos de protesto a determinada política pública. Esta abordagem visa proporcionar um entendimento construcionista dos fundamentos das políticas públicas ambientais através de zoneamento em seu contexto sociopolítico. Para a elaboração deste trabalho foi feita uma revisão da bibliográfica sobre os temas e uma analise documental dos atos normativos oficiais do governo federal do Brasil através do Sistema de Consulta à Legislação (SIGLEGIS) 2 utilizando a palavra-chave “zoneamento”. Foram analisados 246 Atos Normativos, dentre os quais: 118 Decretos, o 1º em 1955 e último em 2012, 89 Medidas Provisórias, 1º 1997 e última em 2012; 37 Leis Ordinárias 1º 1962 e última em 2013; um Decreto-Lei de 1987 e uma Lei Complementar de 2011. Muitas informações foram adquiridas através dos sítios oficiais na internet dos ministérios do Meio Ambiente (MMA) e da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA) do governo brasileiro.3 Em um primeiro momento abordaremos a construção histórica que enquadrou zoneamento ambiental como política pública e na sequência argumenta-se criticamente através das controvérsias, riscos, princípios, pressupostos e vinculações, o enquadramento do zoneamento ambiental como política pública regulatória.

Zoneamento ambiental como norteador de políticas públicas ambientais no Brasil Antes de proceder à discussão histórica, política e sociológica sobre zoneamento enquanto instrumento sociotécnico norteador de política pública, carece nos esclarecer a 2 3

Disponível em: Acesso em julho de 2013. Disponível em: e . Acesso em julho de 2013.

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abordagem dos conceitos e correlações intrínsecas de políticas públicas e zoneamento ambiental. Segundo Celina Souza (2006) o pressuposto analítico que regeu a constituição e a consolidação dos estudos sobre políticas públicas é o de que aquilo que o governo faz ou deixa de fazer é passível de ser (a) formulado cientificamente e (b) analisado por pesquisadores independentes. A autora nos elucida que do ponto de vista teórico-conceitual, a política pública em geral e a política social em particular são campos multidisciplinares, e seu foco está nas explicações sobre a natureza da política pública e seus processos. (...) As políticas públicas repercutem na economia e nas sociedades, daí por que qualquer teoria da política pública precisa também explicar as inter-relações entre Estado, política, economia e sociedade. (Souza, 2006:26)

Baseado nas conclusões de Souza (2006) entende-se a política pública como o campo do conhecimento que busca simultaneamente “colocar o governo em ação” e “analisar essa ação”. Segundo Laswell, (1936 apud Souza, 2006) os estudos de decisões e análises sobre política pública implicam responder às seguintes questões: quem ganha o quê? Por quê? E que diferença faz? Neste estudo, partilha-se desde entendimento como fio condutor. Importante distinguir zoneamento de zoneamento ambiental. Zoneamento é toda setorização espacial, ou seja, qualquer ato ou efeito de zonar, dividir ou distribuir uma área em zonas individuais. Por exemplo: zoneamento eleitoral, zoneamento acústico etc. Já zoneamento ambiental é um conceito que determina uma setorização territorial, de acordo com as diversas vocações e finalidades de uma determinada área, com o objetivo de potencializar o seu uso sem comprometer o meio ambiente, suportada por pressupostos e princípios filosóficos, políticos, econômicos e sociológicos, tais como a função socioambiental da propriedade, da prevenção, da precaução, do poluidor-pagador, do usuário-pagador, da participação informada, do acesso equitativo, da integração, do desenvolvimento sustentável entre outros. Em um zoneamento ambiental, para a classificação e definição de setores ou zonas e seus respectivos usos, a organização das informações espaciais deve considerar fatores de

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ordem física, territorial e cultural. Os fatores de ordem física são dentre outros: rocha, solo, relevo, clima, vegetação, hidrografia e infra-estrutura; os fatores de ordem territorial dentre outros são: economia, política, organização social e cultura. Zoneamento ambiental dever ser entendido como instrumento sociotécnico que a partir da definição de setores ou zonas, instituem objetivos e normas específicas, com o propósito de proporcionar os meios e as condições para que todos os objetivos econômicos, sociais, ecológicos e políticos possam ser alcançados de forma mais eficaz. Desde a década de 1960 que o ordenamento territorial na forma de zoneamento ambiental está na agenda política do país. O termo foi introduzido a partir das discussões em função da necessidade de regularização da situação fundiária, do crédito rural e do melhor aproveitamento e desenvolvimento regional do ponto de vista ecológico e econômico, a fim de melhor orientar as atividades agrícolas. Zoneamento aparece pela 1º vez no decreto nº 41.063 de 27/02/1957 que aprova o Regimento do Departamento Nacional da Produção Vegetal, do Ministério da Agricultura, Indicando como função de uma de suas superintendências a competência de estudar assuntos relativos à conservação do solo e da água, irrigação, drenagem e ocupação agrícola das terras, mecanização agrícola e execução de projetos técnicos, cabendo-lhe, no tocante a estudos e projetos técnicos: “estudar o zoneamento das regiões, do ponto de vista ecológico e econômico, a fim de melhor orientar a execução de práticas agrícolas preferenciais, consoante às condições técnicas exigidas para casa caso”. No Estatuto da Terra (Lei n.º 4.504 de 30/11/1964) 4 e na Lei do Crédito Rural (Lei nº 4.829, de 05/11/1965) o zoneamento foi indicado como um dos instrumentos de planejamento para subsidiar ações da Reforma Agrária e determinar os meios adequados de seleção e prioridade na distribuição do crédito rural respectivamente. Em 1965 com o “novo Código Florestal” (Lei nº 4.771, de 15/09/1965) zoneamento aparece já acompanhado dos adjetivos ecológico e econômico, e é apresentado como instrumento técnico normativo de formulação de políticas públicas ambientais por 4

Ver ainda, com o intuito de regulamentar as diretrizes do Estatuto da Terra para a reforma agrária utilizando do zoneamento como instrumento técnico os Decretos nº 55.891 e nº 55.889, de 31 de março de 1965; nº 65.130, de 10 de setembro de 1969 e nº 68.153, de 1º de fevereiro de 1971.

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força da Lei. O código instituiu o zoneamento ecológico-econômmico e outras categorias de zoneamento ambiental como critério para estabelecer a localização de uma reserva legal em área particular ou pública e consequentemente as áreas de florestas suscetíveis de supressão (desmatamento). Instituiu também que o poder executivo, se for indicado por zoneamento ecológico-econômico e por zoneamento agrícola, desde que ouvidos o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), o Ministério do Meio Ambiente (MMA) e o Ministério da Agricultura e do Abastecimento (MAA), poderia: reduzir, para fins de recomposição, a reserva legal, na Amazônia Legal, para até cinquenta por cento da propriedade, excluídas, em qualquer caso, as Áreas de Preservação Permanente (APP), os ecótonos, os sítios e ecossistemas especialmente protegidos, os locais de expressiva biodiversidade e os corredores ecológicos; e ampliar as áreas de reserva legal, em até cinquenta por cento dos índices previstos no Código, em todo o território nacional. A Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), no seu Art. 9º inciso II, com o objetivo de preservar, melhorar e recuperar a qualidade ambiental estabeleceu, entre seus instrumentos de execução, o zoneamento ambiental, posteriormente regulamentado sob a denominação de zoneamento ecológico-econômico (ZEE) e também previsto no Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (lei federal nº 7.661/1988) como instrumento de gestão da zona costeira. Esta normatividade sociotécnica relativamente abstrata que só veio a ser regulamentada quase 21 anos depois pelo Decreto 4.297 de 10 julho de 2002 estabelecendo critérios para o Zoneamento ambiental. Em março de 1990, o Governo Collor, por meio da medida provisória nº 150/1990, depois convertida na lei federal nº 8.028/1990, criou a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) como órgão de assistência direta e imediata ao Presidente da República. Entre a medida provisória e sua conversão em lei, foi instituído o decreto federal nº 99.193/1990, dispondo sobre o ZEE. Um Grupo de Trabalho foi instituído pelo Presidente da República com o encargo de conhecer e analisar os trabalhos de ZEE existentes, propondo, no prazo de 90 dias, as medidas necessárias para agilizar sua execução, com prioridade para a Amazônia Legal. 6

Dentre as conclusões do Grupo de Trabalho, foram recomendados trabalhos como o diagnóstico ambiental da Amazônia Legal, o ZEE de áreas prioritárias e os estudos de casos em áreas críticas e de relevante significado ecológico, social e econômico. O Grupo de Trabalho também recomendou a criação de uma Comissão Coordenadora com o objetivo de orientar a execução do ZEE no território nacional - CCZEE, criada pelo decreto n.º 99.540, de 21 de setembro de 1990, tendo a SAE como braço executivo na coordenação. Em 1991, o Governo Federal, por meio da CCZEE e da SAE, criou um Programa de Zoneamento para a Amazônia Legal (PZEEAL), justificado pela importância de um conhecimento criterioso e aprofundado de seus espaços intra-regionais. Todos os estados da Amazônia criaram Comissões Estaduais de ZEE e firmaram convênios com a SAE, que descentralizou recursos para a implantação de laboratórios de geoprocessamento. O Programa Nacional de Gerenciamento Costeiro, que desde o início da década de 1980 desenvolvia propostas de zoneamento na área costeira, estabeleceu uma metodologia de zoneamento, posteriormente revisada, adaptada e consolidada. Entre 1994 e 1996, foi elaborado um Macrodiagnóstico da Zona Costeira na Escala da União, cuja revisão foi concluída em 2008, dando origem ao Macrodiagnóstico da Zona Costeira e Marinha do Brasil. Ainda em 1995, a SAE atentou para a necessidade de definir mais claramente os procedimentos para elaboração do ZEE. Essa necessidade foi despertada pelos zoneamentos já em processo de execução na Amazônia Legal e, principalmente, para orientar mais efetivamente as ações de zoneamento apoiadas pelo Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais (PPG7). Em parceria com a Secretaria de Coordenação da Amazônia do Ministério do Meio Ambiente, foram solicitadas, por meio de convite, propostas de metodologia de zoneamento a diversos especialistas. Foi eleita a proposta do Laboratório de Gestão Territorial da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LAGET/UFRJ), posta em debate e publicada em 1997, no documento “Detalhamento da Metodologia para Execução do Zoneamento Ecológico-Econômico pelos Estados da Amazônia Legal”. (Ver Becker & Egler, 1996).

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O segundo Governo de Fernando Henrique Cardoso iniciou com uma reforma ministerial que provocou mudança de rumos na realização do ZEE. Com a extinção da SAE, por meio da Medida Provisória nº 1.795/1999, a responsabilidade pela ordenação territorial foi transferida para o Ministério da Integração Nacional, enquanto ao Ministério do Meio Ambiente foi atribuída a responsabilidade pelo ZEE. Essa atribuição foi confirmada posteriormente, no Governo Lula, pela Lei n° 10.683/2003. O ZEE também passou a integrar o Plano Plurianual a partir do ciclo 2000-2003, sob a denominação “Programa Zoneamento Ecológico-Econômico”. O MMA incumbiu a Secretaria de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável (hoje, Secretaria de Extrativismo e Desenvolvimento Rural Sustentável), de coordenar os projetos de ZEE no País e gerenciar o Programa no PPA. Na sequência, foi promovido um processo nacional de discussão sobre o ZEE, envolvendo a participação de autoridades, pesquisadores e representantes da sociedade civil. Foram efetuadas discussões, consultas e troca de experiências, por meio de cinco seminários regionais (um em cada região do País) e dois seminários nacionais. Com base nestas discussões, foi possível consolidar tanto uma metodologia para a organização do Programa, quanto articular procedimentos operacionais de zoneamento. Os resultados materializaram-se no documento “Diretrizes Metodológicas para o ZEE do Território Nacional” (MMA, 2001). O documento, organizado para permanente atualização (contudo a última foi realizada em 20065), consolida e sistematiza as discussões regionais sobre a metodologia de ZEE, define diretrizes metodológicas e procedimentos operacionais mínimos para a execução e implementação do ZEE nos níveis táticos e estratégicos e formaliza os requisitos necessários à execução de projetos de ZEE. Procedeu-se, assim, a uma ampla articulação interinstitucional, que resultou no restabelecimento da CCZEE e na criação de um consórcio de empresas públicas, denominado de Consórcio ZEE Brasil, regulamentado por meio do Decreto s/nº de 28 de dezembro de 2001. Neste contexto, o ZEE tem como objetivo, em linhas gerais, viabilizar o desenvolvimento

sustentável

a

partir

da

compatibilização

do

desenvolvimento

socioeconômico com a conservação ambiental. Para tanto, parte do diagnóstico dos meios 5

Ver MMA, 2006.

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físico-biótico, socioeconômico e jurídico-institucional e do estabelecimento de cenários exploratórios para a proposição de diretrizes legais e programáticas para cada unidade territorial (zona) identificada, estabelecendo, inclusive, ações voltadas à mitigação ou correção de impactos ambientais danosos eventualmente identificados. Podemos concordar que, dadas as especificidades ambientais, sociais, econômicas e culturais existentes, as vulnerabilidades e as potencialidades também são distintas, e, consequentemente, o padrão de desenvolvimento não pode ser uniforme. Deveria ser característica do ZEE justamente valorizar essas particularidades, que se traduzem no estabelecimento de alternativas de uso e gestão que oportunizam as vantagens competitivas do território. Tal como exposto no decreto nº 4.297 de 10 julho de 2002: Art. 2º O ZEE, instrumento de organização do território a ser obrigatoriamente seguido na implantação de planos, obras e atividades públicas e privadas, estabelece medidas e padrões de proteção ambiental destinados a assegurar a qualidade ambiental, dos recursos hídricos e do solo e a conservação da biodiversidade, garantindo o desenvolvimento sustentável e a melhoria das condições de vida da população. Art. 3º O ZEE tem por objetivo geral organizar, de forma vinculada, as decisões dos agentes públicos e privados quanto a planos, programas, projetos e atividades que, direta ou indiretamente, utilizem recursos naturais, assegurando a plena manutenção do capital e dos serviços ambientais dos ecossistemas. Parágrafo único. O ZEE, na distribuição espacial das atividades econômicas, levará em conta a importância ecológica, as limitações e as fragilidades dos ecossistemas, estabelecendo vedações, restrições e alternativas de exploração do território e determinando, quando for o caso, inclusive a relocalização de atividades incompatíveis com suas diretrizes gerais.

Ou seja, o ZEE em termos de políticas públicas, buscaria contribuir para racionalizar o uso e a gestão do território, reduzindo as ações predatórias e apontando as atividades mais adaptadas às particularidades de cada região, melhorando a capacidade de percepção das inter-relações entre os diversos componentes da realidade e, por conseguinte, elevando a eficácia e efetividade dos planos, programas e políticas, públicos e privados, que incidem sobre um determinado território, espacializando-os de acordo com as especificidades observadas e a objetivação dos riscos envoltos aos processos econômicos e ambientais.

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Além do Zoneamento ambiental, termo que posteriormente evolui para zoneamento ecológico-econômico (ZEE), outros categorias de zoneamento que também funcionam como constructo sociotécnico têm adquirido destaque para a formulação, espacialização e efetivação de uma série de políticas públicas. Dentre esses zoneamentos, podemos destacar: 

Zoneamento socioeconômico-ecológico (ZSEE) – trata-se do próprio ZEE, cuja nomenclatura, no entanto, empregada nos estados de Mato Grosso e Rondônia, busca evidenciar, para além dos aspectos ambientais e econômicos, a dimensão social.



Zoneamento agroecológico (ZAE) - enquanto a Política Nacional do Meio Ambiente (lei federal nº 6.931/1981) possui, dentre seus instrumentos, o ZEE, a Política Agrícola, regida pela Lei nº 8.171/1991, prevê, em seu artigo 19, inciso III, a realização de zoneamentos agroecológicos, que permitem estabelecer critérios para o disciplinamento e o ordenamento da ocupação espacial pelas diversas atividades produtivas, estando a aprovação do crédito rural, inclusive, condicionada às disposições dos zoneamentos agroecológicos elaborados, dentre os quais destaca-se o ZAE da cana-de-açúcar, instituído por meio do Decreto nº 6.961/2009.



Zoneamento agrícola de risco climático – outro instrumento da Política Agrícola, o zoneamento agrícola de risco climático ou Zoneamento Agroclimático, é elaborado com o objetivo de minimizar os riscos relacionados aos fenômenos climáticos, permitindo a identificação da melhor época de plantio das culturas, nos diferentes tipos de solo e ciclos de cultivares. São analisados os parâmetros de clima, solo e de ciclos de cultivares, a partir de uma metodologia validada pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e adotada pelo Ministério da Agricultura (MAPA). Desta forma são quantificados os riscos climáticos envolvidos na condução das lavouras que podem ocasionar perdas na produção. Esse estudo resulta na relação de municípios indicados ao plantio de determinadas culturas, com seus respectivos calendários de plantio, orientando o crédito e o seguro à produção. O zoneamento agrícola de risco climático foi usado pela primeira vez na safra de 1996 para a cultura do trigo. Recebe revisão anual e é publicado na forma de portarias, no Diário Oficial

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da União e no site do MAPA. Em 2013, os estudos de zoneamentos agrícolas de risco climático já contemplam 40 culturas, alcançando 24 unidades da federação. 

Zoneamento industrial – disciplinado pela Lei nº 6.803/1980, trata-se de tipologia de zoneamento realizado nas áreas críticas de poluição a que se refere o artigo 4º do Decreto-Lei nº 1.413/1975, com a identificação das zonas destinadas à instalação de indústrias, em esquema de zoneamento urbano, aprovado por lei, compatibilizando as atividades industriais com a proteção ambiental.



Zoneamento urbano - instrumento utilizado nos planos diretores, através do qual a cidade é dividida em áreas sobre as quais incidem diretrizes diferenciadas para o uso e a ocupação do solo, especialmente os índices urbanísticos. O zoneamento urbano atua, principalmente, por meio do controle de dois elementos principais: o uso e o porte (ou tamanho) dos lotes e das edificações. Através disso, supõe-se que o resultado final alcançado através das ações individuais esteja de acordo com os objetivos do município, que incluem proporcionalidade entre a ocupação e a infraestrutura, a necessidade de proteção de áreas frágeis e/ou de interesse cultural, a harmonia do ponto de vista volumétrico, etc.



Zoneamento Ecológico-Econômico Costeiro (ZEEC) – Instrumento de gestão que abrange uma faixa terrestre e outra marítima de acordo com as normas estabelecidas pelo Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro - PNGC, instituído pela Lei nº 7.661, de 16 de maio de 1988. O ZEEC é utilizado para orientar o processo de ordenamento territorial, necessário para a obtenção das condições de sustentabilidade e desenvolvimento da zona costeira e como mecanismo de apoio às ações de monitoramento, licenciamento, fiscalização e gestão.



Etnozoneamento – instrumento da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI). Instituída pelo Decreto nº 7.747/2012, destinado ao planejamento participativo e à categorização de áreas de relevância ambiental, sociocultural e produtiva para os povos indígenas, desenvolvido a partir do etnomapeamento. O etnomapeamento, por sua vez, consiste no mapeamento

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participativo das áreas de relevância ambiental, sociocultural e produtiva para os povos indígenas, com base nos conhecimentos e saberes indígenas. Cada uma destas categorias de zoneamento que funcionam como constructo sociotécnico abre uma vasta perspectiva de pesquisas no âmbito das ciências sociais e de políticas públicas, contudo não nos ateremos a elas neste trabalho. Retomando a discussão do ZEE enquanto política pública, é importante destacar que, em conformidade com o pacto federativo e com o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), o ZEE é executado de forma compartilhada entre a União, os estados e os municípios. A Lei complementar nº 140/2011 fixa normas para a cooperação entre os entes da federação no exercício da competência comum relativa ao meio ambiente, prevista no artigo 23 da Constituição Federal de 1988 e constitui ação administrativa da União a elaboração do ZEE de âmbito nacional e regional, cabendo aos estados elaborar o ZEE de âmbito estadual, em conformidade com os zoneamentos de âmbito nacional e regional, e aos municípios a elaboração do plano diretor, observando os ZEEs existentes. Para finalizar, o novo Código Florestal (Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012) estabelece um prazo de cinco anos para que todos os estados elaborem e aprovem seus ZEEs, segundo metodologia unificada estabelecida pela norma federal. Como resultado do trabalho do CCZEE e do Consórcio ZEE Brasil até o momento tem se o apoio institucional, técnico e financeiro com as unidades da federação, no sentido de viabilizar a execução de seus projetos de ZEE, a da atualização Macrodiagnóstico da zona costeira6, e a conclusão do Macrozoneamento Ecológico-Econômico (MacroZEE) da Amazônia Legal 7 e encontrase em desenvolvimento o MacroZEE do Bioma Cerrado. O MacroZEE da Amazônia Legal foi aprovado por meio do Decreto nº 7.378, de 1º de dezembro de 2010 e passa a servir enquanto instrumento sociotécnico de orientação para a formulação e espacialização das políticas públicas de desenvolvimento, ordenamento territorial e meio ambiente, assim como para as decisões dos agentes privados, ou seja 6

O Macrodiagnóstico é apresentado sob a forma de um atlas, constituído por cartas-síntese e relatórios técnicos. Disponível na íntegra no portal: . Acesso em julho de 2013. 7 Disponível em: < http://www.mma.gov.br/gestao-territorial/zoneamento-territorial/macrozee-da-amaz %C3%B4nia-legal>. Acesso em julho de 2013.

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instrumentaliza e direciona a gestão de políticas públicas, a agenda do desenvolvimento regional, indicando para o poder público e para a sociedade as estratégias de desenvolvimento, ocupação do território e uso dos recursos naturais da Amazônia Legal.

Controvérsia, riscos e crítica política ao zoneamento ambiental como política pública regulatória A centralidade do zoneamento ambiental enquanto constructo sociotécnico do planejador de políticas públicas ambientais torna-se indiscutível. Basta recobrar as inúmeras finalidades, produtos e consequências elencados na seção anterior, ou em qualquer ZEE estadual para nos convencermos disso. Os planos desembocam sempre em um ato normativo que instrumenta, ao mesmo tempo em que direciona, podendo até restringir as ações do poder público e privado. Mas a visão do zoneamento não tem permanecido invariável ao longo do tempo. Ao contrário, nos exames de consciência aos quais os decisores públicos e planejadores hoje se submetem, através de seus representantes mais conscientes do próprio papel político e social, o zoneamento ambiental, mesmo com sua titulação mais nova — zoneamento ecológico-econômico — pode figurar entre seus pecados, pois trazem atenção em algumas questões enquanto ignoram outras, característica intrínseca de uma sociedade cada vez mais envolvida em controvérsias tecnocientíficas. A realidade na sociedade contemporânea que Beck (1997, 2010) e Giddens (1991, 1997, 2010) conceituam como sociedade de risco é marcada pelos conflitos e controvérsias socioambientais, intrinsecamente envoltas as discussões cosmopolitas de defesa da humanidade, do planeta, e das futuras gerações. Neste contexto, diferentes atores tomam parte no conflito e controvérsia, tentando fazer valer seus objetivos, deixando transparecer suas vinculações entre os distintos posicionamentos. Por conta das controvérsias dentre o conhecimento perito e as características muitas vezes inéditas do dos fenômenos perante os riscos, as incertezas, a irreversibilidade e a própria

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ignorância que envolve as aplicações científicas e tecnológicas do fenômeno, sobretudo os ambientais, embaraçam o trabalho dos peritos e a decisão dos políticos. Contudo, estes questionamentos das características política do instrumento sociotécnico, se dão ainda, sobretudo, dentro dos círculos acadêmicos, não chegando a provocar grandes mudanças no âmbito da política pública, na qual a orientação do zoneamento ambiental para a formulação e espacialização das políticas públicas de desenvolvimento, ordenamento territorial e meio ambiente ainda são remédio plenamente acreditado. No entanto, a quem serve o zoneamento? O zoneamento ambiental é uma política pública sedutora. Significa no aspecto político normativo, a imposição pelo poder do Estado de limitações ao uso da propriedade privada, fundamentado em princípios filosóficos, políticos, econômicos e sociológicos, tais como a função socioambiental da propriedade, da prevenção, da precaução, do poluidorpagador, do usuário-pagador, da participação informada, do acesso equitativo, da integração, do desenvolvimento sustentável entre outros. Princípios que seduzem o poder público e o planejador ansioso de ver o governo tolhendo os abusos dos poderes privados em prol do “bem comum”. O zoneamento também seduz pelo compromisso de impor ordem num desenvolvimento espontâneo que, pela lógica sociopolítica resultante dos princípios emanados, é visto como caótico, problemático, nocivo, oferecendo riscos irremediáveis ao bem público. Pelo lado do capital privado, através do zoneamento é possível conhecer as características biofísicas e fatores de risco do espaço, condição considerada fundamental para poder se apropriar dos recursos naturais e obter o melhor desempenho econômico possível. Apesar das novas características estratégicas de transição para a sustentabilidade e conjunto de propostas de desenvolvimento e gestão ambiental, os zoneamentos enquanto constructo sociotécnico e ferramenta central do planejador podem ser questionados. Numerosos fatores podem dar conta dessa situação. Um deles é a crescente eclosão de conflitos e controvérsias políticos e socioambientais por conta de um zoneamento. Por exemplo, o caso da controvérsia que se estabeleceu em torno da proibição do plantio da

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cana-de-açúcar no Pantanal, Amazônia e bacia do alto Paraguai em decorrência do ZAE da cana-de-açúcar, instituído pelo Decreto nº 6.961/2009. (Ver Jesus, 2013) As informações já disponíveis estão subsidiando políticas públicas e ações econômicas e de desenvolvimento em várias escalas. O zoneamento na avaliação dos recursos ecológicos pode levar a sérios equívocos. Ab’Sáber (1996) alerta para o fato de o estabelecimento puro e simples de uma carta das classes de capacidade do solo poderia induzir os especuladores e os administradores mal avisados a cometer as propostas agrárias mais absurdas. Ele continua lembrando que a própria cartografia extensiva do Projeto Radam, dirigida para o uso potencial dos solos, tem se mostrado ineficiente e perigosa, quando utilizada com rigidez, favorecendo as mais diversas distorções pelos interessados no uso empírico dos espaços amazônicos. Ainda segundo Ab’Sáber (1996), o diagnóstico biofísico muitas vezes é compreendido como uma ferramenta útil para identificar recursos naturais e potencialidades para a sua exploração, servindo aos madeireiros e agropecuaristas muito mais do que à comunidade local e a formulação de políticas públicas. Este fato levanta questionamentos como: quais são os reais objetivos do zoneamento e a quem servem os seus resultados? O zoneamento ambiental está realmente contribuindo na reversão do desenvolvimento irracional e na promoção de sociedades sustentáveis? Até que ponto o zoneamento exerce uma função de mero instrumento de convalidação da hegemonia existente em termos de desenvolvimento econômico? Outras perspectivas críticas da economia política, da sociologia e da antropologia podem mostrar que, por debaixo da "desordem" da falta de planejamento, da falta de instrumentalização que guie para o “desenvolvimento sustentável”, se esconde uma ordem mais complexa, não captável nos dados manipuláveis da estrutura físicas e igualmente manipuláreis e valorativos da dimensão social, política e econômica que o zoneamento ambiental proporciona. Essas disciplinas nos dizem que não nos deparamos com o "caos" a priori, não existem elementos ilógicos, não relacionados uns com os outros, insuscetíveis de captação racional e imunes de controvérsias. Ao contrário, há mecanismos, vinculações, pressupostos e princípios que são preciso pesquisar e revelar.

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Do ponto de vista normativo, alguns desses mecanismos e conexões causais resultam da exploração, interesses e valores de um grupo sobre outro grupo, produzindo conflitos entre os diferentes posicionamentos, podendo refletir o exercício abusivo do poder econômico, social ou político, tornando a política pública corretiva, normativa e arbitrária para algum lado. Outros mecanismos resultam das redes de interação entre os mais diferentes atores políticos, levando a interconexão e complementação funcional de suas ações e interesses para o campo das políticas públicas. Ambos os mecanismos interagem e expressam suas soluções ao planejador público. Assim, ao se revelar outra perspectiva, vinculações e pressupostos a "ordem" ou "lógica" subjacente à construção da política pública através do instrumento sociotécnico, este por sua vez, mostra sua fragilidade para auxiliar as forças e tendências que o planejador deseja impingir, e também para inibir os questionamentos que visem explorar o contraditório e controverso. Deve haver outras críticas ao zoneamento. Chamamos a atenção para problematizar os pressupostos da elaboração, decisão política, e efetivação das políticas públicas consubstanciadas neste instrumento sociotécnico. No entanto, o planejador não está imune aos grandes movimentos culturais e de opinião pública que no momento exaltam esta ferramenta e escondem seus problemas, vinculações e pressupostos. Entre estes se sobressai, o questionamento do princípio de autoridade, a valorização da participação nas decisões e o desenvolvimento sustentável. Deste modo, o poder e sua emanação pelas políticas públicas passam a exercer-se com restrições, devendo legitimar-se, através do apelo aos valores de participação, consenso, descentralização, proteção ambiental, sustentabilidade, salvaguarda do planeta e das futuras gerações entre outros. O planejamento público é envolvido pelos princípios, pressupostos e questionamentos, e o zoneamento ambiental, em alguma medida sob o qual é defendido e proposto, surge, portanto, como instrumento tecnocrático. Em contexto da sociedade de risco, os atores sociais passaram a avaliar criticamente as promessas da primeira modernidade, fundamentadas na aplicação de conhecimentos tecnocientíficos, assumindo diferentes posicionamentos em relação aos impactos das 16

inovações na sociedade e na natureza (BECK, 1997, 2010). Nesse contexto emergem as controvérsias, resultantes dos posicionamentos antagônicos das organizações que representam diferentes grupos sociais com concepções divergentes sobre as mesmas temáticas, as denominadas coalizões heterogêneas (GUIVANT, 2002, 2006). Deste modo visualizamos que quando emergem controvérsias políticas ou técnicas em relação ao instrumento normativo (zoneamento ambiental), resultantes dos posicionamentos antagônicos dos atores e representantes de diferentes grupos sociais com concepções divergentes sobre as mesmas temáticas, estamos diante de um caso de peritagem tecnocientífica. Segundo Philippe Roqueplo (1993), sociólogo francês com estudos relevantes na área de peritagem tecnocientífica, é justamente a partir da participação no dinamismo do processo decisório que distingue e define a peritagem científica e os peritos. Assim, o conhecimento científico adquire características de peritagem quando é convocado para clarificar, justificar ou fundamentar, mesmo que parcialmente, uma decisão através de qualquer constructo científico. A função do zoneamento enquanto constructo sociotécnico não é a de fornecer pura e simplesmente um conhecimento, mas um conhecimento que se destina a esclarecer aqueles que têm a responsabilidade de tomar decisões e efetivar ações através das políticas públicas. Trata-se de um conhecimento que serve a decisão, embora não constitua a própria decisão. Na formatação de políticas públicas é recorrente que considerações de ordem técnica tenham primazia. Neste caso, é possível ver também um aspecto amplo, onde também entram valores, preferências e interesses. Assim, cabe o questionamento de que tipos de usos e atividades em determinado território podem ou não ocorrer, e em que medida isso é um problema suscetível de tratamento técnico. Os usos geralmente estão precedidos questões de ordem política, social e econômica, e mais recentemente dos riscos inerentes as características físicas do território. O espaço é suscetível de tratamento objetivo, mas sempre estará presente de forma prévia ao instrumento sociotécnico a pergunta "a quem beneficia", característica que reintroduz o aspecto normativo e político. 17

Chamamos atenção também ao que Roqueplo (1993) chama de “expertise confiscada”, pois muitas vezes os cientistas são convocados pelos planejadores não coma função de alicerçar cientificamente as escolhas políticas, mas para a legitimação de decisões políticas já tomadas ou planejadas; Assim, poderíamos buscar entender na fundamentação das políticas públicas buscando compreender e revelar a “expertise confiscada”, quando o poder político recorre aos peritos e instrumentos sociotécnicos após já estar comprometido com uma determinada estratégia ou decisão. Neste caso, segundo Roqueplo (1993:68), “é fabricado um consenso entre os peritos convocados, o que faz com que este tipo de peritagem se baseie mais na ideologia do que na objetividade, pois não se baseia na discussão do interior da heterogênea comunidade científica, das controvérsias tecnocientíficas.” Para finalizar, temos ainda que entre os peritos há divergências significativas sobre quais são os métodos mais apropriados para estimar os riscos, assim como sobre quais são as margens desejáveis de segurança (Guivant, 1998). Deste modo, para além da peritagem e expertise, temos o retorno as incertezas, a insegurança e a própria ignorância que envolve os constructos científicos. Essas considerações ou críticas deixam clara a utilidade de um estudo desse instrumento de política pública. O zoneamento ambiental não age sobre um determinado território sem pressupostos, vinculações e interesses. Pelo contrário, conforme vimos, age sobre uma realidade que possui conflitos e controvérsias, onde operam fatores de mercado, políticos, sociais e culturais na configuração e determinação dos usos do território, anteriores a uma regulação pública sistemática, como expressa o caráter normativo dos zoneamentos ambientais.

Zoneamento ambiental como política pública: considerações finais Verifica-se que um constructo sociotécnico que visa orientar a formulação e espacialização das políticas públicas de desenvolvimento, ordenamento territorial e meio

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ambiente, assim como as decisões dos agentes privados dificilmente será produzida através de causalidade simples, na qual um interesse efetivamente público e politicamente forte seja levado pelo poder público e traduzido como política pública em detrimento de outros interesses prévios. Todo constructo sociotécnico com poder normativo, tal qual o zoneamento, é complexo e ambíguo quanto a quem beneficia e a quem prejudica. O zoneamento para além de ser instrumento restritivo, pode tornar-se imperativo de sucesso e geração de mais desigualdade e efetivação do poder de um grupo sobre outro, de interesses particulares sobre o interesse efetivamente público, da radicalização da apropriação particular dos recursos naturais e obtenção do melhor desempenho econômico possível em detrimento do desenvolvimento sustentável. Ou seja, o planejador, ciente ou não de que impede certos interesses concretos em detrimento de outros, optando, ao definir os usos e restrições em cada território, ignora os prejudicados e legitima os vencedores. O desenvolvimento de uma política pública geral, sobretudo as ambientais, é fruto da atuação de inúmeros mecanismos e pressupostos sociais, econômicos e políticos, dentro da rede formada na arena política de decisões, que gradualmente, pelas disputas, conflitos e controvérsias, torna-se um ambiente construído, em constante evolução. Podemos afirmar que o território, tal como outras arenas políticas, é produto da interação das forças socioeconômicas umas com as outras, com o ambiente físico, e com as controvérsias da ciência e dos instrumentos sociotécnicos. O zoneamento ambiental como política pública pode atender tanto aos aspectos puramente normativos e técnicos, quanto aos mais diretamente políticos e economicistas. Ambos encontram-se estreitamente vinculados na prática, pois o zoneamento funcionaria como um instrumento de peritagem científica. Conclui-se que o zoneamento ambiental como política reguladora, não é um exclusivo instrumento sociotécnico, nem puro arbítrio do planejador. Se critérios técnicos existem para orientá-lo, há, também, amplos aspectos de escolha valorativa, de opções por funções de utilidade política e econômica que cabe ao processo político executar. A própria natureza da política regulativa ambiental exige do planejador ativa contribuição na

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conciliação de interesses, estruturação da demanda, esclarecimento da opinião pública e formação de coalizões de apoio pelo governo e pelos cidadãos. Visualizamos que a utilização de instrumentos sociotécnicos normativos para conciliação dos objetivos do desenvolvimento com os da conservação ambiental fornece os raciocínios que motivam as agências públicas, agentes do governo, representantes políticos, cientistas, grupos de protesto para determinada política pública, contudo requer ainda uma profunda reformulação do modo e dos meios aplicados nos processos de decisão dos agentes públicos.

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Resumo: O artigo discute os zoneamentos ambientais enquanto instrumento sociotécnico e ferramenta legitimadora da política nacional ambiental e de gestão territorial, suas correlações históricas e políticas entre o conceito, a implementação e a normatividade para ocupação do território, produção rural e uso dos recursos naturais. Problematiza-se a elaboração, decisão e efetivação das políticas públicas baseadas no zoneamento com consequência proibitiva, cuja finalidade seria auxiliar a formulação de políticas e estratégias de desenvolvimento. Este trabalho foi elaborado a partir de uma revisão bibliográfica e uma análise documental dos atos normativos oficiais do governo federal do Brasil através do Sistema de Consulta à Legislação (SIGLEGIS). Foram analisados 246 Atos Normativos. Procura-se evidenciar através dos dados e marcos regulatórios que os zoneamentos enquanto constructos sociotécnicos, em meio a controvérsias, podem fornecer os raciocínios que motivam as agências públicas, representantes políticos, cientistas e grupos de protesto a determinada política de ordenamento e gestão do território, com consequências diretas ao ambiente e a produção rural. Conclui-se que os zoneamentos podem gerar mais desigualdade e efetivação do poder de um grupo sobre outro, de interesses particulares sobre o interesse efetivamente público. Observa-se que os zoneamentos atendem tanto aos aspectos puramente normativos e técnicos quanto os mais diretamente políticos e economicistas, funcionando como um instrumento de peritagem científica.

Palavras Chave: Zoneamento ambiental. Políticas Públicas. Constructo sociotécnico.

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Abstract: This paper is about environmental zoning as a tool and sociotechnical instrument, legitimating of the environmental national and land management policies and their political and historical correlations between the concept, implementation and normativity for the occupation of the territory, rural production and use of natural resources. The preparation, decision and execution of public policies are problematized and based on zonings with prohibitive consequences in which the purpose would be to help with the formulation of policies and development strategies. This research was developed from a literature review and a documentary analysis of official normative acts of the federal government of Brazil were done through the Legislation Consultation System (SIGLEGIS). 246 Normative Acts were analyzed. It is aimed at demonstrating, by data and regulatory framework, how zoning as sociotechnical constructs, in the midst of controversies, can provide the arguments that motivate public agencies, political representatives, scientists and protest groups to specific planning policy and land management, with direct consequences to environmental and rural production. Therefore, zoning can generate more inequality and effectiveness of power of one group over another, private interests over the effective public interest. It's seen that the zonings account both the more purely normative and technical aspects and the more directly political and economists ones, working as an instrument of scientific expertise. Keywords: Environmental Zoning. Public Policy. Sociotechnical construct.

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Resumen: La ponencia aborda la zonificación ambiental como instrumento socio-técnico y herramienta de legitimación de las políticas nacionales ambiental y de manejo de tierras, sus correlaciones históricas entre el concepto, la ejecución y la normatividad para la ocupación del territorio, la producción rural y el uso de los recursos naturales. Se problematizan la preparación, decisión y ejecución de políticas públicas basadas en la zonificación con consecuencia prohibitiva, cuyo objetivo sería ayudar en la formulación de políticas y estrategias de desarrollo. Este trabajo fue desarrollado a partir de una revisión de la literatura y una análisis documental de los actos normativos oficiales del gobierno federal de Brasil mediante el Sistema de Consulta a la Legislación (SIGLEGIS). Se analizaron 246 Actos Normativos. Se procura demostrar a través de los datos y los marcos regulativos que las zonificaciones como construcciones socio-técnicas, en medio de la controversia, puede proporcionar los argumentos que motivan a través de los organismos públicos, representantes políticos, los científicos y los grupos de protesto a la política de planificación específica y la gestión del territorio, con consecuencias directas para el medio ambiente y la producción rural. Llegamos a la conclusión de que las zonificaciones pueden generar más desigualdad y efectuación del ejercicio del poder de un grupo sobre otro, de los intereses privados sobre el efectivo interés público. Se observa que las zonificaciones cuentan tanto con los aspectos puramente normativos y técnicos, como los más directamente políticos y economistas, trabajando como instrumento de la peritaje científica. Palabras clave: Zonificación ambiental. Políticas Públicas. Construcción Sociotécnica.

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