Caravaggio e as Sete obras da misericórdia – Um retrato da sociedade de Nápoles e o papel da igreja na formação da opinião pública

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Caravaggio e as Sete obras da misericórdia – Um retrato da sociedade de Nápoles e o papel da igreja na formação da opinião pública




Autor: Rafael Fróes






















Sete obras da misericórdia - 1607

Fiel às suas crenças e natureza, marginal e iconoclasta, Caravaggio recusou-se a seguir o catecismo pictórico da igreja, mesmo quando pintava motivos sacros. A igreja, através de sua apregoada misericórdia acolhedora, tentou cooptá-lo com tentadoras encomendas de temas religiosos.
Sete obras da misericórdia constitui-se numa destas encomendas e, com esta tela, obra de Caravaggio vemos como uma tela (imagem) pode espalhar o espaço do drama, que não está necessariamente no palco, afirmativa que inicia o capítulo sobre Caravaggio do texto "Lendo Imagens" de Alberto Manguel.
Caravaggio, nascido Michelangelo Merisi, adotou este nome por conta da pequena vila onde seus pais nasceram. Dono de uma das personalidades mais fascinantes da história da arte, tendo sido o mais vigoroso e influente pintor do século XVII.
O tempestuoso temperamento de Caravaggio e suas rebeldias às convenções o levaram a inúmeros confrontos com a polícia, vivendo os últimos anos de sua trágica vida como fugitivo da justiça e tendo mudado constantemente de cidades durante sua breve existência, já que morreu antes de completar 40 anos.
No começo de 1607, Caravaggio chega a Napoles e encontra, além do refúgio que precisava, uma cidade que havia se transformado de uma província portuária movimentada em um esplêndido centro cultural, onde cursos de literatura, nas universidades, eram criado e inúmeros arquitetos eram contratados para construir igrejas e palácios novos. As ruas foram alargadas e houve o início de melhorias no sistema de água e esgoto. Mas Napolis era uma cidade de contrastes: uma cidade nova efervescente em termos culturais e uma cidade velha onde os habitantes não tinham como sobreviver e mal conseguiam sustentar-se.
De um lado, casas com jardins refinados contrastando com o crime e a pobreza em proporções alarmantes. A situação dos pobres, com o aumento da população da Europa na virada do século XVII, era preocupante: mendigos vagavam pelas zonas rurais e invadiam as cidades, implorando por comida ou saqueando as casas dos ricos.
Nestas circunstâncias de perigo eminente para a população e de degradação dos pobres, a posição oficial da igreja era a de não associar o crime e pobreza. Pelo contrário, os pobres eram, na retórica religiosa oficial, considerados a imagem terrena do redentor sofredor.
Vemos, no decorrer dos anos, uma mudança na forma como os pobres são tratados e como a pobreza é encarada pela igreja. Caravaggio, ao receber encomendas para decorar igrejas, com motivos sacros, tinha o hábito de retratar as cenas com mendigos comuns e assim o fez com as cenas da vida de São Matheus na igreja de San Luigi dei Francesi, onde o santo era representado por um mendigo na primeira versão de São Matheus e o anjo.
A tolerância em relação aos mendigos diminuiu e estes passaram a ser vistos como capazes de cometer qualquer crime. Em vez de serem considerados "as crianças de Deus", como outrora haviam sido, vagavam pelas ruas como feras selvagens em busca de comida, querendo saciar a fome e não tendo nenhuma outra motivação. Asilos e abrigos começaram então a ser construídos para que estes mendigos miseráveis, doentes e esfarrapados pudessem ser mantidos afastados da sociedade.
Enquanto estes pobres e miseráveis eram temidos e caçados pelas ruas, sues gestos, sua língua e humor eram reproduzidos no teatro popular, a "commedia dell'arte". Além da "commedia" e tal como nela, houve representações públicas da sociedade, onde os excluídos representavam um papel fictício que com as repetições viravam realidade. Em todas essas representações a plateia representava um papel fundamental, acompanhando-as e reagindo diante dos atores e, com eles, transformando tudo que estava ao ar livre em um imenso palco, como nas pinturas de Caravaggio.
Quanto mais os pobres e miseráveis ameaçavam os ricos, mais a prática de leva-los para abrigos e asilos se expandia e esse processo de aprisionamento deles seguia um ritual organizado e protagonizado pelos ricos com detalhes bem demarcados, como, por exemplo, os diferentes tratamentos dados a homens e mulheres aprisionados nestes locais.
Um dos empreendimentos sugeridos com o objetivo de cuidas dos pobres e necessitados foi o Monte Della Misericordia, sociedade fundada por sete jovens napolitanos, em 1601. Esta sociedade fundou uma igreja, mais tarde conhecida como Pio Monte Della Misericordia, onde todos os sete atos de misericórdia corporal seriam praticados de forma regular e eficiente: visitar os doentes e prisioneiros; enterrar os mortos; vestir os nus, alimentar os famintos; dar de beber aos sedentos; acolher os desabrigados e libertar os escravos.
Os principais pintores de Nápoles foram convidados para ilustrar os atos de misericórdia e, o lugar de honra, acima do altar, foi concedido a Caravaggio, em 1608, pois embora fosse visto de forma dúbia pela igreja, era um dos pintores mais proeminentes de sua época e a igreja queria ter um trabalho dele para vangloriar-se.
Caravaggio decidiu fazer algo nunca feito antes na história da pintura religiosa e incluiu todos os sete atos da misericórdia em uma mesma tela, que assume, assim, a aparência de uma peça de teatro. A tela é cortada ao meio por uma parede divisória, tendo na parte de cima a Madonna della Misericordia, suspensa por nove anjos e o menino Jesus olhando para a escuridão da Terra.
Abaixo da linha divisória, o mundo humano aparece conturbado, com seu sofrimento prosseguindo sem tomar conhecimento da presença da Madonna. Várias cenas são reproduzidas concomitantemente na tela, representando cada um dos atos de misericórdia, os homens e mulheres, tem os rostos e os corpos dos mendigos de rua.
Caravaggio inclui o expectador em seu cenário, motivando-o a sentir-se responsável por seus irmão e irmãs miseráveis, impelindo-o a ação. O cenário de Caravaggio não é inventando ou alegórico como os cenários preparados pela igreja ou como os entretenimentos estilizados da "commedia dell'arte". Quando ele concede aos miseráveis de Nápoles um cenário em seus quadros sagrados, além de ir contra os antigos preceitos do Concílio de Trento, Caravaggio estava dando continuidade á apropriação de um palco público que as pessoas comuns haviam começado nas ruas da cidade, com a commedia, com o carnaval e até com as procissões da igreja.
Desta forma, os quadros de Caravaggio permanecem como um lembrete contra a hipocrisia e esta tela "Sete atos de misericórdia" mostra a realidade social da época, os contrastes entre ricos e miseráveis, as intervenções e a hipocrisia da igreja.


Referências:
Manguel, Alberto – Lendo imagens

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