\" A literatura pela espiral da modernidade \"

May 30, 2017 | Autor: M. Miranda Fiuza | Categoria: Samuel Beckett, Literatura, Modernidade, Bartleby, Homo Politicus, Homo psychologicus
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"A literatura pela espiral da modernidade"

Marina Miranda Fiuza
São Paulo – 2010



"Preferiria não o fazer". Diante de qualquer ordem era esta a resposta dada por Bartleby, personagem do romance que leva o mesmo nome, de Herman Melville. A narrativa nos oferece pouca informação sobre este curioso escriturário, de forma que toda interpretação sobre ele parte de sua única e célebre frase: "Preferiria não o fazer". Seria Bartleby combatente ou indiferente às formas de poder? É com coragem ou com apatia que pronuncia sua incômoda resposta?
É com a mesma evasão que respondemos à tais perguntas. Bartleby não é um resistente ao poder porque apenas "preferiria" não se submeter. Por outro lado, Bartleby não é um indiferente ao poder, porque "preferiria" não se submeter. Qualquer seja o caminho interpretativo adotado, o que observamos em ambos os casos é o predomínio da negação à ação. Bartleby prefere não agir. Não por acaso que é a personagem de Melville que dá nome àqueles que sofrem da preferência pela não-ação: a síndrome de Bartleby.
Em "Bartleby e Companhia", o premiado escritor espanhol Enrique Vila-Matas faz uma listagem de escritores reais e fictícios que, diante da dificuldade de escrever, optaram por não o fazer. Dentre este rol de "escritores do não" encontra-se o próprio narrador do romance, escritor de uma única obra. Declarando sua incapacidade de escrever, o narrador afirma logo no início da narrativa que o que escreve não passa de simples notas de rodapé de um texto maior e invisível o qual ele, como um Bartleby, preferiria não escrever.
Contudo, tais notas de rodapé preenchem as cento e oitenta e oito páginas do romance, conferindo-lhe forma. É escrevendo sobre a incapacidade de escrever, é "rastreando o labirinto do Não" que o narrador de Vila-Matas sacia sua sede pela escrita e, desta forma, sugere uma nova literatura fragmentária que se sustenta pela auto-negação.

Estou convencido de que apenas do rastreamento do labirinto do Não é que podem surgir os caminhos que permanecem abertos para a escrita que virá. Vejamos se sou capaz de sugeri-los. Escreverei notas de rodapé que comentarão um texto invisível, mas nem por isso inexistente, já que seria perfeitamente possível que esse texto fantasma acabasse ficando como que em suspenso na literatura do próximo milênio. (VILA-MATAS,2004, p. 11)
É dotado desta falsa ingenuidade que o narrador passa a listar inúmeros casos de "escritores do não", categoria que se divide entre aqueles escritores que, assim como o próprio narrador, escreveram sobre a impossibilidade de escrever; os escritores que tiveram longos períodos de silêncio após a publicação de suas obras solitárias; e os escritores que sequer finalizaram a produção de um único livro. A extensa lista de "escritores do não" nos aponta para um sintoma da modernidade que reflete não só na literatura, mas também na política, nas relações sociais e na forma de pensar o mundo de uma forma geral. Que mal é esse, afinal, que faz calar a escrita?
Uma das perturbadoras metáforas criada por Samuel Beckett em "O Inominável" sugere o caminho do pensamento humano até o ponto da modernidade contemporânea em que o homem se vê obrigado a calar-se.

Estava provavelmente metido num tipo de espiral invertida, quero dizer cujas voltas, em vez de ganharem cada vez mais amplidão, iam-se estreitando, até não poderem mais continuar, em vista da espécie de espaço onde eu supostamente me encontrava. Naquele momento, na impossibilidade material de ir mais longe, teria sido sem dúvida obrigado a parar, arriscando a rigor recomeçar imediatamente em sentido inverso, ou muito mais tarde, ao me desparafusar de algum jeito, depois de ter me comprimido em bloco. (BECKETT, 2009, p.61)


Visualizemos tal espiral invertida. Na parte superior observamos uma boca larga rumando sempre ao infinito, em oposição a um lado cada vez menor rumo a um ponto central mínimo. Um homem épico, por exemplo, encontrar-se-ia na parte ampla da espiral, submerso na ideia da coletividade e desfrutando de espaço físico suficiente para manter sua integridade. A partir daí o homem inicia sua jornada elíptica em direção ao centro da espiral, cujo espaço físico permite apenas a individualidade. O homem moderno, por sua vez, encontrar-se-ia próximo deste ponto menor, na inesgotável busca de si próprio. Contudo, de tanto parafuzar-se em direção ao centro da espiral, chega o momento em que tal movimento não é mais fisicamente possível. E é na impossibilidade material de ir além que o homem se vê obrigado a parar.

Quanto mais se investe no Eu, quanto mais se faz dele o objeto da atenção e da interpretação, mais aumentam a incerteza e a interrogação. O Eu se torna um espelho vazio à força de "informações", uma pergunta sem resposta à força de associações e análises, uma estrutura aberta e indeterminada que exige sempre e cada vez mais terapia e anamnese. (LIPOVETSKY, p. 37)

É neste ponto da espiral em que o homem em sua busca narcisística do Eu se vê impossibilitado de ir adiante e, portanto, pára. É aí que estão entalados e mudos os Bartlebys da humanidade.
Segundo Lipovetsky (2005), a metamorfose do homo politicus de outrora para o homo psychologicus moderno é resultante de um longo processo global que rege o funcionamento social. De acordo com o filósofo francês,

...o narcisismo foi gerado pela deserção generalizada dos valores e finalidades sociais, ocasionada pelo processo de personalização. A anulação dos grandes sistemas de sentidos e o hiperinvestimento no Eu andam de braços dados. (LIPOVETSKY, 2005, p. 34).


Ainda sobre o mesmo tema discorre Bakhtin:

O homem privado e isolado, "o homem para si", perdeu a unidade e a integridade que eram determinadas pelo princípio da sua vida pública. A consciência que ele tem de si mesmo, tendo perdido o cronotopo popular da praça pública, não pôde encontrar outro cronotopo tão real, único e íntegro: assim ele desintegrou-se e desuniu-se, tornou-se abstrato e ideal. (...) A imagem do homem tornou-se múltipla e composta. Nele se cindiram o núcleo, o invólucro, o exterior e o interior. (BAKHTIN, 1998, p. 254)


Observamos uma clara dicotomia entre a base e o topo da espiral. De um lado encontramos o homem público, íntegro, social, épico. Do outro lado está o homem privado, desintegrado, individual, moderno. A literatura acompanha este movimento do homem através da história. A epopéia não podia ser outra coisa que não um gênero literário concreto, fechado, não passível de interpretação, pois reflete um homem da mesma forma estruturado, apoiado na concretude da experiência passada. Desta forma, o romance moderno, configura-se pelo inacabamento, pelo plurilinguísmo, pela fragmentação oriunda da nossa contemporaneidade. Não por acaso narrador, tempo e espaço perdem seus contornos diante do leitor contemporâneo.
Dissolver-se foi o que restou como alternativa àqueles que, na incansável busca do Eu, ousaram seguir adiante na espiral beckettiana.

... se por força de me enrolar eu deveria fatalmente terminar por me achar entalado, incapaz de ir mais longe sob a pena de diminuir de volume ou de entrar literalmente em mim mesmo, e portanto forçado, a palavra não é forte o bastante, a me imobilizar. (BECKETT, 2009, p. 61)

Enquanto pessimistas lêem nas linhas amorfas da produção contemporânea um possível fim da literatura, vemos nascer um novo gênero cuja personagem principal é a palavra. Caótica, sim. Fraca, jamais.


BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e Estética. São Paulo: Editora Unesp, 1998.
BECKETT, Samuel. O inominável. São Paulo: Globo, 2009.
LIPOVETSKY, Gilles. A era do Vazio. São Paulo: Manole, 2005.
VILA-MATAS, Enrique. Bartleby e Companhia. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

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