\" INVENTÁRIOS ENUMERATIVOS \" EM ROTEIROS DE VIAGENS DE UM BRASIL (QUASE ) EUROPEU. anais do SEDIAR, 2016

May 23, 2017 | Autor: Glória França | Categoria: Análise do Discurso, Semántica
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“INVENTÁRIOS ENUMERATIVOS” EM ROTEIROS DE VIAGENS DE UM BRASIL (QUASE ) EUROPEU. Glória Abreu França1 Unicamp / UFMA RESUMO Este artigo situa sua fundamentação na análise do discurso pecheuxtiana e na semântica do acontecimento e apresenta uma análise de enunciações sobre cidades e regiões do Brasil, lidas como reprodutoras de um determinado imaginário nacional, que se distingue daquele que é reproduzido no olhar dos estrangeiros. Tem, desse modo, o objetivo de compreender quais os sentidos de Brasil e de identidade nacional no discurso veiculado no âmbito do turismo. A análise linguística se constrói em torno de designações de lugares do país, na seção Roteiros de Viagem, no Guia 4 Rodas, e é desenvolvida uma descrição e análise da enumeração, enquanto exemplos dos dois modos de enunciação identificados por Guimarães – a articulação e a reescrituração. A partir da análise linguística, teço reflexões sobre seus efeitos interdiscursivos na construção dos sentidos. Palavras-chave: brasileiro.a; enumeração; turismo; interdiscurso. ABSTRACT This paper bases its foundation on the discourse analyses (Pêcheux, 1975) and on semantics of the event (Guimarães, 2002) and presents an analysis of enunciations about cities and regions of Brazil, which are read as reproducing a certain national imaginary, which is distinct from the one that is reproduced by the foreigners’ point of view. Its objective is to understand how and which are the meanings of Brazil and national identity in the discourse divulged in the tourism field. The linguistic analysis is built around designations of places of the country, in the section Travel Itinerary, in the Guia 4 Rodas, a Brazilian tourism guide. It is developed a description and an analysis of the enumeration (listing), as examples of the two enunciation modes identified by Guimarães (2009) – the articulation and the rewriting. From the linguistic analysis, a number of reflexions is developed about the effects of those enumeration in the meanings interdiscoursive construction. Key words: Brazilian; enumeration; tourism; interdiscourse. 1. Introdução                                                                                                                 1

Doutoranda em Linguística do Instituto de Estudos de Linguagem – UNICAMP e membro do grupo de pesquisas Mulheres em Discurso CNPq/ processo número. Professora do departamento de Letras – Universidade Federal do Maranhão.

Estudo que se centra na análise do discurso de vertente materialista, e, que tenta levar a cabo a máxima materialista no discurso que prima pela análise da forma material da língua. Desse modo, a análise se centra na construção do sentido, enquanto acontecimento da enunciação, visando compreender o funcionamento do discurso sobre os brasileiros e sobre o Brasil. Este estudo se alinha na proposta do simpósio pois centra sua análise no funcionamento e na descrição do léxico e de designações no nível do texto, da enunciação e do discurso, a partir de reflexões sobre não-ditos ou ainda sobre os efeitos de sentido produzidos pelas relações interdiscursivas. O corpus se constitui a partir de materialidades provenientes da seção Roteiros de viagem, do guia de turismo, em português, Guia 4 rodas. Ao longo da análise farei menção a outros materiais a partir dos quais tenho esboçado análises, é o caso de guias em língua francesa e de documentos digitais sobre o turismo - em particular, a página oficial do ministério do turismo no Facebook. O recorte que aqui apresento se constitui em torno de caracterizações enunciativas de lugares no Brasil assim como algumas designações referentes aos habitantes desses lugares. Um dos objetivos do trabalho é observar especificamente como o procedimento enunciativo da enumeração contribui para a construção do sentido que aqui tento compreender, a saber, os sentidos de brasil em materialidades produzidas no âmbito do discurso do turismo. Desse modo, o texto se articula entre a categoria analítica da enumeração, dentro da semântica do acontecimento, e o aporte teórico da noção de interdiscurso (memória discursiva). A semântica do acontecimento traz a noção de temporalidade, a partir da qual há uma projeção e uma rememoração de enunciações, isto sem remeter à centralidade de um sujeito. No guia que analiso, o presente do acontecimento da enunciação se faz no tempo em que o locutor seleciona algumas regiões e as categoriza dentro de uma seção do guia intitulada “roteiros de viagem”. É esse o acontecimento a partir do qual os sentidos se constroem e se projetam. Guimarães (2002) a esse respeito, retoma aquilo que a análise do discurso considera como sujeito enquanto aquele que enuncia de uma determinada região do interdiscurso, o modo pelo qual a seleção dos roteiros de viagem é feito e a forma como é apresentada – um índice com os nomes das regiões a serem apresentadas– é aquilo que estabelece a relação de sentidos que se projetam.2 Pelo fato do acontecimento da enunciação se dar em espaços de enunciação, tem-se ele se constitui como um acontecimento político3. Assim, o sentido é político pois é um sentido dividido e igualmente por haver um processo de silenciamento constitutivo do dizer. É, ainda, político pois o sentido pode sempre ser outro, ou seja, poderia haver e há outras formas de se apresentar um roteiro de viagem no Brasil, em função dos diferentes lugares de dizer existentes. 2. Os roteiros de viagens do Guia 4 Rodas – análise semântico-discursiva.                                                                                                                 2

Assim como Guimarães o faz, poderia em outro momento desenvolver esta reflexão sobre o presente do acontecimento apresentando uma análise mais detalhada dos diferentes índices dos guias em questão. 3 Todas estas noções são tiradas de Guimarães, 2002, Pontes.

Posicionando-me nos campo teóricos apresentados, tomo os enunciados, junto com os autores que sigo, na sua relação de sentido no texto e no discurso. Assim como Guimarães (2002, 2009) define, o sentido se constitui pelo acontecimento da enunciação. O autor identifica nessa produção de sentido os dois modos de enunciação que são a articulação e a reescrituração. Segundo esse autor, a articulação é o modo de enunciação estabelecido por relações de contiguidade no texto (sejam elas por dependência, coordenação ou incidência), e a reescrituração se dá por uma relação simétrica, contígua ou à distância, e “tem a ver diretamente com o fato de que os enunciados e seus elementos significam em virtude do texto que integram” (podendo ela se apresentar sob o modo da repetição, da substituição, da elipse, da expansão, da condensação e da definição) (Guimarães, 2009, p. 51). Neste estudo, estabeleço um diálogo entre essa concepção de sentido, da semântica do acontecimento, e a concepção tal qual considerada pela análise do discurso, enquanto produção de sentidos entre locutores. Desse modo, paralelamente a uma abordagem semântica, levo a análise sem perder de vista que esse texto está numa relação sempre-já existente com outros textos, relação esta que chamamos de interdiscursivas, seguindo aquilo que é posto pela análise de discurso. Parafraseando Eduardo Guimarães, o sentido se constrói desse modo a partir das relações das formas linguísticas entre si e igualmente das relações com aquilo que se convencionou chamar de exterior linguístico, sem o qual não há sentido. Sobre este aspecto, tanto a semântica quanto a análise de discurso concordam a respeito da natureza disso que está para «além» do texto, ambos assumem - a seu modo - a noção de interdiscurso (Guimarães, 2002, 2009). Neste estudo, retomo largamente a análise feita por Guimarães (2009) especificamente sobre a enumeração, na qual o autor, através de uma fina e detalhada análise, identifica a enumeração como um tipo de reescrituração, Segundo o autor, «a reescrituração pode produzir uma sinonímia, uma especificação, um desenvolvimento, uma generalização, uma totalização, e uma enumeração » (2009, p. 53), ou seja, a enumeração seria neste caso um tipo de reescrituração. Contudo, ao aprofundar sua análise da enumeração, enquanto modo enunciativo no processo de produção de sentidos, o autor identifica, igualmente, que « o funcionamento da enumeração é marcado por paralelismos, por superposições, por cruzamentos entre articulação e reescrituração ». É na direção deste último aspecto da enumeração enquanto pertencendo tanto à reescrituração quanto à articulação que a presente análise se encaminha. Postas estas considerações, tem-se que os enunciados que passo a analisar a seguir devem ser lidos a partir de onde foram efetivamente produzidos, tais enunciados são produzidos ao longo do guia de turismo já apresentando, e se concentram mais particularmente nas páginas de uma subseção do guia intitulada roteiros de viagem, onde é feita uma seleção lugares como sugestão ou instrução de viagem a serem feitas. Após as páginas principais dedicadas a esse roteiro, o guia se organiza por ordem alfabética e descreve as cidades, por vezes dedicando algumas linhas ou algumas páginas a determinadas cidades. A esse respeito um primeiro gesto

de interpretação é o que leva em consideração e questiona o fato de se escolher falar de tais lugares e regiões do Brasil e não de outras. É importante se pensar no modo como são apresentados os roteiros de viagens no Guia 4 rodas e no que isso tem de não-evidente. Busco responder a uma das perguntas da tese que desenvolvo4 que se questiona sobre o imaginário que se (re)produz para o.a (viajante) brasileiro.a ou estrangeiro que se interessa por viagens dentro do país. O que é dito como sendo brasileiro digno de visitação e de interesse nesses discursos? Quais sentidos se constroem sobre o ser brasileiro.a no âmbito de um discurso em língua portuguesa do Brasil, que trata de viagens de turismo? Através dessa pergunta se pode compreender como vai se constituindo o imaginário da identidade nacional, que é como se apresenta de modo heterogêneo e contraditório. Em um modo comum aos guias que tenho analisado, o Guia 4 Rodas começa por elencar, em uma forma de lista, os lugares a serem visitados, assim tem-se por exemplo os lugares principais a não se deixar de ver, ou um roteiro para 7 dias, e, no caso do guia em questão, roteiros sugeridos incluindo algumas cidades, e regiões. A lista é composta por 10 grupos de lugares (um mesmo roteiro pode propor diversas cidades organizadas por um tópico, “vinho”, “litoral”, “café colonial”, “serra”, etc.), destes, 9 se localizam no sul e no sudeste do Brasil, a exceção que foge ao eixo sul-sudeste é a região em torno de Salvador (Bahia). Tem-se, nesse caso, uma primeira incidência de uma memória interdiscursiva que se apresenta sob forma de um efeito transverso (efeito ou processo de articulação/sustentação) e de pré-construídos, que irei desenvolver mais adiante. São estes dois elementos do interdiscurso peçaschave para a análise que aqui se apresenta. Segundo Pêcheux (1988, p.159, Apud Zoppi-Fontana, 2012), o efeito de articulação/sustentação diz dos “elementos de sentido presentes como memória discursiva que sustentam as articulações sintáticas do enunciado, ou seja por equivalência (substituição simétrica) ou por implicação (substituição orientada)”, nesse mesmo sentido, o pré-construído (Pêcheux, 1988, p. 99, Apud Zoppi-Fontana, 2012) é “aquilo que remete a uma construção anterior e exterior, mas sempre independente em oposição ao que é construído no enunciado”. Segundo Zoppi-fontana (2012, p. 15), Pecheux relaciona esses funcionamentos “não somente com elementos de sentido já-ditos e presentes em sua ausência nos enunciados, mas também e especialmente ao próprio processo de constituição do sujeito do discurso via interpelação ideológica.” Assim, poderia identificar na presença dos roteiros de viagem o trabalho desses elementos do interdiscurso que poderia ser reformulado, por exemplo, por como se sabe o turista brasileiro se interessa principalmente ou somente por aquilo que se localiza no sul e sudeste do país. Aprofundando essa identificação, mostrarei como essas cidades escolhidas são apresentadas e que elas têm em comum entre si, com exceção do nordeste, o fato de serem mostradas como o que de Europeu existe no país. Esse Brasil que chamei de quase-europeu pode ser ilustrado pela escolha dos roteiros principais que ganham as primeiras páginas do guia analisado. É a partir desse olhar, da identificação do efeito do interdiscurso, que ganha sentido a análise                                                                                                                 4

http://www.bv.fapesp.br/pt/pesquisador/668832/gloria-da-ressurreicao-abreu-franca/

apresentada. Vale ressaltar que esse sentido de Europeu também não é evidente, ou seja, veremos que pela deriva de sentidos, atribuem-se caracterizações de um certo Brasil e, ao mesmo tempo, vai se construindo um sentido do que é ser Europeu ao longo dos enunciados. Nos recortes que analiso, apresento primeiramente enunciados que argumentam na direção da influência e das tradições europeias. Veremos como se constroem linguisticamente as descrições desses lugares, tentando observar, quais formas são priorizadas, em detrimento de quais outras, para descrever o que é relevante de ser conhecido no país. Apresento um recorte que se concentra nos nomes dos lugares, tanto denominações quanto designações no funcionamento daquilo que Guimarães (2009) chama de um “inventário enumerativo”, a partir do qual, veremos o modo como se apresenta o discurso do orgulho das raízes europeias presentes no Brasil. Tento com a análise responder à questão sobre o que busca o turista brasileiro em suas viagens no país: um “Brasil-brasileiro” ou, pelo contrário, busca o que foge à brasilianidade exotificada 5 que se vê vendida nos guias de turismo estrangeiros, um Brasil (quase) europeu? Sobre “o orgulho das raízes europeias” e nomes dos lugares – topônimos, reescriturações e articulações. Apresento a seguir, alguns enunciados que irei retomar ao longo deste texto. (1) Página 42 [roteiros de viagem] [serra gaúcha] Nas montanhas do Rio Grande do Sul, o friozinho das cidades de colonização europeia convida a degustações de vinhos em meio a paisagens de cinema.(a) 1. Porto alegre. Tchê, a capital trilegal esbanja qualidade de vida, respira arte em seus centros culturais e preserva tradições dos colonizadores europeus e vizinhos latinos. Repare nos jovens lendo livros nos muitos parques da metrópole com suas cuias de chimarrão em mãos. [...](b)

Segundo Guimarães (2002) os modos de produção de sentido se dão por articulação e por reescrituração. Para descrever o enunciado (1), retomo essa categorização, pois pode se dizer que é o acontecimento da enunciação que determina que há uma relação de articulação entre tradições e colonizadores europeus (1b), e destes com “preserva”, em “preserva tradições de colonizadores europeus”. Ainda em (1b), percebe-se que a primeira sentença e segunda podem ser vistas como também em relação de reescrituração por incidência: “repare nos jovens lendo livros” reescreve retomando toda a sentença anterior “esbanja qualidade de vida, respira arte..., e preserva tradições dos colonizadores”. Percebe-se que não há nada que predetermine que essas relações se estabeleçam, sua ocorrência se dá pela “escolha” de tal forma e não de outra, pela escolha desse modo de dizer e não de outro. Tem-se aí uma produção de sentido para a cidade de Porto Alegre, e por extensão, dado que tal enunciado se encontra em um guia de turismo, uma                                                                                                                 5

Nas análises de guias franceses percebe-se um enfoque dado ao exótico para um olhar europeu, que dá espaço a descrições de um Brasil-praia, fala-se dos corpos do.a.s brasileiros, corpos que dançam e se tocam, que jogam futebol, muitas vezes esse Brasil-praia pode ser encarnado pela cidade do Rio de Janeiro, o que já se distingue do que se percebe nas análises aqui desenvolvidas.

produção de sentido sobre aquilo que interessa ao turista brasileiro em viagens pelo Brasil. Pode-se dizer que é pelo agenciamento enunciativo que o Locutor atribui sentido a essas expressões linguísticas. Do ponto de vista discursivo, além do sentido daquilo que se sabe deve ser visitado pelo Brasil, é possível se afirmar que se constitui o sentido de um determinado Brasil e do que é ser brasileiro. A evocação daquilo que todo mundo sabe, como saber lateral evocado por sua ausência, demonstra o funcionamento de um efeito de articulação/sustentação, uma memória que incide no enunciado para além do que se encontra expressamente formulado. Além disso, poderia igualmente indicar como prolongamento da análise, aquilo que se pode identificar enunciativamente como a presença dos pressupostos (para a semântica), lido como efeito do interdiscurso (préconstruído e efeito transverso), na análise do discurso. Por exemplo, em (1a) “preserva a tradição dos colonizadores europeus” podem ser identificados dois conteúdos. O primeiro é de que há uma tradição dos colonizadores europeus no (Sul do) Brasil. O segundo conteúdo é de que tal tradição é (deve ser) preservada. Quais outras tradições existentes no país merecem ser preservadas? Quais não merecem? Discursivamente, poderíamos identificar este e outros encadeamentos como efeitos de pré-contruídos 6 , como na associação entre os aspectos naturais “montanhas” e “frio” com “cidades de colonização europeia” e com “paisagens de cinema”. Pode-se atentar para o efeito dos encadeamentos enunciativos presentes nessa sequência (1b) : Esbanja qualidade de vida, Respira arte em seus centros culturais, Preserva tradições dos colonizadores europeus. Tal encadeamento, que é uma forma de enumeração, é retomado em repare nos jovens lendo livros nos muitos parques da metrópole, esta última sequência reescreve a enumeração que venho de citar. Caberia se lançar mão da pergunta sobre os lugares de dizer – como representações do Locutor e dos enunciadores - e sobre os lugares de enunciação - como perspectivas do enunciador no movimento de argumentação do texto (Zoppi-Fontana, 2015), que constituem os sentidos estabelecidos nesses enunciados. Por conta do espaço, não aprofundo esta questão, passo à análise da sequência (2). (2) Página 42 [roteiros de viagem] [serra gaúcha] 2. nova Petrópolis (a). Sede de algumas das melhores casas de café colonial do país, a cidade orgulha-se do sangue alemão de sua gente, dos jardins e malharias no Centro e das construções em estilo enxaimel no Parque Aldeia do Imigrante.(b)

Em (2) tem-se uma nova enumeração, que parece estar em uma relação de reescrituração com orgulha-se. Orgulho reescreve a enumeração que é coordenada com o verbo - orgulhar-se. Além disso, toda a sequência (2b) reescreve o topônimo Nova Petrópolis.                                                                                                                 6

Como indicado na introdução deste trabalho, pretendo, primeiramente, explorar as contribuições de uma análise que se centra no âmbito semântico, para, mais adiante e a partir dela, prosseguir com reflexões discursivas. Assim, voltarei a falar nos pré-construídos mais adiante.

Do sangue alemão de sua gente Dos jardins e malharias E das construções em estilo enxaimel Em seu estudo sobre a enumeração, Guimarães (2009) afirma que as relações de reescrituração - que são uma forma de redizer o que já foi dito fazem interpretar uma forma (reescriturada) como diferente de si (em virtude da reescrituração). Ou seja, afirma-se igual e diferente, ou ainda semelhante pela diferença, nesse sentido é interessante se observar que a arquitetura (jardins e construções) é posta no mesmo nível, na mesma lista enumerativa, que sangue alemão. Uma questão parafrástica que caberia ser posta seria : os demais sangues da « cultura » brasileira, o sangue africano ou o sangue indígena, se não estivessem aí silenciados, seriam postos no mesmo nível que quais outros elementos ? Antes de passar para o próximo enunciado deixo igualmente o apontamento sobre a presença da formulação “orgulha-se”, há aí a incidência de um interdiscurso sobre aquilo de que se deve se orgulhar7. (3) Página 43. [roteiros de viagem] [serra gaúcha] 3. [Bento Gonçalves] Aceita um merlot? A principal região vitivinícola do país oferece uma degustação a cada curva dos 30 km do Vale dos Vinhedos. E não apenas o sotaque é italiano, mas também os pratos das cantinas e galeterias, assim como a arquitetura do roteiro Caminhos de Pedra.

O sotaque italiano Os pratos das cantinas e galeterias A arquitetura do roteiro Caminhos de Pedra O enunciado (3) traz uma enumeração que reescreve Bento Gonçalves e a principal região vitivinícola do país. Como esclarece Guimarães (2009), uma enumeração, apesar de poder aparentar, deixa marcas linguísticas de sua não-exaustividade, e por consequência de sua não homogeneidade. Este aspecto, torna-se mais evidente pelo marcador apenas, que tem um funcionamento semelhante ao mas. Segundo o autor, o mas, e neste caso o apenas, é um marcador de uma operação argumentativa (enunciativa) do Locutor, e incide sobre os enunciados coordenados que se seguem. Apenas deixa em aberto a lista enumerativa, há outras coisas. Assim, esse tipo de movimento enunciativo (argumentativo) faz do enunciado um elemento que integra a unidade de texto que é o guia de turismo, e que, pelo olhar discursivo, é também tido como um discurso. É nesse sentido que se pode dizer de um discurso do turismo sobre o Brasil, ao se tomar a unidade discurso como o lugar onde tal enunciado é proferido. Vai sendo delineado que elementos tais como a arquitetura são aquilo que representa o lado europeu destas cidades, e por extensão do país. (4) página 42. [5. Caxias do sul]. A segunda maior cidade gaúcha ostenta influência italiana nos restaurantes, nos prédios coloniais e na tradição da produção do vinho.

No enunciado (4) Caxias do Sul, reescrito por a segunda maior cidade                                                                                                                 7

Me foi atentado o fato de que no contexto histórico ainda atual na Europa falar de “orgulho do sangue alemão” seria parte daquilo que não se pode nem se deve dizer, pois isto evocaria uma memória ligada ao momento vivido sob o jugo do nazismo. Pretendo aprofundar a análise sobre discursos de “orgulho de raízes”, como evocarei nas considerações finais do texto.

gaúcha, é caracterizada como tendo influência italiana nos restaurantes, prédios coloniais e na tradição de produção do vinho. Tal enumeração mostrase como suficiente para se afirmar a presença ou influência italiana na cidade, e desdobrando-se tal formulação, o suficiente para se dizer de uma presença europeia existente na formação do país, influência esta que merece ser ostentada. (5) página 43. [9. Gramado]. Clássico refúgio de casais, jamais perde o charme da arquitetura inspirada na Bavária, das lojas de malhas e dos restaurantes com lareira que servem fondues.

O charme é reescriturado por exemplificação por arquitetura inspirada na Bavária, lojas de malhas e restaurantes com lareiras que servem fondues. Poderia igualmente propor uma paráfrase para jamais perde e dizer: (5b’) O charme da arquitetura da arquitetura inspirada na Bavária, das lojas de malhas e dos restaurantes com lareira que servem fondues se mantem/se preserva.

Percebe-se aí uma retomada do que já se observou nos demais exemplos apresentados como uma evocação da ideia de uma tradição que deve ser mantida, e que, dado que a enumeração não é totalizante, se estende a outros aspectos não explicitamente formulados no enunciado. A enumeração tem desse modo um efeito de abertura do sentido que se dá a esses lugares tidos como exemplos de um Brasil (quase) europeu. (6) página 204. 2. Blumenau. Depois de Brusque (p. 204), famosa pelas lojas de roupas, surge Blumenau, com uma tradição germânica evidente na arquitetura, na boa cerveja, na culinária e na Oktoberfest, em outubro. (7) [Roteiros de viagem. Vale do café e serra da bocaina] 5. Penedo. Bem-vindo à Finlândia brasileira. A herança desses imigrantes espalha-se por construções de teto triangular, hotéis, lojinhas e chocolaterias.

Em (6) tem-se que a enumeração Arquitetura / Boa cerveja / Culinária / Oktoberfest são uma reescrituração por expansão de tradição germânica, que é evidente, ou seja, inquestionável. Do mesmo modo, em (7), teto triangular, hotéis, lojinhas e chocolaterias são a enumeração que reescreve (reescriturando por condensação) herança dos Finlandeses, em Penedo, reescriturado por A Finlândia brasileira. Nos dois exemplos, tem-se herança e tradição construindo o sentido que se dá a essas cidades, e ao país, ao se remeter ao que de europeu nele existe. É somente a partir da observação e descrição da enumeração como uma regularidade nesses enunciados que outras regularidades discursivas se tornam passíveis de serem identificadas. Destaca-se, por exemplo, a regularidade discursiva de posicionamentos enunciativos (lugares de enunciação) tais quais “esbanja”, “ostenta”, “orgulha-se”. Parece-me oportuno, neste momento, lançar mão de uma olhar discursivo e aí perceber o funcionamento do efeito de articulação-sustentação/pré-construído na escolha de tais posicionamentos. Esses dois efeitos do interdiscurso – o pré-construído e efeito de articulação-sustentação – incidem nos enunciados rememorando aquilo que todo mundo sabe. Assim, pode-se perceber a projeção de imaginários sobre aquilo que é ser europeu (frio, vinhos, paisagem de cinema, jovens lendo no parque, qualidade de vida, [sequência 1]). Desdobra-se daí que esse tipo de realidade é aquilo que é tido como interessante para o

viajante que pretende visitar o Brasil. Não se encontra, por exemplo, na descrição das cidades tidas como mais indígenas (ou menos europeias) alguma formulação do tipo “esbanja” ou “ostenta influência indígena”. Ou ainda, parafraseando a sequência (4), formulações do tipo “ostenta influência africana”. Em outro estudo 8 pude perceber o modo como são construídos os sentidos de um Brasil-mestiço. O discurso que exotifica a “mestiçagem” brasileira (há uma marcante caracterização dessa população pelo corpo, o que se pode perceber desde a escolha de se falar de um país –de corpo- mestiço), presente principalmente nos guias que circulam no espaço de enunciação francês, é construído pela retomada de um imaginário que fala de raízes africanas ou indígenas, mas o faz dando um sentidos a estes como algo acessório a uma cultura pré-existente9. Fazendo dialogar os dois imaginários, aquele que exalta a herança europeia (no espaço de enunciação do português do Brasil), e aquele que elenca o elemento africano e indígena como acréscimos, abre-se uma brecha para se perguntar o que se constrói como imaginário daquilo que é (ser) brasileiro, entre esses dois espaços de enunciação. Como se pode perceber nos enunciados seguintes, o interdiscurso aponta que aquilo que é valido de ser mostrado e visitado é aquilo que de europeu existe e, especificamente nos recortes que se seguem, aquilo que de alemão existe no Brasil. (8) Página 44 [roteiros de viagem. litoral catarinense] 1. Joinville. A tradição alemã da cidadesede de um dos maiores festivais de dança do mundo pode ser desfrutada em quatro roteiros rurais repletos de cachoeiras e fartas mesas de café colonial. (9) Página 46 [roteiros de viagem. Vale do Itajaí e serra catarinense] não é preciso esperar pelo inverno para curtir essas alturas geladas. A natureza, a rotina rural e as tradições alemães fascinam o ano inteiro. (10) Página 420. 3. Jaraguá do Sul. [...] No caminho está Pomerode a cidade mais alemã do país.

É interessante se perceber em (8) o modo pelo qual formas linguísticas tais quais cachoeiras e mesas de café colonial apresentam-se como exemplificações de uma tradição alemã. O viajante que visita o Brasil, segundo esse discurso, busca o frio e quer curtir as alturas geladas presentes no país. Em (9), por exemplo, fala-se de natureza, como aquilo que todo mundo sabe que existe no Brasil. Essa natureza, em si, é opacidade, apenas pelo fio discursivo até aqui explorado é que pode ter um sentido estabelecido. Ela se distingue, de modo categórico, da natureza que fascina os viajantes franceses (neste caso, a praia seria o ambiente a ser visitado, e não cachoeiras ou montanhas, como pode ser visto nas análises citadas na nota 8). Do mesmo modo, a cidade mais alemã do país, traz à tona aquilo que foi sendo                                                                                                                 8

Estudos apresentados no congresso internacional Desfazendo gênero, 2015, (“Beldades, mulatas, prostitutas: desnaturalizando e queerizando discursos gendrados e racializados sobre brasileiro.a.s”) e no congresso internacional da ALED, 2015, (“Os discursos do turismo e a brasilianidade gendrada, racializada e pós-colonial”). 9 Trata-se de um gesto de interpretação meu desenvolvido no texto apresentado no congresso internacional da ALED, 2015, cf. Nota anterior.

desenvolvido ao longo da análise, o fato de que não há um discurso na direção de uma autoafirmação enquanto brasileiro, ou Brasil, fala-se explicitamente em cidades e países europeus (Itália, Alemanha, Bavária, Finlândia, etc). Ainda que falar de algo Brasileiro seja também opacidade, não ha formulações na direção daquilo que seria o tipicamente brasileiro. Pode-se desse modo observar a presença de não-ditos em relação ao que se formula sobre outras regiões e populações, a partir da observação da regularidade de se falar da arquitetura e de alguns aspectos da culinária e não dos corpos, como dito anteriormente, como quando se fala da população indígena e africana. Pode-se formular algumas perguntas para um estudo sequente a este: Como (não) se fala da arquitetura de outras cidades e regiões? Como é retomada a ideia de tradição, quando se trata de outras populações e nacionalidades que também exerceram influência no território brasileiro? Fica como incidência de um não-dito, interdiscursivo, de que as demais populações (africana, indígena) não exerceram influência na arquitetura, isso é posto pelo funcionamento da evidência. Pode-se afirmar de saída que nem no discurso que fala da influência europeia, nem naquele que exotifica o Brasil como país mestiço, encontra-se alguma forma que se aproximaria de um dito do tipo “orgulha-se do sangue indígena/africano de sua gente10”. O que se percebe é que, ao se retratar aquilo que todo mundo sabe que é objeto de interesse ao viajante, ressalta-se a faceta europeia do Brasil. A faceta europeia do Sul do Brasil, ou ainda a faceta não-brasileira, não se restringe ao discurso do turismo, ela é, como se sabe, retomada, dentre outros, em alguns discursos separatistas que costumam vir à tona em determinados momentos socio-políticos do país. Pode-se, desse modo, se indagar como se dá essa deriva de sentidos, no contexto brasileiro, do orgulho do sangue alemão e da herança europeia em relação ao que se projeta como imaginário que incide sobre as regiões Sul em relação às demais regiões do país. A partir da presente análise, desdobrarei em outro momento, uma reflexão sobre a existência, no âmbito do discurso digital, por exemplo, nas páginas oficiais do ministério do turismo nas redes sociais, daquilo que vejo como uma retomada desse imaginário na formulação “orgulho de ser gaúcho”, esta formulação apresenta-se sob a forma da hashtag #orgulhodesergaúcho, acompanhando textos ou mais frequentemente imagens ou memes ligados à região Sul ou a outras regiões do país (pondo em funcionamento o mecanismo da ironia e da paródia).                                                                                                                 10

Evidentemente, não há discurso sem deslizamento, ou falhas, assim a descrição da cidade de Salvador vai trazer uma formulação que contraria aquilo que destaquei ao longo da análise. Como se vê na sequência a seguir (11): “Salvador (a). Ponto final ou inicial perfeito de qualquer roteiro pela Bahia, a capital orgulha-se de suas heranças africanas, evidentes na culinária, na capoeira e nos tambores que fazem pulsar os corações de seu povo alegre no Carnaval (b).”. Há aí capital reescriturando Salvador, que são articulados a toda sequência (11b) que se inicia por Ponto final ou inicial... tem-se aí a regularidade da forma orgulha-se de suas heranças, com a diferença de que neste caso não a herança europeia, mas sim africana. Contudo, aponto para uma diferença: a utilização de heranças africanas, no plural, o que, traz um efeito de maior indefinição do que aquilo que se pode produzir como sentido ao se dizer “herança alemã”. Fica, de todo modo, aqui explicitado um exemplo que foge à regularidade de se falar de orgulho apenas quando se trata de influência europeia no país.

Considerações finais A reflexão e interpretação em torno do que foi até aqui descrito e analisado só podem ser feitas quando se traz para a análise outros lugares de dizer. É nesse âmbito que a análise do discurso tem um trabalho contributivo e complementar com a semântica (enunciativa e argumentativa). É pela descrição e análise do funcionamento da enumeração, que se pode perceber o trabalho discursivo dos efeitos de sustentação e articulação incidindo na memória desses dizeres efetivamente enunciados. Guimarães (2009, p. 19) aponta que a reescrituração «como um procedimento de redizer, dizendo outra coisa, agencia aí o sentido da instrução pelo lugar social do locutor, enquanto tradição.». A concepção de que se dizendo o mesmo se diz, também, algo diferente poderia ser aproximada da concepção sobre o trabalho metafórico do sentido, no discurso Essa forma de dizer o mesmo de um modo diferente é a responsável pela aproximação de ideias que não se apresentariam necessariamente ligadas, o imaginário do Brasil, como terra de vinhedos, montanhas, alturas geladas e de população de origem europeia, não seria o mesmo se tais descrições aparecessem em outros lugares e espaços de enunciação. A ligação entre os enunciados, entre o que se enuncia, ou, ainda, entre o modo como são caracterizados os lugares presentes nos roteiros de viagem, se faz pelo acontecimento da enunciação, ou seja, pelo discurso. Os sentidos sobre viagens no Brasil, sobre o sul do Brasil, e por extensão sobre o próprio país se constroem, se formulam, no âmbito do aparelho enunciativo-discursivo posto em funcionamento. Desse modo, se a reescrituração, por enumeração ou por outro modo de enunciação, é essa forma de dizer o mesmo um modo diferente, dizer que o Brasil tem herança europeia, com sangue alemão, possuindo uma Finlândia brasileira, uma cidade mais alemã, ou com arquitetura inspirada na Bavária, é, de algum modo, dizer de uma semelhança entre o Brasil e essas cidades europeias, ou seja, é dizer de um Brasil europeu. Contudo, não se trata de uma Europa, pois é Brasil, é igual e é diferente da Europa, é como se fosse a Europa, desse modo é que faço esse gesto de interpretação de inserir o quase, o como se. Poderia dizer que nesta análise a reescritura traz um modo de enunciar que funciona com um efeito de “como se”. Um Brasil como se fosse Europa. Um Brasil-quase-Europa. Referências Guimarães, E. Semântica do Acontecimento. Pontes, 2002. _____. A enumeração. Funcionamento enunciativo e sentido. Cadernos de Estudos linguísticos. N. 51(1). p. 49-68. Campinas, 2009. Oliveira, S. & Zoppi-Fontana, M. (no prelo) Ta serto! Só que não... Argumentação, enunciação, interdiscurso. 2016. Zoppi-Fontana, M. & Celada, M. Sujetos desplazados, lenguas en movimento: idetificación y resistencia en processos de intregación regional. Signo & Seña.n.20 p.- 159-181. Buenos Aires, 2009. Zoppi-Fontana & Oliveira, V. A evidencialidade e a construção de provas nos delitos de palavra: calúnia, difamação e preconceito racial. Estudos da

linguagem. v. 10, n. 1, p. 63-85. Vitoria da Conquista, 2012.

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