\" Decifra-me ou te devoro \" Traçando caminhos e perspectivas para uma aproximação ao Fenômeno Religioso

June 5, 2017 | Autor: C. Barboza de Souza | Categoria: Epistemologia, Epistemologia da Crença Religiosa, Ciências da Religião
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"Decifra-me ou te devoro"


Traçando caminhos e perspectivas para uma aproximação ao Fenômeno Religioso


Carlos Frederico Barboza de Souza [1]


"Decifra-me ou te devoro". Assim dizia a esfinge para os que dela se
aproximavam, segundo a narrativa mitológica de Édipo Rei, de Sófocles. Da
mesma maneira, com esta afirmação este capítulo se inicia. E perguntas
inevitáveis nos surgem: o que a vida tem de indecifrável que se não nos
dermos conta pode nos devorar? O que significa ser devorado? E as religiões
nisto tudo? De alguma maneira elas precisam ser decifradas? O que nos
ajudaria – como seres humanos em suas lutas e sonhos cotidianos – decifrar
as religiões? O que significa decifrar as religiões? São questões que dizem
respeito às nossas motivações para estudar o fenômeno religioso, ou seja,
por que estudá-lo? O que nos acrescenta como profissionais e seres humanos
estudá-lo?
Deixando um pouco de lado as questões acima, uma coisa é certa: ao nos
aproximarmos de qualquer tema de estudo, necessitamos de uma abordagem
simultaneamente profunda e sólida na fundamentação da análise proposta. Do
contrário, podemos crer que estamos conhecendo bem tal conteúdo e não nos
apercebermos que apenas reproduzimos preconceitos sobre o mesmo ou até
repetindo opiniões – boas ou más – de outras pessoas.
E quando se trata do fenômeno religioso, ainda devemos estar atentos
ao fato de que nos deparamos com realidades não raro desconhecidas,
complexas e, muitas vezes, bem distintas de nosso modus vivendi.
Complexidade esta acentuada devido ao fenômeno da globalização e a
constituição de sociedades com formas plurais de cultura, valores,
organização social etc.
Com isto, se faz necessário desenvolver perspectivas que propiciem a
compreensão do outro com o intuito de percebê-lo em sua especificidade e em
vistas a uma convivência pacífica, respeitosa e tolerante, capaz de
resgatar os valores singulares de cada expressão cultural.
Com o intuito de evitar ou, ao menos, amenizar tais riscos é que este
capítulo foi escrito. Como conhecer bem nosso objeto de estudo: o fenômeno
religioso? Que atitudes cognoscitivas devemos desenvolver e aprimorar para
não falsificar nossa abordagem? Que posturas diante deste fenômeno devemos
ter para que o conhecimento que venhamos a adquirir não seja uma percepção
distorcida de sua realidade?
São questões que surgem aos que se deparam com o indecifrável da
experiência humana e religiosa. Portanto, perguntas como estas são
importantes de serem discutidas e uma reflexão sobre elas nos ajuda no ato
de produzir conhecimento. Por isto, aqui trataremos de alguns cuidados
necessários na relação com o ato de conhecer as religiões. E como o
conhecimento é um ato que envolve alguns elementos: a pessoa que conhece; o
que é conhecido; e a interação entre estes dois elementos, nossa discussão
procurará refletir a partir de cada um destes elementos em separado,
embora, no ato de conhecer, estejam todos profundamente interligados.

1. Consciência acerca de nós mesmos frente ao Fenômeno Religioso

Partindo do primeiro destes elementos, ou seja, o sujeito cognoscente
e sua consciência, é importante a clareza de que a consciência humana
encontra-se sempre situada historicamente, e possui, desta maneira, uma
carga de conhecimentos prévios ao seu contato com o fenômeno a ser
estudado. Portanto, o primeiro passo a ser dado em direção a um
conhecimento pertinente acerca do fenômeno religioso é um conhecimento
acerca de nós mesmos: o que pensamos e sentimos diante deste tipo de
fenômeno? Que imagens vêm à nossa mente e que sensações podemos perceber
quando nos deparamos com esta temática? Quais são nossas posturas acerca
das religiões? Somos pessoas religiosas? Se sim, de que maneira somos
religiosos? Frequentamos algum grupo religioso? Possuímos opinião formada
sobre o assunto? Possuímos dificuldades de lidar com a questão religiosa?
Caso as tenhamos, que dificuldades são estas? Porque as temos?
Experimentamos algum tipo de preconceito com alguma tradição religiosa? Que
juízos carrego sobre as diversas tradições religiosas com que já me
deparei? Conheço a fundo alguma tradição religiosa? As informações que
tenho acerca das tradições religiosas e suas manifestações foram analisadas
com algum rigor? É um assunto que me interessa? Dentre outras.
Responder a perguntas como estas nos ajudará a ter consciência de
nossas pertenças, a saber de onde falamos e com que pontos de vista;
propiciará saber sobre os conhecimentos prévios que possuímos, sobre os
nossos pré-conceitos e idealizações. Isto é importante para sabermos lidar
de forma clara, crítica e mais realista com o fenômeno religioso quando com
ele nos depararmos, tendo presente nossas opiniões e opções pessoais e
existenciais acerca desta realidade que se nos apresenta.
Dando um passo adiante, para um melhor conhecimento de nossa relação
com o fenômeno religioso, faz-se necessária também adquirir uma postura de
certo distanciamento de nossas concepções adquiridas nos ambientes
familiares e em nossa história pessoal. Isto quer dizer o que? Quer dizer
que devemos tentar ir além de nossa experiência pessoal e informal. É a
mesma distinção – frequentemente realizada no âmbito de nossas áreas
acadêmicas – entre senso comum e conhecimento científico que precisa ser
feita. Este distanciamento é importante para que não caiamos nas afirmações
e generalizações fáceis acerca das tradições religiosas tais como: os
católicos são assim... ou os evangélicos possuem tais comportamentos... ou
os umbandistas crêem de tal forma. Todas estas afirmações se caracterizam
por ser uma generalização superficial da tradição religiosa em questão,
supondo que todos os praticantes da mesma se comportam de forma homogênea,
não havendo diversidade nas formas de praticar, crer e viver a própria
religião. Neste sentido, é interessante que façamos um breve exercício de
memória e, possivelmente, vamos nos lembrar de nós mesmos fazendo
afirmações desta forma como também nos lembraremos de outras pessoas agindo
de igual maneira.
Além do mais, distanciarmo-nos de nossas concepções nos ajudará a
perceber certa ambiguidade nas expressões religiosas, que podem carregar
elementos altamente positivos como elementos negativos. Assim, podemos
caminhar para não identificarmos as religiões como algo positivo ou
negativo dependendo de nossa experiência pessoal, pois existem muitas
experiências interessantes e positivas nas diversas tradições religiosas,
mesmo que minha experiência, em geral, tenha sido ruim; assim como há
expressões violentas dos mais variados tipos, como "as cruzadas", os
chamados "homens bomba" ou posturas religiosas excludentes e
preconceituosas, mesmo minha experiência religiosa sendo boa. Ter
consciência de que nossa experiência das religiões não é absoluta, nem é a
única experiência possível, é fundamental.
Por fim, focando ainda no sujeito cognoscente, uma sugestão que pode
ser interessante é permitir um diálogo do fenômeno estudado com a minha
própria vida de estudante. Ou seja, que ao nos dedicarmos a conhecer de
forma mais profunda o fenômeno religioso, sejamos capazes de reconhecer em
nossas próprias vidas e na vida de nossa sociedade situações semelhantes
presentes nas vivências das religiões. Por exemplo, podemos pensar nas
situações de alegria. O que fazemos quando queremos comemorar uma conquista
importante, como, por exemplo, quando nos formamos em algum curso após um
período de grande dedicação? Há um ritual de formatura? A família se reúne?
Faz-se uma festa? Um churrasco? Considera-se uma etapa da vida concluída?
Se pensarmos nestes mesmos elementos tão comuns nas vidas dos seres
humanos, como podemos entender as grandes festas religiosas? O que eles
estão comemorando? Qual pode ser o significado desta comemoração para um
praticante e crente de determinada tradição religiosa?
Outro exemplo das possíveis semelhanças entre nossa vida e as
religiões se encontra no discurso mitológico presente nas tradições
religiosas, que muito se utiliza deste tipo de recurso em suas linguagens,
celebrações e rituais. Houve uma época em que se pensou na total exclusão
da mitologia da vida da sociedade, sendo este tipo de discurso considerado
inferior e infantil quando em relação com o discurso racional e científico.
Porém, se olharmos detidamente, não só este tipo de linguagem não se
extinguiu como é muito forte em nossa sociedade ainda hoje, mesmo com todos
seus avanços científico-tecnológicos. Sobretudo, se nos detivermos sobre os
meios de comunicação de massa, poderemos ver que, com freqüência, trabalham
com um discurso semelhante ao do mito, guardando-se as devidas diferenças
entre ambos os casos. Basta que pensemos nos recursos presentes nas
campanhas publicitárias ou nas campanhas eleitorais, que, com freqüência,
criam imagens de super heróis para os candidatos aos cargos políticos.
E mesmo em áreas acadêmicas como a psicanálise e a psicologia do
profundo, Freud e Jung lançaram mão de vários relatos mitológicos para
explicar suas teorias do inconsciente e o acesso ao mesmo. Se os mitos lhes
ajudaram a desvendar os mistérios da psique humana, da mesma forma,
narrativas mitológicas presentes nas religiões podem nos ajudar a
compreender muitas dimensões do ser humano e de suas variadas formas de
viver, se organizar, se auto compreender e agir.
Outro exemplo, agora no âmbito da economia, é a forma quase que
religiosa que muitos de nós lidamos com o consumismo e o sacrifício
necessário para mantermos nosso poder de compra e o status social
decorrente deste procedimento; ao possuirmos tal roupa de marca ou tal
aparelho celular com tais possibilidades, muitas vezes, ilusoriamente, nos
sentimos poderosos, melhores, transformados. E podemos pensar também nas
ideias referentes ao mercado que como uma "mão invisível" a tudo supre,
ideia esta semelhante à concepção de Divina Providência, bem presente nos
meios cristãos, que com sua mão cuidadosa a todos favorece.
Portanto, independente do fato de alguém crer ou não nas verdades de
uma determinada tradição religiosa, conhecê-la a partir de uma aberta
abordagem pode propiciar auto conhecimento e um enriquecimento pessoal,
gerando aprendizado e reflexões sobre a própria vida e seu sentido.
Esta postura de buscar semelhanças entre a própria existência e as
tradições religiosas também possui uma dimensão pedagógica interessante,
pois somente quando sou capaz de reconhecer em mim algo de profundamente
humano é que posso reconhecer o mesmo no outro e vice versa. Assim,
reconhecer elementos vividos pelas tradições religiosas na própria
experiência pessoal é uma ponte que possibilitará um melhor conhecimento da
experiência vivida pelas pessoas religiosas.
Por fim, um último elemento se torna importante: a capacidade de
deixar-se afetar pela tradição religiosa estudada. Não se trata de
converter-se à religião de outra tradição nem de concordar com tudo que ela
prega, mas, principalmente, ser capaz de deixar-se tocar e questionar por
ela e descobrir elementos ricos do ponto de vista da humanização e da
experiência religiosa por ela tematizada. Isto nem sempre é fácil, mas
ajuda sobremaneira à identificação e envolvimento com o próprio objeto de
estudo, além de gerar conseqüências boas para os envolvidos no processo de
conhecer uma determinada religião.

2. Consciência sobre nosso objeto: o Fenômeno Religioso

Em relação ao nosso objeto de estudo, o fenômeno religioso, alguns
passos também são importantes. O primeiro deles diz respeito à necessidade
de termos consciência de que toda e qualquer investigação sobre o fenômeno
religioso se apóia em um determinado conceito do que é religião. Daí a
necessidade de se estar atento a outras leituras, de uma contínua revisão
do próprio pensar e da busca de uma relativização acerca da própria forma
de conceber a religião. Religião é luta de classes? É resultado de
carências econômico-sociais? É fruto de repressões psíquico-emocionais? É
realização de um desejo de que o mundo faça sentido? As religiões tratam de
quê? O que é a experiência religiosa? Envolve sempre um Sagrado?
A seguir, há a necessidade de termos consciência acerca da alteridade
de muitas realidades por nós vividas. Alteridade vem da palavra latina
alter – que significa "outro" –, e indica toda realidade que, para quem a
vivencia, se caracteriza por ser outra, distinta, diferente das
experiências com as quais nos acostumamos a lidar e, portanto, são
consideradas bem conhecidas. Este fenômeno é particularmente forte quando
nos deparamos com o universo das culturas. Diante de culturas distintas da
nossa, não é difícil nos darmos conta de que elas nos causam estranheza
pelas formas de viver e compreender o mundo nelas presente. Basta que
pensemos, rapidamente, em como sentimos e pensamos a cultura árabe, a
japonesa, as diversas culturas tribais e indígenas, a africana, etc.
No caso do fenômeno religioso acontece o mesmo. Ou seja, quando nos
deparamos com uma religião que não professamos ou – se não temos uma crença
– com o fenômeno religioso em si, estamos diante de algo que é diferente de
nossa experiência de vida, é outra – alter – em relação ao que estamos
acostumados a ver, ouvir, sentir e compreender. Assim sendo, elas podem nos
causar estranhamento por possuírem aspectos diversos de nossas concepções e
por possuírem dimensões que não podem ser captadas, interpretadas ou
traduzidas facilmente por quem não partilha da mesma experiência ou crença
religiosa. É como se diante de rituais e crenças de algumas religiões ou
mesmo diante do forte vínculo estabelecido por alguns fiéis com sua
tradição religiosa, estivéssemos frente a um enigma que não pudesse ser
totalmente decifrado. Daí a possível sensação de estarmos diante de algo
estranho.
A alteridade no campo das tradições religiosas pode se manifestar de
duas formas:
a) a diversidade e diferença existente entre as muitas religiões
existentes. Neste sentido, a alteridade se manifesta devido à expressões
religiosas muito distintas: algumas são teístas outras não, pois não
cultuam uma divindade; mesmo dentro do teísmo, encontramos as religiões
monoteístas e as politeístas; algumas religiões entendem que após a morte
reencarnamos, outras que ressuscitamos ou ainda somos aniquilados e
incorporados ao Todo cósmico; existem religiões que valorizam e se
estruturam ao redor de textos sagrados, enquanto outras mantém sua força na
oralidade; religiões que crêem na mediunidade ou na intercessão de santos,
ou mesmo em nada disso, centrando-se em reflexões de cunho filosófico e
auto conhecimento, etc;
b) a diversidade existente no seio de uma tradição religiosa. Neste
caso, é importante se perceber que as religiões não são unidades
homogêneas, nas quais todos pensam da mesma forma e vivenciam as mesmas
experiências religiosas. Um exemplo claro a este respeito pode ser
encontrado na tradição cristã, em que, apesar de comungarem em muitos
princípios básicos, possuem diferenças que se concretizam nas formas do
Catolicismo Romano, do Catolicismo Ortodoxo e do Protestantismo (com suas
diversas denominações). São distintas maneiras de se seguir a Cristo,
maneiras estas que vêm acompanhadas de formas rituais, celebrativas e
litúrgicas distintas, assim como de interpretações diversas sobre seu livro
sagrado que é a Bíblia. Além disso, se olharmos apenas para a tradição
católico romana, também encontraremos uma diversidade interna de
compreensões e práticas entre os fiéis, pois alguns podem professar sua fé
pautados pela Renovação Carismática Católica, outros por movimentos como a
Opus Dei e os Focolares, outros a partir de teologias, como a Teologia da
Libertação, e outros, ainda, vinculando-se a espiritualidades distintas,
como a dos Franciscanos, Carmelitas, Beneditinos, Jesuítas, etc.
De onde nasce a alteridade religiosa? Ela se deve ao fato de toda
religião se encontrar necessariamente ligada a uma cultura que lhe serve de
fonte para expressar seus rituais, verdades e crenças. Assim, ao assumir
uma forma cultural, a mesma codifica suas verdades e as reveste com
elementos particulares e não universais decorrentes das compreensões de uma
determinada comunidade e sua história.
Além disso, a alteridade possui uma raiz na própria condição humana.
Assim, em termos antropológicos, a alteridade nasce também do fato de que
toda experiência humana é situada, relativa a um determinado contexto,
alimentada de pretextos conjunturais e, portanto, parcial e impossibilitada
de abarcar a totalidade da realidade.
Ainda a respeito do objeto de estudo que é o fenômeno religioso, um
segundo passo é importante: acercar-nos de estudos importantes das diversas
áreas do saber humano, como a Filosofia, a Sociologia, a Antropologia, a
Psicologia, a História, a Geografia, as Ciências da Religião, etc. A
proximidade com as ciências daria uma fundamentação importante e necessária
para que se evite leituras ingênuas, preconceituosas e sem estarem baseadas
em dados plausíveis, além de nos permitir uma diversidade de olhares a
respeito deste fenômeno.
Entretanto, nesta questão devemos possuir um cuidado todo especial: se
por um lado, os estudos sobre as religiões não podem prescindir da ajuda e
leitura de outras ciências, por outro, é preciso desenvolver a capacidade
de não reduzir exclusivamente o fenômeno observado às leituras de outras
ciências, como a Psicologia, Antropologia, História, Ciência Política,
Sociologia, Ciências da Religião, etc. Estas são úteis na análise da
realidade, porém, o maior risco, talvez, possa ser a tentação de redução da
experiência religiosa apenas a seus aspectos histórico-culturais,
psicológicos, sociais e políticos. Neste sentido, é fundamental que não
percamos a consciência da singularidade do fenômeno religioso. Estudar
política não é a mesma coisa que estudar religião, embora sejam campos que
se entrelacem com freqüência e precisem, muitas vezes, estar conjugados. E
as experiências religiosas que envolvem alteração da consciência, não são,
necessariamente, surtos psicóticos ou esquizofrenia; assim como o
crescimento do Islã não é apenas uma conquista político-militar, e as
eleições papais não foram apenas lutas ideológicas pelo poder político e
econômico, mas envolvem aspectos explicados somente pela singularidade de
algumas características específicas das tradições religiosas e do próprio
ser humano, pois existem concepções religiosas em jogo, compreensões
distintas acerca da experiência e verdades religiosas.
Outro passo que pode nos ser útil no processo de conhecer o fenômeno
religioso, este agora mais prático, é partir de uma descrição de sua
aparência ou manifestação. Esta natureza descritiva de uma tradição
religiosa dá acesso à certa estrutura do que está sendo observado. Porém,
há que se ter consciência de que esta descrição nunca é neutra e totalmente
objetiva, pois falamos sempre a partir do lugar em que nos situamos. Assim,
é uma descrição em que o sujeito está implicado com o seu processo de
conhecer e com o objeto com o qual se depara, sendo afetado por seu objeto
e o afetando também, muitas vezes projetando concepções pessoais nele. Daí
a importância de ter acesso e abertura a múltiplos olhares.
Outro ponto importante a se ter atenção diz respeito à necessidade de
se trabalhar com dados pertinentes e informações adequadas, não originadas
de preconceitos e, ao mesmo tempo, que não generalizem, mas sejam capazes
de propiciar uma ampliação da realidade deste fenômeno.
Neste sentido, é importante estabelecer critérios cuidadosos a
respeito de nossas fontes. Estas se baseiam em pesquisas sérias? Tratam com
respeito as diversas tradições religiosas? Têm por objetivo o proselitismo
e a conquista de fiéis? Ou buscam afirmar que uma determinada religião não
é boa ou correta, mas somente a minha que tem inspiração divina direta?
Além disso, existem distintos tipos de fontes. A oral é uma fonte
importante, pois se pode entrevistar o crente de determinada tradição
religiosa e com ele tirar dúvidas e tentar compreender o ponto de vista
dele como seguidor de tal religião, além de propiciar acessos a informações
que nem sempre os livros trazem. Além da oral, fontes escritas também são
importantes. Como ponto de partida prático, pode-se pensar na leitura de
textos introdutórios, que se dediquem a apresentar um panorama geral do
grupo religioso a ser estudado, incluindo a apresentação histórica da
origem deste grupo, informações sobre a vida de seu fundador ou inspirador,
apresentar as ideias acerca da divindade ou divindades (no caso de
existirem) em que se crê, seus mitos, se existem textos sagrados ou não, os
rituais presentes, as compreensões acerca da vida após a morte, as formas
da comunidade de determinada tradição religiosa se estruturar, criando
autoridades, lideranças, etc. Neste aspecto, também podem ser úteis o
acesso a sítios elaborados pelo próprio grupo religioso ou por interessados
no estudo das religiões. Somente após este panorama geral estar
estabelecido é que se deve passar adiante para fontes mais específicas,
como textos que abordam de forma especializada o grupo objeto de estudo ou
mesmo artigos de revista científicos, que são, em geral, mais
especializados.
Porém, diante das informações obtidas devemos possuir uma capacidade
crítica, que é a capacidade de avaliar, superando as primeiras impressões,
o que é aparentemente óbvio, percebendo os interesses e as ideologias que
estão por trás de determinada realidade, procurando ir ao seu cerne.
Capacidade crítica que também é perceber os elementos característicos do
fenômeno religioso em sua singularidade. Isto quer dizer que quando nos
depararmos com a linguagem mítica presente no discurso religioso, ela deve
ser entendida como linguagem mítica com toda sua gama de sentidos e
riquezas para a comunidade que nela crê e não como uma visão ingênua ou
fantasiosa, sem compromisso com a historicidade dos fatos.
É interessante, pois, perceber que a linguagem religiosa se relaciona
com uma confissão de fé, o que quer dizer que não é uma linguagem
constatante, que é conseqüência da constatação de uma verdade a partir de
observações e rigor próprios dos métodos científicos e metodologias
empiristas. Neste sentido, elas não lidam com a possibilidade de
verificação de sua veracidade fora da experiência de fé. Esse tipo de
linguagem se origina em um contexto relacional, presente no seio de uma
comunidade de fé e que diz respeito a uma relação subjetiva de um fiel com
sua crença e seu sentido primordial de vida. Neste sentido, faz parte da
criticidade entender o lugar de pertença deste tipo de discurso e não
confundi-lo com discursos vazios ou incapacidade de julgamento dos que
utilizam este tipo de recurso.
Colocados estes diversos elementos importantes nas nossas percepções
acerca do fenômeno religioso, resta-nos deter-nos sobre o processo da
construção do conhecimento. É o que faremos na terceira parte deste texto.

3. Consciência sobre o processo de conhecer

Acerca do processo de conhecer, também algumas posturas são
importantes.
A primeira postura diz respeito justamente à capacidade de perguntar-
se pelo que é conhecer. Aparentemente, a resposta seria óbvia. Entretanto,
não é tão óbvio quanto parece. Quando conhecemos, o que fazemos? Temos
acesso a uma verdade absoluta e inquestionável devido à sua comprovação
científica? Se as verdades científicas propiciam tantas certezas, porque há
mudanças em muitas concepções da ciência no decorrer da história? Quando
conhecemos, nossa mente funciona como uma máquina fotográfica que retrata a
realidade? Ou esta realidade a ser conhecida sempre depende de que o
sujeito do conhecimento seja capaz de interpretá-la e traduzi-la para
conceitos lógicos e abstratos?
Diante de perguntas como estas, nem sempre as respostas são fáceis e
aceitas por todos da mesma maneira. Porém, algumas ideias são importantes.
Inicialmente, o conhecimento não é algo dado, pronto, diante do qual
caberia uma postura passiva e exclusivamente receptiva da parte do sujeito.
Antes pelo contrário, ele é fruto de um processo complexo em que os que
estão envolvidos precisam possuir uma postura ativa. Daí que se fala com
freqüência que o conhecimento é uma construção.
Além disso, o ato de conhecer é fruto de um esforço de aproximação da
realidade com o intuito de traduzi-la em conceitos capazes de serem
comunicados e gerarem algum tipo de transformação na vida das pessoas e da
sociedade, sejam transformações na forma de enxergarem o mundo e a
realidade, sejam transformações de ordem técnica, capazes de conferir ao
mundo novas possibilidades.
Entretanto, se o conhecimento é da ordem de algo construído, isto
pode nos apontar que ele é dinâmico, nunca acabado, sempre por se fazer e,
sobretudo, nunca é total, mas parcial. Ou, dito de outra maneira, nosso ato
de conhecer nunca esgota a realidade a ser conhecida. Portanto, quando nos
deparamos com uma tradição religiosa, nossa percepção dela caminha num
processo em que, lentamente, vamos adquirindo consciência acerca dos
elementos que a constituem e, ao mesmo tempo, vamos amadurecendo nossas
concepções sobre ela. Neste sentido, podemos entender que além de parcial,
nosso saber está sujeito a constantes correções e aprimoramentos. Desta
forma, poderemos perceber que não somos capazes de compreender nosso objeto
de pesquisa em sua totalidade, mas compreendemos aspectos e dimensões do
mesmo de acordo com a singularidade de nosso olhar e de nossas
interpretações. E esta realidade presente no ato de conhecer, também nos
indica que outros pesquisadores, estudiosos e autores podem ter pontos de
vista ou leituras acerca do fenômeno religioso distintos dos nossos, embora
também, como os nossos, parciais.
Sendo o conhecimento parcial e sujeito a aprimoramentos, é necessário
que permitamos a assunção de uma ética da escuta do outro como outro, como
ser distinto. Somente a partir desta postura é que seremos capazes de ter
acesso à sua alteridade, o que não significa perder a capacidade de
percebermos certos elementos comuns entre todos os seres humanos e mesmo
entre as religiões. Ao contrário, pode-se manter a possibilidade de uma
"unidade na diversidade", pois é possível reconhecer, para além de toda
diversidade existente entre as religiões, elementos de proximidade, e até
elementos comuns, como a busca por uma Realidade última para além da
história, de uma iluminação para o bem viver ou a busca por salvação diante
dos males da condição humana.
Essa postura de escuta rompe com toda forma de relação coisificada ou
massificada, pois impede que o outro, quando escutado e definido a partir
de seu próprio horizonte, seja mascarado e perca sua autenticidade. Porém,
o que é escutar o outro? Que posturas estão implicadas no processo de
escutar? Certamente, a escuta passa por um saber distanciar-nos de nossas
próprias palavras. Ou seja, quando nos deparamos com algum amigo e estamos
conversando, escutá-lo significa parar de pensar nas respostas que queremos
dar, na ansiedade que muitas vezes temos diante do que ele fala, parar de
prestar atenção o tempo todo em nós mesmos, etc. Assim, escutar o outro
significa, num certo sentido, sermos capazes de nos descentrarmos de nós
mesmos e de nossos problemas, trata-se de nos tirar do centro da atenção,
de não permitir que apenas nossas preocupações sejam o centro do que se
está conversando. O objetivo de descentrar-nos é deixar que as questões do
amigo, suas preocupações, medos, alegrias e as coisas que realmente lhe são
importantes possam aparecer como são; e este procedimento vale também para
o processo de escutar o "outro" religioso.
Isto indica que cada tradição religiosa com seus elementos, deve ser
julgada a partir de seu próprio contexto. Não é possível que se pense as
religiões transferindo a lógica de um sistema religioso para outro sistema.
Não se pode valorar bem ou mal uma religião utilizando-se de um referencial
de outra tradição religiosa. Assim, o Exu reverenciado nas tradições afro-
brasileiras, não deve ser compreendido, do ponto de vista dos estudos das
religiões e do ponto de vista de um conhecimento pertinente, a partir de
concepções de tradições cristãs, para as quais esta entidade não tem
correspondentes; da mesma forma, pensar a figura de Jesus no Islã a partir
da concepção com que é vista na tradição cristã, que em sua maior parte o
cultua como divindade, levará o estudante a incorrer em graves erros e
procurar algo que não há na tradição islâmica: a consideração de que Jesus
é Deus. Aliás, mais forte que a ausência desta temática é compreender que
não é possível conjugar no credo islâmico esta visão de Deus como Pai de
Jesus, ou uma visão de Trindade, pois esta concepção é considerada um
pecado grave para eles.
Além do mais, é necessário que ao nos aproximarmos de uma tradição
religiosa estejamos munidos de abertura, tolerância, respeito e, sobretudo,
busca de compreensão. Esta ocorre a partir de uma correlação entre outras
coisas ou seres com os quais se está em relação, pois a compreensão tem uma
dimensão relacional, é com-prehender, abraçar junto o texto e seu contexto,
as partes e o todo. Ela implica uma apreensão realizada "com" outras
pessoas. Nessa dimensão, ela é fruto da intersubjetividade, do diálogo, da
abertura às opiniões alheias. É justamente o entrelaçar de olhares e
subjetividades que possibilita que se apreenda mais sobre o outro, porque
nela houve a participação de múltiplos olhares, favorecendo, assim, a
validação do método e das conclusões de um estudo por parte dos membros de
uma determinada religião, bem como por parte da comunidade científico-
acadêmica.
E para uma boa compreensão se faz necessário desenvolver a capacidade
de relativizar o próprio olhar, ou seja, a suspensão dos próprios juízos e
conceitos adquiridos e constituídos historicamente com o intuito de criar
um espaço de abertura para a manifestação mais livre da alteridade. Isto
propiciaria que se acedesse mais facilmente à realidade do outro, correndo-
se menos riscos de deformá-lo.
Além disso, devemos tentar romper ou atenuar a distância que há entre
o discurso de fora e o de dentro, entre o discurso do estudioso e o do
crente. Para isto, os estudiosos devem se deixar afetar pelo nativo (membro
ou adepto da religião estudada), ouvir seus posicionamentos e
justificativas. Isto pressupõe que ele tenha algo a nos ensinar sobre ele e
sobre nós mesmos e que implica na renúncia à pretensão de possuir uma
posição privilegiada em relação ao ponto de vista do nativo, buscando uma
proximidade que pode produzir desconforto, é verdade, mas também
iluminação.
Outra possibilidade de aproximação entre o discurso de dentro e o de
fora aconteceria através de um cruzamento de concepções, áreas de
conhecimento, paradigmas e os conhecimentos advindos das artes, da
filosofia, das mitologias e das comunidades. Isto é, através da
possibilidade de utilização de mais de uma abordagem para nos aproximarmos
de uma tradição religiosa, cruzando-as e interrogando nossos próprios
pontos de vista a partir deste cruzamento. Este tipo de cruzamento de
ideias e de paradigmas pode propiciar outros olhares sobre o fenômeno
estudado. Utilizar-se da lógica do fiel e, ao mesmo tempo, da lógica
acadêmica; abrir-se ao "pensamento oriental", deixando-nos por ele criticar
e conjugando-o com nossa forma ocidental de ver as coisas. Conjugar as
visões da arte, da filosofia e da mitologia com os olhares das ciências,
que também podem ser trabalhadas de forma dialogal e tentando romper as
distâncias entre ciências humanas, sociais e naturais pode ser um rico
caminho da ampliação dos conhecimentos e do sentido do fenômeno religioso.
Por fim, o princípio da caridade, de Davidson, nos propõe uma
perspectiva interessante: devemos possuir certa abertura e simpatia para o
estudo das tradições religiosas, pois quando se tem como ponto de partida
da reflexão a pressuposição de que toda crença é ruim e enganosa, ao final
do rodeio interpretativo ela será compreendida como enganosa. E simpatia
pode ser associada à afetividade, que anda junto com o desenvolvimento do
intelecto e da atividade cognoscitiva. É ela que nos abre à paixão pelo
conhecimento, à admiração que nos permite a observação atenta e detalhada
de nosso objeto de estudo, assim como nos sustenta persistentemente na
busca do conhecimento. Portanto, trata-se de que consigamos manter a
simpatia em relação ao objeto de estudo ou, ao menos, acreditar na
pertinência dele, nas suas possibilidades, intenções, na sua busca, no seu
acreditar. Ao menos acreditar que pode ser uma experiência rica conhecer o
fenômeno religioso.

Conclusão

Chegamos ao final deste texto. E como se pode ver, a busca do
conhecimento é exigente, pois requer que pensemos sobre nós mesmos, que
tenhamos rigor no nosso deparar com os fenômenos que queremos conhecer e,
por fim, que tenhamos uma postura cognitiva adequada. Entretanto, apesar de
exigente, conhecer é um ato prazeroso, na medida em que possibilita acessos
mais ricos aos nossos objetos de estudo, sobretudo se estes acessos nos
possibilitam olhares nunca antes pensados; olhares que nos humanizam e nos
alargam horizontes pessoais e profissionais. Que esta trilha do conhecer
seja vivida como uma aventura de desbravar novos mundos.

Sugestões de atividades

1. Pesquise em jornais e/ou revistas os artigos ou reportagens que abordem
uma tradição religiosa. Seguindo algumas sugestões de aproximação ao
fenômeno religioso proposto neste capítulo, como se pode analisar o
artigo escolhido? Em que ele é limitado? Em que ele avança? Ele dá conta
de compreender e discutir com pertinência o fenômeno religioso? É marcado
por posturas preconceituosas? É parcial em sua abordagem da religião?
2. Assista ao filme "Fé", de Ricardo Dias e o analise a partir do
referencial proposto no texto acima.
3. Discuta as ideias a seguir:
a. Alteridade
b. Ética da escuta do outro
c. Relativização do próprio olhar
d. Consciência acerca dos próprios conhecimentos prévios
Procure defini-las conceitualmente e aplicá-las ao cotidiano da
vida familiar, da vida profissional, da vida em sociedade e da
aproximação à uma tradição religiosa. Como é, de forma prática,
viver a alteridade e as demais ideias nestes níveis? Que falhas
normalmente cometemos? Que vantagens a percepção desta dimensão do
outro pode nos ser útil no cotidiano nestas várias dimensões de
nossas vidas?
4. Posicione-se em relação ao princípio da caridade.
5. O que podemos aprender com as religiões? O que podemos aprender sobre
nós mesmos com elas?


Referências Bibliográficas


DAMATTA, Roberto. Relativizando. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
ELIADE, M. & KITAGAWA, J. Metodologia de la Historia de las religiones.
Barcelona: Paidos Orientalia, 1996.
JORGE, Simões. Cultura Religiosa. São Paulo: Loyola, 1994.
MORIN, Edgard. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Brasília:
UNESCO; São Paulo: Cortêz, 2000.
VELHO, Otávio. O que a Religião pode fazer pelas Ciências Sociais, mimeo,
VII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina, SP, 22-
25/08/98.
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[1] Mestre e Doutor em Ciência da Religião pela UFJF. Professor Adjunto IV
da Puc Minas, lecionando as disciplinas de Cultura Religiosa I e II e
Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso. Coordenador do Anima /PUC Minas –
Sistema Avançado de Formação.
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