\" Desafios à Consolidação do Sistema Internacional de Proteção aos Refugiados \"

June 11, 2017 | Autor: Helisane Mahlke | Categoria: direito Internacional público, Direito Internacional dos Direitos Humanos
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“Desafios à Consolidação do Sistema Internacional de Proteção aos Refugiados” Helisane Mahlke1 Resumo O presente artigo analisa as possibilidades e desafios da construção de um sistema internacional de proteção aos refugiados. Para tanto, analisa-se o papel dos regimes internacionais, formados por regras e princípios, instituições e pela atuação das Cortes Internacionais na composição desse Sistema. Palavras-chaves: Sistema; Direito Internacional dos Refugiados; regimes. Abstract This paper analyses the possibilities and challenges in constructing an international system for the protection of refugees. Therefore, is analyzed the role of the international regimes, composed by rules, principles, institutions and the International Courts as part of this System. Keywords: System; International Refugees Law; regimes.

Introdução O Direito internacional dos Refugiados pode ser considerado um direito essencialmente humano e universal por princípio. Por ser compelido à migração forçada em razão de fundado temor de perseguição ou grave violação de direitos humanos, o refugiado encontra-se desprovido da proteção de seu Estado de origem e busca por abrigo em outro Estado2. Tal situação relega o solicitante de refúgio a um “limbo” jurídico e político até que lhe seja reconhecido o direito à proteção.

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Doutoranda em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro da International Law Association – Ramo Brasileiro. 2 Vide definição do art. 1º da Convenção Internacional para Refugiados, de 1951: “um refugiado ou uma refugiada é toda pessoa que por causa de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de

Diante desse quadro, existem três elementos fundamentais para que o Direito Internacional dos Refugiados possa alcançar sua efetividade: a consolidação de um arcabouço normativo com interpretação uniforme para lhe dar coesão; a cooperação internacional

mediante

regimes

que

garantam

uma

ampla

proteção;

e

o

comprometimento (compliance) dos Estados a esses regimes. Porém, a construção de um sistema internacional de proteção aos refugiados encontra resistências. Tradicionalmente, a “concessão” do status de refugiado é tida como parte da agenda de política externa dos Estados e, portanto, está atrelada aos seus interesses definidos em termos de poder. Essa apropriação indevida do refúgio pela competência estatal discricionária desnatura a essência de um direito que deve ser apenas “declarado” pelo Estado e não “constituído” por ele. Assim, parte-se da premissa na qual um sistema de proteção amplo e efetivo somente poderá ser alcançado, se houver um tecido normativo e institucional capaz de cooptar os Estados a comprometerem-se com ele. Para analisar a possibilidade de consolidação desse sistema, é fundamental investigar a influência dos regimes internacionais na política externa dos Estados, apontando as causas que os levam a aderirem a eles. Para tanto, primeiro será feita uma avaliação da proteção internacional dos refugiados, apontando os principais problemas relativos à sua implementação. Posteriormente, será discutida a questão da ordem e da justiça nas relações internacionais e a importância dos regimes para a sua consolidação. E assim, após essas considerações, serão observados os desafios à construção de um sistema internacional de proteção aos refugiados.

1. Críticas ao sistema internacional de proteção ao refugiado Em primeiro lugar, é necessário esclarecer que, apesar do uso corrente do termo “sistema” de proteção aos refugiados por aqueles que se dedicam ao tema, entende-se que tal nomenclatura não reflete a realidade. A razão para essa afirmação é a origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer regressar ao mesmo.” A definição amplificada, em âmbito regional, é conferida pela Declaração de Cartagena de 1984, adotada pela maioria dos Estados latino-americanos, inclusive o Brasil. Tal Declaração considera como refugiado também aquele indivíduo vítima de “graves violações de Direitos Humanos”.

constatação de que, apesar da existência de normas internacionais sobre refúgio, quando se observa sua implementação, constata-se que o que existe é um arranjo fragmentado de iniciativas nacionais. As causas e consequências dessa fragmentação é o que se pretende discutir de maneira crítica. Mas antes, cabe estabelecer breves considerações sobre os antecedentes do Direito Internacional dos Refugiados. Pode-se tomar como ponto de partida a criação do Escritório Internacional Nansen para Refugiados (em 1931)3, fruto da preocupação com os refugiados advindos da Revolução Comunista na Rússia e do esfacelamento do Império Otomano. Posteriormente, o advento das duas Guerras Mundiais exacerbou o número de refugiados e deslocados internos, impondo a necessidade de uma resposta legal e institucional ao problema. Na esteira da reconstrução pós-conflito, foi criada em 1946 a Organização Internacional para Refugiados (OIR)4, uma agência especializada das Nações Unidas destinada a auxiliar os milhares de refugiados europeus vítimas da guerra. Contudo, a agência é sucedida pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) criado em 19505, prenunciando a adoção do principal marco normativo do Direito Internacional dos Refugiados: a Convenção de 1951 e do seu Protocolo Adicional de 1966. Contudo, a estrutura criada no pós-Guerra possuía limitações geográficas e temporais6, ou seja, era destinada apenas aos refugiados europeus provenientes do Nansen era delegado da Noruega na Liga das Nações e criou o ‘Passaporte Nansen’ para refugiados. Tal iniciativa, bem como seu trabalho diante do Alto Comissariado, fez com que o diplomata fosse agraciado com Prêmio Nobel da Paz em 1922. 4 A OIR entrou em pleno funcionamento em 1948, sendo composta por 26 Estados, dentre eles o Brasil. 5 Desde sua criação, o ACNUR já ajudou mais de 50 milhões de pessoas e ganhou por duas vezes o Prêmio Nobel da Paz (1954 e 1981). Segundo estatísticas do próprio órgão, até o final de 2013, existem 51,2 milhões migrantes forçados ao redor do mundo, incluídos refugiados, solicitantes de refúgio, apátridas e deslocados internos. Especificamente: Refugiados, 16,7 milhões; deslocados internos, 33,3 milhões; apátridas, 10 milhões. Fonte: (UNHCR – “War’s Human Cost: UNHCR 2013 Global Trends”. Disponível em: http://www.unhcr.org/5399a14f9.html.) 6 Refere-se à chamada ‘cláusula temporal’ (ela era aplicável aos fluxos de refugiados anteriores à sua entrada em vigor) e o ‘limite geográfico’ (aplicava-se apenas a refugiados europeus). As limitações foram, posteriormente, suprimidas pelo Protocolo Adicional à Convenção sobre Refugiados (de 1967), qual retirou o limite temporal; e pela a Declaração de Cartagena (de 1984) que amplia a definição de refugiado para todo aquele que tenha sido vítima de ‘violação maciça de direitos humanos’, permitindo, assim, a ampliação da possibilidade de proteção. Cabe ressaltar que, apesar da Declaração de Cartagena não ter força vinculativa, ela inspira a interpretação dos órgãos internacionais sobre a definição do status de refugiado e influenciou a elaboração de normas nacionais sobre refúgio, como é o caso da legislação brasileira sobre o tema (Lei 9474/97). 3

conflito. Essa estrutura criada em caráter provisório, é a mesma que hoje tem de atender a uma realidade bem diferente. Na atualidade, a problemática dos refugiados cresceu em número e complexidade, desafiando os instrumentos legais e institucionais vigentes a corresponder adequadamente à necessidade de proteção desses indivíduos. O crescimento exponencial do número de solicitantes de refúgio contrasta com a falta de articulação política e institucional para administrar fluxos cada vez maiores. Esses números são provenientes da proliferação de conflitos (tanto internacionais, quanto guerras civis internas) que agravam a situação em Estados já fragilizados pelo subdesenvolvimento, pela exploração e pela disputa de poder. Nesses fragile states, as estruturas institucionais corruptas, opressoras ou mesmo inexistentes, são incapazes de garantir a segurança e proteção de sua população, expondo um grande grupo de indivíduos a situações de extrema vulnerabilidade.7 Além disso, a complexidade da mobilidade humana na atualidade produz os chamados fluxos mistos8, ou seja, categorias de migrantes que podem ser atribuídos a múltiplas classificações. Diante dessa realidade contemporânea, especialistas e ativistas advogam pela revisão do quadro normativo existente, especialmente da Convenção de 1951. Entende-se, todavia, que tal iniciativa pode resultar em um recrudecimento da legislação, bem como das políticas para refugiados. A atual conjuntura mundial não favorece um “ambiente” propício à construção de uma convenção contendo definições legais mais amplas. Além disso, considera-se que a revisão da Convenção não seria necessária, pois entende-se que, uma vez que o Direito Internacional dos Refugiados é parte integrante do conjunto normativo do Direito Internacional dos Direitos Humanos,

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Segundo os dados do ACNUR, a maioria dos refugiados não consegue migrar até os países industrializados e localizam-se nas fronteiras dos conflitos em campos com condições precárias. Além disso, deve-se considerar o caso dos deslocados internos, que não chegam a cruzar as fronteiras dos Estados, tornando-se, frequentemente, vítimas vulneráveis dos conflitos. Fonte: UNHCR - Mid-year Trend/2013 do ACNUR, disponível em: http://www.unhcr.org/52af08d26.html. 8 Essas categorias de migrantes podem ser: migrantes econômicos, refugiados, apátridas, deslocados internos e deslocados ambientais. Quanto a essa última categoria, os deslocados ambientais, existe grande controvérsia acadêmica e doutrinária: alguns especialistas consideram como “refugiados ambientais” (termo adotado pelo PNUMA – Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) aqueles indivíduos que se veem forçados a abandonar sua terra natal devido a catástrofes ambientais ou climáticas. Contudo, parte da comunidade epistêmica considera que se trata de uma categoria à parte, pois não há, neste caso, “fundado temor de perseguição”, que é uma das características do refúgio (esse é o entendimento do ACNUR e também da OIM – Organização Internacional para as Migrações, que adotam o termo de “migrantes ambientais”).

bastaria recorrer à proteção complementar9 para suprir a falta de previsões legais que garantam direitos a esses indivíduos.(MAcADAM, 2007). Sem dúvida, mais efetivo do que criar novos instrumentos legais, seria fortalecer os mecanismos de compliance ou enforcement já existentes, capazes de conferir efetividade ao Direito Internacional dos Refugiados. Esse contraste entre a crescente necessidade por uma atuação cooperativa da comunidade internacional e a vontade política dos Estados, esbarra em uma estrutura convenientemente fragmentada, que permite maior grau de discricionariedade destes. Mesmo diante da necessidade de fortalecimento dos regimes internacionais, persistem as fragilidades de uma estrutura criada para ser provisória. Ironicamente o ACNUR, diferentemente da OIR, não possui sequer o status de agência especializada, o que limita sua autonomia e capacidade de atuação10. Essas circunstâncias fazem com que a organização tenha que necessariamente estabelecer “parcerias” com entidades estatais e organizações da sociedade civil, a fim de concretizar a proteção aos refugiados. Na maioria dos Estados, especialmente no Brasil11, o sistema de proteção é formado por uma estrutura tripartite composta pelas entidades do governo; da sociedade civil e representação do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados atuando em conjunto, mas com funções diferentes. Contudo, essa estrutura deixa o poder de decisão sobre a concessão do refúgio sob o domínio do Estado e dos ditames das diretrizes da sua política externa. Em razão disso, frequentemente, a atuação dos países quanto ao refúgio é, por assim dizer, “seletivamente humanitária”.

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Por “proteção complementar” entende-se o arcabouço legal que compõe o Direito Internacional dos Direitos Humanos, do qual o Direito Internacional dos Refugiados é parte integrante. Assim, na ausência de previsão específica em relação a casos que não estão previstos nas cláusulas de inclusão da Convenção de 1951. Ver mais em: MAcADAM, Jane. Complementary Protection in International Refugee Law, Oxford University Press, 2007. 10 O orçamento do ACNUR provém principalmente de doações de países, diferentemente de outras agências da ONU. Seu orçamento atual é de 3 bilhões de dólares. Suas necessidades orçamentárias que, segundo dados da própria instituição, foram estimadas em 3,59 bilhões de dólares e 3.42 bilhões de dólares, em 2012 e 2013 respectivamente. Fonte: www.unhcr.org. 11 No Brasil, procedimento de determinação do status de refugiado é da alçada do CONARE (Comitê Nacional para Refugiados), órgão de deliberação coletiva, ligado ao Ministério da Justiça, responsável pelo procedimento de análise da solicitação de refúgio. Além disso, o órgão possui a função de coordenar e orientar as ações necessárias para tornar efetiva a proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados e, juntamente com outras duas instâncias (o ACNUR e a Sociedade Civil) compõem a estrutura tripartite responsável por efetivar a política nacional para refugiados. O órgão foi criado pela Lei 9674, de 1997 (“Estatuto do Refugiado”), que incorpora em seu texto normativo as normas internacionais às quais o Brasil adere.

Assim, cada Estado constrói sua política nacional para refugiados, geralmente estabelecida por uma legislação nacional sobre o tema. Essa “nacionalização” da proteção aos refugiados é evidenciada inclusive em Estados que ratificaram as Convenções Internacionais. O resultado disso é um contrassenso, na medida em que, mesmo tendo se comprometido com as normas internacionais, o Estado ainda detém o monopólio sobre sua interpretação e aplicação. Como superar esse quadro, pretende-se discutir na terceira parte desse artigo. Mas antes, faz-se necessária uma breve discussão sobre a ordem e a justiça nas relações internacionais.

2. Ordem e Justiça no Sistema Internacional Dando prosseguimento à reflexão proposta, cabe analisar o que levaria os Estados a comprometerem-se com normas internacionais? Responder a essa questão é fundamental para compreender se é possível estabelecer um sistema internacional de proteção aos refugiados. Conforme a descrição anteriormente feita sobre os antecedentes do Direito Internacional dos Refugiados, a situação de milhares de indivíduos no pós-guerra impôs à comunidade internacional a necessidade de criar regimes capazes de oferecer-lhes proteção. Esses regimes são compostos por organismos e convenções destinados à governança do tema, porém, para que estes se estabeleçam, o primeiro passo é a adesão voluntária dos Estados às normas internacionais. Mas, o que se pode considerar como um fator de compliance dos Estados aos regimes internacionais, ou seja, o que faz com que os Estados venham a aderir às normas e a cooperar com as instituições? Andrew Hurrel aponta três perspectivas de análise para essa questão: a ética de responsabilidade do Estado; o fato de o Estado ter um papel fundamental na proteção das diferentes identidades; e o fato de que, mesmos frágeis, as instituições da sociedade internacional conseguem estabelecer meios moralmente significativos para limitar o conflito em uma realidade onde o consenso é difícil (HURREL, 2003). A contínua tensão entre ordem e justiça deriva da instabilidade de uma autoridade legítima no cenário internacional, na medida em que mesmo instituições complexas são baseadas na distribuição de poder, mais do que na hierarquia e no equilíbrio, e os

Estados se utilizam da sua própria visão de conflito e insegurança para justificar sua visão própria de ordem e justiça. Essa perspectiva implica na clássica contraposição entre os interesses dos Estados e as necessidades dos indivíduos. Para superar essa aparente dicotomia é necessária a construção de uma comunidade moral global, na qual exista um processo justo, que não seja refém dos interesses unilaterais. Essa visão de justiça global não encontra seu fundamento em uma razão universalmente abstrata, mas em um universalismo concreto, decorrência natural das necessidades de uma sociedade e dos conflitos que são parte da própria dinâmica social. É nesse cenário que cresce a importância das instituições internacionais como peças fundamentais da governança da problemática do refúgio. Contudo, não se ignora os desafios que essas instituições enfrentam, sobretudo quanto à sua efetividade e legitimidade. Esses dois elementos podem ser assim postos: a efetividade refere-se à aplicação do Direito Internacional e a legitimidade é auferida somente na construção de uma comunidade internacional que partilha valores comuns. (GIBNEY, 2001). Diante dessa realidade é fundamental observar criticamente o sistema internacional que temos hoje: Em primeiro lugar, a concepção minimalista (tradicional) de ordem mostrou-se inadequada para abarcar toda uma série de desafios que se apresentam em uma realidade global heterogênea (emergência de outros atores que, por vezes, rivalizam com os Estados) e cuja principal característica é a transnacionalidade (mobilidade humana, de bens, valores e informação). Além disso, evidencia-se uma grande interdependência entre as nações, em vários níveis, o que torna a cooperação indispensável. A necessidade de gerir questões universais (que transcendem as fronteiras dos Estados) pressupõe a necessidade de criação de regras que deveriam intervir na forma como as sociedades se organizam internamente, ou seja, um fortalecimento coercitivo das normas internacionais capazes de intervir em questões internas de repercussão global. Nesse contexto: como o Estado recepciona as normas e decisões internacionais. Além disso, essas mudanças também repercutiriam na organização interna das sociedades, produzindo revoluções em suas estruturas de modo a atender à crescente demanda por satisfação das necessidades do indivíduo, levando as nações a adaptarem-

se a elas. E, por fim, observa-se o surgimento, mesmo que embrionário, de uma consciência cosmopolita e da percepção de que a justiça deve pautar a política internacional. O sistema internacional é caracterizado pela expansão e densidade dos aspectos normativos (proliferação de instituições e regimes), por sua complexidade (intrincada arquitetura construída a partir da interdependência dos variados atores) e as deformidades que resultam das desigualdades que ainda minam qualquer tentativa de estabelecimento de um conjunto de valores compartilhados, que são elementos essenciais para a consolidação de uma comunidade internacional. (HURREL, 2003). Mas, a grande questão que permanece diante dessas observações é se essas “deformidades” podem ser corrigidas pelo próprio sistema normativo, ou se é ele próprio a razão da perpetuação destas. É nesse espectro que deve ser empreendida a análise do papel das instituições destinadas ao estabelecimento da ordem e da justiça nas relações internacionais (especialmente as Cortes Internacionais). Passemos, então, a avaliar o papel dessas na consolidação de um sistema internacional de proteção aos refugiados.

3. Construção de um sistema internacional de proteção aos refugiados Conforme as considerações feitas, podemos observar que o refúgio ocupa um lugar especial no Direito Internacional, delineado pelo conflito entre a soberania estatal (caracterizada pela territorialidade e autopreservação) e os princípios humanitários (expressos no do Direito Internacional dos Direitos Humanos). Contudo, o Direito Internacional dos Refugiados continua sendo um regime de proteção incompleto, encobrindo imperfeitamente o que deveria ser uma situação de exceção. (GOODWINGILL & MAcADAM, 2007). Os instrumentos de proteção dos refugiados foram criados para aqueles indivíduos vitimados por graves violações de Direitos Humanos, pelo colapso da ordem social ocasionado por conflitos, guerra civil ou agressão. Todavia, trata-se de instrumentos imperfeitos, enquanto forem negados aos solicitantes de refúgio os direitos mais básicos contidos na Convenção e seu Protocolo, como a permanência temporária ou o retorno

seguro aos seus países de origem. O status jurídico internacional de refugiado implica, necessariamente, consequências legais para os Estados (notadamente o respeito ao princípio do non-refoulement12). E, portanto, a despeito dos interesses políticos existentes, o reconhecimento do status de refugiado gera responsabilidades para o Estado em relação à proteção que deve ser dispensada ao indivíduo. (GOODWIN-GILL & MAcADAM, 2007). Segundo HATHAWAY (2005, p. 6), em princípio, os Estados comprometem-se a não usar a “desculpa” da autoridade política soberana ou da diversidade cultural para justifica a falha em garantir os direitos fundamentais dos refugiados em seu território. Contudo, a realidade demonstra que existe um paradoxo entre o reconhecimento internacional desses direitos e a dificuldade de torna-los efetivos em território nacional. Porém, também se observa que a política para refugiados sempre esteve atrelada, em quaisquer países, aos imperativos da raison d’État, sejam as oscilações econômicas e crises sócio-identitárias, aos interesses das elites e aos conflitos geopolíticos. Diante dessa realidade, não é difícil deduzir porque a Convenção sobre Refugiados (1951), dentre tantos outros Tratados de Direitos Humanos, ainda não possui um mecanismo próprio para promover a responsabilidade dos Estados, sob os auspícios de um órgão supervisor independente. Mesmo que muitos países tenham se comprometido com a Convenção e seu Protocolo, o que se observa é que há uma tendência a burlar o dever legal de oferecer ao refugiado a proteção de que ele precisa. Enquanto os Estados continuam proclamando sua disposição em oferecer proteção aos refugiados, como parte de sua discricionariedade política ou de seus interesses cobertos pelo verniz humanitário, na verdade formulam defesas estratégicas com o objetivo de evitar imigrantes forçados. Todavia, isso não sugere que deva haver uma “reforma” da Convenção, mas sim, que os mecanismos de implementação do Direito dos Refugiados sejam aperfeiçoados. (HATHAWAY, 2005). A questão é avaliar de que maneira podese aprimorar o sistema de proteção para que ele fique mais efetivo.

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Vide art. 33 da Convenção Internacional sobre o Direito dos Refugiados , de 1933.

A crescente judicialização13 da proteção aos refugiados é uma consequência natural, considerando o conjunto de normas que compõe essa vertente do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Contudo, traduzir essas normas internacionais para a realidade doméstica ainda é problemático. Violações são cometidas ao direito subjetivo ao refúgio, não apenas quanto aos vícios no processo de reconhecimento do status de refugiado, como na violação do princípio do non-refoulement. O crescente papel das Cortes é fomentado, em grande parte, pelas organizações de assistência aos refugiados que servem como intermediárias no processo de judicialização. As Organizações não-governamentais14 têm atuado de forma decisiva na questão do refúgio, não apenas auxiliando no trabalho de assistência, mas denunciando as violações de direitos às Cortes Internacionais. Contudo uma tendência controversa se apresenta: por um lado a questão da mobilidade humana, de forma geral, tem sido cada vez mais “judicialializada” nos países ocidentais, acarretando uma mudança significativa na forma como os países democráticos concebem suas obrigações em relação aos estrangeiros presentes em seus territórios. Por outro lado, observa-se que, ao mesmo tempo em que os países assinam convenções que fornecem instrumentos que aumentam o poder das cortes no reconhecimento dos direitos dos refugiados, há um crescimento das medidas restritivas à entrada de imigrantes. (GIBNEY, 2001). Essas medidas restritivas visam, essencialmente, prevenir a entrada desses indivíduos, impedindo que estes cheguem a solicitar refúgio15. Paradoxalmente, o desenvolvimento dos mecanismos jurídicos de proteção aos direitos humanos dos imigrantes vem alimentando ações que impedem a possibilidade de exercê-los. Assim, 13

Por judicialização da política para refugiados entende-se o recurso ao poder judiciário na busca de efetivar direitos, seja pelo recurso aos Tribunais Superiores, seja aos Tribunais Internacionais. Entende-se que, suas decisões não apenas podem servir para concretizar a implementação das prerrogativas previstas nas Convenções Internacionais e na Lei interna, como estabelecer um paradigma que propicia uma reforma na sociedade e no tratamento dispensado aos refugiados. 14 No Brasil, as entidades que se dedicam a tais tarefas são: Associação Antônio Vieira (ASAV), a Cáritas Brasileira, a Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro, a Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, o Centro de Direitos Humanos e Memória Popular (CDHMP) e o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH). 15 Como exemplo o caso dos “boat people”, migrantes que tentam alcançar o território europeu ou australiano pelo mar e acabam sendo interceptados pela guarda desses países ainda no mar. Os que não morrem em decorrência da travessia, muitas vezes são levados a verdadeiros depósitos humanos como o caso da Ilha de Lampeduza (Vide: Caso Hirsi Jamaa and Others v. Italy, Grand Chamber Judment – Corte Europeia de Direitos Humanos, 23/02/2012).

aparentemente, o custo do crescimento de medidas legais inclusivas “dentro” do território do Estado é o rápido desenvolvimento de medidas de exclusão “fora” dele. Portanto, percebe-se que a expansão da judicialização é apenas parte da necessidade para uma ampla proteção. Há necessidade de promover políticas mais inclusivas para os refugiados e fortalecer os organismos internacionais para que estes possam exercer seu papel na proteção de identidades que transcendem a fronteira da cidadania estatal. (GIBNEY, 2001). A possibilidade da construção de um sistema internacional de proteção aos refugiados necessariamente passa pela consolidação dos regimes existentes. Em primeiro lugar, isso significa fortalecer a atuação das agências e organizações internacionais que se dedicam à causa. Nesse escopo, cabe refletir sobre a possibilidade de fortalecer a posição do ACNUR e lhe conferir maior autonomia e capacidade de ação. Assim, o Alto Comissariado poderia aprimorar seu trabalho em uma realidade de demanda crescente e atuar de maneira mais decisiva na cooperação com os Estados e outras Organizações.16 Para evitar que o solicitante de refúgio se veja refém dos interesses políticos, é fundamental que haja uma internacionalização dos sistemas de proteção. Essa internacionalização deve se dar por meio da harmonização das legislações e procedimentos de determinação do status de refugiado em diversos países, por meio do estabelecimento um standard de interpretação que uniformize a aplicação das Convenções Internacionais. Na tentativa de buscar harmonizar as políticas de proteção aos refugiados com as normas internacionais, as Cortes Internacionais (Corte Interamericana e Corte Europeia de Direitos Humanos e o Tribunal de Justiça Europeu e, de maneira indireta a Corte Internacional de Justiça)17 têm se manifestado sobre a responsabilidade dos Estados em 16

Destaca-se o papel de outras instituições como a UNRWA (United Nations Relief and Works Agency) criada em 1949 com mandato de assistência aos refugiados Palestinos provenientes do conflito de 1948. Além da OCHA (Office for the Coordination of Humanitarian Affairs) ligada ao Secretariado das Nações Unidas e que também tem uma participação importante na assistência aos refugiados. 17 A Corte Europeia de Direitos Humanos e a Corte Europeia de Justiça possuem extensa jurisprudência no que concerne aos direitos dos refugiados e à responsabilidade dos Estados em reconhecê-los. Interessantemente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos não possui um número tão significativo de casos julgados sobre refúgio, mas poderá produzir uma jurisprudência simbolicamente importante. O caso Pacheco Tineo vs. Bolívia, levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, admitido por ela, e encaminhado à Corte Interamericana para julgamento foi o primeiro caso regional sobre o

reconhecer o “direito” ao acolhimento daqueles que solicitam o refúgio e em relação à necessidade de aprimorar o sistema de acolhimento. O papel das Cortes Internacionais é decisivo não apenas na efetividade do Direito Internacional dos Refugiados, mas também na uniformização das normas internacionais, ao fornecer não apenas a possibilidade de responsabilização do Estado que não reconhece o direito devido. Além disso, a produção de jurisprudência capaz de uniformizar a interpretação das normas internacionais sobre refúgio, que devem ser aplicadas pelos Estados, forneceria a coesão e harmonia necessárias para consolidar um verdadeiro sistema internacional de proteção aos refugiados.

Conclusão A título de conclusão dessa breve reflexão sobre o sistema de proteção internacional dos refugiados, cabe voltar os olhos para a lição de Giorgio Agambem18: o refugiado desafia a noção tradicional dos Direitos Humanos, por denunciar a “nudez abstrata” do indivíduo. Se a cidadania é expressa como o “direito a ter direitos”, como reconhecê-los sem a pertença a uma comunidade política? O Direito dos Refugiados, que transcende os direitos do cidadão, somente poderia ser garantido a partir de uma tutela internacional. A suposta “natureza humana” não nos garante a igualdade de direitos, pois esta não nos é dada, mas resulta da organização humana orientada pelo princípio da justiça, ou seja, não nascemos iguais, mas tornamo-nos iguais por força da nossa decisão de nos garantirmos direitos reciprocamente iguais. (ARENDT, 1989). O pilar do Direito dos Refugiados é o reconhecimento. A Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 confere àquele por ela protegido um direito subjetivo ao acolhimento. Contudo, a figura do refúgio representa o limiar da proteção internacional dos Direitos Humanos. Como garantir direitos a um indivíduo considerado reconhecimento dos direitos dos refugiado. Algo que interfere diretamente na política discricionária dos Estados. A decisão da Corte estabelece importante jurisprudência sobre a aplicação e interpretação das normas sobre refúgio, que terão o poder de vincular os Estados-partes da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (vide art. 22, §7º, sobre direito de asilo). 18 “O refugiado deve ser considerado por aquilo que é, ou seja, nada menos que um conceito limite que põe em crise radical as categorias fundamentais do Estado-nação, do nexo nascimento-nação àquele homem-cidadão, e permite assim, desobstruir o campo para uma renovação categorial atualmente inadiável, em vista de uma politica em que a vida nua não seja mais separada e excepcionada no ordenamento estatal, nem mesmo através da figura dos direitos humanos.” (AGAMBEM, Giorgio. Homo Sacer: o poder e a vida nua, p.141).

à margem da sociedade, relegado a um limbo político, causado pela exclusão originária e pela possibilidade de ulterior rechaço? Na constelação de Estados os direitos humanos inalienáveis são mera abstração sem um Estado para dar-lhes concretude, ou seja, um indivíduo carece de cidadania para ter seus direitos reconhecidos (AGAMBEN, 2010). O refugiado, excluído da comunidade política, encontra-se em situação de vulnerabilidade absoluta. A contrario sensu, é justamente a abstração desses direitos universais que acaba por condenar o indivíduo a uma posição original (a “vida nua”) da qual ninguém reivindica tutela. Em um sistema de Estados a garantia de direitos depende menos da sua sacralidade e mais de sua inserção em um ambiente político que lhe forneça reconhecimento (AGAMBEN, 2010). Por isso, a necessidade de transcender a perspectiva estatocêntrica para uma perspectiva internacionalista, capaz de substituir o interesse do Estado pela necessidade dos povos. Assim, cabe perguntar: por que é importante que exista um sistema internacional de proteção aos refugiados? A resposta sobre o porquê da criação de um sistema internacional se expressa na necessidade de uma harmonização e coerência na aplicação das normas internacionais sobre refúgio, para que a proteção seja efetiva. Já quanto ao questionamento sobre para quê serve um sistema internacional de proteção aos refugiados, a resposta manifesta-se na necessidade de atender a expectativas de direito que transcendem as fronteiras dos Estados. Compondo as reflexões feitas acima, conclui-se que a construção de um sistema internacional de proteção aos refugiados deve contar com a ação integrada das Organizações Internacionais, da Sociedade Civil internacional e da cooperação entre os Estados. A atuação de todos esses atores deve ser coordenada pelas normas internacionais que compõe o arcabouço legal do Direito Internacional dos Refugiados. E, por fim, as Cortes Internacionais serão as responsáveis por manter a coerência na interpretação e aplicação dessas normas, impedindo que o sistema se fragmente em interpretações nacionais e atitudes discricionárias dos Estados, que são guiados por seus interesses. Somente com a consolidação desses regimes é que é possível assegurar uma ampla proteção ao refugiado: o destino desses indivíduos é responsabilidade da comunidade internacional, como também a afirmação desta com base nos parâmetros morais da humanidade.

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