Consultores de mercado, sua lógica perversa de gestão e normopatia

September 10, 2017 | Autor: Luiz Alex Saraiva | Categoria: Consulting, Psychodynamics of work and organisations, Critical Consulting
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Consultores de Mercado, sua Lógica Perversa de Gestão e Normopatia Market Consultants, their perverse Management Logic and Normopathy Consultores de Mercado, su Lógica Perversa de Gestión e Normopatía

Luiz Alex Silva Saraiva Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil. Ana Magnólia Mendes Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil.

Resumo Nesse ensaio, baseado em revisão bibliográfica, se discutem as dimensões subjetivas da relação entre consultores e organizações clientes, uma lógica perversa de funcionamento organizacional, o que pode levar ao desenvolvimento de comportamentos de normopatia e, com isso à sua própria dessubjetivação como sujeito emancipado. Normopatia caracteriza personalidades extremamente “normais”, conformadas com as normas de comportamento social e profissional, um perfil que preocupa sobretudo pelo que deixa de sentir. São três as implicações desse processo: no nível macro, a lógica de competição global se apresenta como uma ideologia vazia, já que os países de onde ela emana protegem seus mercados apesar do apelo à competição; no nível meso, as empresas enfraquecem os laços sociais entre os sujeitos para tornar estritamente psicológico qualquer tipo de conflito; no nível micro, aos sujeitos é negada qualquer consciência sobre seu potencial de reação. Palavras-chave: Consultoria; Consultores; Lógica de Mercado; Normopatia.

Abstract In this essay, we discuss subjective dimensions of relationship between consultants and client organizations from the assumption that these professionals are contaminated with a perverse logic of organizational operation, which can take to development of normopathy behaviors, and, of desubjectivation of emancipate subject. Normopathy characterizes personalities extremely “normal”, conformed to social and Professional rules, a profile who preoccupies mainly because what it is not feel. There are three implications of this process: at macro level, global competition logics is an empty ideology, once countries where it comes protect their markets, despite a competition discourse; at meso level, companies weak social bonds among subjects to make strictly psychological any king of conflict; at micro level, to subjects is denied any conscience about their reaction potential. Rev. Polis e Psique, 2014; 4(1): 128-145

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Saraiva, L.; Mendes, A. ______________________________________________________________________ Keywords: Consultory; Consultants; Market Logics; Normopathy.

Resumen En este ensayo, basado en revisión bibliográfica, se discuten varias dimensiones subjetivas de la relación entre los consultores y sus organizaciones clientes, una lógica perversa de funcionamiento organizacional, que pude levar a lo desarrollo de conductas de de normopatia y, a su propia desubjetivación como sujeto emancipado. Normopatia se refire a personalidade muy “normales”, conformadas a las normas de comportamiento social y profesional, un perfil que preocupa sobretodo pelo que el no siente. Hay tres implicaciones de este proceso: a nivel macro, la lógica de competición global se presenta como una ideología vacía, ya que loca paíss de la que emana protegen sus mercados a pesar de la convocatoria a la competición. En el nível meso, las empresas debilitan los lazos sociales entre los sujetos para hacer cualquier conflicto estrictamente psicológico. A nível micro, a los sujectos se negó cualquier conocimiento de su potencial de reacción. Palabras clave: Consuloría; Consultores; La lógica del mercado; Normopatia.

Introdução

cas, receituários e recomendações, os profissionais dessa área se colocam à disposi-

Sob o manto da racionalidade ins-

ção das organizações com o objetivo am-

trumental, a administração se constituiu

plo de resolver seus problemas, o que in-

como um dos mais férteis campos da atua-

clui a adoção de prescrições e o ajuste a

lidade – seja porque do ponto de vista apli-

projeções mais favoráveis.

cado permite o trânsito sem fronteiras de

O que se pretende discutir neste en-

profissionais de outras formações, que po-

saio são as dimensões subjetivas da relação

dem se posicionar nesta esfera sem restri-

entre consultores e organizações clientes.

ções e competir por uma fatia do mercado,

Parte-se do pressuposto que estes profissi-

seja por, do ponto de vista teórico, abrir

onais são contaminados por uma lógica

possibilidades de interfaces conceituais em

perversa de funcionamento organizacional,

diversos níveis, possibilitando um amplo

o que pode levar ao desenvolvimento de

interesse sobre o que se passa na área. Nes-

comportamentos de normopatia, conceito

se campo, um dos segmentos que tem sido

estudado por Dejours (1999), e com isso

foco de atenção recente tem sido o de con-

sua própria dessubjetivação como sujeito

sultoria. Munidos de um arsenal de técni-

emancipado. Isso significa que o profissio-

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Saraiva, L.; Mendes, A. ______________________________________________________________________ nal passa a pensar, sentir e agir de modo

res maravilhas, seres que, com foco nos

completamente alinhado com o cliente,

resultados, minimizam ou ignoram sua

introjetando, muitas vezes, valores desu-

humanidade em prol da organização. Isso

manos que são praticados pelas organiza-

inclui promover processos de racionaliza-

ções, transformando-se assim, em um su-

ção, via de regra por meio de corte de pes-

jeito que reproduz e produz o discurso e os

soal, remanejamento, downsizing, e outras

desejos organizacionais, não percebendo

ferramentas que associam a sobrevivência

sua própria desumanização.

organizacional à punição dos sujeitos, um

Este pressuposto se sustenta na ra-

processo em que a criatura – a organização

cionalidade econômica: as ações precisam

– se torna mais forte e mais importante do

ser racionais, profissionais, entre outros

que o seu criador, o homem. A perspectiva

termos assemelhados, que medidas de ra-

que rege tais ações atende a uma dinâmica

cionalização ampla são necessárias, o que

que torna econômica, mais do que social,

invariavelmente inclui processos perversos

qualquer iniciativa no âmbito da organiza-

do ponto de vista do sujeito, conforme es-

ção. Os efeitos sobre a subjetividade destes

tudos de Ferreira (2009), Ferreira et al.

profissionais e sua saúde mental raramente

(2006), Mendes (2007), Siqueira (2007) e

têm sido foco de discussão no âmbito da

Calgaro e Siqueira (2008). Práticas como o

administração, área em que se toma com

assédio moral, a pressão exacerbada por

certo nível de estranheza uma discussão

resultados, o fetiche pelos números, entre

desse tipo, seja por ela expor fragilidades

outras, escondem uma ótica que se assenta

teóricas e ideológicas, seja por esse não ser

inequivocamente sobre a desumanização.

um assunto “pertinente” aos interesses da

Este sujeito dessubjetivado é acima de tudo

área. Mas do interesse de quem é este as-

alguém que nega o sofrimento como hu-

sunto se não de todos?

mano. A naturalização e banalização das

Para discutir esses aspectos, este

atitudes e comportamentos levam a uma

ensaio será dividido em quatro partes além

conduta completamente guiada pela nor-

dessa introdução. Na primeira, serão teori-

matização e racionalidade.

camente apresentados os limites e possibi-

Ser humano, nesse sentido, é uma

lidades teóricas da lógica perversa que rege

fraqueza porque significa ter sentimentos,

o mundo das organizações de hoje, com

lidar com emoções e incertezas, ser sujeito

particular enfoque sobre a consultoria. Es-

a erros e limitações, algo terminantemente

sa discussão será sucedida por duas seções,

fora de questão na esfera organizacional.

respectivamente sobre a normopatia e so-

Só há espaço para super homens e mulhe-

bre os seus efeitos sobre a subjetividade

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Saraiva, L.; Mendes, A. ______________________________________________________________________ dos consultores de mercado, agentes, por

gica maciça de um pequeno grupo de paí-

excelência, do produtivismo no ambiente

ses, não por acaso os mais aptos a competir

organizacional, portadores de uma nova e

“globalmente”, ele influencia, de forma

desumanizada ordem, o que precede as

inequívoca, a dinâmica local e internacio-

considerações finais.

nal. Isso se dá em diversas frentes, tanto no que diz respeito ao redimensionamento do

A lógica do mercado e sua perversidade

Estado, quanto no que se refere à desregulamentação do mercado, e no conseqüente

As

transformações

econômicas

acirramento da competição empresarial.

mundiais verificadas com mais intensidade

No campo da administração em geral se

nas duas últimas décadas criaram um am-

deixa de lado toda uma discussão voltada

biente propício para que se espraiasse co-

para a sociedade relacionada a tal temática,

mo natural o “pensamento único”, algo

não sendo percebida

denunciado por diversos autores, como Forrester (2001). A aparentemente inexo-

(...) a globalização como um processo de

rável condição de globalização submete os

desenvolvimento desigual, devido aos desníveis e às irregularidades na realização

países, as organizações e, em última ins-

das forças produtivas e das relações de

tância, os indivíduos, a um ambiente em

produção; contraditório, porque leva con-

que nada mais há a fazer exceto competir

sigo tensões e atritos entre os subsistemas

por um espaço – quaisquer que sejam as

econômicos nacionais e regionais, enquan-

condições a ele associadas. Não é preciso

to províncias do sistema econômico global; e combinado, já que, a despeito das desi-

muito esforço para chegar à conclusão de

gualdades de todos os tipos e das contradi-

que este pensamento único favorece unila-

ções também múltiplas, desenvolve-se em

teralmente as organizações, em detrimento

geral alguma forma de acomodação, asso-

direto dos trabalhadores, ao tornar natural,

ciação, subordinação ou integração, nas

mais do que desejável, a adoção de parâ-

quais os pólos dominantes ou mais dinâmicos subordinam, orientam ou adminis-

metros econômicos para reger a vida soci-

tram os emergentes. (Saraiva; Pimenta;

al.

Corrêa, 2005, p. 70)

É fato que se presencia um momento de elevada conexão de mercados, o que

Todavia, o que é apresentado como

concretiza, em certa medida, a globaliza-

fato econômico inescapável é uma constru-

ção. Ainda que se questione que padrão

ção

global é esse, já que os valores dissemina-

aponta Bourdieu (1998), a idéia de compe-

ideológica.

Como

oportunamente

dos correspondem a uma produção ideolóRev. Polis e Psique, 2014; 4(1): 128-145

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Saraiva, L.; Mendes, A. ______________________________________________________________________ tição livre e global é tão imbuída de ideo-

Partindo da idéia de multiqualifica-

logia que qualquer tipo de posição em con-

ção dos trabalhadores, a flexibilidade se

trário é tida como manifestação de rigidez

refere a uma questão de estar disponível de

e de apego ao passado. A mensagem é cla-

acordo com a necessidade da organização.

ra: o novo é global, porque no mercado

Permanecem empregados, assim, os profis-

estão as respostas da liberdade de consu-

sionais que forem capazes de, por sua qua-

mo. Do Estado nada pode vir além de re-

lificação ampliada, “transitar” entre as

gras ultrapassadas e pouco efetivas, distan-

áreas empresariais de atuação. Tal ajuste

tes, assim, do que o homem contemporâ-

também passa, via de regra, pela submis-

neo precisa (Bauman, 2008). A esse respei-

são a condições precárias de trabalho, já

to, é oportuno lembrar que a crise recente,

que é estimulada pelas empresas uma

ainda em curso em alguns países, só en-

competição entre os mercados de trabalho

controu algum alívio quando o desprezado

primário (formado por trabalhadores que

Estado usou os seus mecanismos “arcai-

usufruem direitos trabalhistas) e secundá-

cos” de regulação e de proteção da popula-

rio (em que se situam os trabalhadores pre-

ção, como a injeção de bilhões de dólares

carizados).

da economia norte-americana proposta

As empresas se valem de um mo-

pelo poder executivo e aprovada pelo po-

mento do capitalismo em que se verifica

der legislativo daquele país, justo o mais

um desemprego do tipo estrutural, oriundo

“liberal”.

da adoção generalizada de tecnologia pou-

No mercado, assim, impera a flexi-

padora de mão-de-obra, para concretizar

bilidade, palavra que abriga inúmeros sig-

ações que restringem os trabalhadores a

nificados, todos relacionados a variações

papéis colaborativos, mais adequados à

do conceito de racionalização produtiva.

nova configuração empresarial. Esta articu-

Ao mesmo tempo em que, do ponto de

lação com variáveis macroeconômicas se

vista organizacional, ser flexível significa

apresenta, no nível da administração, como

adotar processos produtivos mais facilmen-

algo a que forçosamente os empregados

te ajustáveis à demanda e “abraçar” um

precisam se adaptar, sob pena de se torna-

modelo de gestão alternativo à lógica me-

rem descartáveis. A flexibilidade se espraia

canicista de organização do trabalho (De-

como justificativa e prática do que quer

decca, 1996), do ponto de vista individual

que se deseje no âmbito empresarial, para

quer dizer “se ajustar” às condições do

o que contribuem ativamente os consulto-

mercado.

res.

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Saraiva, L.; Mendes, A. ______________________________________________________________________ Assumindo uma linguagem capaz

nível comportamental, que tornam a cola-

de convencer ao enfatizar o alcance de

boração a moeda de troca dos trabalhado-

resultados, a racionalização produtiva, o

res, que precisam – genuinamente ou não –

aumento do nível de controle dos trabalha-

trabalhar em conjunto em prol dos objeti-

dores, por exemplo, os consultores consti-

vos empresariais.

tuem um dos segmentos que possivelmente

Sob o argumento da busca do bem

mais contribuem, do ponto de vista ideoló-

estar dos empregados, observam-se verda-

gico, para a manutenção e vitalidade do

deiros disparates, como o disfarce dos ob-

sistema. A partir de uma base de conheci-

jetivos capitalistas pela valorização dos

mento essencialmente aplicada – compro-

empregados no nível discursivo e, ao

metida tão somente com o acúmulo capita-

mesmo tempo, a simultânea e crescente

lista – a consultoria contribui, enquanto

descartabilidade dos trabalhadores enquan-

ramo de atividade, para que os empresários

to prática como se não houvesse nenhuma

tenham certeza de que seu papel é mesmo

espécie de incoerência nesses aspectos. Se

o de explorar os trabalhadores à revelia do

ela é sentida em algum nível, isso se deve

que eventualmente estes pensem a respeito.

menos à ideologia de onde partem os ar-

Isso implica remeter o debate capital-

gumentos do que aos problemas dos indi-

trabalho a um nível historicamente “ultra-

víduos com o quadro que lhes é apresenta-

passado”, já que, contemporaneamente, os

do. Passa a ser individual, assim, qualquer

dois lados têm o mesmo objetivo, a sobre-

tipo de insatisfação com a situação, já que

vivência da empresa.

as melhores condições possíveis são bus-

Esse é o ponto de partida para que se assuma como natural, mais do que dese-

cadas como objetivo primordial do sistema (Pagès et al., 1987).

jável, a ênfase em tudo aquilo que possa

Segundo Siqueira e Mendes (2009),

materializar o movimento capitalista. Os

inspirados nos estudos da sociologia clíni-

trabalhadores, assim, são estereotipados

ca e psicossociologia, desenvolvidos por

como indivíduos apenas preocupados com

Gaulejac (2007) e Enriquez (1991), as or-

seus próprios problemas e descomprometi-

ganizações idealizam um discurso da exce-

dos com o que compete à organização,

lência, sem analisar os efeitos destas novas

precisando, por conta disso, de uma disci-

filosofias para o trabalho no dia-a-dia. Esta

plina rígida, e de socialização deliberada

idéia não pretende ignorar a necessidade de

para que aprendam a se comportar como

produtividade e lucro das empresas, sua

esperado. Não é casual, assim, a dissemi-

eficiência e eficácia, mas reforçar os efei-

nação de programas de treinamento no

tos sobre o sujeito-trabalhador decorrentes

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Saraiva, L.; Mendes, A. ______________________________________________________________________ da obsessão pela produtividade e por resul-

duo ao discurso e às práticas organizacio-

tados. Há, evidentemente, a necessidade de

nais.

uma gestão orientada para resultados, mas

O trabalho apenas pode ser efeti-

não a despeito da deterioração das relações

vamente prazeroso se ele estiver ligado a

de trabalho, ferindo a ética humana. Afinal,

uma dinâmica interna de valorização da

que homens e mulheres estão sendo produ-

luta pela autonomia, apesar dos determi-

zidos a partir destas lógicas?

nismos sociais e psíquicos. O problema é

De acordo com os autores, a orien-

que ao invés de se guiar no caminho da

tação gerencialista está cada vez mais vol-

liberdade e em sua transformação em sujei-

tada para produção e menos para as rela-

to de sua própria história, o indivíduo se

ções, precarizando o trabalho, fazendo com

deixa amarrar pelas armadilhas estratégicas

que ele perca o sentido, dessubjetivando o

desenvolvidas pelas organizações com o

trabalhador, transformando-o em robô,

auxílio de consultores empresariais.

estimulando uma automação que o torna

Estes profissionais na ânsia de ge-

artificial, ou seja, criando verdadeiras “pró-

rar mais riqueza para os acionistas e na

teses humanas”. Desse modo, as empresas

perspectiva de alcançar a seus sonhos de

têm muito a oferecer aos trabalhadores,

poder se lançam em uma banalização da

uma vez que o trabalho é um estruturante

reificação do indivíduo, auxiliando ainda

psíquico, pode se constitui em fonte de

mais na precarização do trabalho. A orga-

prazer e identidade para homens e mulhe-

nização do trabalho dificilmente é dese-

res, sendo as organizações um dos espaços

nhada de modo a se respeitar os limites dos

para esta construção do humano.

empregados ou a se impedir que o trabalho

Compreende-se então o trabalho, ao

se transforme em uma forma de adoeci-

lado do amor, como tendo papel de ampla

mento do indivíduo. Tudo gira em torno do

relevância no equilíbrio psíquico do indi-

aprimoramento da gestão, que como diria

víduo, mas não essa modalidade de traba-

Gaulejac (2007) está doente, pois vem

lho que identificamos nas organizações

pressionando de tal maneira o indivíduo,

atuais, um ritmo de trabalho que vem ado-

que o adoecimento e a morte relacionada

ecendo o indivíduo. Os atuais processos de

ao trabalho podem ser comprovados por

trabalho, as diversas modalidades de con-

inúmeras estatísticas em várias partes do

trole, as diversas vigilâncias, os crescentes

mundo.

modismos gerenciais mostram a necessi-

Por isso, é necessário o estudo dos

dade de criar resistências que possam auxi-

efeitos deletérios desta lógica perversa

liar na minimização da servidão do indiví-

sobre a subjetividade. É uma lógica capaz

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Saraiva, L.; Mendes, A. ______________________________________________________________________ de destruir o ser humano, criar modos pa-

se adaptar a uma sociedade cujas regras, no

tológicos de comportamento, construir

entanto, lhes parecem derivar do bom sen-

subjetividades guiadas por condutas de

so, da evidência, da lógica natural. Sendo

normopatia, ou seja, seres que não se afe-

bem sucedidos na sociedade e no trabalho,

tam consigo, com o outro e com o mundo,

os normopatas se ajustam bem ao confor-

são capazes das maiores atrocidades com

mismo, como um uniforme, e portanto

outros, uma vez que o sofrimento é banali-

carecem de originalidade, de “personalida-

zado e com isso a ética humana compro-

de”.

metida. Nesta direção, questiona-se o tra-

Uma contribuição decisiva para a

balho do consultor de mercado, muitas

elucidação do funcionamento mental do

vezes, contaminado por esta lógica e trans-

normopata foi dada pela psicossomática,

formado pelas organizações em um nor-

particularmente por Pierre Marty e seus

mopata.

colaboradores no Instituto de Psicossomática de Paris (IPSO). A noção de “pensa-

A normopatia

mento operatório”, detectado por Marty e M'Uzan nos pacientes somatizadores, foi o

“Normopatia” é um termo usado

princípio para o desenvolvimento do termo

por psicopatologistas (McDougall, 1992)

normopatia. Entretanto, foi Joyce McDou-

para designar certas personalidades que

gall a primeira dentro da psicanálise a no-

caracterizam por sua extrema “normalida-

mear essa problemática psicopatológica,

de”, no sentido de conformismo com as

reconhecendo o normopata com as caracte-

normas de comportamento social e profis-

rísticas presentes no “pensamento operató-

sional. Pouco fantasistas, pouco imaginati-

rio” de Marty e M'Uzan, quais sejam: po-

vos, pouco criativos, eles costumam ser

breza da linguagem, asfixia afetiva e au-

notavelmente integrados e adaptados em

sência de atividade fantasmática conscien-

uma sociedade na qual se movimentam

te. No entanto, este não somatiza. A expli-

com desembaraço e serenidade, sem serem

cação de McDougall para tal diferença é

perturbados pela culpa, a que são imunes,

que “o fator de inércia é contrabalanceado

nem pela compaixão, que não lhes concer-

nestes indivíduos pela agressividade diri-

ne (Mendes; Duarte, 2013); como se não

gida a certas pessoas ou determinados as-

vissem que os outros não reagem como

pectos da vida, suscitando-lhes uma irrita-

eles; como se não percebessem mesmo que

ção considerável e contínua”, enquanto que

os outros sofrem; como se não compreen-

“a expressão da agressividade parece ine-

dessem por que os outros não conseguem

xistir em doentes psicossomáticos”.

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Saraiva, L.; Mendes, A. ______________________________________________________________________ Na articulação dos dispositivos dis-

banalização do mal no exercício de atos

ciplinares encontra-se a origem da submis-

civis comuns, por parte dos que não são

são e da adesão. As expressões de violên-

vítimas da exclusão (ou não o são ainda) e

cia, na forma de assédio moral e abusos de

que contribuem para excluir parcelas cada

gestão, aparecem como estratégias disci-

vez maiores da população, agravando-lhes

plinares dissimuladas na lógica organizaci-

a adversidade” (Dejours, 1999, p. 21). Tra-

onal sob a máscara da razão e da necessi-

ta-se, segundo o autor, “nada de excepcio-

dade, justificada pelo discurso da eficiên-

nal”. Pois se trata da própria banalidade e

cia e da produtividade (Mendes; Duarte,

não só a banalidade do mal, mas a banali-

2013). A eficácia deste sistema disciplinar

dade de um processo que é subjacente à

deve-se ao fato destes mecanismos serem

eficácia do sistema liberal econômico. “O

dirigidos para um coletivo segmentado, no

problema é o do desenvolvimento da tole-

qual os espaços de reconhecimento são

rância à injustiça. É justamente a falta de

escassos e onde predomina a “racionaliza-

reações coletivas de mobilização que pos-

ção”, o “individualismo”, a “normopatia” a

sibilita, por exemplo, o aumento progressi-

“banalização da injustiça social” (Dejours,

vo do desemprego e de seus estragos psico-

1999).

lógicos e sociais, nos níveis que atualmente Arendt (1989; 1999a; 1999b) cu-

conhecemos. A banalização é um processo,

nhou o conceito de “banalização do mal”,

graças ao qual um comportamento excep-

que de acordo com Merlo, Traesel e Baier-

cional, habitualmente impedido pela ação e

le (2013, p. 71), se refere à “supressão da

o comportamento da maioria, pode ser eri-

capacidade de pensar”, isto é, “a ausência

gido como norma de conduta, ou seja, co-

de consciência ou de reflexão sobre a ação

mo um valor” (Dejours, 1999, p. 117).

que é tomada como natural dentro de um

As três características da normopa-

determinado contexto (banalizada) e assim,

tia são: a indiferença para com o mundo

aceito e reproduzido pelas pessoas”. Esta

distante e colaboração no “mal tanto por

ideia foi posteriormente atualizada por

omissão quanto por ação”; a suspensão da

Dejours para “banalização da injustiça so-

faculdade de pensar, substituindo-a pelo

cial”. Ele descreve esta banalização como

recurso aos estereótipos dominantes, tais

“exclusão e a adversidade infligidas a ou-

como: “todo mundo faz, por que não vou

trem em nossas sociedades, sem mobiliza-

fazer?”, “não adianta agir diferente, porque

ção política contra a injustiça que derivam

não tem jeito”, “se eu não o fizer, o outro o

de uma dissociação estabelecida entre a

fará”; a abolição da faculdade de julgar e

adversidade e a injustiça, sob o efeito da

da vontade de agir coletivamente contra a

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Saraiva, L.; Mendes, A. ______________________________________________________________________ injustiça (Novelli e Ramos, 2003, p. 8). É

frimento em função da intensidade com a

uma cisão cada vez maior entre as realida-

qual a lógica perversa de gestão invade seu

des interna e externa, onde o sujeito supri-

psiquismo. O poder de sedução do imagi-

me a primeira e sobreinveste na segunda,

nário organizacional e as promessas do

perdendo o contato consigo.

modo flexível de produção, refletidos no

Surge então uma configuração psí-

gerencialismo, mobilizam o narcisismo, e

quica denominada normopatia, que nada

em nome dele o sujeito é capturado na rede

tem a ver com normalidade. Trata-se de

das perversões organizacionais e aos pou-

uma normalidade falsa, estereotipada, que

cos vai assumindo comportamentos de

decorre de um processo de adaptação de-

normopatia. Deste modo, transforma-se no

fensiva. São aquelas pessoas que estão

“colaborador” ideal, aquele que é capaz de

muito firmemente ancoradas na realidade

não se afetar pelas atrocidades e pelas de-

objetivamente percebida; são as que estão

vastadoras implicações sociais do da exce-

doentes no sentido oposto (ao do psicóti-

lência.

co), dada a sua perda de contato com o

As práticas gerenciais passam a ser

mundo subjetivo e com a abordagem cria-

percebidas como naturais, omitindo a di-

tiva dos fatos (Mendes; Duarte, 2013). De

mensão ideológica, mascarando as relações

fato, uma das características da normopatia

de dominação. O indivíduo passa a se auto

é a incapacidade de fantasiar, de sonhar,

controlar, sem que as modalidades tradici-

pois o mundo interno está desinvestido. Os

onais de controle sejam extintas, a dizer: o

discursos de normóticos referem-se princi-

controle físico ou controle ideológico. Ele

palmente a objetos do mundo exterior. Dito

começa a interiorizar progressivamente a

de outra forma, uma pessoa normótica é

cultura da organização, o imaginário orga-

aquela anormalmente normal. É demasia-

nizacional, de tal forma que a sua única

damente estável, segura, à vontade, confor-

busca é a manutenção e o desenvolvimento

tável e socialmente extrovertida. Portanto,

do sistema de dominação em que ele está

a normopatia é uma das manifestações

inserido. Há, inclusive, o desejo em em-

mais evidentes da banalização do mal e da

preender, em se lançar em competição

injustiça social na descrição de Dejours.

constante por ser o melhor, o mais rápido,

Como defesa, a normopatia é um

o desejo de ter mais o de que ser, como

modo de se afastar do sofrimento ético,

diria Fromm. O modo ter passa a ser bem

indignação necessária para combater as

mais presente do que o modo ser. Além

injustiças provocadas pelo trabalho e de se

disso, a afetividade é instrumentalizada

humanizar. O sujeito não suporta este so-

para que se possa levar a um maior com-

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Saraiva, L.; Mendes, A. ______________________________________________________________________ prometimento do indivíduo com a empre-

que retorna aos que trabalham em forma de

sa, independentemente do que ela venha a

síndrome pós-traumática, vivenciada pelas

realizar. Salienta-se, entretanto, que o indi-

vítimas de assaltos ou outros tipos de

víduo não está livre dos dilemas éticos

agressão ocorridas no local de trabalho. Do

vivenciados cotidianamente no contexto

ponto de vista do trabalho formal em orga-

organizacional, apesar de parecer deles

nizações burocráticas, foco dessa análise,

estar liberto.

estes efeitos são vivenciados, em alguns

O indivíduo vislumbra apenas este

casos, de modo direto e explícito, mas na

caminho para se destacar, para alcançar

maioria das vezes, ele é invisível e silenci-

seus desejos de consumo, para hipotetica-

ado.

mente curar feridas narcísicas. Tudo gira

A resignação, a aceitação da cruel-

em torno de buscar um lugar ao sol. Como

dade com o Outro nas organizações, o en-

diria Gaulejac em suas primeiras obras, a

fraquecimento do coletivo pode deixar o

luta atual não é a luta de classes, mas a da

trabalhador escravizado. Anteriormente,

busca por um lugar ao sol. É necessário se

utilizavam-se correntes, atualmente, os

destacar e a empresa, que se baseia emi-

grilhões são simbólicos, tornando-os mais

nentemente no imaginário do logro prome-

perigosos, porque são invisíveis. Nesse

te o sucesso em sua busca, desde que ele

contexto, se percebe trabalhadores escravi-

comungue com os seus pares do catecismo

zados. Encontram-se em algumas organi-

da empresa, não havendo como esquecer

zações profissionais adoecidos, deprimi-

da obra de Pagès et al. (1987) em que os

dos. Solidões socialmente produzidas, pelo

autores fazem referência aos sacramentos

descaso de gestores, pela sobrecarga de

da Igreja Católica para evidenciar como se

trabalho, pela insegurança de ser substituí-

vivencia o mesmo na instituição empresa.

do por alguém, pela tirania das trocas produtivas, para citar alguns exemplos.

Efeitos da perversão e da normopatia na subjetividade

dos

consultores

de

mercado

Cabe indagar que tipo de ser humano está sendo constituído neste contexto, uma vez que há uma tendência à adaptação, isto é, como a lógica perversa de ges-

As transformações do mundo do

tão produz normopatia? Que tipo de con-

trabalho, além de gerar precariedade para

sultor de mercado está sendo construído?

aqueles que trabalham e são ameaçados

Que sujeito é esse? Observa-se um reforço

pelo desemprego, têm produzido efeitos

da racionalidade instrumental e uma des-

sociais drásticos, como a violência urbana,

particularização das diferentes situações

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Saraiva, L.; Mendes, A. ______________________________________________________________________ entre os trabalhadores, que vem se trans-

da. O consultor é o salvador que vem cor-

formando cada vez mais em máquina, sen-

rigir os processos e as pessoas. O seu gozo

do o consultor, um dos instrumentos ou

ocorre no momento em que ele consegue,

“colaborador” para patrocinar esta mudan-

mesmo com custos relacionados ao sofri-

ça, isto é, transformar os trabalhadores em

mento humano, a ampliação dos resultados

normopatas. Pode-se pensar em uma ana-

organizacionais. Ele assume o discurso da

logia com o caso Eichmann, analisado por

empresa como o seu, como um mercenário

Arendt (1989, 1999b) e discutido por De-

pronto a entrar em qualquer combate, se

jours (1999) na obra banalização da injus-

for bem remunerado, ele se lança em uma

tiça social.

luta contra os improdutivos, que deverão

Hipotetiza-se que os discursos e

ser excluídos. Por meio de um mecanismo

ações da maioria dos profissionais de con-

de controle quantitativo, pode-se mensurar,

sultoria de mercado são discursos totalitá-

comparar e classificar os indivíduos, de

rios que potencializam e paralisam os pro-

modo a excluir todos aqueles que não são

cessos criativos, desresponsabilizando a si

percebidos como úteis à empresa. E este

mesmo e aos clientes de pensar suas práti-

aspecto utilitário será sempre visto no ge-

cas e seu compromisso com o Outro.

rúndio. Não basta ao indivíduo contribuir

Não há espaço para o outro, para a

incansavelmente em alguns períodos, mas

alteridade nas organizações atuais. E talvez

esta contribuição deve ser contínua, não

o que pode existir de mais importante no

havendo espaço para desmotivações. É a

aprofundamento dos elos sociais, seja jus-

propagação de uma das mais perversas

tamente o olhar o outro, o gosto da alteri-

expressões corriqueiras do mundo do tra-

dade, do diferente. O olhar do consultor

balho: o vestir a camisa da organização.

normalmente não está direcionado ao indi-

Do lado do consultor, ele buscará manter

víduo, mas a um padrão de ação que o di-

esta paixão do indivíduo ao mesmo tempo

reciona em torno de uma prática de reco-

em que se mantém distante da afetividade

nhecimento de números e não de subjetivi-

relacionada a suas decisões, em suma, “fa-

dades. A subjetividade do empregado ape-

ço apenas o meu trabalho”.

nas é ressaltada no momento em que ela

Tal processo ocorre uma vez que o

possa ser seqüestrada em prol dos objeti-

próprio consultor como sujeito está desvin-

vos organizacionais.

culado do afeto que o mobiliza para ação.

E o mais interessante é que a frieza

Segundo Lacan (1998), para não se castrar,

do indivíduo é vivenciada ao mesmo tem-

o sujeito dirige a sua frustração para o ob-

po em que a paixão pelo desafio é aciona-

jeto possível, podendo ser um carro que

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Saraiva, L.; Mendes, A. ______________________________________________________________________ está no seu caminho ou apontando uma

am ser transmitidos pelos exemplos e pela

arma para aquele que contraria os seus

persuasão, e não impostos. Toda a tentativa

ideais. Essas questões recalcadas nas mo-

de conquistar uma pessoa para algum pon-

dalidades de laço social, as quais empur-

to de vista, ou mesmo expô-la a um ponto

ram violentamente o sujeito ao gozo, con-

de vista diferente do seu, torna-se uma

cebem sujeitos alheios, descomprometidos

interferência intolerável na liberdade de

frente a uma realidade posta (imposta), em

escolha.

que são suspensos seus dilemas éticos,

Quando o sujeito deixa de se sub-

contribuindo assim, para os comportamen-

meter ao desejo do outro para se apropriar

tos de normopatia.

do próprio, é possível lidar melhor com as

Diferente de uma protagonização já

contradições psíquicas, uma vez que já

certa, muitas vezes com um script perfeito,

aceita a sua parte impotente, a que lhe pro-

ideais a serem seguidos, o sujeito só reco-

voca sofrimento por não atender a um ide-

nhecerá que suas certezas não são provas

al. O imaginário deixa de ser ameaçador,

de verdade e que suas percepções são tão

vitimizado, paranóico, pois ao nomear a

válidas quanto aos dos que convivem com

violência simbólica que é dirigida ao ego

ele, quando defrontado em seu universo

por uma demanda ilusória externa, é possí-

subjetivo. Caberá, pois, a busca de uma

vel identificar a manipulação, invasão,

perspectiva mais abrangente, de que se

colonização e ocupação de forças estra-

exercite estar na pele do outro e que seus

nhas, dissociadas da vontade própria.

afetos e pensamentos também tenham lu-

Para auxiliar o sujeito a diminuir

gar nesse cenário. E parece não ser este o

sua busca interminável nas respostas às

caminho tomado por alguns consultores.

exigências ao ideal de ego, é importante

Com base nas idéias de Castells

aliar o eu ao superego, uma forma de de-

(1999) e Bauman (1999), defende-se que

senvolver a capacidade simbólica de re-

ser um sujeito autônomo é se sentir livre

considerar a lei, a norma, um sentido de

para assumir as escolhas diante do social.

pertinência. O superego limita uma socie-

Tornar-se um sujeito do desejo se torna

dade que não reconhece seus limites, tra-

possível porque em algum momento já

duzidos na sobrecarga de trabalho, em re-

fomos assujeitados ao desejo de um outro.

lacionamentos superficiais, em que não há

O indivíduo confrontado percebe que nin-

espaço para fracassar, na intolerância à

guém tem o direito de impor as suas pró-

diferença e na valorização narcísica, com

prias preferências ou julgamentos morais a

uma significativa perda de individualidade

qualquer outro. Os valores morais deveri-

e ausência de auto-afirmação.

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Saraiva, L.; Mendes, A. ______________________________________________________________________ Na busca pela felicidade, é possível

propriamente humano como jamais visto

que algumas pessoas consigam modificar

em outro período da história da humanida-

suas concepções, crenças, percepções do

de. Como resultado de um processo em

mundo, idéias e tudo o que forma o ma-

vigência há décadas, emerge um perfil de

nancial simbólico que as sustenta. Mas

um profissional que preocupa não tanto

esse processo exige disposição, desacomo-

pelo que eventualmente sabe ou como se

dação e um bom motivo. Muitos talvez

comporta, mas sobretudo pelo que deixa de

prefiram permanecer cativos, presos às

sentir. É tão normal uma certa apatia que

suas próprias e seguras convicções, em um

chega a causar espanto que os indivíduos

processo de assujeitamento, reforçado pe-

se incomodem com a demissão de colegas

las normas totalitárias, que primam pelos

ou com injustiças no âmbito do processo

interesses políticos e econômicos.

produtivo, já que isso é normal.

É este sujeito, emancipado e huma-

O não dito sobre esta perspectiva é

no que muitos consultores não são, sendo

que ela esconde um projeto mais amplo, de

tomados e domados pela normopatia, que

uma área que, como tão bem colocou

assume lugar privilegiado na sua subjetivi-

Aktouf (2004), é o braço armado da eco-

dade e nas formas de sua atuação profissi-

nomia: de tornar os sujeitos, no sentido

onal.

apontado por Pimenta (1999, p. 137) – “sejam sujeitos, é a nova palavra de or-

Considerações finais

dem” – ambiguamente líderes na sua apatia. Isso quer dizer que, por um lado, não

Neste ensaio, pretendeu-se discutir

se abre mão da inteligência dos homens e

as dimensões subjetivas da relação entre

mulheres, que agora precisam objetiva-

consultores e organizações clientes. Assu-

mente mobilizá-la para atender a uma ele-

miu-se como pressuposto que os consulto-

vada e flexível demanda do mercado. A

res, mais do que contaminados, são disse-

especialização flexível criou condições

minadores, no âmbito das empresas, de

efetivas de raciocino aplicado ao processo

uma lógica perversa de funcionamento

produtivo. Ainda que se possa argumentar

organizacional, o que pode resultar em

que o que se demanda cognitivamente é

comportamentos normóticos, e om isso sua

pouco em relação ao potencial humano, e

própria dessubjetivação.

que se estaria assistindo a uma nova fase

O processo de gradativa de desu-

da acumulação produtiva, é indiscutível

manização atualmente presenciado pressu-

que os tempos do homem bovino ficaram

põe um nível de esvaziamento do que é

para trás, não tanto pela inadequação do

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Saraiva, L.; Mendes, A. ______________________________________________________________________ conceito – útil a muitos empresários – mas

silenciosa e preocupada com o alcance dos

em função das possibilidades de valor

resultados. Nesse ambiente, só é favoreci-

agregado que a tecnologia microeletrônica

do o adoecimento sistemático e a descarta-

encerra.

bilidade dos indivíduos em prol de uma

Todavia, a ambigüidade a que se referiu anteriormente se concretiza em outra

lógica que toma tudo como consumível com um certo prazo de validade.

instância: a da apatia normótica. A aludida

As implicações desse processo es-

inteligência, agora algo reconhecida no

tão em três níveis inter-relacionados. No

âmbito das organizações, é necessariamen-

primeiro, no nível macro, o que se deno-

te submissa porque é associada desde o

mina lógica de competição global é algo

primeiro momento a um projeto organiza-

tão artificial quanto os padrões de competi-

cional que limita os sujeitos a assumirem

tividade a que se propõe, sendo na verdade

como seu um empreendimento econômico

os parâmetros de reduzidas instâncias polí-

que não lhes pertence, e que, na verdade,

tico-econômicas, que emanam regras a

lhes antecede e pretende lhes suceder. Ar-

serem cumpridas, mas não por eles pró-

gumentos ligados à ausência de oportuni-

prios. Evidências recentes já mostraram os

dades em um mercado de trabalho hiper-

limites de uma economia sempre crescente.

competitivo, em que profissionais melho-

Sob o argumento de ser sempre vencedor

res eventualmente se submetem a condi-

(winner) no jogo econômico, países e seg-

ções precárias de trabalho pra fazer o

mentos inteiros forjaram números, subor-

mesmo que profissionais do núcleo central

naram agentes que deviam fiscalizá-los e o

de trabalhadores, funcionam como meca-

sistema, que era considerado tão exato,

nismos de estímulo ao comportamento

nada pôde fazer exceto ruir – até que o

normótico.

Estado entrou em cena para cumprir o pa-

Nesse processo, os consultores assumem a perversidade do capitalismo e a

pel pelo qual tanto havia sido tão criticado por esse mesmo mercado.

corporificam, materializando a instância

No nível meso, as empresas se va-

reprodutora dos discursos neoliberais no

lem de argumentos semelhantes para se-

âmbito das empresas. Sua atuação, mais do

mear uma dinâmica de competição exacer-

que reforçar a dinâmica organizacional em

bada, assentada sobre o enfraquecimento

prol de resultados, encerra um desafio sem

de todo e qualquer laço social entre os su-

limites aos empregados, que devem esperar

jeitos que possa significar questionamento

sempre mais em termos de fixação de obje-

do sistema. Assim, além de conseguir indi-

tivos e reagir de uma maneira conformada,

vidualizar a competição, e as recompensas

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Saraiva, L.; Mendes, A. ______________________________________________________________________ pelo alcance dos crescentes resultados,

Referências

torna estritamente psicológico qualquer tipo de conflito, já que, em face do enfra-

Aktouf, O. (2004). Pós-globalização, ad-

quecimento da solidariedade e das entida-

ministração e racionalidade econô-

des representativas, é o indivíduo, sozinho,

mica: a síndrome do avestruz. São

que lida com a organização. É muito mais

Paulo: Atlas.

simples, nesse sentido, fazê-lo compreen-

Arendt, H. (1999a). Eichmann em Jerusa-

der sua pequenez frente ao projeto empre-

lém. São Paulo: Companhia das Le-

sarial. Nada mais natural, assim, que trans-

tras.

formar o consenso conseguido pelo silên-

Arendt, H. (1999b). A condição humana

cio espantado de sujeitos isolados em con-

(9a. ed.). Rio de Janeiro: Forense

sentimento coletivo da perversidade sus-

universitária.

tentado pela farsa da impossibilidade social de reação. No nível micro, os sujeitos dispõem

Arendt, H. (1989). Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras.

do mesmo potencial de reação. Mas é jus-

Bauman, Z. (2008). Vida para consumo.

tamente a eles negada de forma mais vee-

Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

mente essa consciência, porque é no nível

Bauman, Z. (1999). Globalização:

individual que são mais sofisticadas as

as conseqüências humanas. Rio de

armas dos consultores com o propósito de

Janeiro: Jorge Zahar.

neutralizar profissionais que eventualmente

Bordieu, P. (1998). A máquina infernal.

possam fugir do jugo da empresa. Integram

Folha de São Paulo, São Paulo, 12

esta perspectiva ações amplas, de progres-

jul. 1998.

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Trabalho e saúde: o sujeito entre

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Juruá.

“normal”, não fossem seres humanos os alvos e os empreendimentos nos quais tais

Castells, M. (1999). A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra.

processos ocorrem.

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Luiz Alex Silva Saraiva: Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]

Ana Magnólia Mendes: Pós-Doutora pelo Conservatoire National des Arts et Metiers. Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília. Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]

Recebido em: 22/09/2013 – Aceito em: 11/06/2014

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