Em busca do Tempo da Escravidão - Patrimônio Histórico e Memória Coletiva na Comunidade Quilombola Chacrinha dos Pretos
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EM BUSCA DO TEMPO DA ESCRAVIDÃO: PATRIMÔNIO HISTÓRICO E MEMÓRIA COLETIVA NA COMUNIDADE QUILOMBOLA CHACRINHA DOS PRETOS Deborah Lima, Évelin Nascimento e Maurício Filho Núcleo de Estudos de Populações Quilombolas e Tradicionais, NUQ Departamento de Sociologia e Antropologia, FAFICH, UFMG “Estamos aqui para contar uma história, é a história de um povo chamado quilombola. Não é a sua, é a nossa história”. Frase de abertura da peça “Causos de um Quilombo”, escrita e encenada por moradores da Chacrinha dos Pretos em Belo Vale, 2010. A história de um grupo social, quando apresentada como sua, divulga para o público interessado a identidade que seus membros escolheram – o modo como querem ser representados. A história de um grupo pode também conter atribuições externas, na forma de expectativas e valores imputados a seus membros, que podem ou não coincidir com os seus próprios interesses. Ao assumir uma narrativa histórica para si, o grupo organiza os termos da ligação entre a sua esfera social de referência imediata e o contexto político mais amplo em relação ao qual a sua identidade é vivida. Nesse sentido, a produção associada da história e da identidade de um coletivo se dá em uma arena que reúne valores e interesses múltiplos (FRIEDMAN 1992). Neste trabalho discutimos o processo de produção da história e da identidade de um coletivo quilombola, a Chacrinha dos Pretos, a partir dessa perspectiva. Analisamos a interação entre as práticas locais de reconstituição do passado e as dinâmicas políticas e culturais de reconhecimento da identidade quilombola, que neste caso particular estão associadas a uma valorização extraordinária da história da escravidão. Chacrinha dos Pretos é uma localidade do município de Belo Vale, Minas Gerais, situada a apenas duas horas de Belo Horizonte. O nome do lugar faz referência à origem rural da comunidade. Como a Quinta em Portugal, “Chácara” significa um sítio com pequenas criações de animais e alguma agricultura. O complemento “dos Pretos” discrimina os seus donos fazendo referência ao enquadramento racial. A Chacrinha dos Pretos é hoje reconhecida por causa da presença de ruínas de um grande casarão colonial do século XVIII (uma das pedras da fundação do casarão exibe a data de 1752). São 30 casas modestas ao lado das paredes e dos muros de pedras que restaram de uma construção majestosa. As ruínas estão sendo estudadas por uma equipe formada por arqueólogos e antropólogos da UFMG, da qual os autores deste capítulo fazem parte. Atendendo a um convite do Ministério Público de Minas Gerais, participamos da realização de estudos preliminares que ajudarão a instruir o processo de tombamento das ruínas. A comunidade, por seu turno, foi certificada pela Fundação Palmares em 2007 como Remanescente de Quilombo, simbolizando sua inclusão no movimento nacional de defesa dos direitos políticos e territoriais de comunidades de afrodescendentes no Brasil.
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Embora nem as ruínas tenham sido tombadas nem as terras tituladas como território quilombola, desde os anos 1990 a Chacrinha dos Pretos vem sendo objeto de estudos, reportagens e ações de promoção sociocultural.1 O interesse pela Chacrinha dos Pretos se deve, em parte, à dupla preocupação de salvaguardar um patrimônio histórico e promover a reparação de injustiças históricas sofridas por escravos e seus descendentes. Mas é o potencial de “riqueza histórica” do lugar que tanto atrai interesse; é porque enxergam ali uma ilustração viva do passado colonial, com ruínas que evocam a opulência de uma época de extração de ouro, de senhores e escravos em Minas Gerais. Passado e presente estão combinados de um modo especial e é possível dizer que, para os moradores, seu passado passou a ser um espólio vantajoso. Por conta de sua associação com as ruínas, a Chacrinha dos Pretos recebe mais atenção do que outras comunidades quilombolas da região do Médio Paraopeba, como Boa Morte, Correias, Córrego do Feijão, Coqueiros, Fundão, Marinhos, Ribeirão, Rodrigues, Sapé, Taquaraçu (cf. PAIVA MOURA, s/d). Desde 2010 possuem um Ponto de Cultura e são assessorados por uma ONG de Belo Vale há pelo menos 13 anos. Recebem visitas de turistas e estudantes e fazem parte das atrações turísticas anunciadas pela prefeitura do município de Belo Vale. No entanto, a história da ligação entre os moradores e as ruínas ainda não foi formalmente reconstruída. Não há registros documentais que esclareçam como foi que uma chácara colonial, cujo porte majestoso evoca a presença de um senhor muito rico, passou para os atuais moradores, presumivelmente descendentes dos escravos desse senhor. Como e quando foi que a “Chacrinha” passou a ser “dos Pretos”? Não é incomum fazendas coloniais ligadas à extração de ouro terem sido abandonadas e sua história ter se perdido no tempo. O original neste caso é o papel relativamente recente que as ruínas passaram a ter na vida dos moradores, que agora a reconhecem como seu patrimônio histórico. Até recentemente as pedras do casarão eram usadas como alicerce na construção de casas na comunidade ou levadas por moradores de Belo Vale para serem vendidas na cidade. Hoje, a comunidade realiza várias atividades festivas e escolares no interior e ao redor das ruínas. Antes, os moradores não tinham uma história oral ou memória coletiva que tratasse da sua relação com o casarão. Essa história agora existe; foi constituída há relativamente pouco tempo, em 1997, desde que alguns jovens que cursavam a oitava série em Belo Vale aceitaram a sugestão da professora de História de pesquisar a história da sua própria comunidade como tema de trabalho sobre a escravidão. Entrevistaram as duas moradoras mais idosas da comunidade, um historiador de Belo Vale e foram auxiliados pela professora. O trabalho final foi apresentado em uma exposição em Belo Vale. Incluiu a mostra de objetos que os alunos encontraram nas casas de moradores e ao redor das ruínas e a redação de um relatório contendo os resultados de suas
1 Reunimos, na bibliografia, referências de trabalhos, blogs e reportagens sobre a Chacrinha.
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investigações sobre as origens históricas da Chacrinha dos Pretos. A história é protagonizada por um senhor muito rico, conhecido como Milhão e Meio, ou Barão do Milhão e Meio, que teria deixado a fazenda para uma escrava que teria sido sua companheira. A escrava então teria alforriado todos os escravos.2 Passados menos de vinte anos, essa narrativa está consolidada. É representada em peças teatrais encenadas pelos moradores, ensinada na escola local e reproduzida em trabalhos acadêmicos como a história oral da comunidade (cf. REIS 2003, 2004; ARAÚJO 2007; ZARANKIN et al. 2008; NAUFEL 2009; LEMOS e PAIVA 2010; PAIVA MOURA, s/d.). Nosso interesse de pesquisa se voltou para esse processo intenso de busca e afirmação das origens da Chacrinha dos Pretos. Encontramos a comunidade, acadêmicos, o clero, ONGs e historiadores da região debruçados sobre a reconstituição do passado escravo, cada um partindo de um ponto de vista. As perguntas que fazemos são: que valores e interesses guiam seus procedimentos de reconstituição do passado? De que maneiras narram, assimilam e transmitem a história? E qual o papel dos vestígios arqueológicos na formação da identidade quilombola da Chacrinha? A relação entre presente e passado na Chacrinha é particularmente apropriada para retomar a questão debatida em INGOLD (1996) sobre o passado ser ou não “um país estrangeiro”. A controvérsia gira em torno do modo como o passado é acessado no presente e o sentimento que norteia a sua reconstituição. Pensamos que a metáfora, mesmo sem ser novidade, não deixou de ter rendimento e que ilumina de modo particular o caso da Chacrinha. Ser ou não estrangeiro é uma analogia feliz para diferenciar uma lembrança que pode evocar ou proximidade ou distância; distinguir um passado com o qual se tem identidade e sentimento de continuidade de outro que é vivido como ruptura ou superação. A Chacrinha do passado colonial, de negros escravos e senhores brancos, seria tão estranha e distante no tempo que, imaginada no presente, se parece com um país estrangeiro, onde “eles fazem as coisas de modo diferente”?3 O que os diversos autores da reconstituição do passado da Chacrinha, com posições sociais diferentes, pensam a esse respeito? Como mostramos neste trabalho, a identificação com o passado escravo é ambivalente e ambígua. Entre os moradores, a maioria adere à identidade quilombola e ao passado escravo, mas há outros, em geral evangélicos, que não. Contudo, os que assumem a ligação com o passado se referem aos escravos como “eles”, e não “nós”. Notamos também que o interesse pela reconstituição do passado trata apenas da ligação de negros com o passado escravo; a história não aborda a conexão entre brancos e os senhores do tempo da escravidão. O interesse pelo passado manifestado pela militância que assessora os
2 Em outra versão, a escrava teria depois passado a morar com um padre. Quando o padre morreu,
deixou um testamento em que a terra ficava para a escrava e os escravos eram libertados. 3 Esta é a famosa frase de abertura do livro The Go-‐Between, de L. P. Harvey, que inspirou o livro do historiador D. Lowenthal (1985), que por sua vez inspirou o debate organizado por T. Ingold (1996).
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moradores da Chacrinha tem uma motivação reparadora, mas é seletiva; foca em uma história de descendentes dos escravos que pode ser considerada vitoriosa, promove sua afirmação política com base nos direitos constitucionais e valoriza expressões culturais que distinguem o coletivo. Neste caso de reconstituição da história da escravidão, os brancos são definitivamente os mais estrangeiros. A história das ruínas As ruínas da Chacrinha são formadas por muros e paredes feitos de blocos de pedras que restaram de uma antiga casa de fazenda. LEMOS e PAIVA (2010: 10) escrevem que as pedras têm 0,80 cm de largura e notam que os muros atingem 6 metros de altura em alguns lugares. Em ARAÚJO (2007: 180) é citado que as ombreiras de portas e janelas peças, feitas de granito talhado, possuem até 1,5 metros de comprimento e 80 centímetros de largura. Há marcas nas pedras que indicam que a casa grande teria dois andares, sendo o superior de madeira. A casa era abastecida de água, vinda de aquedutos de pedras de granito. Na parte baixa estariam “a senzala, a cavalariça, currais, pocilga, depósito, alambique, casa de purgar, casa de trapizonga, [...] totalizando uma área 1.600 m2” (Id., ibidem). Já Marina Naufel (2009) conclui, a partir da arquitetura e filiação estilística da casa, que “embora feita por mão de obra escrava, esteve sob orientação de canteiro ou pedreiro português” e que o proprietário deveria ser do Norte de Portugal. Em relação a outras ruínas do Médio Paraopeba “[o] estilo ... do que restou da construção mostra grande afinidade com algumas construções da região, principalmente de Moeda, Brumadinho e Belo Vale” (NAUFEL op. cit.: 94). Hoje, há casas de moradores coladas a paredes do casarão, alguns poucos quintais e pequenas hortas em meio a trechos dos muros antigos. O convívio dos moradores com as ruínas é marcado pela presença forte e conspícua desses muros de pedra, mas o tratamento e o significado conferidos pelos moradores ao casarão variaram ao longo do tempo. As ruínas da Chacrinha dos Pretos não são apenas o resultado do envelhecimento de um casarão colonial pela ação do tempo. As gerações anteriores deixaram relatos da pilhagem e destruição do casarão que teriam ocorrido no tempo da construção da Estrada de Ferro Central do Brasil, entre 1914 e 1917. A ausência de qualquer utensílio ou mobiliário do casarão é atribuída à ação dos engenheiros que trabalhavam na estrada de ferro, que teriam levado as peças mais valiosas. Também teriam posto fogo no interior do casarão, para encobrir o desaparecimento das peças. Os engenheiros são ainda responsabilizados pela criação do boato de que o casarão seria mal assombrado. Como o incêndio, o boato é visto como uma estratégia para afastar os moradores das riquezas e permitir que os engenheiros se apropriassem delas livremente. A construção da Estrada de Ferro, aproximadamente duas décadas depois da abolição da escravidão, ajudou a fazer a transição para novos tempos. Ofereceu
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oportunidade de emprego para os moradores da Chacrinha, transporte e maior comunicação com Belo Vale. As consequências negativas da proximidade com a linha de trem também são lembradas, pois como a linha passou dentro da fazenda, as paredes passaram a sofrer o efeito da vibração e os moradores, com o barulho das máquinas. Sob o comando atual de uma mineradora, a estrada de ferro mantém o papel central que passou a ter na vida dos moradores após a abolição; até hoje muitos, senão a maioria dos homens tem ou teve relações de trabalho com a ferrovia. Os homens da família de Dona Toca, 61 anos, servem como exemplo: o bisavô Antônio era ferroviário, o avô Aprígio também era ferroviário, o pai Albertino era ferroviário e ela se casou com um ferroviário, José Eustáquio,4 Mesmo assim, a época da construção é lembrada negativamente e os engenheiros acusados de assustar a comunidade para se aproveitar e levar o que tinha de valor no casarão. Apesar de ter sido uma época de mudança para novos tempos, uma disposição sentimental duradoura, de desconfiança e o estranhamento mútuos, ainda definiria as relações raciais e de classe por muito tempo. Os moradores viam os engenheiros como suspeitos, e sabemos que a impressão de pelo menos um engenheiro da linha do Paraopeba sobre os moradores da região de Belo Vale era negativa. Victor Figueira de Freitas, também escritor e pesquisador, diz que precisou atribuir a um empregado o papel de seu guarda-‐costas porque “..aquelas brenhas [eram] pouco amistosas e em geral refratárias à passagem da linha”.5 Depois desse período, o que restou da construção foi sendo desmanchado aos poucos. As pedras foram usadas para construir o alicerce de casas de moradores, e dizem que em Belo Vale muitas calçadas foram feitas com pedras da Chacrinha. As telhas foram aproveitadas por alguns e ainda podem ser vistas cobrindo as casas mais antigas. Não havia preocupação em proteger o que restou do casarão, nem a informação de que muralhas e paredes nuas possuíssem valor como patrimônio histórico. Muitos moradores atuais lamentam a sua participação na destruição do casarão e justificam: “a gente não sabia”. “A própria comunidade que ficou morando na Chacrinha depois da destruição ajudou a acabar de destruir a fazenda. Por quê? As casas eram todas de sapé. O que eles fizeram? As primeiras casas que tiveram telha foram cobertas com as telhas da fazenda. E muita pedra para fazer alicerce, madeira” ... (Rafael Dias, março de 2012). As ruínas passaram a existir, com esse nome e o significado de patrimônio histórico-‐
4 O Quadro 1 em anexo apresenta a genealogia de moradores atuais em relação à linha do tempo. 5 Depoimento s/d de Victor Figueira de Freitas sobre suas condições de vida durante a construção da
linha (1914-‐1917): "Morei a princípio em rancho de pau a pique, às margens do Paraopeba, junto à Cachoeira do Salto. Depois melhor me instalei, linha abaixo. Primeiro no antigo e belicoso São Gonçalo da Ponte [atual Belo Vale], mais tarde no pacífico Aranha (Melo Franco) e finalmente na quase deserta Várzea da Pantana (Ibirité). (Tínhamos direito a) proventos (...) e auxílio para aquisição de montaria (...) e um trabalhador para cuidar do animal e dele fiz, quanto a meu caso, o meu guarda-‐costas, naquelas brenhas pouco amistosas e em geral refratárias à passagem da linha (...)”. In: http://www.estacoesferroviarias.com.br/efcb_mg_paraopeba/belovale.htm, acesso em 24 de jul. de 2012.
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arqueológico, em torno da mesma época do trabalho dos alunos. Evidentemente o casarão já estava arruinado no final da década de 1990, mas o nome e o sentido dos destroços da velha construção eram outros. Os moradores, de tão acostumados a falarem hoje nas Ruínas, se surpreenderam com nosso interesse em saber como aqueles vestígios eram chamados antes. O casarão era chamado de Fazenda, e na parte central, onde a parede tem marcações para apoio de prateleiras e um altar, era a Igreja. Alguns falaram que podiam fazer referência ao lugar como Curral, e apenas os mais velhos falaram na Sanzala, como sendo a área grande, próxima às aberturas do muro para as seteiras. “Ruínas da Chacrinha veio quando a gente começou a estudar. Aí falava ‘vamos estudar as ruínas da fazenda da Chacrinha’... Quando eu era criança, falavam só a fazenda ou o curral. Eles falavam ‘vou lá na fazenda ou no curral’. Era ... essa a referência que o pessoal falava......” (Rafael, março 2012). Os mais velhos lembram que, quando crianças, passavam pela fazenda correndo, com medo de assombração. Alguns disseram que só passavam com a luz do dia, e quando era preciso cortar caminho. Às vezes podiam ouvir seus nomes sendo chamados; outros disseram que as vozes pareciam ser de três ou quatro pessoas conversando. As histórias de assombração são ligadas à existência de ouro enterrado na fazenda. Vários moradores contaram a mesma história, de que o senhor da fazenda mandava um escravo enterrar o ouro e depois matava quem fazia o serviço para garantir o segredo do lugar. Ao ouro é atribuída uma maldição: quem quiser ir à sua procura deve pagar pelo sangue dos que morreram. Até pouco tempo, a busca pelo ouro enterrado atraía gente de muitos lugares. “Lá na Chacrinha eu presenciei várias pessoas vindo de fora pra procurar ouro enterrado. E o pessoal falava, e dava todo aquele suspense, aquele drama, que o ouro era amaldiçoado, que quem procurava esse ouro morria. [...] tinha toda essa história. Meu avô contava pra gente assim que o ouro era amaldiçoado porque quem escondia o ouro morria. Então o espírito daquela pessoa ficava ali vigiando o ouro. E que aquele ouro que foi enterrado era destinado pra alguém. Então somente aquela pessoa para quem o ouro foi destinado poderia pegar o ouro. Qualquer outra pessoa não conseguiria”. (Rafael Dias, março 2012) No imaginário sobre o ouro da Chacrinha a sua procura está subordinada a poderes mágicos que precisam ser enfrentados adequadamente. Há também um protocolo que reconhece o direito dos moradores de reivindicar uma fração do que for desenterrado por pessoas de fora. A procura do ouro chegou a ameaçar a estrutura do casarão e o “suspense e drama” envolvido na sua procura, como Rafael Dias descreve, até gerou conflitos familiares. N. S., 77 anos, conta que as pessoas de fora pediam licença para procurar o ouro, propondo dividir o que encontrassem. Quando ela era pequena, vieram pessoas de Belo Horizonte cavar dentro da igreja de pedra, onde abriram um grande buraco com dinamite. A explosão teria abalado as paredes do casarão. O mais grave para ela, no entanto, foi o que o ouro levou seu marido, A.S., a fazer com sua filha. A.S. teve a visão de um homem que disse
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que daria o ouro para ele, mas exigia um filho em troca. O marido ofereceu a filha mais velha, que adoeceu. N. S. teve que levar a filha para um benzedor que a curou, mas avisou que o marido não conseguiria encontrar o ouro. De fato, cavou um buraco grande na casa deles, mas não achou nada. Depois que N. S. ameaçou processar o marido, ele tampou o buraco e desistiu. Enquanto fez a escavação, teve ajuda de um centro. N. S. nos disse que houve gente que morreu procurando o ouro. “Tem que ter corrente para mexer nessas coisas... tem que ser muito tarimbado para mexer”. Outra história conhecida na comunidade, também envolvendo ouro, trata da má fortuna de Geraldo Dias, bisavô de alguns dos moradores atuais. No terreiro de sua casa, com o tempo e repetidas varrições apareceu a beirada de um objeto redondo. Sr. Geraldo escavou e desenterrou uma panela que estava coberta por um pó granulado e fosco; mal sabia que era ouro em pó. Ele achou que o pó poderia estar encobrindo moedas de ouro e tratou de lavar a panela em uma bica. Era noite e a luz das estrelas fez refletir o ouro que escorreu com a água e se espalhou pelo terreiro. Alguns acham que a bananeira ao lado da bica ficou cheia de ouro. O casarão está associado a essas histórias sobre o ouro por conta de sua arquitetura imponente e do conhecimento da importância que aquela região da Serra da Moeda teve durante o período de extração de ouro. As histórias, as vividas e as imaginadas, versam sobre a existência de ouro enterrado, escravos mortos e pactos para descobrir onde estaria escondido. O foco das histórias sobre o casarão só mudou depois da divulgação do trabalho dos alunos e da promoção dos direitos quilombolas feita por professores e militantes de Belo Vale. O tema da narrativa histórica passou a ser o passado da escravidão, ou a história da antiguidade, que é o modo como alguns se referiram a esse passado mais longínquo. Antes, havia silêncio, ou o “enigma”, como os alunos escreveram no trecho do relatório citado abaixo. Na comunidade não há mais cópias desse trabalho, mas a dissertação de REIS (2003:22) cita um fragmento do texto. O título do trabalho foi: “Inventário de proteção do acervo cultural, histórico e arqueológico das ruínas da fazenda Chacrinha dos Pretos, no município de Belo Vale – Minas Gerais”. “Decifrar esse enigma é de tão grande importância porque conhecendo melhor o passado entendemos melhor o presente e assim poderemos, inclusive, transformar o futuro. Segundo a tradição oral, repassada pela família do Sr. Antônio Rezende, essas ruínas são de uma fazenda construída em meados do séc. XVIII (1752) e pertenceu a um português, José de Paula Peixoto, conhecido pelo pseudônimo de Milhão e Meio por possuir essa fabulosa fortuna em moedas de ouro e prata. Solteiro, Milhão e Meio, tomou uma de suas escravas para esposa e, como não possuía descendentes, seus bens (dinheiro, terras e escravos) com o seu falecimento, ficaram para essa escrava ‘esposa’ que então alforriou todos”. Trabalho dos alunos da 8a série da Escola Estadual Gama Cerqueira para a Feira Cultural de 1997, p. 2.
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O trabalho dos alunos direcionou a mudança no foco da narrativa sobre o passado da Chacrinha e estabeleceu as bases para o desenvolvimento de uma nova representação de identidade, apoiada em expectativas externas sobre quem seriam eles (descendentes de escravos, quilombolas). Nesse sentido, este trabalho pode ser visto como um evento histórico e analisado contextualmente. O principal catalizador naquele momento foi a modificação do paradigma da militância e ação sociais, entre as décadas de 1970 e 1980. O Brasil, como outros países do ocidente, passava por uma atualização do ideário do desenvolvimento, em que o modelo de progresso econômico, de integração racial e cultural estava sendo substituído pela valorização da diversidade cultural, promoção de direitos de minorias, direito à diferença e desenvolvimento sustentável (CARNEIRO DA CUNHA, 2009: 11). A constituição de 1988, que assume esses valores, abriu caminho para o reconhecimento de direitos quilombolas. Em Belo Vale, a atuação de ONGs que iriam trabalhar com a Chacrinha dos Pretos assumiu o papel de promover essa mudança regionalmente, e a professora de História de Belo Vale que orientou o trabalho dos alunos, Maria Aparecida Gloria Maia, a “Fia”, fundou um desses grupos. O principal autor do trabalho dos alunos foi Rafael Dias, com quem conversamos em março de 2012. Rafael mora agora em Belo Horizonte. Seu avô José Dias, sua mãe Tuquinha, suas tias Marlene e Kika, e sua prima Sheila são os moradores mais atuantes no movimento de recuperação do passado escravo da Chacrinha. Rafael mencionou as dificuldades que tiveram para reconstruir a história. O primeiro obstáculo que enfrentaram foi a dificuldade de entrevistar os mais velhos, que não queriam assumir a origem escrava. “As pessoas achavam que seriam discriminadas por assumirem a condição de descendentes de escravos”. Rafael acha que se tratava de preconceito dentro da comunidade e que só se sentiram à vontade para falar do passado depois de um “trabalho de conscientização” ser feito. “Você chamava as pessoas pra conversar, elas diziam: não, eu não sou descendente de escravo, não. Tinham vergonha. Chamava os meus tios, meus amigos, meus parentes pra conversar, não gostavam, se sentiam constrangidos. Como se: ‘ah não, eu falar que sou escravo?, todo mundo vai rir de mim, vai ser a coisa mais vergonhosa do mundo eu assumir que sou descendente de escravo’. Então, por isso que eu falei, teve que ter um trabalho de conscientização.” (Rafael Dias, março 2012)
A mudança na percepção da origem escrava precisou de mais tempo do que a duração da pesquisa dos alunos, e talvez ainda esteja em andamento entre alguns. Mas nas apresentações culturais da comunidade e nas pesquisas que outros jovens e lideranças da comunidade realizaram depois, o interesse pela história e pelos modos, costumes e expressões do tempo da escravidão é claramente manifesto. Esta mudança foi incentivada pelo interesse vindo de fora em associar a identidade dos moradores com o passado escravo. Hoje, a professora da escola de ensino fundamental da Chacrinha, Sheila Pereira, 32 anos,
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assume o papel de formadora e é uma das mais interessadas em recuperar as bases históricas da identidade dos moradores da Chacrinha. Para ela, ... “As ruínas significam a minha história, a vida dos meus antepassados. Eu tenho um orgulho muito grande de morar e pertencer a essa história. O meu maior sonho era conhecer como era antes para eu saber contar para meus alunos a história aqui da Chacrinha. [Quero] tentar fazer melhor, voltar com as danças de antigamente, o jeito de dançar, de se vestir, o penteado do cabelo das meninas... Acho que quem tem que conservar [as ruínas] são os moradores da Chacrinha. Infelizmente tem quem pensa diferente; o melhor seria que todos participassem da conservação. Como professora eu lido com alunos de todas as idades e vejo que ainda tem uma pequena porcentagem que pensa de modo negativo, que não tem interesse pelo passado. “Isso não me pertence, já passou”, dizem. São pessoas que não querem ser chamadas de negros. A gente tem que ter orgulho do que a gente é... Principalmente as crianças tem que saber que aqui na Chacrinha já viveram escravos ... e com isso ter orgulho de morarem aqui...” (Sheila Pereira, 32 anos, professora da Escola Municipal Joaquim José da Silva Xavier, janeiro 2012). A segunda dificuldade que os alunos enfrentaram foi a falta de lembranças sobre o tempo da escravidão. Buscaram pessoas mais velhas para entrevistar, supondo que soubessem falar sobre a época, mas chegaram à conclusão, nas palavras de Rafael, de que “a história da Chacrinha estava praticamente perdida”. Uma das razões apontadas foi o tratamento que as gerações mais velhas dispensavam às mais novas. No período após a abolição, o relacionamento entre pais e filhos era severo e de pouco diálogo. A mudança na ordem social, embora lenta, também deve ter motivado as pessoas a silenciarem sobre o passado. A transição dos valores da velha para a nova ordem significou para eles a promessa de serem reconhecidos como cidadãos plenos (a despeito do estigma racial), e esta é uma razão forte para querer esquecer o passado. A falta de motivos para guardar recordações do passado escravo e modo como as gerações se relacionavam devem ter sido razões suficientes para a “perda da história da Chacrinha”. Pessoas de mais idade com quem conversamos (M.C., T.D., J.D., N.S.) confirmaram: “os velhos eram muito brabos”, trabalhavam muito e quando estavam em casa não permitiam que as crianças ouvissem suas conversas. Também contam que os mais velhos tinham o costume de “falar baixinho”. Por conta disso, não passaram para eles memórias ou registros sobre a época da escravidão. Por sua vez, eles não tinham interesse em investigar o passado dos mais velhos: “A gente foi ficando num mundo em que a gente já queria outras coisas” (Nazaré Silva, 77 anos). Para a pesquisa, os alunos entrevistaram as duas senhoras mais idosas na época, D. Domingas e D. Noêmia, cujos pais e avós viveram o final da escravidão.6 As duas passaram a ser as principais fontes de informação em pesquisas posteriores, mas como Noêmia era mais jovem, seu papel foi menor. Elas faleceram em 2009, de acidente de carro, Domingas aos 90 anos e Noêmia 77 anos, ambas ainda lúcidas.
6 Cf. Quadro 1.
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“Então a única pessoa que ... contou realmente o que viu foi minha tia Maria Domingas... Ela me contava o seguinte. Quando ela era criança os pais dela saíam muito cedo para trabalhar e só voltavam à noite. Lá eram duas fazendas. Eram duas sedes grandes, enormes. Ela brincava, as fazendas já estavam vazias, quase desertas. Era no fim já da escravidão. Ela brincava no meio, lá nas fazendas, na senzala, nos terreiros, ela brincava lá. Mas ela ainda era uma criança. Talvez a única pessoa que nós tínhamos que tinha o desenho dessa fazenda para ser reconstituído... Ela sabia muitos cantos; sabia muita coisa. E... ela faleceu e levou tudo embora com ela. Bom. A respeito do que que aconteceu realmente com os nossos antepassados, como foi o fim, como isso acabou, ela não sabia me contar”. (Rafael Dias, março 2012) Ao ser perguntada sobre o passado, D. Domingas lembrava principalmente das brincadeiras da infância. Com a distância entre adultos e crianças, não estranha que essas fossem as suas recordações mais vivas. A mesma lembrança foi reportada por D. Maria da Conceição, de 97 anos, cunhada e comadre de Maria Domingas. Hoje, D. Conceição mora em Congonhas, com uma filha. A sua resposta para a pergunta sobre a vida na Chacrinha antigamente (para ela “Chacrinha dos Negros”), foi que brincava muito, gostava muito de brincar. “Tinha a [casa da] avó da comadre Dominga; nós brincava muito de roda. As meninas com os meninos... a gente brincava tudo misturado; eles não abusavam da gente. Agora hoje não pode”. Dona Conceição também não sabia falar dos mais velhos. Lembrou de apenas um casal de escravos (“os negros antigos”) e de sua mãe, dançando todas as tardes na “sanzala”. As mulheres, vestidas com saia de cordão, dançavam acompanhando os homens que, vestidos de camisolão e calça curta, batiam as caixas. Cantavam em uma língua “enrolada”, que as crianças não entendiam. “Era um povo sofrido, mas animado”, disse. “As ruínas – tudo é serviço dos antigos. Dos antigos eu não lembro não. Eu conheci só um casal, Miguel Chagas e Natalina. Não alcancei o tempo da ‘sanzala’. Só minha mãe, que dançava. Fazia aquela roda e dançava, mas eu não lembro. Ia dançando no ‘batio’ da caixa. Os homens batiam e as mulheres acompanhavam. Era animado. Mas não tinha essa violência que está não. Era um povo sofrido, mas animado. Dançavam e cantavam na sanzala, todo dia de tarde. A roupa delas era a saia de cordão, não é de moda, e os homens aquele camisolão, aquela calça curta, não é a calça de hoje, short. Cantavam aquela enrolada, só eles mesmos é que compreendiam. Eles cantavam, nós não cantava, nós não sabia”. (Maria Conceição, 97 anos, fevereiro 2012) Por morar em Congonhas, D. Conceição não participou da pesquisa dos alunos. Já sua comadre Domingas foi não só a principal informante como se tornou a figura central do movimento de resgate da história e da cultura da escravidão na Chacrinha. Talvez o papel que desempenhou de representante viva do passado, em atenção às expectativas, tenha sido até maior do que a sua contribuição para a recuperação de cantos, danças, vestimentas e receitas de quitutes. A sua idade e sua história de vida passaram a ser valorizadas na comunidade e fora dela; com isso, D. Domingas viveu, no final de sua vida, a transformação dos valores que fundamentam a narrativa histórica e a representação da identidade coletiva
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da Chacrinha dos Pretos. Nos vídeos onde aparece sendo entrevistada é possível perceber a timidez inicial, a cabeça e a fala baixas, o embaraço frente ao súbito interesse por sua pessoa. Aos poucos, foi desenvolvendo orgulho por representar o passado e se sentindo à vontade com a atenção recebida.7 No seu aniversário de 90 anos, pediu à neta Sheila uma missa “com tudo”. Segundo Sheila, ela queria uma missa afro, com os netos vestidos de escravos. Sheila produziu uma peça curta, encenada ao final da missa. A filmagem da celebração mostra a reunião das pessoas em frente à casa de D. Domingas. A liturgia católica é intercalada com intervenções de moradores da comunidade, principalmente mulheres, entoando cantos e dançando em diversos momentos. As roupas das mulheres misturam memórias da infância de D. Domingas com itens considerados afro ou do tempo da escravidão. São compostas por um pano de cabeça (o ojá) usado em religiões afro-‐ brasileiras, saias brancas rodadas e colares de contas. Na peça encenada ao final, dois homens sem camisa e com calças típicas do vestuário de capoeira entram pelo corredor da assembleia improvisada com os bancos da capela local. Um deles tem às mãos um chicote com o qual finge bater nas costas do outro que, tendo as mãos amarradas por uma corrente, arrasta-‐se até o altar onde se encontram o pároco e D. Domingas, que assiste à cena com as mãos no rosto e uma expressão de embaraço, senão de dor. No altar, Sheila entrega a um deles uma caneca com leite, que é despejada sobre o corpo do outro, que tem os olhos fechados e finge beber o leite derramado sobre seu corpo. Durante a cena, Sheila canta uma música conhecida por muitos na comunidade, ensinada por D. Domingas como sendo do tempo dos escravos. A letra da música possui duas partes, uma que parece pertencer à tradição oral do grupo e outra de domínio público, conhecida na tradição do congado mineiro: Minha mãe quando me deu Me deu leite para eu beber Antes me desse veneno Veneno para eu morrer Antes me desse veneno Veneno para eu morrer No tempo do cativeiro Mas quando o senhor me batia Eu gritava por Nossa Senhora, Meu Deus! Quando as pancadas doía... Eu gritava por Nossa Senhora, Meu Deus! Quando as pancadas doía... D. Domingas disse, em uma entrevista filmada, que a música era chamada de “Canto do Cativeiro” e era cantada pelos escravos quando estavam cansados de trabalhar e pediam a morte. Acrescentou,
7 Como mostra a citação de REIS (2004: 7), em anexo.
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“[Mas eles] gostavam muito de dança. Que eles trabalhavam também é verdade, mas eles dançavam, se divertiam muito.... O meu avô trabalhava aqui e ele saía de noite e chegava de noite. Ele saía com a Lua e chegava com a Lua. Ele também não contava o que estava fazendo”... (D. Domingas, em entrevista filmada por Lívia de Fátima Cordeiro Leão, coordenadora do Ponto de Cultura da Chacrinha dos Pretos). A ação cultural em torno de D. Domingas foi se tornando mais institucionalizada depois que a ONG Apha (Associação do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural de Belo Vale), formada por historiadores e militantes das causas quilombola, ambiental e do patrimônio, assessorou a implantação de um Ponto de Cultura na Chacrinha e coordenou um projeto de Ação Griô. Na parede de entrada do Ponto de Cultura, fundado em 2010, estão pintados os nomes de “Vó Domingas e Vó Noêmia”. A proposta da parceria entre a Associação Comunitária da Chacrinha (ACC) e a Apha é promover “o resgate da cultura afro-‐ quilombola”, oferecendo oficinas de capoeira (que não era praticada, mas foi introduzida atendendo a uma demanda da comunidade), dança afro (“tradição passada pela vó Domingas”), culinária (“biscoitos da quitanda afro-‐mineira”), entre outras. Sempre que possível, as atividades são realizadas dentro das ruínas. Também há grande interesse pela participação da Chacrinha dos Pretos em missas e festas religiosas da paróquia de São Gonçalo, em Belo Vale. A paróquia adota uma política de incentivo às manifestações culturais afro-‐brasileiras e os moradores da Chacrinha dos Pretos têm uma participação frequente nos eventos e celebrações. A associação das atividades de “resgate” com a religião católica é um dos motivos do distanciamento das famílias evangélicas. No entanto, o fato de a “igreja de pedra” ter para os mais antigos um valor sagrado mostra que a associação entre as ruínas e a tradição católica vem de longo tempo. D. Domingas demonstrava grande respeito ao lugar. Na filmagem feita pelo Ponto de Cultura, D. Domingas mostra onde era a porta da igreja e ensina que para entrar tinha que tinha que pedir licença com o “Canto de Permissão”. A música foi adotada por moradores da Chacrinha como parte de um ritual de entrada que é mostrado aos visitantes que vão conhecer as ruínas. Se me der licença eu canto, Se não eu vou embora Se me der licença eu canto, Se não eu vou embora. Hoje é a primeira vez, Que eu aqui venho cantar. Hoje é a primeira vez Que eu aqui venho cantar. Deixa a licença tirada quando eu aqui voltar! Deixo a licença tirada, Quando eu aqui voltar!
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D. Domingas mostra no vídeo que para ela a associação entre o casarão e a religião católica vem da infância. D. Conceição, a comadre de Congonhas, compartilha essas lembranças. “Eu brinquei muito foi na fazenda. Eu ... brincava muito... com uma pessoa que trabalhava aí.. chamada Jacinta ... e o marido dela chamava Beijo. Ela ensinava a gente rezar naquele tempo... Quando ia dando ali cinco horas a gente vinha tudo para cá. Passava aqui na fazenda primeiro, a minha vó Chaga trabalhava aqui! Ela mexia com algodão... algodão do pessoal fazer a roupa; e eu, eu vinha rezar! Quando eu chegava, minha vó ia embora, e eu ficava aqui na casa da Jacinta do Beijo para ela me ensinar a rezar... Eu ficava cantando e ficava na casa dela. A partir das cinco horas ela sentava na porta e a gente ficava tudo ajoelhada no terreiro, e ela ensinava a gente rezar”... (D. Domingas, em vídeo do Ponto de Cultura). Memória coletiva, história oral e historiografia A movimentação em torno de D. Domingas tratou principalmente da reconstituição de expressões culturais do passado escravo e da divulgação de tradições afro-‐brasileiras, sempre associadas às ruínas. Embora não tivesse podido atender à expectativa dos alunos de que conhecesse a história das ruínas, a sua participação no trabalho teve desdobramentos importantes. Foi a partir dela que a comunidade pôde refazer a ligação com o passado, superando a carência de transmissão de memórias entre as gerações. A neta Sheila, em particular, passava muito tempo com vó Domingas registrando o que ela conseguia lembrar. As anotações serviram para Sheila escrever várias peças de teatro, encenadas por moradores da Chacrinha. As peças começaram a ser produzidas do final dos anos noventa para o começo do século atual. As apresentações teatrais continuam acontecendo e passaram a ser a referência principal de uma memória coletiva construída em torno do passado escravo. A memória coletiva da Chacrinha dos Pretos, no sentido dado por Maurice Halbwachs (2006) ao modo como um grupo social reconhece e reconstrói o passado a partir de valores e interesses do presente, é comunicada de modo original pela vivência do teatro. Os autores, os atores e na maioria das vezes também a plateia são moradores da Chacrinha. Eles se reúnem para recriar o passado escravo, compartilhando uma narrativa sobre as suas origens e restabelecendo os laços com a tradição. Desde as primeiras peças, que contaram com a participação direta de D. Domingas, houve interesse em apresentar acontecimentos cotidianos e celebrações rituais com detalhes da postura corporal, dos gestos e modos dos antigos. “As peças de teatro eram história antigas que ela contava da Chacrinha, de algumas famílias de antigamente, de como eram as festas ... Em todos os teatros ela participava, ela era a principal... Sempre era eu a narradora...Da forma que ela falava eu tentava criar os personagens... Aí eles iam fazendo a cena, ela falava a forma como os escravos andavam, o jeito como eles se comportavam, as lavadeiras, as cozinheiras, como é que eram, e eu sempre
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colocando os nomes que ela falava. Por exemplo, tinha o Tio Beijo..., aí ela falava, o jeito dele era esse e esse e ela fazia com o corpo ‘ele era alto, ele era forte, ele fazia assim desse e desse jeito’... Aí nós colocávamos do jeito que ela falava comigo... Ela falava que nos bailes a mulher tinha que deitar nos ombros do companheiro pra dançar, do cavalheiro pra dançar, ela ia falando e eu ia escrevendo e depois montava em cima do que ela me falava. Às vezes ela falava ‘não pode colocar a cor das roupas das mulheres muito coloridas não’. O jeito das mulheres se vestirem era saia comprida, mas com aquele pano cru, sem cor nenhuma, aí as blusas eram de manga como sinal de respeito e com cabelo sempre preso, às vezes usavam lenço... Aí na cena eu colocava a maioria das mulheres com panos amarrados na cabeça. Ela falava que as mulheres não conversavam alto, conversavam tudo bem baixinho, pros senhores não ouvirem e a vida das mulheres era normalmente tecendo, cozinhando, socando café no pilão. Eu arrumava o pilão do jeito que ela falava, a mulher socando... isso tudo no teatro”... (Sheila Pereira, janeiro 2012) Quando Sheila começou a escrever peças sobre a Chacrinha, o tema principal das apresentações era o passado escravo que haviam perdido. Com o tempo, Sheila e suas tias Tuquinha, Marlene e Kika passaram a encenar também a sua história mais recente, narrando “causos” de moradores e familiares. Em contraponto ao caráter dramático da peça do final da missa de aniversário de D. Domingas, o gênero escolhido é o de humor. No estilo das comédias de costumes, as peças fazem a plateia rir de personagens que fazem parte de suas próprias histórias de vida. Os moradores da Chacrinha encenam seu passado mais recente com imaginação e graça, criando uma narrativa histórica particular com a qual a plateia, em geral eles mesmos, se identifica prontamente. Quando os alunos foram escrever sobre a história mais antiga, sobre a qual não havia testemunhos na comunidade, foram orientados por sua professora a consultar o historiador de Belo Vale Antônio Resende, ex-‐funcionário do IEPHA (Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais), formado em história, aposentado, e também membro de ONGs que assessoram a comunidade. Sr. Antônio foi a principal fonte da reconstituição da história antiga da Chacrinha, apresentada no trabalho dos alunos com a tradição oral. Para Rafael Dias, o depoimento da sua tia Domingas, baseado na memória, e a narrativa reconstituída por Sr. Antônio, são versões diferentes do passado da Chacrinha. “Conseguimos resgatar várias versões. Ficou até engraçado porque cada pessoa contava a história de um jeito. E você iria acreditar em qual versão?... Eu consegui uma entrevista com o Antônio de Belo Vale. Ele me contou a versão dele, que foi a seguinte... [narra a história do Barão do Milhão e Meio] ... Então, eu não sei. A gente não chegou a uma conclusão da verdadeira história da Chacrinha. Eu não posso afirmar pra vocês o que realmente aconteceu.... O que é que a gente fez pra apresentar na feira? A gente fez uma apresentação de todos os objetos que nós encontramos lá, cadeados antigos, restos de vasilhas, alguns livros, algumas vasilhas. Comentamos a verdade: não sabemos informar realmente como foi a história. Nós apresentamos as duas versões que a gente tinha, que era a do Milhão e Meio e a versão da minha tia Maria Domingas, contando por alto (...). A versão dela foi só a descrição do cenário, do que ela viu; ela nem chegou a presenciar as
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atividades que o pessoal realizava, porque ela era uma criança.” (Rafael Dias, março 2012) Apesar de Rafael considerar que seu grupo não chegou a uma conclusão, entre a memória pessoal de D. Domingas e a reconstrução histórica feita pelo Sr. Antônio Resende, foi a narrativa histórica de maior alcance, inserida em referências tomadas da historiografia oficial, a mais reconhecida e adotada como a história oral da Chacrinha. É referendada nas apresentações culturais e nos depoimentos dos moradores aos visitantes, e a partir daí nos trabalhos acadêmicos escritos sobre a Chacrinha dos Pretos como a tradição oral da comunidade (ver trechos no Anexo). Sr. Antônio nos descreveu as suas fontes e o modo como reconstruiu a história da Chacrinha dos Pretos. Seu interesse pelas ruínas começou na infância, quando passava por lá em viagens de trem de Belo Vale para Congonhas, e cresceu depois de se formar em História em Belo Horizonte. Na Chacrinha, fez amizade com o Sr. Albertino Dias, ex-‐ferroviário, que tinha na época, segundo Sr. Antônio, em torno de noventa anos. Sr. Antônio reuniu as conversas que teve Sr. Albertino a referências históricas e leituras sobre a região. “Eu tinha a Manchete de 72 do Sesquicentenário da Independência, falando sobre a viagem de Dom Pedro a Minas Gerais em março de 1882. Ele veio pra aliciar os mineiros para a independência que iria por vir. E chegando em Ouro Preto, onde ele sabia que seria mal recebido, ele vem para a Fazenda da Boa Esperança e lá ele pede 50 contos de reis emprestados para o Barão do Paraopeba, que ainda não era barão, era um capitão ou coronel. José Monteiro de Barros disse: ‘-‐ Esse dinheiro eu não tenho, porque todo esse dinheiro que eu tinha, tá no Banco do Brasil que seu pai fundou. Eu botei isso tudo lá. Mas eu tenho uma pessoa aqui que tem esse dinheiro, nós vamos lá!’. E aí montaram todo mundo a cavalo e foram lá na Chacrinha e a viúva do Milhão e Meio, que era uma preta velha, já estava com quase cem anos já, ela se dispôs a emprestar os 50 contos de reis. Ela pergunta pra ele: ‘– mas você quer esse dinheiro em prata ou ouro?’ Ele diz: ‘– eu prefiro em ouro, menos volume’. [ela perguntou] ‘– Com a esfinge de seu pai, de sua mãe ou de seu avô D. João Quinto?’ Dom João V tinha mais credibilidade, então respondeu, ‘– a metade desse dinheiro com a esfinge do meu avô, uma quarta parte com a esfinge do meu pai e uma quarta parte com minha mãe, D. Marieta.’ Aí foram pra dentro da fazenda, pegaram aquela bacia de prata, botaram o dinheiro, entregaram para ele. Não houve documento... Era o príncipe que estava pedindo emprestado, na maior confiança do mundo, e ele levou esses 50 contos que foram passados (dizem as más línguas), nessa Manchete ainda fala isso..., foi passado para a Marquesa de Santos, e com esse dinheiro ela construiu o palácio da Marquesa de Santos onde hoje é o museu... Pelo menos esse dinheiro ainda está por aí... mas até ontem ainda não pagaram o pessoal da Chacrinha. Vamos ver se agora, através desse programa [nossa pesquisa para o tombamento], vai ser pago né?” (Antônio Resende, janeiro 2012) Sobre o Milhão e Meio, Sr. Antônio cita como sua fonte principal o Sr. Albertino Dias. “O Milhão e Meio era um português que veio pra cá atrás de ouro, e vindo conseguiu uma sesmaria na Chacrinha onde ele começou a tirar ouro na
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cachoeira e por ali por perto fez aquela casa em 1752, conforme tem aquela pedra lá. A pedra já estava no jeito deles quebrarem.. Ele veio sozinho. Chegou aqui ele se amasiou com uma escrava.. Devia ser muito bonita.. nós temos inclusive a nossa Chica da Silva… Ela foi uma Chica da Silva daqui, nossa, né.. E caiu nas graças desse... Ele ficou muito rico, com muito escravo e tirando muito ouro e também na fazenda dele produzindo víveres para Ouro Preto. Ouro Preto não produzia nada. Todo mundo só tirava ouro, então tinha que comprar aqui no Vale do Paraopeba, que tinha grandes fazendas e mandava coisas lá para Ouro Preto. ... Aí aconteceu que quando o José de Paula Peixoto, o Milhão e Meio morreu, ele deixou a fazenda toda pra ela porque ele não tinha descendentes no Brasil. A primeira coisa que ela fez... Alforriou todos os escravos e pôs fogo na ponte de madeira. Se isolaram com medo de saírem e serem pegos para serem escravos em outra fazenda, e então ficaram ali fechados. Até a construção da estrada de ferro em 1912 a fazenda ainda estava de pé com todas as alfaias, com a capela, estava tudo ainda funcionado. Alguns dos escravos morando por lá ainda, mas todos eles em casebres ali por perto”... Na ausência de uma historiografia documental, a reconstituição do passado da Chacrinha pôde reunir, ao modo de bricolagem (LÉVI-‐STRAUSS 1989), uma série de elementos disponíveis, desde informações consagradas sobre fatos ocorridos nessa região mineira, a evidências empíricas locais, deduções lógicas e imaginações balizadas por critérios maleáveis de probabilidade e de plausibilidade. A narrativa histórica resultante satisfez não só os moradores, por terem restabelecido uma ligação com seus antepassados e adquirido uma identidade histórica da qual muito se orgulham, como o público externo em geral. É possível identificar, no processo contingente de reconstituição da história do Milhão e Meio, a direção dada por um sentimento nativista que a historiografia distanciada não tem, ou tem menos, liberdade de adotar. Para a comunidade, o Milhão e Meio (José de Paula Peixoto) é Barão, tal como o proprietário original da fazenda vizinha Boa Esperança, o Barão de Paraopeba (Romualdo José Monteiro de Barros).8 E enquanto não há registro de título de nobreza em nome de José de Paula Peixoto, a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros publicada pelo IBGE em 1958 é a fonte original das referências subsequentes à sua presença na região, bem como do seu apelido de Milhão e Meio.9 Como não há outra referência à sua presença na região ou à localização de sua fazenda, ou fazendas, a Chacrinha divide com o povoado de Arrojado Lisboa a posse das “ruínas do Milhão e Meio”. Há outras evidências disputadas, como um testamento deixado pelo Padre Nogueira Penido, que pode ser ou não referente à Chacrinha. Essas alusões a possíveis controvérsias não tem o intuito de rever a veracidade da narrativa, ao contrário. O intuito é chamar a atenção para as consequências da
8 Sobre esta fazenda, ver o livro escrito pelo historiador Tarcísio Martins, que também assessora a Chacrinha dos Pretos (MARTINS 2007). 9 “Em São Gonçalo da Ponte [Belo Vale] fixaram-‐se algumas famílias entre as quais os Sobreiro, os Sande, a do Barão do Paraopeba e a de José de Paula Peixoto, alcunhado Milhão e Meio em razão de sua fabulosa fortuna”. Sem citar a fonte, a Enciclopédia também informa que teriam sido os escravos do Milhão e Meio que construíram a estrada calçada ligando a região a Barbacena (IBGE 1958: 184).
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circulação de fontes entre a historiografia e a oralidade, em busca de validação mútua; como o trânsito de conceitos e signos entre o engenheiro e o bricoleur na análise de Lévi-‐Strauss, a circulação de fontes produz um cruzamento fértil para a oralidade e para a mitologia, mas inválido para uma historiografia que adote premissas científicas.10 O vazio deixado pela ausência de uma narrativa dominante ou uma história oficial dá espaço para hipóteses e imaginações sobre as ruínas da Chacrinha. Perguntamos a alguns de nossos entrevistados como imaginam a vida na fazenda naquela época? Apresentamos duas respostas, que mostram perspectivas distintas, uma de dentro e outra externa. Para a professora da Chacrinha, Sheila Pereira: “Menino brincando de roda no terreiro, as mulheres todas na cozinha cozinhando, aquela cozinha grande ... uma cozinhando, a outra fazendo roupa, mexendo com algodão, a outra catando feijão e todas cantando baixinho. Aí chegava o fazendeiro e elas todas abaixavam a cabeça pelo medo que tinham e começava uma a falar baixinho: ‘ah, ele um dia vai pagar pelas coisas que ele fez’, e o fazendeiro começava a gritar com elas e muitas choravam porque não podiam falar muita coisa. É isso, as mulheres em um espaço bem grande, os escravos mexendo com as pedras ... trabalhando, as crianças em volta brincando e as mulheres, umas cozinhando, outras tecendo.” E para o historiador de Belo Vale, Antônio Resende: “Era uma apoteose aquela fazenda funcionando, eu fico imaginando... bonita demais! Uma fazenda setecentista com as janelas todas de vidro inclusive com guilhotina, eu creio que seja coisa de rico, ele era rico. Uma capela muito bonita. Aquelas passagens todas ali de cantaria, tanto é que tem uma janela com conversadeira e ela não deveria de ser só uma, ela tinha de ser mais janelas com conversadeiras. A porta da casa deveria ser bonita demais com escadaria chegando! A gente vê o local da escada e dá pra imaginar perfeitamente como é que era. A vida ali seria uma coisa assim: começar cedo, antes do sol sair. Aí bom, muitos escravos. Cada um saindo pra fazer alguma coisa. Na época do ouro tinha uma turma que saia cedo pra ir garimpar, lavar o ouro, tirar... E outros iam pra roça pra fazer a manutenção dele. Ali devia de ter um engenho de serra pra serrar madeira. A senzala seria mais na frente da casa. Aquele adendo tem uma janela seteira. Ali seria a senzala”... Nem todos aceitaram completamente a narrativa histórica validada. Rafael, a despeito de sua participação, duvida da existência de um testamento e não confia inteiramente nos depoimentos que Antônio Resende obteve com Albertino Dias, que era seu avô e, segundo ele, gostava de contar causos. Para Rafael a conclusão do “enigma” da Chacrinha tomou um rumo errado. Perguntado qual seria então a sua hipótese, revelou, segundo ele pela primeira vez, a conclusão a que chegou: “Eu acho que pra Chacrinha ter ficado livre da escravatura ..., teve que derramar sangue... deve ter tido alguma batalha, uma revolta... Alguém seria
10 CONNERTON (1989:13-‐14) ao comparar reconstrução histórica e memória social, argumenta que a
historiografia deve assegurar a sua independência em relação à memória social.
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punido naquela época se matasse alguém? ... Eu acho que houve batalha pela liberdade... Talvez a história não tenha sido contada por isso, porque talvez ela não tenha tido um desfecho muito bom.... Porque é uma história muito grande! Cada um conta um pedaço de um jeito ... uma coisa diferente... Será que houve algum atrito entre ... os escravos da Chacrinha e o próprio fazendeiro, o Barão daqui, a partir do momento que souberam que não existia mais escravatura? Será que eles não se rebelaram e foram lá e assassinaram todos da fazenda?... Não tem ninguém da família do Barão. Não existe um descendente. Então, eu acho que a família do Barão teve um fim muito triste, ... assim como muitos escravos daquela época também podem ter morrido... E aí eles colocaram uma pedra em cima desse assunto ... Por que? Se fosse só coisa boa, todo mundo com certeza iria contar: ‘Ah, naquela época foi muito bom! A abolição da escravatura na Chacrinha foi assim, o Barão chegou aqui e chamou: – quem quiser continuar trabalhando aqui comigo vai continuar, mas é livre; quem quiser ir embora, vai’... Se tivesse havido paz na abolição da escravatura na Chacrinha, teria história pra contar... Na Fazenda do Siqueira também ninguém sabe... Arrojado, ninguém sabe ...! A única fazenda que sobreviveu foi a Boa Esperança. Mas ... ela teve ... uma sequência de donos que estiveram vivos até recentemente. [Essas outras], nada! Ninguém sabe... quem foram os antigos donos. Onde que eles foram parar?”(Rafael, março 2012) CONCLUSÃO Todos os relatos sobre o passado contam estórias a seu respeito e são, portanto, parcialmente inventados; [...] Contar estórias também impõe as suas exigências sobre a história. Ao mesmo tempo, toda ficção [histórica] é, em parte, 'verdadeira' em relação ao passado; uma estória inteiramente fictícia não pode ser imaginada, pois ninguém conseguiria entendê-‐la. A verdade da história não é a única verdade sobre o passado; cada estória é verdadeira de inúmeros modos, modos que são mais específicos na história e mais gerais na ficção. LOWENTHAL, 1985.11 A história que explica como descendentes de escravos se tornaram os legítimos ocupantes das terras ao redor das ruínas de um casarão colonial pode ser vista como uma história de emancipação vitoriosa. No lugar dos herdeiros do senhor da Chácara, estão os descendentes de seus escravos. Mas o fato de as ruínas do casarão serem o principal foco de atenção (e não outra construção menos representativa do período escravocrata) e de haver uma demanda generalizada sobre os moradores para que apresentem uma memória coletiva explicando a sua presença na Chacrinha, revela uma tensão entre valores do passado e do presente. Ao passarem a ser o foco de identificação dos moradores, as ruínas, lugar de sofrimento e opressão, adquiriram uma mensagem atual em que ocorre uma inversão de valores e de papeis, apropriada para validar as políticas de direitos quilombolas.
11 All accounts of the past tell stories about it, and hence are partly invented; as we have seen, story-‐
telling also imposes its exigencies on history. At the same time, all fiction is partly 'true' to the past; a really fictitious story cannot be imagined, for no one could understand it. The truth in history is not the only truth about the past; every story is true in countless ways, ways that are more specific in history and more general in fiction. LOWENTHAL 1985, p. 229.
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A atenção do coletivo, impulsionada pela ação consciente de algumas pessoas, empenhadas em criar ideologicamente uma narrativa de identidade negra é levada a confrontar as ruínas diariamente e a estabelecer, pela imaginação, uma linha de continuidade até o marco original 1752, a data registrada na pedra da fundação. Apesar de, no momento, o conhecimento sobre as ruínas ser fragmentário e preliminar, o interesse é suficiente para fomentar na Chacrinha um relacionamento ativo com o passado no presente via sua associação com as ruínas. Hoje, a relação com as ruínas tem outro significado, o de patrimônio histórico, que antes “a gente não sabia”, e exerce um papel ativo na organização de relações políticas internas e com o exterior, que os moradores sabem usufruir. A partir de uma interação contínua com o passado definido pelo tempo evocado pelas ruínas, os Pretos da Chacrinha buscam ajustar os quadros de sua memória coletiva a uma narrativa histórica plausível sobre eles mesmos. A despeito da intensidade da busca pelo tempo da escravidão, incentivada pela militância da causa quilombola, há reconhecimento suficiente em Belo Vale e vizinhanças de que a Chacrinha é dos Pretos, com ou sem história da escravidão. A associação dos moradores da Chacrinha com as ruínas e a escravidão não é necessária para que, se assim desejarem, terem a sua terra demarcada como território quilombola. O que o interesse pela narrativa parece indicar é uma revisão mais ampla do passado, em que a aproximação dos moradores da Chacrinha ao passado escravo é acompanhada de uma inversão de papéis (escravos no lugar de senhores) que concede, ao mesmo tempo e silenciosamente, anistia a qualquer coletivo, categoria social ou classe do presente de possuir uma ligação histórica com o passado escravocrata. Enquanto interessa habitar o passado escravo e conectá-‐lo ao presente, o passado escravocrata é um lugar distante, indesejado e estrangeiro. A importância dada às ruínas como fonte de definição dos que moram ali é tão forte a ponto de ocultar a polarização entre evangélicos e católicos. Mas mesmo os católicos, que abraçaram a questão posta pelas ruínas (qual é a ligação de vocês com este passado?), não foram receptores passivos de uma interpretação externa, na medida em que participaram da criação das narrativas e respondem à indagação oferecendo, a quem interessar, uma história oral plausível. Se a história oral tem uma licença criativa que a historiografia não pode admitir, a liberdade para imaginar o passado que estava perdido está circunscrita aos limites impostos pelas evidências, locais e da própria historiografia oficial, que determinam a plausibilidade da narrativa. O fragmento de uma cantiga, uma Vó Domingas com poucas lembranças, a história oficial da escravidão e do ouro de Minas Gerais são heranças recebidas que a imaginação de cada um reúne para tornar vivo o tempo que passou, e dar um sentido para sua presença em um lugar tão carregado de história.
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BIBLIOGRAFIA CARNEIRO DA CUNHA, Maria Manuela. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac e Naify, 2009. CONNERTON, Paul. How Societies Remember. Cambridge: Cambridge University Press. 1989. FRIEDMAN, Jonathan. “The past in the future: history and the politics of identity”. American Anthropologist 94 (4): 837-‐859. 1992. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. INGOLD, Tim. Key Debates in Anthropology. Londres: Routledge, 1996. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Vol. 24. Rio de Janeiro: IBGE, 1958, p.184. LOWENTHAL, David. 1985. The Past is a Foreign Country. Cambridge: Cambridge University Press. MARTINS, Tarcísio. Fazenda Boa Esperança – Belo Vale. Belo Horizonte: Formato, 2007. SOBRE A CHACRINHA: ARAÚJO, Maria Luiza Grossi. Ciência, Fenomenologia e Hermenêutica: diálogos da Geografia para os saberes emancipatórios. Tese de Doutorado, Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais (IGC/UFMG). Belo Horizonte, 2007. CAMPOS, Luana Carla Martins. Patrimônio arqueológico da Serra da Moeda, Minas Gerais: uma unidade histórico-‐cultural. Revista CPC (USP), V13, p. 1-‐27, 2011. LEMOS, Celina Borges; PIAVA, J. E. M. Patrimônio, Cultura e Meio Ambiente na Serra da Moeda: resíduos e reminiscências do espaço-‐tempo colonial. In: XIV Seminário sobre a Economia Mineira, 2010, Diamantina. Anais do XIV Seminário sobre a Economia Mineira. Belo Horizonte: FACE/CEDEPLAR, 2010. p 68-‐80. Disponível In: http://www.cedeplar.ufmg.br/seminarios/seminario_diamantina/2010/D10A083. NAUFEL, Marina de Paiva; Ruínas da Chacrinha: plano de uso e preservação. Monografia apresentada ao curso de Especialização em Revitalização Urbana e Arquitetônica da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Revitalização Urbana e Arquitetônica-‐ 2009. PAIVA MOURA, Antônio. “Sítios Antropológicos no Médio Paraopeba”. Manuscrito s/d. REIS, Maria Clareth Gonçalves. Escola e contexto social: um estudo de processos de construção de identidade racial em uma comunidade remanescente de quilombo-‐ Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-‐Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2003. REIS, Maria Clareth Gonçalves. Reflexões sobre a construção da identidade negra num quilombo pelo viés da história oral. In: 27ª Reunião da Associação Nacional de Pós-‐ Graduação em Pós-‐Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), Caxambu, nov. de 2004, p.01-‐19. Disponível em http://www.anped.org.br/reunioes/27/gt21/t216. VERSIANI, Eduardo Amorim; PIRANI, Denise. Estudos sobre a realidade de uma comunidade remanescente de quilombo: Chacrinha dos Pretos-‐ MG. In: 32º Encontro Anula da ANPOCS, 2008, Caxambu. ZARANKIN, Andrés; CAMPOS, Luana Carla Martins & PEREIRA, Anderson Barbosa Alves. Patrimônio Arqueológico da Serra da Moeda e Entorno. In: SOLÁ, Maria Elisa Castellanos; GUIMARÃES, Carlos Magno & PAIVA, José Eustáquio Machado de (orgs.). Patrimônio Natural-‐Cultural e Zoneamento Ecológico-‐Econômico da Serra da Moeda: uma contribuição para sua conservação. Belo Horizonte: Brandt Meio Ambiente, 1º vol., 2008, p.157-‐348.
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PÁGINAS NA INTERNET: 1. Blog do Ponto de Cultura Quilombo da Chacrinha http://pontodeculturachacrinha.blogspot.com/2010/10/chacrinha-‐dos-‐pretos-‐assim-‐e-‐ conhecida.html 2. Etnologia e Mobilização social em Belo Vale http://www.belovalecultura.blogspot.com.br/2008_10_01_archive.html 3. Blog sem autoria, mas traz o nome de Marina Ramos Plastino, Pesquisadora Científica, do Projeto Piloto Meio Ambiente e Saúde, no Vale do Paraopeba http://quilombochacrinhadospretos.blogspot.com.br/ 4. Instituto “Culturando”, Projetos Culturais e Viagens -‐ Os fantasmas de Chacrinha dos Pretos. http://www.institutoculturando.com.br/index_arquivos/Page562.htm 5. Informativo Noiva dos Cordeiros: “Ativistas” do Purbasiun Vitae Project Intelectual Ecology e moradores de Noiva do Cordeiro. Sobre o dia da consciência negra na Chacrinha. http://infonoivadocordeiro.blogspot.com.br/2007/12/dia-‐da-‐conscincia-‐ negra-‐em-‐chacrinha-‐do.html 6. Nação Griô Nacional-‐ Sobre os “Mestres Griôs” da Chacrinha http://www.acaogrio.org.br/index.php?pg=projeto&idreal=000065&idpj=043 7. Guia Gastronômico – Receita da Chacrinha http://sites.uai.com.br/guiagastronomia/belovale_sabor.htm 8. Poesia -‐ O mais Belo Vale de Minas-‐ Poema sobre Chacrinha http://www.recantodasletras.com.br/acrosticos/506591 9. Educação ambiental e turismo científico; Belo Vale. Conta uma versão da história da Chacrinha. -‐ Cita o padre José Nogueira Penido e o testamento. http://projetopilotomeioambienteesade.blogspot.com.br/2011/07/educacao-‐ ambiental-‐e-‐turismo-‐cientifico.html 10. “Imagens de um quilombo”-‐ Exposição fotográfica da Chacrinha por Abílio Maiworm Weiand http://sites.fmpfase.edu.br/centro-‐cultural-‐fase-‐fmp/ja-‐aconteceu/em-‐ 2009/imagens-‐de-‐um-‐quilombo 11. Desvendar-‐ Site de turismo. Cita o “Barão” http://www.desvendar.com/vargemdocedro/pvc_belovale.htm 12. ABRUC-‐ Autoria de aluno da PUC/MG, sobre a Chacrinha-‐ Cita o “Barão” http://www.abruc.org.br/003/00301015.asp?ttCD_CHAVE=76450 14. Site Nação Griô – contém imagens e uma biografia de D. Domingas http://www.acaogrio.org.br/BKP/index.php?pg=projeto&idreal=000065&idpj=043 13. Laudo do M.P. de Minas Gerais sobre tombamento da Serra Casa de Pedra-‐ Adriano Carvalho afirma no Levantamento arqueológico realizado na área da Mina Casa de Pedra que as atividades empreendidas pela CSN afetariam duas comunidades detentoras de relevância histórica para a região (Boa Morte e Chacrinha dos Pretos). http://www.observatoriodopresal.com.br/wp-‐ content/uploads/2012/04/LAUDO_CONGONHAS_SERRA_CASA_DE_PEDRA1.pdf 14. Site do CEDEFES-‐ Descrição sucinta da comunidade http://www.cedefes.org.br/index.php?p=projetos_detalhe&id_pro=64 15. Federação das comunidades quilombolas do Estado de Minas Gerais-‐ Descrição sucinta da comunidade. http://quilombolasmg.org.br/index.php/chacrinha-‐dos-‐pretos 16. Ata do Ministério Público Estadual-‐ Levantamento da localização e dos traços culturais que definem as comunidades quilombolas em Minas Gerais http://6ccr.pgr.mpf.gov.br/documentos-‐e-‐ publicacoes/atas/docs_atas_2005/ata306.pdf
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17. Biblioteca do IBGE-‐ Cita o Milhão e Meio http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/minasgerais/belovale.pdf ANEXO 1: Trechos dos trabalhos de REIS (2004), ARAÚJO (2007) e ZARANKIN et al. (2008) REIS 2004, p. 5: “Em visitas a Vó Domingas, uma das moradoras mais idosas da comunidade e, segundo ela própria, neta de escravos, compreendi que as ruínas têm um significado diferente para algumas pessoas mais velhas, principalmente aquelas que tiveram a oportunidade de ver os muros ainda erguidos. p. 7: No início das visitas, Vó Domingas evitava falar das ruínas da fazenda, de seus antepassados e da escravidão. Geralmente, quando se tratava desse assunto, ela dizia que já estava velha, que a memória já não funcionava mais. Porém, durante a investigação, comecei a perceber que falar do seu passado a deixava triste e angustiada. Esses sentimentos eram o seu motivo de não querer lembrar o passado, uma época sofrida que deixou marcas irreversíveis. Assim, no decorrer das observações, pude compreender a razão do ‘não funcionamento’ da memória de Vó Domingas. Entretanto, chegou um momento da história daquela comunidade em que as ruínas começaram a atrair estudantes, professores, pesquisadores, repórteres de jornais e televisão, entre outros. Aquelas ruínas, com a história que carregam, cujo passado era evitado por Vó Domingas, começaram a ter expressividade. A partir daí, Vó Domingas passou a compreender a importância de seus relatos para a preservação da memória local e, ainda acanhada, começou a narrar alguns acontecimentos, entre os quais os relativos à sua infância...” ARAÚJO, 2007: p. 170: “A historiografia que deu origem à comunidade da Chacrinha dos Pretos começou, nos últimos anos, a ser sistematizada. (...) Entretanto, importantes referências dessa história podem ser encontradas ainda hoje na tradição oral, recontada por alguns dos moradores mais antigos da Chacrinha dos Pretos.” p. 172:“Os mais velhos moradores de Belo Vale e/ou Chacrinha dos Pretos são os que se referem à história da Chacrinha e às ruínas da casa grande, onde residia o Barão José de Paula Peixoto, de origem portuguesa, conhecido como milhão e meio. A casa grande ou casa da fazenda é, sem dúvida, o marco arquitetônico histórico-‐cultural para se conhecer e remontar parte da história originária desta comunidade de negros quilombolas (...). Por sua vez, o codinome milhão e meio do Barão José de Paula Peixoto refere-‐se à fortuna em ouro, acumulada de fato por este fazendeiro ou no imaginário coletivo dos moradores de Belo Vale e da Chacrinha dos Pretos. (...) A fazenda do Barão José de Paula Peixoto funcionava muito provavelmente como uma típica propriedade rural do período colonial da capitania de Minas, na primeira metade do século XVIII. Suas principais atividades voltavam-‐se possivelmente para a mineração do ouro e para a agricultura de subsistência. Reunia, nos tempos áureos da mineração, uma população em torno de 1200 escravos, segundo depoimentos de moradores da Chacrinha.” p. 173:“Alguns moradores da Chacrinha dos Pretos relatam também, que o Barão José de Paula Peixoto tomou por esposa uma de suas escravas. Não deixando descendentes diretos, seu patrimônio ficou para sua consorte que, após a morte do esposo, teria alforriado todos os escravos que viviam na fazenda. No entanto, parece haver controvérsias em relação a esse episódio. Para uma das moradoras mais antigas da comunidade da Chacrinha dos Pretos, a história da vila está, sim, ligada ‘à história do barão de um milhão e meio, vindo para cá por causa da mineração. O barão deixou a casa a um padre, que por sua vez, deixou para uma negra por quem se apaixonou. Depois que a ferrovia chegou a boa parte da sede foi derrubada.’ (Entrevista. Maio 2005).” ZARANKIN, A,; CAMPOS, L. C. M. & PEREIRA, A. B. A. 2008, p. 178: “Segundo Victor Figueira de Freitas, do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, como atestado das riquezas advindas com a atividade minerária e a produção agrícola no Alto Vale do
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Paraopeba, existe "a sede da 'Fazenda da Boa Esperança', as do Monteiro de Barros e as ruínas das paredes gigantescas da sede da Fazenda do Padre Pedro Pinto, nas proximidades da parada 'Chacrinha'". E ele continua o relato: Na referida Fazenda [Padre Pedro Pinto] processou-‐se uma das mais antigas e curiosas "Reformas Agrárias" no país: fazenda de grande área e terras ubérrimas, legada por testamento do Padre Pinto – que não tinha herdeiros – aos seus escravos, alforriados pelo mesmo documento. Generosa iniciativa destinada ao fracasso como era de se prever, mormente naqueles tempos de mandonismo absorvente: o minifúndio desamparado sendo, como é ainda hoje, pior que o latifúndio. (...) É possível que a denominação de Chacrinha dos Pretos para a fazenda e povoado localizados no atual município de Belo Vale, esteja associada à antiga "Fazenda da Chácara" pertencente a Bento Marques da Costa e sua esposa Maria Francisca. Naquela propriedade, viviam na condição de livres poucos homens de cor que se dedicavam à agricultura. (...) Pela documentação arrolada, relações de parentesco podem ser estabelecidas entre os integrantes da "Fazenda da Chácara" com a "Fazenda do Coco" do também negro Silvério Vieira Braga e com a "Fazenda da Barra" de Antônio José Bastos, o que leva à dedução que todas essas unidades produtivas fizessem parte da antiga fazenda do Padre Pedro Pinto. (...) (...) A tradição oral, por sua vez, registra uma outra versão para as origens da "Fazenda da Chácara": de propriedade de José de Paula Peixoto – homem notável pela fortuna que acumulou durante o século XVIII – a Fazenda era chamada de "Milhão e Meio" em razão da riqueza de seu dono. Assim, é possível que o barão José de Paula Peixoto, de origem portuguesa, tenha fundado a "Fazenda do Barão" (...) Compondo o conjunto de suas ruínas, encontram-‐se os vestígios de um altar e a inscrição da data de 1752 em uma pedra, informação que parece indicar a antiguidade da construção de uma ermida ou da própria sede da Fazenda. Segundo relatos, "Milhão e Meio" não possuía herdeiros e com o seu falecimento, aquelas terras foram deixadas a uma escrava "tomada como sua esposa" e por ele emancipada. Ela, por sua vez, alforriou todos os outros cativos que pertenciam ao plantel do finado José de Paula Peixoto. (...) Outras fontes orais atestam que o Barão deixou a Fazenda a um padre, e este a seus escravos. (...) Esta versão se aproximaria dos dados apresentados pelo pesquisador Victor Figueira de Freitas de que a propriedade fosse do Padre Pedro Pinto que, antes de morrer, alforriou seus cativos e deixou a eles a "Fazenda do Barão". (...) Todavia, o que se pode constatar, de fato, é que em algum momento, as terras passaram às mãos dos alforriados.” P. 312: Fazenda do Barão (Arrojado de Lisboa): “Foram levantadas duas possibilidades na identificação histórica da fazenda, mas ambas necessitam de pesquisas sistemáticas envolvendo documentação e arqueologia. A primeira possibilidade é uma fazenda sinalizada no mapa feito por Eschwege em 1821. Nele consta uma fazenda, denominada Alberto Garcia, situada entre Boa Morte e a fazenda Santa Cruz (...). Outra possibilidade remete à história oral da região que denomina o local como sendo as “Ruínas do Barão” ou “Ruínas do Milhão e Meio”. Seria uma fazenda localizada a 12 km de Belo Vale, no povoado de Arrojado Lisboa, de propriedade de José de Paula Peixoto, que possuía uma fortuna avaliada em um milhão e meio de contos de réis, tendo sua viúva, inclusive, contribuído financeiramente para a Independência do Brasil. Esta última informação parece mais condizente com os dados levantados.”
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