Lei de Acesso é Mais Nociva do que Parece

Share Embed


Descrição do Produto

CONHECIMENTOS TRADICIONAIS

Lei de Acesso é Mais Nociva do que Parece Mariana Moreau

A MP Nº 2.186, ATUAL LEI DE ACESSO A RECURSOS GENÉTICOS E CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS, NÃO PROMOVE REPARTIÇÃO JUSTA E EQUITATIVA DOS BENEFÍCIOS Quem busca informações sobre os benefícios recebidos pelos povos indígenas e comunidades locais pelo uso de seus conhecimentos tradicionais associados (CTAs) às plantas na produção de sementes, cosméticos e fármacos para a venda em larga escala nos mercados nacional ou internacional fica desapontado ao ler o relatório de atividades de 2010 do Departamento do Patrimônio Genético (DPG) do Ministério do Meio Ambiente (MMA). De 2002 a 2010, o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), órgão governamental encarregado de examinar os pedidos de autorização de acesso a recursos genéticos e CTAs no Brasil, concedeu apenas duas autorizações (já vencidas), que prometiam algum tipo de benefício, monetário ou não, a essas populações tradicionais. Estão em tramitação outros sete processos para bioprospecção e/ou desenvolvimento tecnológico, com projetos iniciados irregularmente, e portanto, sujeitos a autuações do Ibama. (Figura 1) Mais de 100 são os processos autorizados e em tramitação relativos a pesquisas científicas com CTA, estes, porém, dispensados de anuência das próprias comunidades detentoras dos conhecimentos, bem como de apresentação final dos resultados da pesquisa. (Fica aqui a observação de que ainda assim essa quantidade de pesquisas é pequena se comparada à riqueza socioambiental do Brasil.) Se voltarmos os olhos às solicitações para bioprospecção e/ou desenvolvimento tecnológico, nas quais os CTAs são desconsiderados, os números crescem ainda mais no relatório. Quase 150 pedidos, mais de 30 autorizados e o restante em tramitação, em sua maioria a partir de plantas conhecidas popularmente. POVOS INDÍGENAS NO BRASIL 2006/2010 - INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL

Economista e mestranda do Instituto de Relações Internacionais/USP

Dada a falta de uma definição precisa do que são os termos “conhecimento tradicional associado”, “conhecimento tradicional difuso” ou de “domínio público”, bem como do tratamento específico desses tipos de conhecimento pela legislação, os pedidos de universidades, institutos científicos e empresas, públicas e privadas, omitem a contribuição do conhecimento tradicional associado em suas pesquisas, às vezes até por orientação do próprio CGEN. (Figura 2)

MUITOS CONHECIMENTOS SÃO COMPARTILHADOS ENTRE COMUNIDADES E ATÉ PAÍSES Um exemplo é o projeto de uma universidade paulista de capital privado, aprovado pelo CGEN desde 2005, para acesso e remessa ao exterior de amostras de 100 famílias de plantas para bioprospeção e desenvolvimento de “drogas anticâncer e antibacterianas” sem menção ao conhecimento tradicional a elas associado. Em uma olhadela na extensa lista, um brasileiro familiarizado com chás, ervas, xaropes e garrafadas reconheceria várias plantas curativas, como jatobá, barbatimão e copaíba. Os pesquisadores desse projeto têm como guia em suas expedições no rio Negro um mateiro, representante da população local, que conhece profundamente a flora amazônica. Por se tratar, nesse caso, de conhecimento sobre usos de plantas, espalhado pelo território brasileiro, o CGEN não tem instrumentos legais com os quais tratá-lo. O CTA só “existe” se estiver limitado a uma ou poucas comunidades identificáveis. Uma situação rara de ocorrer e difícil de ser comprovada. Por esse motivo, uma universidade pública federal abriu em 2007 um processo de acesso ao patrimônio genético com CTA para bioprospecção a partir da planta conhecida popularmente no Pantanal Mato-Grossense como nó-de-cachorro e foi dispensada pelo CGEN de obter a anuência prévia dos detentores de CTA utiliLEGISLAÇÃO

73

FIGURA 1. PROCESSOS NO MMA QUE ENVOLVEM CTAS ASSOCIADOS AO PATRIMÔNIO GENÉTICO Processos Autorizados pelo CGEN de 2002 a 2010 Pesquisa científica com conhecimento tradicional associado

FIGURA 2. PROCESSOS QUE ENVOLVEM BIOPROSPECÇÃO E/OU DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO A PARTIR DE PATRIMÔNIO GENÉTICO

Nº 40

Processos Autorizados pelo CGEN de 2002 a 2010



Bioprospecção com patrimônio genético

12

Pesquisa científica com conhecimento tradicional associado e patrimônio genético

7

Bioprospecção com patrimônio genético e conhecimento tradicional associado

2

Desenvolvimento tecnológico com patrimônio genético

10

Desenvolvimento tecnológico com patrimônio genético e conhecimento tradicional associado

0

Bioprospecção e desenvolvimento tecnológico com patrimônio genético

10

Bioprospecção e desenvolvimento tecnológico com patrimônio genético e conhecimento tradicional associado

0

Processos em Tramitação no DPG em 2010

Bioprospecção com patrimônio genético (autorização especial)

Processos em Tramitação no DPG em 2010 Bioprospecção com patrimônio genético (autorização especial)



Pesquisa científica com conhecimento tradicional associado

46

Pesquisa científica com conhecimento tradicional associado e patrimônio genético

16

Bioprospecção com patrimônio genético e conhecimento tradicional associado

5

Desenvolvimento tecnológico com patrimônio genético e conhecimento tradicional associado

0

Bioprospecção e desenvolvimento tecnológico com patrimônio genético e conhecimento tradicional associado

2

Fonte: Relatório de Atividades de 2010 CGEN/DPG/MMA (www.mma.gov.br/ cgen)

zados. Atualmente, a universidade tem um pedido de patente de um extrato do nó-de-cachorro tramitando no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) e é sócia de um grande laboratório nacional em um medicamento contra a perda de memória com lançamento anunciado para breve no mercado e previsão de faturamento anual de US$ 500 milhões. Em 2002, a mesma universidade havia interrompido oficialmente suas pesquisas com plantas orientadas por conhecimentos de índios Krahô, entre as quais, a wrywry cahàcré, com ação sobre a memória. Como garantir que índios e comunidades tradicionais, ou a nossa população, por intermédio do Estado, desfrute dos benefícios que são gerados a partir do uso de seus conhecimentos pela indústria? Deixando de lado o julgamento moral a respeito da conduta dos laboratórios, nacionais ou internacionais, devemos focar o olhar na legislação brasileira, que disciplina o acesso ao patrimônio genético e CTAs, bem como o direito de todos ao meio ambiente equilibrado.

ANTEPROJETO DO CGEN ESTÁ NA CASA CIVIL DESDE 2009 A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) entrou em vigor em dezembro de 1993 e tem como objetivo a conservação da 74

LEGISLAÇÃO

Bioprospecção com patrimônio genético

1

Nº 27 2

Desenvolvimento tecnológico com patrimônio genético

39

Bioprospecção e desenvolvimento tecnológico com patrimônio genético

45

Fonte: Relatório de Atividades de 2010 CGEN/DPG/MMA (www.mma.gov.br/ cgen)

diversidade biológica, a promoção do uso sustentável de seus componentes e a repartição justa e equitativa dos benefícios resultantes da utilização de recursos genéticos. Apostando na importância estratégica de seus recursos biológicos e CTAs para seu desenvolvimento econômico e social, o Brasil foi o primeiro dos 193 países (onde não se incluem os EUA) a assinarem e reconhecerem a soberania nacional dos países sobre os recursos naturais presentes em seus territórios e aos indígenas e comunidades locais, o direito de veto ou recompensa pelo uso de seus conhecimentos associados às plantas (e fungos e outros seres vivos) em produtos comerciais. O Brasil continua sendo um dos mais atuantes nas negociações pós-CDB, que culminaram, em 2010, na adoção do Protocolo de Nagoya, um avanço importante nos acordos internacionais sobre a repartição de benefícios, mesmo considerado um instrumento “fraco”. Embora, esteja comprometido com a CDB, ainda está para vir o tempo em que será de interesse do Congresso um amplo e democrático debate para aprovação de uma lei satisfatória que regulamente o acesso aos recursos genéticos brasileiros. Nagoya como um todo foi criado e estruturado para ser um “instrumento de enforcement”, ou seja, de observância das obrigações principais introduzidas pela CDB. Contudo, da proposta inicial feita pelo Brasil e por países em desenvolvimento até o texto que se chegou há bastante diferença: Nagoya é um instrumento fraco. O debate, que vinha sendo feito sobre o tema desde 1995, foi interrompido com a edição da Medida Provisória nº 2.186-16 (MP) de 2001, pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, em seguida à suspensão do acordo de cooperação considerado POVOS INDÍGENAS NO BRASIL 2006/2010 - INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL

lesivo ao país entre a Associação Bioamazônia e a multinacional Novartis. Desde então, a MP impera. Alguns projetos de lei foram apresentados por parlamentares ao Congresso, e em 2003, um anteprojeto foi enviado pelo CGEN à Casa Civil, com o fim de chegar ao Congresso pelo Poder Executivo, mas, após oito anos e diversas alterações propostas por diferentes ministérios, está com sua última versão engavetada. A MP nº 2.186 permaneceu como um “quebra-galho” mais nocivo do que parece. Sua imprecisão e ineficácia, segundo opinião generalizada entre cientistas, socioambientalistas, lideranças populares, empresários e até mesmo membros do CGEN, seria a causa dos benefícios não serem compartilhados com indígenas e comunidades tradicionais quando merecido. Universidades e empresas nacionais, que investem em responsabilidade social e fazem bioprospecção por meios legítimos, se encontram em intermináveis processos de licenciamento, todos sob fiscalização e autuação do Ibama, sofrendo perdas econômicas e reputacionais. O sufoco dessas concorrentes garantiu um “atestado de racionalidade” às outras universidades e empresas, nacionais e multinacionais, que optaram por atribuir a sua prática de atos de “biopirataria” à incerteza gerada pela precariedade da legislação. Providas de argumentos como a inaplicabilidade da lei de acesso, ou da impraticabilidade da burocracia do Estado, elas vêm tirando proveito dessa situação de insegurança ao seguir usando os recursos genéticos e CTAs sem autorização e ameaçando o CGEN com a possibilidade de revide com processos judiciais. Mais uma vez, pode-se dar o exemplo do laboratório nacional anteriormente citado, que disputa desde 2005 na Justiça, para conseguir a declaração de inaplicabilidade da MP a um medicamento desenvolvido a partir da erva Baleeira, já lançado no mercado. O laboratório tem ainda uma outra parceria sem autorização do CGEN com a mesma universidade federal, com lançamento próximo: um medicamento a partir da Espinheira Santa, protegido por dois pedidos de patentes no Inpi.

DEBATE SOBRE A LEGISLAÇÃO DEVE SER ABERTO, DIFUNDIDO E APROFUNDADO O CGEN não permite a participação deliberativa de representantes da sociedade civil. Olhando-se os seus integrantes, pode-se tirar uma ideia do jogo de interesses envolvidos: Ministério do Meio Ambiente (MMA), da Ciência e Tecnologia (MCT), da Saúde (MS), da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, da Justiça, da Defesa, da Cultura, das Relações Exteriores e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; Ibama; IPJB/RJ, Inpa, Instituto Evandro Chagas; CNPq; Fundação Oswaldo Cruz; Embrapa; Funai, Fundação Cultural Palmares e Inpi. Desde o final de 2009, quando o MMA e MCT enviaram juntos a última versão de anteprojeto de lei à Casa Civil e o CNPq foi POVOS INDÍGENAS NO BRASIL 2006/2010 - INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL

credenciado pelo CGEN para autorizar o acesso ao patrimônio genético para fins de pesquisa científica, uma tarefa até então exclusiva do Ibama, o MS, o MCT e a sociedade científica ficaram em “paz” com o MMA. Mas o Estado brasileiro não se limita a esses órgãos quando o assunto é conhecimento tradicional associado. Enquanto o MMA é um dos ministérios para o qual ainda é destinado um dos menores orçamentos da União, o Ministério da Agricultura, um dos mais ricos, reivindica para si a autoridade de aplicar a legislação relativa à agrobiodiversidade (leia-se “sementes”), separando-a da biodiversidade em geral, com o objetivo de facilitar o intercâmbio de recursos genéticos de alimentos, para garantir maior competitividade ao agronegócio. O Ministério da Agricultura também enviou em 2009 um anteprojeto de lei à Casa Civil com uma proposta de retirada dos cultivares da competência do MMA. A aprovação desse projeto de lei teria como consequências prováveis a redução do nível de conservação de variedades nativas ou crioulas, bem como dos direitos dos agricultores e comunidades agrícolas, que manejam com a biodiversidade. Fora do Estado, indústrias químicas, de sementes transgênicas, cosméticos ou medicamentos, nacionais ou multinacionais, têm recursos financeiros e tecnológicos, além de assessorias jurídicas especializadas em direito de propriedade. Mesmo quando reconhecem publicamente o valor das informações genéticas contidas nas plantas, ou mais raramente dos CTAs, resistem ao pagamento de benefícios derivados do uso em suas pesquisas. Os desafios não terminam aí: conhecimento tradicional associado é algo que escapa às soluções de propriedade intelectual usuais. Sua posse é coletiva, dinâmica e atravessa fronteiras, tanto comunitárias quanto nacionais. O mecanismo institucional para lidar com essas peculiaridades ainda está para ser inventado ou reconhecido, e, para que isso aconteça, é necessária a participação da sociedade civil, o que não vai acontecer enquanto a composição do CGEN for limitada ao governo.

PEDIDOS DE PATENTES CONTINUAM COM IRREGULARIDADES A informação genética contida em plantas, uma vez decodificada em fórmulas químicas, pode ser desfigurada em outras fórmulas derivadas, tornando indecifrável sua origem. É por esse motivo que, em 2006, o CGEN e Inpi editaram resoluções determinando que pedidos de patente obtidas a partir de acesso à amostra do patrimônio genético nacional, deveriam ser acompanhados da autorização do acesso correspondente, obtida frente ao CGEN, bem como a origem do material genético e do conhecimento tradicional associado, quando fosse o caso. O Itamaraty endossou a estratégia e vem propondo incluir a exigência no Acordo TRIPs, relativo aos aspectos do Direito da Propriedade Intelectual nas negociações da OMC. LEGISLAÇÃO

75

Talvez porque não haja punições para omissões e erros nas informações prestadas pelos requerentes de patentes, as irregularidades prevalecem nos pedidos do Inpi. Em uma rápida pesquisa feita no site, encontra-se um pedido de patente sobre composições farmacêuticas, requerido por pesquisadores de uma universidade federal sem qualquer referência a conhecimento tradicional associado. A pesquisa autorizada no CGEN é feita com base em CTA. Procurando assegurar a observância da CDB, o MMA iniciou a Operação Novos Rumos, com objetivo de prevenir o acesso ilegal ao patrimônio genético e ao CTA. A partir da fiscalização de 107 processos em tramitação no CGEN, o Ibama emitiu 150 autuações por vários tipos de irregularidades, que somaram, até março 2011, o valor de R$ 107 milhões. A maior empresa brasileira de cosméticos, principal alvo das autuações do Ibama de 2010 e única que teve sua marca divulgada como infratora, informa nos registros dos processos em tramitação no CGEN que vem cumprindo os contratos de repartição e benefícios já firmados com detentores de CTAs utilizados em suas pesquisas. Não teve o nome citado pela Operação Novos Rumos uma gigante multinacional americana de produtos naturais, sob ação civil pública do MPF/CE, por tentar exportar ilegalmente 15 toneladas de Pau-pereira. Na ação de 2006, o MPF apontava que não houve repartição dos benefícios derivados da exploração de patrimônio genético e conhecimento tradicional associado. A empresa abriu em 2007 um processo de autorização de acesso a patrimônio

76

LEGISLAÇÃO

genético para regularização de desenvolvimento tecnológico sem CTA. O Ibama anuncia para 2011 a Operação Novos Rumos II, onde serão autuados institutos de pesquisas, universidades e empresas que não requisitaram autorização de acesso a recursos genéticos e CTA. A ação se cerca de tamanho sigilo, que pouco se tem a dizer sobre sua efetividade. Enquanto não for aprovada uma lei que inclua todas as especificidades da questão e com força para estabelecer sanções penais, a repartição justa de benefícios associada aos conhecimentos tradicionais ainda estará longe de ser praticada. (maio, 2011) REFERÊNCIAS MMA (http://www.mma.gov.br). CGEN (WWW.mma.gov.br/cgen). INPI (http://www.inpi.gov.br/menu-superior/pesquisas). Redetec – Invenções com depósitos de patentes junto ao INPI (http://www. redetec.org.br/inventabrasil/yfitote.htm). MICT–Inpi Resolução 134/06 (13/12/2006) (http://www6.inpi.gov.br/legislacao/ resolucoes/res_134_06.htm). Processo 2006.03.00.089102-2 Número de origem 2006.61.19.001556-4 Classe 278458 AI (AG) – SP 6 ª Vara Guarulhos. Data de autuação 05/09/2006 TRF 3ª Região. Processo 2007.30.00.002117-3 Nova Numeração 2078-76.2007.4.01.3000 Classe Ação Civil Pública Data de autuação 07/08/2007 3ª Vara Federal. Biopirataria: MPF/CE pede proibição de exportação de substância usada contra câncer (http://noticias.pgr.mpf.gov.br).

POVOS INDÍGENAS NO BRASIL 2006/2010 - INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.