Lutas sociais, (re)configurações identitárias e estratégias de reapropriação social do territó-rio na Amazônia

July 8, 2017 | Autor: Valter Carmo Cruz | Categoria: Sociology, Geography, Antropología, Ecologia Política
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

LUTAS SOCIAIS, RECONFIGURAÇÕES IDENTITÁRIAS E ESTRÁTEGIAS DE REAPROPRIAÇÃO SOCIAL DO TERRITÓ-RIO NA AMAZÔNIA

VALTER DO CARMO CRUZ

ORIENTADOR ROGÉRIO HAESBAERT DA COSTA

NITERÓI, 2011

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VALTER DO CARMO CRUZ

LUTAS SOCIAIS, RECONFIGURAÇÕES IDENTITÁRIAS E ESTRÁTEGIAS DE REAPROPRIAÇÃO SOCIAL DO TERRITÓ-RIO NA AMAZÔNIA

Tese apresentada ao curso de PósGraduação em Geografia do departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em geografia. Área de concentração: Ordenamento Territorial urbano e regional.

ORIENTADOR Prof. Dr. ROGÉRIO HAESBAERT DA COSTA

NITERÓI - RJ 2011. 2

VALTER DO CARMO CRUZ

LUTAS SOCIAIS, RECONFIGURAÇÕES IDENTITÁRAIS E ESTRÁTEGIAS DE REAPROPRIAÇÃO SOCIAL DO TERRITÓ-RIO NA AMAZÔNIA

Tese apresentada ao curso de PósGraduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Geografia na Área de concentração: Ordenamento Territorial urbano e regional.

Aprovada em Agosto de 2011 BANCA EXAMINADORA _________________________________________________ Prof. Dr. ROGÉRIO HAESBAERT DA COSTA – UFF - Orientador _________________________________________________ Prof. Dr. HENRI ACSELRAD - IPPUR/UFRJ _________________________________________________ Prof. Dr. CÁSSIO EDUARDO VIANNA HISSA - UFMG _________________________________________________ Prof. Dr. RUY MOREIRA – UFF _________________________________________________ Prof.Dr. PAULO ROBERTO RAPOSO ALENTEJANO – FFP /UERJ

CARLOS WALTER PORTO-GONCALVES – UFF ( Suplente)

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DEDICATÓRIA Dedico este trabalho aos meus dois avôs: Dário Apolônio e Cecílio do Carmo, trabalhadores rurais e ribeirinhos que ousaram ler, pensar e falar e que deixaram como herança exemplos de honestidade, luta e lucidez. In-memorian. Às comunidades rurais e ribeirinhas de Cametá

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AGRADECIMENTOS. Para o filósofo Espinosa não existe o bem e o mal, mas sim “bons” e “maus” encontros. Nos “maus encontros” nossa potência é diminuída, isso gera uma certa forma de tristeza, ou seja, a impotência. A tristeza é toda paixão, toda forma de afeto, não importa qual, que envolva uma diminuição de nossa potência de agir e pensar. Por outro lado, a alegria, por sua vez, será toda paixão ou afeto que envolve um aumento de nossa potência de agir e de pensar, fruto dos “bons encontros”. Os “maus encontros” nos fazem adoecer, secar, sofrer e nos diminuem como gente. Já os “bons encontros” produzem a criatividade, a beleza e a felicidade, possibilitando a realização de toda potência humana do corpo e do espírito, do pensar e

do agir. Os “maus encontros” em nossa

trajetória de vida e, em especial, nesse período do curso de doutorado foram muitos, contudo, nesse momento, não importam os afetos tristes, pois o que queremos é lembrar e agradecer “os bons encontros” que possibilitaram nossa caminhada na vida e na realização dessa tese. É desses “bons encontros” e alegrias que resultam, de algum modo, o presente trabalho, pois, como nos lembra Gilles Deleuze, mesmo quando escrevemos só, somos muitos! O primeiro “bom encontro” que gostaríamos de agradecer e celebrar é aquele entre os meus pais (Samuel e Maria Rita), pois, foi a partir deles que teve origem a minha família. Os meus pais, mesmo não tendo oportunidades de estudar, tiveram a compreensão de que a educação deveria ser um valor fundamental para o futuro de nossa família. Foi a partir dessa crença e dessa aposta que eles fizeram todos os tipos de sacrifícios para oferecer

alguma

oportunidade/possibilidade

para

os

filhos

estudarem.

Obrigado pai e mãe por apostarem e me apoiarem, sem medir esforços, na realização dos meus sonhos que, apesar de serem individuais, são frutos dos desejos e esforços coletivos. Do mesmo modo, agradeço aos meus irmãos Osias, Augusto, Dileuza e Nilma, além de meus sobrinhos Sávio, Arthur, samille, Clarice, Sofia, Diogo e Nicolas. Obrigado pelos incentivos, pelo afeto e solidariedade e mesmo

nos

momentos

difíceis

continuarem

acreditando

em

mim,

transmitindo-me ímpeto para lutar a cada dia.

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Ao encontro com o professor Cincinato Marques que me deu apoio e incentivo num momento muito difícil da minha vida e que, em todos os sentidos, permitiu-me viajar ao encontro do meu sonho de cursar o mestrado, episódio decisivo que mudou o rumo de minha vida e que, de algum modo, inaugurou as possibilidade de realização desse curso de doutorado. Ao longo de nossa trajetória, muitas pessoas passam por nossas vidas e nos trazem os bons afetos da alegria, que não cessam, mesmo com a distância e a ausência. Por isso celebro e agradeço à alguns amigos paraenses, que, embora distantes, fazem parte do que sou agora: Torquato Maia, Veridiana Pompeu, Macks Fonseca, Edgar chagas, Vanda Pantoja, Bruno Malheiros, Raimundo Dionísio, Itamar Vanzeler e Ivone Veloso. Com cada um desses amigos venho compartilhando uma relação de amizade marcada

por

trocas

afetivas

e

intelectuais

que

aumentaram

minha

capacidade de agir, pensar e sentir. Valeu! Se na minha trajetória de migrante fui privado da convivência cotidiana de antigas amizades, em compensação, fui presenteado, nesses últimos sete anos em terras fluminenses, com novos afetos e novos “bons encontros” que nos chegaram sob o signo da amizade, como é o caso dos amigos: Mônica e Bira (carioca e cearense hoje pernambucanos), Warley (mineiro, hoje carioca),Thiago Romeu e Raquel (cariocas, hoje paraibanos), Maria de Jesus (nova-iorquina, hoje Acreana), Flavio e Vanusa (cearenses, hoje cariocas), Tatiana Rosa e Fernando Braga (por enquanto cariocas) pessoas essas, por quem cultivo uma forte amizade e um enorme carinho. Agradeço ao bom encontro com os vizinhos e amigos Charlles e Elizete, Denílson e Gabriela, pelas conversas, cafés e sorrisos que ajudaram a transformar Niterói em território de vida e pertencimento. Ao bom encontro com o acreano Isac Guimarães, grande parceiro de intelectualidade, boêmia e de ethos amazonida em terras fluminenses. Agradeço por me lembrar que amigos “não precisam se explicar muito”! Edir Augusto e Aldo Souza, amigos paraenses e conterrâneos de Mocajuba, com os quais tive o prazer de compartilhar o mesmo teto nesse período do doutorado. Edir companheiro de longa data, Aldo

amigo mais

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recente. Dois grandes geógrafos, parceiros de conversas, cervejas e de futuros planos e projetos para “dominar o mundo”. Ao “maravilhoso” encontro com o meu amor, Amélia Cristina, minha companheira,

com

quem

compartilhei/lho

alegrias,

angústias

e

aprendizados, a sua companhia deu muito mais sentido a minha vida. Minha miúda! Obrigado pelo carinho, dedicação, pelos olhares de ternura que provocam pequenas epifanias em minha vida cotidiana. Agradeço o encontro com os professores do Programa de PósGraduação em Geografia – PPG -UFF que sempre se mostraram disponíveis, solidários e compreensíveis para com as minhas inquietações intelectuais. Agradeço também ao encontro com minhas queridas colegas de Turma do curso de doutorado: Mônica, Beatriz e Neide, que sempre foram muito afetuosas e compartilharam inúmeras conversas agradáveis, às vezes angustiadas, no “caneco gelado do Mario”. E ao jovem Barão, grande figura, companheiro de Neide e autor de uma frase que ecoou durante todo esse período do doutorado, tornando-se uma de minhas citações favoritas: “inventem metas de mediocridade e não só metas de sucesso”. Essa frase me parece uma orientação importante para lidarmos com expectativas e frustrações na medida certa. Nos últimos sete anos convivi na Universidade Fluminense com várias pessoas, tive muitos “bons encontros”, mas tenho um especial carinho pelos participantes

do

NUREG

(Núcleo

de

Estudos

sobre

Globalização

e

Regionalização- coordenado pelo professor Rogério Haesbaert). Nossos encontros das quintas-feiras tornaram-se um importante “território” de reflexão, formulação e confraternização. Essas reuniões foram um importante momento na

minha formação intelectual, foram muitos colegas e amigos

que passaram por lá nesses últimos sete anos, dos quais gostaria de lembrar alguns: Thiago, Vânia, Denílson, Penha Caetano, Marcelus, Fernando Duarte, Daniela, Emerson, Matheus, Maria Lucia, Angelita. Agradeço ao “bom encontro” com o professor Rogério Haesbaert, meu orientador, que me ensinou a cultivar a humildade diante do conhecimento, a necessidade da disciplina e do rigor, bases de uma ética do trabalho intelectual, mas sempre preservando minha liberdade e criatividade para pensar e trabalhar. Essas virtudes infelizmente estão cada vez mais

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raras numa academia marcada pela ostentação celebratória do ego, na qual muitos pesquisadores estão mais interessados na busca pelo reconhecimento do que na busca pelo conhecimento. Talvez só o tempo me dará a real dimensão das marcas que a convivência com o Rogério, nos últimos sete anos, deixaram na minha formação intelectual e pessoal. Além desse aprendizado, agradeço muito pela confiança, paciência e pela amizade! Agradeço também ao bom encontro com o professor Carlos Walter, que nos sensibilizou para a importância do ativismo e do engajamento do intelectual, além de nos ensinar a pensar no/em movimento e, por ter nos chamado atenção para a riqueza do “admirável mundo novo” do pensamento latino-americano. Agradeço

ao

departamento

de

Geografia

da

Faculdade

de

Formação de professores – FFP/UERJ pela acolhida e pela atenção quando de minha chegada como professor nessa instituição. Agradeço a todos meus colegas de departamento e, especialmente, aos professores Jorge Braga, Andrelino Campos, Marcos Couto, Manuel Santana, Marcos Cesar, Renato Emerson, Cátia Antônia, Daniela, Astrogildo e Felipe Moura com quem tenho um agradável convívio cotidiano. Agradeço aos professores Ivaldo Lima e Paulo Roberto Raposo Alentejano pelas contribuições no exame de qualificação. Para esse último, o grande “Paulinho Chinelo”, além de participar dessa banca examinadora, agradeço ainda pela troca e diálogo cotidiano e pelas cervejas no “bar da frente”. Agradeço também por abrir novas possibilidades de construção de agenciamentos coletivos que possibilitam inaugurar linhas de fugas dentro do deserto burocrático que, infelizmente, a universidade vem transformando-se. Sua ação cotidiana

nos lembra que é através do trabalho coletivo que

podemos

outras

construir

possibilidades

de

uma

universidade

com

autonomia, criatividade, mas, sobretudo, comprometida com a sociedade. Algumas pessoas foram de maneira direta fundamentais para que pudéssemos finalizar essa tese. Agradeço todos aqueles que me ajudaram concedendo

entrevistas

e

fornecendo

documentos

ou,

simplesmente,

conversando e me dando um pouco do seu tempo e de sua atenção. Agradeço ainda a Amélia Cristina e Edir Augusto pelas leituras e comentários desse trabalho. Ao Edir, um agradecimento especial, por ter me ajudado com

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as fotos presentes nessa tese. A Julia e Mirian pela revisão do Português. Agradeço ainda o Geógrafo Mario Arnaud pela generosidade de me ajudar com dados dessa pesquisa e com a realização do trabalho de campo. Por fim, agradeço a Gabriela Toledo, minha aluna e bolsista que contribui muito na construção desse trabalho nos últimos dois anos e que, agora vai ser mãe da Maria, sinal de um novo começo. Obrigado a todos (as)!

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EPÍGRAFE

O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos ao estar juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte dele até deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada, exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, abrir espaço para ele. (ÍTALO CALVINO).

A teoria crítica moderna representou uma secularização fiel da esperança bíblica. Num contexto de espera sem esperança, a teoria crítica tem apenas a alternativa de lutar contra a inevitabilidade dos riscos. Para isso, porém, tem de assumir uma posição explicitamente utópica, uma posição que sempre teve, mas que durante muito tempo clamou não ter. Recuperar a esperança significa, neste contexto, alterar o estatuto da espera, tornando simultaneamente mais ativa e mais ambígua. A utopia é, assim, o realismo desesperado de uma espera que se permite lutar pelo conteúdo da espera, não em geral mas no exato lugar e tempo em que se encontra. A esperança não reside, pois, num princípio geral que providencia por um futuro geral. Reside antes na possibilidade de criar campos de experimentação social onde seja possível resistir localmente às evidências da inevitabilidade, promovendo com êxito alternativas que parecem utópicas em todos os tempos e lugares exceto naqueles em que ocorreram efetivamente. É este o realismo utópico que preside às iniciativas dos grupos oprimidos que, num mundo onde parece ter desaparecido a alternativa, vão construindo, um pouco por toda a parte, alternativas locais que tornam possível uma vida digna e decente. (BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS)

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RESUMO

No final da década de 1980 começa ocorrer sensíveis mudanças na dinâmica política dos conflitos sociais do mundo rural na Amazônia, sobretudo, pela emergência de uma espécie de “polifonia política”, ou seja, da emergência de uma diversidade de novas vozes, de novos sujeitos políticos que emergem na cena pública e nas arenas políticas. Esses novos movimentos sociais se diferenciam dos movimentos antecedentes por suas estratégias discursivas e identitárias, pois na constituição como sujeitos coletivos não mobilizam a auto-identificação de camponês ou trabalhador rural como era muito comum em décadas passadas. Esses novos atores políticos apresentam-se através de múltiplas denominações e apontam para a construção de novas e múltiplas identidades (índios, ribeirinhos, pequenos agricultores, seringueiros, varzeiros, castanheiros, populações quilombolas, mulheres quebradeiras de coco, etc.) e múltiplas formas de associação que ultrapassam o sentido estreito de uma organização sindical, incorporando fatores étnicos e critérios ecológicos, de gênero e de auto-definição coletiva. Mas essas emergências identitárias não são gratuitas, são novas estratégias na luta por direitos, formas de garantias a direitos sociais e também culturais, notadamente, o chamado “direito étnico à terra”, e os direitos que asseguram a posse “agro-ecológica” da terra e dos recursos naturais. O objetivo desse trabalho é analisar essas (re)configurações identitárias, a constituição de novos sujeitos políticos, novos sujeitos de direito e suas implicações na redefinição das táticas e estratégias pela luta da terra, pela água e pelos recursos naturais na Amazônia. Na busca pela afirmação de suas identidades coletivas e de suas territorialidades, esses movimentos vêm reivindicando ou, mesmo inventando, novos direitos tais como: o reconhecimento de terras indígenas, o reconhecimento de terras das comunidades remanescentes de quilombolas, a criação de reservas extrativistas (seringueiros, castanheiros e outras populações extrativistas), acordos comunitários de pesca, entre outros. Nessa pesquisa, tomamos como caso paradigmático desse processo, a luta para criação e implementação dos chamados acordos comunitários de pesca nas comunidades ribeirinhas no Município de Cametá na região do Baixo Tocantins no Estado do Pará. Analisamos como esses acordos constituem-se uma estratégia territorial de reapropriação social do rio e de afirmação das identidades e dos direitos territoriais dessas comunidades. PALAVRAS CHAVES: TERRITÓRIO –IDENTIDADE REAPROPRIAÇÃO - ACORDOS DE PESCA - AMAZÔNIA.

-

LUTA

POR

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RÉSUMÉ

A la fin de la décennie de 1980 commencent à se produire de sensibles changements dans la dynamique politique des conflits sociaux du monde rural en Amazonie, surtout, par l'émergence d'une certaine "polyphonie politique", c'est à dire, par l'apparition d'une variété de nouvelles voix, de nouveaux sujets politiques qui émergent sur la scène publique et dans les débats politiques. Ces nouveaux mouvements sociaux se différencient des mouvements précédents de part leurs stratégies du discours et de l'identité, alors que dans la formation en tant que sujets collectifs ils ne mobilisent pas l'auto-identification du paysan ou ouvrier agricole comme il était courant de le faire dans les décennies passées. Ces nouveaux acteurs politiques sont définis à travers plusieurs dénominations et se démarquent par la construction de nouvelles et multiples identités ( indiens, riverains, petits agriculteurs, seringueiros, varzeiros, châtaigner, population des quilombos, casseuses de noix de coco, etc ...) et de multiples formes d'association qui dépassent le sens stricte d'une organisation syndicale, incorporant des facteurs ethniques et des critères écologiques, le genre et l'autodéfinition collective. Mais ces émergences identitaires ne sont pas gratuites, ce sont de nouvelles stratégies de lutte pour les droits, formes de garanties aux droits sociaux et culturels, notamment, le dénommé "droit ethnique à la terre", et les droits qui assurent la propriété "agro-écologique" de la terre et des ressources naturelles. L'objectif de ce travail est d'analyser ces (re)configurations identitaires, la formation de nouveaux sujets politiques, de nouveaux sujets de droits et leurs implications dans le redéfinition des tactiques et stratégies pour la lutte de la terre, pour l'eau et pour les ressources naturelles en Amazonie. En cherchant l'affirmation des leurs identités collectives et de leurs territorialités, ces mouvements revendiquent ou, même inventent, de nouveaux droits tels que : la reconnaissance des terres indigènes, la reconnaissance des terres des communautés descendants des quilombos, la création de réserves d'extraction (seringueiros, châtaigner et autres populations de l'extraction), les accords communautaires de pêche, entre autres. Dans cette recherche, nous prenons compte du cas paradigmatique de ce processus, la lutte pour la création et l'implantation des dénommés accords communautaires de pêches dans les communautés riveraines de la municipalité de Cameta dans la région du Bas Tocantins dans l'état du Para. Nous analysons comment ces accords constituent une stratégie territoriale de réappropriation social du fleuve et d'affirmation des identités et des droits territoriaux de ces communautés. MOTS CLES : TERRITOIRE - IDENTITE - LUTTE PAR LA REAPPROPRIATION - ACCORDS DE PECHE - AMAZONIE.

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SUMÁRIO PRÓLOGO ...............................................................................16 I.

PARTE: O ARTESANATO........................................................32 1. Capítulo: Cartografia da investigação ou um pequeno guia do usuário: questões, posições, caminhos e limites da pesquisa..... 33

1.1 .O que nos move: questões.................................................33 1.2. O campo empírico ............................................................. 41 1.3. O campo teórico ................................................................58 1.4. O método como caminho e como desvio................................67 II.

PARTE: A CAIXA DE FERRAMENTAS........................................76

Primeiro Intermezzo: A teoria como caixa de ferramentas: por uma forma profana de lidar com nossas heranças intelectuais. ...............................................77 2. Capítulo: território como conceito/dispositivo analítico e de medi-ação para pensar as lutas sociais na amazônia.............84 2.1. O território entra em cena...................................................85 2.2. Sobre a natureza dos conceitos............................................89 2.3. Pressupostos metodológicos para se pensar o conceito de território ................................................................................95 2.4. A relação entre conceito e lócus de enunciação.....................99 2.5. A relação entre conceito e historicidade.............................. 102 2.6. A relação entre conceito e multiplicidade/complexidade.........111 2.7. A relação entre conceito e problema ou campo de problematização......................................................................114 2.8. A relação entre conceito e plano de imanência/solo epistemológico........................................................................118 2.9. Deslocamentos metodológicos (interpretativos e investigativos) para pensar o conceito de território...........................................123

Segundo intermezzo: Deslocalizando olhares e narrativas sobre as comunidades tradicionais da Amazônia: um pequeno exercício de descolonização de nossa imaginação geográfica. .......................................................................128

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3. Capítulo: Identidades territoriais, reconfigurações identitárias e lutas sociais na Amazônia..............................147 3.1 . Introdução.....................................................................147 3.2 . Itinerários teóricos para se pensar o conceito de identidade territorial................................................................................153 3.3 . Identidade territorial: uma perspectiva geográfica de pensar a “questão identitária”................................................................162 3.4 . As condições de emergência e reconfiguração da questão identitária na Amazônia...........................................................168 3.5 . R-existências, lutas sociais e a construção das identidades territoriais na Amazônia...........................................................174 3.6 . Pressupostos gerais para pensar as identidades territoriais na Amazônia...............................................................................185

Terceiro Intermezzo: Povos e comunidades tradicionais como categoria de análise e como categoria da prática politica. ...................................................188 III-PARTE: O ARQUIVO E O MAPA ........................................197 4. Capítulo: A Amazônia e o Baixo Tocantins como formação socio-espacial: múltiplos tempos, espaços, contradições e lutas sociais.................................................................................198 4.1. Introdução.......................................................................198 4.2. Formação do território e padrões de organização espaço-temporal do Baixo Tocantins..................................................................207 4.3. O momento de fronteira: modernização/colonial e reestruturação espaço-temporal da Amazônia/Baixo Tocantins.......................... .213 4.4. O processo desigual de reorganização espaço-temporal pós 1970 no Baixo Tocantins..................................................................220 4.5. Os impactos da hidrelétrica, mobilização social e constituição de identidades sócio-políticas........................................................232 4.6. Lutas sociais, protagonismo político e a constituição de novos sujeitos ligados ao mundo da pesca em Cametá.........................242 IV. PARTE: O TERRENO.........................................................260 5. Capítulo. Acordos Comunitários de Pesca como estratégia de reapropriação social do territó-rio........................................261 5.1. Introdução......................................................................261 5.2. Aproximações do terreno..................................................267

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5.3. A emergência dos Acordos Comunitários de Pesca nas comunidades ribeirinhas do município de Cametá.........................280 5.4. Acordos Comunitários de Pesca como estratégia de reapropriação do territó-rio: conflitos socioambientais e a criação de direitos territoriais comunitários...........................................................297 5.5. O significado jurídico, político e ecológico-econômico dos Acordos de Pesca para as comunidades ribeirinhas no município de Cametá: possibilidade e limites...............................................................311 6. Considerações Finais........................................................323 7. Nossos intercessores e outras companhias (Referências Bibliográficas).....................................................................349

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PRÓLOGO Pertenço a uma terra que ainda se ignora a si mesma. Escrevo para ajudá-la a se revelar – revelar, rebelar – e buscando-a me busco e encontrando-a me encontro e com ela, nela, me perco. (EDUARDO GALEANO, 1993, p. 108). O problema não é inventar.É ser inventado.Hora após hora e nunca ficar pronta nossa edição convincente (CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE).

I O sociólogo Pierre Bourdieu (2004), insistentemente, afirmava o papel do habitus como chave de entendimento para compreendermos nossas escolhas e o sentido da ação social, pois, para ele, nossa percepção do mundo, nossas representações e ações em suas dimensões - cognitiva, ética e politica - são condicionadas por um longo aprendizado social a partir do qual somos formados. Tal afirmação parece ter particular validade quando se refere a escolhas de objetos/sujeitos de pesquisa. Nossos itinerários de vida refletem-se nos caminhos que tomamos no campo da ciência, e, mesmo que muitas vezes não tenhamos consciência, é na relação e tensão entre biografia e bibliografia que construímos nossos objetos/sujeitos de pesquisa. Assim, a construção de um objeto de estudo envolve escolhas teóricas, perpassa o posicionamento político-ideológico, bem como o envolvimento afetivo-emocional do pesquisador com o tema pesquisado. O discurso epistemológico hegemônico da ciência e da filosofia modernas aponta para a ideia de que o conhecimento científico é deslocalizado, des-contextualizado e des-incorporado e, portanto, trata-se de um conhecimento abstrato e universal, um conhecimento transcendental que independe de tempo e espaço, um conhecimento que paira sobre as contingências históricas, como se estivesse flutuando e não tivesse nenhuma ligação com os sujeitos-autores que o produzem. Assim, na produção filosófica e científica moderna ocidental, o sujeito que fala, o sujeito que teoriza, em suma, o sujeito que produz o conhecimento, as teorias e os conceitos está sempre oculto, disfarçado, escondido. Trata-se

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de um sujeito abstrato, um sujeito não localizado, não situado, um sujeito sem corpo, sem cultura, sem classe, sem sexo e que, portanto, o seu lócus de enunciação é abstrato e não está contaminado de marcas terrenas. Logo, o lócus de enunciação tem a pretensão de ser universal. Contudo, como nos mostra Lander (2005); Souza Santos (2006); Grosfouguel (2008); Mignolo (2003), a produção do conhecimento não é abstrata, mas sim contextualizada, localizada, incorporada; ela está situada em histórias locais e arraigada em culturas e cosmovisões particulares e trazem as marcas dos sujeitos-autores que a produzem, sujeitos estes constituídos a partir de suas experiências e subjetividades configuradas socialmente. Desse modo, falamos sempre a partir de um determinado lugar, de algum lugar de enunciação, ou seja, existe uma profunda relação entre o que se fala, quem fala e de onde se fala, ou, como argumenta Mignolo (2003), as localizações epistemológicas têm uma estreita relação com o lócus geopolítico e bio-político de enunciação a partir do qual o pesquisador constrói o seu olhar e o seu discurso. O que faremos neste prólogo é recuperar um pouco a relação entre a nossa trajetória, o nosso itinerário de vida e as escolhas na construção dessa pesquisa, buscando relacionar e explicitar os vínculos entre as nossas experiências e o objeto pesquisado e, desse modo, nos localizar e localizar o leitor, apontando de onde falamos, por que falamos e como falamos.

II Quando pensávamos a melhor maneira de apresentar esse prólogo, que tem como objetivo fundamental, mostrar como nós, enquanto sujeito-autor, nos inscrevemos no que escrevemos, nos veio à lembrança uma particularidade sobre a biografia do estudioso da cultura Raymond Williams1. A história de vida desse importante pensador nos chamou muita atenção, pois, de algum modo, remete a nossa própria trajetória, não no sentido do prestígio intelectual, mas da relação emocional que esse pensador tinha com a sua origem social e sua trajetória intelectual.

1

CEVASCO Elisa. Como ler Raymond Willians. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

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Raymond Williams, era de origem social muito humilde, neto de um trabalhador rural e filho de um trabalhador ferroviário, oriundo de uma região pobre da Inglaterra. Apesar dessas adversidades, a ajuda de uma bolsa de estudos possibilitou que ele se tornasse estudante e depois professor da renomada e elitista universidade de Cambrigde. Mas, apesar de êxito na sua trajetória intelectual, Raymond Williams sempre se sentia deslocado, pois, apesar de toda sua produção intelectual, não podia falar para sua classe, visto que lecionava para elite brithânica. Por isso, dentro da linha de atuação institucional da New Left, ele, junto com E.P Thopsom, idealizou e trabalhou durante a vida toda em um programa de educação universitária para jovens e adultos trabalhadores; Para ele, essa atividade social e cultural lhe possibilitava reunir o que, na sua vida pessoal, tinha sido apartado: o valor de um conhecimento mais avançado e a privação contínua desse benefício para sua classe de origem ou afiliação, ou seja, essa experiência foi a forma que ele encontrou de reconectar a sua trajetória de intelectual com a sua classe, de poder compartilhar de algum modo aquilo que era fruto de uma trajetória individual, mas plasmado por um caldo de cultura e uma inteligencia forjada coletivamente. Ao termos contato com essa peculiaridade presente na trajetória de Raymond Williams, compreendemos melhor os motivos pelos quais escolhemos fazer esta pesquisa e o que nos leva a continuar insistitindo em estudar problemas relativos à identidade, ao território, retornando sempre a Amazônia e as comunidades ribeirinhas, visto que, desde o trabalho de monografia da conclusão do curso de graduação em Geografia, retornamos a esse tema de pesquisa. Nesse sentido, esta tese talvez seja uma forma de reencontrar certas experiências que nos conectam com essa região, com uma cultura, um modo de vida e uma classe que nossa trajetória acabou por afastar do convívio cotiadiano. Mesmo longe há um vínculo tecido emocionalmente, etica e politicamente que sempre nos empurra para retornar a Amazônia. Talvez isso explique por que a questão identitária sempre exerceu a condição de centro gravitacional de nossas pesquisas a partir de diferentes

movimentos

e

de

distintas

perspectivas

teóricas,

sempre

retomamos ao debate sobre a questão da identidade e do território. Nesse

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sentido, as palavras do Sociólogo polonês, Zigmunt Baumam (2005), nos ajudam a compreender por que o tema e o problema da identidade [e talvez pudéssemos estender isso ao território] se tornaram consciente ou inconscientemente,

o

grande

leimotiv

em

nossa

trajetória

como

pesquisador. Este autor afirma que a identidade só se torna uma questão quando ela está em perigo, ou quando suas ancoragens são abaladas em sua estabilidade. Nessa perspectiva, a questão do pertencimento não se coloca como algo natural ou como destino, mas como busca, como promessa, ou como projeto. Neste sentido, é só quando vivemos o desconforto diante do pertencimento que ele se torna uma questão digna de refelexão e de ação. Talvez por ter uma experiência individual, em que vimos continuamente nos deslocando dos contextos de ancoragem de nossa comunidade de vida originária, é que a questão identitária e do território tenha se tornado algo tão importante existencialmente, mas também um problema politico e teórico sobre o qual vimos circulamente nos aproximando nos últimos anos, sempre voltando nela como plataforma de partida para pensar a Amazônia, as lutas sociais e as comunidades ribeirinhas.

III Para Deleuze, o pensamento não é “natural”, mas é forçado. Só pensamos porque somos forçados a pensar. E o que nos força a pensar? O problema. O problema desempenha um papel central no ato de fazer pesquisa; na construção de uma tese, o problema é aquilo que mobiliza o pensamento e nos move no ato de fazer pesquisa. Mas o que é um problema e como se apresenta diante de nós? Silvio Gallo (2008), inspirado em Deleuze, nos afirma que: O problema não é uma operação puramente racional, mas parte do sensível; a experiência problemática é sentida, vivenciada, para que possa ser racionalmente equacionada como problema. Por isso o problema é sempre fruto do encontro; há um encontro, uma experiência que coloca em ação elementos distintos e que gera o problemático. E se o problema é o que força a pensar, somos levados a admitir que o princípio (origem) do pensamento é sempre uma experiência sensível. Deleuze contrapõe-se, pois, a Platão e à teoria da recognição. Pensar não é reconhecer, não é recuperar algo já presente na alma. Pensar é experimentar o incômodo do desconhecido, do ainda-não pensado e

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construir algo que nos possibilite enfrentar o problema que nos fez pensar. (GALLO, 2008 p. 118).

Quais os encontros? Quais os incômodos que nos levaram a realização desta pesquisa sobre comunidades ribeirinhas na Amazônia e suas estratégias identitárias e territoriais de luta por direitos? Quais as experiências? Se o problema tem a ver com a experiência sensível, ou seja, nossa escolha por um determinado tema de pesquisa advém de nossas experiências vividas, talvez caiba perguntar: o que significa experiência? No sentido de dar uma resposta a essa questão, as palavras de Jorge Larrosa (2004)

são

precisas.

Para

este

autor,

experiência

significa,

etimologicamente falando: [...] em espanhol, “o que nos passa”. Em português se diria que a experiência é “o que nos acontece”; em francês a experiência seria “ce que nous arrive”; em italiano, “quello che nos succede” ou “quello che nos accade”; em inglês, “that what is happening to us”; em alemão, “was mir passiert”. A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. (LARROSA, 2004, p. 153-154).

Nesse mergulho fascinante pela origem, pela história e pelos sentidos que a palavra experiência contém, Jorge Larrosa (2004) nos mostra

que

a

palavra

experiência

remete

à

ideia

de

provar,

de

experimentar, mas também, contém o sentido de viagem, percurso, travessia, passagem e perigo. 1. A palavra experiência vem do latim experiri, provar (experimentar). A experiência é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova. 2. O radical é periri, que se encontra também em periculum, perigo. 3. A raiz indo-européia é per, com a qual se relaciona antes de tudo a idéia de travessia, e secundariamente a idéia de prova. 4. Em grego há numerosos derivados dessa raiz que marcam a travessia, o percurso, a passagem: peirô, atravessar; pera, mais além; peraô, passar através, perainô, ir até o fim; peras, limite. 5. Em nossas línguas há uma bela palavra que tem esse per grego de travessia: a palavra peiratês, pirata. O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião. 6. A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro, de exílio, de estranho e também o ex de existência. A experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou

20

fundamento, mas que simplesmente “ex-iste” de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. 7. Em alemão, experiência é Erfahrung, que contém o fahren de viajar. E do antigo alto-alemão fara também deriva Gefahr, perigo, e gefährden, pôr em perigo. 8. Tanto nas línguas germânicas como nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo. (LARROSA, 2004, p. 161-162).

Nesse sentido, talvez caiba perguntar em nosso percurso de vida, que tipos de passagens, travessias, realizamos? O que nos aconteceu nas diferentes viagens? Que tipos de perigos? Como os diferentes tempo e espaços, que experimentamos, que provamos como professor, como pesquisador, como amazonida, como migrante afetaram nossa relação com a pesquisa e com o objeto pesquisado?

IV Sou filho de trabalhadores rurais e até a adolescência vivi num povoado chamado Porto Grande, pertencente ao município de Cametá, localizado no baixo curso do rio Tocantins, na porção Nordeste do Pará. Nessa época o povoado contava com menos de mil habitantes, não tinha telefone ou energia elétrica e ficava praticamente isolado por falta de estradas, o que dificultava a ligação com outros lugares, efetuada quase que exclusivamente através do rio. Minha família, tal como a maioria que ali residia, vivia da agricultura, mas, devido às dificuldades de acesso aos serviços de educação e saúde, resolveu mudar para a zona urbana para procurar melhores condições de vida. Foi assim que mudamos para a cidade de Cametá (sede do município). Assim, no início dos anos 90, comecei a experimentar o modo de vida urbano. É nesse momento que tive uma experiência marcante: descobri na escola o que era a “Amazônia”. Até então, tinha apenas uma vaga ideia... Achava que essa palavra significava o mesmo que o estado do Amazonas. Fiquei surpreso quando soube que morava na Amazônia. Comecei a estudar as transformações que ocorreram na região, os chamados “grandes projetos”, mas tudo parecia muito distante; afinal eu nunca tinha saído de Cametá, e não eram “visíveis”, na paisagem do

21

município, as “marcas” do processo de modernização, pois apesar dos grandes impactos da Usina Hidrelétrica de Tucuruí na vida de uma grande parcela da população do município, em especial as populações ribeirinhas, a percepção desses efeitos negativos não era explícita para a grande maioria da população. A mudança nessa forma de olhar a minha realidade ocorreu quando, em 1994, realizamos uma pesquisa, na 8° serie do ensino fundamental, sobre os impactos sociais e ecológicos da hidrelétrica de Turucuí sobre as populações ribeirinhas que moravam nas ilhas do município. Ao ouvir as pessoas relatarem os profundos impactos negativos da Barragem em suas vidas cotidianas, comecei a relacionar as questões do meu cotidiano imediato com questões e processos em escalas mais amplas. Porque, naquele exato momento, estávamos vivenciando uma grave crise de energia elétrica no município de Cametá e no Baixo Tocantins como um todo, visto que o sistema de usinas termoelétricas que alimentava os municípios estava falido. Era constante a falta de energia, embora, contraditoriamente, tivéssemos ao lado uma das maiores hidrelétricas do país funcionando há mais de uma década, sem que a população do seu entorno imediato tivesse acesso à energia. O acesso à energia produzida pela Usina Hidrelétrica de Tucuruí (UHT) só ocorreu quase quinze anos depois do início de seu funcionamento e só se realizou graças às intensas lutas dos movimentos sociais da região. Neste momento comecei a ter consciência da lógica excludente dos processos modernizadores na região e, por ocasião da militância no movimento estudantil, tive a oportunidade de participar das lutas pelo acesso à energia elétrica da UHT. Em 1998, meu horizonte geográfico se ampliou: com dezoito anos conheci Belém e, pela primeira vez na vida, meu olhar foi des-locado significativamente, experimentei uma nova temporalidade; a vida e o ritmo metropolitano tiveram um impacto profundo sobre minha vida e minha identidade. No mesmo ano conheci e fui morar em Tucuruí, onde passei dois anos.

Mudei para Tucuruí para cursar a graduação em Geografia numa

turma ”intervalar” (curso para formações de professores oferecido no período de férias escolares pela UFPA) e lá também trabalhei como

22

professor do ensino fundamental, experimentando uma outra face do Pará e da Amazônia. A experiência espaço-temporal em Tucuruí foi paradoxal, pois era ao mesmo tempo muito perto e muito longe. Perto geograficamente de Cametá,

mas

distante

social

e

culturalmente,

com

uma

outra

temporalidade, um ritmo diferente da Amazônia ribeirinha a que eu estava acostumado. Senti-me “estrangeiro” na Amazônia, pois em Tucuruí a maioria da população não é Paraense; as roupas, as músicas, a culinária, tudo era muito diferente do que eu estava acostumado. Ao mesmo tempo, essa experiência de ter morado em Tucuruí me deu a oportunidade de conhecer de perto o impacto que a construção da hidrelétrica teve na dinâmica local, além disso, tive contato direto com a luta dos atingidos pela hidrelétrica. Mais tarde, fui morar em Belém, e o contato com a dinâmica e a vida metropolitana apontava e reforçava uma questão: como entender tamanha diversidade territorial na Amazônia? A Amazônia existia como unidade ou como região ou era uma invenção? Como pensar as identidades e as diferenças nesse contexto? Essas questões tornaram-se mais urgentes quando saí da região e conheci o Nordeste e o Sudeste brasileiro, pois essas novas experiências espaço-temporais revelavam com mais contundência o quanto era forte a idéia de uma Amazônia imaginária, muitas vezes no próprio mundo acadêmico.

V Essas inquietações ganharam um eco teórico quando conheci o livro O poder simbólico de Pierre Bourdieu. O capítulo sobre: identidade e representação, elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia de região me desnorteou, abalou as poucas certezas acumuladas nos meus dois anos de curso de geografia. Na tentativa de compreender tais questões, iniciei um percurso de leituras que me levou às herméticas reflexões sobre o discurso em Foucault; embora essas leituras não tenham se apresentado com muita clareza para mim, elas me deslocaram de uma geografia de cunho marxista muito popularizada e, não raras vezes, vulgarizada nos cursos de Geografia, Brasil afora.

23

Nessa busca, acabei conhecendo a chamada Geografia cultural. Sem condições de distinguir as várias vertentes que comportam esse rótulo, comecei a ler autores de diversas perspectivas teóricas e filosóficas, desde a linha culturalista do marxismo, como Denis Coscrove, até uma perspectiva fundamentada na semiótica estruturalista, como a de Paul Claval. Na tentativa de aprofundamento sobre a relação cultura e espaço, cheguei à antropologia interpretativa de Geertz, que se mostrou profundamente rica e sedutora. Mas foi quando descobri um texto chamado território, poesia e identidade, do professor Rogério Haesbaert, que o tema da cultura e da identidade começou a ganhar os contornos de uma problemática. Mais tarde, ao ler outro artigo do mesmo autor, denominado Identidades territoriais, surgiu de fato uma problemática e comecei a formular questões como: Como se construiu a identidade “caboclo-ribeirinha” em Cametá? A identidade “caboclo-ribeirinha” é uma identidade territorial? Qual o papel do rio na construção da identidade “caboclo-ribeirinha”? Essas questões deram origem à minha monografia de final de curso de graduação em Geografia na UFPA (Universidade Federal do Pará), na qual tentei entender o processo de construção da identidade cametaense através de músicas e poemas de artistas locais. Este trabalho foi assentado em uma visão excessivamente culturalista, influenciada, sobretudo, pela chamada

Geografia

cultural

francesa.

Minha

análise

primava

pelos

significados simbólicos da identidade, e, embora os conflitos de poder estivessem presentes nas nossas reflexões, apareceram apenas como lutas incorpóreas de significados e representações, limitados à textualidade e, desse modo, não conseguimos chegar à materialidade dos sujeitos e dos conflitos concretos. Com base nas reflexões produzidas nesse trabalho de monografia é que construímos nossa proposta de pesquisa para o curso de mestrado. Ao longo do curso de mestrado, redefinir gradativamente o nosso objeto de estudo, pois as leituras, tanto as relacionadas às disciplinas, como as do grupo de estudo NUREG (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Globalização e Regionalização), levaram-me a ler autores da filosofia contemporânea

como

Foucault,

Deleuze,

Agamben,

além

de

uma

aproximação de autores dos chamados estudos culturais, tais como Stuart

24

Hall e Homi Babha, bem como de autores latino-americanos a exemplo de Walter Mignolo, Henrique Dussel, Aníbal Quijano, Aturo Escobar2, e, ainda, da instigante obra de Boaventura de Souza Santos. As reflexões desses autores,

que

redefiniram

enfocam minhas

a

discussão

perspectivas

do

chamado

epistemológicas

pós-colonialismo, e

teóricas

de

entendimento da identidade, pelo fato de apontarem para um entendimento da cultura para além de uma dimensão simbólica e discursiva, enfatizando a inerente

relação

entre

cultura

e

poder,

levando,

portanto,

a

um

entendimento da cultura como algo indissociável da política. Essa nova sensibilidade epistemológica e o distanciamento da realidade amazônica des-locaram o foco do nosso olhar e redefiniram nossa pesquisa, apontando para dois pressupostos teóricos gerais que orientaram este trabalho: a)

A identidade como uma construção histórica relacional e

contrastiva que envolve ao mesmo tempo uma dimensão material e simbólica; b)

A identidade não como essência, mas com algo estratégico e

posicional, estando em estreitas conexões com relações mais amplas de poder da sociedade, sendo produto e produtora de lutas sociais. Partindo dessa compreensão, construímos nossa dissertação de mestrado, na qual buscamos compreender como, através das lutas sociais, determinados grupos buscavam afirmar a ideia de uma identidade ribeirinha em um processo de ressignificação da própria ideia de uma “identidade cabocla” que agora emergia nos discursos como algo positivo que se contrapõe

à

identidade

dos

“homens

notáveis”,

os

quais

sempre

representaram a história e a memória da elite oligárquica no município de Cametá, composta por algumas famílias tradicionais que dominaram historicamente o poder local. No processo de pesquisa, compreendemos que era preciso relacionar as estratégias identitárias com as estratégias territoriais, para compreendermos as lutas sociais das chamadas comunidades tradicionais 2

Vale ressaltar a importância da disciplina Geografia e movimentos sociais ministrada pelo professor Carlos Walter Porto Gonçalves, pois nesse curso tive a oportunidade de conhecer a riqueza do pensamento social Latino-americano, normalmente ignorado pelas ciências sociais brasileiras e, em especial, pela Geografia.

25

na Amazônia; essas estratégias são duas faces de um mesmo movimento na luta por direitos. A identidade é a plataforma de mobilização política para afirmação de sujeitos de direitos, o território é o meio e a condição pela qual se efetiva o exercício dos direitos. Essa trajetória de pesquisa nos conduziu progressivamente em um movimento que vai da identidade ao território. Neste sentido, quando construímos o projeto de doutorado, o objetivo era entender a relação entre territórios, identidades e direitos nas lutas sociais das chamadas “comunidades tradicionais” na Amazônia, especialmente,

entender

o

significado

das

chamadas

“lutas

por

reconhecimento” e as “lutas por reapropriação social da natureza”. Para compreender esse processo, projetamos uma pesquisa de natureza comparativa entre três tipos de situações e de lutas que envolviam uma agenda e uma demanda pelo direito ao território: 1. As lutas das chamadas “comunidades quilombolas” e as suas reivindicações pela afirmação de seus direitos territoriais; 2. As lutas das comunidades extrativistas pela criação de reservas extrativistas e, consequentemente, pela afirmação do direito ao território; 3. As lutas das comunidades ribeirinhas pela criação e pelo reconhecimento dos chamados Acordos de Pesca, que também é uma estratégia pela afirmação dos direitos territoriais. Pelas

dificuldades

de

realização da pesquisa, que envolve

elementos como tempo, condições materiais, acessibilidade, acabamos por não realizar a pesquisa como tinha sido desenhada originalmente e optamos por nos concentrarmos em apenas uma dessas situações, cuja relação identidade, território, direito se materializava que foi a luta pela criação e reconhecimento dos Acordos de Pesca por comunidades ribeirinhas, assumindo a condição de um estudo de caso, mas não no sentido tradicional que este termo comporta. O que pretendemos realizar nessa pesquisa foi um estudo de caso paradigmático, como explicaremos mais à frente, no capítulo de natureza metodológica que abre esta tese.

VI

26

Nos últimos cinco anos, no período da realização desta tese de doutorado,

muitas

universitário,

coisas

inicialmente

nos como

aconteceram. substituto,

Tornei-me

na

professor

Universidade

Federal

Fluminense – UFF, e na Faculdade de Formação de Professores - FFP/UERJ, e posteriormente, como professor efetivo do Departamento de Geografia da FFP/UERJ. Essa experiência afetou de diferentes maneiras, a realização desta pesquisa. Uma primeira influência foi o fato de eu conhecer um pouco mais e me envolver com a realidade do Rio de Janeiro, especialmente de São

Gonçalo

e

Niterói;

aos

poucos

fui

entendendo

melhor

e

até

incorporando um certo habitus, uma cultura, um modo de vida, uma linguagem que me pareciam bastante diferentes, mas não foi somente isso. A sala de aula, ao longo dessas experiências enquanto professor, tornou-se um espaço de experimentação, de criação e de pesquisa; muitas questões e reflexões contidas neste trabalho de tese foram debatidas, discutidas em sala de aula com alunos de graduação e pós-graduação, especialmente porque tive oportunidade de trabalhar com disciplinas que me obrigaram a ter uma leitura mais crítica a respeito das heranças teóricoconceituais e metodológicas da Geografia. Nos últimos dois anos, discuti quase exclusivamente Teoria e Método e Metodologia da Pesquisa em Geografia, em disciplinas ministradas na FFP, o que ampliou minha consciência enquanto pesquisador, me conduzindo a uma maior clareza de que tipo de geografia eu gostaria de produzir,

das

minhas

identificações

com

as

matrizes

metodológicas

dominantes na geografia, bem como os meus distanciamentos. Além disso, essa consciência metodológica também produziu muita angústia, porque a consciência traz a clareza dos limites, das impossibilidades de uma pesquisa e do próprio campo de pensamento no qual se está envolvido e do qual se é herdeiro. Neste sentido, ficou evidente que, para além dos nossos limites individuais, a geografia, como campo científico, enfrenta várias limitações e deficiências de ordem metodológica, chegando a certas situações em que nos deparamos, como, por exemplo, com uma quase ausência de reflexão sobre procedimentos de investigação, técnicas de pesquisa, produção de dados, métodos de exposição, tipos de escrita e outras questões as quais

27

são amplamente debatidas em outros campos e que na geografia parecem ser negligenciadas. Esse período também foi marcado pela minha tentativa de constituição de um habitus de pesquisador. Esse processo de desenvolver certas habilidades e competências necessárias à construção do artesanato intelectual tem sido um árduo caminho; aprender que a pesquisa não é só uma escolha profissional, mas um modo de vida, aprender a organizar-se, a usar o tempo, a dificuldade de lidar com a escrita apenas ilustram os desafios enfrentados na trajetória de formar-se como pesquisador. Mas os limites que se impuseram em nossa caminhada na realização da nossa pesquisa não foram somente de ordem metodológica; as condições materiais de trabalho também interferiram no processo de construção desta tese; buscar um equilíbrio entre trabalhar e pesquisar é uma difícil arte que ainda estamos por aprender; a impossibilidade de uma dedicação exclusiva à construção da pesquisa interferiu, muitas vezes, em nossa capacidade de elaboração, especialmente no que se refere à realização da pesquisa empírica, que tinha como referência a Amazônia e que o acesso não foi algo fácil e nem simples por questões de tempo e recurso. Viver e trabalhar nesses últimos cinco anos no Rio de Janeiro (Niterói e São Gonçalo) produziu um sentimento paradoxal: de um lado, essa experiência me afastou e distanciou da realidade amazônica, inclusive pelas impossibilidades de tempo, visto que, as minhas idas a campo ficaram reduzidas, diminuindo minha convivência direta com o cotidiano da região, mas por outro lado, o distanciamento espaço-temporal, talvez, tenha aumentado a sensibilidade emocional e analítica, pois nunca estive tão ligado e apegado emocionalmente à Amazônia e, talvez, nunca tenha percebido com tanta clareza e nitidez certos aspectos dessa região. É dessa condição de proximidade e distanciamento que resultou o tipo de análise que realizamos nessa tese, nosso lugar de fala, nosso olhar se constituiu a partir dessa estrutura de sentimento fronteiriço, o lugar de enunciação liminar e fraturado. Nesse sentido, apesar desse trabalho ter como foco as lutas de comunidades e movimentos sociais, esta pesquisa não se constitui em um

28

relato ou um testemunho de um militante e não é fruto de um engajamento cotidiano nas lutas dessas comunidades. Mas, nem por isso, este trabalho é menos comprometido politicamente e menos solidário com a labuta cotidiana que esses grupos sociais enfrentam na sua difícil trajetória de luta por condições dignas de vida. Essa condição está expressa na forma como foi conduzida a investigação empírica dessa tese, bem como na sua configuração textual que não foi construída mergulhada na atmosfera amazônica. Nela, não estão tão presentes, quanto gostaríamos, a umidade e o calor, talvez nem as cores e nem o cheiro das frutas, dos peixes, o movimento das marés dos rios, os olhares das crianças ribeirinhas que teimam em lutar contra o gigantismo das águas dos rios. Mas isso não quer dizer que a vida, a fala, a voz,

dessas

comunidades

não

ecoem

nessas

páginas.

As

suas

reivindicações, os seus clamores, as suas bandeiras de luta, os seus gritos de revolta, o seu choro emocionado que engasga suas palavras nos depoimentos que nos concederam, criam ressonâncias dentro deste texto.

VII Esse trabalho apresenta um plano de composição estruturado em quatro grandes partes que constituem quatro unidades analíticas: a primeira parte é intitulada “o artesanato”, a segunda “a caixa de ferramentas“, a terceira “o arquivo e o mapa” e, por fim, a parte final que denominamos de “o terreno”. A

primeira parte dessa tese é denominada “o artesanato”.

Usamos essa metáfora para lembrar a natureza do trabalho intelectual e do fazer pesquisa. Essa metáfora da pesquisa como artesanato intelectual já consagrada por C. Wright Mills (2009) é importante, pois, resgata a singularidade impressa em cada pesquisa e em cada pesquisador e a inerente dimensão qualitativa do trabalho intelectual. Além disso, remetem as escolhas, as opções e também aos limites que envolvem toda pesquisa. O que fazemos nessa parte da tese é traçar uma espécie de mapa de nosso itinerário, tentando orientar e localizar o nosso leitor nos caminhos e desvios que tomamos durante o percurso da pesquisa.

29

A segunda parte, “A caixa de ferramentas”, é composta por dois capítulos de natureza teórico-metodológica, nos quais tentamos discutir os

referenciais

analíticos

e

os

conceitos-chave

que

usamos

como

ferramentas nessa pesquisa. No primeiro capítulo, damos destaque para o conceito de território e buscamos a construção de um quadro teóricometodológico

capaz

de

tornar

esse

conceito

uma

ferramenta

para

analisarmos as estratégias de luta por reapropriação social da natureza por parte das chamadas comunidades tradicionais na Amazônia. No segundo capítulo, construímos um itinerário teórico-metodológico sobre o conceito de identidade e identidade territorial e, ainda, analisamos as condições de emergência

e

de

reconfiguração

das

identidades

das

comunidades

tradicionais no contexto das lutas sociais por direitos na Amazônia. “O arquivo e o mapa” é como denominamos a terceira parte da tese. Escolhemos usar essas palavras não no sentido literal, mas como metáforas do tempo e do espaço ou, melhor dizendo, para resgatar a dimensão da historicidade e da espacialidade dos processos sociais aqui analisados.

Nessa

parte,

nosso

objetivo

é

fazer

uma

análise

histórico/geográfica da formação territorial do Baixo Tocantins, mostrando sua organização espaço-temporal e as diversas transformações que essa região vem sofrendo nas últimas três décadas, principalmente com a implantação dos chamados “grandes projetos de modernização”. Daremos destaque especial ao impacto que a construção da hidrelétrica de Tucuruí provocou na região, especialmente para a vida das comunidades ribeirinhas. Além disso, discutiremos como essas comunidades, “vítimas” desse projeto de modernização, vêm organizando-se, resistindo e buscando alternativas para superar o agravamento das já precárias condições de vida a partir da implantação desses projetos e, como nesse processo, vem ocorrendo a constituição de novos sujeitos coletivos. Nessa parte, também traçaremos a trajetória específica dos movimentos ligados à pesca, bem como a condição ou a perda da condição de ribeirinho e as diversas estratégias de lutas derivadas desse processo. Na quarta parte, intitulada “O terreno”, usamos essa metáfora para sinalizar um mergulho no referencial empírico da pesquisa, ou seja, as comunidades ribeirinhas no município de Cametá. Nessa parte centramo-

30

nos na análise dos modos de vida das comunidades ribeirinhas e nas suas lutas

pela criação e implementação dos os “Acordos Comunitários de

Pesca”.

Analisaremos

ainda

como

territoriais de reapropriação social

esses

“Acordos”

são

estratégias

dos recursos e dos rios ou, como

preferimos denominar, reapropriação social dos territó-rios. Além disso, analisaremos o significado jurídico, sociopolítico e econômico-ecológico desses “Acordos” para essas comunidades. Por

fim,

faremos

algumas

considerações

finais

resgatando

elementos discutidos ao longo do trabalho e afirmando certas conclusões, mesmo que provisórias, a respeito dos processos analisados. Além das partes e dos capítulos, construímos um conjunto de pequenos textos de natureza metodológica que estamos chamando de Intermezzo, palavra de origem italiana que possui vários sentidos: entreato; intervalo entre atos de uma peça; intervalo; entrecena; pequena cena dramática ou musical que se apresenta nesse intervalo entre os atos principais de uma ópera3. Nesta tese, os Intermezzi são textos que não têm necessariamente uma coerência ou coesão com o texto principal, mas se ligam a ele como eco e como ressonância,

iluminando-o. São pequenos

desvios na lógica do caminho linear da tese, mas que acrescentam novos sentidos e uma maior riqueza ao texto principal.

3

Intermezzo era o nome que se dava, na primeira metade do século XVIII, às cenas cômicas apresentadas no intervalo entre os atos de uma ópera séria. Uma forma de oferecer alternância à tensão dramática, elas foram retiradas do corpo da ópera e apresentadas dessa maneira, como uma mini-peça complementar entre um ato e outro. Essas pequenas comédias tinham tudo para cativar o público, pois, ao contrário da ópera séria, extremamente estilizada, com figuras e temas da Antiguidade pesadamente estereotipados, elas traziam personagens contemporâneas e histórias prosaicas, recortadas da realidade, nas quais todos os espectadores poderiam reconhecer-se. Sua música era também, necessariamente, mais simples, de corte desenvolto, não raro com um sabor popular que a tornava atraente, fácil de memorizar, dotada de alto poder de comunicação com todos os tipos de platéia. (Coelho, 2007).

31

“ O ARTESANATO”

32

CAPÍTULO 1 - CARTOGRAFIA DA INVESTIGAÇÃO OU UM PEQUENO GUIA DO USUÁRIO: QUESTÕES, POSIÇÕES, CAMINHOS E LIMITES DA PESQUISA. Ensaiar e perguntar (Nietzsche) .

foi

todo

meu

caminho

Nem tudo o que escrevo resulta numa realização, resulta mais numa tentativa. O que também é um prazer. Pois nem tudo eu quero pegar. Às vezes, quero apenas tocar. Depois o que toco às vezes floresce e os outros podem pegar com as duas mãos. (Clarice Lispector)

1.1

O QUE NOS MOVE? : QUESTÕES A partir do final da década de 1980 são identificadas sensíveis

mudanças na dinâmica política dos conflitos sociais do mundo rural na América Latina, sobretudo, através da emergência de uma espécie de “polifonia política”, pois, percebe-se o surgimento de uma diversidade de novas vozes, de “novos” sujeitos políticos, de “novos” protagonistas que emergem na cena pública e nas arenas políticas. Nesse período começam a ganhar

força

e

objetivação,

em

forma

de

movimentos

sociais,

as

reivindicações de uma diversidade de grupos sociais denominados ou autodenominados povos originários/tradicionais ou, mais recentemente, comunidades tradicionais. Esse conjunto de agentes e forças sociais, historicamente marginalizados e invisibilizados no espaço público, tornam-se protagonistas na luta por direitos e justiça em todo o continente, como sugere a feliz expressão de Eder Sader: “novos personagens entram em cena”. Muitos desses “novos” personagens, agora protagonistas, eram tidos como forças sociais que pertenciam ao passado e que, inevitavelmente, seriam incorporados

ou,

simplesmente,

desapareceriam

no

processo

de

modernização capitalista que a região tem vivenciado nos últimos cinqüenta anos.

Contrariando

esse

diagnóstico,

camponeses,

indígenas,

afrodescendentes, mulheres, operários negam esse diagnóstico e, longe de

33

serem personagens anacrônicos, tornam-se protagonistas da invenção e da construção de outros possíveis futuros. Ganham força os movimentos indígenas em países como a Bolívia, Equador, México, Chile, Brasil; as comunidades afrodescendentes, também historicamente invisibilizados, ganham força e expressão no Brasil, na Colômbia, no Equador; o movimento camponês reinventa-se através das lutas da Via Campesina e, no Brasil, ganha grande destaque a ação do MST. Esses novos-velhos protagonistas emergem no espaço público e inauguram novas agendas e bandeiras de lutas. A “marcha pela Dignidade e pelo Território” organizada pelo movimento indígena boliviano em 1990 representa um dos marcos desse processo. No mesmo ano, no Equador, o movimento indígena equatoriano também organiza uma marcha com o mesmo título ”Marcha pela Dignidade e pelo Território”. Quatro anos depois, em janeiro 1994, o mundo assiste atônito o levante Zapatista em Chiapas, no México, um movimento que trazia, também, como prioridade na sua agenda de luta o direito à dignidade, à autonomia e ao território. No caso brasileiro e, especificamente, da Amazônia, que é o foco da nossa pesquisa, percebemos, a partir do final da década de 1980, a emergência de um conjunto de mobilizações das chamadas “comunidades tradicionais”, como relata-nos com muita riqueza o antropólogo Alfredo Wagner B. Almeida em texto-testemunho dessas emergências: No decorrer dos cinco primeiros meses de 1989 intensificaram preparativos para planos de luta em nível nacional. Reuniram assembléias de delegados e representantes nos chamados “encontros”, ou seja, uma forma superior de luta ou o evento maior de universalização do localizado. Caso fosse necessária uma periodização, poder-se-ia classificar o referido período como “o tempo dos primeiros encontros”. Assim, o I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu foi realizado entre 20 e 25 de fevereiro em Altamira (PA) formalizando protestos contra a construção da usina hidrelétrica de Cararaô e a inundação das terras indígenas. O documento final da assembléia, intitulado declaração indígena de Altamira, foi aprovado por 400 índios, representando cerca de 20 tribos e 10 nações e tendo como observadores trabalhadores rurais da região, isto é, “colonos” e posseiros. O I Encontro dos Povos da Floresta foi realizado entre 25 e 31 de março de 1989 em Rio Branco (AC), juntamente com o II Encontro Nacional dos Seringueiros, definindo um amplo

34

programa de lutas por uma imediata reforma agrária, com a implantação de reservas extrativistas, pela demarcação das terras indígenas e contra a criação de “colônias indígenas” tal como vêm sendo efetivadas, notadamente no âmbito dos projetos especiais da Calha Norte, pelo “fim do pagamento da renda e das relações de trabalho, que escravizam os seringueiros nos seringais tradicionais”, bem como reivindicações para a preservação ambiental, para uma nova política de preços e comercialização, de saúde e de educação das “populações extrativistas”. Este programa foi aprovado por 135 seringueiros e 52 índios, representando trabalhadores extrativistas de 26 municípios do Amapá, Acre, Rondônia, Pará, Amazonas e de uma área de seringais da Bolívia. Como observadores convidados, sem direito a voto, por não serem delegados eleitos em seus povoados e aldeias, participaram 17 seringueiros e 9 índios. Credenciaram-se também junto à secretaria do encontro 267 representantes de entidades governamentais e não governamentais. O I Encontro Nacional dos Trabalhadores Atingidos por Barragens foi realizado em Goiânia (GO), entre 19 e 21 de abril, reivindicando não apenas uma “nova política para o setor elétrico com a participação da classe trabalhadora”, mas também “reforma agrária já” e “demarcação das terras indígenas e das comunidades negras remanescentes de quilombos”. O documento final denominado Carta de Goiânia foi subscrito por 25 entidades, sendo uma central sindical, um pólo sindical e um “movimento” e ainda 6 comissões estaduais de “atingidos por barragens”, 4 “comunidades indígenas” (Kaingang de Irai, Kaingang de Chapecozinho, Ava-Guarani e Pakararu) e 12 entidades de apoio e institutos de pesquisa e documentação. Foi criada no referido encontro a Comissão Nacional de Atingidos. (ALMEIDA, 1994: p. 525) O I Encontro de Atingidos pela Barragem de Tucuruí realizou-se em Belém (PA), discutindo as relações dos chamados “atingidos”, intermediados pelos STRs, junto às prefeituras e à Eletronorte a propósito do cumprimento dos convênios para reparar danos e atender às reivindicações (escolas, postos de saúde). Delegados representantes de 8 STRs (Itupiranga, Tucuruí, Jacundá, Baião, Mocajuba, Cametá, Igarapé-Mirim, Oeiras do Pará), duas colônias de pescadores (Jacundá e IgarapéMirim), dois núcleos de pescadores não formalizados (Cametá e Tucuruí), juntamente com membros do STR de Altamira, da FETAGRI-PA, da CUT tocantina, definiram que a atuação dos STRs deve ser a de fiscalizar a execução das obras e de sua administração. Participaram também do evento 04 entidades de apoio. (ALMEIDA, 1994: p. 525) Na primeira semana de maio foi fundada a Associação das Áreas de Assentamento do Maranhão (ASSEMA), no Vale do Mearim, com a participação de representantes de áreas já desapropriadas por interesse social para fins de reforma agrária. Duas semanas depois, 78 STRs do Maranhão, num “encontro” para definir programas de reivindicações, realizado em São Luís, aprovaram

35

posições de que as ocupações de latifúndios seriam apoiadas pelo movimento sindical. Sublinhe-se que levantamento feito pela FETAEMA indica existirem mais de 300 áreas ocupadas por cerca de 500 mil posseiros no Estado, abrangendo mais de 2 milhões de hectares de terras em conflito. (ALMEIDA, 1994: p. 525-526) Acrescente-se ainda que o III Encontro das Comunidades Negras Rurais do Maranhão realizou-se entre os dias 28 e 30 de julho em Bacabal (MA), com representantes de mais de uma centena das chamadas terras de preto e das áreas de remanescentes de quilombos. Na sua convocatória já se delineiam reivindicações pelo imediato reconhecimento das terras ocupadas pelos remanescentes de quilombolas e por uma reforma agrária imediata. Entidades de apoio como o grupo Negro Palmares Renascendo e Centro de Cultura Negra promoveram o evento. Trata-se do primeiro encontro que trata, a nível local, da aplicação do Art. 68 das Disposições Constitucionais transitórias, referindo-se à titulação definida dos “remanescentes das comunidades de quilombo”. O II Encontro Raízes Negras do Médio Amazonas Paraense realizou-se no período de 30 de junho a 02 de julho de 1989 na comunidade de Jauary, Rio Erepecuru (Oriximiná-PA), coordenado pelo Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (CEDENPA) e organizado junto com os Quilombos de Pacoval, Curuá, Mata, Acupu, Cuminá, Erepecuru, Trombetas e Jauari. A entidade criada para conduzir localmente a luta pelo reconhecimento destas terras de quilombos é a Associação dos Remanescentes de Quilombos de Oriximiná (ARQMO). Ainda em julho de 1989 realizaram-se inúmeras assembléias de mulheres trabalhadoras rurais no Vale do Mearim (MA) e no Bico do Papagaio (TO), objetivando a criação das Associações das Quebradeiras de Coco Babaçu, voltadas fundamentalmente para assegurar o livre acesso aos babaçuais ilegalmente cercados. O I Encontro Interestadual de Quebradeiras do Coco Babuçu somente será realizado, entretanto, em setembro de 1991, em São Luís (MA). (ALMEIDA, 1994: p. 526). Almeida (2005) aponta, como resultado desse processo, um fortalecimento da sociedade civil que se materializa na ação coletiva de diversas formas de associações voluntárias que estão se tornando força social, tais como: União das Nações Indígenas – UNI; Coordenação Indígena da Amazônia Brasileira – COIAB e toda a rede de entidades indígenas vinculadas, que alcança cerca de sessenta entidades; o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco-Babaçu – MIQCB; o Conselho Nacional dos Seringueiros; o Movimento Nacional dos Pescadores – MONAPE; o Movimento dos Atingidos de Barragens – MAB; a Associação

36

Nacional das Comunidades Remanescentes de Quilombo e a rede de entidades a ela vinculada no Maranhão; a Associação das Comunidades Negras Quilombolas do Maranhão – ACONERUQ e, no Pará, a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná – ARQMO; a Associação dos Ribeirinhos da Amazônia, entre outras. Nesse novo contexto, emerge, segundo Gonçalves (2001), a construção de “novas” identidades coletivas surgidas de velhas condições sociais e étnicas, como é o caso das populações indígenas e negras, ou remetendo-se a uma determinada relação com a natureza (seringueiro, castanheiro, pescador, mulher quebradeira de coco) ou, ainda, expressando uma condição derivada da própria ação dos chamados “grande projetos” de modernização implantados na região, como estradas, hidrelétricas, projetos de mineração, entre outros (“atingido”, ”assentado”, “deslocado”). Esses novos movimentos sociais diferenciam-se dos movimentos antecedentes por suas estratégias discursivas e identitárias, pois, na sua constituição como sujeitos coletivos, não mobilizam a auto-identificação de camponês, até então usada como a identidade sociopolítica estruturante dentro

das

arenas

de

lutas

em

décadas

passadas.

Esses

novos

protagonistas apresentam-se através de múltiplas denominações e apontam para a construção de novas e múltiplas identidades e diferentes formas de associação

que

ultrapassam

o

sentido

estreito

das

organizações

camponesas clássicas. Isso não significa uma destituição do atributo político da categoria de mobilização camponês (a constatação mais incontestável disso é a Via Campesina!), mas é inegável que emergências das “novas” denominações/ identidades dos movimentos sociais espelham um conjunto de novas práticas organizativas que traduzem transformações políticas mais profundas na capacidade de organização/mobilização desses grupos em face do poder do capital e do poder do Estado e em defesa de seus territórios (Almeida, 2005). Esses movimentos apontam para um processo de politização da própria cultura e de modos de vida “tradicionais”, ou seja, para um processo de politização dos “costumes em comum”, valorizando a memória, a ancestralidade e os saberes tradicionais na construção das identidades socioculturais e sociopolíticas, afirmando um duplo processo que, ao mesmo

37

tempo, direciona-as para o passado, buscando nas tradições e na memória sua força e apontando para o futuro, sinalizando para projetos alternativos de produção e organização comunitária, bem como de afirmação e participação política. Mas essas (re)configurações identitárias não são gratuitas, são novas estratégias na luta por direitos, formas de garantias de direitos sociais e culturais, notadamente, o chamado “direito étnico à terra”, que assegure a posse coletiva ou familiar das terras e dos recursos naturais. A constituição de novos sujeitos políticos, novos sujeitos de direito vêm redefinindo as táticas e estratégias de luta pela terra na Amazônia, sobretudo, pelo impacto da emergência da questão ambiental e da questão étnica que vem redefinindo o padrão de conflitividade4 e o campo relacional dos antagonismos na região, implicando uma espécie de “ambientalização” e “etnização” das lutas sociais, complexificando a questão fundiária e agrária, foco irradiador dos principais conflitos na região. Essas novas formas de agenciamentos políticos implicam uma ampliação das pautas de reivindicações e a criação de novas agendas políticas. Esses novos movimentos lutam não só contra a desigualdade pela redistribuição de recursos materiais - mas também lutam pelo reconhecimento das diferenças culturais, luta pelo “respeito” e pela “dignidade” dos diferentes modos de vidas configurados nas suas diferentes territorialidades. Desse modo, a constituição desses novos sujeitos dá-se nas e pelas lutas de afirmação de suas identidades culturais e políticas pautadas 4

Carlos Walter Porto-Gonçalves faz uma importante distinção entre conflito e conflitividade que nos parece relevante para compreendermos a dinâmica da Amazônia contemporânea, neste sentido, o autor afirma que: de um ponto de vista metodológico é importante considerar a distinção entre o conflito e a conflitividade, questão que nos colocamos a partir da leitura de E. P. Thompson (Thompson, 1981) com sua crítica ao historicismo e estruturalismo. Enquanto o conflito é a manifestação concreta, empírica, das contradições em ato, a conflitividade nos remeteria às suas condições de possibilidade, isto é, as condições que tornam mais prováveis determinados conflitos do que outros. Isso tem a ver com as conjunturas e, aqui, as questões relativas às escalas de tempo, assim como as escalas geográficas, se impõem. Até que ponto um conflito é local ou supralocal (regional, nacional, mundial) é uma das questões mais sensíveis desse tipo de investigação que estamos desenvolvendo até porque exige um arcabouço teórico complexo que envolva uma concepção simultânea da dinâmica espaço-temporal. (PORTOGONÇALVES, 2010, p. 7)

38

na territorialidade, logo, são lutas pela afirmação de suas identidades territoriais. Almeida (2004) afirma que o sentido coletivo das autodefinições emergentes

na

Amazônia

impôs

uma

noção

de

identidade

à

qual

correspondem territorialidades específicas. São os seringueiros que estão construindo o território em que a ação em defesa dos seringais se realiza. São os atingidos por barragens e os ribeirinhos que estão defendendo a preservação dos rios, igarapés e lagos. E assim sucessivamente: os castanheiros defendendo os castanhais, as quebradeiras, os babaçuais, os pescadores, os mananciais e os cursos d‟água piscosos, as cooperativas, seus métodos de processamento da matéria-prima coletada. De igual modo, os pajés, curandeiros e benzedores acham-se mobilizados na defesa das ervas medicinais e dos saberes que as transformam. (ALMEIDA, 2004 p. 48-9). Assim, podemos verificar que na luta contra os processos de modernização e expansão da fronteira econômica e das frentes de expansão demográfica

sobre

os

territórios

tradicionalmente

ocupados

pelas

“comunidades tradicionais”, os movimentos sociais afirmam a identidade e a territorialidade dessas comunidades. As novas reivindicações territoriais dos povos indígenas, dos quilombolas e outras comunidades negras rurais e das diversas populações extrativistas representam uma resposta às novas fronteiras em expansão. Tais respostas vão muito além de uma mera reação mecânica, na medida em que incluem um conjunto de fatores próprios da nossa época, pois, diante da pressão dos violentos processos desterritorializadores, frutos do avanço das Frentes de expansão na Amazônia, os povos tradicionais sentiram-se obrigados a elaborar novas estratégias territoriais para defender suas áreas. Isso, por sua vez, deu lugar à atual onda de (re)territorializações (LITTLE, 2002; ALMEIDA, 2005). O alvo central dessa onda consiste em forçar o Estado brasileiro a admitir a existência de distintas formas de expressão territorial – incluindo distintos regimes de propriedade – dentro do marco legal único do Estado, atendendo às necessidades desses grupos. As novas condutas territoriais por parte dos povos tradicionais criaram um espaço político próprio, no qual a luta por novas categorias territoriais virou um dos campos privilegiados de disputa. (LITLLE, 2002, p. 6).

39

Nessa busca de afirmação de suas identidades coletivas e de suas territorialidades, é que esses movimentos vêm reivindicando ou mesmo inventando

novos

direitos5

tais

como:

o

reconhecimento

de

terras

indígenas, o reconhecimento de terras das comunidades remanescentes de quilombolas, a criação de reservas extrativistas (seringueiros, castanheiros e outras populações extrativistas), acordos de pesca, entre outros. Trata-se de uma estratégia de luta que vem implicando uma espécie de “outra” reforma agrária na Amazônia6 Os movimentos sociais lutam pelo reconhecimento por parte do Estado de uma outra ordem jurídica, uma matriz de normatividade alternativa que possa garantir as diversas modalidades de territorialização que não se enquadram inteiramente dentro do modelo da propriedade capitalista e do direito liberal individual. Neste sentido, busca-se o reconhecimento de um quadro normativo capaz de reconhecer direitos pautados no uso, na tradição, nos chamados direitos consuetudinário ou “direitos costumeiros”, direitos esses ignorados ou invisibilizados no estatuto jurídico estabelecido. Diante desse quadro, cabe interrogarmos: Por que a questão identitária ganha tanta importância e visibilidade hoje na Amazônia? Qual o papel que “ambientalização” e “etnização” têm na reconfiguração das identidades? Qual a relação entre identidades, territorialidades e direitos nas lutas sociais na Amazônia?

Por que a maioria dos movimentos sociais

5

Ainda que os chamados direitos “novos” nem sempre sejam inteiramente “novos”, na verdade, por vezes, o “novo” é o modo de obtenção de direitos que não passam mais pelas vias tradicionais - legislativa e judicial -, mas provêm de um processo de lutas e conquistas das identidades coletivas para o reconhecimento pelo Estado. Assim, a designação de novos direitos refere-se à afirmação e materialização de necessidades individuais (pessoais) ou coletivas (sociais) que emergem, informalmente, em toda e qualquer organização social, não estando necessariamente previstas ou contidas na legislação estatal positiva (Wolkmer, 2003: 1). 6 Segundo Little (2003) a questão fundiária no Brasil vai além do tema de redistribuição de terras e torna-se uma problemática centrada nos processos de ocupação e afirmação territorial, os quais remetem, dentro do marco legal do Estado, às políticas de ordenamento e reconhecimento territorial. Essa mudança de enfoque não surge de um mero interesse acadêmico, mas radica também em mudanças, no cenário político do país, ocorridas nos últimos vinte anos. Nesse tempo, essa outra reforma agrária ganhou muita força e consolidou-se no Brasil, especialmente, no que se refere à demarcação e homologação das terras indígenas, ao reconhecimento e titulação dos remanescentes de comunidades de quilombos e ao estabelecimento das reservas extrativistas. (Little, 2003:2-3).

40

adota como estratégia política, jurídica e epistêmica a luta por territórios e não, simplesmente, por terra? Como esse processo expressa-se na luta cotidiana das comunidades? Esse campo problemático remete a três eixos de investigação que orientam nossa pesquisa: 1. A (Re)configuração das “velhas”

e a emergência de “novas”

identidades coletivas, a constituição de novos sujeitos protagonistas nas lutas sociais na Amazônia; 2. A

centralidade

do

direito

nas

lutas

sociais

na

Amazônia,

especialmente, a luta pelo exercício ou mesmo a invenção de novos direitos territoriais; 3. A vinculação entre as lutas por direitos étnicos e ambientais e as lutas por reconhecimento de territórios na Amazônia; 1.2

O CAMPO EMPÍRICO. A referência empírica para pensarmos essas questões é o vale do

Tocantins e, mais especificamente, a região conhecida como Baixo Tocantins no Nordeste do Pará, em especial, o município de Cametá.

41

MAPA 1-LOCALIZAÇÃO DO MUNCÍPIO DE CAMETÁ - PARÁ

(FONTE: CORDOVIL, 2008).

42

Esta é uma das regiões de colonização mais antigas da Amazônia. O processo de povoamento do rio Tocantins inicia-se nos séculos XVII e XVIII, efetuado pelos portugueses sob uma lógica geopolítica de defesa do território, bem como por interesses mercantilistas pelas drogas do sertão. É nesse contexto que a ocupação do território inicia-se, particularmente, em 1616, com a fundação de Belém. Posteriormente, outros fortes foram construídos, sempre ao longo dos rios, em posições estratégicas, no sentido geopolítico do controle do vale. O rio Tocantins constituía-se num verdadeiro portal de acesso à região, ligando-a ao território nacional. É na margem

esquerda desse

rio

que,

após

a

fundação de

Belém,

os

colonizadores estabeleceram um núcleo que daria origem, posteriormente, ao que é hoje o município de Cametá. Além de Cametá, foram instalados, progressivamente, outros núcleos de povoamento (Baião Mocajuba, Oeiras do Pará, Limoeiro do Ajuru Tucuruí), configurando um padrão que está intimamente ligado ao rio, que se materializou com a formação dos aldeamentos e vilas, desde o período colonial, e que se amplia e se consolida em função da expansão do povoamento regional com a economia da borracha em fins do século XIX e primeiras décadas do século XX. Assim, ao longo das várzeas do rio Tocantins, emerge um sistema que combina o extrativismo da floresta, a pesca e a agricultura, articulado por meio dos regatões com as vilas e cidades e que, na verdade, foi típico de toda a Amazônia (Gonçalves, 2001). Esse modo de vida, esse padrão de organização espaço-tempo fundamentado numa temporalidade e espacialidade ribeirinha foi dominante na geografia do vale do Tocantins até o final dos anos 1970. A partir desse período, com o avanço da fronteira, começa a emergir um novo padrão espaço-temporal que se conforma com as cidades e os embriões urbanos que surgiram recentemente ou foram reestruturados a partir e ao longo dos grandes eixos rodoviários que rasgaram o espaço regional. Com esse processo, esboça-se uma nova temporalidade ligada a um tempo mais “rápido” da nova dinâmica dos atores hegemônicos que, a partir daí, protagonizam uma nova divisão nacional e internacional do trabalho resultante

da

nova

fase

de

acumulação

do

capital

na

Amazônia,

43

caracterizada pelo deslocamento do capital comercial para o capital industrial e financeiro. No vale do rio Tocantins, esse processo de reestruturação regional tem como fator decisivo o processo de construção da usina hidrelétrica de Tucuruí (UHT). Essa usina alterou profundamente a estrutura espacial e demográfica local, modificando sobremaneira as relações e cadeias que se estabeleciam entre homens e natureza, redefinindo completamente os gêneros de vida e os ambientes espaciais locais (Rocha e Gomes, 2002): A UHT (Usina Hidroelétrica de Tucuruí) atuou como pólo de atração e de reorganização espacial, através de geração e distribuição de energia, valorizando a montante do reservatório hidráulico. A valorização do espaço do entorno do reservatório aumentou os fluxos migratórios e estimulou a formação de um novo padrão de ocupação territorial, reconfigurando o espaço microrregional. As novas relações sociais e espaciais engendradas afastaram o curso natural da evolução do espaço local e microrregional e impuseram novos recortes espaciais, uma nova regionalização. (GOMES E ROCHA, 2002:33-4). Na verdade, a UHT não só barrou o rio, como fragmentou a dinâmica regional diferenciando, de forma contundente, a textura e tessitura do tempo-espaço do Baixo e Médio Tocantins. À montante, municípios como Breu Branco, Goianésia, Jacundá, Novo Repartimento, Itupiranga e Nova Ipixuna tiveram suas áreas alagadas. O impacto ecológico, demográfico e sociocultural foi intenso – novas atividades produtivas e os circuitos de produção e acumulação reestruturam o espaço microrregional a partir do empreendimento; também o intenso processo de migração e urbanização do território e da sociedade redefiniu, em grande parte, os modos de vida “tradicionais”. Por outro lado, a jusante, os municípios de Baião, Mocajuba, Cametá, Limoeiro do Ajurú e Igarapé Miri, entre

outros,

permaneceram

com

uma

dinâmica

sócio-espacial

e

sociocultural marcada por fortes características rurais e ribeirinhas; uma área de mais de dez mil quilômetros quadrados de florestas de terra firme, várzea e ilhas, que mantiveram suas características tradicionais, contudo sofreram os graves efeitos negativos (ecológicos e sociais) da construção da hidrelétrica.

44

A

construção

da

barragem

desencadeou

processos

de

transformação econômica que incidem, de um modo geral, na estrutura produtiva local. A economia, predominantemente agrária e extrativa, foi sendo alterada com a interferência direta e indireta do empreendimento em áreas de uso coletivo, tradicionalmente destinadas ao extrativismo, à pesca, ao cultivo nas várzeas e na terra firme. Assim, esse processo afeta, de maneira dramática, os usos e os sistemas de apropriação tradicionais do território praticados por diferentes grupos sociais: indígenas, colonos, ribeirinhos etc. Portanto, a construção da hidrelétrica de Tucuruí acarretou intensos processos de mobilizações forçadas e compulsórias, o que implicou dramáticas des-territorializações ou precarização dos laços territoriais. Além desses problemas sociais, provocou, ainda, grandes impactos sobre os ecossistemas locais, resultando em graves consequências ambientais. Ao perceberem a ameaça representada pela expropriação de seus bens – terras, benfeitorias - , as populações rurais, ribeirinhas e também urbanas empreenderam uma ação de r-existência como forma de afirmação de sua sobrevivência física, social e política. Inicialmente, a Igreja católica, em especial, a prelazia de Cametá, através das Comunidades Eclesiais de Base (CEB‟s) organizou as populações rurais e ribeirinhas no processo de r-existência e luta contra os impactos da construção da hidrelétrica. Esse processo de organização política vai desdobrar-se na criação e no fortalecimento, especialmente durante a década de 1980, dos sindicatos de trabalhadores rurais e, mais tarde, das colônias de pescadores. Houve também um fortalecimento do Movimento de atingidos por barragem (MAB) através de sua articulação em escala nacional. A partir da década de 1990, com a emergência da “questão ambiental” e da “questão étnica”, os movimentos sociais da região mudam de estratégia incorporando novas estratégias e táticas de luta que se expressam em novas práticas políticas e na construção de novos discursos identitários a fim de garantir acesso a direitos, em especial, o direito à territorialidade, como forma de acesso (e controle sobre) à terra, à água e aos recursos naturais.

45

Diante dessa nova situação e desse novo contexto é que percebemos que há uma clara reconfiguração das formas de organização política

das

classes

subalternas

na

região.

Novas

identidades

vêm

emergindo no espaço público e, com isso, um novo imaginário e uma nova cultura política vêm forjando-se, mas cabe elucidar as linhas de forças que atravessam esse processo. Na região do Baixo Tocantins, nos últimos 10 anos, foram criadas duas reservas extrativistas, reconhecidas e tituladas as terras de pelo menos dez comunidades quilombolas. Têm surgido, em dezenas de comunidades ribeirinhas e de pescadores, iniciativas da criação dos chamados “Acordos comunitários de pesca”. Apesar da diversidade de situações e de experiências, esse conjunto de processos de territorialização das lutas sociais remete a uma nova configuração na forma de organização das estratégias de luta das chamadas comunidades tradicionais na qual se vinculam, claramente, território, identidade

e direito, criando

novos

agenciamentos e novas agendas político-territoriais na região. Essas

mudanças

nas

formas

de

organização

política,

nas

chamadas comunidades rurais e ribeirinhas, especialmente, no município de Cametá, têm sido intensas. Até a primeira metade da década de 1990, o conjunto das forças sociais de origem rural e ribeirinha estava diretamente ligado ao sindicato de trabalhadores rurais, sendo o principal protagonista na organização política das classes trabalhadoras no município. Diga-se, de passagem, esse sindicato chegou a ser considerado o maior sindicato rural do estado do Pará. Lembramos muito bem que, durante um período em que participamos da militância do movimento estudantil no município, durante a segunda metade da década de 1990, a referência maior de organização e luta estava sempre centrada no papel desempenhado pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais - STR, o Partido dos Trabalhadores - PT e, também, nos primeiros vereadores eleitos pelo partido e oriundos do corpo dirigente do sindicato. Na segunda metade da década de 1990, emerge um conjunto de novos sujeitos sociais coletivos que altera o quadro da sociedade civil local e a dinâmica política como um todo. Entre esses novos sujeitos, ganha destaque o surgimento de uma grande quantidade de associações de

46

mulheres ligadas às comunidades rurais e ribeirinhas, organizações nãogovernamentais ligadas à questão de gênero e meio ambiente. Outro elemento que chama atenção, nesse cenário, é a criação de inúmeras associações ligadas às chamadas comunidades quilombolas existentes no município. Nesse cenário, sem dúvida chama atenção a ação dos pescadores e ribeirinhos objetivada na colônia de pescadores, pois, até a primeira metade da década de 1990, a Colônia de Pescadores que, teoricamente, seria o órgão de representação das comunidades ribeirinhas tinha uma direção e uma atuação totalmente desvinculada dos interesses dos pescadores. A expressividade desse órgão de representação dos pescadores era praticamente inexistente, com pouca ou nenhuma participação na vida política do município, sendo que muitos pescadores estavam associados ao sindicato de trabalhadores rurais. Hoje, depois de dezesseis anos, na retomada da direção da colônia por parte dos pescadores - que ocorreu em 1994, período em se inicia um novo ciclo - o que vemos é um cenário completamente diferente. Atualmente, a Colônia de Pescadores é o principal ator político da sociedade civil e o mais atuante e decisivo protagonista nas disputas das arenas políticas

locais,

enquanto,

progressivamente,

o

STR

vem

perdendo

significativamente força e expressão enquanto organização decisiva na vida política do município. Os pescadores artesanais e ribeirinhos, de um modo geral, saem de uma condição de completa marginalidade e invisibilidade para um papel de protagonista; de outro lado, os trabalhadores rurais perderam em grande parte sua capacidade de mobilização política e de afirmação de seus direitos na esfera pública. Porém quais seriam as razões dessa mudança? Quais os processos em escala local e, ainda, em escalas mais amplas que teriam contribuído com essa mudança? Durante o período em que desenvolvemos nossa pesquisa - nos últimos seis anos na região do Baixo Tocantins -, temos constatado, pelos diversos depoimentos e pela observação direta, a seguinte situação: a condição de vida das chamadas comunidades ribeirinhas e dos pescadores tem sofrido sensíveis mudanças no sentido da melhoria da qualidade de vida,

sendo

comum,

nos

comentários

cotidianos,

sobretudo

dos

47

trabalhadores rurais, a seguinte afirmação: “o povo das ilhas está muito bem”, “eles têm tudo”. Essas afirmações referem-se a um conjunto de direitos que se materializam em recursos materiais e políticas públicas que começa pela primeira vez, na história, a chegar até as comunidades ribeirinhas nas regiões de várzea no município de Cametá. Tais conquistas contrastam com o aumento das dificuldades dos trabalhadores rurais que vivem nas áreas de terra firme do município. É como se, de um lado as regiões da várzea, das ilhas habitadas pelas comunidades ribeirinhas e pescadores viessem, progressivamente, melhorando as suas condições de vida e, simultaneamente, as comunidades rurais da terra-firme viessem deteriorando suas condições de vida. Assim, cabe novamente perguntar: quais as razões dessa mudança? Em nossa pesquisa, inicialmente, pretendíamos investigar essas mudanças ocorridas na reconfiguração das lutas sociais, sobretudo, no que se refere à reconfiguração das identidades sócio-políticas dos atores envolvidos e como a emergência “de novas identidades” estaria ligada à afirmação de direitos territoriais. Pretendíamos, então, investigar como as lutas na Amazônia tornaram-se lutas pelo direito ao território. Neste sentido, havíamos definido como caminho investigativo o estudo da criação de uma reserva extrativista no município de Baião chamada Anilzinho, bem como o reconhecimento de comunidades quilombolas no município de Cametá. Além disso, também pretendíamos investigar a criação dos chamados Acordos de Pesca no município de Cametá, pois entendíamos que, apesar da diversidade dessas experiências, havia um pano de fundo comum sobre o qual se pautavam essas experiências e que as mesmas apresentavam uma gramática comum que se traduzia na reconfiguração das identidades e na luta por direitos territoriais. Nesse caminho, queríamos entender como as linhas de força e os processos sociais mais amplos, que atravessam a Amazônia, articulavam-se com lógicas e processos locais e, desse modo, buscaríamos entender as especificidades desses estudos de caso e, ao mesmo tempo, compreender as principais linhas de força que constituem a Amazônia num momento atual. Contudo, ao longo do período do doutorado, as nossas condições materiais (tempo, recursos etc.) tornaram inviável desenvolver o plano de

48

estudo inicial, obrigando-nos a fazer um recorte mais preciso e mais modesto. Dessa forma, abandonamos, nesse momento, a investigação sobre a criação das reservas extrativistas e, também, das lutas por reconhecimento das terras quilombolas, restringindo nosso foco sobre as experiências dos Acordos de Pesca das comunidades ribeirinhas do município de Cametá. Apesar de centrarmo-nos apenas numa única experiência, este trabalho não tem a pretensão de fazer um estudo de caso nos seus moldes clássicos, não estamos trabalhando com uma perspectiva etnográfica sobre as comunidades, pois entendemos que, apesar da riqueza desse tipo de estudo, seu escopo é muito restritivo para a compreensão da dinâmica mais ampla que serve de moldura a esses processos. Neste sentido, entendemos o estudo de caso como uma espécie de caso paradigmático, no sentido que o filósofo italiano Giorgio Agamben (2009) sugere. Para este autor, é possível, metodologicamente, trabalhar com a ideia de que determinados casos empíricos podem exercer um verdadeiro papel de paradigma para a compreensão

de

um

contexto

mais

amplo.

Isso

significa

fugir

metodologicamente de uma lógica dedutiva (do geral para o particular) e, ao mesmo tempo, escapar de raciocínios indutivos (do singular para o geral), ou seja, não queremos fazer do estudo de caso sobre os Acordos de Pesca nas comunidades ribeirinhas no município de Cametá apenas um efeito da lógica mais ampla do que ocorre na Amazônia, do mesmo modo que não queremos também generalizar para a Amazônia elementos que pertencem a uma lógica particular do estudo de caso. O que queremos é que este sirva de uma espécie de caso paradigmático capaz de oferecer elementos de inteligibilidade de um contexto mais amplo através de analogias, iluminações e ressonâncias que nos permitam compreender, de algum modo, as forças que constituem a realidade amazônica hoje. Para entendermos melhor essa a idéia de caso paradigmático a partir da qual essa pesquisa se desenvolve, vale aprofundarmos um pouco mais essa reflexão, neste sentido vale inicialmente destacar que trabalhar com essa idéia significa se distanciar tanto de uma “visão de sobrevôo” quanto de um mergulho vertical num estudo de caso específico. Explicamos melhor essa escolha.

49

Normalmente dividimos as pesquisas a partir de dois modelos completamente

diferentes,

de

um

lado

temos

aquelas

consideradas

pesquisas panorâmicas construindo suas análises a partir de modelos de generalização centrados em raciocínios lógicos-dedutivos, ou seja, que partem do geral para o particular. Essa perspectiva analítica bastante comum na geografia e nas analises sobre a Amazônia permite um alto grau de generalização, mas peca por negligenciar as especificidades das realidades particulares. De

outro

lado, nós temos

tipos

de

pesquisas que estão

concentrados em estudos de casos específicos, marcadas por um mergulho em uma realidade local em busca de suas especificidades, a análise está centrada em raciocínios de natureza lógico-indutivo. Esse tipo de trabalho é muito comum no campo da antropologia com seus estudos etnográficos e também

em

algumas

especialidades

da

sociologia

(estudos

sobre

comunidades, grupos, tribos) esse tipo de pesquisa tem a vantagem de mergulhar em profundidade em uma realidade, contudo, não raramente, negligenciam aspectos fundamentais para a compreensão dessa mesma realidade que estão em processos que se dão em escalas mais amplas. O primeiro tipo de pesquisa de natureza panorâmica e lógicodedutiva produz um tipo de visão que poderíamos chamar, a partir de um dialogo com outros geógrafos, de uma “leitura de sobrevôo” ou de uma “visão de sobrevôo”7, ou seja, uma leitura feita de longe e do alto, que cria 7

As expressões “visão de sobrevôo” e “olhar de sobrevôo” são aqui usadas em analogia à expressão “pensamento de sobrevôo” (pensée de survol), com a qual Maurice Merleau-Ponty criticava, de um ponto de vista fenomenológico, a pretensão de um “saber onisciente” e desenraizado, típico da ciência moderna: “[a] ciência manipula as coisas e renuncia habita-las. Estabelece modelos internos delas e, operando sobre esses índices ou variáveis, as transformações permitidas por sua definição, só de longe em longe se confronta com um mundo real” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 13). Essa crítica merleau-pontiana apresenta evidentes pontos de convergência com as considerações de Hannah Arendt a propósito da “alienação da Terra”, as quais serão recuperadas mais à frente neste texto (e apresenta, ainda, uma fundamental afinidade com o espírito da crítica de Horkheimer e Adorno contida na Dialética do Esclarecimento, publicada muitos anos antes, da qual foram retiradas as duas epígrafes com as quais se abriu o presente texto). A solução para o problema o foi sintetizada pelo filósofo francês em uma bela passagem, bastante marcada por metáforas espaciais: “[é] preciso que o pensamento da ciência – pensamento de sobrevôo, pensamento do objeto em geral – torne a se colocar num “há” prévio, na paisagem, no solo do mundo sensível e do mundo trabalhado tais como são em nossa vida, por nosso corpo, não esse corpo possível que é lícito afirmar ser uma máquina de

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o perigo das abstrações e generalizações frágeis, além disso, esse tipo de visão consegue ver apenas as grandes estruturas hegemônicas que constituem a região. Essa perspectiva não é uma exclusividade de uma leitura sobre a Amazônia, mas uma herança epistêmica, política e metodológica da própria geografia como ciência como bem nos afirma Souza (2007): Tradicionalmente, as profissões espaciais, a começar pela Geografia, procedem a uma espécie de “visão de sobrevôo” e nitidamente a privilegiam enxergando e analisando as sociedades e seus espaços quase sempre “do alto” e “de longe”, como que em uma perspectiva de “vôo de pássaro” ou, no caso de fenômenos representáveis, por meio de escalas cartográficas muito pequenas (de planisfério, por exemplo), como um distanciamento ainda maior. Essa perspectiva é, de certa forma, aquela do olhar do Estado, ou do olhar que é próprio do Estado (e basta conhecer a história da disciplina para compreender que decerto isso não é mera coincidência); considerar os homens e os grupos “de longe”, sem adentrar as suas casas, sem mergulhar em seu quotidiano, sem sentir os odores da pobreza, sem ouvir os sons do desespero ou os gritos da libertação. É desse ângulo que pode-se dizer que muitos pesquisadores têm negligenciado (ou banalizado) aspectos importantes do estudo dos produtores do espaço, mesmo no caso em que abraçam uma perspectiva de crítica social (anticapitalista e de oposição ao Estado capitalista). (SOUZA, 2007: 103-104). Essa “leitura de sobrevôo” vem sendo produzida a partir de um lócus de enunciação do Estado e do capital, que sempre lançaram um olhar estratégico sobre o conjunto da região escrutinando o terreno na busca dos recursos e das melhores condições da produção do espaço estatal e de um espaço do capital, com especial fúria nos últimos quarenta anos onde a intervenção do estado na Amazônia foi intensa e devastadora. Grande parte do conhecimento científico produzido pela geografia brasileira sobre Amazônia foi produzida nesse contexto a partir desse lócus de enunciação hegemônico.

informação, mas esse corpo atual que chamo meu, a sentinela que se posta silenciosamente sob minhas palavras e sob meus atos” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 14) ( SOUZA,2007:104).

51

Os “loci de construção discursiva” da Geografia (...), ou seja, os ambientes a partir dos quais seus discursos foram elaborados, sempre foram, predominantemente, o Estado e, secundariamente, o mercado capitalista; quanto aos seus “loci de referência discursiva”, isto é, as instituições ou sujeitos coletivos (e seus espaços) que se convertem em objeto de conhecimento, eles sempre foram, predominantemente, também o Estado e o mercado – mesmo que, desde a década de 70, a referência ao Estado e ao capital seja, muitas vezes, para denunciar e objetar. Raramente o “locus de referência discursiva” da Geografia (...) foram ou tem sido os movimentos sociais. Ainda mais raramente foram ou tem sido os movimentos sociais o “lócus de construção discursiva” dos geógrafos (...). Isso tem sido, justamente, ao mesmo tempo uma causa e uma conseqüência da “visão de sobrevôo”. (SOUZA, 2007: 105-106) Para fugir de aprisionamento epistêmico e metodológico é fundamental deslocar o locus de enunciação e escalas de análise, pois a “visão de sobrevôo” e a “alienação da terra” mostram-se segundo Sousa (2007) como uma limitação epistemológica em sua plenitude, por isso o autor se pergunta: (...) como interrogar, questionando criticamente mas sem arrogância, o discurso dos atores e as palavras no contexto quotidiano dos discursos, sem adentrar os “mundos da vida”, sem explorar o senso comum e suas contradições, sem descer das alturas que permitem a perspectiva “vôo de pássaro” e o tratamento em escala global, nacional, regional, e mesmo local, chegando à escala do pequeno assentamento ou da habitação, cartograficamente traduzível por escalas como 1:1.000, 1:500 e até maiores? Como adentrar os “mundos da vida” sem descer a escala geográfica (....) dos “nanoterritórios” – ou seja, à escala das casas, das praças, das ruas, das fábricas? Sem descer à escala das pessoas amontadas ao relento nas calçadas ou embaixo dos viadutos, à escala das celas e dos diversos espaços de uma penitenciária, à escala da faina diária dos ambulantes, à escala dos espaços do trabalho das prostitutas fazendo seu trottoir noturno?... Não basta chegar ao nível “microlocal”, ao nível do bairro ou do sub-bairro: pois, nessa escala, o “intraurbano” permanece apreendido excessivamente “do alto”, “de cima” – como se, mesmo denunciando-se o Estado, fosse emulado (insista-se) o olhar que é próprio do Estado, que é um “olhar de sobrevôo”. E, a partir de um “olhar de sobrevôo”, mesmo o trabalho de campo (apanágio da Geografia desde sempre!), com a observação in loco e as entrevistas ou questionários, tenderão a não permitir que se mergulhe no quotidiano. Bate-se porta, mas não se adentra a casa; teme-se (teme-se?) adentra-la. Será por acaso que pesquisas participantes são ainda raras na Geografia?... Será por acaso que

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a pesquisa-ação (recherche-action) desconhecida?7... (SOUZA, 2007:110-111). Essa

visão

foi

compartilhada

por

é

muitos

quase geógrafos

uma que

estudaram a realidade amazônica, onde o foco analítico quase sempre teve como protagonista o Estado e o grande capital, e os impactos do processo de modernização ocorridos na região nos últimos quarenta anos. Havia um acentuado destaque a dimensão econômica da produção social do espaço, mas esse assento nas estruturas apagava a ação e as experiências de outros sujeitos protagonistas da realidade amazônica, como é o caso das comunidades tradicionais e dos movimentos sociais. O que pretendemos fazer é um deslocamento dessa perspectiva de uma geografia fundada exclusivamente numa “visão de sobrevôo”, isso significa mudar a escala de análise, saindo da grande escala para escalas menores capaz de identificar e reconhecer outros processos e outros agentes no espaço Amazônico. Além da mudança de escala é necessário mudar o lócus de enunciação, fraturar o lócus hegemônico de um conhecimento produzido a partir da perspectiva do Estado e do capital, para a perspectiva do conhecimento sobre, a partir e com as comunidades e os movimentos sociais. Mas

essa

mudança

também

significa

um

deslocamento

metodológico dos processos de produção social do espaço para as diferentes formas

de

governo

no/do

espaço,

tendo

como

conseqüência

um

deslocamento da centralidade do conceito de trabalho como centro gravitacional de uma leitura do espaço para os conceitos de poder e de ação política, pois há diferenças significativas entre os conceitos de trabalho e ação8. O conceito de ação política e de poder permite uma leitura mais

8

Note-se que ênfase sobre a “produção do espaço” (em contraposição aos estudos que primavam pela descrição da organização espacial e negligenciavam a consideração dos agentes modeladores do espaço e seus papéis) não é, por si só, garantia suficiente de que as relações sociais serão adequadamente consideradas. Guardando a distinção ressaltada por Hannah Arendt (1983) entre o trabalho (que é a atividade de fabricar coisas, em que os homens estabelecem relações entre si mediadas pelas coisas ou, antes, pela fabricação das coisas) e a ação (que é a atividade política que os homens estabelecem entre si diretamente), pode-se indagar que mesmo a literatura assinada por geógrafos de formação nas últimas três décadas não seria, majoritariamente, supervalorizado o trabalho e negligenciado a ação, tendo por “filtro” ou “coador” um modo um tanto estreito de apreender o espaço e a sua “produção” ( SOUZA, 2007, p. 111).

53

ampla da dimensão conflitiva do espaço e ao mesmo tempo permite uma análise mais complexa da ação social, como conseqüência uma nova leitura do sujeito e do agente. A partir desse registro, o sujeito não é somente aquele que trabalha e que produz, mas também aquele que governa, domina e resiste. Mas esse deslocamento não significa cairmos num outro extremo de uma visão que compreendemos ser problemática, que é da realização de estudos pontuais e localizados de caráter etnográfico que vem sendo realizados com muita freqüência hoje na Amazônia. Esses estudos sobre comunidades tradicionais e movimentos sociais normalmente tem um caráter antropológico muito forte e tem se constituído uma rica produção dos

estudos

de

caso

sobre

comunidades

quilombolas,

comunidades

ribeirinhas, acordos de pesca, reservas extrativistas, etc. Para precisar melhor o que estamos chamando pesquisas com o desenho assentados nos chamados “estudos de caso” vale a pena fazer uso das palavras de Goldenberg (2009): O termo estudo de caso vem de uma tradição de pesquisa médica e psicológica, na qual se refere a uma análise detalhada de um caso individual que explica a dinâmica e a patologia de uma doença dada. Este método supõe que se pode adquirir conhecimento do fenômeno estudado a partir da exploração intensa de um único caso. Adaptado da tradição médica, o estudo de caso tornou-se uma das principais modalidades de pesquisa qualitativa em ciências sociais. O estudo de caso não é uma técnica específica, mas uma análise holística, a mais completa possível, que considera a unidade social estudada como um todo, seja um indivíduo, uma família, uma instituição ou uma comunidade, com o objetivo de compreendê-los em seus próprios termos. O estudo de caso reúne o maior número de informações detalhadas, por meio de diferentes técnicas de pesquisa, com o objetivo de apreender a totalidade de uma situação e descrever a complexidade de um caso concreto. Através de um mergulho profundo e exaustivo em um objeto delimitado, o estudo de caso possibilita a penetração na realidade social, não conseguida pela análise estatística. (GOLDENBERG, 2009:33-34). Esses estudos têm apresentado várias contribuições, contudo, tem sérios limites no que se refere à compreensão de processos em escalas mais amplas, pois a pulverização desses estudos fragmenta e mutila uma interpretação de conjunto da realidade da Amazônia, tão necessária do

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ponto de vista estratégico das próprias comunidades e dos movimentos sociais. Para evitar cair no perigo de adotar perspectivas extremas, ora, adotando “uma visão de sobrevôo”, ora, mergulhando cegamente no estudo de caso, vale a advertência de Souza (2007): Para evitar mal entendidos: não se pretende sugerir que “olhar de longe” seja sempre ou absolutamente algo ético-politicamente reprovável. Pensar assim equivaleria a incorrer em um obscurantismo de colorido demagógico, de vez que o “olhar distanciado” permite que se ganhe uma perspectiva que é imprescindível e insubstituível: aquela que permite uma “noção de conjunto”, que faculta a apreensão das “grandes linhas”... enfim, que permite trabalhar com as escalas da estratégia.(...) O problema reside em entronizar ou mesmo em adotar com exclusividade o “olhar de longe”. E a solução, por conseguinte, não consiste em substituir meramente, de maneira absoluta, o “olhar de longe” pelo “olhar de perto”, pelo “mergulho do quotidiano”, mas sim em combinar as escalas (de análise e de ação) de modo a não abrir mão de nenhuma, nem mesmo da dos “nanoterritórios” e dos pequeníssimos lugares quotidianos, tanto quanto combinar os olhares – o de perto e o de longe, aquele que permite “colocar-se de fora” (e à distância) com aquele que exige “estar dentro”. Assim procedendo, o “olhar de longe” será redimido de sua arrogância por meio do entrosamento solidário com o “olhar de perto/de dentro”. (SOUZA, 2007: 111). Mas

essa

questão

vai

para

além

do

jogo

escalar

e

mutiescalaridades dos fenômenos, tendo haver de maneira mais ampla, com a natureza dos processos cognitivos que nos mobilizamos na produção de uma pesquisa, em que nos deparamos diante da escolha em trabalhar com uma lógica dedutiva ou indutiva. Normalmente como pesquisadores, somos interpelados com o dilema de horizontalizar ou verticalizar nossa análise,

ou

fazemos

abordagens

panorâmicas

de

uma

temática

ou

escolhemos um estudo de caso não havendo muita saída além desses caminhos. Mas o que buscamos nessa tese foi tentar fugir dessa dicotomia entre dedução/indução, entre um estudo mais amplo e universal e o estudo de caso, para isso, entendemos que é possível, seguindo as indicações do filosofo italiano Giorgio Agamben (2009), desenvolver estudos a partir da construção de casos paradigmáticos, isto significa dizer, que é possível estudar certos casos exemplares de determinados fenômenos sociais que devido

a

sua

importância,

e

representatividade,

possam

servir

de

55

paradigmas que iluminam a compreensão de realidades mais amplas, não pelo simples raciocínio dedutivo, mas por analogias e iluminações9. O filosofo italiano mostra que a noção de paradigma está diretamente ligada a idéia de exemplaridade, ou seja, o paradigma é algo que serve de exemplo para a compreensão do conjunto de fenômenos. É neste sentido, que Agamben mostra que autores como Michel Foucault apesar de trabalhar com casos específicos como, por exemplo, o estudo sobre a organização do poder materializado no panótipo não se restringia a essa

realidade

especifica,

o

panótipo

era

uma

espécie

de

caso

paradigmático para a compreensão das relações de poder e disciplina da modernidade ocidental européia. Segundo Aganbem (2009, p.23) para Foucault o panóptipo é um modelo generalizável de funcionamento do poder, pois o panoptismo era um modelo generalizável de funcionamento e um princípio de conjunto. Como tal, é uma figura de tecnologia do poder político que pode e deve dissociar-se de seu uso específico, pois não é só um “edifício onírico”, e sim um “diagrama de um mecanismo de poder elevada a sua forma ideal” (p.23). Funciona, em resumo, como um paradigma em sentido próprio: um objeto singular que, valendo para todos os outros da mesma classe, define a inteligibilidade do conjunto do qual faz parte que, ao mesmo tempo, constitui (Aganbem, 2009). É desse mesmo modo que Agamben (2009) utiliza na sua leitura sobre

a

realidade

política

contemporânea

determinados

casos

paradigmáticos, como é o caso do campo, do estado de exceção, do mulçumano10, estes são casos exemplares, que segundo o filosofo italiano 9

Mientras la inducción procede, entonces, de lo particular a lo universal y la deducción de lo universal a lo particular, lo que define al paradigma es uma tercera y paradójica espécie de movimiento, que va de lo particular a lo particular. El ejemplo constituye una forma peculiar de conocimiento que no procede articulando universal y particular, sino que permanece em el plano de este último. El estatuto epistemológico Del paradigma se vuelve evidente solo si, radicalizando la tesis de Aristoteles, se comprende que pone em cuestión la oposición dicotômica entre lo particular y lo universal que estamos habituados a considerar como inseparable de los procedimientos cognoscitivos y nos presenta uma singularidad que no se deja reducir a ninguno de los dos términos de la dicotomia. El régimen de su discurso no es la lógica, sino la analogia, cuya teoria há reconstruído Enzo Melandri en un libro ya clásico. Y el análogon, que este produce, no es ni particular ni general. De aqui su valor especial, que intentaremos comprender (Agamben, 2009, p.14). 10

En mis investigaciones He debido analizar figuras – el homo sacer y el musulmán, el estado de excepción y el campo de concentración – que son, por

56

ilumina de uma maneira mais ampla um conjunto dos processos políticos do mundo contemporâneo. Este autor sintetiza algumas características da ideia de paradigma: El paradigma es una forma de conocimiento ni inductiva ni deductiva, sino analógica, que se mueve de la singularidad a la singularidad. Neutralizando la dicotomia entre lo general y lo particular, sustituye la lógica dicotómica por un modelo analógico bipolar. El caso paradigmático deviene tal suspendiendo y, a la vez, exponiendo su pertenencia al conjunto, de modo que ya no es posible separar em él ejemplaridad y singularidad. El conjunto paradigmático no está jamás presupuesto a los paradigmas, sino que permanece inmanente a ellos. No hay, en el paradigma, un origem o una arché: todo fenômeno es el origen, toda imagen es arcaica. La historicidad Del paradigma no está en la diacronia ni en la sincronia, sino en un cruce entre ellas. (AGAMBEN, 2009: 42). Sem a pretensão de nos compararmos a Foucault e Agamben, mas inspirado nessa idéia, o que pretendemos realizar nessa tese é uma análise que escape da dualidade entre uma lógica dedutiva que parte do geral para o particular, ou seja, da Amazônia como um todo para a realidade especifica das comunidades ribeirinhas de Cametá, bem como evitar também uma lógica indutiva, que parte da realidade específica das comunidades ribeirinhas do município de Cametá e generaliza para toda a Amazônia.

Entendemos

que

uma

análise

das

chamadas

lutas

por

reapropriação social da natureza por parte das comunidades tradicionais, como por exemplo, a luta pela criação de reservas extrativistas, ou a luta pelo reconhecimento de terras quilombolas e ainda a construção e o reconhecimento dos acordos comunitários de pesca, exercem a condição de casos exemplares, casos paradigmáticos da dinâmica política e territorial da Amazônia

contemporânea,

ou

seja,

mesmo

que

sejam

realidades

específicas, eles têm a densidade de elementos que constitui as principais linhas de forças que atravessam a realidade da região hoje. Desse modo, o cierto, aunque em diversa medida, fenômenos históricos positivos, pero que eran tratados em dichas investigaciones como paradigmas, cuya función era la de constutuir y hacer inteligible la totalidad de um contexto histórico-problemático más vasto (Agamben,2009:13).

57

estudo de um caso paradigmático ilumina o entendimento do conjunto da realidade amazônica e permite um diagnóstico mais amplo do que a realidade das comunidades ribeirinhas de Cametá que, apesar de uma realidade singular, define a inteligibilidade do conjunto do qual faz parte e que, ao mesmo tempo, a constitui. 1.3

O CAMPO TEÓRICO. Os movimentos [sociais] são um sinal. Não são apenas produto da crise, os últimos efeitos de uma sociedade que morre. São, ao contrário, a mensagem daquilo que está nascendo. Eles indicam uma transformação profunda na lógica e nos processos que guiam as sociedades complexas. Como os profetas, “falam à frente”, anunciam aquilo que está se formando sem que ainda disso esteja clara a direção e lúcida a consciência. A inércia das velhas categorias do conhecimento pode impedir de ouvir esta palavra, e de desenhar, com liberdade e responsabilidade, a ação possível (...) Os movimentos contemporâneos são profetas do presente. Não têm a força dos aparatos, mas a força da palavra. Anunciam a mudança possível, não para um futuro distante, mas para o presente da nossa vida. Obrigam o poder a tornar-se visível e lhe dão, assim, forma e rosto. Falam uma língua que parece unicamente deles, mas dizem alguma coisa que os transcende e, deste modo, falam para todos. (MELUCCI, 2001: 21).

Alberto Melucci afirma que os movimentos sociais são uma espécie de profetas do presente. Dos sons das batalhas e das lutas desses movimentos ecoam vozes que anunciam o futuro, suas estratégias de luta, suas linguagens, suas demandas, suas agendas, suas formas de manifestação, suas bandeiras, seus gritos de ordem. São sinais e indícios que nos mostram as principais contradições de nossas sociedades e sinalizam para as injustiças mais contundentes de nossos tempos. É a partir dos sons e das luzes que produzem as resistências do nosso tempo que podemos ver os rastros e os rostos dos aparatos de poder, ou, como sugere Michel Foucault (1995), se quisermos entender as formas de dominação do nosso tempo, temos que olhar para as diferentes formas de resistências. A forma como se resiste revela os meios pelos quais se domina em uma determinada sociedade. Mas será que estamos ouvindo essas vozes? Temos conseguido decodificar as mensagens que as lutas do nosso tempo anunciam-nos?

58

Temos conseguido interpretar os sinais e os indícios que os movimentos sociais apontam-nos? Estamos preparados para ver estas novas lutas que vêm emergindo nas últimas décadas na América Latina e na Amazônia? Estamos preparados para ver o novo mundo que se insinua diante dos nossos olhos? Ver o “mundo novo” parece-nos sempre um grande desafio como sugere Ítalo Calvino: Descobrir o Novo mundo era uma empresa bem difícil, como todos nós sabemos. Mas, uma vez descoberto o Novo Mundo, ainda mais difícil era vê-lo, compreender que era novo, todo novo, diferente de tudo o que sempre se esperou encontrar como novo. E a pergunta mais natural que surge é: se um Novo Mundo fosse descoberto agora, saberíamos vê-lo? Saberíamos descartar de nossa mente todas as imagens que nos habituamos a associar a expectativa de um mundo diverso (o da ficção científica, por exemplo) para colher a verdadeira diversidade que se apresentaria aos nossos olhos? (...) Tal como os primeiros exploradores da América não sabiam em que se manifestaria uma negação de suas expectativas ou uma confirmação de semelhanças notórias, do mesmo modo também poderíamos passar ao lado de fenômenos nunca vistos sem nos dar conta disso, porque nossos olhos e nossas mentes estão habituados a escolher e a catalogar apenas aquilo que entra nas classificações assentadas. Talvez um Novo Mundo se abra aos nossos olhos todos os dias e não o vejamos. (CALVINO, 2010: 17-18) Como lidar com o novo? De que forma podemos olhar as experiências novas que surgem diante de nós? Parece que encarar o novo enquanto novo é uma tarefa árdua e difícil, como sugere Ítalo Calvino, pois temos a tendência - por medo ou por incapacidade - de ignorar o que é novo ou quando não o ignoramos, nós lidamos com o novo a partir de nossos antigos referenciais e valores, catalogando o desconhecido, o diferente a partir de nossas familiares formas de classificação. Desse modo, tendemos a atribuir sentido e significado ao novo a partir do velho e, com isso, não temos capacidade e sensibilidade para encará-lo como tal. Por isso faz-se necessária uma reformulação do olhar para que este seja capaz de ver as lutas e sub-versões de nosso tempo. Para isso é necessário também sub-versões epistêmicas, apesar dessa tarefa não ser nada fácil como alerta-nos Ana Esther Ceceña:

59

A experiência nos ensinou que as subversões epistemológicas são sempre difíceis de fazer e de assegurar não só por causa das barreiras com que as circunda o pensamento conservador, mas porque antes de serem presas nos conceitos, fogem provocando novas subversões. De qualquer maneira, a construção de novos conceitos e novos modos de olhar a vida é iniludível como para permitir-lhes saírem de velhas prisões. Não haverá subversão possível se não abranger o pensamento, se não inventar novos nomes e novas metodologias, se não transformar o sentido cósmico e o senso comum que, como é evidente, são construídos na interação coletiva, fazendo e refazendo a sociabilidade. (CECEÑA, 2008: 11).

Compreender

as

diversas

formas

de

luta,

insurreições

e

subversões que ganharam força e intensidade nas últimas duas décadas na América Latina, exige uma renovação do pensamento ou, como sugere Ana Esther Ceceña (2008), uma sub-versão epistemológica, pois, para a autora, não haverá sub-versão possível se esta não abranger o pensamento, se não inventar novos nomes e novas metodologias, se não transformar o sentido cósmico e o senso comum. Isso significa fugir do aprisionamento de velhos esquemas interpretativos, das categorias e dos conceitos que envelheceram e que não são capazes de tornar inteligíveis as experiências emancipatórias do presente e que, por isso mesmo, tendem a invisibilizar ou descredibilizar as lutas do nosso tempo e, desse modo, como sugere Boaventura de Souza Santos (2007), desperdiçar as experiências de lutas em curso. Esse desperdício das experiências leva-nos a fazer uma leitura fatalista na qual não há alternativas para a construção de um projeto de emancipação no mundo presente. É importante ressaltar que o novo apresenta-se de várias maneiras e com vários sentidos. Para compreendermos o movimento que se insinua diante de nós, precisamos operar com essa complexidade do novo. Nesse sentido, precisamos de uma compreensão mais refinada sobre a emergência do novo nas abordagens dos fenômenos sócio-espaciais. Nessa perspectiva, vale a pena um diálogo com as reflexões de Carlos Vainer (2005)11. Segundo esse autor, existem duas formas em que o novo apresenta-se aos olhos do pesquisador em Ciências Sociais. 11

Vainer (2005) utiliza essa reflexão para tratar da questão migratória, em especial, sobre a relação entre violência e migração.

60

A primeira seria a emergência concreta e efetiva, diríamos “ontológica” de processos, práticas, sujeitos, instituições, escalas, formas, funções e significados que afetam e reconfiguram as estruturas, as ações, as morfologias e as representações de uma certa ordem sócio-espacial. A segunda forma de emergência do novo ocorre através de uma reconfiguração de nossa capacidade perceptiva: “é como se determinados processos ou práticas presentes, desde há muito tempo, na realidade social, viessem à tona. É como se aquilo que esteve por um longo tempo situado numa zona de sombra - algum ponto cego da teoria - ganhasse visibilidade”. (VAINER; 2005: 254). Para Vainer, essa última forma de manifestação do novo tem um caráter especial, pois sinaliza para algo que estava fora do horizonte teórico-conceitual. A questão é: Por que determinadas dimensões do mundo real, antes invisíveis, tornam-se visíveis? Vainer (2005) fala de duas possibilidades para responder a questão acima. A primeira tem a ver com o objeto, com a natureza qualitativa e quantitativa do objeto analisado; e a segunda, com a natureza qualitativa do olhar, uma reconfiguração do olhar que inaugura nos horizontes sobre o objeto analisado. Assim, qualificando de forma mais matizada, teríamos não duas, mas três formas de manifestação do novo, a primeira ligada a mudanças na “realidade concreta” e outras duas ligadas à mudança no campo de nossa percepção teórica sobre a realidade: A primeira forma de pensarmos o novo tem uma relação com a emergência na “realidade concreta” de determinados fenômenos sócioespaciais

e

sócio-políticos

que

são

inéditos,

próprios

de

um

certo

período/momento da história, ou, pelo menos, nas suas expressões fenomênicas. É o caso da incorporação do conceito de território pelo Estado nas políticas públicas ou da irrupção dos novos movimentos sociais latinoamericanos como movimentos indígenas, movimentos quilombolas e das chamadas comunidades tradicionais. Movimentos nos quais as questões étnico-raciais, de gênero, que envolvem as questões ecológicas, ganham fundamental importância e materializam-se como lutas pelo direito ao território. Esses são fenômenos efetivamente novos em relação a outros momentos da história.

61

A segunda forma em que se expressa o novo tem a ver com a densidade/expressividade histórica de determinados fenômenos sócioespaciais, ou seja, como determinados processos, práticas, escalas e sujeitos mudam sua importância quantitativa e qualitativa em determinadas conjunturas/períodos

e

em

determinados

espaços/regiões.

Certos

fenômenos como, por exemplo, as lutas de resistências contra as formas de dominação étnico-raciais têm uma longa duração de existência na história da modernidade/colonial, contudo, durante um longo tempo, não tinham tanta importância/expressividade como têm hoje no âmbito mais geral das lutas sociais na América Latina e, por isso, muitas vezes permaneciam numa zona de sombra, num ponto cego da teoria social. Hoje, todavia, esses fenômenos intensificaram-se e generalizaram-se, ganhando maior visibilidade no momento atual. Isso obriga-nos a rever determinados quadros teóricos e analíticos para incluí-los como fatores relevantes para a compreensão da realidade sócio-espacial e sócio-política da América Latina. Já a terceira forma em que se apresenta o novo, não tem a ver com mudanças no campo da “realidade concreta” dos fenômenos sóciopolíticos, mas sim com a nossa capacidade de percepção dos mesmos. Trata-se de mudanças no campo do pensamento, de novas sensibilidades epistemológicas e de novos olhares que dão visibilidade e valorização analítica a determinadas dimensões, processos e práticas sócio-espaciais que resultam não somente da maior densidade histórica numa determinada conjuntura, mas da constituição de novos olhares. Nós diríamos de novas epistemes que deslocam, re-significam e inauguram novas capacidades perceptivas que iluminam certas problemáticas obliteradas, obscurecidas em determinados quadros teórico-conceituais. Questões que permaneciam, até o momento, num ponto cego de certas visões são agora iluminadas a partir das criações de novos instrumentos conceituais ou mesmo práticas sociais,

dando

visibilidade

e

permitindo

reconhecer/identificar

certos

problemas antes ignorados. Como parece ser o caso dos movimentos sociais, políticos e culturais que sinalizam, anunciam e denunciam sobre determinadas formas de dominação, a exemplo dos movimentos feministas, mas também dos movimentos anti-racismos, que, com suas práticas, inauguram novas perspectivas epistêmicas e políticas.

62

O novo apresenta-se com toda essa complexidade na realidade latino-americana e, especialmente, na realidade da Amazônia. Isso está expresso nas características dos novos movimentos sociais. Mas quais são as características de novos atores protagonistas? Num diálogo com Raul Zibechi (2005) e Boaventura de Souza Santos (2008), buscaremos caracterizar os movimentos sociais que emergiram nas últimas duas décadas na América Latina buscando os elementos que distinguem esses movimentos daqueles de épocas passadas. Apesar da diversidade desses movimentos, eles compartilham algumas características e alguns traços em comum, dos quais vale destacar: a) As novas lutas emancipatórias e os novos movimentos sociais, hoje presentes na América Latina, trazem como traço marcante na sua constituição uma grande diversidade de origens sociais, culturais, étnicas, raciais e até civilizatórias, que se expressam através de várias linguagens, várias narrativas, vários imaginários e também várias cosmologias. Isso implica uma grande pluralidade de sujeitos coletivos protagonistas. Uma característica marcante desses novos movimentos é que estes têm, no centro de sua ação e de seus discursos, uma politização da cultura e uma revalorização das memórias, das tradições comunitárias, da ancestralidade, expressas através da afirmação das múltiplas identidades e diferenças étnicas, de gênero, ambientais, entre outras. A noção de comunidade é retomada como uma espécie de código ético e político mobilizado estratégica e performaticamente na construção de identidades culturais e sócio-políticas (indígenas, afrodescendentes, camponeses, mulheres etc.); b) Uma característica desses movimentos que vale a pena destacar tem sido o papel ativo que as mulheres desempenham no seio dessas novas formas de lutas sociais. Seja no movimento camponês, operário ou indígena, é cada vez mais decisiva a atuação das mulheres criando novas estratégias e inaugurando novas agendas, que

entrelaçam

a

questão

de

gênero com

questões

étnicas,

ambientais, agrárias, criando um complexo emaranhado de ideias e

63

práticas emancipatórias que desafiam as antigas formas de conceber a emancipação social; c)

Esses movimentos colocam como desafio a construção de uma ideia de cidadania e de justiça que seja capaz, simultaneamente, de pautar-se

na

igualdade

e

na

valorização

das

diferenças.

As

experiências emancipatórias contemporâneas, na América Latina, mostram-nos que a agenda e as pautas de lutas dos movimentos sociais estão referenciadas, simultaneamente, nas lutas por uma maior redistribuição material dos recursos, ou seja, luta por maior igualdade

(luta

contra

exploração,

privação

e

marginalização

socioeconômica), mas também por demandas pelo reconhecimento das diferenças étnico-raciais, sexuais, religiosas, lutas contra as formas

de

discriminação,

desrespeito

e

preconceito

contra

determinados grupos sociais; d) Outra característica importante é a busca pela construção de uma autonomia política e econômico-produtiva desses movimentos. Estes buscam, através das mais diversas formas alternativas de produção, de economias solidárias, a construção de sua autonomia material e simbólica em relação às forças do mercado, mas também em relação ao Estado e a outros setores da sociedade civil, como os partidos políticos; e) Esses novos movimentos sociais têm como característica marcante o surgimento

de

novas

formas

e culturas de

organização, que

ultrapassam os marcos tradicionais do sindicalismo, do partido. Assim,

surgem

diferentes

formas

de

associativismos,

comunitarismos, redes, “unidades de mobilização”, que combinam diferentes formas de organização e graus de institucionalização das ações coletivas, desafiando nossa capacidade de diagnóstico das novas experiências emancipatórias em curso; f) Os novos movimentos sociais têm outra característica marcante: a busca por uma espécie de desmercantilização das relações sociais, buscando afirmar novas práticas de produção e de comércio, fundadas

em

formas

de

organizações

solidárias,

populares

e

cooperativas, bem como a valorização de formas alternativas e não

64

mercantis

(familiares,

comunitárias,

cooperativas

etc.)

de

reapropriação social da natureza, dos recursos naturais e dos meios de produção em geral; g) Nas ações desses novos movimentos sociais, há um intenso processo de valorização material e simbólica do espaço. Isso expresso através do papel estratégico que os movimentos dão à terra, ao território e às territorialidades, como fundamento das estratégias de afirmação de direitos e da autonomia dos povos e comunidades. Assim, o território e o lugar tornam-se referência material e simbólica de vida, de identidade e resistência para esses novos protagonistas na América Latina. Nesse sentido, vem ocorrendo o que poderíamos chamar

de

uma

territorialização

das

lutas

sociais.

Tanto

os

movimentos rurais (camponeses, indígenas e afrodescendentes) como os movimentos urbanos (piqueteiros, sem-teto, hip-hop, entre outros)

têm

como

características

fundamentais

a

luta

pela

apropriação física e simbólica dos espaços, pois, segundo Raul Zibechi (2005), “é a partir dos seus territórios que os novos atores elaboram projetos de longo alcance, entre os quais se destaca o de produzir e reproduzir a vida”. Assim, podemos afirmar que as novas lutas sociais são, sobretudo, lutas territoriais; h) Mais uma característica relevante desses movimentos sociais é a capacidade de formar seus próprios intelectuais, de construir projetos educacionais

fundados

nas

suas

necessidades,

experiências

e

projetos. A busca pela autonomia passa pela autonomia intelectual, valorização dos chamados “saberes locais”, “saberes tradicionais”, pois as lutas que esses movimentos pautam ultrapassam a esfera política em muitos aspectos, trata-se de uma luta simbólica pela afirmação de novas ideias, de novas ideologias, de novos conceitos. As lutas passam pela criação de novas categorias de percepção da realidade, capazes de tornar legítimos o discurso e a ação desses movimentos. Nesse sentido, a luta é, ao mesmo tempo, uma luta política e epistêmica. Trata-se de colocar nas pautas das lutas uma nova base epistêmica, pois parece claro para os novos movimentos sociais que as lutas não podem resumir-se a lutas por justiça social.

65

Devem ser, também, lutas por uma justiça cognitiva, ou seja, uma luta da democratização dos saberes e conhecimentos, bem com a da valorização

de

outras

matrizes

epistêmicas

que

não

as

do

conhecimento científico ocidental; i) Uma última característica desses movimentos, que vale a pena mencionar,

é

que

esses

movimentos

buscam

novas

formas

instrumentais de ação e manifestação, inaugurando um repertório de estratégias e táticas que passa pelas chamadas ocupações de terras, de instituições públicas, bloqueios de estradas, de “empates” que buscam afirmar as suas demandas e, ao mesmo, tempo deixar claros os signos de suas identidades enquanto sujeitos sociais. Desse modo, esses movimentos distinguem-se da classe dos antigos movimentos operários que tinham como principal instrumento de pressão as greves, trata-se de novas e criativas formas de usar o espaço público como plataforma de afirmação de direitos. A partir da caracterização dos chamados novos movimentos sociais, na América Latina, podemos verificar que esses movimentos inauguram novas concepções e práticas de justiça, de direitos e de emancipação social. A questão que se coloca: Se os novos personagens entram em cena, por onde anda a teoria? Como analisar e interpretar esses novos movimentos sociais? Qual o sentido e o significado dessas novas experiências emancipatórias? Parece-nos que há pelo menos três linhas de forças fundamentais para a compreensão teórica desses novos movimentos que levam à necessidade do desenvolvimento de determinadas categorias e conceitos como instrumentos analíticos capazes de tornar inteligível essa realidade. 1. A primeira é que esses movimentos apontam para uma tensão teórica e política entre a ideia da luta por igualdade e de luta pelo reconhecimento das diferenças nas agendas construídas por esses novos protagonistas. As lutas contra a exploração econômica, a exclusão e a marginalização entrelaçam-se com as lutas contra as diversas formas de preconceitos e discriminações étnicas, raciais e

66

culturais e o colonialismo e a colonialidade do poder, do saber e do ser. Esse debate mostra como central a questão identitária e um novo

sentido

de

justiça

capaz

de

abarcar

simultaneamente

redistribuição e reconhecimento; 2. A segunda linha de força a ser desenvolvida teoricamente é o papel que a natureza, o meio ambiente e os recursos naturais, de um modo geral, vêm assumindo nas lutas e nos conflitos sociais na América Latina. Em grande parte, os conflitos sociais também são conflitos ambientais, e as lutas por justiça social estão diretamente ligadas a demandas por justiça ambiental, por formas familiares, comunitárias e coletivas de reapropriação social da natureza; 3. O terceiro elemento fundamental nesse esboço interpretativo dos novos movimentos sociais é o papel do território como uma espécie de “condensador” de direitos, pois a luta por maior igualdade pelo reconhecimento da diferença, pela descolonização da sociedade e do Estado, pelo direito aos recursos e à natureza e, consequentemente, pela

justiça

ambiental,

todos

materializam-se

no

direito

ao

território. Nesse sentido, a luta por direitos territoriais é a plataforma primordial nessas novas experiências emancipatórias, porque é a partir do território que esses diferentes povos e comunidades buscam afirmar suas identidades, sua autonomia, seu modo de vida, sua forma de produzir, enfim, seus diferentes modos de existir. Esses conceitos destacados serão desenvolvidos ao longo do trabalho, especialmente, na primeira parte desse texto. 1.4

O MÉTODO COMO CAMINHO E DESVIO. Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes que aqui caleidoscopicamente registro (Clarice Lispector).

No

processo

de

produção

do

conhecimento

científico,

na

realização de uma pesquisa, o método é sempre uma preocupação fundamental. No sentido etimológico, significa meta, caminho, mas também

67

é desvio, descaminhos como gostava de afirma Walter Benjamim. Ou seja, o método nos aponta o conjunto de regras, princípios e procedimentos que seguiremos durante nosso itinerário de pesquisa, e supostamente nos daria a certeza de um caminho seguro, mas também pode ser cheios de desvio, atalhos, quase labiríntico. Na presente tese, esta preocupação – quiçá uma pequena obsessão – ocupa lugar importante. Há o esforço por encontrar caminhos, mas também desvios, novos itinerários de investigação e interpretação que viabilizem novas possibilidades de expressão e exposição das idéias. Evidentemente, não foram raras as vezes, em diversos momentos

dessa

busca,

que

enveredamos

por

caminhos

erráticos,

sinuosos, conduzindo-nos a labirintos quase intransponíveis. Mas, enfim, foi no caminhar que se foi conhecendo e desenhando o próprio caminho! Nesse

trabalho,

a

nossa

preocupação

metodológica

está

assentada em pelo menos três dimensões, para as quais o método se apresenta como uma questão fundamental em qualquer pesquisa: a) o método de interpretação b) o método de investigação c) o método de exposição/apresentação. a) O método de interpretação. Discutir o método de interpretação significa tratarmos dos pressupostos filosóficos que alicerçam a nossa compreensão geral sobre o que é o conhecimento, a pesquisa e a realidade. O método funciona como uma espécie de lente que fundamenta uma certa leitura da realidade. Na geografia temos uma considerável diversidade de matrizes metodológicas disponíveis.

Neste

trabalho,

mobilizamos

algumas

dessas

matrizes

construindo uma perspectiva que consideramos híbrida, mestiça, ou seja, não construímos nossa pesquisa assentada exclusivamente em um único referencial metodológico, mas a partir de uma diversidade de referencias. Contudo, essa opção não é apenas um desejo de ecletismo ou a falta do exercício da escolha. Reflete, antes, uma consciência de que a realidade é mais complexa do que os instrumentos que as matrizes metodológicas são capazes de nos oferecer. Nesse sentido, o hibridismo e a mestiçagem metodológica é uma necessidade diante da complexidade da realidade. Todavia, nem todos os

68

paradigmas interpretativos usados têm o mesmo peso e a mesma importância, e nem são utilizadas da mesma forma. Com alguns autores e matrizes metodológicas nosso diálogo é explicito e sistemático, já com outros é pontual, às vezes implícito. Há casos em que os autores são uma espécie

de

inspiração,

como

um

rio

subterrâneo

que

percorre

silenciosamente e infiltra nossa forma de ver o mundo e, mesmo que não tenhamos dialogado abertamente com suas formulações, sua forma de pensar afeta decisivamente a análise. Em termos gerais, permanecem em nossa pesquisa, certos rastros

e

ecos

do

chamado

materialismo

histórico

e

dialético,

especialmente, através de autores que se filiam a essa tradição de maneira heterodoxa e, mesmo tendo suas formulações arraigadas na tradição marxista, têm um pensamento mais arejado e aberto ao diálogo com outras perspectivas teórico-metodológicas. É neste sentido que algumas intuições e formulações de autores como E. P. Thompson, Antônio Gramsci, Henri Lefebvre, Walter Benjamin, além do geógrafo Milton Santos influenciaram direta ou indiretamente esse trabalho. Além dessa vertente mais aberta do materialismo históricodialético, o nosso trabalho também sofre forte influencia do pensamento francês denominado de “pós-estruturalista”. Neste sentido, utilizamos em vários momentos de nossa pesquisa as contribuições de pensadores como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Jacques Derrida, além de uma série de outros autores influenciados pelo pensamento desses filósofos, como é o caso da obra do filósofo italiano Giorgio Agambem, incluídos aí alguns comentadores das produções desses autores. Outra linha de força que atravessa nossas reflexões são as chamadas

teorias

“pós-coloniais”,

“descoloniais”,

especialmente

as

contribuições de pensadores como Stuart Hall, Homi Bhabha, além dos trabalhos de pensadores latino-americanos como Anibal Quijano, Walter Mignolo, Edgardo Lander, Henrique Dussel, Arthur Escobar, Santiago Castro-Gomez, Ramon Grosfroguel, Maldonado Torres, Raul Zibechi e Eduardo Restrepo, sem esquecer as contribuições do sociólogo português Boaventura

de

Souza

Santos,

profundamente

alinhado

com

essas

perspectivas teóricas pós-coloniais. Ainda identificamos outros referenciais

69

importantes na construção deste trabalho nas obras do sociólogo Pierre Bourdieu e sua teoria da ação, assim como pelas contribuições do historiador e antropólogo Michel de Certeau e suas elaborações sobre táticas e estratégias no cotidiano. Se, em termos genéricos, o nosso trabalho é atravessado por essas linhas de forças ou influências que estão como pano de fundo emoldurando nossas reflexões; trabalhamos de maneira mais direta com alguns

conceitos

e

autores

para

montarmos

o

quadro

analítico-

interpretativo usado em nossa pesquisa. Neste sentido, trabalhamos com os conceitos de território, territorialidade e territorialização, para tal empreitada estabelecemos um diálogo direto e explícito com as contribuições de alguns geógrafos que trabalham com esses conceitos, especialmente, com Robert Sack ( 1986; 2011); Marcelo Lopes de Sousa ( 1996; 2006; 2010); Rogério Haesbaert ( 1999; 2002; 2004; 2008; 2010), além de trabalham com algumas melhor

filósofos e sociólogos de

categorias que nos ajudaram a compreender

o conceito de território como chave analítica, como é caso dos

conceitos de ação, poder, conflito e política trabalhados por pensadores como Michel Foucault (1979; 1988; 1995; 1999; 2006); Antonio Gramsci (1999; 2000); Hanna Arendt (2005; 2006; 2009) e Pierre Bourdieu (1990; 1996; 2006; 2009 2001). Também fizemos uso de obras e autores

que trabalharam

teoricamente com o debate sobre o conceito de identidade e identidade territorial (filósofos, sociólogos, antropólogos e geógrafos ) dos quais vale destacar Stuart Hall (1997; 2003; 2004 ); Manuel Castells (1996); Zigmunt Baumam (2000; 2005); Rogério Haesbaert (1999); Pierre Bourdieu (1999); Tomás Tadeu da Silva (2004) entre outros. Seguindo esse percurso ainda estabelecemos uma interlocução como Alfredo B.Almeida (2006; 2008) e Paul Little (2006), antropólogos que vêm fazendo uma reflexão sistemática sobre os

povos ou comunidades tradicionais e sua relação com

as

terras de uso comum ou tradicionalmente ocupadas. Ainda dentro da composição desse quadro analítico interpretativo, trabalhamos com geógrafos, sociólogos e antropólogos que vem discutindo a temática dos movimentos sociais como é caso de Boaventura Sousa

70

Santos (2005; 2006; 2008); Raúl Zibechi (2005; 2007); Albert Mellucci (2002); Alain Touraine (1994; 2004); Arturo Escobar (1999; 2004; 2005 ); Carlos Walter Porto-Gonçalves (1999; 2002; 2005; 2008); Ana clara T. Ribeiro (2002; 2008; 2009) entre outros. Fechando

esse

quadro

incorporamos

as

contribuições

sociólogos e geógrafos que trabalham com debate sobre

de

conflitos

socioambientais, justiça ambiental e lutas sociais por reapropriação social da natureza como é o caso de Henri Acesrald (2004; 2009; 2010 ); Carlos Walter Porto-Gonçalves (1999; 2002; 2004; 2006; 2008 ) e Henrique Leff (2000; 2004; 2006).

b) O método de investigação Para operacionalizarmos uma pesquisa no sentido da investigação empírica,

precisamos

encontrar

as

melhores

estratégias,

técnicas

e

procedimentos para realizar a investigação do objeto pesquisado. A dimensão investigativa do método remete à questão de como se produzem os dados de uma pesquisa e sobre qual é a natureza desses dados. Nossa pesquisa é de natureza essencialmente qualitativa e o nosso corpus de análise é constituído basicamente de textos formais e informais, imagens, sons e relatos. Mesmo

essa

pesquisa

não

se

enquadrando

naquilo

que

poderíamos considerar um estudo de caso no sentido clássico, desenho de pesquisa típico de certas abordagens sociológicas e antropológicas sobre comunidades, escolhemos duas comunidades como referencias para a investigação de caráter mais empírico: as comunidades de Paruru de Joana Coelis e a comunidade de Jorocazinho, ambas localizadas no distrito de Joana Coelis no município de Cametá (ver Mapa 2 na página 75 ). A escolha dessas comunidades se deve ao fato de serem as duas experiências pioneiras no que se refere a táticas e estratégias comunitárias de preservação da natureza e da criação de acordos de pesca no município de Cametá. Além do caráter de pioneirismo, as experiências de Acordos de Pesca nessas comunidades são reconhecidas como experiências de sucesso. Buscamos, contudo, para além dessas experiências específicas, realizar uma

71

análise do conjunto das experiências de Acordos de Pesca operados no município de Cametá como um todo. Para realizar a presente pesquisa, trabalhamos essencialmente com três tipos de dados. Realizamos uma análise documental a partir da coleta de um conjunto de documentos ligados aos movimentos sociais, às comunidades tradicionais e aos Acordos de Pesca. Coletamos ainda atas de reunião, projetos, legislação, documentos de divulgação como panfletos, jornais e, sobretudo trabalhamos com as setenta atas da fundação dos Acordos de Pesca referentes a setenta comunidades distribuídas em diferentes áreas do município de Cametá e disponibilizadas no arquivo da sede do IBAMA localizada nesse município.

A análise dessas atas foi de

fundamental importância para entendermos a estrutura normativa e o funcionamento geral de como se constitui e funcionam essas iniciativas comunitárias de reapropriação social da natureza e do território. Um segundo tipo de dados ou informação que constitui o corpus de análise dessa pesquisa é formado basicamente de coleta de um conjunto

de

diretamente

documentos envolvidos

nos

realizadas processos

com

os

atores

analisados.

protagonistas

Através

dessas

entrevistas buscamos compreender a percepção e a representação dos grupos diretamente envolvidos na iniciativa de constituição dos Acordos de Pesca. O critério de definição do universo de pessoas a serem entrevistadas foi de ordem qualitativa. Entrevistamos aquelas pessoas apontadas pelos próprios atores como sendo lideranças representativas, reconhecidas por todos, como as que estavam diretamente envolvidas e que, portanto, dominavam a totalidade dos processos e representavam a memória viva dessas iniciativas. Além da análise documental e das entrevistas, ainda utilizamos a técnica da observação sistemática. Para isso realizamos dois trabalhos de campo nos quais visitamos entidades, instituições e comunidades, no propósito de observar de maneira mais cotidiana o modo de vida e a forma de funcionamento dos chamados Acordos de Pesca.

Nesse processo,

participamos de seminários, de reuniões, de conversas informais que também forneceram elementos que ajudaram na sistematização das informações e na elaboração da análise.

72

Através dessas técnicas e desses procedimentos conseguimos uma razoável quantidade de informações. Contudo, o fato de não estarmos diretamente envolvidos na “atmosfera” de pesquisa e de não vivenciarmos cotidianamente a dinâmica local implicou limites no que se refere a um mergulho

mais

profundo

no

“mundo

vivido”

dessas

comunidades,

impossibiliando uma descrição mais “densa” do cotidiano e do universo ribeirinho. Isso porque realizamos essa pesquisa vivendo e morando em outra região do Brasil e essa relação de distanciamento e “estrangeirismo” implicou perdas no que diz respeito a “sentir” de mais perto as cores, os cheiros, os gostos, as vozes da Amazônia. Essa distancia, contudo, também nos permitiu ver e entender determinados aspectos da realidade que dificilmente teríamos acessado se estivéssemos imersos cotidianamente na realidade amazônica. Foi nessa posição liminar, de um lugar de fala fraturado, de quem não é nem “nativo” nem “estrangeiro” que realizamos essa pesquisa. De um lado,

a

condição

de

ser

um

amazônida

constituído

cultural

e

emocionalmente no universo rural e ribeirinho afetou o modo como conduzimos nossas escolhas e caminhos, mas ao mesmo tempo a situação que hoje experimento também foi decisiva, pois o fato estar vivendo e sendo afetado pela realidade de outra região do país e por outras referencias culturais e intelectuais deslocam e ressignificam a nossa subjetividade, a nossa sensibilidade e, conseqüentemente, nosso lugar de fala. É nessa espécie de lócus de enunciação fronteiriço que, ao mesmo tempo, somos íntimos e estranhos à realidade em que realizamos a investigação. c) O método de exposição/apresentação. O método de exposição ou de apresentação de uma pesquisa trata-se da forma que se dá ao conteúdo e aos resultados; é a maneira de tornar público o resultado de uma determinada investigação através de um texto. Apesar de a chamada “escrita científica”, além de obedecer a um padrão ortográfico, ser orientada por um conjunto de técnicas e normas obrigatórias na apresentação de trabalhos, não podemos reduzir o método de exposição a uma dimensão meramente técnico-normativa. Como uma

73

dimensão do método, a exposição/apresentação das idéias é um momento fundamental

e

envolve

a

necessidade

da

criação

de

estratégias

argumentativas e estratégias textuais de estilo e estética, não no sentido pobre da forma pela forma, mas numa imbricação produtiva em que forma e conteúdo se impliquem mutuamente. Todos os grandes autores foram revolucionários pelo conteúdo das suas idéias, mas também por novas formas de expressão, por novos estilos de escrita que inauguraram novos modos de apresentação de idéias. Assim, como diria o filósofo Gilles Deleuze para dizermos idéias novas precisamos de novas formas de dizer. Essa foi uma preocupação constante na construção desta pesquisa, encontrar uma forma de composição do texto que expressasse a realidade dessa pesquisa. Havia claramente, desde o início do trabalho, um descontentamento com a forma usual e tradicional de se escrever uma tese. A forma do tratado sistemático nos parecia um formato exaurido e a escrita acadêmica nos parece excessivamente aborrecida e empobrecedora. Nesse sentido, foram muitos os esforços na busca por uma nova forma de escrever, por uma nova forma de expressão que fugisse do modelo que consideramos pobre. Contudo, a sensação que temos é a de fracasso, pois a busca por novas maneiras de escrever e novas maneiras de compor se deparam com limites quase intransponíveis, diante daquilo que é considerado canônico. A força da tradição e o limite da nossa capacidade de expressão impediram que conseguíssemos um êxito maior na tarefa de construção de uma tese “inovadora” do ponto de vista da forma, o que não nos impediu, entretanto, de arejar o discurso com a busca desses novos modos de dizer e de compor o trabalho. Por isso, em alguns momentos, este trabalho assumirá a forma de ensaio, expressando a busca de um maior sentido de liberdade da linguagem, mas com a consciência de não termos conseguido superar a estética do tratado que tanto nos incomoda.

74

MAPA 2- FONTE: ( ARNAUD, 2010).

75

“A CAIXA DE FERRAMENTAS”

76

PRIMEIRO INTERMEZZO: A TEORIA COMO CAIXA DE FERRAMENTAS: POR UMA FORMA PROFANA DE LIDAR COM NOSSAS HERANÇAS INTELECTUAIS

Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá−la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o momento ainda não chegou. Não se refaz uma teoria, fazem−se outras; há outras a serem feitas. E curioso que seja um autor que é considerado um puro intelectual, Proust, que o tenha dito tão claramente: tratem meus livros como óculos dirigidos para fora e se eles não lhes servem, consigam outros, encontrem vocês mesmos seu instrumento, que é forçosamente um instrumento de combate. (DELEUZE, 1979: 71). A citação acima é uma contundente afirmação de Deleuze retirada de um famoso diálogo entre ele e Foucault sobre o papel do intelectual e da teoria no final dos 1960. Em sua intervenção, Deleuze aponta para uma forma muito particular de compreensão do papel da teoria para o pensamento/ação. Segundo o filósofo francês, devemos tratar a teoria de maneira pragmática e instrumental. Nessa perspectiva, a teoria e os conceitos devem ser concebidos como instrumentos, ferramentas, dispositivos que só ganham sentido no seu uso, no seu funcionamento e não como algo que contenham um valor em si que se auto-justifiquem. É a partir dessa perspectiva pragmática que vamos operar com as teorias e os conceitos em nossa pesquisa, pois compreendemos o ato de fazer pesquisa como uma espécie de “artesanato intelectual”, que exige criação, esforço, repetição, paciência para que possa ser construído e que não tem receitas prontas, formas e moldes acabados, é sempre uma empresa singular. O pesquisador como artesão intelectual, como qualquer trabalhador, precisa de instrumentos, de ferramentas (teorias e conceitos) para realizar sua ação. Essas ferramentas podem ser adquiridas, emprestadas, aperfeiçoadas, deformadas e até “roubadas”12 de Roubar aqui nada tem a ver com o plágio, a cópia, desonestidade intelectual, segundo Gallo (2008, p 75-6). Para Deleuze, o ato de criar em filosofia é uma espécie de roubo, na medida em que cada filósofo entra em contato com o pensamento dos outros, mergulha em seus campos 12

77

outros autores, assim como podem ser criadas, inventadas de acordo com os problemas e questões enfrentadas por cada um na sua labuta de pesquisar. O nosso itinerário de pesquisa tem sido marcado pela procura de ideias, autores e conceitos que nos auxiliem a enfrentar os problemas que nos colocamos nessa investigação. Nesse percurso, o que procuramos são intercessores13. Deleuze (2007, p.156) já afirmava que o essencial são os intercessores e, sem eles, não há

obra. O filósofo francês afirmava: “Eu preciso de meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim: sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê”. Os intercessores funcionam como uma espécie de alavancas que potencializam e injetam vitalidade ao nosso pensamento, tirandonos da imobilidade, da inércia diante do mundo, incitando-nos a pensar e a criar e, desse modo, ajudando-nos a enfrentar os problemas teóricos e práticos que nossa pesquisa impõe-nos. Neste sentido, pesquisar significa, em parte, procurar “bons encontros” procurar, fabricar nossos intercessores. Nessa perspectiva, nossa busca tem sido por tudo aquilo que nos tire da imobilidade e do estupor diante do campo problemático que envolve nossa pesquisa. Assim, no caminho, vamos apropriandonos de qualquer instrumento, ferramenta que nos mobilize,incite e potencialize o pensar e o criar. Nessa trajetória, rejeitamos qualquer forma de interdição ou proibição disciplinar, ideológica ou epistêmica a priori.

problemáticos e apropria-se de seus conceitos. Mas, uma tal apropriação, que é o próprio aprendizado, significa uma re-criação, uma vez que os conceitos são deslocados de seu campo problemático para um outro campo, o daquele que faz a experiência do pensamento próprio. Neste sentido, o roubo é o contrário do plágio; plagiar é repetir, é fazer como, é imitar, é copiar. Roubar é repetir fazendo a diferença, é fazer como inventando um novo jeito de se fazer, é inventar de novo. 13 Essa idéia de intercessores é formulada por Gilles Deleuze, Os intercessores são quaisquer encontros que fazem com que o pensamento saia de sua imobilidade natural, de seu estupor. Sem os intercessores não há criação. Sem eles não há pensamento: “O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Podem ser pessoas – para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas – mas também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores. (Deleuze, 2007: 156) 78

Sendo assim, o mais importante para nós não é qual a disciplina (filosofia, antropologia, literatura) ou a marca ideológica de um autor ou a filiação epistemológica de um conceito isoladamente, mas como esses instrumentos podem servir-nos para conseguirmos pensar os problemas e questões que nossa pesquisa exige. Essa postura não é um simples ecletismo teórico-metodológico nem um desejo totalitário de produção de uma síntese pasteurizadora das diferenças, porém uma atitude crítica e radical diante das tradições, classificações e filiações que, em nome de uma certa pureza ou coerência com as heranças, acabam por privar-nos de diálogos com muitos intercessores fundamentais para potencializar nossa capacidade de pensar e, assim, produzem a imobilidade e esterilidade do pensamento diante do mundo. Essa postura remete a uma reflexão de como lidamos com nossas heranças intelectuais. A nosso ver, há pelo menos três formas de ler/usar autores e teorias, ou seja, três diferentes maneiras de apropriarmo-nos dos legados teóricoconceituais de que somos, de algum modo, herdeiros14 (uma leitura sagrada/sacralizada, uma leitura secular e uma leitura profana). Diante dessas diferentes maneiras de lidar com a herança, gostaríamos de sinalizar o modo como vamos lidar com as heranças intelectuais com quem vamos dialogar. Para explicitar essas diferentes formas de usar nossas heranças intelectuais (autores, teorias, conceitos), iremos partir da lúcida distinção entre o sagrado e o profano e entre o secular e o profano realizada por Giorgio Agamben (2007): Essas diferentes maneiras de uso de autores e idéias são inspiradas nas formulações do filósofo italiano Giorgio Agamben (2005). Nessa obra, o autor discutiu sobre as possibilidades e impossibilidades do uso das coisas diante do consumo nesse momento atual do capitalismo que, segundo o autor, tornou-se uma espécie de religião em que o consumo, a propriedade e a mercadoria sacralizam as coisas, retirando do mundo dos homens, colocando a impossibilidade do uso de fato. O autor formula o conceito de profanações numa perspectiva metafísica e política de ação, que busca restituir o uso das coisas, questionando esse caráter sagrado que retira a possibilidade subversiva do uso. Nós, inspirados nessa perspectiva, mas centrados numa perspectiva mais epistemológica, queremos discutir as possibilidades do uso profano dos legados teóricos conceituais dos quais somos herdeiros. 14

79

[...]os juristas romanos sabiam perfeitamente o que significa “profanar”.

Sagradas ou religiosas eram aquelas coisas que de algum modo pertenciam aos deuses. Como tais, elas eram subtraídas ao livre uso e ao comércio dos homens, não podiam ser vendidas e nem dadas como fiança, nem servidas de usufruto e nem gravadas de servidão. Sacrilégio era todo ato que violasse ou transgredisse essa sua especial indisponibilidade que as reserva exclusivamente aos deuses celestes (nesse caso eram denominadas propriamente “sagradas”) ou infernais (nesse caso eram chamadas “religiosas”). E se Consagrar (sacrare) era o termo que designava a saída das coisas do direito humano, profanar, por sua vez significava restituí-las ao livre uso dos homens.(AGAMBEN 2007: 65) . Em outra passagem, o autor ainda faz uma sutil, mas importante, distinção entre a secularização e a profanação como contraponto à esfera do sagrado, que será muito útil para nossa distinção:

É preciso, neste sentido, fazer uma distinção entre secularização e profanação. A secularização é uma forma de remoção que mantém intacta as forças, que se restringe a deslocar de um lugar a outro. Assim, a secularização política de conceitos teleológicos (a transcendência de Deus como paradigma de poder soberano) limita-se a transmutar a monarquia celeste a monarquia terrena, deixando, porém, intacto o seu poder. A profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde sua aura e acaba restituída ao uso. Ambas as operações são políticas, mas a primeira tem a ver com o exercício do poder, o que é assegurado remetendo-o a um modelo sagrado; a segunda desativa os dispositivos de poder e devolve ao uso comum os espaços que ele havia confiscado (AGAMBEN 2007: 68). Inspirados nessas definições de Agamben (2007), contudo deslocando a reflexão do âmbito metafísico e político para o campo epistemológico, podemos dizer que uma primeira forma de uso da herança intelectual é aquela que busca fazer uma leitura sacralizada, ou seja, elevar certos autores e suas ideias para um campo transcendental, retirando-os de sua condição mundana e terrena, e colocando-os na condição de algo sagrado que está para além do movimento da 80

história e da política. Isso leva a posturas religiosas e dogmáticas de lidar com as ideias, teorias e conceitos e, desse modo, cria-se uma fidelidade cega e estéril em relação a certos legados e heranças. Uma secunda postura é aquela que podemos denominar de uma leitura

secularizada, que coloca autores e ideias no plano secular, no mundo dos homens, mas se trata de uma leitura disciplinada e “bem comportada”, que aceita a força e o cânone da autoridade do autor. Neste sentido, busca-se uma fidelidade que não é religiosa, todavia que advém de um certo desejo de coerência fundado em posturas relativamente rígidas transvertidas de rigor metodológico e epistemológico. Por fim, há uma terceira forma de lidar ler/usar autores e ideias, uma forma de lidar com a herança e a tradição de maneira mais livre e problematizadora. Tratase de um de modo de apropriação que podemos denominar de uma leitura profana. Profanar, como afirma-nos Agamben (2007), significa devolver à esfera humana o que tinha sido sacralizado, o que fora separado dos homens. Profanar é, pois, restituir ao uso humano. Neste sentido, profanar nossas heranças intelectuais significa colocar autores e suas formulações no mundo terreno e mundano dos homens, colocar suas ideias em circulação no comércio dos homens, tirando-as do Olimpo transcendental e devolvendo ao campo imanente da vida e da história. Trata-se de colocar a herança no devir, reativar o seu legado à luz de novos problemas e inquietações do presente e do futuro, contudo, isso não é uma negação da herança.

Não há aqui, então, uma negação da herança, um dizer não a herança, uma destruição da herança, um deixar de lado a herança. Trata-se, sobretudo, da diferença entre uma herança quieta, imóvel, e uma herança que há de se movimentar e que nos empurra para um outro lugar, para um lugar que nós não sabemos, para um lugar não conhecido, para o lugar do não conhecimento. (...) A herança, o herdado, é aquilo que nos atribui um certo tipo de tarefas contraditórias, ambíguas: receber, atender, acolher aquilo que nos 81

chega, aquilo que recebemos e, ao mesmo tempo, ter que refazê-lo, ter que reinterpretá-lo.(SKLIAR, 2008: 19) Assim, segundo Skliar (2008), uma herança não deve ser, simplesmente, aceita, afirmada, mas também e, sobretudo, ela deve ser reativada em outra forma, em outra condição, a partir de certas escolhas totalmente diferentes, isso implica aquilo que Derrida (2004) denomina de uma “fidelidade infiel”, que envolve a condição do herdeiro.

(...) o herdeiro sempre deve responder a uma espécie de dupla injunção, a uma designação contraditória: é preciso primeiro saber e saber reafirmar o que vem “antes de nós”, e que, portanto, recebemos antes de escolhê-lo, e nos comportar nesse aspecto sob esse aspecto como sujeito livre. Ora é preciso (e este é preciso está diretamente inscrito na herança recebida) é preciso fazer de tudo para se apropriar de um passado que sabemos no fundo permanecer inapropriável [...] mas não apenas aceitar essa herança, mas relançá-la de outra maneira e mantêla viva. (DERRIDA, 2004: 12). Essa postura crítica de Jacques Derrida diante da condição do herdeiro, segundo Skliar (2008), inaugura um mecanismo de critica que é e que deve ser, ao mesmo tempo, fielmente infiel em relação à herança em questão.

Desconstruir é, de certo modo, um gesto, um ser chamado por alguma coisa, por uma obra, por um autor, por um livro, uma passagem, uma palavra, um conceito, uma escrita. É um gesto afirmativo, é um dizer sim. E é fazê-lo a partir da posição de quem se sente herdeiro, de quem pensa e sente que tem herdado aquilo que pretende, agora, desconstruir; e não de alguém que por sua vez desconfia do outro, nega, diz não a obra, e torna-se crítico desde o lugar do deserdado. (SKLIAR, 2008: 18.) Assim, fazer uma leitura profana, uma leitura “fielmente infiel” da herança não significa dizer não, negar, ignorar, mas implica fazer uma leitura ativa dos

82

clássicos ou dos autores importantes. Isso significa fazer uma leitura assinada15 dos autores, das ideias e dos conceitos, pois concordamos com Fischer (2005) quando afirma que

Ao utilizar um autor na escrita acadêmica, nós de certa forma o reescrevemos, nós nos apropriamos dele e continuamos sua obra, tensionamos os conceitos que ele criou, submetemos à discussão uma teoria, porque a mergulhamos no empírico, no estudo de um objeto por nós selecionado, que ultrapassa, vai além dos objetos que o autor escolhido elegeu - justamente porque nossa história é outra, nossos lugares e tempos são outros. Reescrever um autor, é apropriar-se dele, é vasculhar em suas formulações teóricas um ponto de encontro com nós mesmos, com aquilo que escolhemos como objeto, com aquilo que nós investimos nossa vida, nosso trabalho, nosso pensamento; tenha a ver com uma entrega, nossa entrega a um tema, a um objeto, a um modo de pensar, que assumimos como pesquisadores. (FISCHER, 2005: 120). Assim, no percurso de nossa pesquisa, nós apropriamo-nos dos autores a partir de nós mesmos, da imersão (nossa e do objeto construído) em questões específicas. Nesse sentido, não importa se os autores escolhidos foram Foucault, Bourdieu, Deleuze, Lefebvre, Hanna Arendt, Gramsci, Boaventura de Souza Santos, Aníbal Quijano, Walter Mignolo etc. Interessa é fazer desses autores alguém que vive em nossa escrita, e que já não será mais Foucault ou Lefebvre, Bourdieu ou Quijano e, sim, nós lendo esses autores, escrevendo o texto, para além de qualquer dos pensadores visitados, porque estamos, de alguma forma, escrevendo algo nosso, inscrevendo a nós mesmos numa criação genuína, particular. É a partir dessa concepção da teoria como caixa de ferramentas e de uma

leitura profana das heranças de uma leitura assinada dos autores que vamos, nessa parte de nossa tese, organizar, aperfeiçoar e criar instrumentos teórico-conceituais que permitam nossa intervenção no mundo como pesquisadores.

15 Num diálogo com Derrida, Fischer (2005) afirma que a escrita

acadêmica é a arte de assinar o

que se lê. 83

CAPÍTULO 2 - TERRITÓRIO COMO CONCEITO/DISPOSITIVO ANALÍTICO E DE MEDI-AÇÃO PARA PENSAR AS LUTAS SOCIAIS NA AMAZÔNIA O Lutador (Carlos Drummond de Andrade) Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã. São muitas, eu pouco. Algumas, tão fortes como o javali. Não me julgo louco. Se o fosse, teria poder de encantá-las. Mas lúcido e frio, apareço e tento apanhar algumas para meu sustento num dia de vida. Deixam-se enlaçar, tontas à carícia e súbito fogem e não há ameaça e nem 3 há sevícia que as traga de novo ao centro da praça. Insisto, solerte. Busco persuadi-las. Ser-lhes-ei escravo de rara humildade. Guardarei sigilo de nosso comércio. Na voz, nenhum travo de zanga ou desgosto. Sem me ouvir deslizam, perpassam levíssimas e viram-me o rosto. Lutar com palavras parece sem fruto. Não têm carne e sangue â… Entretanto, luto. Palavra, palavra (digo exasperado), se me desafias, aceito o combate. Quisera possuir-te neste descampado, sem roteiro de unha

ou marca de dente nessa pele clara. Preferes o amor de uma posse impura e que venha o gozo da maior tortura. Luto corpo a corpo, luto todo o tempo, sem maior proveito que o da caça ao vento. Não encontro vestes, não seguro formas, é fluido inimigo que me dobra os músculos e ri-se das normas da boa peleja. Iludo-me às vezes, pressinto que a entrega se consumará. Já vejo palavras em coro submisso, esta me ofertando seu velho calor, aquela sua glória feita de mistério, outra seu desdém, outra seu ciúme, e um sapiente amor me ensina a fruir de cada palavra a essência captada, o sutil queixume. Mas ai! é o instante de entreabrir os olhos: entre beijo e boca, tudo se evapora. O ciclo do dia ora se conclui e o inútil duelo jamais se resolve. O teu rosto belo, ó palavra, esplende na curva da noite que toda me envolve. Tamanha paixão e nenhum pecúlio. Cerradas as portas, a luta prossegue nas ruas do sono.

84

O mundo social é um lugar de lutas a propósito de palavras que devem a sua gravidade – e a sua violência – ao fato de que as palavras fazem as coisas, em grande parte, é ao fato de que mudar as palavras e, em termos gerais, as representações, já é mudar as coisas. A política é no essencial uma questão de palavras. É por isso que a luta para conhecer cientificamente a realidade quase sempre deve começar por uma luta contra as palavras. Ora com muita freqüência, para transmitir o saber, devemos recorrer às próprias palavras que precisam ser destruídas para que se conquistasse e construísse esse saber: percebe-se que as aspas não são muita coisa quando se trata de assinalar tamanha mudança de estatuto epistemológico (BOURDIEU, 2004: 71).

2.1 O território entra em cena... Lutar com e contra a palavra território será esta uma luta vã? Como se apropriar, roubar, dominar ou apenas espreitar essa palavra tão bárbara de usos tão nobres e sórdidos? Deleuze dizia que Michel Foucault era um filósofo que “rachava as palavras”. Esse é objetivo de nossa vã luta, “rachar a palavra”. Não para buscar um significado oculto, profundo e misterioso que possa revelar alguma verdade secreta, mas buscar os ecos, as ressonâncias, as vibrações que sintonizam o conceito com a vida. Nos últimos anos, o uso da palavra território tornou-se quase uma obsessão. No discurso e na imaginação acadêmica e política, assistimos a uma hiperinflação do uso e abuso da palavra território. Usada como conceito, como metáfora ou, simplesmente, como um vício de linguagem, a palavra invadiu os mais diferentes domínios discursivos correndo

sérios

riscos

de

uma

pop-degradação16

e

a

consequente

banalização do seu potencial analítico e político. Compreender esse

16

Segundo Edgar Morin (2005: 336), toda teoria, método e, acrescentaríamos, conceito correm o risco da degradação, isto é, o risco de simplificação e, desse modo, perder sua complexidade e vitalidade como um instrumento analítico. Edgar Morin fala de três diferentes vias pelas quais ocorre a degradação: a degradação tecnicista; a degradação doutrinária e a pop-degradação. Na degradação tecnicista conserva-se da teoria aquilo que é operacional, manipulador, aquilo que pode ser aplicado; a teoria deixa de ser logos e torna-se techné. Na degradação doutrinária, a teoria torna-se doutrina, ou seja, torna-se cada vez menos capaz de abrir-se à contestação da experiência, à prova do mundo exterior, e resta-lhe, então, abafar e fazer calar no mundo aquilo que a contradiz. Por fim, a chamada pop-degradação, na qual se eliminam todas as obscuridades, as dificuldades, reduz a teoria a uma ou duas fórmulas de choque; assim, a teoria vulgariza-se e difundese à custa dessa simplificação de consumo. Esse parece ser o caso do que vem ocorrendo, nos últimos anos, com o conceito de território.

85

movimento e tentar recuperar o potencial analítico e político do conceito de território para pensarmos as lutas sociais na Amazônia é o objetivo desse capítulo. Começaremos nossa discussão a partir de uma constatação. Nos últimos

anos,

o

conceito

de

território

tem

assumido

uma

dupla

centralidade/visibilidade: uma centralidade analítica (epistemológica e teórica) e uma centralidade empírica (histórica e política). Do ponto de vista analítico, o território assumiu a condição de categoria central nos trabalhos dos geógrafos, especialmente, no contexto latino americano, com destaque para a produção da geografia brasileira. Ao olharmos os periódicos, os anais dos encontros, os títulos de dissertações e teses, verificamos que esse conceito hoje goza de um extremo prestígio na comunidade geográfica. Mas essa centralidade não fica restrita ao perímetro do campo acadêmico da geografia. Ela irradia-se com muita força para o campo de todas as chamadas ciências sociais e humanas. Inicialmente, na década de 1990, com a intensificação do fenômeno da globalização, essa centralidade do espaço e do território ocorreu

no

intuito

de

negar

a

dimensão

espacial.

Nesse

período,

generalizaram-se fortes discursos nas ciências sociais que apontavam para a

desterritorialização

total

da

sociedade.

Trata-se

do

mito

da

desterritorialização, como bem demonstrou-nos Haesbaert (2004). Após esse movimento inicial de descoberta pela negação, as ciências sociais, em especial algumas áreas como a Antropologia, a Sociologia, a Ciência Política, a História, é cada vez maior o número de pesquisadores que valorizam a dimensão espacial como um elemento importante para compreensão da sociedade, e isso tem levado cada vez mais esses pesquisadores a lançarem mão do conceito de território como ferramenta analítica em suas pesquisas. Do ponto de vista empírico, o conceito de território também ganha uma grande visibilidade, pois tornou-se um conceito incorporado pelo Estado nas diferentes esferas de ação/intervenção do poder estatal através das chamadas políticas públicas. No caso brasileiro, esse movimento é emblemático. Vários ministérios utilizam o conceito de território como um elemento estruturante de suas formas de planejamento e intervenção. Além

86

disso,

programas

como

“desenvolvimento

territorial”,

“território

de

cidadania” apenas ilustram uma diversidade de usos desse conceito pelo aparato técnico-burocrata no atual momento. Numa outra perspectiva, mais ligada à sociedade civil, em especial aos movimentos sociais, o conceito tem funcionado como um dispositivo de agenciamento político, em especial, no contexto latino americano, em que essa categoria é uma espécie de catalisador das energias emancipatórias. Muitas vezes, ouvindo entrevistas, depoimentos e declarações de lideranças dos movimentos camponeses, indígenas e movimentos

quilombolas

e

dos

chamados

povos

ou

comunidade

tradicionais, deparamo-nos com o uso da noção de território, ou melhor dizendo, do direito ao território como algo central em suas agendas de lutas. O uso constante da palavra território é um marcador discursivo central na retórica desses chamados “novos” movimentos sociais. Assim, temos sinais e indícios de que estamos diante de um novo momento, no qual um conceito, que não gozava de muito prestígio e permanecia nas margens da teorização em Geografia e da teorização social em geral, passa a ocupar um papel de destaque como ferramenta explicativa das problemáticas sociais do nosso tempo. Além disso, torna-se um importante dispositivo de intervenção social e política, tanto para atores hegemônicos quanto para atores subalternos. Portanto, o conceito de território assume uma centralidade que, para

compreendermos,

temos

que

ter

claro

que

ela

é

fruto,

simultaneamente, das mudanças na dinâmica social, mudanças de caráter ontológico,

especialmente,

nos

aspectos

sociopolíticos,

mas

também

precisamos estar atentos a mudanças epistemológicas que vêm ocorrendo no campo do pensamento social como um todo. No que se refere às mudanças no campo do pensamento social, podemos verificar que, nas últimas décadas, surgiram novas teorias da ação, da política e do poder nas ciências sociais e na filosofia. Nesse sentido, podemos listar várias contribuições, desde aquelas situadas no campo do materialismo histórico, como, por exemplo, a teoria política de Gramsci17 e a teoria do Estado de Poulantzas até aquelas que estão para 17

Apesar de Gramisc não ser um autor contemporâneo, no sentido de que sua

87

além do materialismo histórico, como é o caso da analítica do poder de Michel Foucault, da teoria da razão prática de Pierre Bourdieu, da teoria dos agenciamentos e da micropolítica de Felix Guattari e Deleuze. Podendo-se incluir nessa lista relevantes contribuições oriundas dos estudos culturais, dos estudos pós-coloniais, das teorias antirracistas, das teorias feministas, das teorias queer, além do vigoroso pensamento descolonial latinoamericano. Portanto, quando falamos da centralidade do território, estamos referindo-nos a uma nova forma de pensar a ação, o poder e a política influenciados por uma nova realidade e um novo movimento no campo do pensamento social. Normalmente, quando nos referimos a esse conceito, sentenciamos que se trata de trabalhar a dimensão política do espaço. De fato, é isso, mas não é somente isso. As novas concepções de território buscam tratar não simplesmente da política, todavia de uma forma especifica de pensar e agir politicamente. Uma forma de pensar o poder e a política que se liberte da economia política e de uma visão Estadocêntrica, em que toda luta é, ou deveria ser, uma luta de classe e pelo Estado. Essas novas concepções teóricas e as novas práticas realizadas pelos movimentos sociais inauguram novos horizontes para pensarmos os fenômenos que envolvem a dominação, a resistência e os conflitos. O conceito de território é o meio pelo qual a Geografia esforça-se para dialogar com as novas configurações que a realidade vem assumindo e com as novas formas de pensar que vêm ganhando força no pensamento social. O conceito de território é a ferramenta de leitura que a Geografia pode oferecer no sentido de compreendermos os novos fenômenos políticos que emergem na realidade social. Porém, se o conceito de território vem ganhando essa dupla centralidade (analítica e política), o seu uso como uma ferramenta intelectual ainda carece de esclarecimentos e aprofundamentos teóricos e metodológicos. Nos últimos anos, o conceito tem ganhado uma profusão de usos e significados no campo das Ciências Sociais. Essa diversidade é sinal

obra foi produzida na primeira metade no século XX, a apropriação do seu legado, a partir de uma leitura mais arejada do marxismo, vem sendo feita efetivamente somente nas últimas décadas, especialmente, no contexto latino-americano, por isso incluímos esse movimento como algo novo no campo do pensamento social.

88

de riqueza, mas também de confusão e imprecisão teórico-metodológica, com importantes consequências éticas e políticas. Na tentativa de tornar mais preciso e operacional o uso do conceito

de

território,

faremos

uma

breve

discussão

de

caráter

metodológico no uso de tal conceito. 2.2. Sobre a natureza dos conceitos A geografia, como qualquer campo disciplinar, construiu, ao longo de seu percurso, uma grande variedade de teorias, conceitos e categorias analíticas. Há um razoável consenso de que existem algumas categorias estruturantes desse campo científico: o espaço, a paisagem, a região, o território, o lugar e, mais recentemente, poderíamos incluir também o conceito de rede. Esses são considerados pela comunidade como aqueles que conferem uma relativa identidade à geografia como ciência. Mas qual desses conceitos usar nas pesquisas? Espaço, paisagem, território, região, lugar ou rede? Quais as especificidades e as diferenças entre esses conceitos? Qual desses é o mais adequado para o meu problema de pesquisa? Que diferenças implicam termos de análise da realidade sócio-espacial escolher um desses conceitos ao invés de outro? Esses são apenas alguns dos questionamentos que, como fantasmas, assombram os pesquisadores que se deparam com o dilema de escolher os conceitos mais adequados para realização de suas pesquisas. Essa tarefa não é simples e torna-se, muitas vezes, uma empreitada angustiante devido à falta de clareza sobre a natureza dos conceitos e suas especificidades como ferramentas analíticas. O uso de um ou de outro desses conceitos nas pesquisas nem sempre é claramente justificada e a distinção entre eles também carrega muitas ambiguidades, dificultando, muitas vezes, sua operacionalidade. É como se, frequentemente, a definição e o uso de um conceito fosse uma decisão de fórum íntimo do pesquisador, apenas uma escolha de gosto, e não de uma opção teórico-metodológica. Aliás, não raro, os conceitos ganham

uma

autonomia

desvinculando-se

de

pressupostos

teórico-

89

metodológicos mais amplos, como se fosse possível o uso do conceito isolado de uma teoria e de um método. O ponto de partida para uma reflexão sobre o conceito é nos interrogarmos sobre qual sua natureza, ontológica ou epistemológica? Por exemplo, qual a natureza das diferenças entre conceitos como espaço, território e lugar? Quando falamos em conceitos como espaço, território e lugar, não há muito clareza sobre a natureza das semelhanças, diferenças e especificidades entre esses conceitos. Normalmente o tratamento dessa relação

(proximidade,

vizinhança,

semelhança,

mas

também

distanciamento, distinção e contraste) entre esses conceitos é marcado por muita confusão, pois corriqueiramente não há muita clareza se essas distinções são de natureza ontológica (no nível concreto da realidade) ou epistemológica (no plano analítico, diferentes planos de análise e a partir de bases teórico-metodológicas distintas). A diferença é ontológica ou epistemológica?

O caminho mais

comum tem sido uma distinção ontológica, os conceitos são vistos como se esses existissem como entidades “reais”, completamente distintas e externas umas das outras. Mas há, também, posições que afirmam que os conceitos são construções intelectuais, instrumentos analíticos que se distinguem uns dos outros no plano epistemológico e nada têm a ver diferenças “reais” no nível ontológico. Essa ambiguidade requer uma maior clareza de qual é a natureza do conceito, pois grande parte dessa ambiguidade é fruto da falta de clareza e passa pela própria forma como a natureza do conceito foi pensando historicamente pelas diferentes correntes do pensamento filosófico. Segundo Haesbaert (2009), ao longo do percurso histórico, encontramos posições que se estendem no interior de um amplo continuum que vai desde a posição estritamente realista até aquela completamente idealista. O conceito, ao longo da história, se estende no interior de um amplo continuum que vai desde a posição estritamente realista de alguns que o consideram como um retrato fiel da “realidade” e que, ao ser enunciado, parece carregar consigo o próprio “real”, até, no outro extremo, a posição idealista em que o conceito não passa de um instrumento, uma técnica, um “operacionalizador”

90

que não tem outro compromisso senão o de servir ao pesquisador enquanto instrumento de análise (HAESBAERT, 2009: 96).

Ainda, segundo Haesbaert (2009), na Geografia, os espectros dessas posições assumem seus extremos muito claramente no que se refere ao conceito de região. É bem conhecido o contraponto entre a visão de “um certo” La Blache empirista objetivo, cuja “região-personagem” aparecia inscrita na própria morfologia da paisagem, e um Hartshorne idealista, depois “radicalizado” por posturas neopositivistas que viam a região como simples “classificação de áreas”, totalmente variável, portanto, conforme o critério adotado pelo pesquisador. Neste último caso, longe da visão idealista objetiva que vê no conceito um “reflexo” do real, trata-se de um idealismo subjetivo que restringe o valor do conceito ao próprio universo do sujeito pesquisador (HAESBAERT, 2009: 97).

Essas duas posturas extremas são pouco promissoras. Precisamos compreender que o conceito é construção social. Isso implica afastarmo-nos do positivismo empirista que analisa o conceito como simples formas de divisão e taxonomia do real, como se este fosse pré-existente e exterior à linguagem e à representação e, consequentemente, tem sua significação independente de qualquer ato de conceituação. O fato de considerarmos o conceito uma construção social não significa que ele possa ser uma escolha totalmente arbitrária, especialmente, em ciências sociais, em que há um compromisso dos conceitos com referenciais empíricos. Mas levar em conta a “realidade” e os problemas reais não significa voltar a um empirismo positivista, pois a construção de qualquer conceito implica uma operação na qual o vetor é sempre do racional para o real18. Nesse sentido, segundo Haesbaert (2009), o conceito nunca pode ser confundido com o “real” ou com o “empírico”, pois eles nunca serão a mesma coisa. Por isso, mais que uma “re-apresentação” diferenciadora do “real”, o conceito é um instrumento, uma “medi-ação” (no sentido concomitante de “meio-ação”) a que recorremos para sua compreensão, mas que nunca se restringe, de modo algum, a este caráter “mediador” ou 18

Ver Bourdieu; Chamboredon e Passeron (2004).

91

de “meio”, já que o conceito também, sempre, acaba por acionar, “fundar” realidades. (HAESBAERT, 2009:97). Assim, o conceito não deve ser procurado, pois não está aí para ser encontrado. O conceito não é uma “entidade metafísica”, ou um “operador lógico”, ou uma “representação mental”. O conceito é um dispositivo, uma ferramenta, algo que é inventado, criado, produzido, a partir de condições dadas e opera no âmbito mesmo destas condições. O conceito é dispositivo que faz pensar, que permite, de novo, pensar. O que significa dizer que o conceito não indica, não aponta uma suposta verdade, o que paralisaria o pensamento; ao contrário, o conceito é justamente aquilo que nos põe a pensar. Se o conceito é produto, ele é também produtor: produtor de novos pensamentos, produtor de novos conceitos; e, sobretudo, produtor de acontecimentos, na medida em que é o conceito que recorta o acontecimento, que o torna possível. (GALLO, 2008: 43) Nessa perspectiva deleuziana exposta por Gallo (2008), o conceito é considerado como uma ferramenta, um dispositivo, algo que funciona. Assim, precisamos considerar o seu funcionamento como um dispositivo com suas características inerentes. Segundo Deleuze, os dispositivos são uma espécie de novelos marcados por um emaranhado de linhas, pontos e curvas. As principais linhas de um dispositivo são: as linhas de visibilidade/enunciação, as linhas de força e linhas de objetivação19. Num diálogo com essa formulação inspirada na filosofia deleuziana, poderíamos dizer

que

todo

conceito

possui

uma

linha

de

visibilidade/linha

de

enunciação, uma linha de força e uma linha de objetivação, sendo essa configuração que dá especificidade a cada conceito. a) Linhas de visibilidade/ linhas de enunciação As linhas de visibilidade e as linhas de enunciação é o que nos permitem ver e falar, essas linhas criam regimes de visibilidades e dizibilidades que incidem sobre a realidade, criando o visível e o invisível ou que é enunciável e o que não é. Cada conceito produz uma linha, um regime de luz que ilumina de certo modo a superfície do real, dando forma,

19

Essa caracterização é feita por Deleuze (1990) sobre a filosofia de Michel Foucault, por ele considerada uma filosofia dos dispositivos.

92

contorno, maior nitidez e resolução a certos aspectos, dimensões e fenômenos da realidade, do mesmo modo que produzem uma contraluz, penumbras e sombras que obscurecem, secundarizam outros elementos da realidade. Do mesmo modo que cada conceito cria uma nova linha, um novo regime de enunciação, que torna possível, que justifica, legitima, também

interdita

e

exclui

determinados

modos

de

falar,

narrar

determinados aspectos e determinadas problemáticas da realidade. Assim, cada conceito inaugura novas capacidades perceptivas, novas sensibilidades frutos das novas linhas de visibilidade e enunciação que cada conceito inaugura quando é criado, inventado ou usado . Dessa forma, por exemplo, quando falamos que o conceito de território tem como foco fundamental a questão do poder e da política e que o conceito de lugar permite-nos fazer uma leitura que tem como foco a dimensão da experiência vivida, do cotidiano, a dimensão mais poética, sensível e subjetiva da dimensão espacial, o que estamos indicando são os diferentes regimes de luz e de enunciação que cada conceito inaugura sobre a realidade sócio-espacial. Estamos falando das linhas de luz e de enunciação de cada conceito, aquilo que permite vermos e falarmos de certos aspectos da realidade num primeiro plano e secundarizarmos outro. No conceito de território, o poder e a política estão no foco das linhas de luz e de enunciação, em contrapartida, a experiência sensível e poética está nas sombras e penumbras do conceito; já, no conceito de lugar, aquilo que apreendido com alto grau de resolução é muito mais uma poética do espaço do que a política do espaço, as questões que envolvem o poder e conflito estão nas sombras e penumbras das linhas de luz do conceito de lugar. As linhas de visibilidade e de enunciação é que criam e instauram a especificidade contrastante entre os conceitos, pois, nas zonas de penumbra, os conceitos e seus problemas aproximam-se e ordenam-se com semelhanças. Assim, por exemplo, quando olhamos a linhas de luz e enunciação entre as principais conceituações de território e lugar, há uma clara diferença entre o foco desses conceitos. Mas, quando olhamos para o aspecto periférico de cada conceito, nas suas zonas de sombra, vemos elementos que se assemelham, por exemplo, à questão do pertencimento e da identidade que tanto um quanto outro conceito recobre parcialmente.

93

b) Linhas de força Os conceitos são se resumem às linhas de visibilidade/enunciação, não se restringem a esse jogo de presenças e ausências, de falas e silêncios que as linhas de luz e enunciação produzem, não são uma simples operação óptica, são também relações de força e poder. Os conceitos criam linhas de força que rasgam o caos do real, instituindo realidades, classificando, hierarquizando visões e di-visões do mundo social. Os conceitos não são somente descritivos ou reveladores do mundo e da realidade, mas eles são também constitutivos e produtores do mundo e da realidade. Isso implica ver os conceitos como ferramentas analíticas e também como dispositivos ético-políticos de intervenção no mundo. Nesse sentido, ao produzirmos ou usarmos um determinado conceito, não estaremos realizando uma mera operação cognitiva, mas, ao mesmo tempo, uma ação epistêmica, ética e política. Assim, o fato de o conceito de território ter seu foco, sua linha de luz

e

enunciação

sobre

o

fenômeno

do

poder,

dominação/resistência/conflito e colocar na sombra e penumbra outros elementos como dimensão da experiência mais subjetiva e sensível das práticas sócio-espaciais tem implicações éticas e políticas concretas. Do mesmo modo que o regime de luz, que o conceito de lugar lança sobre o real, permite chegarmos à densidade e espessura existencial do viver, também tem claras implicações éticas e políticas. Seguindo esse raciocínio, parece pertinente a formulação de Gallo (2008) quando afirma que: [...] a criação de conceitos é uma forma de transformar o mundo; os conceitos são as ferramentas que permitem ao filósofo criar um mundo à sua maneira. Por outro lado, os conceitos podem ainda ser armas para a ação de outros, filósofos ou não, que dispõem deles para fazer a crítica do mundo, para instaurar outros mundos. (...) Que não se faça uma leitura idealista do conceito: não se trata de afirmar que é uma idéia (conceito) que funda a realidade; num sentido completamente outro, o conceito é imanente à realidade, brota dela e serve justamente para fazêla compreensível. É por isso que o conceito pode ser ferramenta tanto de conservação como de transformação. O conceito é sempre uma intervenção no mundo, seja para conservá-lo, seja para mudá-lo. (GALLO, 2008: 35-36).

94

c) Linhas de objetivação As linhas de luz e de força criam as linhas de objetivação, que são uma espécie de lente de objetivação, lente para ver o mundo, instaurando uma forma específica de compreensão e intervenção no mundo ou, melhor dizendo, uma forma de compreensão-intervenção no mundo. Essas linhas de

visibilidade/enunciação/força/objetivação

remetem,

diretamente,

à

questão dos problemas ou campo de problematizações do qual um conceito emerge e, também, ao solo epistemológico/teórico/metodológico que o sustenta. 2.3 Pressupostos metodológicos para se pensar o conceito de território Diante desse desafio, poderíamos perguntar: Afinal, o que é o território? Dificilmente, teríamos uma resposta única para essa pergunta. Existem diferentes formas de abordar e conceituar o território a partir de diferentes posições e posturas teóricas, políticas e éticas. Isso revela que o campo de reflexão que envolve tal conceito é marcado por uma grande polissemia e ambiguidade. Além disso, tal conceito vem sofrendo constantes redefinições e re-significações, ora com aberturas, ora com fechamentos. Nesse movimento, em determinadas perspectivas, esse conceito ganha precisão; já, em outras, naufraga em falta de rigor e clareza no seu uso. Como movimentar-se num terreno tão minado e complexo? Por movimentarmo-nos num campo teórico tão múltiplo e polissêmico, isso implica alguns riscos20, especialmente, dois: “a falta de rigor e o ecletismo ético-político.

Quando

os

conceitos

e

valores

se

pulverizam

e

se

indiferenciam, somos conduzidos a uma espécie de vale-tudo, no qual todos os recortes e todas as abordagens se equivalem”. (GONDAR, 2005:11). Assim, temos de tomar alguns cuidados, principalmente, ter claro que não basta atermo-nos à polissemia dos conceitos, apresentando uma visão panorâmica de suas diversas significações, como se isso eximisse-nos de tomar uma posição ou de escolher uma perspectiva nessa paisagem conceitual. Uma apresentação panorâmica e, pretensamente, imparcial 20

Essa reflexão está inspirada e, parcialmente, ancorada na discussão que GONDAR (2005) faz sobre o conceito de memória social.

95

sobre as diversas concepções de território pode parecer aberta à diferença, mas, de fato, encobre uma pretensão totalizante em que as diferenças esvaem-se, pois o fato de o conceito de território apresentar diferentes significações, isso não implica que sejam idênticas ou equivalentes. Qualquer perspectiva que tomemos será parcial e terá implicações éticas e políticas. Assim, lidar com a multiplicidade não significa não fazer distinções do ponto de vista ético e político, bem como também tornar um conceito mais flexível, não significa que este não possa ter rigor teórico e consequência metodológica. A combinação entre abertura e rigor e entre precisão e criatividade são qualidades fundamentais para a formulação de um conceito de território capaz de responder às questões do nosso tempo. Esse parece ser o grande desafio epistêmico, ético e político na nossa pesquisa. Queremos advertir que não temos o interesse de fazer uma exaustiva revisão do conceito de território. A nossa opção metodológica desloca-se da forma mais tradicional de se fazer história social do conceito, em que o objetivo é fazer uma gênese do termo/palavra/tema, recuperando seu percurso contínuo através do tempo no campo disciplinar da geografia e fora dela, porque essa tarefa escapa aos objetivos dessa pesquisa e, mesmo, tal empresa já foi realizada com qualidade e brilhantismo por outros

autores.

Também

não

queremos,

simplesmente,

definir

arbitrariamente o que é território ou tomar emprestada uma definição já formulada e encerrar qualquer discussão a respeito do conceito. Preferimos usar outra estratégia metodológica, que busca traçar a genealogia do problema (a ideia), recuperando não as continuidades, mas as descontinuidades, as rupturas, os momentos de emergências de novas formas de ver e enunciar o problema. O nosso objetivo é dialogar com a tradição acumulada, com as formulações e autores mais importantes desse campo teórico, porém a partir de uma estratégia metodológica precisa, que busca fazer uma genealogia do problema, ou melhor, do campo de problematizações do qual o conceito de território emergiu, ganhou uma configuração lógica e histórica e proliferou-se teoricamente. Trata-se de uma estratégia que busca explicitar as problemáticas ou o campo de problematizações da relação entre sujeitos sociais, espaço e

96

poder para, dessa forma, traçar um quadro mais preciso e delinear com mais clareza os contornos e as propriedades que envolvem tal conceito. Trata-se de buscar um aprofundamento metodológico no uso de tal conceito, tanto no sentido de torná-lo mais vivo e, potencialmente, mais útil em termos de sua eficácia analítica e legitimidade política na interpretação de determinadas problemáticas sociais. Assim como construir um modus operandi,

que

torne

tal

conceito

uma

ferramenta

operacional

nas

estratégias de investigação empírica, tornando o conceito menos abstrato e mais

sensível

à

dimensão

empírica

dos

fenômenos

histórico

e

geograficamente situados, como o caso, aqui abordado, as lutas e os conflitos

sociais

envolvendo

comunidades

tradicionais

na

Amazônia

brasileira, foco fundamental desse trabalho. Para trabalharmos metodologicamente com um conceito, é necessário aprofundarmos pelo menos cinco questões: i) A primeira tem a ver com o caráter assinado de cada conceito, com o locus de enunciação de cada conceito; ii) A segunda refere-se à dimensão histórica de um conceito, à relação entre a historicidade, validade e legitimidade de uma criação conceitual;

iii)

A

terceira

questão

envolve

a

natureza

complexa

e

heterogênea do conceito; iv) A quarta envolve a relação entre os conceitos e problemas ou entre a criação de conceitos e o campo de problematizações que dão sentido à existência de um conceito; v) Por fim, discutiremos a relação

entre

o

conceito

e

plano

de

imanência

ou

o

solo

epistemológico/campo teórico-metodológico a partir do qual ele opera21. 1. Todo conceito é assinado, os conceitos são situados, historicamente, pelas “marcas” e pela “assinatura” dos seus autores. Segundo Gallo (2008), todo conceito é necessariamente assinado; cada autor, ao criar um conceito, ressignifica um termo da língua com um sentido propriamente seu. A assinatura remete ao estilo filosófico de cada um, à forma particular de pensar e de escrever. Assim, a criação de 21

Nossas reflexões estão diretamente inspiradas nas formulações de Deleuze e Guattari(1991) e nos comentários de Gallo (2007) sobre a obra desses filósofos. Contudo, trata-se de um diálogo livre, de uma apropriação “bárbara” das ideias, uma leitura assinada, pois os autores localizam suas reflexões sobre o conceito, exclusivamente, no campo da filosofia, único domínio, segundo os autores, em que, de fato, criam-se e inventam-se conceitos.

97

conceitos é uma espécie de “assinatura do mundo”: cada autor assina o mundo à sua maneira, por meio dos conceitos que cria. Mas entendemos que a “marca” e a “assinatura” dos autores no conceito está além do estilo filosófico e de sua singularidade como escritor, essas marcas têm a ver, também, com a condição social, a situação e localização geo-histórica e bio-política dos “sujeitos-autores” ou, seja, do lócus de enunciação de onde fala o autor que cria um conceito. 2. Todo conceito tem uma história. Entender a historicidade de um conceito significa entender que ele é construído num momento histórico específico a partir de problemas também específicos. Além disso, todos os conceitos são marcados por acúmulos, heranças e continuidades dentro de um campo disciplinar e de uma tradição teórica, mas também por rupturas, descontinuidades e sobressaltos. Ainda, devemos lembrar a radical historicidade dos conceitos pela sua capacidade de duração e longevidade ou pela sua defasagem e superação, pois os conceitos têm sua validade, capacidade de operacionalização

analítica

e

legitimidade

política

e

ideológica

expostas ao movimento da história que aprofunda, redefine, resignifica ou supera-os. 3. Segundo Deleuze e Guattari (1991), não há conceito simples, todo conceito é complexo, pois “todo conceito tem componentes, e se define por eles. Tem, portanto uma cifra. Todo conceito tem um contorno irregular, definido pela cifra de seus componentes”. Assim, não há conceito construído a partir de um único elemento, todo conceito é uma multiplicidade “formado por componentes e define-se por eles; claro que totaliza seus componentes ao constituir-se, mas é sempre um todo fragmentado, como um caleidoscópio, em que a multiplicidade gera novas totalidades provisórias a cada golpe de mão” (GALLO, 2008, p.40). Nesse sentido, podemos entender que o conceito é uma questão de articulação, corte e superposição, o conceito é um momento, um ponto de coincidência, de articulação e condensação de vários elementos lógicos e históricos, criando uma configuração singular. Entende-se, portanto, que um conceito nunca é criado do nada, mas, sim, de uma multiplicidade de situações; é

98

resultante de uma heterogênese de cruzamentos de problemas, outros conceitos e acontecimentos. 4. Todo conceito só pode ser compreendido a partir do problema ou do campo de problematizações no qual foi criado e formulado, pois todo conceito é criado e formulado à luz de problemas específicos, problemas estes que podem ser reformulados e recolocados de maneiras diferentes ao longo da história. 5. Cada conceito é uma tentativa de dar conta de questões específicas, construídas num determinado momento histórico a partir de um solo epistemológico e de campo teórico-metodológico próprio, uma vez que todo conceito está localizado num plano de imanência. Ele brota de um solo epistemológico especifico a partir do qual é formulado o problema que ele supõe responder. Isso implica que todo conceito opera a partir de um campo teórico-metodológico específico e é a partir dessas referências que os conceitos permitem-nos fazer uma leitura-intervenção singular no mundo. 2.4

A relação entre conceito e locus de enunciação Todo

conceito

é

assinado,

os

conceitos

são

situados,

historicamente, pelas “marcas” e pela “assinatura” dos seus autores. Segundo Gallo (2008), todo conceito é necessariamente assinado; cada autor, ao criar um conceito, ressignifica um termo da língua com um sentido propriamente seu. A assinatura remete ao estilo filosófico de cada um, à forma particular de pensar e de escrever. Assim, a criação de conceitos é uma espécie “assinatura do mundo”: cada autor assina o mundo à sua maneira, por meio dos conceitos que cria. Entendemos que a “marca” e a “assinatura” dos autores no conceito está além do estilo filosófico e de sua singularidade como escritor. Essas marcas tem a ver, também, com a condição social, a situação e localização geo-histórica e bio-política dos “sujeitos-autores”, ou seja, do lócus de enunciação de onde fala o autor que cria um conceito. De onde falam os autores que formulam os diferentes conceitos na geografia? Falam a partir de que contexto histórico-geográfico? A partir de que cultura e de que língua? De que pontos de vista de classe, raça e gênero? De que forma

99

essas diferentes formas de localização social, geo-histórica , geo-política e bio-política afetam, influenciam as diferentes formulações dos conceitos em geografia? O discurso epistemológico hegemônico da ciência e da filosofia modernas aponta para a ideia de que o conhecimento científico é deslocalizado, des-contextualizado e des-incorporado e, portanto, trata-se de um conhecimento abstrato e universal, um conhecimento transcendental que independe de tempo e espaço, um conhecimento que paira sobre as contingências históricas, como se estivesse flutuando e não tivesse nenhuma ligação com os sujeitos que o produzem. Assim, na produção filosófica e científica moderna ocidental, o sujeito que fala, o sujeito que teoriza, em suma, o sujeito que produz o conhecimento, as teorias e os conceitos está sempre oculto, disfarçado, escondido. Trata-se de sujeito abstrato, um sujeito não localizado, não situado, um sujeito sem corpo, sem cultura, sem classe, sem sexo e que, portanto, o seu locus de enunciação é abstrato e não está contaminado de marcas terrenas. Logo, o lócus de enunciação é universal. Na filosofia e nas ciências ocidentais, aquele que fala está sempre escondido, oculto, apagado da análise. A "egopolítica do conhecimento" da filosofia ocidental sempre privilegiou o mito de um "Ego" não situado. O lugar epistémico étnico-racial/sexual/de género e o sujeito enunciador encontram-se, sempre, desvinculados. Ao quebrar a ligação entre o sujeito da enunciação e o lugar epistémico étnico-racial/sexual/de género, a filosofia e as ciências ocidentais conseguem gerar um mito sobre um conhecimento universal verdadeiro que encobre, isto é, que oculta não só aquele que fala como também o lugar epistémico geopolítico e corpo-político das estruturas de poder/conhecimento colonial, a partir do qual o sujeito se pronuncia. (GROSFOUGUEL, 2008: ???). Essa operação que apaga o sujeito da fala, que apaga as marcas de sua localização epistemológica, as marcas inscritas no seu locus de enunciação, é que produz o mito do conhecimento neutro e universal. Mas sabemos que a produção do conhecimento não é abstrata, mas sim contextualizada, localizada, incorporada, ela está situada em histórias locais e arraigada em culturas e cosmovisões particulares e traz as marcas dos sujeitos que a produzem, sujeitos estes constituídos a partir de suas

100

experiências e subjetividades configuradas, socialmente, a partir de suas posições-de-sujeito das relações sociais de poder que envolvem as divisões e hierarquias de classe raça/etnia, gênero e sexualidade. Desse modo, falamos sempre a partir de um determinado lugar situado nas estruturas de poder. Ninguém escapa às hierarquias de classe, sexuais, de gênero, espirituais, linguísticas, geográficas e raciais. Nesse sentido, se fizermos uma cartografia mais rigorosa da localização dos saberes, dos conhecimentos, das teorias e dos conceitos produzidos pela filosofia e pela ciência ocidental, veremos que não há nada de abstrato, o que há é um perfil muito particular e específico do sujeito epistêmico que produz os saberes hegemônicos no Ocidente. Há uma clara configuração corpo-política ou bio-política e uma configuração geo-política do lócus de enunciação, trata-se do homem de classe média, branco e heterossexual, falando da Europa ou Estados Unidos em inglês, francês ou alemão. Portanto, essa localização social, geo-histórica, geo-política e biopolítica dos autores-sujeitos está como marca das digitais na formulação dos conceitos, são as tintas que caracterizam assinatura dos autores em cada conceito criado. Assim, quando discutimos o conceito de território, temos de analisar o lócus de enunciação de onde se está falando. Por exemplo, podemos verificar que o conceito de território tem uma grande centralidade no contexto latino-americano enquanto, no contexto anglo-saxônico, esse conceito assume uma condição marginal nas reflexões geográficas diante de outros conceitos priorizados, em especial, o conceito de lugar, que é amplamente linguísticos

teorizado. e,

talvez,

Trata-se também

de

universos

epistemes

histórico-culturais

diferentes.

Os

e

problemas

fundamentais das sociedades são distintos e específicos e isso reflete-se na construção das categorias analíticas. Do mesmo modo que, se “situarmos” os autores que formularam as principais concepções de territórios, veremos que estes construíram-nas a partir de referências muito diversas. Alguns, a partir de pesquisas no universo urbano, outros, rurais; alguns, a partir de contextos de grande modernização e outros, de sociedades tradicionais; alguns, a partir de

101

problemáticas que envolvem questões eminentemente políticas, já outros, ligados a questões de pertencimento, cultura e identidade. Do mesmo modo que algumas formulações dão-se a partir de posturas mais “academicistas”, a partir de “intelectuais puros”, outras estão mais ligadas ao universo da militância de lutas políticas concretas, em que os papéis dos conceitos adquirem outra qualidade, sendo formulados por “intelectuais orgânicos” que vivem entre a academia e a política. Essas diferentes “marcas”, “localizações” que revelam o lócus de enunciação do conceito, um lugar de fala do sujeito epistêmico, aparecem na forma como cada autor assina seus conceitos e deixa sua assinatura no mundo. 2.5. A relação entre conceito e historicidade Todo conceito tem uma história. Entender a historicidade de um conceito significa entender que ele é construído num momento histórico específico a partir de problemas também específicos. Além disso, todos os conceitos são marcados por acúmulos, heranças e continuidades dentro de um campo disciplinar e de uma tradição teórica e, também, por rupturas, descontinuidades

e

sobressaltos.

Ainda,

devemos

lembrar

a

radical

historicidade dos conceitos pela sua capacidade de duração e longevidade ou pela sua defasagem e superação, pois os conceitos têm sua validade, capacidade de operacionalização analítica e legitimidade política e ideológica expostas ao movimento da história que aprofunda, redefine, re-significa ou supera-os. De acordo com o movimento da sociedade, das problemáticas que se colocam como relevantes e dos diversos movimentos e problemáticas colocadas no campo do pensamento social, determinadas categorias ganham ou perdem uma aura de centralidade num determinado campo disciplinar. Assim, quando olhamos o campo da Geografia, verificamos que outras categorias já gozaram do status de centralidade, como é caso do conceito de região que, na chamada geografia clássica, foi durante muito tempo um conceito paradigmático. Com o processo de renovação, a partir da década de 1970, no Brasil, o conceito de espaço assumiu a condição de objeto e categoria fundamental de análise da Geografia. Mais recentemente,

102

o território é o conceito da vez, “o conceito da moda”, contudo, sua história é mais longa... Quando lançamos o nosso olhar para a história da Geografia, verificamos que o conceito de território é um dos mais antigos nos estudos geográficos. Essa categoria enfoca diversas dimensões de análise das relações sociedade-espaço. Sua perspectiva analítica é múltipla e vem metamorfoseando-se de acordo com o momento histórico da disciplina e as posturas filosóficas e políticas dos pesquisadores. Existe um importante acúmulo no debate desse conceito, na geografia, presente nas reflexões de Ratzel (1990); Raffestin (1988; 1993); Sack (1986); Souza (1995; 2009); Claval (1999); Santos (2000; 2002); Bonnemaison (2003); Bonnemaison & Cambrezy (1996); Haesbaert (1997; 2004; 2005; 2008; 2009). A partir dessa vasta produção, Haesbaert (2001; 2002; 2004) analisa a complexidade das diferentes perspectivas e formulações sobre o conceito de território e, a partir de um elucidativo mapeamento das diversas correntes e questões envolvendo essa categoria na tradição geográfica e em outras tradições disciplinares, cria uma espécie de “cartografia conceitual” na qual o referido autor identifica três grandes concepções de território na tradição geográfica, que são: Política (referente às relações espaço-poder em geral) ou jurídico-política (relativa também a todas as relações espaçopoder institucionalizadas): a mais difundida, em que o território é visto como um espaço delimitado e controlado, através do qual se exerce um determinado poder, na maioria das vezes - mas não exclusivamente - relacionado ao poder político do Estado. Cultural (muitas vezes, culturalista) ou simbólico-cultural: prioriza a dimensão simbólica e mais subjetiva, em que o território é visto, sobretudo, como o produto da apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido. Econômica (muitas vezes, economicista): menos difundida, enfatiza a dimensão espacial das relações econômicas, o território como fonte de recursos e/ou incorporado no embate entre classes sociais e na relação capital-trabalho como produto da divisão "territorial" do trabalho, por exemplo. (HAESBAERT, 2004:40).

103

Apesar de existirem importantes formulações e autores nessas três direções teóricas, elas não têm o mesmo peso e importância na produção dos geógrafos.

A concepção que tem o foco na dimensão mais

política do espaço é, de longe, a mais desenvolvida e a mais usada pelos geógrafos. Embora, cada vez mais, a abordagem de caráter mais cultural ganhe

força

na

paisagem

intelectual

contemporânea

devido

a

um

movimento mais amplo de centralidade epistemológica que a cultura vem assumindo nas ciências sociais nas últimas duas décadas (a chamada virada cultural). Já no que se refere à concepção mais ligada a uma abordagem marxista, na qual a dimensão econômica ganha centralidade, o conceito de território é pouco desenvolvido, pois, nessa abordagem, o conceito de espaço assume o status de categoria de análise fundamental. A concepção jurídico-política do território é a mais utilizada e a que tem a mais longa história na tradição da Geografia, mas a forma como foi formulada não foi sempre a mesma. A problemática ou campo de problematização que envolve essa forma de conceber o conceito de território esteve, histórica e intimamente, ligada à questão do poder ou, melhor dizendo, do exercício do poder no e através do espaço, porém a forma como foi tratado esse problema do ponto de vista teórico e prático mudou bastante ao longo da história. Inicialmente, esse problema era equacionado a partir da relação poder/espaço/Estado.

Assim,

desde

as

origens

na

Geografia

e,

especialmente, na Geografia Política, o uso do termo território esteve ligado à análise da relação do território como fundamento material do Estado. Os estudos de Ratzel personificam essa visão. Em sua análise, o território é entendido como fundamento da existência material do Estado; a relação solo, cultura e Estado é analisada a partir da ideia de “espaço vital”, ou seja, o território como um recurso fundamental, algo imprescindível para o desenvolvimento

dos

povos,

pois

“sem

território

não

se

poderia

compreender o incremento da potência e da solidez do Estado22”. Essa

ótica

de

leitura

do

território

e

do

poder

tornou-se

paradigmática. Mas, muitas vezes, mostrou-se reducionista e claramente

22

RATZEL (apud HAESBAERT, 2002).

104

ideológica, pois, devido à sua tradição geopolítica, tornou-se muito estadocêntrica,

limitando

o

conceito

de

território

aos

problemas

circunscritos à escala nacional e privilegiando o Estado como o único ator protagonista23.

Desse

modo,

acabava-se

confundindo

o

conceito

de

território com território nacional, admitindo-se sua existência somente de maneira monoescalar, e fazendo-se uma leitura do fenômeno do poder como este sendo de natureza exclusivamente estatal. Recentemente, os avanços na leitura do fenômeno do poder, este entendido como relação e não como posse, e a constatação da existência de uma microfísica do poder, por Michel Foucault (1979), permitiram uma reflexão mais completa sobre a territorialidade humana, apontando para um entendimento de que o poder é imanente às relações sociais. Além da compreensão de que as formas de manifestação do exercício do poder podem dar-se em múltiplas escalas, envolvendo uma multiplicidade de atores sociais. Inspirado nesse raciocínio, Raffestin (1993), em Por uma Geografia do Poder, afirma que a “territorialidade se manifesta em todas as escalas espaciais e sociais; ela é consubstancial a todas as relações e seria possível dizer que, de certa forma, é a „face vivida‟ da face agida do poder” (RAFFESTIN, 1993: 162). Partindo excelência

do

dessa

exercício

perspectiva do

poder

do de

território maneira

como

espaço

por

multidimensional

e

multiescalar, surgem outras importantes formulações como a de Robert Sack (1986), na qual ele enfatiza que a ideia de territorialidade está diretamente vinculada ao controle de uma área geográfica, aos limites delimitados

pelo

poder,

buscando

disciplinar,

moldar,

influenciar

ou

controlar o comportamento pelo controle do acesso. A territorialidade é definida por este autor como “a tentativa de um indivíduo ou grupo de afetar, influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e relações, através da delimitação e da afirmação do controle sobre uma área geográfica” (SACK, 1986, P. 1). A territorialidade, para os humanos, é uma estratégia geográfica poderosa para controlar pessoas e coisas através de um controle de área. Os territórios políticos e a propriedade privada da terra 23

Ver crítica de Raffestin (1993) e Souza (1995) sobre essa visão reducionista de pensar o conceito de território.

105

podem ser as suas formas mais familiares, mas a territorialidade ocorre em vários graus e em inúmeros contextos sociais. Ela é usada nas relações do dia a dia e nas organizações complexas. A territorialidade é uma expressão geográfica primária do poder social. Ela é um meio pelo qual o espaço e o tempo estão interrelacionados (SACK, 1986: 6, tradução livre). Para Sack (1986), a territorialidade como forma espacial primária do poder é fundamentalmente uma estratégia humana para afetar, influenciar e controlar. A realização de tal estratégia materializa-se pelo estabelecimento de diferentes graus de acesso às pessoas, coisas e relações. Nesse sentido, o território pode ser usado para conter ou restringir, bem como para excluir. Considerando a territorialidade como uma estratégia para acessos diferenciados, seu uso depende de quem está influenciando e controlando o que e quem e, ainda, o porquê de tal afeto/controle/influência. Mas essa dimensão disciplinar da territorialidade não implica vê-la como algo meramente instrumental e funcional, pois a “Territorialidade está intimamente relacionada em como as pessoas usam a terra e como elas organizam-se no espaço, e como elas dão sentido ao lugar”. Sendo assim, o autor

fala-nos

da

territorialidade

como

um

meio

pelo

qual

nós

experimentamos o mundo e o dotamos de significados. “A territorialidade como um componente do poder não é apenas um meio de criar e manter a ordem, mas é uma estratégia para criar e manter em grande parte o contexto geográfico por meio do qual nós experimentamos o mundo e o dotamos de significado” (p.219). Na mesma perspectiva, que valoriza a dimensão política do conceito, Souza (1995) define que o território é fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder. O território (...) é fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder. A questão primordial aqui, não é, na realidade, quais as características geoecológicas e os recursos naturais de uma certa área, o que se produz ou quem produz em dado espaço ou ainda quais as ligações afetivas e de identidade entre um grupos social e seu espaço. Estes aspectos podem ser de crucial importância para a compreensão da gênese de um território ou do interesse por tomá-lo ou mantê-lo (...), mas o verdadeiro

106

leitmotiv é o seguinte: quem domina ou influencia e como domina ou influencia esse espaço? Este leitmotiv traz embutida, ao menos de um ponto de vista não interessado em escamotear conflitos e contradições sociais, a seguinte questão inseparável, uma vez que o território é essencialmente um instrumento do exercício do poder: quem domina ou influencia quem nesse espaço, e como?.(SOUZA, 1995: 78 - grifos do autor). No sentido de um maior esclarecimento de sua formulação, Souza (1995) define o território como “um campo de forças, uma teia ou rede de relações sociais que, a par de sua complexidade interna, define ao mesmo tempo um limite, uma alteridade: a diferença entre “nós” (o grupo, os membros da coletividade ou comunidade, os insiders) e os “outros” (os de fora, os estranhos, outsiders”) (SOUSA, 1995: 86). Num esforço para afirmar uma visão relacional e não substancialista de território, o autor procura mostrar que os “territórios são, no fundo, antes relações sociais projetadas no espaço que espaços concretos (os quais são apenas os substratos materiais das territorialidades)” (SOUSA, 1995: 87). [...] o território não é o substrato, o espaço social em si, mas sim um campo de forças, as relações de poder espacialmente delimitadas e operando, destarte, sobre um substrato referencial. 24 (SOUSA, 1995: 97). Essa perspectiva relacional, que entende o poder como campo de forças capaz de afetar ações, comportamentos, pessoas pelo controle de acesso, é hoje a forma mais generalizada nas pesquisas em Geografia. Porém, como falamos anteriormente, para além dessa concepção políticojurídico e disciplinar do território, a dimensão simbólico-cultural vem ganhando força nas reflexões dos geógrafos sobre esse conceito, ao ponto de consolidar-se uma visão que poderíamos denominar cultural(ista). Essa perspectiva analítica prioriza o território não em termos disciplinares, mas na sua dimensão simbólica e mais subjetiva. Nessa visão, o território é

24

Souza (1995) faz um esforço para construir uma formulação que dei ênfase nas relações sociais, fugindo de uma visão “coisificada” do território que ele crítica “sem sombra de dúvida. O exercício do poder pode depender muito diretamente da organização espacial, das formas espaciais, mas falamos dos trunfos espaciais da defesa do território e não do conceito de território em si”.

107

visto, sobretudo, como produto da apropriação/valorização simbólica do espaço através do imaginário e/ou da identidade social. Sob esse ponto de vista, o território é, sobretudo, “um construtor de identidade, talvez o mais eficaz de todos”. (BONNEMAISON & CAMBREZY, 1996:13) Essa visão consolidou-se, principalmente, na chamada “nova geografia cultural”, na qual a visão do território é fundamentalmente um referencial na construção das identidades. Nesse sentido, a relação dos homens para com os seus territórios expressa e transcende a "posse" material de uma porção da superfície terrestre. “O poder do laço territorial revela que o espaço é investido de valores não somente materiais, mas também

éticos,

espirituais,

simbólicos

e

afetivos”.

(BONNEMAISON;

CAMBREZY, 1996:10). Há no território humano alguma coisa de poético, ético e quase sempre estético que toca ou mergulha no sagrado. Os geosímbolos celebram a magnificência dos começos. Eles exprimem suas mensagens pelo rito, assim como o rito se encarna nos lugares que se tornam eles mesmos os objetos rituais e de peregrinação, e assim, laços unificadoras que constroem as comunidades humanas. (BONNEMAISON & CAMBREZY, 1996:15, tradução livre). Diante disso, Bonnemaison e Cambrezy (1996:15) afirmam que, para além da “função” que assume, o território é primeiramente um “valor”, sobretudo, nas sociedades tradicionais onde. O território não se define por um princípio material de apropriação, mas sim por um princípio cultural de identificação ou, se preferimos, de pertencimento. Esse princípio explica a intensidade da relação com o território. Ele não pode ser percebido apenas como uma posse ou como uma entidade externa à sociedade que o habita. É uma parcela de identidade, fonte de uma relação de essência afetiva e, até mesmo, amorosa com o espaço. Pertencemos a um território, nós não o possuímos, nós o guardamos, nós o habitamos, impregnamo-nos dele (...). Em suma, o território não faz parte simplesmente da função ou do ter, mas do ser. (BONNEMAISON & CAMBREZY, 1996:13, tradução livre) Portanto, o território é, fundamentalmente, para Bonnemaison; Cambrezy (1996), “um espaço cultural de pertencimento, onde são

108

impressos o sentido da vida alimentado de geosímbolos e rico de memória, o território é um dado incontornável da experiência humana, convivial (?) mais do que conflituosa inscrita no tempo e no espaço e no qual ninguém pode se libertar” (p.17) Nessa paisagem, ainda podemos encontrar perspectivas que trabalham na interface entre duas perspectivas analíticas: a jurídicopolítica, que aponta para uma análise no aspecto político-disciplinar do território; e culturalista, que dá ênfase à dimensão cultural-simbólica. Uma perspectiva mais integradora de território, que opera na interface dessas concepções, foi formulada por Haesbaert, que define: O território envolve sempre, ao mesmo tempo [...], uma dimensão simbólica, cultural, por meio de uma identidade territorial atribuída pelos grupos sociais, como forma de controle simbólico do espaço onde vivem (podendo ser, portanto, uma forma de apropriação), e uma dimensão mais concreta, de caráter político-disciplinar: apropriação e ordenamento do espaço como forma de domínio e disciplinarização dos indivíduos. [...] Assim, associar o controle físico ou a dominação “objetiva” do espaço a uma apropriação simbólica, mais subjetiva, implica em discutir o território enquanto espaço simultaneamente dominado e apropriado, ou seja, sobre o qual se constrói não apenas um controle físico, mas também laços de identidade social (HAESBAERT, 2001:120-121).

Haesbaert (2009) reafirma a ideia de que o conceito de território está estreitamente vinculado com o poder ao afirmar que “em qualquer acepção” o conceito de território, tem a ver com poder, mas não apenas ao tradicional “poder político”. Ele diz respeito tanto ao poder, no sentido mais explícito, de dominação, quanto ao poder no sentido mais implícito ou simbólico, de apropriação. Lefebvre distingue apropriação de dominação (“possessão”, “propriedade”): o primeiro, sendo um processo muito mais simbólico, carregado das marcas do “vivido”, do valor de uso; o segundo, mais concreto, funcional e vinculado ao valor de troca (Haesbaert, 2009). Dessa forma, cada território se constrói por uma combinação e imbricação única de múltiplas relações de poder, do mais material e funcional, ligado a interesses econômicos e políticos, ao poder mais simbólico e expressivo, ligado às relações de ordem mais

109

estritamente cultural. Portanto, o território, enquanto relação de dominação e apropriação sociedade-espaço, desdobra-se ao longo de um continuum que vai da dominação político-econômica mais “concreta” e “funcional” à apropriação mais subjetiva e/ou cultural - simbólica (HAESBAERT, 2004:95). Logo, na visão de Haesbaert (2009), todo território é, ao mesmo tempo

e

obrigatoriamente,

em

diferentes

combinações,

funcional

e

simbólico, pois exercemos domínio sobre o espaço tanto para realizar “funções” quanto para produzir “significados” (Haesbaert, 2009). Contudo, o significado e a configuração do território variam muito ao longo do tempo e dos espaços, uma vez que suas “funções” e suas “significações” dependem

de

escalas,

contextos

históricos,

geográficos

e

culturais

específicos, partindo de sujeitos específicos. Essa primeira forma de aproximação (recuperar as formulações ao

longo

da

história)

mostra-nos

um

mapeamento

das

principais

formulações construídas sobre o conceito de território, mostrando uma rica e densa diversidade de formulações acumuladas historicamente, contudo essa forma de tratamento do conceito de território ainda apresenta algumas limitações: 1) Não há distinção entre especificidade do conceito de território em relação aos outros conceitos da geografia como espaço e lugar. Assim, na concepção economicista e em algumas formulações da concepção

jurídico-política,

o

conceito

confunde-se

com

as

formulações sobre espaço geográfico (social), pois dizer que o território trata da dimensão política, do poder e do conflito não esclarece sua especificidade.

Quando olhamos as importantes

formulações sobre o conceito de espaço como, por exemplo, em Lefebvre, Milton Santos e David Havey, vemos claramente que a política, o poder e conflito estão presentes nessas formulações sobre o conceito de espaço. Já, ao olharmos a concepção culturalista, vemos que a definição do conceito dá-se por elementos como a afetividade, a ligação emocional e o sentido de pertencimento a uma certa porção do espaço. Contudo, quando comparamos essas formulações, percebemos

que esses elementos

também estão

110

presentes de maneira central nas principais formulações do conceito de lugar na geografia humanista. Diante dessa situação, qual a especificidade do conceito de território? 2) Essa primeira limitação é fruto de outra mais estrutural que é a falta de clareza da base teórica e metodológica em que cada formulação está ancorada, a ideia de ênfase de dimensões da realidade: a política, a econômica e a cultural/simbólica passam a ser os indicadores definidores das formulações. Não há uma relação e uma vinculação explícitas de cada formulação com seu solo epistemológico e campo teórico-metodológico mais amplo, a não ser no caso da ligação

da

concepção

mais

economicista

com

o

marxismo

(materialismo histórico e dialético). Essas

duas

questões

colocam-nos

como

necessidade

uma

discussão mais aprofundada sobre a complexidade do conceito e sobre a relação entre o conceito e o problema/campo problemático e, também, sobre

a

relação

entre

o

conceito

e

plano

de

imanência/solo

epistemológico/campo teórico-metodológico. E o faremos em seguida. 2.6 A relação entre conceito e multiplicidade/complexidade Segundo Deleuze e Guattari (1992: p.27), não há conceito simples, todo conceito é complexo, pois “todo conceito tem componentes, e se define por eles. Tem, portanto uma cifra. Todo conceito tem um contorno irregular, definido pela cifra de seus componentes”. Assim, não há conceito construído

a

partir

de

um

único

elemento,

todo

conceito

é

uma

multiplicidade formada “por componentes e define-se por eles; claro que totaliza seus componentes ao constituir-se, mas é sempre um todo fragmentado, como um caleidoscópio, em que a multiplicidade gera novas totalidades provisórias a cada golpe de mão” (GALLO, 2008). Nesse sentido, podemos entender que o conceito é uma questão de articulação, corte e superposição, o conceito é um momento, um ponto de coincidência, de articulação e condensação de vários elementos lógicos e históricos, criando uma configuração singular. Entende-se, portanto, que um conceito nunca é criado do nada, mas, sim, de uma multiplicidade de

111

situações;

é

resultante

de

uma

heterogênese

de

cruzamentos

de

problemas, outros conceitos e acontecimentos. Sendo assim, todo conceito só ganha sentido a partir do conjunto de outros conceitos, a partir um de conjunto de relações e inter-relações entre elementos e conceitos, construindo redes, teias, constelações e planos conceituais. Sobre essa ordenação, conexão e inter-relação entre os conceitos no mesmo plano, Deleuze e Guattari (1992) afirmam: [...] os conceitos se acomodam uns aos outros, superpõem-se uns aos outros, coordenam seus contornos, compõem seus respectivos problemas, pertencem à mesma filosofia, mesmo se têm histórias diferentes. Com efeito, todo conceito, tendo um número finito de componentes, bifurcará sobre outros conceitos, compostos de outra maneira, mas que constituem outras regiões do mesmo plano, que respondem a problemas conectáveis, participam de uma co-criação. Um conceito não exige somente um problema sob o qual remaneja ou substitui conceitos precedentes, mas uma encruzilhada de problemas em que se alia a outros conceitos coexistentes. (DELEUZE e GUATTARI 1992:30).

A

partir

desse

pensamento,

para

compreensão

de

um

determinado conceito e, sobretudo, para sua operacionalização, é preciso entender os conceitos e sua complexidade e sua condição relacional, suas relações

de

proximidade,

vizinhança,

semelhança,

intersecções,

sobreposições, mas também seus distanciamentos, distinções, contrastes e diferenciações em pelo menos três níveis: no plano externo, interno e derivativo. No plano externo, trata-se de localizar relacionalmente o conceito no seu campo disciplinar, pois, como afirmam Deleuze e Guttari (1992), O conceito é, portanto, ao mesmo tempo absoluto e relativo: relativo a seus próprios componentes, aos outros conceitos, ao plano a partir do qual se delimita, aos problemas que se supõe deva resolver, mas absoluto pela condensação que opera, pelo lugar que ocupa sobre o plano, pelas condições que impõe ao problema. É absoluto como todo, mas relativo enquanto fragmentário. É infinito por seu sobrevôo ou sua velocidade, mas finito por seu movimento que traça o contorno dos componentes. (DELEUZE e GUATTARI, 1992: 33-34).

112

Assim, para buscamos sua especificidade, sua condição absoluta como uma possibilidade singular de resposta a um problema específico, precisamos entender seu caráter relativo, no que se refere a seus componentes e a outros conceitos; relativo aos problemas aos quais se dirige, relativo em relação ao seu contexto disciplinar. Nesse sentido, é fundamental traçarmos as coordenadas relacionais do conceito de território em relação com os outros conceitos estruturantes do campo disciplinar da Geografia como é o caso dos conceitos de espaço, lugar, paisagem, região, rede etc., mostrando suas relações, suas interseções, suas sobreposições e suas diferenciações contrastantes, enfim, suas especificidades. Já no que se refere ao plano interno, precisamos analisar os elementos conceituais, os conceitos que compõem o conceito território, pois, segundo Gallo (2007), todo conceito é o ponto de coincidência, de condensação, de convergência de seus componentes, que permitem uma significação singular, um mundo possível, em meio à multiplicidade de possibilidades. Nesse mesmo sentido, Deleuze e Guattari (1992:30) afirmam que: É próprio do conceito tornar os componentes inseparáveis nele: distintos, heterogêneos e todavia não separáveis, tal é o estatuto dos componentes, ou o que define a consistência do conceito, sua endo-consistência. É que cada componente distinto apresenta um recobrimento parcial, uma zona de vizinhança ou um limite de indiscernibilidade com outro. (...) São estas zonas, limites ou devires, esta inseparabilidade, que definem a consistência interior do conceito. (DELEUZE E GUATTARI, 1992: 30). Então,

para

entendermos

um

conceito

como

de

território

precisamos explicitar as definições e articulações que dão a configuração a este conceito, precisamos discutir os elementos conceituais que dão consistência interna ao conceito de território tais como: política, poder, ação,

conflito,

antagonismos,

estratégia,

tática,

disciplina,

controle,

domínio, apropriação etc. Mas, além do plano externo e interno que dão consistência e identidade ao conceito, ainda é necessário levar em conta o plano derivativo em que está envolvido o conceito. Nesse sentido, precisamos compreender

113

os conceitos derivados, aqueles que surgem a partir de um conceito central e nuclear construindo uma família, uma rede conceitual que normalmente é mobilizada no seu conjunto. Seguindo o nosso exemplo do conceito de território, podemos identificar uma família de conceitos derivados desse conceito nuclear: territorialidade, territorialização, des-territorialização, reterritorialização, identidade territorial, direito territorial, justiça territorial etc. 2.7.

A

relação

entre

conceito

e

problema

ou

campo

de

problematização O que leva um autor a formular, produzir, criar um conceito? Ou, ainda, o que nos faz escolher trabalhar, usar um conceito e não outro na realização de nossas pesquisas? Essas questões implicam perguntar sobre a razão da existência dos conceitos. Deleuze e Guattari (1992) apontam-nos um caminho fundamental para respondermos a essas questões. Para esses autores, todo conceito só pode ser compreendido a partir do problema ou do campo de problematizações no qual foi criado e formulado, pois todo conceito é criado e formulado à luz de problemas específicos, problemas estes que podem ser reformulados e recolocados de maneiras diferentes ao longo da história. Gondar (2005:13), inspirada em Deleuze, afirma que “um conceito não surge do nada, e tampouco é um ápice de uma história linear, cujo progresso ou o aperfeiçoamento exige a sua definição, como se ele existisse em larva desde o inicio dos tempos”. Para a autora, o conceito é uma tentativa de responder a um feixe de problemas que se constrói, de maneira contingente, em um determinado momento. Em outros termos, “um conceito não surge do aprimoramento das ideias, mas da emergência de um campo problemático que exige novas categorias do pensamento que lhe façam face”. Assim, o ato da criação dos conceitos está diretamente ligado a questões e problemas aos quais se supõe que eles respondam. Portanto, qualquer conceito só pode ser compreendido à luz dos problemas ou do campo de problematizações no qual um referido conceito foi criado e inventado.

114

Assim,

cabe

perguntar

quais

problemas

ou

campo

de

problematizações estão ligados aos conceitos criados no campo da geografia? Conceitos como espaço, território, lugar a que problemas querem responder?

É o problema subjacente a cada conceito que vai

definir o foco analítico do conceito, as linhas de visibilidade/enunciação, as linhas de força e as linhas de objetivação. Assim, mesmo que os conceitos de espaço, lugar e território aproximem-se, tenham semelhanças, pois todos têm um objetivo comum, que é nos ajudar a fazer uma leitura das espacialidade/ou geograficidade do social, os problemas, as questões que cada um desses conceitos permite-nos visualizar e tratar são distintas por conta dos problemas diferentes que cada conceito busca responder. Portanto,

suas

diferenças

contrastantes

dão-se

no

campo

analítico, de acordo com cada problema ou campo problemático que o conceito permite-nos tratar, e não no campo ontológico como, muitas vezes, determinadas formulações relacionam conceitos como território e lugar a determinados fenômenos específicos, como se fossem quase dimensões da realidade espacial. O primeiro mais ligado à política e o segundo, à cultura e à experiência subjetiva e simbólica. Assim, certo espaço passa a ser qualificado como território a partir da ocorrência de determinados processos e relações sociais, qualificadas como políticas e de poder, ou o espaço passaria a ser um lugar

a partir da valorização e

apropriação afetiva e emocional dos sujeitos. Os exemplos dessa forma de pensar os conceitos são muitos. Vamos às duas mais famosas e, talvez, influentes distinções: Raffestin (1993), no que diz respeito à relação espaço e território; e Yfu Tuan (1983), no que se refere ao conceito do espaço e do lugar. Esse tipo de raciocínio obscurece a operacionalização de um conceito como território, por exemplo, quando distingue do conceito de espaço como faz Raffestin (1993). Esse autor começa sua famosa e supracitada formulação alertando que há muita confusão entre geógrafos no uso dos termos espaço e território. O autor, a partir do pressuposto de que esses termos não são equivalentes, mas sim distintos (apesar de não discutir profundamente essa distinção), e partindo desse pressuposto, sinaliza uma consideração epistemológica na qual coloca o espaço na

115

condição de uma noção e território na condição de um conceito. O conceito para o autor tem um formalização/e ou quantificação mais precisa (o conceito seria mais rigoroso e preciso do que a noção). A partir dessas considerações de caráter epistemológico, o autor formula sua distinção afirmando que “é essencial compreender que o espaço é anterior ao território. O território se forma a partir do espaço”. O território resulta de “uma ação conduzida por um ator sintagmático (que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço concreta ou abstratamente (por exemplo, pela representação), o ator “territorializa” o espaço”. [...] O território nessa perspectiva, é um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, por conseqüência, revela relações marcadas pelo poder. O espaço é a “prisão original”, o território é prisão que os homens constroem para si. (RAFFESTIN 1993: 143-144). Continuando seu esforço de distinção, o autor afirma que, numa visão marxista, “o espaço é, de certa forma, „dado‟ como se fosse uma matéria

prima”

[...]

“a

realidade

material

preexistente

a

qualquer

conhecimento e a qualquer prática dos quais será objeto a partir do momento em que um ator manifeste a intenção dele se apoderar” (RAFFESTIN, 1993, p. 144). Para ilustrar seus argumentos, o autor utiliza as ideias e palavras de Henri Lefebvre sobre a produção social do espaço. Há, claramente, entre o primeiro momento da argumentação do autor e o final, um deslocamento de uma distinção de caráter epistemológico para uma diferenciação de natureza ontológica, inclusive levando ao equívoco de usar as ideias de Lefebvre para mostrar a transição do espaço ao território. No sentido de crítica a essa visão, as palavras de Haesbaert (2009:104) são precisas e contundentes: Ao afirmar que “o território se apóia no espaço, mas não é o espaço; é uma produção, a partir do espaço” (1993, p. 144), Raffestin acaba se confundindo na própria alusão que faz a Lefebvre, como se este também partilhasse dessa “passagem” do espaço ao território. Ao contrário, para Lefebvre (1986) o espaço também – e sobretudo – é produzido socialmente, não se tratando em hipótese alguma de um “a priori” (uma espécie de

116

“primeira natureza”) sobre o qual reproduzimos nosso trabalho e exercemos poder. O território, tal como fica implícito em certas passagens do autor, privilegiaria a dimensão política (sobretudo a estatal) desse espaço socialmente produzido. Haesbaert (2009), numa crítica dessa distinção ontológica, afirma que não se trata, evidentemente, de distinguir de maneira clara ou, mesmo, rígida espaço de território. Nesse sentido, afirma que: [...] embora não equivalentes, como se referiu Raffestin, espaço e território nunca poderão ser separados, já que sem espaço não há território – o espaço não como um outro tipo de “recorte” ou “objeto empírico” (tal como na noção de “matéria-prima preexistente” ainda não apropriada), mas, num âmbito mais epistemológico, como um outro nível de reflexão ou um “outro olhar”, mais amplo e abstrato, e que não se define frente a uma problemática social específica (mas a uma dimensão, fundamental, da sociedade), como é o caso do território, em sua referência central à espacialidade das relações de poder. (HAESBAERT, 2009:104).

Ainda, segundo Haesbaert (2009), talvez pudéssemos afirmar, de maneira mais simples, que o: Espaço é a expressão de uma dimensão da sociedade, em sentido amplo, priorizando os processos em sua coexistência/simultaneidade (incorporando aí, obviamente, a própria transformação da natureza [a este respeito, ver Massey, 2008]), o território se define mais estritamente a partir de uma abordagem sobre o espaço que prioriza ou que coloca seu foco, no interior dessa dimensão espacial, na “dimensão”, ou melhor, nas problemáticas de caráter político ou que envolvem a manifestação/realização das relações de poder, em suas múltiplas esferas. (HAESBAERT, 2009: 105, negrito nosso).

Haesbaert (2009) realiza um claro deslocamento da distinção ontológica para um nível epistemológico oferecendo um caminho promissor, contudo ainda permanecem algumas ambiguidades no que se refere ao conceito de espaço, pois este aparece com duas significações distintas nessa discussão. Na primeira, o espaço entendido como uma dimensão da realidade, a dimensão espacial da sociedade confundindo-se com o próprio

117

objeto da geografia, talvez, nesse caso, fosse melhor trabalharmos com a ideia de espacialidade como sugere Soja (1999) ou mesmo geograficidade do social como sugere outros geógrafos como Dardel (1959), Moreira (2004) e Porto-Gonçalves (2004). 2.8

A

relação

entre

conceito

e

plano

de

imanência/solo

epistemológico Não podemos tomar os conceitos como elementos isolados, pois eles estão envolvidos em uma atmosfera mais ampla. Os conceitos são criados partir de um plano de imanência, de solo epistemológico e opera a partir de um campo teórico/metodológico específico; todo conceito traz as marcas desse plano. Cada conceito é uma tentativa de dar conta de questões específicas construídas num determinado momento histórico, a partir de um solo epistemológico e de um campo teórico-metodológico próprio, porque todo conceito está localizado. Ele brota de um solo epistemológico específico a partir do qual é formulado o problema que ele supõe responder. Isso implica que todo conceito opera a partir de um campo teórico-metodológico específico e é a partir dessas referências que os conceitos permitem-nos fazer uma leitura-intervenção singular no mundo. Todo conceito traz as marcas desse plano. A ideia de plano de imanência, construída no âmbito da filosofia deleuziana, ajuda-nos a compreender melhor essa relação entre conceito, problemas e solo epistemológico/campo teórico-metodológico. Segundo Gallo (2007), a noção de plano de imanência é fundamental para a criação filosófica, pois “o plano é o solo e o horizonte da produção conceitual”.

Para o autor, não podemos confundir plano de

imanência com conceito, embora um dependa do outro (só há conceitos no plano

e





plano

povoado

por

conceitos):

“os

conceitos

são

acontecimentos, mas o plano é o horizonte dos acontecimentos”. O plano de imanência é essencialmente um campo onde se produzem, circulam e se entrechocam os conceitos. Ele é sucessivamente definido como uma atmosfera (...), como informe e fractal, como horizonte e reservatório, como um meio indivisível ou impartilhável. (...) O plano de imanência toma do caos

118

determinações, com as quais faz seus movimentos infinitos ou seus traços diagramáticos. Pode-se, deve-se então supor uma multiplicidade de planos, já que nenhum abraçaria todo o caos sem nele recair, e que todos retêm apenas movimentos que se deixam dobrar juntos [...] Cada plano opera uma seleção do que cabe de direito ao pensamento, mas é essa seleção que varia de um para outro. (PRADO JR., APUD GALLO, 2007:44).

Quando, nos itens anteriores, falávamos que os conceitos de território e lugar tinham linhas de luz, linhas de força e linhas de objetivação

distintas

e,

portanto,

espacialidade/geograficidade

do

implicavam

social,

diferentes

estávamos

leituras

falando

que

da tais

conceitos respondiam a questões e problemas distintos. Esses problemas também foram formulados a partir de solos epistemológicos e campos teórico-metodológicos distintos, são planos de imanência que rasgam o caos do real de maneiras diferentes inaugurando horizontes e possibilidade singulares de compreensão-intervenção no mundo. Assim, por exemplo, faz diferença se um conceito como o de lugar é construído a partir do solo epistemológico da fenomenologia (geografia humanista) ou do materialismo histórico (geografia marxista) ou, ainda, a partir do pós-estruturalismo (geografia pós-moderna). Mas qual seria o plano de imanência/solo epistemológico do conceito de território? Como já afirmamos anteriormente, além da relação entre conceito e problema, outra questão fundamental, intrinsecamente ligada à questão do problema que dá origem ao conceito, é a questão do plano de imanência/solo epistemológico que implica um campo teórico metodológico a partir do qual um conceito opera. Nesse sentido, quando percorremos a literatura existente, vemos que, de uma maneira ou de outra, o conceito de território remete à questão do poder, ou melhor, dizendo, do exercício do poder no e pelo espaço. Contudo, não há uma única forma de compreensão do que é o poder, ao contrário, há uma grande diversidade de leituras teórico-metodológicas distintas sobre o que é o poder, pois as formulações sobre este conceito emergem de distintos solos epistemológicos e, consequentemente, revelam diferentes e, às vezes, até divergentes perspectivas

teórico-metodológicas.

Diante

dessa

situação,

talvez

pudéssemos perguntar: As diferentes conceituações de poder não afetam a

119

formulação do conceito de território? Nós entendemos que sim, o modo sobre o qual se formula o conceito de poder interfere diretamente na maneira de pensarmos o conceito de território. Quando olhamos rapidamente a forma com que os geógrafos trabalharam o conceito de poder e a relação com o território, verificamos que diferentes fontes filosóficas foram mobilizadas. Assim, nós temos aqueles que trabalham com uma leitura inspirada diretamente na teoria da ação social e das formas de dominação de Max Weber como, por exemplo, Paul Claval, em seu livro “Espaço e poder”. De outro modo, vamos ter geógrafos como Marcelo Lopes de Souza que, na sua formulação de conceito de território, lança mão do arsenal de conceitos produzido pela filósofa política Hannah Arendt, dentre os quais vale destacar a distinção que essa faz entre poder, violência, força, autoridade, entre outros. Além disso,

uma

importante

contribuição

dessa

pensadora

é

um

claro

deslocamento da categoria trabalho para a categoria da ação, distanciandose de uma leitura marxista da política. Ainda continuando sua formulação entre território e autonomia, Souza mobiliza os debates sobre poder e autonomia do filósofo Cornelius Castoriadis. Já, quando verificamos a forma de conceber território do geógrafo Claude Raffestin, verificamos que o autor dialoga diretamente com as formulações sobre o poder do filósofo francês Michel Foucault. Todavia, Raffestin usa, na sua elaboração sobre a relação espaço e poder, as contribuições de outro filósofo francês, Henri Lefebvre, criando em suas próprias formulações uma tensão entre essas diferentes concepções. Henri Lefebvre e Michel Foucault também são as referências essenciais nas formulações do conceito de território realizadas por Rogério Haesbaert. Nessas formulações, também se apresenta uma tensão entre esses dois referenciais teóricos, mas, progressivamente, este autor vem dando mais ênfase ao uso do legado foucaultiano nas suas formulações para pensar o conceito de território, além da incorporação das contribuições de Gilles Deleuze e Félix Guattari sobre as ideias de territorialização e desterritorialização e de micro-política. Michel Foucault também aparece como referencial fundamental nas formulações dos conceitos de território e territorialidade na obra de Robert

120

Sack, na qual o geógrafo americano utiliza-se, explicitamente, de algumas contribuições do filósofo francês. Assim,

quando

verificamos

as

diferentes

concepções

de

territórios, vemos que, em todas elas, há explicita ou implicitamente um modo de compreensão de que é o poder, a ação política, o conflito e, de maneira mais ampla, certa forma de conceber política. Apesar dessa diversidade de interpretação, há um ponto comum nessas formulações. Todas elas, em maior ou menor grau, distanciam-se de uma perspectiva marxista de compreensão do poder e da política, mesmo nas formulações nas quais aparece a influência de um marxista heterodoxo como Lefebvre. Essa influência é tensionada por uma leitura foucaultiana do poder. Nesse sentido, compreendemos que a formulação do conceito de território foi produzida por geógrafos na tentativa de pensar a questão do poder e da política

para

além

dos

parâmetros

metodológicos

do

marxismo.

Compreendemos, também, que esse conceito oferece uma leitura da realidade sócio-espacial distinta daquelas leituras pautadas numa economia política do espaço e centradas na ideia de produção social do espaço. Mas, apesar de haver um claro deslocamento metodológico da leitura da realidade sócio-espacial, nem sempre isso parece claro. Sendo assim, há ainda muita confusão sobre a especificidade do conceito de território e sua função analítica. Não raramente, esse conceito é mobilizado como sinônimo de espaço ou quando não é usado com a justificativa de privilegiar uma dimensão política da realidade sócio-espacial. Afirmar que o conceito de território trata da questão do poder e da política não é suficiente para explicitar a sua especificidade analítica. O que o conceito de território oferece-nos de mais rico é uma leitura do fenômeno do poder e da política para além da matriz metodológica do marxismo. Isso de modo algum significa que não exista uma leitura marxista da política, como bem demonstra importantes obras de geógrafos e de filósofos como, por exemplo, Milton Santos, David Harvey, Henri Lefebvre, Gramisci, entre outros, mas essas contribuições já estão presentes na ideia de produção social do espaço. Desse modo, o que o conceito de território acrescenta é uma outra perspectiva de leitura da espacialidade, em suas expressões políticas e conflitivas, o que permite, também, um outro modo de leitura da

121

ideia de sujeito e do conflito que extrapola as ideias de classe, lutas de classe, ou mesmo outras expressões do conflito de classes, como a clivagem público-privado, valor de troca e valor de uso. Nas últimas décadas, surgiram novas teorias da ação, da política e do poder nas ciências sociais e na filosofia que apontam para uma leitura mais complexa dos conflitos inerentes à realidade sócio-espacial. Nesse sentido, além daquelas anteriormente citadas, podemos listar várias contribuições, desde aquelas situadas no campo do materialismo histórico, mas com um foco mais acentuado na política do que na economia política como, por exemplo, a teoria política de Gramisci25 e a teoria do Estado de Poulantzas até aquelas que estão para além do materialismo histórico, como é o caso da teoria da Ação e da política de Hanna Arent, da analítica do poder de Michel Foucault, da teoria da razão prática de Pierre Bourdieu, da teoria dos agenciamentos e da micropolítica de Felix Guattarri e Deleuze e da teoria das práticas cotidianas de Michel De Certeau. Podemos ainda incluir nessa lista relevantes contribuições oriundas dos estudos culturais e dos estudos pós-coloniais (Stuart Hall, Canclini, Homi Babha, Eduard Said), das

teorias

pensamento

anti-racistas, descolonial

das

teorias

feministas,

latino-americano

além

(Aníbal

do

Quijano,

vigoroso Ramon

Grosfoguel, Castro-Gomes, Arturo Escobar, Enrique Dussel, Walter Mignolo, Edgardo Lander etc). Essas novas contribuições teóricas sobre poder, ação e política implicam

alguns

deslocamentos

metodológicos.

Tais

deslocamentos

apontam para um maior refinamento analítico sobre a dimensão política da realidade sócio-espacial a partir de um registro que privilegie a tríade: sujeito/ação – poder - conflito. Explorar o potencial analítico do conceito de território em toda sua profundidade e extensão exige uma explicitação das bases metodológicas a partir das quais opera esses conceito, isso implica alguns deslocamentos analíticos. Vejamos, a seguir, esses deslocamentos analíticos. 25

Apesar de Gramisci não ser um autor contemporâneo, no sentido de que sua obra foi produzida na primeira metade no século XX, a apropriação do seu legado a partir de uma leitura mais arejada do marxismo vem sendo feita, efetivamente, somente nas ultimas décadas, sobretudo, no contexto latino-americano, por isso incluímos esse movimento como algo novo no campo do pensamento social.

122

2.9. Deslocamentos metodológicos (interpretativos e investigativos) para pensar o conceito de território É necessário um deslocamento da economia política para a política. O conceito de território está diretamente ligado ao fenômeno do poder e da política. Para podermos pensar esse conceito em todo o seu alcance e em toda a sua complexidade precisamos de uma concepção de poder e de política que vá para além dos limites da economia política, pois, na leitura marxista, a política está diretamente subordinada à economia. As relações de poder só podem ser pensadas a partir de um nexo estruturante com os processos de produção. Nessa leitura, as relações de poder são, sobretudo, relações de exploração. As outras formas de poder ou são ignoradas ou são lidas a partir de um registro no qual são tidas como derivadas das relações de produção. Nesse sentido, na teoria política do marxismo, não é possível pensar o fenômeno da política fora dos parâmetros metodológicos da ideia de totalidade, ou seja, não se pode conceber a política como algo à parte ou como um campo relativamente autônomo do resto da sociedade, sobretudo, da dimensão da produção econômica. Desse modo, nessa perspectiva metodológica, pensar uma política da espacialidade ou numa dimensão espacial da política, implica fazer uma leitura da produção social do espaço. Essa leitura é importante, mas limitadora. Por isso precisamos pensar a esfera da política como entrelaçada

e

imbricada

complexamente

com

outras

dimensões

da

sociedade, porém tendo uma relativa autonomia na sua dinâmica e funcionamento. Dos processos de produção do espaço para os processos de governo/governamentalidade do espaço Não há dúvida de que o processo de produção social do espaço é político, que as relações sociais de produção e reprodução são relações de poder e que os conflitos de classe são uma expressão fundamental das relações de poder na sociedade. Contudo, se toda relação de produção é uma relação de poder, nem toda relação de poder é uma relação de

123

produção ou dela deriva necessariamente. O fenômeno do poder e da política é mais amplo e complexo do que as relações e os processos de produção. Dessa forma, faz-se necessária a construção de uma abordagem mais abrangente sobre a política e o poder, sendo preciso um deslocamento analítico dos processos de produção do social espaço para as mais diversas formas de governo/governamento ou de governamentalidade26 no/do espaço. Da centralidade do conceito de trabalho para os conceitos de ação política e poder Esse deslocamento dos processos de produção social do espaço para as diferentes formas de governo no/do espaço tem como consequência um deslocamento da centralidade do conceito de trabalho como centro gravitacional de uma leitura do espaço para os conceitos de poder e de ação política27, pois há diferenças significativas entre os conceitos de trabalho e ação. Os conceitos de ação política e de poder permitem uma leitura mais ampla da dimensão conflitiva do espaço e, ao mesmo tempo, permitem uma análise mais complexa da ação social e, como consequência, uma nova leitura do agente/sujeito. A partir desse registro, o sujeito não é somente aquele que trabalha/produz, mas aquele que governa, domina, controla, disciplina o espaço e, também, aquele que é governado, dominado, controlado, mas que resiste, luta, sabota e subverte as formas de governo/dominação. Das relações/práticas sócio-espaciais como as relações/práticas de produção

para

as

relações/práticas

sócio-espaciais

como

relações/práticas de força em termos de estratégia e tática 26

A palavra/conceito de “governo” em Foucault está para além do sentido restrito com que comumente a/o usamos, pois usamos normalmente tal palavra/conceito para referirmo-nos a uma instituição. É neste sentido que falamos de Governo da República, o governo municipal, o governo do Estado – é essa instituição do Estado que centraliza ou toma, para si, a caução da ação de governar (Veiga-Neto, 2005). Mas “governo”, nas formulações de Michel Foucault, extrapola esse significado restrito indicando um sentido de ação, ato de governar, práticas de governo e não somente instituições.

124

Para se compreender a espacialidade a partir de uma abordagem territorial, é necessário analisarmos as relações e as práticas sócio-espaciais como relações/práticas de força. Isso significa fugir de uma leitura que interpreta

a

ação

somente

como

produção,

ou

a

ação

como

significação/comunicação, ou, ainda, como experiência sensível e poética para realizarmos uma leitura que compreende a ação como estratégia e tática entre diferentes grupos antagonistas em conflito. Desse modo, fazer uma leitura da ação territorializada significa analisar os conflitos, as disputas, os afrontamentos nas suas mais diversas expressões. De uma concepção de poder centralizada e monodimensional para uma concepção multidimensional e imanente a todas as relações sociais e em todas as escalas A partir dessa perspectiva da governamentalidade do espaço, o fenômeno do poder é visto como algo imanente a todas as relações sociais em todas as escalas dos espaços-temporais. Não há relações sociais isentas de poder, uma sociedade sem relações de poder é algo fictício e irreal. O poder está espraiado por todos os espaços e âmbitos da sociedade, não há algo fora ou exterior ao poder. Mas, se o poder está em toda parte, isso não significa dizer que ele realiza-se da mesma forma e do mesmo modo operante; o poder coagula-se construindo diferentes estruturas e modos estruturais do seu exercício. Assim, ora ele assume a forma de exploração, ora de dominação, ora de opressão/sujeição e, não raras vezes, essas diversas formas de expressão do poder estão complexamente imbricadas e enredadas umas nas outras, constituindo complexas constelações e padrões estruturais de poder. Uma concepção de conflito mais ampla e mais complexa envolvendo as diferentes formas, estruturas e escalas de dominações e resistências A partir dessa concepção de poder e da política, precisamos construir uma concepção de conflito mais ampla e complexa, pois as formas de dominação e de resistência são múltiplas e variadas, tendo natureza, graus e escalas diferentes. Sendo assim, pode haver conflitos pela luta de

125

recursos materiais, como é o caso da luta por petróleo, minério, água, etc., mas também pode haver conflitos por questões de natureza cultural e simbólica, como é o caso de conflitos étnico-religiosos e, não raramente, essas dimensões estão entrelaçadas. Desse modo, é mais pertinente, sempre que falarmos em dominação, resistência, conflito e emancipação, tratarmos essas questões no plural. Na realidade, o que há são sempre dominações, resistências, conflitos e emancipações, pois o poder é multidimensional e os conflitos também. Um deslocamento de uma concepção de sujeito (classe) para uma nova concepção de sujeito constituinte, sujeitos constituídos a partir das relações de poder e que podem ter as mais diversas expressões: classe, raça, gênero, etnia, tribo, comunidade etc. A partir de um registro analítico, que vai para além da economia política, também a noção de sujeito vai para além da classe social definida estruturalmente pelas relações sociais de produção, ou seja, não há um sujeito constituído a priori, mas um sujeito que se constitui a partir das relações de poder e conflito, tendo as mais diversas formas de expressão: classe, raça, gênero, etnia, tribo, comunidade etc. Para

operacionalizarmos

os

deslocamentos

metodológicos

(interpretativos) que realizamos acima, é necessária a construção de um caminho investigativo/operacional para a elaboração da pesquisa empírica, especialmente, a investigação dos chamados “acordos comunitários de pesca” como processo de territorialização, ação das comunidades ribeirinhas na Amazônia, objeto de nossa pesquisa. Nesse sentido, entendemos que para compreender um processo de territorialização, ou seja, da constituição de território devemos analisar os seguintes elementos: 

Agentes/Sujeitos. A relação entre os indivíduos, grupos, comunidades, tribos, que estão envolvidos nos diferentes processos de des-territorialização.



Conflitos/Antagonismos: a natureza, tipo e a escala espaçotemporal dos conflitos entre os diferentes agentes/sujeitos.



O tipo de objetivos que envolvem os processos de territorialização: todo processo de territorialização é orientado por

126

objetivos, seja manutenção de privilégios, acumulação de lucros, controle de recursos, afirmação ou manutenção de uma identidade etc. 

A configuração espaço-temporal do território e/ou dos processos de territorialização: as características espaciais (extensão, posição, escala, se é zonal ou reticular) e as características temporais (a duração recente média ou de longa duração, os ritmos sociais) do território.



O sistema de diferenciações e classificações sociais resultantes dos processos de territorialização. Todo processo de territorialização implica assimetrias e jogos de classificações sociais que se materializam em diferenças jurídicas, de status ou privilégio; diferenças econômicas na apropriação de riquezas ou bens; diferenças linguísticas ou culturais etc. Toda a relação de poder coloca em ação diferenciações que são, para ela, simultaneamente condições e efeitos.



As modalidades instrumentais de exercício de poder no e através do espaço resultantes dos processos de territorialização. Podemos verificar que os processos de territorialização podem envolver diferentes modalidades do exercício do poder que implica estratégias que vão desde o domínio físicodisciplinar do espaço com cercas, muros ou mesmo câmeras, códigos, mas também por formas de apropriação simbólicas de natureza cultural, religiosa etc.



Formas de uso social do território/no processo territorialização. Diferentes formas de usos sociais e econômicos e simbólicos que o território tem para os diferentes grupos sociais envolvidos no processo de territorialização.



As formas de normatização do território/processos de desterritorialização. Diferentes formas de normatização, regras sociais, morais e jurídicas que definem o uso e controle sobre o território.

127

SEGUNDO INTERMERZZO: DESLOCALIZANDO OLHARES E NARRATIVAS SOBRE AS COMUNIDADES TRADICIONAIS DA AMAZÔNIA: UM PEQUENO EXERCÍCIO DE DESCOLONIZAÇÃO DE NOSSA IMAGINAÇÃO GEOGRÁFICA. Normalmente, em nossas reflexões, tratamos a nossa experiência colonial e sua herança como coisa do passado, colocando tal herança como algo superado com o fim do colonialismo. No entanto, o fim do colonialismo na América Latina, como relação econômica e política de dominação na segunda metade do século XIX, não significou o fim da colonialidade como relação social, cultural e intelectual (QUIJANO, 2005). Longe de ser algo irrelevante, a colonialidade é um resíduo irredutível de nossa formação social e está arraigada em nossa sociedade, manifestando-se das mais variadas maneiras em nossas instituições políticas e acadêmicas, nas relações de dominação/opressão, em nossas práticas de sociabilidades autoritárias, em nossa memória, em nossa linguagem, no nosso imaginário social, em nossas subjetividades e, consequentemente, na forma com produzimos conhecimento. Esse processo de constituição da colonialidade do poder, do saber e do ser, segundo Lander (2005, p.26), tem na conquista ibérica do continente americano seu momento inaugural. A partir do domínio ibérico, dois processos articuladamente conformam a nossa história posterior: a modernidade e a organização colonial do mundo. Com o início do colonialismo na América origina-se não apenas a organização colonial do mundo, mas, simultaneamente, a constituição colonial dos saberes, das linguagens, da

memória e do imaginário. Desse modo, inaugura-se, por um lado, o projeto civilizatório da modernidade, que busca afirmar e celebrar a experiência histórica particular da Europa como sendo algo universal, através de elementos como o racionalismo, o humanismo, a ciência, a ideia de progresso, o Estado etc. Mas, por outro lado, nesse processo, negaram-se e subalternizaram-se outras matrizes de racionalidades, outras formas de razão, outros projetos civilizatórios, outras cosmovisões, com outros saberes, linguagens, memórias e imaginários. Nessa perspectiva de compreensão, é impossível pensar a modernidade sem a colonialidade; não dá para pensar nos esplendores e nos triunfos da modernidade 128

ocidental sem pensar na colonialidade do poder e do saber. Essa ideia implica em ver a modernidade de forma indissociável da colonialidade. A colonialidade é parte

constitutiva da modernidade e não derivativa desta; a colonialidade é seu lado sombrio, oculto e silenciado. Assim, a modernidade/colonialidade são duas faces de uma mesma moeda. (MIGNOLO, 2003; DUSSEL, 2005) Assim, podemos verificar que na gênese do projeto civilizatório da modernidade está presente uma violência matricial do colonialismo e da colonialidade

do poder e do saber que, segundo Quijano (2005), é uma forma de dominação fundada na “natural” superioridade étnica/racial e epistêmica do europeu sobre outros povos. Santiago Castro-Gomes (2005b), analisando as formulações de Anibal Quijano, afirma que a colonialidade do poder e do saber é uma forma de dominação que não visava apenas submeter militarmente outros povos e destruí-los pela força, mas sim visa transformar sua alma com o objetivo de transformar radicalmente suas tradicionais

formas de conhecer o mundo e a si mesmo e assim, levando o colonizado a adotar o próprio universo cognitivo do colonizador (CASTRO-GOMES, 2005, p.58b). Dessa forma, a colonialidade do poder e do saber não é uma forma de dominação que usa exclusivamente os meio coercitivos para o exercício do poder; não se trata apenas de reprimir os dominados, mas também da instituição e naturalização do imaginário cultural europeu como única forma de relacionamento com a natureza, com

o mundo social e com a própria subjetividade. Esse projeto de dominação moderno/colonial visou à mudança radical das estruturas cognitivas, afetivas e

valorativas do colonizado. (CASTRO-GOMES, 2005, p.59-60). Isso implica em vermos, segundo Aníbal Quijano, que processo de colonização significou a colonização do imaginário do colonizado, uma repressão sobre os modos de conhecer e produzir conhecimentos; em suma, uma colonização nos padrões de produzir conhecimentos e

significação do mundo, expressa na impossibilidade de construção de imagens, símbolos, formas de expressão, perspectivas e cosmovisões próprias. Esse processo se realizou a partir de três processos:

129

1. Em primeiro lugar, expropriaram as populações colonizadas – entre seus descobrimentos culturais – aqueles que resultavam mais aptos para o desenvolvimento do capitalismo e em benefício do centro europeu. 2. Em segundo lugar, reprimiram tanto como puderam, ou seja, em variáveis medidas de acordo com os casos, as formas de produção de conhecimento dos colonizados, seus padrões de produção de sentidos, seu universo simbólico, seus padrões de expressão e de objetivação da subjetividade. A repressão neste campo foi reconhecidamente mais violenta, profunda e duradoura entre os índios da América ibérica, a que condenaram a ser uma subcultura camponesa, iletrada, despojando-os de sua herança intelectual objetivada. Algo equivalente ocorreu na África. Sem dúvida muito menor foi a repressão no caso da Ásia, onde portanto uma parte importante da história e da herança intelectual, escrita, pôde ser preservada. E foi isso, precisamente, o que deu origem à categoria de Oriente. 3. Terceiro lugar, forçaram – também em medidas variáveis em cada caso– os colonizados a aprender parcialmente a cultura dos dominadores em tudo que fosse útil para a reprodução da dominação, seja no campo da atividade material, tecnológica, como da subjetiva, especialmente religiosa. É este o caso da religiosidade judaico-cristã. Todo esse acidentado processo implicou no longo prazo uma colonização das perspectivas cognitivas, dos modos de produzir ou outorgar sentido aos resultados da experiência material ou intersubjetiva, do imaginário, do universo de relações intersubjetivas do mundo; em suma, da cultura. (QUIJANO, 2005, p.237) Nesse sentido, podemos afirmar, segundo Castro-Gomes (2005b), que a colonialidade do poder e do saber é, sobretudo, a intenção do colonizador de eliminar “as muitas formas de conhecer” (e viver) dos povos subjugados e colonizados e substituir por outras novas formas de conhecer (e viver) que serviam diretamente aos propósitos dos processos civilizatórios do regime colonial. Trata-se de uma verdadeira violência epistêmica28, ou seja, uma forma de exercício do poder que produz a invisibilidade do outro, expropriando-o de sua possibilidade de representação e de sua autorepresentação; isto é, trata-se do apagamento, do anulamento e da supressão dos sistemas simbólicos, de subjetivação e representação que o outro tem de si mesmo, bem como de suas formas concretas de representações e registro de suas memórias e experiências. Esse processo implicou naquilo que Boaventura de Souza Santos denominou de “epistemicídio”, ou seja, 28

O conceito de violência epistêmica é usado por Santiago Castro-Gomes (2005) em um diálogo com formulação da pensadora indiana Gayatri Spivak,. 130

aniquilação da diversidade e riqueza epistêmica do mundo, resultado do caráter totalitário da racionalidade moderna expressa no exclusivismo epistemológico, pautados na ciência moderna que desqualificou e exterminou uma infinidade de outras epistemes e “outras formas de conhecer”. Isso mostra de maneira muito clara o vínculo entre a ciência moderna e o exercício do poder colonial. Desse processo permaneceu uma profunda colonização epistêmica que resultou em uma cosmovisão claramente arraigada no eurocentrismo, expressos nas formulações teóricas, na forma como construímos nossos conceitos, na maneira como estabelecemos nossas interpretações, comparações de fenômenos históricos e sociais e, enfim, na maneira de produzimos

conhecimentos, modos de significação e de produção de sentido ao mundo. Essa herança colonial permanece ativa e atuante na produção de conhecimento sobre Amazônia, especialmente sobre determinados grupos, como é o caso das representações e narrativas produzidas sobre as chamadas “comunidades e povos tradicionais”. A colonialidade atua de várias maneiras invisibilizando, folclorizando, esteriotipando esses grupos. O que faremos a partir de agora é discutir essas estratégias de subalternização política, epistêmica e ética, buscando fazer um exercício de descolonização do pensamento, deslocando o lócus de enunciação para uma perspectiva subalterna/descolonial. Historicamente sedimentou-se no imaginário social um conjunto de representações/narrativas, imagens e ideologias sobre a Amazônia e, em particular, sobre as comunidades e povos que tradicionalmente se territorializaram na região (índios, ribeirinhos, pequenos agricultores, seringueiros, varzeiros, castanheiros, populações quilombolas, mulheres quebradeiras de coco etc.). Esse conjunto de representações/narrativas, com uma forte imaginação geográfica colonial, ainda hoje está presente no discurso do Capital, do Estado, da mídia, das ONGs e em parte da produção da academia. Esses diferentes “olhares” vão de um extremo ao outro, da construção do estereótipo que conduz a um processo de estigmatização cultural – ou mesmo à invisibilidade de tais populações – à idealização romântica e idílica do chamado “caboclo Amazônida”. Mas todas essas formas de narrativas têm em comum 131

como efeito a subalternização das populações amazônidas, em especial, das chamadas “comunidades ou povos tradicionais ”. Desse modo, podemos enumerar, pelo menos hegemonicamente, três “modos de ver” as “comunidades e povos

tradicionais” presentes nesse conjunto de

representações/narrativas: (1) um “olhar naturalista”, (2) um “olhar romântico tradicionalista” e (3) um “olhar moderno/colonial”. Em contraponto a essas formas hegemônicas, percebemos a emergência de “outra forma de olhar”, um olhar subalterno/descolonial construído pelos próprios sujeitos que, através dos movimentos sociais

nas

lutas

sociais

de

r-existência,

vêm

construindo

novas

representações/narrativas e novas geo-grafias descoloniais. O olhar naturalista: a invisibilidade. Nas narrativas e representações sobre a Amazônia, as chamadas “comunidades tradicionais” da Amazônia (índios, ribeirinhos, pequenos agricultores, seringueiros, varzeiros, castanheiros, populações quilombolas, mulheres quebradeiras de coco etc.) e suas identidades foram, historicamente, ignoradas e invisibilizadas por um olhar naturalista e naturalizante que sempre viu a região somente como natureza; logo sua diversidade é vista apenas como biodiversidade, sendo conhecida e reconhecida, unicamente, como um conjunto de ecossistemas e como fonte de recursos naturais. Essa, sem dúvida, é a representação mais comum sobre o espaço amazônico que se personifica através de ideias e expressões sobre a região, como: “espaço vazio”, “vazio demográfico” “terras sem homens”. Essas construções ideológicas reforçam historicamente a não existência política e discursiva dessas populações. Das drogas do sertão à biodiversidade, da colonização à globalização, a Amazônia é vista apenas como natureza (recurso). Essa visão naturalista desconsidera os processos históricos e as identidades culturais que conformaram a territorialização dos diferentes grupos na sua sociodiversidade e, desse modo, negligencia a diversidade territorial na sua dimensão 132

humana e histórica, produzindo a não existência e a invisibilidade das comunidades ditas “tradicionais”. Esse olhar produz a supressão, o silenciamento dessas populações e, desse modo, produz uma geografia das ausências e uma história de silêncios. Esse “modo de ver” sempre esteve presente na história da região, seja nos relatos dos antigos viajantes, seja na mídia atual, ou ainda nos planos e planejamentos do Estado, na produção científica sobre a região e com especial força nos currículos escolares, materializados, sobretudo, através dos livros didáticos. Esses dispositivos discursivos do poder-saber sempre deram uma extrema “significância à natureza e uma in-significância ao homem” (DUTRA, 2003). Essa visão pode ser verificada claramente nas imagens construídas sobre a região, pois é comum nos livros didáticos, nos jornais, na televisão a presença de fotografias com floresta, rios e animais sendo apresentadas como paisagens-símbolos da região, mesmo que quase 80% da população da Amazônia sejam considerados pelo IBGE como urbana29. Tal exemplo mostra como essa forma de narrar/representar a região é simplificadora, realiza uma operação de subalternização que produz um efeito de metonímia, uma parte (a natureza) representa o todo (natureza e sociedade) e, nesse processo, os sujeitos históricos, seus saberes, suas culturas são apagados. Trata-se de uma verdadeira

violência epistêmica contra essas comunidades, ou seja, uma forma de exercício do poder que produz a invisibilidade do outro, expropriando-o de sua possibilidade de representação e de sua autorepresentação. Olhar romântico/ tradicionalista: a idealização idílica ou a “folclorização”. Outro modo de “olhar” a região e “as comunidades tradicionais” é aquele que está atento para a rica diversidade cultural dessas populações, embora a cultura e a diferença sejam tratadas como uma particularidade isolada, como algo autônomo do movimento da história e da dinâmica socioespacial e cultural da região. Essa visão romântica e idealizadora compreende a identidade de tais populações como aquilo que Apesar da problematização que podemos fazer sobre o conceito de urbano usado nessa pesquisa e também as metodologias empregadas, o fato é que é um dado contundente que afeta as representações da Amazônia como um espaço rural somente de floresta, um “espaço selvagem”. 133 29

é o “autêntico”, o “original”, o “verdadeiro”, a “tradição”, “o exótico”. Essa idealização vê o “caboclo” como o “bom selvagem” que ainda não cometeu “o pecado original da modernidade” – é como se a cultura e a história pudessem ser congeladas e não houvesse interações multidimensionais e multiescalares entre as culturas, os sujeitos e os lugares. As diferenças e as identidades são vistas como algo “natural”, como “essências” ahistóricas, e não como fenômenos históricos e socialmente produzidos. Trata-se de olhar a diferença pela diferença. Essa perspectiva consagra uma visão antropológica ingênua e relativista, ignorando que as identidades e as diferenças são construídas historicamente sempre de maneira relacional e contrastiva (HALL, 2004), dentro dos contextos históricos e geográficos marcados por lutas de poder, conflitos e contradições, e que, não raramente, as diferenças e identidades são demarcadas não só por formas de marcações e classificações simbólicas, mas também por profundas desigualdades e exclusão social (WOODWARD, 2004). Esse tipo de olhar e de narrativa estão assentados sob uma estrutura mítica de conceber o tempo-espaço, o mito fundador do bom selvagem que se atualiza de diversos modos, através de diversas formas de expressão. Como nos sugere Marilena Chauí (2004) os mitos fundadores como narrativas e como uma modalidade específica de discurso tem uma estrutura espaço temporal muito particular30 A partir deste complexo entrecruzamento de sentidos, o mito fundador, segundo Chauí (2004, p.9), “impõe um vínculo interno com o passado como origem, isto é, com um passado que não cessa nunca, que se conserva perenemente presente e, por isso mesmo, não permite o trabalho da diferença temporal e da compreensão do presente como tal; “um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para

30

Marilena Chauí (2004) constrói uma conceituação, entrelaçando os sentidos etimológico, antropológico e psicanalítico do mito. Para a autora, no sentido o etimológico, o mito seria a narração pública de feitos lendários da comunidade; já o antropológico remeteria à capacidade desta narrativa em ser a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos em nível da realidade; e, na acepção psicanalítica, o mito implicaria num impulso à repetição de algo imaginário, que cria um bloqueio à percepção da realidade e impede de lidar com ela (CHAUÍ 2004, p.9). 134

exprimir-se, novas linguagens, novos valores e novas idéias de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo”. (CHAUÍ, 2004, p.9). Para explicitar melhor a natureza e a estrutura do mito fundador, Chauí (2004) propõe a fecunda e elucidativa distinção entre formação e fundação. Para a autora, quando os historiadores falam em formação, referem-se não só às determinações econômicas, sociais e políticas que produzem um acontecimento histórico, mas à transformação e, portanto, à continuidade ou à descontinuidade dos acontecimentos, percebidos como processos temporais. Nesse sentido, complementa: “Numa palavra, o registro da formação é a história propriamente dita, aí incluída suas representações, sejam aquelas que concebem o processo histórico, sejam as que ocultam (isto é, ideologias)” (CHAUÍ, 2004, p.9). Diferentemente da formação, a fundação refere-se a um momento passado imaginário, tido como instante originário que se mantém vivo e presente no curso do tempo; isto é, a fundação visa algo tido como perene (quase eterno) que traveja e sustenta o curso temporal que lhe dá sentido (CHAUÍ, 2004).

A fundação pretende situar-se além do tempo, fora da história, num presente que não cessa nunca sob a multiplicidade de formas e aspectos que pode tomar. Não é só isso. A marca peculiar da fundação é a maneira como ela põe a transcendência e a imanência do momento fundador: a fundação aparece como emanando da sociedade e, simultaneamente, como engendrando essa própria sociedade da qual ela emana. (CHAUÍ, 2004, p.9). Assim, podemos concluir que a fundação mitológica tem uma natureza transcendental e metafísica; uma temporalidade marcada por um caráter transhistórico, e se manifesta de maneira cíclica e, segundo Hall (2003), têm uma estrutura de uma dupla inscrição: “seu poder redentor se encontra no futuro, que ainda está por vir. Mas funciona atribuindo o que predizem a sua descrição do que já aconteceu, do que era no princípio. Entretanto, a história, como flecha do tempo é sucessiva, senão linear. A estrutura narrativa dos mitos é cíclica (p.30). Essa estrutura mítica está presente nas narrativas sobre “os povos e comunidades tradicionais” que se materializa em uma idealização romântica e idílica 135

desses povos e comunidades que são sempre representados como o “bom selvagem”. Essa visão mitológica é sempre atualizada e tem ganhado força nos dias atuais, sobretudo pela indústria do turismo e pelo discurso ecológico romântico. Via a indústria do turismo, que vive da venda de imagens exóticas, vem ocorrendo uma espécie mercantilização da alteridade e da diferença (HALL, 1997), de modo que vem acontecendo uma (re)valorização das singularidades das culturas não urbanas, ou “culturas tradicionais”, criando-se, assim, verdadeiros “mercados étnicos” e a venda de “estilos de vida” e o estímulo ao “consumo de identidades” (YUDICE, 2005). Assim, “o caboclo”, sua cultura, seu modo de vida são estetizados, tornando-se valiosos produtos para o mercado turístico. Já pela via do ecologismo romântico se fortalece a ideia de que essas populações são a redenção para a sociedade urbano-industrial marcadas pelo consumo e pela não sustentabilidade ambiental. Nessa visão, os modos de vida “tradicionais” são vistos como aqueles capazes de apontarem para formas alternativas de racionalidade econômica e ambiental sustentáveis; contudo essa visão ignora a pobreza e as difíceis condições de vida em que tais populações vivem. Portanto, o que temos é uma valorização pelo capital, ligado a um movimento mais amplo que tem transformado a cultura em recurso, em especial, pelo turismo que vive da venda de imagens do exótico. A valorização das identidades e dos modos de vida das “comunidades e povos tradicionais” ocorre através da proliferação de imagens da alteridade, imagens do “outro” aprisionado a um conjunto de significados subalternos, transvertidos de uma aparente positivação, dos “índios inocentes” aos “caboclos exóticos”, mas que, na verdade, trata-se de uma valorização da estética da alteridade, uma estética hoje transformada em mercadoria; trata-se da venda de imagens espetaculares do “outro” e não da valorização política da experiência, da voz e da vida do “outro”. Essas narrativas recuperam o mito do “bom selvagem”; trata-se de uma representação que opera através de uma de estrutura de espaço-tempo mítica que imobiliza esses sujeitos, tornam suas vidas, suas histórias e identidades são vistas como essências imutáveis congeladas no tempo e espaço, com um significado natural e transcendental que flutuam para além da dinâmica histórica. 136

Olhar moderno/colonialista: o estereótipo. Ainda temos um terceiro modo de “olhar” sobre as “comunidades tradicionais” da Amazônia, que é aquele pautado no estereótipo do “caboclo”. Essa visão talvez seja a mais forte e arraigada no imaginário social e está assentada em um conjunto de representações/narrativas marcadas por preconceitos e estigmas sociais e culturais, os quais justificam uma visão moderna /colonial e racista dessas populações. Essa forma de “ver” as “comunidades tradicionais” está pautada em uma

monocultura do tempo linear (SOUZA SANTOS, 2006) que compreende a história como tendo direção e sentido únicos, organiza a totalidade do espaço e do tempo (todas as culturas, povos e territórios presentes e passados) em uma grande narrativa universal.

Esta é uma construção eurocêntrica, que pensa e organiza a totalidade do tempo e do espaço para toda a humanidade do ponto de vista de sua própria experiência, colocando sua especificidade histórico-cultural como padrão de referência superior e universal. Mas é ainda mais que isso. Este metarrelato da modernidade é um dispositivo de conhecimento colonial e imperial em que se articula essa totalidade de povos, tempo e espaço como parte da organização colonial/imperial do mundo. Uma forma de organização e de ser da sociedade transforma-se mediante este dispositivo colonizador do conhecimento na forma “normal” do ser humano e da sociedade As outras formas de ser, as outras formas de organização da sociedade, as outras formas de conhecimento, são transformadas não só em diferentes, mas em carentes, arcaicas, primitivas, tradicionais, pré-modernas. São colocadas num momento anterior do desenvolvimento histórico da humanidade (Fabian, 1983), o que, no imaginário do progresso, enfatiza sua inferioridade. (LANDER, 2005, p.34).

Nessa perspectiva, o tempo é pensado somente em uma visão diacrônica, na qual a história é compreendida a partir de estágios e etapas sucessivas (da tradição à modernidade). Essa maneira de pensar o tempo-espaço tem como referência um imaginário e uma ideologia do progresso que se expressa pelas ideias de desenvolvimento, crescimento, modernização e globalização, entre outras, e que compõe 137

a cosmovisão da modernidade ocidental. Segundo Lander (2005, p. 34), esta cosmovisão tem como eixos articuladores quatro dimensões básicas:

1. Uma visão universal da história associada à ideia de progresso (a partir da qual se constrói a classificação e hierarquização de todos os povos, continentes e experiências históricas); 2. A “naturalização” tanto das relações sociais como da “natureza humana” da sociedade liberal-capitalista. 3. A naturalização ou ontologização das múltiplas separações próprias dessa sociedade; 4. A necessária superioridade dos conhecimentos que essa sociedade produz (“ciência”) em relação a todos os outros conhecimentos. Essa cosmovisão, segundo Anibal Quijano (2005), está assentada em dois principais mitos fundacionais do eurocentrismo como perspectiva hegemônica de conhecimento da versão eurocêntrica da modernidade que são: (1) Em primeiro lugar, a ideia-imagem da história da civilização humana como uma trajetória que parte de um estado de natureza e culmina na Europa. (2) Em segundo lugar, a forma de outorgar sentido às diferenças entre Europa e não Europa como diferenças de natureza (racial) e não de história do poder. (QUIJANO, 2005, p. 238). Segundo Quijano (2005), ambos os mitos podem ser reconhecidos, inequivocamente, no fundamento do evolucionismo e do dualismo, pois esses são dois dos elementos nucleares do eurocentrismo que pode ser verificado no uso da operação de comparação e confronto entre a experiência histórica europeia e de outras sociedades feitas a partir da perspectiva eurocêntrica de conhecimento, que se utiliza de diferentes mecanismos como: 1. Uma articulação peculiar entre um dualismo (pré-capital-capital, não europeu-

europeu, primitivo-civilizado, tradicional-moderno, etc.) e um evolucionismo linear, unidirecional, de algum estado de natureza à sociedade moderna européia; 2. A naturalização das diferenças culturais entre grupos humanos por meio de sua codificação com a idéia de raça; 138

3. A distorcida relocalização temporal de todas essas diferenças, de modo que tudo

aquilo que é não-europeu é percebido como passado. (QUIJANO, 2005, p.238). Todas estas operações intelectuais são claramente interdependentes e não teriam podido ser cultivadas e desenvolvidas sem a colonialidade do poder. Ainda segundo Quijano (2005, p.239), o fato de que os europeus ocidentais imaginaram ser a culminação de uma trajetória civilizatória desde um estado de natureza, levou-os também a pensar-se como os modernos da humanidade e de sua história, isto é, como o

novo e ao mesmo tempo o mais avançado da espécie. Mas já que, ao mesmo tempo, atribuíam ao restante da espécie o pertencimento a uma categoria, por natureza, inferior

e por isso anterior, isto é, o passado no processo da espécie, os europeus imaginaram também serem não apenas os portadores exclusivos de tal modernidade, mas igualmente seus exclusivos criadores e protagonistas. Essa visão, segundo LANDER (2005), foi historicamente produzida, legitimada em grande parte pela produção das ciências sociais (incluindo a geografia) e teve como consequência duas implicações:

1. Em primeiro lugar está a suposição da existência de um metarrelato universal que leva a todas as culturas e a todos os povos do primitivo e tradicional até o moderno. A sociedade industrial liberal é a expressão mais avançada desse processo histórico, e por essa razão define o modelo que define a sociedade moderna. A sociedade liberal, como norma universal, assinala o único futuro possível de todas as outras culturas e povos. 2. Em segundo lugar, e precisamente pelo caráter universal da experiência histórica européia, as formas do conhecimento desenvolvidas para a compreensão dessa sociedade se converteram nas únicas formas válidas, objetivas e universais de conhecimento. As categorias, conceitos e perspectivas (economia, Estado, sociedade civil, mercado, classes, etc.) se convertem, assim, não apenas em categorias universais para a análise de qualquer realidade, mas também em proposições normativas que definem o dever ser para todos os povos do planeta. Estes conhecimentos convertem-se, assim, nos padrões a partir dos quais se podem analisar e detectar as carências, os atrasos, os freios e impactos perversos que se dão como produto do primitivo ou o tradicional em todas as outras sociedades. (LANDER, 2005, p.34). 139

Essa cosmovição cria uma forma muito particular de pensar a relação espaço-tempo. Segundo Doreen Massey (2004), todas essas narrativas compartilham de uma imaginação geográfica que rearranja as diferenças espaciais em termos de sequência temporal, suprimindo, desse modo, a espacialidade e a possibilidade da multiplicidade e da diferença. “A implicação disso é que lugares não são considerados genuinamente diferentes; na realidade, eles estão simplesmente à frente ou atrás numa mesma história: suas “diferenças” consistem apenas no lugar que eles ocupam na fila da história” (p.15). Isso significa que os lugares e as populações são tratados como se estivessem numa fila histórica que vai do estágio dos mais “selvagens” até os mais “civilizados”, dos mais “atrasados” aos mais “avançados”, dos mais “subdesenvolvidos” aos mais “desenvolvidos”. Nessa forma de conceber e classificar as experiências sociais e os lugares e, consequentemente, as identidades, as populações denominadas “tradicionais” são classificadas como “atrasadas” e “improdutivas” em detrimento dos tempos e espaços que são “modernos”, “avançados” e “produtivos”. Assim, essa visão colonialista caracteriza as expressões culturais de tais populações como “tradicionais” ou “não modernas”, como estando em processo de transição em direção à modernidade, e lhes nega toda possibilidade de lógicas culturais ou de cosmovisões próprias. Ao colocá-las como expressão do passado, nega-se sua contemporaneidade (Lander, 2005). Trata-se de uma representação/narrativa que celebra cosmovisão da modernidade/colonialidade, instituindo um imaginário em que se atribui, a priori, uma positividade ao novo, ao moderno, e uma negatividade ao velho, ao passado, ao tradicional. Essa perspectiva de compreensão da história e da realidade está pautada em uma ideologia do progresso e em uma espécie de “fundamentalismo do novo”. O geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves (2005) usa essa expressão para chamar a atenção para a obsessão do imaginário da modernidade pelo novo, pela velocidade, pela mudança, pelo progresso, criando uma justificativa ideológica para todas as formas de violência cometidas em nome do “desenvolvimento” e da “modernização”.

140

Esse “fundamentalismo do novo” está presente em um conjunto de práticas e representações marcadas pela violência e pelo colonialismo que serviam e ainda servem para justificar a subalternização das populações que historicamente viveram na Amazônia (índios, ribeirinhos, pequenos agricultores, seringueiros, varzeiros, castanheiros, populações quilombolas, mulheres quebradeiras de coco etc.). Tais populações e seus modos de vida “tradicionais” são vistos como obstáculos ao “desenvolvimento”, pois nessa visão se assinala um único futuro possível para todas as culturas e todos os povos (a modernização ocidental capitalista e a sociedade de consumo urbano-industrial). Nessa perspectiva, aqueles que não conseguirem incorporar-se a esta marcha inexorável da história estão destinados a desaparecer. As outras formas de ser, as outras formas de organização da sociedade, as outras formas de conhecimento são transformadas não só em diferentes, mas em carentes, arcaicas, primitivas, tradicionais, pré-modernas e, como afirma Lander (2005), são situadas, num momento anterior do desenvolvimento histórico da humanidade, o que, no imaginário do progresso, enfatiza sua inferioridade Esse processo de negação da contemporaneidade é expresso na forma da “invenção da residualização” (Sousa Santos, 2006) das chamadas “comunidades tradicionais”: estas populações e seus modos de vida, suas temporalidades, suas racionalidades econômicas são vistos como o resíduo, o anacrônico, um desvio da racionalidade capitalista e do modo de vida moderno urbano-industrial. Esta visão se personifica nas ideias de que essas populações representam o primitivo, o tradicional, o

pré-moderno, o simples, o obsoleto, o subdesenvolvido. Isso fica bem claro através da atribuição às populações “tradicionais” do estereótipo do “caboclo”, indivíduo “ignorante”, “atrasado”, “lento”, “indolente” e “improdutivo”. Por um olhar subalterno/ descolonial: da vítima ao protagonista. Como vimos, existem diversas estratégias narrativas herdeiras da colonialidade do saber e do eurocentrismo que subalternizam os povos e comunidades 141

tradicionais. Uma primeira estratégia narrativa opera através de um processo de invisibilização

fruto

de uma produção sistemática da não existência dessas

comunidades, uma verdadeira “violência epistêmica” que realiza um apagamento desses grupos da geografia e história da Amazônia. Já uma segunda estratégia, romantiza, focloriza e mistifica esses povos e comunidades atualizando o mito do “bom selvagem”, retirando esses grupos da real dinâmica social em que vivem e, do devir histórico. Uma terceira variante dessas narrativas coloniais, a mais propagada, produz o estereótipo desses povos e comunidades como esses fossem primitivos, atrasados, ignorantes e improdutivos, por estes pertencerem ao passado e não ao presente, uma negação da contemporaneidade dessas culturas e modos de vida. Para superarmos essas narrativas precisamos fazer um deslocamento do lócus de enunciação, construir outras narrativas a partir de outro lugar de fala, olhar essas comunidades não do lado triunfal da modernidade, mas sim do lado escuro: a colonialidade e a diferença colonial, ou seja, narrar a modernidade colonial a partir de suas “vítimas” e com isso desconstruir o mito da modernidade/colonial. Assim, “olhar” a partir das “vitimas” significa revelar o seu lado oculto, uma outra face (a colonialidade) da modernidade, seu lado mítico que esconde a violência e a irracionalidade da modernidade/colonial onde o ego cogito oculta o ego conquiro (eu conquisto). Esse lado mítico da modernidade/colonial está presente nas teorias e ideologias que sustem as narrativas coloniais. Na verdade, esse lado mítico sintetiza o próprio projeto “civilizatório” da modernidade colonial Esse mito pode ser descrito segundo Dussel (2005, p. 64-65) da seguinte forma: 1. A civilização moderna autodescreve-se como mais desenvolvida e superior (o

que significa sustentar inconscientemente uma posição eurocêntrica). 2. A superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos, bárbaros, rudes, como exigência moral. 3. O caminho de tal processo educativo de desenvolvimento deve ser aquele seguido pela Europa (é, de fato, um desenvolvimento unilinear e à européia o que determina, novamente de modo inconsciente, a “falácia desenvolvimentista”). 142

4. Como o bárbaro se opõe ao processo civilizador, a práxis moderna deve exercer em último caso a violência, se necessário for, para destruir os obstáculos dessa modernização (a guerra justa colonial). 5. Esta dominação produz vítimas (de muitas e variadas maneiras), violência que é interpretada como um ato inevitável, e com o sentido quase-ritual de sacrifício; o herói civilizador reveste as suas próprias vítimas da condição de serem holocaustos de um sacrifício salvador (o índio colonizado, o escravo africano, a mulher, a destruição ecológica, etcetera). 6. Para o moderno, o bárbaro tem uma “culpa” (por opor-se ao processo civilizador) que permite à “Modernidade” apresentar-se não apenas como inocente, mas como “emancipadora” dessa “culpa” de suas próprias vítimas. 7. Por último, e pelo caráter “civilizatório” da “Modernidade”, interpretam-se como inevitáveis os sofrimentos ou sacrifícios (os custos) da “modernização” dos outros povos “atrasados” (imaturos), das outras raças escravizáveis, do outro sexo por ser frágil. Desconstruir esse mito revelando essa “outra-face” negada da modernidade e construir outras narrativas partir das “vitima” da modernidade, é um exercício fundamental de nossa imaginação geográfica, pois segundo Dussel (2005) a vítima deve primeiramente descobrir-se “inocente”: é a “vítima inocente” do sacrifício ritual, que ao descobrir-se inocente julga a “modernidade” como culpada da violência sacrificadora, conquistadora originária, constitutiva, essencial.

Ao negar a inocência da “modernidade” e ao afirmar a alteridade do “Outro”, negado antes como vítima culpada, permite “des-cobrir” pela primeira vez a “outra-face” oculta e essencial à “modernidade”: o mundo periférico colonial, o índio sacrificado, o negro escravizado, a mulher oprimida, a criança e a cultura popular alienadas, etc. (as “vítimas” da “Modernidade”) como vítimas de um ato irracional (como contradição do ideal racional da própria “Modernidade”) (Dussel, 2005 p.65) Para superarmos essas narrativas coloniais precisamos repensar a forma como concebemos o tempo, o espaço e as diferenças, pois na estrutura dessas narrativas estão sempre implícita certa forma de conceber o tempo-espaço. Como já vimos, essa cosmovisão/narrativa fundada no mito da modernidade acima descrito está estreitamente vinculada com o colonialismo e a colonialidade e tempo uma forma muito particular de conceber o tempo-espaço que tem dois efeitos perversos: o primeiro 143

é supressão da multiplicidade contemporânea do espaço e o segundo é a redução da temporalidade a um único tempo. (MASSEY, 2005) Segundo Massey (2005), essa cosmovisão tem algumas consequências na forma como pensamos o espaço, o tempo e a política, pois se trata de uma imaginação (uma conceituação implícita) a qual esconde a possibilidade de analisarmos a produção da desigualdade do mundo que se realiza na atualidade. Além disso, essa imaginação geográfica reduz a diferença entre países, regiões ou lugares a uma posição “na fila histórica”; isso, por sua vez, produz um efeito decisivo: nega a igualdade de voz, sendo uma maneira de depreciar, negar que somos verdadeiramente coetâneos - a existência de coetâneos de uma multiplicidade é uma propriedade essencial do espaço afirma Doreen Massey Essa forma de conceber o tempo, espaço e as diferenças estão claramente ancorada na grande “narrativa” universal da modernidade/colonial; é uma forma de imaginação geográfica, uma leitura do mundo

que opera através de uma

transformação, uma reorganização da geografia (uma simultaneidade espacial de diferenças) em uma única fila histórica (uma sucessão de etapas e períodos). Assim, cada vez que caracterizamos um país, uma região, uma cultura como “atrasada”, como “primitiva” negamos sua diferença atual. Além disso, esse tipo de raciocínio naturaliza essas desigualdades em forma de diferença, impedindo uma reflexão política sobre os processos e as relações que produzem as desigualdades, as diferenças e as hierarquias. Esta cosmologia de “uma única narrativa” oblitera as multiplicidades, as heterogeneidades contemporâneas do espaço. Reduz as coexistências simultâneas a um lugar na “fila da história”. (MASSEY, 2005). A crítica a essa forma de compreendermos espaço-tempo implica em novos compromissos epistemológicos, políticos e éticos. Doren Massey (2005) sugere uma nova forma de imaginação geográfica, a construção de uma nova “cosmovisão” que reconstrua a relação entre tempo e espaço, construindo uma nova narrativa que não seja uma narrativa colonial do mundo, mas uma narrativa descolonial. Desse modo, questiona se não devemos imaginar os diferentes lugares, territórios e culturas como 144

tendo suas próprias trajetórias, suas próprias histórias específicas e o potencial para seus próprios, talvez diferentes, futuros. Para construirmos uma narrativa descolonial é preciso pensar o espaço como esfera da possibilidade da existência da multiplicidade; isso implica segundo Massey (2004), em colocar a questão da diferença no centro do debate político, permitindo pensarmos na existência de múltiplas vozes, múltiplas temporalidades, múltiplas histórias na contemporaneidade, descentrando uma perspectiva etnocêntrica, que afirmam histórias locais como universais, mas que são particulares; entretanto, pelo exercício do poder e do saber, subalternizam outras histórias, temporalidades, sujeitos e saberes. Portanto, para Massey (2004), a verdadeira possibilidade de qualquer reconhecimento sério da multiplicidade e da diferença depende, ele próprio, de um reconhecimento da espacialidade.

(...) um verdadeiro reconhecimento “político” da diferença deve entendê-la como algo mais do que um lugar numa seqüência; de que um reconhecimento mais completo da diferença deveria reconhecer que os “outros” realmente existentes podem não estar apenas nos seguindo, mas ter suas próprias histórias para nos contar. Neste sentido seria concedido ao outro, ao diferente, pelo menos um determinado grau de autonomia. Seria concedida pelo menos a possibilidade de trajetórias relativamente autônomas. Em outras as palavras, isto levaria em consideração a possibilidade da co-existência de uma multiplicidade de histórias. (MASSEY, 2004, p.15). Desse modo, autora conclui que para que haja histórias múltiplas, coexistentes, deve existir espaço. Em outras palavras: “o pleno entendimento da espacialidade envolve o reconhecimento de que há mais de uma estória se passando no mundo e que essas estórias têm pelo menos, uma relativa autonomia”. (MASSEY, 2004, p.15). Nesse sentido, o espaço deve ser entendido como: “uma simultaneidade de histórias inacabadas, o espaço como um momento dentro de uma multiplicidade de trajetórias. Se o tempo é a dimensão da mudança, o espaço é a dimensão da multiplicidade contemporânea”. (MASSEY, 2005). 145

Com essa nova concepção do tempo e do espaço podemos superar as narrativas coloniais sobre os povos e comunidades tradicionais, pois compreender o espaço como uma multiplicidade de trajetórias nos coloca, segundo Massey (2005), uma questão política fundamental: Como vamos viver juntos? Como vamos conviver ou coexistir? O espaço nos oferece o desafio (o prazer e a responsabilidade) da existência dos “outros”.

146

CAPÍTULO-3 IDENTIDADES TERRITORIAIS, RECONFIGURAÇÕES IDENTITÁRIAS E LUTAS SOCIAIS NA AMAZÔNIA

Identidade (...) Sempre que se ouvir essa palavra, pode-se estar certo de está havendo uma batalha. O campo de batalha é o lar natural da identidade. Ela só vem à luz no tumulto da batalha, e dorme e silencia no momento em que desaparecem os ruídos da refrega. (Zigmunt Bauman) A se crer em alguns, a crise de identidade seria o novo mal do século. Quando hábitos seculares vêm abaixo, quando gêneros de vida desaparecem, quando velhas solidariedades desmoronam, é comum, certamente, que se produza uma crise de identidade. (...) A verdade é que, reduzida a seus aspectos subjetivos, uma crise de identidade não oferece interesse intrínseco. Melhor seria olhar de frente as condições objetivas das quais ela é sintoma e que ela reflete. (Lévi-Strauss Apud Haesbaert ) As pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza. (Boaventura de Sousa Santos)

3.1. Introdução Ao observarmos as notícias veiculadas na mídia escrita ou televisiva

sobre

a

Amazônia,

seja

na

escala

regional,

nacional ou

internacional, poderemos verificar que, quase cotidianamente, aparecem manchetes sobre conflitos sociais na região. Tais conflitos envolvem diferentes atores, dentre os quais poderíamos, genericamente, destacar as “comunidades tradicionais” (índios, pescadores, populações quilombolas, seringueiros, trabalhadores rurais etc.), que lutam para permanecer nos territórios por elas historicamente ocupados. Territórios estes marcados por formas de apropriação coletiva e familiar da terra e dos recursos naturais que garantem a reprodução física, social e cultural dessas comunidades. Como um dos principais antagonistas dessas “comunidades tradicionais”, temos o Estado como agente ordenador do território que, através da construção de infraestruturas como barragens, campos de

147

treinamento militar, base de lançamento de foguetes, áreas reservadas à mineração, áreas de conservação, rodovias, ferrovias, portos e aeroportos, vêm afetando, de várias maneiras, os territórios dessas populações. Para completar esse cenário de antagonismos e conflitos, temos a territorialização do Capital na região, expresso através das diferentes frações do capital - velhos e novos capitais - , com suas estratégias territoriais

de

produção

e

reprodução

que

vêm

produzindo,

sistematicamente, subalternização e desterritorialização das “comunidades tradicionais”. Dentre as estratégias, podemos destacar: a construção de usinas de ferro-gusa, carvoarias, siderúrgicas, indústrias de papel e celulose,

refinadoras

de

soja,

frigoríficos

e

curtumes,

mineradoras,

madeireiras, empresas de energia elétrica, laboratórios farmacêuticos e de biotecnologia etc. Essa realidade, com alto grau de conflitividade, foi produzida e intensificada pelo modelo que orientou o processo de ocupação da Amazônia nas últimas décadas. Este modelo, chamado de economia de fronteira, esteve pautado na ideia de progresso e de desenvolvimento como crescimento econômico e prosperidade infinita, com base na exploração de recursos naturais, também eles percebidos como infinitos (BECKER, 1996). A

premissa

organizadora

desse

modelo

de

ocupação

e

apropriação do território era a crença no papel da modernização como a única força capaz de destruir as superstições e relações arcaicas, não importando o seu custo social, cultural e político. A industrialização e a urbanização eram vistas como inevitáveis e, necessariamente, progressivos caminhos em direção à modernização (ESCOBAR, 1998). Esse projeto de modernização conservadora materializado nos planos e planejamentos do Estado autoritário e na implantação de “grandes projetos”, a partir da década de 1960, produziu um novo ordenamento territorial em que não havia espaço para as “comunidades tradicionais” (índios,

ribeirinhos,

pequenos

agricultores,

seringueiros,

varzeiros,

castanheiros, populações quilombolas, mulheres quebradeiras de coco etc.). Suas formas, coletiva e familiar, de apropriação da terra e dos recursos

148

naturais baseados na pequena agricultura e no extrativismo31, além de seus modos de vida, eram vistos como um obstáculo ao desenvolvimento e ao progresso, pois, nessa visão, assinala-se um único futuro possível para todas as culturas e todos os povos: a modernização ocidental capitalista e a sociedade de consumo urbano-industrial. Assim, junto com o projeto de modernização implantado na Amazônia, chegou a cosmovisão da modernidade pautada em um conjunto de “magmas de significação”, que criaram um imaginário em que se atribui a priori uma positividade ao novo, ao moderno e uma negatividade ao velho, ao passado, ao tradicional. Essa perspectiva de compreensão da história e da realidade está baseada numa ideologia do progresso e numa espécie de “fundamentalismo do novo”32, presentes num conjunto de práticas e representações marcadas pela violência e pelo colonialismo que serviam e ainda servem para justificar a subalternização das populações que historicamente viveram na região. Nessa perspectiva, aqueles que não conseguissem incorporar-se a esta marcha inexorável da história estavam destinados a desaparecer. As outras formas de organização social, cultural e territorial de sociedade, as outras

formas

de

conhecimentos,

sociabilidades

e

direitos

são

transformadas não só em diferentes, mas em carentes, arcaicas, primitivas, tradicionais,

pré-modernas,

situadas

num

momento

anterior

ao

31

Formas de uso comum designam situações nas quais o controle dos recursos básicos não é exercido livre e individualmente por um determinado grupo doméstico de pequenos produtores diretos ou por um de seus membros. Tal controle dá-se através de normas específicas, combinando uso comum de recursos e apropriação privada de bens, que são acatadas, de maneira consensual, nos meandros das relações sociais estabelecidas entre vários grupos familiares, que compõem uma unidade social. (...) As práticas de ajuda mútua, incidindo sobre recursos naturais renováveis, revelam um conhecimento aprofundado dos ecossistemas de referência. A atualização dessas normas ocorre, assim, em territórios próprios, cujas delimitações são socialmente reconhecidas, inclusive pelos circundantes. A territorialidade funciona como fator de identificação, defesa e força, mesmo em se tratando de apropriações temporárias dos recursos naturais, por grupos sociais classificados muitas vezes como “nômades” e “itinerantes”. Laços solidários e de ajuda mútua informam um conjunto de regras firmadas sobre uma base física considerada comum, essencial e inalienável, não obstante disposições sucessórias porventura existentes. (ALMEIDA, 2006:2). 32

Gonçalves (2005) usa essa expressão para chamar a atenção para a obsessão do imaginário da modernidade pelo novo, pela velocidade, pela mudança, pelo progresso, criando uma justificativa ideológica para todas as formas de violência cometidas em nome do desenvolvimento e da modernização.

149

desenvolvimento histórico da humanidade, o que, no imaginário do progresso, enfatiza sua inferioridade (LANDER, 2005). Assim, o avanço da fronteira econômica e demográfica na Amazônia significou uma radical mudança nos padrões fundiários e na forma de apropriação da terra e dos recursos naturais na região, visto que a terra deixa de ter somente um valor de uso e passa a ter um valor de troca, transforma-se em mercadoria, institui-se o mercado de terras. Assim como a legitimidade da posse que, até então, estava fundada nos direitos consuetudinários ou “direitos costumeiros” é substituída pela legitimidade assentada no ordenamento jurídico estatal, fundado no direito liberalindividual, expresso nos títulos de propriedade da terra. Nesse sentido, a “fronteira é, pois, a transição, no tempo e no espaço, da terra valor de uso para a terra valor de troca, mediado pelo capital. Em outras palavras, é o processo de transformação social do significado, material e simbólico da terra” (LEVINAS e RIBEIRO, 1991:73). Essas territorialização Amazônia.

mudanças e

Mas

implicaram

subalternização essa

das

violência

profundos

processos

“comunidades e

de

tradicionais”

subalternização

que

desna a

modernização/colonial trouxe para a região, sobretudo pelo avanço da fronteira

demográfica

e

econômica,

passa

a

ser

questionada

por

organizações sociais camponesas que ganhavam expressão e configuração através, sobretudo, dos chamados sindicatos de trabalhadores rurais e, mais tarde, em algumas regiões, através do movimento dos trabalhadores sem terra – MST. Esses dois protagonistas, juntamente com algumas entidades confessionais (CPT, CIMI, ACR) e alguns partidos políticos de esquerda, completavam o quadro dos atores que lutavam pelo acesso à terra e por melhores condições de vida para as populações rurais da região. No final da década de 1980, ocorrem sensíveis mudanças na dinâmica política dos conflitos sociais do mundo rural na Amazônia, especialmente, pela emergência de uma espécie de “polifonia política”, ou seja, da emergência de uma diversidade de novas vozes, novos sujeitos políticos, novos protagonistas que emergem na cena pública e nas arenas políticas. A partir desse momento, começam a ganhar força e objetivação, em forma de movimentos sociais, as reivindicações de uma diversidade de

150

grupos sociais denominados ou autodenominados de populações/povos tradicionais

ou,

como

mais

recentemente

estes

autodenominam-se,

comunidades tradicionais. A partir de então, começa a esboçar-se uma nova geo-grafia33 na Amazônia que aponta para um processo de emergência de diversos movimentos sociais, que lutam pela afirmação das territorialidades e identidades territoriais como elemento de r-existência das “comunidades tradicionais”. Trata-se de movimentos sociais de r-existência, pois não só lutam para resistir contra os que exploram, dominam e estigmatizam essas populações, mas também por uma determinada forma de existência34, um determinado modo de vida e de produção, por diferenciados modos de sentir, agir e pensar. Nesse sentido, os movimentos sociais lutam contra as diferentes formas de subalternização material e simbólica, contra preconceitos e estigmas e pela afirmação de suas identidades a partir dos seus próprios modos de vida.

As “comunidades tradicionais” organizam-se, ganhando

visibilidade e protagonismo, constituindo-se e afirmando-se como sujeitos políticos na luta pelo exercício ou mesmo pela invenção de direitos relacionados a suas territorialidades e identidades territoriais. Nesse contexto, vem ocorrendo a constituição de novos sujeitos políticos e a emergência de “novas” identidades territoriais construídas pelas “comunidades tradicionais” nas lutas sociais pela afirmação material e simbólica dos seus modos de vida. Essas identidades emergentes na Amazônia,

construídas

pelos

diferentes

movimentos

sociais

(índios,

ribeirinhos, pequenos agricultores, seringueiros, varzeiros, castanheiros, populações quilombolas, mulheres quebradeiras de coco etc.), estão orientadas no sentido da superação de velhas identidades coletivas ligadas a um discurso moderno/colonial que se fundamentava na invisibilização, na romantização e, em especial, na estigmatização e no estereótipo do 33

Gonçalves (2004) propõe pensar a Geografia não como substantivo, mas como verbo ato/ação de marcar a terra. É desse modo que podemos falar de nova geografia, em que os diferentes movimentos sociais re-significam o espaço e, assim, com novos signos grafam a terra, geografam, reinventando a sociedade. 34

Expressão cunhada por Gonçalves (2001) para mostrar que as lutas desses movimentos sociais têm um significado social e cultural mais profundo do que uma simples reação.

151

“caboclo”

para

(des)qualificar

“ignorantes”, “indolentes”, como

as

populações

“improdutivas”,

como

“atrasadas”,

considerando tais populações

um obstáculo a um projeto moderno urbano-industrial

para a

Amazônia. Assim, esses movimentos apontam para o caráter emancipatório das lutas pautadas numa politização da própria cultura e de modos de vida “tradicionais”, numa politização dos “costumes em comum” produzindo uma espécie de “consciência costumeira”35 que vem re-significando a construção das identidades dessas populações que, ancoradas nas diferentes formas de territorialidade,

afirmam-se

num

processo

que,

ao

mesmo

tempo,

direciona-as para o passado, buscando nas tradições e na memória sua força, e aponta para o futuro, sinalizando para projetos alternativos de produção

e

organização

comunitária,

bem

como

de

afirmação

e

participação política. Essas populações mobilizam estratégica e perfomaticamente estes novos discursos identitários na busca de reconhecimento de sua cultura,

memória

e

territorialidade

que,

historicamente,

foram

marginalizadas, suprimidas, silenciadas e invisibilizadas e que, agora, começam a tornar visível o que era invisível, em voz o que foi silenciado, em presenças as ausências e, desse modo, iluminam a r-existência e o protagonismo dessas populações na construção da história e da geografia da região. Para discutirmos tais questões, organizamos esse capítulo em três

partes.

Na

primeira,

realizaremos

uma

discussão

teórica

e

metodológica sobre o conceito de identidade e identidade territorial. Já no segundo momento, analisaremos as condições de emergência da questão e (re)configuração identitária nas lutas sociais na Amazônia, discussão que 35

Expressão usada por Thompsom (1998) para referir-se à emergência de uma consciência política e de uma cultura plebéia rebelde que buscava, nos costumes e na tradição, a legitimidade das suas lutas para afirmação de determinadas formas de direitos consuetudinários e da economia moral em oposição à economia capitalista e do direito liberal. Os camponeses resistem, em nome do costume, às racionalizações econômicas e inovações (como o cercamento de terras comuns, a disciplina no trabalho e os mercados „livres‟ não regulados de grãos) que governantes comerciantes ou patrões buscavam impor. Trata-se de atribuir um conteúdo emancipatório para as culturas tradicionais normalmente vistas como sinônimas de conservadorismo.

152

será tratada na terceira parte. Por último, buscaremos construir uma síntese

de

caráter

teórico-metodológico

apontando

pressupostos

fundamentais para pensarmos a questão identitária hoje na Amazônia. 3.2. Itinerários teóricos para se pensar o conceito de identidade territorial A discussão sobre a temática da identidade é muito complexa, já que este conceito é portador de uma grande ambiguidade teórica e política, levando

autores

como

Stuart

Hall,

inspirado

pela

perspectiva

desconstrutivista de Derrida, a afirmar que só é possível trabalhá-lo sob “rasura”, pois, apesar de sua imprecisão e precariedade explicativa, o conceito de identidade possui algo de “irredutível”. Em outras palavras, significa que, apesar de suas limitações, não é possível substituí-lo, porque a identidade é um desses conceitos que operam no intervalo da inversão e da emergência: uma ideia que não pode ser pensada de forma antiga, mas sem a qual certas questões-chave não podem nem sequer serem pensadas. Diante da vasta literatura existente sobre o tema, optamos por fazer uma síntese

de

alguns

pressupostos

teóricos

que

entendemos

serem

fundamentais na compreensão do fenômeno identitário e, em especial, para pensarmos a questão das identidades territoriais na Amazônia. A identidade é uma construção histórica Inicialmente, gostaríamos de discutir a relação entre identidade e diferença. Essa relação é, normalmente, trabalhada como uma simples oposição, sendo que a diferença é concebida como alteridade, como um produto derivado da identidade (o diferente, o diverso). Em outras palavras, a identidade é a referência, o ponto original relativamente ao qual se define a diferença (SILVA, 2004). Contudo, a partir das reflexões do referido autor, estamos propondo-nos a pensar a diferença não só como produto, mas também como processo. Nessa concepção processual, a diferença não é um estado estático e nem se confunde com a diversidade (simples constatação do diverso).

É

relação,

um

movimento

gerativo

e

incessante,

uma

multiplicidade ativa e criadora. Nesses termos, inverter-se-ia a equação e a

153

diferença passaria a ser o ponto original para se pensar a identidade, como Silva

(2004)

afirma:

“(...)

é

preciso

considerar

a

diferença

não

simplesmente como resultado de um processo, mas como o processo mesmo pelo qual tanto a identidade quanto a diferença (compreendida, aqui, como resultado) são produzidas. Na origem estaria a diferença compreendida, agora, como ato ou processo de diferenciação” (SILVA, 2004:75-6). Desse modo, analisar a identidade significa refletir também sobre a diferença, pois elas são indissociáveis. Sendo assim, o nosso ponto de partida é o de que a identidade é sempre uma construção histórica e relacional dos significados sociais e culturais que norteiam o processo de distinção e identificação de um indivíduo ou de um grupo. “Um processo de construção de significados com base em um atributo cultural ou, ainda, um conjunto

de

atributos

culturais

inter-relacionados

o(s)

qual

(ais)

prevalece(m) sobre outras fontes de significação” (CASTELLS 1999:22). Partindo desse ponto, queremos distanciar nossa visão de toda forma de “substancialismo” e “essencialismo”, pois concordamos com Hall (2004) quando este afirma que a identidade é, e sempre está em processo, ou seja, sempre está em construção. Nesse sentido, a identidade é dinâmica, múltipla, aberta e contingente. Essas características remetem-nos a algo em curso, em movimento, sempre se realizando. Para Hall (1997; 2004), a identidade não se restringe à questão: “quem nós somos”, mas também “quem nós podemos nos tornar”; desse modo, a construção da identidade tem a ver com “raízes” (ser), mas também com “rotas” e “rumos” (tornar-se, vi a ser). Assim, o conceito de identidade não se confunde com as ideias de originalidade

ou

de

autenticidade,

uma

vez

que

os

processos

de

identificação e os vínculos de pertencimento constituem-se tanto pelas tradições

(“raízes”,

heranças,

passado,

memórias

etc.)

como

pelas

traduções (estratégias para o futuro, “rotas”, “rumos” projetos etc.). As identidades nunca são, portanto, completamente determinadas, unificadas, fixadas. Elas são “multiplamente construídas ao longo dos discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas. As identidades estão sujeitas a uma historizacão radical, estando constantemente em processo de transformação e mudança” (Hall, 2004:108).

154

Na verdade, a identidade como processo é identificação, definida pelo referido autor como: [...] um processo de articulação, uma suturação, uma sobredeterminação, e não uma subsunção. Há sempre “demasiado” ou “muito pouco” - uma sobredeterminacão ou uma falta, mas nunca um ajuste completo, uma totalidade. Como toda prática de significação ela está sujeita ao “jogo” da différance. Ela obedece à lógica do mais-que-um. E uma vez que, como processo, a identificação opera por meio da différance, ela envolve um trabalho discursivo, o fechamento e a marcação de fronteiras simbólicas, a produção dos “efeitos de fronteira”. Para consolidar o processo, ela requer aquilo de que è deixado de fora – o exterior que a constitui (HALL, 2004:106). Em consequência, a identidade como construção histórica está sempre sujeita a re-significações que são construídas dentro e não fora dos discursos (HALL, 2004). Nesse sentido, precisamos compreendê-las como produzidas

em

locais

históricos,

institucionais

(acrescentaríamos

geográficos) específicos a partir dos quais se constroem as práticas e as representações discursivas dos diferentes sujeitos envolvidos no jogo para definir a identidade, que é entendida como: [...] o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos “interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como os sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode “falar”, as identidades são, pois, ponto de apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós. (HALL, 2004:11,1 grifos nossos). A identidade é uma construção relacional e contrastiva Ainda ressaltando o caráter histórico, precisamos compreender que a identidade não é uma “coisa em si” ou “um estado ou significado fixo”, mas uma relação, uma “posição relacional”, uma posição-de-sujeito construída de forma relacional e contrastiva (OLIVEIRA, 1976), visto que os processos de identificação e, consequentemente, as identidades são construídos na e pela diferença e não fora dela. Além disso, nenhuma identidade é auto-suficiente, auto-referenciada em sua positividade, tendo

155

seu significado definido no jogo da différance36. Ou, como nos lembra Hall (2003), cada identidade é radicalmente insuficiente em relação a seus “outros”. Isso implica o reconhecimento radicalmente perturbador de que é apenas por meio da relação com o outro, da relação com aquilo que não é, precisamente, com aquilo que falta, com aquilo que tem sido chamado de seu exterior constitutivo (HALL, 2004:110), que a identidade ganha sentido e eficácia. Identificar, no âmbito humano social, é sempre identificar-se, um processo reflexivo, portanto, identificar-se é sempre um processo de identificar-se com, ou seja, é sempre um processo relacional, dialógico, inserido numa relação social (HAESBAERT, 1999a: 174, grifos do autor). Portanto, não é possível estudar a identidade de qualquer grupo social apenas com base na sua cultura, ou no seu modo de vida, nas suas representações

de

forma

introvertida

e

auto-referenciada,

pois

as

identidades e os sentimentos de pertencimento são construídos de maneira relacional, contrastiva e, muitas vezes, conflitiva entre uma auto-identidade (auto-atribuição, autorreconhecimento) e uma heteroidentidade (atribuição e reconhecimento pelo “outro”). São nessas teias complexas de valorações e significados de reconhecimento e alteridade que se estabelecem o diálogo e o conflito entre os grupos, forjando as identidades. É nesse jogo relacional de classificação/distinção/identificação que a identidade é construída e configurada, ao mesmo tempo, como inclusão e exclusão: ela identifica o grupo (membros do grupo que são idênticos) e o distingue dos outros grupos (cujos membros são diferentes dos primeiros sob certo ponto de vista). Nessa perspectiva, a identidade aparece como categorização da distinção nós/eles, baseada na diferença (CUCHE, 1999).

36

Jacques Derrida usa esse conceito para romper com o binarismo e absolutização dos conceitos, dos significados, das diferenças e, diríamos, das identidades fixas, pois é só numa cadeia e num jogo deslizante em relação aos outros que o significado, o conceito, a diferença ou a identidade existem. “A différance é o jogo sistemático das diferenças, dos rastros de diferenças, do espaçamento, pelo qual os elementos se remetem uns aos outros. Esse espaçamento é a produção, ao mesmo tempo ativa e passiva (...) dos intervalos sem os quais os termos “plenos” não significariam, funcionariam (...) o jogo das diferenças supõe, de fato, sínteses e remessas que impedem que, em algum momento, em algum sentido, um elemento simples esteja presente em si mesmo e remeta a si mesmo” (Derrida, 2001:32-3).

156

A construção da identidade pode envolver elementos materiais e simbólicos Outro cuidado teórico e metodológico importante sobre a questão da

identidade

material/simbólico,

é

a

superação

objetivo/subjetivo.

de

posições A

dualistas

identidade

é

como:

construída

subjetivamente, baseada nas representações, nos discursos, nos sistemas de classificações simbólicas, embora não seja algo puramente subjetivo e não se restrinja à “textualidade” e ao “simbólico”. Ela não é uma construção puramente imaginária que despreza a realidade material e objetiva das experiências e das práticas sociais como muitos afirmam, tampouco é algo materialmente dado, objetivo, uma essência imutável, fixa e definitiva. Se a identidade é uma construção social e não um dado, se ela é do âmbito da representação, isso não significa que ela seja uma ilusão que dependeria da subjetividade dos agentes sociais. “A construção das identidades se faz no interior dos contextos sociais que determinam a posição dos agentes e por isso mesmo orientam suas representações e suas escolhas” (CUCHE, 1999:82). Portanto, na construção da identidade não é possível pensar de forma dissociada sua natureza simbólica e subjetiva (representações) e seus referentes mais “objetivos” e “materiais” (a experiência social em sua materialidade) Desse modo, não cabe posições deterministas e excludentes que privilegiem a priori o material ou simbólico/textual, pois “se há sempre „algo

mais‟

além

da

cultura,

algo

que

não

é

bem

captado

pelo

textual/discursivo, há também algo mais além do assim chamado material, algo que sempre é cultural e textual” (ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2003: 21). Essa tensão e primazia não podem ser resolvidas no campo da teoria, só é provisoriamente solucionada na prática concreta. A identidade é uma construção estratégica e posicional As identidades e as diferenças não podem ser compreendidas fora dos sistemas de significação nos quais elas são construídas e adquirem sentido. Nessa ótica, as identidades precisam ser analisadas a partir dos discursos e dos sistemas de representação que constroem os lugares dos

157

quais os

indivíduos

podem

posicionar-se

e

dos

quais podem falar

(WOODWARD, 2004). É reconhecendo a importância das representações que a autora afirma: ”A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos e pelas representações que damos sentido à nossa experiência e aquilo que somos”. (WOODWARD, 2004: 17) A

luta

pela

afirmação

da

identidade

enquanto

forma

de

reconhecimento social da diferença significa lutar para manter visível a especificidade do grupo, ou, melhor dizendo, aquela que o grupo toma para si, para marcar projetos e interesses distintos, e “isso significa que sua definição - discursiva e lingüística - está sujeita a vetores de força, a relações de poder” (SILVA, 2004:80). Essa perspectiva de entendimento da identidade aponta para uma relação entre o “cultural” e o “político”, estando essas duas dimensões imbricadas num laço constitutivo na construção das mesmas. Esse laço constitutivo significa que a cultura entendida como concepção de mundo, como um conjunto de significados que integram práticas sociais, não pode ser entendida adequadamente sem as considerações das relações de poder embutidas nessas práticas. Por outro lado, a compreensão das configurações dessas relações de poder não é possível sem o reconhecimento do seu caráter “cultural” ativo, na medida em que expressam, produzem e comunicam significados (ÁLVARES; DAGNINO E ESCOBAR 2000:17). Assim,

todos

os

sistemas

simbólicos

de

classificação

que

organizam e dão sentido e significado à marcação das diferenças culturais e das desigualdades sociais na construção das identidades são impregnadas de poder (WOODWARD, 2004). As identidades “emergem no interior do jogo de modalidades específicas de poder, e são assim mais o produto da marcação da diferença e da exclusão do que o signo de uma unidade idêntica, naturalmente constituída” (HALL, 2004:109). É, pois, por essa íntima relação com o poder que a identidade não pode ser considerada de maneira essencialista, mas estratégica e posicional (HALL, 2004).

158

Sob essa ótica, a construção das identidades está em estreita conexão com as relações de poder. Os significados das identidades não são transcendentais, eles são construídos, contestados, negociados a partir das relações assimétricas de poder na sociedade. Nesse sentido, a luta pela afirmação de uma determinada forma de representação e o estabelecimento de um determinado significado de uma identidade é uma luta pela afirmação ou contestação da hegemonia, um campo de batalha, pois, como afirma Bauman: Identidade (...) Sempre que se ouvir essa palavra, pode-se estar certo de está havendo uma batalha. O campo de batalha é o lar natural da identidade. Ela só vem à luz no tumulto da batalha, e dorme e silencia no momento em que desaparecem os ruídos da refrega. (...) A identidade é uma luta simultânea contra a dissolução e fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa resoluta a ser devorado (BAUMAN, 2005: 834).

Assim, devido a seu caráter estratégico, as identidades estão sujeitas à manipulação dos indivíduos ou grupos sociais; elas não existem em si mesmas, independentemente das estratégias de afirmação dos atores sociais. Elas são, ao mesmo tempo, produtos e produtoras das lutas sociais e políticas. “Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas. Elas não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas” (SILVA, 2004:81). Na disputa pela identidade está envolvida uma disputa por outros recursos simbólicos e materiais da sociedade. A afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferença estão em estreita conexão com as relações de poder. O poder de definir a identidade e marcar a diferença não pode ser separado das relações mais amplas de poder. A identidade e a diferença não são, nunca, inocentes (SILVA, 2004:81, grifos nossos). A

eficácia

das

estratégias

identitárias

e

o

seu

poder de

legitimação dependerão da situação de cada grupo no jogo do poder. Dependerá do capital econômico, político e, em especial, do simbólico

159

(BOURDIEU, 1999) que cada grupo possui na estrutura assimétrica da sociedade. É pela “autoridade legítima” do poder simbólico, “esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (p.8), é pela força do discurso performático, traduzido no poder quase mágico das palavras, num jogo de corte e recorte, colagem e repetição de enunciados, imagens e símbolos, que a identidade produz o consenso, a ação e a mobilização. A identidade pode ser: hegemônica ou subalterna A

construção

manutenção

e

das

legitimação

identidades das

pode

relações

de

servir poder

tanto

para

hegemônicas

a da

sociedade, quanto para subvertê-las. Desse modo, o mesmo processo que serve

à

reprodução

do

poder

hegemônico,

logo,

das

identidades

hegemônicas, pode ser interrompido e reorientado no sentido de produzir novas identidades. Pois, como afirma Silva, inspirado em Judith Buttler: A mesma repetibilidade que garante a eficácia dos atos performativos que reforçam as identidades existentes pode significar a possibilidade de interrupção das identidades hegemônicas. A repetibilidade pode ser interrompida. A repetição pode ser questionada e contestada. É nessa interrupção que residem as possibilidades de instauração de identidades que não representam simplesmente a reprodução das relações de poder existentes (SILVA, 2004:95). Assim, hegemônicas,

podemos

normalizadas

perceber e

que,

além

institucionalizadas,

das

identidades

existem

outras

subalternizadas, de sujeitos subalternizados no jogo do poder, mas que podem contestar a hegemonia, pois, como nos fala Hall (2004), toda identidade tem à sua “margem” um excesso, algo a mais. Silva (2004) afirma que a identidade hegemônica é permanentemente assombrada pelo seu “outro”. Nesses termos, “toda identidade tem necessidade daquilo que lhe "falta”, mesmo que esse outro que lhe falta seja um outro silenciado, inarticulado.” (HALL, 2004:11). Como as identidades não são nunca completamente unificadas, estáveis, fixas, o mesmo “discurso performático”, que repetidamente tende

160

a fixar e a estabilizar uma identidade, silenciando outras, pode também subvertê-la e desestabilizá-la, ou seja, o que está na “margem” pode tornar-se o “centro”, porque:

A possibilidade de poder interromper o processo de „recorte e colagem‟ de efetuar uma parada no processo de “citacionalidade” que caracteriza os atos performáticos e que reforçam as diferenças instauradas, é que torna possível pensar na produção de novas e renovadas identidades (SILVA, 2004:95-6). Desse modo, no jogo de poder pela hegemonia na sociedade, os diferentes atores sociais, de acordo com a “posição” que ocupam no espaço social (muitas vezes, também, geográfico) e, ainda, pelo acúmulo de “capitais” que possuem e a intenção em “investir” nos seus projetos políticos, podem afirmar diferentes identidades em cada momento histórico. Castells (1996:24), fazendo uma espécie de mapeamento das “posições“ e dos projetos dos diferentes atores, propõe três tipos de identidades: identidade legitimadora, identidade de resistência e identidade de projeto: a) A Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes da sociedade, no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais. b) Identidade de resistência: criada por atores que se encontram em posições e condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica

de

dominação,

construindo,

assim,

trincheiras

de

resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos. c) Identidade de projeto: quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, buscam a transformação de toda a estrutura social. Assim, podemos verificar que, conforme a “posição” do ator social, a construção das identidades assume uma configuração específica tanto no sentido da reprodução de uma ordem hegemônica quanto no de

161

contestação

dessa

ordem,

afirmando

a

diferença

subalternizada

e

questionando as identidades “normalizadas” e institucionalizadas ou, de forma mais ampla, a própria sociedade como instituição. Contudo, é importante percebermos com clareza que cada “posição” é sempre construída de forma relacional em cada contexto de poder específico. Além disso, vale ressaltarmos que qualquer “posição” não é estática, mas dinâmica, o que possibilita a uma identidade subalternizada ou de resistência tornar-se hegemônica e institucionalizada, do mesmo modo que o que é o hegemônico em um determinado contexto histórico pode tornarse não-hegemônico em outro. 3.3. Identidade territorial: uma perspectiva geográfica de pensar a “questão identitária” Partindo dessa discussão geral, podemos dialogar no sentido de definir o que seria um estudo de identidade a partir de uma perspectiva geográfica. Se a identidade é um conceito posicional e estratégico, como nos sugere Hall (2004), e se nossas identidades são posições-de-sujeito estrategicamente construídas a partir de lugares, precisamos valorizar mais a dimensão espacial para pensarmos as diferenças e as identidades. No entanto, valorizar a dimensão espacial não significa usá-la somente como metáfora, como normalmente os discursos teóricos dos chamados estudos culturais ou pós-modernos o fazem. O caráter relacional que essas metáforas espaciais como “posição” e “localização” oferecem-nos para pensarmos a diferença é muito rico, mas pode esconder o fato de que a importância do território, em suas múltiplas escalas e dimensões, vai além do seu sentido metafórico (SMITH, 2002), já que as identidades não têm somente “localizações” sociais, culturais e discursivas. Elas são também territoriais, e muitas delas têm no território seu referencial central. Adotamos determinadas

a

proposição

identidades

concreta/simbólica

e

são

de

Haesbaert

construídas

material/imaginária

dos

a

(1999) partir

grupos

da

sociais

de

que

relação com

o

território. Estas seriam identidades territoriais por serem construídas pelo processo de territorializacão, aqui entendido como “as relações de domínio

162

e apropriação do espaço, ou seja, nossas mediações espaciais do poder, poder em sentido amplo, que se estende do mais concreto ao mais simbólico”37. Assim, parte-se do princípio de que o território, como mediação espacial das relações do poder, em suas múltiplas escalas e dimensões, define-se por um jogo ambivalente e contraditório entre desigualdades sociais e

diferenças

culturais, realizando-se

de

maneira concreta e

simbólica, sendo, ao mesmo tempo, vivido, concebido e representado de maneira funcional e/ou expressiva pelos indivíduos ou grupos. O território enquanto processo realiza-se por um sistema de classificação que é, ao mesmo tempo, funcional e simbólico, incluindo e excluindo por suas fronteiras, (re)forçando as des-igualdades sociais (diferenças de grau) e as diferenças culturais (diferenças de natureza) entre indivíduos ou grupos. Assim, o processo de territorialização, seja pela funcionalização (domínio) ou pela simbolização (apropriação), ou pela combinação simultânea desses dois movimentos, constrói diferenças e identidades. Pois, como afirma Silva: A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e excluir. A identidade e a diferença se traduzem, assim, em declarações sobre quem pertence e quem não pertence, sobre quem está incluído e quem está excluído. Afirmar a identidade significa demarcar fronteira, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora (SILVA, 2004:82).

Nessa perspectiva, “toda relação de poder espacialmente mediada é também produtora de identidade, pois controla, distingue, separa e, ao separar, de alguma forma nomeia e classifica os indivíduos e os grupos (HAESBAERT, 2004:89). Contudo, se podemos afirmar que em toda territorialização como sistema de classificação funcional-estratégico e/ou simbólico-expressivo constroem-se identidades, não se pode dizer o contrário, pois

37

nem toda identidade é territorial, nem toda identidade

Haesbaert, 2004:339.

163

territorializa-se, ou seja, constrói territórios. Todas estão “localizadas” no espaço e no tempo, mas

somente algumas têm como seu referencial

principal, sua “matéria prima”, o território como definido por Haesbaert: Toda identidade territorial é uma identidade social definida fundamentalmente através do território, ou seja, dentro de uma relação de apropriação que se dá tanto no campo das idéias quanto no da realidade concreta, o espaço geográfico constituindo assim parte fundamental dos processos de identificação social [...] trata-se de uma identidade em que um dos aspectos fundamentais para sua estruturação está na alusão ou referência a um território, tanto no sentido simbólico quanto concreto. Assim a identidade social é também uma identidade territorial quando o referente simbólico central da construção dessa identidade parte ou perpassa o território (HAESBAERT, 1999a: 172-178, grifo do autor). No

nosso

entendimento,

a

construção

de

uma

identidade

territorial pressupõe dois elementos fundamentais: espaço de referência identitária e a consciência sócio-espacial de pertencimento. a) O espaço de referência identitária38 É o referente espacial no sentido concreto e simbólico em que se ancora a construção de uma determinada identidade social e cultural. Refere-se ao recorte espaço-temporal (os meios e os ritmos) em que se realiza a experiência social e cultural. É nele que são forjadas as práticas materiais (formas de uso, organização e produção do espaço) e as representações espaciais (formas de significação, simbolização, imaginação e conceituação do espaço) que constroem o sentimento e o significado de pertencimento dos grupos ou indivíduos em relação a um território. Desse modo, pode-se falar, por exemplo, do papel do rio como “espaço de referência identitária” na Amazônia, pois o rio como espaço físico-natural (paisagem natural) é fundamental como meio de transporte, como fonte de recursos naturais e ainda contribui de maneira fundamental na temporalidade, no ritmo social de parte da região, bem como é matriz da organização espacial em muitas áreas da Amazônia. O rio como espaço social é o meio e a mediação das tramas e dos dramas sociais que 38

Espaço de referência identitária é uma expressão cunhada por Poche (1983) para o estudo da região numa perspectiva culturalista.

164

constituem o modo de vida ribeirinho com seus saberes, fazeres e sociabilidades cotidianas. Já como espaço simbólico ele é matriz do imaginário,

produto

e

produtor

dos

sistemas

de

crenças,

lendas,

cosmologias e mitos ligados à floresta e ao misterioso universo das águas que são elementos fundamentais na construção da cultura do ribeirinho na Amazônia. Portanto, o rio é um espaço de referência identitária para uma parte significativa da população na Amazônia. b) A consciência sócio-espacial de pertencimento É o sentido de pertença, os laços de solidariedade e de unidade que

constituem

os

nossos

sentimentos

de

pertencimento

e

de

reconhecimento como indivíduos ou grupo em relação a uma comunidade, a um lugar, a um território. Não é algo natural ou essencial, é uma construção histórica, relacional/contrastiva e estratégica /posicional. No que diz respeito à consciência de pertencimento a um lugar, a um território, essa consciência é construída a partir das práticas e das representações espaciais que envolvem, ao mesmo tempo, o domínio funcional-estratégico sobre

um

determinado

espaço

(finalidades)

e

a

apropriação

simbólico/expressiva do espaço (afinidades/afetividades). O domínio do espaço, nos termos de Lefebvre (1986), está ligado às representações do espaço (espaço concebido), e a apropriação está mais ligada às práticas espaciais e aos espaços de representação (dimensão de um espaço percebido e vivido). Isso implica dizer que também as identidades territoriais podem ser construídas de formas diferentes, umas mais ligadas ao domínio estratégico-funcional do espaço pelo poder econômico e político, sendo construídas com base num espaço concebido, e outras mais ligadas a uma apropriação

simbólico-expressiva,

tendo

mais

como

referencial

a

subjetividade e a experiência do espaço vivido. Mas isso não significa criar uma dicotomia, pois, como nos lembra Lefebvre (1986), não há quebras ou rupturas entre domínio (concebido) e apropriação (vivido), mas sim uma relação dialética. Nesse sentido, cabe verificar, metodologicamente, em cada processo de construção identitária, a contradição entre o domínio das

165

estratégias-funcionais (concebido) e a apropriação simbólico-expressiva do espaço (vivido). Nessa tensão, existem pólos predominantes e hegemônicos e outros subalternizados em forma de resíduos e resistências. Assim, ora se impõe o domínio e o espaço concebido, ora a apropriação e o espaço vivido na construção das identidades. Partindo dessas possíveis configurações identitárias,

podemos

ter

dois

“tipos

ideais”

de

configurações

das

identidades territoriais que só são possíveis separar analiticamente, considerando que, empiricamente, estão imbricadas numa espécie de continuum que vai da identidade que se ancora exclusivamente no “vivido” até aquela que se pauta exclusivamente no “concebido”.

Consciência socioespacial de pertencimento

“Espaço vivido”

“Espaço concebido”

(práticas espaciais e espaços de representação): modos de vida, experiência cultural, habitus.

(representações do espaço): imagens, planos, projetos, teorias e ideologias geográficas.

Para aprofundarmos essa caracterização das configurações das identidades territoriais num diálogo com a proposta de Henri Lefebvre (1986) sobre a concepção da produção social do espaço, propomos pensar:

1. Identidades construídas predominantemente pautadas no espaço concebido (representações do espaço) São

identidades

pautadas

no

domínio

lógico-racional

e

estratégico-funcional do espaço (espaço com valor de troca: mercadoria – propriedade). Essas identidades são construídas a partir do espaço concebido ou das representações do espaço que, segundo Lefebvre (1986), estão ligadas às relações de produção da “ordem” que impõem os conhecimentos, os signos, os códigos espaciais como um produto do saber, um misto de ideologias e conhecimentos Sendo assim, tais identidades são construídas deslocadas das experiências do espaço vivido cotidianamente e

166

têm sua “matéria prima”, sua “base”, no conjunto de representações do espaço (concebido) dos planos, teorias, imagens, discursos e ideologias dos atores hegemônicos como o Estado, o grande capital, os cientistas, os burocratas, os políticos, a mídia etc.

2. Identidades construídas predominantemente pautadas no espaço vivido (espaços de representação) São identidades pautadas na apropriação simbólico-expressiva do espaço, nos “resíduos irredutíveis” ao domínio lógico-racional e estratégicofuncional do espaço: o uso, o vivido, o afetivo, o sonho, o imaginário, o corpo, a festa, o prazer etc. Essa apropriação está mais assentada no valor de uso – uso concreto do tempo, do espaço, do corpo – que dá concretude, e abriga as dimensões da existência e os sentidos da vida (SEABRA, 1986). São

identidades

construídas

a

partir

dos

espaços

de

representação que, segundo Lefebvre, são espaços que se caracterizam pelos simbolismos complexos, ligados ao subterrâneo, ao labirinto, à clandestinidade da vida social, ao imaginário (LEFEBVRE, 1986). São identidades construídas a partir do espaço dos “habitantes”, dos “usuários”. O espaço vivido que contém uma forte dimensão afetiva contém os lugares da paixão e da ação; trata-se de um espaço essencialmente qualitativo, relacional e diferencial (LEFEBVRE, 1986). Portanto, são identidades construídas arraigadas na experiência imediata do espaço vivido, na densidade e espessura de um cotidiano compartilhado localmente em sua multiplicidade de usos do espaço e do tempo. Estão ligadas à produção e comunhão dos saberes, dos costumes em comum, da memória e do imaginário coletivo. Assim, por exemplo, para compreendermos a identidade das populações

ribeirinhas

na

Amazônia

precisamos

conhecer

as

suas

experiências culturais, seus modos de vida, suas territorialidades, seus saberes e fazeres vividos cotidianamente (o “espaço vivido”, nos termos de Lefebvre). Mas, além da dimensão do “vivido”, precisamos levar em conta um conjunto de representações e ideologias presentes nas imagens, discursos, planos e teorias sedimentados historicamente pela mídia, pela visão da classe política, pelas diferentes frações do capital nacional e

167

internacional e pelos planejamentos do Estado e, ainda, nas pesquisas acadêmicas, muitas vezes, pautadas nas “representações do espaço” ou no “espaço concebido” (LEFEBVRE, 1986). É a partir dessa relação dialética entre “o espaço vivido” e o “espaço concebido” que se constroem a consciência sócio-espacial de pertencimento e as identidades territoriais. 3.4. As condições de emergência e reconfiguração da questão identitária na Amazônia No atual momento histórico, podemos verificar que a Amazônia é profundamente influenciada por processos globais, e vários vetores da atual economia globalizada convergem para esta região. Nesse sentido, vale destacar a centralidade estratégica, geopolítica, econômica e midiática que a região assumiu a partir da ascensão da questão ambiental. Essa visibilidade é tão grande que algumas pesquisas apontam que a palavra “Amazônia”, ou melhor, a marca “Amazônia” é uma das três mais conhecidas em todo o mundo, estando do lado de marcas como Coca-Cola. Isso mostra como é forte o imaginário construído sobre esta porção do território brasileiro. Além disso, hoje é muito grande a quantidade de empresas, ONGs e instituições de pesquisa que atuam na região, sem falar que grande parte do capital que nela circula é de origem externa. Esse processo de globalização da região vem intensificando-se a partir do processo que Arturo Escobar denominou de uma “irrupção do biológico” (ESCOBAR, 2005). Trata-se da emergência do discurso da conservação da biodiversidade e do chamado desenvolvimento sustentável no plano das políticas de desenvolvimento a nível global. Segundo Escobar (2005), o conceito de biodiversidade tem transformado os parâmetros de avaliação da natureza e as disputas de acesso aos recursos naturais. A ideia de biodiversidade decorre de uma quantificação do número de espécies existentes em determinadas áreas. É por isso que zonas ou áreas tropicais como a Amazônia (que possuem uma grande diversidade genética) adquirem “uma nova visibilidade e se convertem em objeto de renovado interesse” para inúmeros atores com interesses e projetos diversos. Desse

168

modo, o discurso da biodiversidade coloca as áreas de floresta tropical unidas numa “posição biopolítica global fundamental” (ESCOBAR, 2005). No que se refere especificamente à Amazônia, a revolução científico-tecnológica, a crise ambiental e a atuação dos chamados novos movimentos sociais redefiniram, a partir de interesses diferenciados, o valor da natureza enquanto recurso (BECKER, 1996). A ação conjunta desses elementos resulta na mudança do paradigma de desenvolvimento na Amazônia

baseado

na

economia

de

fronteira

para

um

padrão

de

desenvolvimento sustentável baseado na eficiência máxima e no desperdício mínimo no uso de recursos naturais, na valorização da diversidade e na descentralização (BECKER, 1996, p.226). Nessa nova realidade, configura-se uma nova divisão territorial do trabalho e uma nova geopolítica, o que implica um novo modo de produzir que valoriza a natureza como capital de realização atual e/ou futura (BECKER, 1996, p.226). Diante desse novo quadro, a Amazônia deixa de ser a fronteira de recursos para o uso imediato para tornar-se uma fronteira tecno-ecológica ou fronteira socioambiental, cujo desenvolvimento futuro tornou-se uma questão complexa e híbrida que envolve um conflito de valores quanto à natureza (BECKER, 2005). Nesse contexto, segundo Becker (2005), a natureza vem sendo reavaliada e revalorizada a partir de duas lógicas muito diferentes, mas que convergem para o mesmo projeto de preservação da Amazônia: 1- A primeira lógica é a civilizatória ou cultural, que se caracteriza por uma preocupação legítima com a natureza pela questão da vida, dando origem aos movimentos ambientalistas. 2- A outra lógica é a da acumulação, que vê a natureza como recurso escasso e como reserva de valor para a realização de capital futuro, fundamentalmente no que tange ao uso da biodiversidade condicionada ao avanço da tecnologia. Essas matizadas

duas

quando

grandes

verificamos

lógicas tornam-se a

questão

dos

mais complexas

e

discursos

a

sobre

biodiversidade envolvendo os mais diversos atores e interesses, como mostra-nos Arturo Escobar:

169

1. Utilização dos recursos: perspectiva “globocêntrica”. A perspectiva “globocêntria” é visão da biodiversidade produzida pelas instituições dominantes, nomeadamente o Banco Mundial e as principais ONGs ambientalistas do norte apoiados pelos países do G-8. Oferece prescrições para conservação e usos sustentáveis dos recursos nos níveis internacional, nacional e local, e sugere mecanismos apropriados para utilização, incluindo investigação científica, conservação in situ e ex situ, planejamento nacional da biodiversidade e estabelecimento de mecanismos apropriados para compensação e utilização econômica dos recursos da biodiversidade, principalmente, mediante direitos de propriedade intelectual. 2. Soberania: perspectivas nacionais do Terceiro Mundo. Apesar de existirem grandes variações nos posicionamentos adotados pelos governos do Terceiro Mundo, pode-se afirmar a existência de uma perspectiva nacional do terceiro mundo que, sem pôr em questão de maneira fundamental o discurso “globalocêntrico”, procura negociar os termos dos tratados e as estratégias da biodiversidade. Aspectos ainda não resolvidos, nomeadamente o da conservação in situ e o acesso a coleções ex situ, o acesso soberano aos recursos genéticos, a dívida ecológica e a transferência de recursos tecnológicos e financeiros para o Terceiro Mundo são tópicos importantes na agenda dessas negociações. 3. Biodemocracia: perspectivas das ONGs progressistas. Para um número crescente de ONGs do sul, a perspectiva dominante e “globalocêntrica” equivale a uma forma de bioimperalismo. Os simpatizantes da biodemocracia enfatizam o controle local dos recursos naturais e a suspensão de megaprojetos de desenvolvimento. Os subsídios para as atividades do capital destroem a biodiversidade, o apoio às práticas baseadas na lógica da diversidade, a redefinição de produtividade e eficiência e o reconhecimento da base cultural da diversidade biológica. 4. Autonomia cultural: perspectiva dos movimentos sociais. Os movimentos sociais, que constroem uma estratégia política para defesa do território, da cultura e da identidade ligada a determinados lugares e territórios, geram uma política cultural mediada por considerações ecológicas. Consciente de que a biodiversidade é uma construção hegemônica, reconhecem, porém, que esse discurso abre um espaço para configuração de desenvolvimentos culturalmente apropriados que se podem opor às tendências mais etnocêntricas. O interesse desses movimentos é a defesa de todo um projeto de vida, e não apenas a defesa dos recursos ou da biodiversidade (ESCOBAR, 2005:348-9).

Paralela a essa “irrupção do biológico”, vem ocorrendo também uma “irrupção do étnico”, que está ligada a um processo mais amplo de “centralidade da cultura” na dinâmica do mundo contemporâneo (HALL,

170

1997). Segundo Hall (1997), vem ocorrendo um processo em que o “cultural” é cada vez mais relevante para entendemos o “econômico” e o “político”. Esse processo materializa-se em duas direções: de um lado, nessa nova fase do capitalismo, o capital avança rumo às últimas fronteiras em que a lógica da mercadoria ainda não tinha se tornado hegemônica trata-se da transformação da “cultura em recurso” e meio de acumulação (YUDICE, 2005). Numa segunda direção, percebemos as transformações nas formas de sociabilidade, visto que as mudanças de valores vêm afetando de maneira dramática a construção das subjetividades. Desse modo, as subjetividades são cada vez mais politizadas e a questão da diferença torna-se o centro de muitas das lutas do mundo atual, sendo que o direito ao reconhecimento constitui a plataforma de inúmeros movimentos sociais que lutam pelas chamadas “políticas de identidade”. No Brasil, isso expressa-se no fortalecimento das lutas feministas, étnicas e raciais que, com o processo de redemocratização do país, bem como na construção de outra constituição em 1988, conseguiram inserir essas questões na agenda política do país, a ponto de garantirem, no texto constitucional, novos direitos e novas demandas das populações indígenas e afro-descendentes, colocando a questão étnica no centro da cena política brasileira39 e da dinâmica territorial da Amazônia. Esses dois processos materializam-se na atual realidade da Amazônia, pois há uma crescente visibilidade das questões ambientais por conta do “desenvolvimento sustentável” e da biodiversidade; ao mesmo tempo, há uma crescente organização e mobilização das chamadas “comunidades tradicionais” na luta pelo reconhecimento dos seus “direitos étnicos”, como vem ocorrendo com as populações indígenas, quilombolas e as populações extrativistas como a dos seringueiros, entre outras. Isso implica uma espécie de “ambientalização” e “etnização” das lutas sociais, 39

As teorias do pluralismo jurídico, para as quais o direito produzido pelo Estado não é o único, ganharam força com a Constituição de 1988. Juntamente com elas e com as críticas ao positivismo que, historicamente, confundiu as chamadas “minorias” dentro da noção de “povo”, também foi contemplado o direito à diferença, enunciando o reconhecimento de direitos étnicos. Os preceitos evolucionistas de assimilação dos “povos indígenas e tribais” na sociedade dominante foram deslocados pelo estabelecimento de uma nova relação jurídica entre o Estado e estes povos com base no reconhecimento da diversidade cultural e étnica (ALMEIDA, 2006:3).

171

complexificando a questão agrária, foco irradiador dos principais conflitos na região. Esses dois processos trazem um conjunto de elementos importantes na construção de novas “políticas culturais”, ou seja, da politização das culturas “tradicionais” que têm influenciado na construção de novas identidades políticas na Amazônia. Assim,

podemos

verificar

que

esse

novo

paradigma

do

“desenvolvimento sustentável” traz consigo um novo conjunto de práticas materiais expressas em novas formas de produzir, uma nova forma de atuação de uma fração capital, bem como uma mudança nas formas de intervenção estatal através das políticas públicas de ordenamento territorial expresso nas ideias de preservação e conservação ambiental. Além disso, vem ocorrendo a emergência de redes internacionais e globais dos movimentos ambientais e sociais, que travam inúmeras lutas pautadas na ideia de uma “consciência ambiental global”. Mas, além disso, esse novo modelo de desenvolvimento trouxe consigo um novo imaginário e um novo regime discursivo que dá uma grande

visibilidade

ao

chamado

“desenvolvimento

sustentável”

e

à

biodiversidade. Essas ideias são a base, como vimos, dos discursos produzidos pelos mais diversos atores com diferentes interesses e projetos. Esse discurso abrange um amplo leque de atores e interesses e manifestase tanto no discurso do grande capital e dos organismos internacionais que normatizam o sistema de acumulação global – como Banco Mundial, OMC entre outras instituições –, como nos discursos do Estado, da mídia, dos cientistas

e

das

organizações

não

governamentais,

alcançando

os

movimentos sociais. Diante da amplitude e da força desse novo regime discursivo,

cria-se

um

novo

imaginário

pautado

num

conjunto

de

“representações do espaço” que apresentam uma “nova” visão da Amazônia e das chamadas “populações tradicionais”, pois, com a valorização da biodiversidade, ocorre também uma “valorização” das chamadas “culturas tradicionais”, já que o acesso aos recursos genéticos não raras vezes passa pelos saberes “tradicionais” acumulados por essas populações na longa convivência com os ecossistemas amazônicos. Desse modo, a cultura dessas populações, que sempre foi historicamente invisibilizada, negada, suprimida ou estigmatizada por um

172

conjunto

de

discursos,

representações

e

ideologias

marcadas

por

preconceitos e por uma visão racista e colonialista, experimenta, hoje, certa (re)valorização e uma (re)significação a partir de dois movimentos que, embora procedendo de interesses e projetos distintos e caminhando em direções diferentes, relacionam-se dialeticamente na construção de uma consciência sócio-espacial de pertencimento e na construção da identidade dessas populações. O primeiro movimento aponta para uma espécie de idealização romântica, que tem ganhado força nos dias atuais por via de um ecologismo romântico que fortalece a ideia de que essas populações são a redenção para

a

sociedade

urbano-industrial,

marcada

pelo

consumo

e

pela

insustentabilidade. Nessa visão, os modos de vida dessas populações apontam para formas alternativas de racionalidade econômica e ambiental sustentáveis. Essa visão, contudo, ignora a pobreza e as difíceis condições de vida que tais populações vivenciam. Tal visão é ainda reforçada pela indústria do turismo, que vive da venda do

exótico. Nesse

sentido, vem ocorrendo

uma espécie

de

mercantilização da alteridade e da diferença (HALL, 1997) com uma consequente (re)valorização das singularidades das culturas não-urbanas, ou

“culturas

tradicionais”,

criando-se,

assim,

verdadeiros

“mercados

étnicos”, a venda de “estilos de vida” e o estímulo ao “consumo de identidades”( YUDICE,2005). Dessa forma, as culturas e os modos de vida “tradicionais” são estilizados, tornando-se valiosos produtos para o mercado turístico. Num segundo movimento e em outra direção, a valorização das “culturas tradicionais” vem sendo realizada pelas próprias populações “tradicionais”

que

se

organizam,

ganhando

visibilidade

e

caráter

protagonista, constituindo-se e afirmando-se como sujeitos políticos na luta pelo exercício ou, mesmo, pela invenção de direitos a partir de suas territorialidades. Essas lutas são lutas por redistribuição e por maior igualdade de acesso aos recursos materiais, bem como pelo reconhecimento da legitimidade das diferenças e das identidades culturais expressas nos diferentes modos de produzir e nos diferentes modos de viver de tais populações.

173

Assim, nas lutas pela afirmação dos direitos à sua territorialidade e ao seu modo de vida próprio, que são negados pelo projeto de “modernização”, as “comunidades tradicionais” iniciaram um processo de questionamento dos discursos e representações hegemônicas sobre as suas identidades. Representações estas que desconsideram a cultura e o modo de vida, o “espaço vivido” dessas populações, sendo construídas e pautadas em estereótipos reducionistas de uma clara fundamentação colonialista. É nesse contexto que emergem novas identidades a partir de um processo de politização das culturas “tradicionais” na Amazônia. Essas lutas contam com fortes alianças internacionais e globais através da cooperação internacional e, em especial, pela atuação em rede de ONGs ligadas à questão ambiental que financiam e ajudam no processo de organização, mobilização e, sobretudo, no processo de divulgação e midiatização das causas e lutas dos “povos da floresta”. Esse conjunto de processos atua de maneira ativa na construção das identidades territoriais na Amazônia: o sentido de lugar, os vínculos de pertencimento, as relações afetivas construídas e arraigadas no cotidiano, nas práticas do “espaço vivido” e amalgamadas na memória e na tradição, são “suturadas” a esses novos discursos, a essas novas “representações do espaço” pautadas no “espaço concebido”, produzindo uma consciência socioespacial de pertencimento e a constituição de novas posições-desujeito, tornando mais complexa a dinâmica política da região. 3.5. R-existências, lutas sociais e a construção das identidades territoriais na Amazônia A partir do final dos anos 1970, emerge na Amazônia um conjunto de movimentos sociais canalizando e materializando as forças políticas das chamadas “populações tradicionais” que, do processo de rexistência aos processos de exploração econômica, dominação política e estigmatização cultural, começam a organizar-se e a lutar, constituindo-se, como novos protagonistas que ganham visibilidade a partir dos inúmeros antagonismos sociais e lutas por seus direitos sociais e culturais.

174

Esses novos movimentos sociais, conforme Almeida (2005), vêm se consolidando fora dos marcos tradicionais do controle clientelístico e da política que tinha sua personificação nos sindicatos de trabalhadores(as) rurais. O autor aponta o ano de 1989 como um marco, um ponto crítico e de precipitação de inúmeros “encontros” e iniciativas que deram origem a diversas formas de movimentos socais e associações que lutam por interesses das populações “tradicionais”. No momento atual, esse processo de emergência de novos sujeitos

políticos

vem

assumindo

novas

configurações

e

ganhando

densidade e conteúdo histórico pela afirmação de múltiplas formas de associação que ultrapassam “o sentido estreito de uma organização sindical, incorporando fatores étnicos e critérios ecológicos, de gênero e de autodefinição coletiva” (ALMEIDA, 2005:163). Esses novos-velhos sujeitos protagonistas apontam para uma existência coletiva objetivada numa diversidade de movimentos organizados com suas respectivas redes sociais, redesenhando a sociedade civil da Amazônia e impondo seu reconhecimento aos centros de poder. Prosseguindo suas considerações, o referido autor destaca como materialização desse processo as associações voluntárias e entidades da sociedade civil que estão se tornando força social, tais como: União das Nações Indígenas – UNI; Coordenação Indígena da Amazônia Brasileira – Coiab e toda a rede de entidades indígenas vinculadas, que alcança cerca de 60; o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco-Babaçu – MIQCB; o Conselho Nacional dos Seringueiros; o Movimento Nacional dos Pescadores – Monape; o Movimento dos Atingidos de Barragens – MAB; a Associação Nacional das Comunidades Remanescentes de Quilombo e a rede de entidades a ela vinculada no Maranhão – a Associação das Comunidades Negras Quilombolas do Maranhão – Aconeruq e no Pará – a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná – ARQMO; a Associação dos Ribeirinhos da Amazônia, entre outras. Essas novas formas de organização política implicam novas táticas e estratégias levando a uma ampliação das pautas reivindicatórias na luta por direitos que vão dos direitos socais básicos, como saúde,

175

educação, terra, crédito, bem como pelo reconhecimento de direitos culturais, como o direito às formas diferenciais de apropriação e uso da terra e dos recursos naturais, formas diferentes de cultos e valorização e reconhecimento dos conhecimentos acumulados por tais populações etc. Segundo Almeida (2004), a ampliação das pautas de demandas tem sido acompanhada

da

multiplicação

de

instâncias

de

interlocução

dos

movimentos sociais com os aparatos político-administrativos, sobretudo com os responsáveis pelas políticas agrárias e ambientais. Esse conjunto de movimentos sociais articula-se, coletivamente, naquilo que Almeida (1994) denominou de “unidades de mobilização”, um conjunto de movimentos diferentes e locais que, estrategicamente, reúnemse para pressionar o Estado na busca de soluções para suas demandas. Além disso, essas “unidades de mobilizações”, as quais se articulam em redes em várias escalas transcendendo a escala local e até a nacional, logram generalizar o localismo das suas reivindicações através de parcerias e alianças a nível internacional, criando novas formas de mediação e interlocução e, com essas práticas, alteram padrões tradicionais de relação política com os centros de poder e com as instâncias de legitimação, inaugurando novas formas de lutas políticas e resistência. Essa nova estratégia discursiva e identitária dos movimentos sociais na Amazônia, ao designar os sujeitos da ação, não aparece atrelada à conotação política que, conforme Almeida (2005), em décadas passadas, estava associada principalmente ao termo camponês. No momento histórico atual,

esses

atores

políticos

apresentam-se

através

de

múltiplas

denominações e apontam para a construção de novas e múltiplas identidades. Essa multiplicidade de identidades cinde, portanto, com o monopólio político do significado das expressões camponês e trabalhador rural, que, até então, eram usadas com prevalência por partidos políticos, pelo movimento sindical centralizado na Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Agricultura) e pelas entidades confessionais (CPT, CIMI, ACR) (Almeida, 2005). Para Gonçalves (2001), esse novo contexto aponta para a construção de “novas” identidades coletivas surgidas de velhas condições sociais e étnicas, como é o caso das populações indígenas e negras, ou

176

remetendo-se a uma determinada relação com a natureza (seringueiro, castanheiro, pescador, mulher quebradeira de coco) ou, ainda, expressando condição derivada da própria ação dos chamados “grande projetos” implantados na região, como estradas, hidrelétricas, projetos de mineração, entre outros. (“atingidos”, ”assentado”, “deslocado”). Trata-se de um processo de re-significação política e cultural que esses grupos sociais vêm fazendo da sua experiência cultural e da sua forma de organização política. Dentro dessas novas estratégias discursivas e das novas táticas de práticas políticas, os “velhos” agentes vêm se constituindo em “novos” sujeitos políticos ou novas posições-de-sujeito (HALL, 2004). Esse processo dá-se pela politização daqueles termos e denominações de uso local. Tratase da ”politização das realidades localizadas, isto é, os agentes sociais se erigem em sujeitos da ação ao adotar como designação coletiva as denominações pelas quais se autodefinem e são representados na vida cotidiana” (ALMEIDA, 2004a:166). Essas

novas

afirmações

identitárias

não

significam

uma

destituição do atributo político das categorias de mobilização como camponês e trabalhador rural. Contudo, para Alfredo Wagner Almeida, é a emergência das “novas” denominações que designa os movimentos e que espelha

um

conjunto

de

práticas

organizativas

que

traduzem

transformações políticas mais profundas na capacidade de mobilização desses grupos, em face do poder do Estado e em defesa de seus territórios. Em virtude disso, pode-se dizer que, mais do que estratégia de discurso, ocorre o advento de categorias que se afirmam por meio da existência coletiva, politizando não apenas as nomeações da vida cotidiana, mas também as práticas rotineiras de uso da terra. A complexidade de elementos identitários, próprios de autodeterminação afirmativas de culturas e símbolos, que fazem da etnia um tipo organizacional, ou traduzida para o campo das relações políticas, verificando-se uma ruptura profunda com a atitude colonialista e homogeneizante, que historicamente apagou diferenças étnicas e a diversidade cultural, diluindo-as em classificações que enfatizavam a subordinação dos “nativos”, ”selvagens” e ágrafos ao conhecimento erudito do colonizador (ALMEIDA, 2004:167).

177

Assim, na busca pela afirmação dos direitos à sua territorialidade, com seu modo de vida próprio negado pela “modernização”, essas populações iniciaram um processo de questionamento dos discursos e representações hegemônicas sobre as suas identidades (representações pautadas no espaço concebido que é um misto de conhecimento e ideologias), representações homogêneas e abstratas materializadas no conjunto de planos, projetos, estatísticas e teorias usadas pelo Estado e pelo grande capital que ignoram o “espaço vivido” e a dimensão cotidiana do modo de vida de tais populações com seus múltiplos ritmos, diferentes formas de sociabilidade, saberes e fazeres. O questionamento das práticas discursivas e representações do espaço “espaço concebido” é feito pela politização do “espaço vivido” da dimensão cotidiana dos diferentes modos de vida e territorialidades. Desse modo, esses movimentos sociais buscam redefinir e re-significar suas identidades, buscando construir um novo “magna de significações” que valorizem a própria experiência cultural dessas populações, apontando para uma nova “política cultural” aqui entendida: [...] como processo posto em ação quando conjuntos de atores sociais moldados por e encarnando diferentes significados e práticas culturais entram em conflitos uns com outros. Essa definição supõe que significados e práticas - em particular aqueles teorizados como marginais, oposicionais, minoritários, residuais e emergentes, alternativos, dissidentes e assim por diante, todos concebidos em relação a uma determinada ordem cultural dominante - podem ser fonte de processos que devem ser aceitos como políticos (ÁLVARES, DAGNINO e ESCOBAR, 2000:24-5). Trata-se de um processo em que há um entrelaçamento entre a cultura e a política de maneira co-constitutiva na construção identitária. A cultura é política, porque os significados são constituídos dos processos que, implícita ou explicitamente, buscam redefinir o poder social. “Isto é, quando apresentam concepções alternativas de mulher, natureza, raça economia, democracia ou cidadania, que desestabilizam os significados culturais dominantes,

os

movimentos

põem

em

ação

uma

política

cultural”

(ÁLVARES; DAGNINO E ESCOBAR, 2000:25).

178

Falamos de formações de política cultural nesse sentido: elas são resultadas de articulações discursivas que se originam em práticas culturais existentes - nunca puras, sempre híbridas, mas apesar disso, mostrando contrastes significativos em relação às culturas dominantes - e no contexto de determinadas condições históricas (ÁLVARES; DAGNINO e ESCOBAR, 2000:25). Essas novas “políticas culturais“ ou a politização da cultura pelos movimentos sociais ligados às populações ”tradicionais” apontam, conforme Almeida (2004), para o advento, nesta última década e meia, de categorias que se afirmam por meio de uma existência coletiva, politizando nomeações da vida cotidiana, tais como seringueiros, quebradeiras de coco-babaçu, ribeirinhos, castanheiros, pescadores, extratores de arumã e quilombolas, entre outros, trouxe a complexidade de elementos identitários para a realidade da Amazônia. As políticas culturais dos movimentos tentam amiúde desafiar ou desestabilizar as culturas políticas dominantes. Na medida em que os objetivos dos movimentos sociais contemporâneos às vezes vão para além de ganhos materiais e institucionais percebidos; na medida em que esses movimentos sociais afetam as fronteiras da representação política e cultural, bem como a prática social, pondo em questão até o que pode ou não pode ser considerado político; finalmente, na medida em que as políticas dos movimentos sociais realizam contestações culturais ou pressupõe diferenças culturais - então devemos aceitar que o que está em questão para os movimentos sociais, de um modo profundo, é uma transformação da cultura política dominante na qual se move e se constitui como atores sociais com pretensões políticas (ÁLVARES; DAGNINO E ESCOBAR, 2000:170). Esses movimentos sociais tendem a questionar as identidades legitimadoras (CASTELLS, 1999), deslocando e fraturando os discursos identitários que historicamente produziram a invisibilidade, a romantização e a estigmatização dessas populações, reorientando as práticas políticas e discursivas a partir de identidades de resistência que, em muitos casos, como dos seringueiros, das mulheres quebradeira de coco de babaçu, esboçam-se como identidades de projeto, pois apontam para um conjunto de práticas e valores que reforçam e inauguram modos alternativos de produzir, de relacionar-se com a natureza, enfim, diferentes modos de existir.

179

Trata-se da constituição de novos atores no espaço público e na política, atores protagonistas afirmando suas identidades, pois, como nos fala Touraine (1994: 220-1), o “ator não é aquele que age em conformidade com o lugar que ocupa na organização social, mas aquele que modifica o meio ambiente material e, sobretudo social no qual está colocado, modificando a divisão do trabalho, as formas de decisão, as relações de dominação ou as orientações culturais”. Nesse mesmo sentido, Gonçalves (2004) destaca que o movimento (social) é, rigorosamente, mudança de lugar (social), sempre indicando que aqueles que se movimentam estão recusando o lugar que lhes estava reservado numa determinada ordem de significações. Nessa perspectiva, um movimento social é: Um esforço de um ator coletivo para se apossar dos valores, das orientações culturais de uma sociedade, opondo-se à ação de um adversário ao qual está ligado por relações de poder. (...) Um movimento social é ao mesmo tempo um conflito social e um projeto cultural (...) ele visa sempre a realização de valores culturais, ao mesmo tempo que a vitória sobre um adversário social (TOURAINE, 1994: 253). O movimento social como “projeto cultural” é portador de uma nova ordem em potencial, não sendo destituído de sentido, busca novos valores,

novos

“magmas

de

significação”

(GONÇALVES,

2004).

Os

movimentos sociais na Amazônia parecem apontar para direção de outros movimentos sociais que, hoje, nas suas lutas, apontam para a construção de “políticas culturais”. Esses movimentos sociais, emergentes, hoje, na Amazônia, forjados pelos mais diversos antagonismos, têm como referencial e diferencial o fato de serem movimentos pautados em lutas não só contra a desigualdade, pela redistribuição de recursos materiais como, por exemplo, a terra, crédito, estradas etc., mas também são lutas simbólicas por “novos magmas de significação” que permitam o reconhecimento das diferenças culturais, dos diferentes modos de vidas que expressam em suas diferentes territorialidades. Desse modo, a constituição desses novos sujeitos dá-se nas e pelas lutas de afirmação de suas identidades culturais e políticas pautadas na territorialidade; logo, são lutas pela afirmação de suas identidades territoriais. Almeida (2004) afirma que o sentido coletivo das

180

autodefinições emergentes na Amazônia impôs uma noção de identidade à qual correspondem territorialidades específicas. São os seringueiros que estão construindo o território em que a ação em defesa dos seringais se realiza. São os atingidos por barragens e os ribeirinhos que estão defendendo a preservação dos rios, igarapés e lagos. E assim sucessivamente: os castanheiros defendendo os castanhais, as quebradeiras, os babaçuais, os pescadores, os mananciais e os cursos d‟água piscosos, as cooperativas, seus métodos de processamento da matéria-prima coletada. De igual modo, os pajés, curandeiros e benzedores acham-se mobilizados na defesa das ervas medicinais e dos saberes que as transformam (ALMEIDA, 2004a: 48-9).

Assim, podemos verificar que, na luta contra os processos de modernização e expansão da fronteira econômica e das frentes de expansão demográfica sobre os territórios tradicionalmente ocupados pelos povos “tradicionais”, os movimentos sociais afirmam a identidade e territorialidade dessas populações. Ou seja, as novas reivindicações territoriais dos povos indígenas, dos quilombolas e outras comunidades negras rurais, e das diversas populações extrativistas, representam uma resposta às novas fronteiras em expansão, respostas que vão muito além de uma mera reação mecânica para incluir um conjunto de fatores próprios da nossa época (LITLLE, 2002). Diante da pressão dos violentos processos desterritorializadores, frutos do avanço das Frentes de expansão na Amazônia, os povos tradicionais sentiram-se obrigados a elaborar novas estratégias territoriais para defender suas áreas. Isso, por sua vez, deu lugar à atual onda de (re)territorializações (LITTLE, 2002; ALMEIDA, 2005). O alvo central dessa onda consiste em forçar o Estado brasileiro a admitir a existência de distintas formas de expressão territorial – incluindo distintos regimes de propriedade – dentro do marco legal único do Estado, atendendo às necessidades desses grupos. As novas condutas territoriais por parte dos povos tradicionais criaram um espaço político próprio, na qual a luta por novas categorias territoriais virou um dos campos privilegiados de disputa (LITTLE 2002:13).

181

Assim, trata-se de lutas pelo direito à territorialidade que é fundamental na reprodução dos modos de vida tradicionais, pois o território é, para essas populações, ao mesmo tempo: a) os meios de subsistência; b) os meios de trabalho e produção; c) os meios de produzir os aspectos materiais das relações sociais, aquelas que compõem a estrutura social40. Assim, o território constitui-se como “abrigo” e como “recurso” abrigo físico, fonte de recursos materiais ou meio de produção e, ao mesmo tempo, elemento fundamental de identificação ou simbolização de grupos através de referentes espaciais41. Little

(2002)

afirma

que

territórios

dos

povos

tradicionais

fundamentam-se em décadas, em alguns casos, séculos de ocupação efetiva. A longa duração dessas ocupações (domínio estratégico-funcional e apropriação simbólico-expressiva) fornece um peso histórico às suas reivindicações territoriais e afirmações identitárias. A expressão dessas territorialidades, então, não reside na figura de leis ou títulos, mas se mantém viva nos bastidores da memória coletiva que incorpora dimensões simbólicas e identitárias na relação do grupo com sua área, o que dá profundidade e consistência temporal ao território (LITTLE, 2002:14). O referido autor destaca três elementos que marcam a razão histórica e que substancializa a territorialidade das populações tradicionais: a) regime de propriedade comum, b) sentido de pertencimento a um lugar específico e c) profundidade histórica da ocupação guardada na memória coletiva. É por essa importância que a territorialidade é uma dimensão fundamental

da

afirmação

dos

tradicionais”

na

Amazônia,

pois

direitos é

nela

coletivos que

reside

das a

“populações garantia

do

reconhecimento de uma identidade coletiva e a defesa da integridade dos diferentes modos de vida, modos de vida associados a matrizes de

40

Ver Diegues (1996): o papel do território na construção dos modos de vida “tradicionais”. 41 Ver uma proposta de sistematização feita por Haesbaert (2005) sobre “fins” ou objetivos do processo de territorialização.

182

racionalidades pautas nas diferentes formas uso-significado do espaço e da natureza. É na luta pelo reconhecimento da territorialidade das populações “tradicionais” que vem se (con)formando as identidades coletivas na Amazônia, identidades estas associadas a essas diferentes formas de luta, que são o resultado emergente das próprias lutas, mesmo quando assentam em condições ou em coletivos que pré-existem a elas. Elas podem assentar, seja em comunidades locais, baseadas em relações face a face, seja em comunidades imaginadas (SOUSA SANTOS, 2003b). Dessa forma, o conflito constitui-se como um momento privilegiado dessa conformação de identidades, de configuração de “comunidades de destino” (GONÇALVES, 2004). É quando cada um começa a perceber que o seu destino individual está num outro com/contra o qual tem que se ligar/se contrapor. (...) Podemos, pois, afirmar que são nas circunstâncias dos encontros/das relações/das lutas que se desenham concretamente essas diferenças e que toda classe se constitui, se classifica, se diferencia, constrói um Nós em relação a um Eles (GONÇALVES, 2004). Assim, a identidade dos movimentos sociais na Amazônia vem se constituindo a partir da construção de uma consciência socioespacial de pertencimento pautada em uma politização da territorialidade e do “espaço vivido”, do modo de vida cotidiana e na luta contra o projeto de “modernização autoritária“. Trata-se de transformar “comunidades de vida” em “comunidades de destino” para usar a expressão de Bauman (2005). Esse processo é explicitado por Martin quando afirma que: A função do discurso identitário é de orientar estas escolhas, de tornar normal, lógico, necessário, inevitável, o sentimento de pertencer, com uma forte intensidade, a um grupo. Ele se dirige à emotividade, se esforça por impressionar, por emocionar, a fim de que este sentimento de pertencimento impulsione, caso a situação o exija, a agir: impelido pelo sentimento de pertencimento, torna insuportável a recusa de defesa. A fim de criar as condições desta adesão, o discurso identitário tem por tarefa definir o grupo, fazer passar do estado latente àquele de ‟comunidade‟ em que os membros são persuadidos a ter

183

interesses comuns, a ter alguma coisa a defender juntos (MARTIN, APUD CLAVAL, 1999 :23). Essa politização do “concebido”

e

do

“vivido” é

“representado”

colocada para o

ocorrendo

uma

plano

passagem

do de

“comunidades de vida” para “comunidades de destino”, uma metamorfose da identidade que deixa de ser vivida como “necessidade” de forma latente para ser vivida e representada de forma manifesta e performática como “projeto”. Isso é muito bem demonstrado por Gonçalves (1999:70) no que se refere à constituição da identidade dos movimentos dos seringueiros. Claro que os seringueiros existiam naquele lugar/naquele momento, tanto no sentido geográfico como social. No entanto, sabemos, a existência de uma determinada condição sociogeográfica seringueira, ou outra qualquer, não implica necessariamente que venha a se constituir numa identidade político-cultural assumida pelos próprios protagonistas como tal (....) Deste modo, emerge um movimento dos seringueiros que emana da compreensão interessada do que é comum, o que implica uma comunidade territorial que vá além do espaço vivido, pressupondo-o; que vá além do lugar/dos lugares, contendo-os. É isso que diz a expressão união, tão invocada na conformação de identidades coletivas: o que se une é o igual e esse igual se constitui na percepção interessada do que é igual e do que é diferente.

Assim, podemos verificar que construção de uma identidade coletiva é possível não só devido às condições sociais de vida semelhantes, mas também por serem percebidas como interessantes e, por isso, é uma construção e não uma inevitabilidade histórica ou natural. Como a identidade é estratégica e posicional na afirmação de identidades coletivas, “há uma luta intensa por afirmar os “modos de percepção legítima” (BOURDIEU, ???), da (di)visão social, da (di)visão do espaço, da (di)visão do tempo, da (di)visão da natureza” (GONÇALVES 1999:70). Portanto, longe de uma perspectiva essencialista e substancialista que concebe a identidade como uma “coisa” natural, podemos verificar que se trata de uma construção exposta ao movimento da história e ao jogo de relações de poder em que política e subjetividade estão imbricadas. Bem como as práticas materiais e representações discursivas entrelaçam-se na

184

afirmação das novas posições-de-sujeito, que implicam na construção de identidades

alternativas,

que

deslocam

e

fraturam

as

identidades

hegemônicas. As identidades construídas pelos movimentos sociais são forjadas na e pela luta para a afirmação da diferença subalternizada e como r-existência a formas dominantes de poder econômico, político e cultural instaladas historicamente na Amazônia. Mas sabemos que o processo de construção das identidades é marcado

por

ambivalências

apresentam-se

de

maneira

e

ambiguidades

contraditória

e

tendo,

que, ao

muitas mesmo

vezes, tempo,

perspectivas progressistas e conservadoras. Além disso, não há dicotomias e dualismos radicais entre os discursos dos dominantes e dos dominados, porém diálogos, tensões, conflitos e retroalimentações. Ainda assim, é inegável que esses novos movimentos sociais, hoje, na Amazônia, sinalizam importantes

horizontes

de

emancipação

social

para

as

populações

“tradicionais”. 3.6. Pressupostos gerais para pensar as identidades territoriais na Amazônia Para concluirmos nossas reflexões, queremos retomar alguns elementos que entendemos serem imprescindíveis para a compreensão da emergência das identidades territoriais das populações “tradicionais”, hoje, na Amazônia: a) A identidade não é uma essência, nem é naturalmente construída, ela é, sim, uma construção histórica e social. A identidade é relacional e contrastiva e seu significado social e cultural é determinado na e pela diferença. As identidades são construídas tanto pelas diferenças culturais e por sistemas simbólicos de classificação (diferença de natureza) quanto pela desigualdade e exclusão social (diferenças de grau), ou melhor, pelos dois processos concomitantemente. Nesse sentido, as identidades territoriais das populações “tradicionais” na Amazônia são historicamente construídas a partir da imbricação dos processos de produção das desigualdades sociais e exclusão social, bem como da marcação das diferenças culturais, sendo que o significado de cada identidade só pode ser compreendido num contexto relacional específico.

185

b) As construções das identidades são estratégicas e posicionais, pois estão estreitamente ligadas às relações de poder. O jogo de poder para a definição de uma determinada identidade está em conexão com as modalidades mais amplas do exercício do poder na sociedade. Isso implica compreender as identidades como produtos e produtoras das lutas e conflitos sociais, políticos e culturais. Desse modo, as identidades territoriais das populações “tradicionais” na Amazônia são produtos e produtoras das relações de poder e são construídas e instituídas na e pelas lutas e conflitos dos diferentes sujeitos pela sua afirmação material (luta por distribuição de bens materiais) e simbólica (luta por reconhecimento das diferenças culturais). c) A construção das identidades, seu poder de eficácia e performance vão depender da posição de cada sujeito na estrutura assimétrica de poder da sociedade (econômico, político e simbólico). As identidades podem tanto legitimar e reproduzir as relações de poder e as instituições hegemônicas da sociedade quanto podem contestá-las e propor novos projetos alternativos. Assim, determinadas identidades territoriais na Amazônia

reproduzem

e

legitimam

a

ordem

hegemônica

do

poder

econômico, político e simbólico estabelecido. Outras, como as identidades das populações “tradicionais”, r-existem a tal hegemonia, afirmando a diferença subalternizada e apresentando-se como “identidade de projeto”, apontando para alternativas de sociedade a partir de diferentes modos de produzir e de modos de vida, como é o caso dos movimentos dos seringueiros e das mulheres quebradeiras de coco de babaçu. d) Todo processo de territorialização funciona como sistema de classificação funcional e simbólico, o que implica a definição de fronteiras e na

construção

de

identidades.

Contudo,

se

em

todo

processo

de

territorialização produzem-se identidades, nem toda identidade é uma identidade

territorial.

Isso

significa

que

nem

todas

as

identidades

construídas na Amazônia são territoriais, mas que, na construção das diversas

territorialidades

das

populações

“tradicionais”,

produzem-se

identidades territoriais. e) As identidades territoriais são construídas a partir do jogo das múltiplas

escalas

de

pertencimento.

A

consciência

socioespacial

de

186

pertencimento

depende

da

experiência

espaço-temporal

(espaço

de

referência identitária) e do contexto específico nos quais as identidades são construídas. Na Amazônia, as identidades são construídas a partir da multiplicidade de temporalidades históricas desiguais e diferentes que se (des)encontram na contemporaneidade. Portanto, as identidades são resultantes do conflito entre as diferenças do significado social e cultural da experiência espaço-temporal expressa nos diferentes “modos de viver” dos diferentes sujeitos sociais. f) As identidades territoriais mobilizadas pelos movimentos sociais das

chamadas

Amazônia,

populações

são

construídas

“tradicionais”, a

partir

nas de

suas um

lutas

duplo

sociais

na

movimento:

primeiramente, estão pautadas numa politização da cultura ou de “política cultural”, dando visibilidade e significância às territorialidades e aos modos de vida “tradicionais” com suas histórias, memórias e saberes de longa duração

(raízes),

sedimentados

num

conjunto

de

práticas

e

de

representações que têm densidade e espessura no cotidiano de um espaço vivido. Em um segundo e simultâneo movimento, tais identidades voltam-se não para o passado (tradição), mas para o futuro, para rotas, rumos e projetos pautados em estratégias políticas e organizacionais articulados em escalas mais amplas e ligados a outras formas de saber (saber científico) e ao conjunto de discursos, ideologias e representações pautadas num espaço concebido.

187

TERCEIRO INTERMEZZO: COMUNIDADES TRADICIONAIS /POVOS TRADICIONAIS COMO CATEGORIA DE ANÁLISE E COMO CATEGORIA DA PRÁTICA POLÍTICA . A partir do final da década de 1980 são identificadas sensíveis mudanças na dinâmica política dos conflitos sociais do mundo rural na América Latina e no Brasil, sobretudo, através da emergência de uma espécie de “polifonia política”, pois, percebe-se o surgimento de uma diversidade de novas vozes, de “novos” sujeitos políticos protagonistas que emergem na cena pública e nas arenas políticas. Nesse período começam a ganhar força e objetivação, em forma de movimentos sociais, as reivindicações de uma diversidade de grupos sociais denominados ou autodenominados “populações tradicionais” ou, mais recentemente, “povos e comunidades tradicionais”. Com a emergência desses novos protogonistas popularizou-se nas ultimas duas décadas no léxico político e acadêmico os termos “populações tradicionais”, “povos tradicionais” e “comunidades tradicionais”. Nesse novo cenário esses termos têm assumido uma dupla centralidade/visibilidade: uma centralidade analítica (teórica) e uma centralidade empírica (histórica e política). Mas, apesar dessas expressões serem amplamente utilizadas em diversos contextos não há um significado único e preciso, pois tais expressões carregam uma grande polissemia e ambigüidade tanto como “categoria de análise” como “categoria da ação política”. Desse modo, entender o significado desses termos implica em discutirmos suas origens, sua historicidade e suas diversas formas de apropriações tanto como uma “categoria de análise”, ou seja, como um conceito sócio-antropológico que busca nomear, caracterizar e classificar certas comunidades rurais, mas também como “categoria da ação”, ou seja, uma identidade sócio-política mobilizadora das lutas por direitos. Essas duas dimensões embora apresentem especificidades se entrecruzam nas lutas e disputas em torno dessas categorias, que são ao mesmo tempo epistêmicas e políticas. 188

Se buscarmos a genealogia da emergência dos termos “povos e comunidades tradicionais” no vocabulário político e teórico brasileiro podemos localizar como momento decisivo o final da década de 1970 e início da década de 1980, mas é, sobretudo no início dos anos 1990 com a consolidação da questão ambiental, que o termo se populariza e aos poucos essas expressões foram sendo apropriados por um conjunto mais amplo de grupos sociais, movimentos sociais, organizações nãogovernamentais, pela mídia, pela academia e pelo próprio Estado que institucionalizou na forma de legislação, direitos e políticas públicas. Esses termos surgem segundo Paul Litlle (2006) em dois campos distintos, embora possuam entrelaçamentos: o campo ambiental e o campo de lutas por direitos culturais e territoriais de grupos étnicos. No campo ambiental essas expressões surgem no debate internacional sobre as políticas de preservação e conservação ambiental, onde temas como biodiversidade, desenvolvimento sustentável ganharam força. É nesse contexto que vai emergir o uso dos termos “povos e comunidades tradicionais” para nomear identificar e classificar uma diversidade de culturas de modos de vida de um conjunto de grupos sociais que historicamente ocuparam áreas que agora eram destinadas à preservação e conservação ambiental. O segundo campo no qual esses termos ganham visibilidade é o das lutas pelo reconhecimento dos direitos culturais e territoriais dos múltiplos grupos indígenas ou autóctones. No mesmo período em que o movimento ambientalista se consolidou, paralelamente, se fortaleceu também o campo de lutas pelos direitos dos povos indígenas no plano internacional. Um marco fundamental desse processo foi aprovação em 1989 da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho na qual se que definiu um conjunto de direitos e garantias dos “Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes”. Essa declaração tornou-se um mecanismo chave nas lutas pelo o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas. No Brasil com o processo de redemocratização e a ampliação do espaço político da sociedade civil na década de 1980 ganhou força a mobilização dos 189

povos indígenas e dos quilombolas em torno de reivindicações étnicas frente ao Estado. Como resultado dessas lutas importantes reivindicações territoriais e culturais desses grupos foram incorporadas na Constituição Federal de 1988, fortalecendo juridicamente sua situação fundiária de grupos. Esses termos que surgem no campo discursivo das lutas e das políticas ambientais e das lutas por direitos étnicos, aos poucos se disseminam e enraízam-se nos mais diversos domínios discursivos. No campo acadêmico esses termos são trabalhados como uma “categoria de análise”, nessa dimensão mais teórico-conceitual, os termos “povos e comunidades tradicionais” buscam uma caracterização sócioantropológica de diversos grupos. Estão incluídos nessa categoria os Povos

Indígenas; Quilombolas; Populações agroextrativistas (Seringueiros, Castanheiros, Quebradeiras de Côco de Babaçu); Grupos vinculados aos rios ou ao mar (Ribeirinhos;

Pescadores

artesanais;

Caiçaras;

Varjeiros;

Jangadeiros;

Marisqueiros); Grupos associados a ecossistemas específicos (Pantaneiros; Caatingueiro; Vazanteiros; Geraizeiros; Chapadeiros) Grupos associados à

agricultura ou à pecuária (Faxinais; Sertanejos; Caipiras; Sitiantes- Campeiros; Fundo de Pasto; Vaqueiros.) Apesar da enorme diversidade desses grupos alguns pesquisadores buscaram identificar traços e características em comuns entre eles. Neste sentido, pesquisadores como DIEGUES (2000); LITTLE (2006); BARRETO FILHO (2006) mesmo reconhecendo a imprecisão e a dificuldade de uma definição mais rigorosa eles elencam um conjunto de características que seriam atributos desses grupos denominados de “povos e comunidades tradicionais”. Dentre essas varias características podemos destacar:

A relação com a natureza (A racionalidade ambiental) – Essas comunidades têm uma relação profunda com a natureza, os seus modos de vida estão diretamente ligados a dinâmica dos ciclos naturais, suas práticas produtivas e o uso dos recursos naturais são de base familiar, comunitária ou coletiva. Esses grupos possuem uma extraordinária gama de saberes e conhecimentos sobre os ecossistemas, a 190

biodiversidade e os recursos naturais como um todo, esse acervo de conhecimento está materializado no conjunto de saberes, técnicas, sistemas de uso e manejo dos recursos naturais adaptados às condições do ambiente em que vivem.

A relação com território e a territorialidade - Outra característica marcante desses grupos é uma forte relação com o território e com o sentido de territorialidade; essas comunidades normalmente têm uma longa história de ocupação territorial sobre os espaços em que vivem, sendo comum varias gerações ocuparem a mesma área.

Essa história expressa-se numa relação de

ancestralidade, memória e sentido de pertencimento em relação a certas áreas e lugares específicos. O território tem para esses grupos uma importância material (base de reprodução e fonte de recursos) e um forte valor simbólico e afetivo (referência para construção dos modos de vida e das identidades dessas comunidades). A constituição dos territórios dessas comunidades é caracterizada por uma grande diversidade de modalidades de apropriação da terra e dos recursos naturais (apropriações familiares, comunitárias, coletivas). Essas “terras tradicionalmente ocupadas” vão para além do modelo da propriedade individual como, por exemplo: “terras de preto”, “terras de santo”, “terras de índio”, “faxinais”, “fundos de pasto”, etc.

A racionalidade econômica-produtiva - A produção econômica dessas comunidades está assentada na unidade familiar, doméstica ou comunal, as relações de parentesco ou compadrio também têm uma grande importância para o exercício das atividades econômicas, sociais e culturais. As principais atividades econômicas desses grupos são caça, pesca, extrativismo, a pequena agricultura e, em alguns casos, as práticas de artesanatos e artes. A tecnologia utilizada por essas comunidades na intervenção no meio ambiente é relativamente simples, de baixo impacto sobre os ecossistemas. Há uma reduzida divisão técnica e social do trabalho, sobressaindo o modelo artesanal de produção no qual o produtor e sua família dominam todo o processo até o produto final; O destino da produção dessas comunidades tem como prioridade o consumo próprio (subsistência) além de 191

destinarem uma parte da produção às práticas sociais como festas, ritos, procissões, folias de reis, etc. A relação com mercado capitalista é parcial, esses grupos vendem o excedente da produção e compram produtos que manufaturados e industrializados.

Inter-relações com os outros grupos da região e a Auto-identificação- Essas comunidades mantêm inter-relações com outros grupos similares na região onde vivem. Tais relações podem ser de natureza cooperativa ou conflitiva, sendo através dessas formas de interações que essas comunidades constroem de maneira relacional e contrastiva sua própria identidade. Nesse processo de construção do sentido de pertencimento, tais grupos são considerados como diferentes da maioria da população da região onde vivem; isso se expressa no uso de categorias classificatórias e identitárias utilizadas pelos outros grupos para nomear e classificar essas comunidades, bem como, pela própria comunidade para se autoidentificar e se diferenciar dos demais. Apesar da tentativa de uma definição de caráter mais técnico ou teóricoconceitual por parte da antropologia e da sociologia, como acima mencionados, o uso dos termos “ povos e comunidades tradicionais” não se resume a uma “categoria de análise”, pois trata-se de um termo com fortes conotações políticas, tornando-se uma categoria da prática política, incorporada como uma espécie de identidade sócio-política mobilizada por esses diversos grupos na luta por direitos. Progressivamente, esses termos vêm sendo incorporado pelo próprio Estado brasileiro, que através de um decreto de 27 de dezembro de 2004, criou a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais; através desse decreto os termos “povos e comunidades tradicionais” é institucionalizado, suturando um certo sentido jurídico e político ligado à construção de políticas públicas. O uso dessa identidade sócio-política faz parte de um conjunto mais amplo de reconfigurações identitárias realizadas por parte das comunidades rurais brasileiras, que na luta pela afirmação de seus direitos vêm resignificando e até 192

rasurando as categorias classificatórias que tradicionalmente utilizadas para definir esses grupos. Essas comunidades objetivadas em forma de movimentos sociais adotaram como estratégias discursivas e políticas um certo distanciamento das clássicas identidades de trabalhador rural, camponês, lavrador ou ainda aquelas que recentemente ganharam força, como é o caso de agricultor familiar. Esses novos protagonistas apresentam-se através de múltiplas denominações e apontam para a construção de novas e múltiplas identidades e diferentes formas de associação que ultrapassam o sentido estreito das organizações camponesas clássicas. Isso não significa uma destituição do atributo político da categoria de mobilização camponês (a evidência mais incontestável disso é a vitalidade do MST e da Via Campesina!), contudo, é inegável que a emergência das “novas” denominações/ identidades dos movimentos sociais espelham um conjunto de novas práticas organizativas que traduzem transformações políticas mais profundas na capacidade de organização/mobilização desses grupos em face do poder do capital e do poder do Estado e em defesa de seus territórios (ALMEIDA, 2004). Nesse processo, é importante destacar uma espécie de ressemantização da ideia de tradição e de tradicional, normalmente essas palavras carregam uma forte conotação negativa, pois são sempre definidas e significadas numa relação de contraste com a ideia de modernidade ou modernização, que traz em si uma positividade expressa na ideia do novo. Nessa leitura, a ideia de povos tradicionais, comunidades tradicionais trazem consigo um sentido pejorativo, pois o tradicional significa atraso, ignorância, improdutividade em contraponto a ideia de um modo de vida e de um modo de produção moderno marcado pela urbanização, industrialização, pela produtividade, pela velocidade características típicas do modo de produção e do modo de vida capitalista. Mas, a forma como os movimentos sociais e as comunidades rurais vem mobilizando esse termo, busca ressignificar essa carga pejorativa e estereotipada acrescentando uma certa positividade a ideia de tradicional, em muitos sentidos, até idealizada, nessa 193

perspectiva o tradicional não significa o atraso, não restringe a ideia de tradição e ao passado mas tem um sentido político-organizativo e se apresenta como alternativa ao modo de produção e ao modo de vida capitalista Mas essas (re)configurações identitárias não são gratuitas, são novas estratégias na luta por direitos, formas de garantias de direitos sociais e culturais, notadamente, o chamado “direito étnico à terra”, e o chamado direito a “posse agro-ecológica da terra”, assegurando, desse modo, a posse coletiva ou familiar das terras e dos recursos naturais. A constituição desses novos sujeitos políticos, novos sujeitos de direito vêm redefinindo as táticas e estratégias de luta pela terra no Brasil, sobretudo, pelo impacto da emergência da questão ambiental e da questão étnica que vem redefinindo o padrão de conflitividade e o campo relacional dos antagonismos, implicando numa espécie de “ambientalização” e “etnização” das lutas sociais, complexificando a questão fundiária e agrária, foco irradiador dos principais conflitos no campo brasileiro. Essas novas formas de agenciamentos políticos implicam em uma ampliação das pautas de reivindicações e na criação de novas agendas políticas. Esses novos movimentos lutam não só contra a desigualdade - pela redistribuição de recursos materiais - a terra - mas também lutam pelo reconhecimento das diferenças culturais, dos diferentes modos de vidas que se expressam em suas diferentes territorialidades. Não se trata simplesmente de lutas fundiárias por redistribuição de terra, envolvem também o reconhecimento de elementos étnicos, culturais e de afirmação identitária das comunidades tradicionais, apontando para a necessidade do reconhecimento jurídico e de seus territórios e territorialidades. É nesse processo que ocorre um deslocamento semântico, político e jurídico da luta pela terra à luta pelo território. Nesse processo de afirmação de novas identidades políticas e da construção de novas agendas nas lutas dos povos e comunidades tradicionais há um deslocamento do eixo das lutas sociais ancoradas na noção de justiça e emancipação fundada na idéia de igualdade e redistribuição (Lutas contra a 194

exploração, a privação, a marginalização e exclusão social fruto das desigualdades socioeconômicas estruturais de nossas sociedades capitalistas periféricas) para um novo eixo que se estrutura em torno da idéia de valorização do direito à diferença e de uma noção de justiça alicerçada na idéia de reconhecimento do outro (lutas contra o não-reconhecimento e o desrespeito das minorias frutos das formas dominação cultural, étnico/racial resultantes de sociedades com um passado colonial/racista nas quais ainda permanece como padrão de poder atual e atuante: a colonialidade do poder). A percepção do significado político desses deslocamentos que as lutas dos “povos e comunidades tradicionais” vêm realizando no imaginário e na cultura política brasileira é muito controverso. Para muitos, esse deslocamento do paradigma da

redistribuição da terra para o reconhecimento de territórios representa um alargamento da contestação política e um novo entendimento de justiça social, ultrapassando uma visão restrita de justiça e de emancipação fixada em torno eixo da classe, incluindo outros elementos como a “raça”, a etnicidade, a sexualidade etc. Elementos estes que não estiveram contemplados na agenda clássica de lutas no Campo. Contudo, se por um outro lado, essa nova cultura política amplia e enriquece noções de justiça social e emancipação a partir da incorporação da idéia de reconhecimento da diferença, não é absolutamente evidente que as atuais lutas pelo reconhecimento estejam contribuindo para complementar e aprofundar as lutas mais amplas por reforma agrária e pela redistribuição igualitária da terra. Para muitos críticos dessas novas idéias e práticas, as lutas por reconhecimento podem estar contribuindo para fragmentar, enfraquecer e deslocar a luta por reforma agrária e justiça social. O desafio teórico e político que esses grupos têm de enfrentar é a construção de uma concepção de justiça e emancipação social bifocal, assim, vista por uma das lentes, a justiça é uma questão de redistribuição igualitária da terra; nesse sentido a luta por reforma agrária é claramente uma luta anti-capitalista, vista pela outra, é uma questão de reconhecimento de territórios, nessa perspectiva a luta por 195

reforma agrária é claramente uma luta descolonial, luta pela decolonização do Estado e da sociedade. Cada uma das lentes foca um aspecto importante da justiça social, mas nenhuma por si só basta. A compreensão plena só se torna possível quando se sobrepõem as duas lentes. Mas isso não é tarefa fácil, pois envolve todas as tensões e contradições da construção um projeto de emancipação social onde igualdade e diferença sejam pilares equivalentes no horizonte de justiça social.

196

“ O ARQUIVO E O MAPA “

197

4. CAPÍTULO. A AMAZÔNIA E O BAIXO TOCANTINS COMO FORMAÇÃO SOCIO-ESPACIAL: MÚLTIPLOS TEMPOS, ESPAÇOS, CONTRADIÇÕES E LUTAS SOCIAIS. 4.1. Introdução Partindo de Belém rumo ao rio Tocantins, encontraremos no percurso centenas de ilhas que formam labirintos de floresta e água, bem como dezenas de povoados e vilas que brotam ao longo das margens do rio. No horizonte geográfico da paisagem, ainda podemos ver cidades tipicamente ribeirinhas, com a sua igrejinha e a praça da matriz quase que mergulhada nas águas, com muitos portos, pontes e trapiches, barcos partindo e chegando num vai e vem erótico de remos, quilhas, proas, rumos e vidas que deslizam e se ligam pelo rio. Num olhar apressado de quem passa por essa paisagem, a vida das populações que ali vivem parece estar parada na moldura do tempo, as pequenas palafitas de “poucas paredes”, o colorido das pequenas canoas que teimam em lutar contra a força e gigantismo das águas, tudo expressa um ritmo lento e cíclico, em que a pressa parece não existir e o tempo do relógio parece concorrer com o tempo da natureza, pois a maré é o relógio que regula os horários e é no movimento das águas que pulsa a vida (Fotos 1 e 2). O tempo pode ser aquele da espera ou da procura: a espera da enchente ou da vazante, do inverno ou do verão ou o tempo da procura dos cardumes de peixes, a hora de revistar as malhadeiras, os matapis, na busca do alimento, como bem sugere o poeta João de Jesus de Paes Loureiro (2001): “A linha da maré enforca a vida / O homem pesca a lida / e seus milagres / Aqui fundou-se o tempo. / Aqui fundou-se a idade”.

198

Foto 1: Localidade de Guajará, Município de Cametá. (Autor: Edir A. D. Pereira jun./2010)

Foto 2: Localidade Fazenda, no município de Cametá. (Autor: Edir A. D. Pereira jul/2010)

199

Em

contraste

com

essa

paisagem

e

dinâmica

ribeirinha,

encontraremos, ao longo do rio, “grandes objetos geográficos”, como diria Milton Santos. Ao lado de pequenas comunidades ribeirinhas, encontramos fumaça, luzes, máquinas, pressa, é o complexo da ALBRÁS/ALUNORTE de produção de alumínio. À noite, as luzes diante da opacidade da paisagem, fazem com que a metáfora utilizada por Milton Santos para expressar a densidade técnica dos lugares ganhe força, concretude e contundência, pois estamos diante de uma “zona luminosa”: imensos navios, instalações gigantes, a força da técnica expressa-se num sistema de objetos e “ações alienígenas”, não identificados, ou, pelos menos, sem identificação para as populações que tradicionalmente ali vivem (Fotos 3, 4, 5 e 6).

Foto

3:

Complexo

da

Albrás,

no

Município

Barcarena.

(Fonte:

Google/Imagens)

200

Foto 4 – Porto da Vila do Conde em Barcarena (Fonte: Google/imagens)

Foto 5: A Hidrelétrica de Tucuruí (Fonte: Google/imagens)

Ainda nesse percurso pelo rio Tocantins, encontraremos a segunda maior hidrelétrica do Brasil, a usina de Tucuruí, uma obra de

201

engenharia monumental, plantada no meio do rio barrando as águas e a dinâmica da região – seu tamanho extraordinário é proporcional ao seu impacto ecológico e social.

Foto 6: Eclusas da Hidrelétrica de Tucuruí – reabertura do rio (Fonte: Google/imagens)

Essa

realidade

híbrida,

marcada

pelo

(des)encontro

de

temporalidades históricas, em que o novo e o velho, o lento e o rápido, o moderno e o tradicional, contraditoriamente e de maneira ambivalente combinam-se,

revelando

uma

diversidade

de

temporalidades

na

contemporaneidade que atravessa a vida cotidiana dos diferentes sujeitos, é resultante do processo de transformação que incidiu a partir do final dos anos 1970, na região do Baixo Tocantins, onde vetores de modernização e a expansão da fronteira transformaram e reestruturaram, profundamente, a estrutura espaço-temporal e socioespacial da região. A experiência espaço-temporal da fronteira é caracterizada por uma

situação

social

complexa

que

envolve

uma

multiplicidade

de

combinações, encontros e desencontros de temporalidades e direções históricas “próprios de uma coletânea de diversidade de tempos históricos cuja peculiaridade está em (falta palavra?) que é vivida pelas mesmas

202

pessoas. As mesmas pessoas têm os diferentes momentos de sua vida atravessados, às vezes num único dia, por diferentes temporalidades da história” (MARTINS, 1996: 32). Esse (des)encontro de historicidades torna visível e contundente a questão da alteridade e do jogo pela afirmação das diferentes identidades territoriais, pois: [...] a fronteira é essencialmente o lugar da alteridade. É isso que faz dela uma realidade singular. À primeira vista é o lugar do encontro dos que por diferentes razões são diferentes entre si, como o índio de um lado e os civilizados de outro; como os grandes proprietários de terra, de um lado, e os camponeses pobres, de outro. Mas o conflito faz com que a fronteira seja essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro. Não só o desencontro e o conflito decorrentes das diferentes concepções de vida e visões de mundo de cada um esses grupos humanos. O desencontro na fronteira é o desencontro de temporalidades históricas, pois cada um desses grupos está situado diversamente no tempo da história (MARTINS, 1996: 150-1, grifos do autor).

Nessa perspectiva, Martins (1996) afirma que a situação de fronteira é uma realidade de grande riqueza de possibilidades históricas muito maiores do que outras situações sociais. Isto se deve, em grande parte, porque, como já afirmamos anteriormente, mais do que o confronto entre grupos sociais com interesses conflitivos (luta de classes, étnicas), na fronteira, está agregado a esses conflitos também o conflito entre historicidades

desencontradas.

mentalidades

e

de

O

orientações

“encontro

de

historicamente

relações

sociais,

descompassadas,

de até

propriamente no limite da história”. (MARTINS, 1996:182). Cada uma dessas realidades tem seu tempo histórico se for considerar que a referência à inserção ou não na fronteira econômica indica também diferentes níveis de desenvolvimento econômico associados a níveis e a modalidades de desenvolvimento do modo de vida. Por causa disto, surgem datas históricas distintas e desencontradas no desenvolvimento da sociedade, ainda que contemporâneas. E não me refiro apenas à inserção em diferentes etapas coexistentes do desenvolvimento econômico. Refiro-me, sobretudo às mentalidades, aos vários arcaísmos de pensamento e conduta que igualmente coexistem com o que é atual. E não estou falando de atraso social e econômico. Estou falando da contemporaneidade da

203

diversidade. Estou falando das diferenças que definem seja a individualidade das pessoas seja a identidades dos grupos (MARTINS, 1996: 158-9, grifo nosso).

Essa concepção destaca a situação de cada grupo social na fronteira a partir de uma espacialidade e uma temporalidade próprias e permite estudar a “diversidade histórica não só como diversidade estrutural de categorias sociais, mas também como diversidade social relativa aos diferentes modos e tempos de sua participação na história” (MARTINS, 1996: 160). É nesse processo que a fronteira impõe-se como um espaço produzido estruturalmente pelo desenvolvimento desigual e combinado do processo de expansão territorial da economia de mercado e dos atores hegemônicos da economia, da política e da cultura, que imprimem uma nova temporalidade e uma nova espacialidade na Amazônia. Desse modo, impõe-se

um

novo

ritmo,

o

ritmo

da

produtividade,

o

tempo

da

modernização que incide de forma desigual e diferenciada em densidade e em intensidade nos diferentes lugares. Contudo, esse processo hegemônico não suprime outras temporalidades e espacialidades, aquelas dos sujeitos não-hegemônicos ou subalternizados em que as diferenças culturais dos modos de vida e dos ritmos vividos cotidianamente destacam-se de forma singular em cada lugar. Nesse processo de avanço da fronteira, as temporalidades hegemônicas ou mais avançadas das relações mais desenvolvidas e poderosas são as referências indutoras na definição do sentido das relações mais “atrasadas” e frágeis, ou melhor, das relações diferentes, com outras datas e outros tempos históricos. Contudo, a mediação das relações mais desenvolvidas faz com que o atraso apareça, na verdade, como diferença. As relações mais avançadas, mais caracteristicamente capitalistas, por exemplo, não corroem nem destroem necessariamente as relações que carregam consigo a legitimidade de outras épocas. Portanto, nesses casos, a diferença não tem sentido como passado, mas como contradição e nela como um dos componentes do possível, o possível histórico de uma sociedade diversificada, que ganha sua unidade na coexistência

204

das diferenças sociais e étnicas (MARTINS, 1996: 182, grifo nosso). Isso

parece

claro

quando

analisamos

o

processo

de

transformação que incidiu na região do chamado Baixo Tocantins, no Estado do Pará (referência empírica de nossa pesquisa), onde os vetores de modernização transformaram, reestruturaram profundamente a estrutura espaço-temporal e socioespacial da região. Sendo que isso se deu de forma diferenciada e seletiva, pois a expansão da economia de mercado e da modernização foi concentrada em alguns “pólos”, lugares onde ocorreu a implantação de grandes projetos, como é o caso de Tucuruí, no qual foi construída a grande usina hidrelétrica, e de Barcarena, em que foi implantado o grande complexo de produção de alumínio. Nesses espaços, as consequências do processo de modernização e do avanço da fronteira são mais sensíveis, porque a “destruição criativa e a criativa destruição” são mais radicais. Esses espaços são o front do capital na Amazônia, os efeitos e os impactos desse processo na forma de organização do espaço-tempo e das identidades das populações que, tradicionalmente,

estiveram

territorializadas

nesses

lugares

foram

dramáticos e profundos. Outros lugares da região do Baixo Tocantins, como Mocajuba, Igarepé-Miri, Oeiras do Pará, Limoeiro do Ajuru e Cametá não sofreram a inserção imediata nos processos de modernização, permanecendo num outro ritmo, com outras temporalidades, pois “um lugar pode, a um dado momento, ou por uma mais ou menos longa extensão de tempo, ficar a salvo da influência, em quantidade e qualidade diversas, de variáveis correspondentes a uma nova fase histórica” (SANTOS, 2004: 258). Mas isso não significa que estão isentos dos efeitos da expansão da modernização, nem as identidades territoriais construídas nesses lugares podem ser entendidas sem levar em conta o desenvolvimento desigual e combinado na região. Esses lugares possuem uma dinâmica própria que não é um mero reflexo dos processos modernizadores de expansão da fronteira, uma vez que essa dinâmica do capital e do Estado não esgota a fronteira, e não explica por si só a construção das identidades territoriais. É também preciso

205

olhar a fronteira a partir de outros tempos e espaços, talvez tempos mais “lentos”, o tempo do modo de vida dos sujeitos subalternizados, em suas histórias locais com saberes locais, que, mesmo estando territorializados em espaços mais latentes da fronteira, como é o caso de Cametá, que não está inserida diretamente no front da modernização, não está isenta de sua dinâmica, do seu avanço, tanto no que se refere à vida material, quanto a elementos culturais mais subjetivos que redefiniram e redefinem a própria identidade do lugar e diferentes grupos sociais envolvidos nesse processo histórico. Nesse sentido, analisar a diversidade territorial da Amazônia implica reconhecer que as diferenciações dos lugares, hoje, na região, dãose

tanto

a

partir

de

sua

inserção

desigual em

movimentos

mais

globalizados, ligados a uma nova lógica de divisão territorial do trabalho mais extrovertida, frutos da chamada “modernização” dos grandes projetos implantados a partir da década de 60 (diferenças de grau), quanto a partir da re-criação de singularidades culturais próprias de cada lugar (diferenças de natureza). A diversidade territorial é, pois, resultado da imbricação entre duas grandes tendências ou lógicas sócio-espaciais, uma decorrente mais dos processos de diferenciação/singularização, outra dos processos de desigualização, padronizadores (HAESBAERT, 1999b). Assim, precisamos compreender a diversidade territorial do Baixo Tocantins como sendo ao mesmo tempo uma construção “sistêmica” das desigualdades,

principalmente,

aquela

promovida

pela

(des)ordem

econômica, bem como a produção diferenciadora das singularidades, da vivência do espaço e da nossa identificação com ele (HAESBAERT,1999b). Desse modo, escaparemos do binarismo que se afirma a partir de dualidades

entre

o

particular/geral,

singular/universal,

desigualdade/diferença, pois como afirma Haesbaert (1999: 23) em nossas análises geográficas existe a [...] possibilidade - e necessidade - de se trabalhar sempre, em qualquer análise geográfica, tanto com elementos singulares/específicos, e universais, quanto com elementos particulares (parte de um todo) e gerais. Isto sem dicotomizá-los, já que não há nenhum limite claro entre eles - muitos fenômenos

206

são produzidos concomitantemente como singulares/universais e como particulares/gerais.

Nessa

ótica,

territorial/temporal/cultural

queremos do

baixo

entender Tocantins

a

como

diversidade proposto

por

Haesbaert (1999) que, inspirado em Bérgson, define como uma imbricação entre a des-igualdade (diferenças de grau) e diferença strictu senso (diferenças de natureza). É nesse entrelaçamento entre o desigual e o diferente, entre o particular e o singular, que podemos captar as diversas experiências do tempo-espaço da fronteira. É, pois, pelo (des)encontro de temporalidades e espacialidades distintas (des-iguais e diferentes) que se cria uma multiplicidade contraditória de formas híbridas de produzir, circular, pensar, representar e identificar-se com o território. Essa é a especificidade da fronteira e tem sua expressão num intenso jogo/conflito identitário, para definir ações, percepções e concepções dos diversos grupos sociais. É

nesse

processo

que

se

impõe

a

necessidade

de

compreendermos a reestruturação das relações espaço-tempo da região do chamado Baixo Tocantins, que resultou na constituição dessa multiplicidade de temporalidades e territorialidades, bem como os impactos desse processo na organização dos modos de vida das populações ruraisribeirinhas no município de Cametá, sendo este o objetivo deste capítulo. 4.2. Formação do Território e padrões de organização espaçotemporal do Baixo Tocantins A Amazônia, como formação socioespacial42, constitui-se como uma região de fronteira marcada pelo acúmulo de temporalidades, desiguais e combinadas, uma verdadeira diversidade de temporalidades na

42

“A noção de FES é indissociável do concreto representado por uma sociedade

historicamente determinada. Defini-la é produzir uma definição sintética da natureza exata da diversidade e da natureza específica das relações econômicas e sociais que caracterizam uma sociedade numa época determinada” (Godelier, apud Santos, 2005:27).

207

contemporaneidade43. Na região, podemos identificar, de maneira genérica, dois grandes padrões de organização do espaço-tempo. O primeiro, que predomina até a década de 1960, denominado rio-várzea-floresta; o segundo, padrão estrada-terra-firme-subsolo, que vai se constituir a partir do processo de “integração e modernização” da região depois da década de 70 (GONÇALVES, 2001). O primeiro padrão rio-várzea-floresta foi constituindo-se desde a gênese do processo de formação territorial da Amazônia, que se deu no contexto de expansão da colonização portuguesa. A constituição dos territórios coloniais e a colonização foram, sobretudo, uma afirmação militar, uma imposição bélica; nesse sentido, o processo de colonização na Amazônia implicou a consolidação do domínio territorial, a apropriação de terras, a submissão das populações defrontadas e, também, a exploração dos recursos presentes no território colonial44. O fato de ter sido um território colonial deixou muitas marcas na formação e na organização do espaço da Amazônia. Esse modelo de organização territorial realizou-se, segundo Becker (2005), pautado num padrão econômico voltado para a exportação que, desde o início da colonização até hoje, é a motivação dominante na ocupação regional. Esse modelo de ocupação forjou-se dentro do paradigma sociedade-natureza denominado economia de fronteira, em que o progresso é entendido como crescimento econômico e prosperidade infinitos, baseados na exploração de recursos naturais percebidos como igualmente infinitos (BECKER, 1996). Devido a essa dependência de uma lógica econômica externa, a ocupação da Amazônia fez-se em surtos devassadores ligados à valorização momentânea de produtos no mercado internacional, seguidos de longos períodos de estagnação. A esse padrão associam-se duas características básicas da ocupação regional. 43

Essa noção já carrega consigo, na descoberta de Lefebvre, o intuito de datação das relações sociais, a indicação de que as relações sociais não são uniformes nem têm a mesma idade. Na realidade, coexistem relações sociais que têm datas diferentes e que estão, portanto, numa relação de descompasso e desencontro. Nem todas as relações sociais têm a mesma origem. Todas sobrevivem de diferentes momentos e circunstâncias históricas, mas se encontram na contemporaneidade (Martins, 1996: 15). 44

Moraes (2002) sintetiza a lógica territorial do processo de colonização como a conquista de terras.

208

Primeira, a ocupação se fez invariavelmente e ainda hoje se faz a partir de iniciativas externas. Segunda, a importância da Geopolítica, que explica o controle de tão extenso território com tão poucos recursos. A Geopolítica esteve sempre associada a interesses econômicos, mas estes foram via de regra mal sucedidos na sua implementação, não conseguindo estabelecer uma base econômica e populacional estável, capaz de assegurar a soberania sobre a área. O controle do território foi mantido por estratégias de intervenção em locais estratégicos, de posse gradativa da terra (uti possidetis) e da criação de unidades administrativas diretamente vinculadas ao governo central (BECKER, 2004: 151). Essa lógica de organização econômica e geopolítica implicou um modelo de organização espacial muito particular que, segundo Becker (2004), está pautado no padrão das relações externas, exógeno, e cujo modelo básico utilizado é o das redes de articulação externa, constituídas por vias de circulação e seus nós, núcleos que asseguram a produção e sua concentração para exportação. Já o padrão endógeno é, necessariamente, baseado em áreas relativamente extensas e isoladas, dependente que é de populações que vivem de produtos naturais locais. Essas características de colonização estão presentes na formação territorial da Amazônia e materializam-se no Baixo Tocantins, onde o modelo de ocupação do território sempre esteve dependente do mercado externo. Foi marcado por surtos de valorização econômica no mercado internacional de produtos como as drogas do sertão, o cacau, a borracha, a castanha e, mais recentemente, a pimenta-do-reino. Outra característica resultante do passado colonial é a do padrão de ocupação que obedece à lógica geopolítica, pois a configuração do território foi moldada por estratégias geopolíticas de domínio e controle militar. É dentro dessa lógica que se inicia o processo de povoamento do rio Tocantins, nos séculos XVII e XVIII, efetuado pelos portugueses sob uma lógica geopolítica de defesa do território, bem como por interesses mercantilistas das drogas do sertão. A ocupação do território colonial estruturou-se de fora para dentro, isto é, a apropriação de espaços obedeceu a um itinerário que exprime o sentido prioritário dos fluxos (centrípetos do ponto de vista da colônia, e centrífugos na óptica da

209

metrópole)45. O desenho espacial básico observado confunde-se com a configuração da bacia hidrográfica: a disposição geográfica do povoamento na região, que formou a rede de núcleos populacionais, e, mais tarde, a própria rede urbana estão intimamente ligadas aos traçados dos rios. Nessa perspectiva, o rio torna-se o principal elemento da circulação do espaço regional e, ainda, um fator essencial na geopolítica de defesa do território dos colonizadores portugueses. A respeito dessa peculiaridade da geografia colonial na Amazônia, Machado comenta: Durante séculos, mesmo na época pré-colombiana, a disposição geográfica do povoamento na região amazônica obedeceu ao traçado da rede fluvial, por onde se fazia a circulação. No início do século XVII, quando os ibéricos instalaram-se no vale com o objetivo de controlar o território formado pela grande bacia hidrográfica, escolheram os sítios com maior densidade de população indígena, quase todos localizados na extensa planície de inundação (várzea) que caracteriza grande parte do vale do rio Amazonas e de seus principais afluentes (MACHADO, 1999:110). É nesse contexto que a ocupação do território estabelece-se no início do século XVI, particularmente em 1616, com a fundação de Belém. Posteriormente, outros fortes foram sendo construídos, sempre ao longo dos rios, em posições estratégicas no sentido geopolítico do controle dos vales. Um desses rios, que se constituía como verdadeiro portal de acesso à região, ligando-a ao território nacional, era o rio Tocantins. É na margem esquerda desse rio que, após a fundação de Belém, os colonizadores estabeleceram um núcleo que daria origem, posteriormente, ao que é hoje o Município de Cametá. Além de Cametá, foram progressivamente instalados outros núcleos de povoamento, configurando um padrão que está intimamente ligado ao rio, que se materializou com a formação dos aldeamentos e vilas desde o período colonial e que se amplia e se consolida em função da expansão do povoamento regional com a economia da borracha em fins do século XIX e primeiras décadas do século XX. Assim, ao longo das várzeas do rio Tocantins, emerge um sistema que combina o extrativismo da floresta, a pesca e a agricultura, articulado por meio dos regatões com as 45

Moraes, 2002.

210

vilas e cidades e que, na verdade, foi típico de toda a Amazônia, como nos afirma Gonçalves (2001). Foi com base na economia extrativa e no capital comercial que se forjou a divisão territorial do trabalho moldando o padrão de organização do espaço

regional,

definindo

a

formação

e

configuração

das

cidades

ribeirinhas. “As interações entre vilarejos, vilas e cidades eram inteiramente dependentes da cadeia de exportação/importação, que mobilizava os excedentes de valor produzidos pela economia da borracha” (MACHADO, 1999, p. 111). Essa cadeia funcionava com base na compra e venda a crédito das mercadorias (aviamento), sistema usado tanto pelo pequeno como pelo alto comércio que, na prática, substituía a circulação de dinheiro pelo fluxo de mercadorias, e era esse fluxo de créditoem-mercadorias que articulava entre si as aglomerações. Se, de um lado, esse sistema facilitava a expansão da atividade comercial, pois bastava ter crédito para o comerciante se estabelecer, por outro, dificultava a captação do excedente em cada lugar, o que, por sua vez, inibia a diversificação das atividades produtivas e o processo de diferenciação funcional das aglomerações. (MACHADO, 1999: 111). Assim, o espaço regional do Baixo Tocantins é produto, no primeiro momento, do processo de ocupação do território a partir das vias de circulação fluvial definidas pelos rios. A constituição das cidades, a organização do espaço e toda a dinâmica econômica estão centradas no extrativismo, nas várzeas e nos rios. Nessa dinâmica geográfica, o transporte fluvial teve uma importância fundamental por desempenhar um papel de elo e realizar o intercâmbio comercial, tecnológico e cultural ao longo da constituição histórico-territorial da região. Com a crise da economia da borracha, a infraestrutura e a logística foram inteiramente deslocadas para a economia extrativa da castanha, que se concentrava na região do médio Tocantins. Já o Baixo Tocantins era uma espécie de corredor no circuito de circulação da produção da castanha e, nesse processo, municípios como Baião, Mocajuba e Cametá serviam de entreposto comercial e pautavam suas economias locais numa lógica endógena ligada à produção extrativa menos valorizada (ocoúba,

211

andiroba, açaí etc.) e à agricultura de subsistência, sobretudo a produção de mandioca. Desse modo, o Baixo Tocantins viveu um longo período de estagnação econômica, que resultou num baixo dinamismo histórico e geográfico. Nessa região a maior parte das aglomerações, o equipamento urbano e portuário era precário, e o título de cidade, um eufemismo: a área urbanizada se limitava a duas ou três ruas paralelas ao rio, margeada por modestas casas, raramente de alvenaria, localizada nas partes mais elevadas da planície sazonalmente inundada pela enchente dos rios. A falta de equipamento, mesmo nas maiores aglomerações, não estimulava o desenvolvimento do modo de vida urbano, enquanto o ritmo de vida nas aglomerações menores era lento e intermitente, acompanhando a sazonalidade da coleta da borracha e o movimento de entrada e saída de embarcações no porto. (MACHADO, 1999: 110). Esse padrão espaço-temporal molda-se a partir de uma forte dependência da natureza, num ritmo lento plasmado num modo de vida e numa sociabilidade pautados no rio-várzea-floresta. A vida tece-se pelas relações estabelecidas com e através do rio: “O homem e o rio são dois mais ativos agentes da geografia humana na Amazônia. O rio enchendo a vida do homem de motivações psicológicas, o rio imprimindo à sociedade rumos

e

tendências, criando

tipos

característicos

na vida

regional”

(TOCANTINS, 1988: 233). Ainda a respeito dessa importância do rio, Loureiro afirma: Os rios na Amazônia consistem em uma realidade labiríntica e assumem uma importância fisiográfica e humana excepcional. O rio é o fator dominante nessa estrutura fisiográfica e humana, conferindo um ethos e um ritmo à vida regional. Dele dependem a vida e a morte, a fertilidade e a carência, a formação e a destruição de terras, a inundação e a seca, a circulação humana e de bens simbólicos, a política e a economia, o comércio e a sociabilidade. O rio está em tudo (LOUREIRO, 1995: 121). Essa importância do rio é fundamental na construção de um modo vida muito particular na Amazônia, que se configurou e maturou a partir de uma relação de longa duração do homem com a natureza, pois o rio,

212

durante muito tempo, foi e continua sendo, em muitas áreas da Amazônia, o referencial e o diferencial na organização espaço-temporal e cultural das populações. O rio é referência de múltiplas vivências, experiências e relações cotidianas que se manifestam e se reproduzem nas práticas espaciais e no imaginário social. Esse imaginário torna o rio, além de principal “acidente hidrográfico”, o principal “referente geográfico” do modo vida ribeirinho (PEREIRA, 2008). Nessas áreas onde predomina um certo “tempo lento”, o rio continua tendo uma importância primordial para a vida das populações que lá vivem, sendo o referencial central da “geograficidade” (organização espacial, modo de vida), além de matriz da temporalidade (ritmo social) e do imaginário (lendas, mitos, crenças, cosmogonias) (CRUZ,2004). No Baixo Tocantins e, em especial, em Cametá, a temporalidade e a espacialidade continuam marcadamente simbolizadas pelo rio, com uma vida dinamizada pelas interações materiais, simbólicas e imaginárias diferenciadas com ele. Desse modo, o rio apresenta-se tanto como meio de subsistência, comunicação e transporte, quanto “como mediação entre o fantástico e o real, dos significados e representações do imaginário social geográfico” (PEREIRA, 2008). O rio é o espaço de referência identitária para essas populaçõe 4.3.

O

momento

de

fronteira:

modernização/colonial

e

reestruturação espaço-temporal da Amazônia/Baixo Tocantins Esse modo de vida, esse padrão de organização espaço-tempo fundamentado numa temporalidade e espacialidade ribeirinha, que foi dominante na geografia do vale do Tocantins, começa a se alterar a partir do final dos anos 1970. A partir desse período, começa a emergir um novo padrão espaço-temporal que Gonçalves (2001) denomina: estrada-terrafirme-subsolo. Este conforma-se com as cidades e os embriões urbanos surgidos recentemente ou reestruturados a partir e ao longo dos grandes eixos rodoviários que rasgaram o espaço regional. Com esse processo, esboça-se uma nova temporalidade, ligada a um tempo mais “rápido” da nova

dinâmica

dos

atores

hegemônicos

que,

a

partir

de

então,

protagonizam uma nova divisão nacional e internacional do trabalho resultante

da

nova

fase

de

acumulação

do

capital

na

Amazônia,

213

caracterizada pelo deslocamento do capital comercial para o capital industrial e financeiro. Esse processo ocorre a partir dos anos 1960 e, de maneira mais sistemática e contundente, com a chegada dos militares ao poder. O Estado autoritário brasileiro, segundo Becker (1990), tomou para si a iniciativa de um novo e ordenado ciclo de devassamento amazônico, pautado num projeto geopolítico para modernizar, de maneira acelerada, a sociedade e o território nacional. Para Becker (1990a), a ocupação da Amazônia assumiu prioridade nesse projeto por várias razões. Primeiramente, foi percebida como solução para as tensões sociais internas decorrentes da expulsão de pequenos produtores do Nordeste e do Sudeste em decorrência da modernização da agricultura. Sua ocupação também foi percebida como prioritária em face da possibilidade de nela desenvolverem-se focos revolucionários. No nível continental, duas preocupações apresentavam-se: a) a migração nos países vizinhos para suas respectivas Amazônias que, pela dimensão desses países, localizam-se muito mais próximas dos seus centros vitais; e, b) a construção da Carretera Bolivariana Marginal de la Selva, artéria longitudinal que se estende pela face do Pacífico na América do Sul, significando a possibilidade de vir a capturar a Amazônia continental para a órbita do Caribe e do Pacífico, reduzindo a influência do Brasil no coração do continente. Finalmente, no nível internacional, vale lembrar a proposta do Instituto Hudson de transformar a Amazônia num grande lago para facilitar a circulação e a exploração de recursos, o que, certamente, não interessava ao projeto nacional (BECKER, 1982, 1990a). A Amazônia torna-se, portanto, uma prioridade no projeto econômico e geopolítico de modernização do Estado autoritário brasileiro. Para a realização de tal projeto, a modernização do território foi essencial. Nesse sentido, construiu-se uma malha tecno-política de controle sobre esse território, e foi através dela que o Estado adotou um conjunto de planos, projetos e estratégias para a realização do projeto de modernização de

controle

geopolítico.

Becker

(1990a)

sistematiza

as

principais

estratégias: Implantação de redes de integração espacial. Trata-se de todos os tipos de rede, destacando-se quatro no investimento

214

público. Primeiro, a rede rodoviária, ampliada com a implantação de grandes eixos transversais como Transamazônica e Perimetral Norte, e intra-regionais como Cuiabá–Santarém e Porto Velho– Manaus. Segundo, a rede de telecomunicações comandada por satélite, que difunde os valores modernos pela TV e estreita os contatos por uma rede telefônica muito eficiente. Cerca de 12000 km de estradas foram construídos em menos de cinco anos, e um sistema de comunicação em microondas de 5 110 km em menos de três anos. Terceiro, a rede urbana, sede das redes de instituições estatais e organizações privadas. Finalmente, a rede hidroelétrica, que se implantou para fornecer energia, o insumo básico à nova fase industrial.  Subsídios ao fluxo de capital e indução dos fluxos migratórios. A partir de 1968, mecanismos fiscais e creditícios subsidiaram o fluxo de capital do Sudeste e do exterior para a região através de bancos oficiais, particularmente o Banco da Amazônia S. A. (BASA). Por outro lado, induziu-se a migração através de múltiplos mecanismos, inclusive projetos de colonização visando o povoamento e a formação de um mercado de mão-de-obra local.  Superposição de territórios federais sobre os estaduais. A manipulação do território pela apropriação de terras dos Estados foi um elemento fundamental da estratégia do governo federal, que criou por decreto territórios sobre os quais exercia jurisdição absoluta e/ou direito de propriedade. O primeiro grande território criado foi a Amazônia Legal, superposta à região Norte. Em 1966, a Sudam demarcou os limites da atuação governamental, somando 1400 000 km2 aos 3500 000 km2 da região Norte, construindo dessa forma a Amazônia Legal. Em seguida, em 1970-1971, o governo determinou que uma faixa de 100 km de ambos os lados de toda estrada federal pertencia à esfera pública, com a justificativa de sua distribuição para camponeses em projeto de colonização. Só para o Estado do Pará isto significou a perda de 83 000 000 ha (66,5% desse Estado) que passaram para as mãos federais. Através dessa estratégia o governo federal passou a controlar a distribuição de terras, adquirindo grande poder de barganha. Esse conjunto de elementos foi localizado e distribuído em densidades distintas pela região. Sendo que, na Amazônia oriental e, em especial, no sul e no sudeste do estado do Pará, esse projeto materializouse

com

mais

força.

Nessa

área,

os

investimentos

federais

foram

responsáveis pela alteração da disposição espacial do povoamento nas décadas seguintes. Segundo Machado (1999), o elemento primordial na dinâmica de organização espacial da região deixou de ser a rede fluvial e

215

passou a ser as estradas pioneiras, tanto para os fluxos imigratórios dirigidos como para as correntes imigratórias espontâneas. À medida que os grandes eixos de estradas pioneiras eram construídos na terra firme, ou seja, nas áreas não inundadas, as frentes de povoamento invadiam a selva e novas aglomerações apareciam, muitas delas já sob a forma de cidade. Nesse

sentido,

a

região

do

chamado

médio

Tocantins,

compreendida entre Tucuruí e Marabá, sofrerá profundas mudanças, reestruturando radicalmente a dinâmica do vale do Tocantins como um todo. Assim, com o processo de integração regional, a partir da década de 1970, as vias rodoviárias passaram a desempenhar um papel predominante na ocupação e configuração do espaço. Desse modo, a maior parte das antigas aglomerações situadas nas margens das vias fluviais passa a ser marginalizada pelas ondas imigratórias, com exceção das cortadas pelos novos eixos de circulação terrestre (MACHADO, 1999). Contudo, os rios continuaram em muitas áreas e, de várias maneiras, constituindo um elo de articulação e uma referência central na definição dos lugares que se localizam em suas margens. No vale do rio Tocantins, esse processo de reestruturação regional tem como fator decisivo a construção da usina hidrelétrica de Tucuruí.

Essa

usina

alterou

profundamente

a

estrutura

espacial

e

demográfica local, modificando profundamente as relações e cadeias que se estabeleciam entre homens e natureza, redefinindo completamente os gêneros de vida e os ambientes espaciais locais (ROCHA e GOMES, 2002):

A UHT (Usina Hidroelétrica de Tucuruí) atuou como pólo de atração e de reorganização espacial, através de geração e distribuição de energia, valorizando a montante do reservatório hidráulico. A valorização do espaço do entorno do reservatório aumentou os fluxos migratórios e estimulou a formação de um novo padrão de ocupação territorial, reconfigurando o espaço microrregional. As novas relações sociais e espaciais engendradas afastaram o curso natural da evolução do espaço local e microrregional e impuseram novos recortes espaciais, uma nova regionalização (GOMES E ROCHA, 2002, p.33-4). Na verdade, a UHT não só barrou o rio, como fragmentou a dinâmica regional, diferenciando profundamente a textura e tessitura do

216

tempo-espaço do Baixo e Médio Tocantins. À montante, municípios como Breu Branco, Goianésia, Jacundá, Novo Repartimento, Itupiranga e Nova Ipixuna tiveram suas áreas alagadas. O impacto ecológico, demográfico e sociocultural foi intenso. Novas atividades produtivas e os circuitos de produção e acumulação reestruturam o espaço microrregional a partir do empreendimento; também, o intenso processo de migração e urbanização do território e da sociedade redefiniu, em grande parte, os modos de vida “tradicionais”. Por outro lado, a jusante os municípios de Baião, Mocajuba, Cametá, Limoeiro do Ajuru e Igarapé Miri, entre outros, permaneceram com uma

dinâmica

socioespacial

e

sociocultural

marcada

por

fortes

características rurais e ribeirinhas, uma área de mais de dez mil quilômetros quadrados de florestas de terra firme, várzea e ilhas que mantiveram suas características tradicionais (como caracterizamos anteriormente). Contudo, sofreram os graves efeitos negativos (ecológicos e sociais) da construção da hidrelétrica. Assim, esse processo de reestruturação regional produziu, de maneira nítida, no vale do rio Tocantins, as duas matrizes espaço-temporais denominados por Gonçalves (2001) rio-várzea-floresta e estrada-terrafirme-subsolo. Esses ritmos conjugam-se na constituição das diferentes configurações dos lugares. Temos, então, duas grandes matrizes espaçotemporais que representam duas lógicas de divisão do trabalho distintas, como modos de vida distintos que se cortam, recortam, sucessiva e simultaneamente, fragmentando-se e rearticulando-se. Desse modo, criam as particularidades e singularidades dos lugares, pois “em cada lugar, em cada subespaço, novas divisões do trabalho chegam e se implantam, mas sem a exclusão da presença dos restos das divisões do trabalho anteriores. Isso, aliás, distingue cada lugar dos demais, essa combinação específica de temporalidades diversas” (SANTOS, 2002: 136). No vale do rio Tocantins, esse processo materializa-se em uma multiplicidade de combinações, porém de uma forma simplificada, tendo como exemplo dois extremos: os lugares do “tempo rápido”, ligados aos novos capitais, e uma nova divisão territorial do trabalho, com nexos e eixos econômicos, políticos e culturais que se estabelecem em lógicas mais extrovertidas e exógenas no espaço regional. Por outro lado, temos os

217

lugares ligados a um “tempo lento”, com modos de produzir e modos de vida tradicionais que pouco se alteraram. Essas duas matrizes espaçotemporais, em grande parte, materializam-se na divisão das áreas: a montante e a jusante da hidrelétrica respectivamente (Mapa 3).

218

Mapa 3- O Vale do Rio Tocantins após a construção da UHT.

VALE DO TOCANTINS - PARÁ - -51 51

- -50 50

- -49 49

N

W

\&

E

S

- -22

LIMOEIRO DO AJURU

- -22

ABAETETUBA

\& \&

IGARAPE-MIRI \&

CAMETA

\&

BAIAO

MOCAJUBA

\&

- -3 3

--33

TUCURUI\& BREU BRANCO \& \&

- -44

- -44

GOIANESIA DO PARA

NOVO REPARTIMENTO \& JACUNDA

\&

\&

NOVA IPIXUNA

- -5 5

--55

ITUPIRANGA

\&

\&

MARABA

- -66

- -66

- -51 51

- -50 50

ESCALA GRÁFICA

CONVENÇÕES E LEGENDA \&

Sede Municipal Rodovias Rio Rio Tocantins Cametá Montante da UHE- Tucuruí Jusante da UHE - Tucuruí Vale do Rio Tocantins Malha Municipal

- -49 49

30

0

30

60

LOCALIZAÇÃO NO ESTADO Km

FONTE: Base Digital SIGIEP, 2001. ELABORAÇÃO: Valter Cruz. EXECUÇÃO: Michelle Sena. Data: 16/03/2006.

219

4.4. O processo desigual de reorganização espaço-temporal pós 1970 no Baixo Tocantins. Os impactos da UHT foram de várias naturezas e afetaram em diferentes graus de intensidade o vale do rio Tocantins. Todavia, deteremonos mais no espaço localizado a jusante, que é a área de nossa pesquisa e, em especial, no município de Cametá. Um desses impactos é de ordem ambiental, pois a barragem do rio acarretou a não ocorrência de enchentes periódicas na região do Baixo Tocantins, localizada a jusante, prejudicando a fertilização natural dos solos adjacentes ao rio utilizados para o plantio. A barreira física imposta pela barragem retém a matéria orgânica rica em nutrientes. Esse processo tem produzido duas grandes consequências: A primeira relaciona-se ao empobrecimento progressivo dos solos de várzea devido à falta de reposição de nutrientes carreados pelo rio. A segunda é o declínio da pesca a jusante em função da redução na disponibilidade de alimento para a cadeia trófica. Além disso, a própria barreira física imposta pelo barramento intervém diretamente na migração de peixes, ou a regularização das vazões contribui para esse declínio, já que para muitos organismos o início das cheias serve de estímulo para o começo do período de procriação (CMB, 2000: 71). Apesar das controvérsias e especulações sobre o real impacto da hidrelétrica de Tucuruí na dinâmica do rio Tocantins, é possível afirmar, segundo os dados do relatório da CMB (Comissão Mundial de Barragens), que houve, de fato, uma diminuição no número de espécies capturadas nas pescarias experimentais, de 164 para 133, equivalente a 18,8%. Houve, também, uma alteração na participação relativa das espécies mais frequentes, pois, com a diminuição da vazão da água e a consequente diminuição da área alagada, as áreas de várzeas, que antes eram submersas

periodicamente,

ficaram

permanentemente

fora

d‟água,

diminuindo a oferta de alimento. Além disso, as áreas marginais alagáveis, locais de concentração de peixes jovens, conhecidas como “berçários”, ficaram indisponíveis. Tais áreas são importantes para o recrutamento, cujo insucesso ocasiona diminuição das populações de peixes. Essas áreas são, também, fontes de alimentação para os peixes, uma vez que a floresta

220

inundada (igapó) fornece frutos, sementes, insetos e outros invertebrados consumidos pelos peixes. Com a sua diminuição ou desaparecimento, a oferta de alimento para os peixes declinou sensivelmente. No município de Cametá, especificamente, ocorreu uma drástica diminuição das capturas pela pesca comercial na região: a evolução das capturas da pesca comercial demonstrou que houve uma diminuição constante da produção pesqueira, que caiu de 900 t/ano em 1981 para 492 t/ano, em 1998, com uma queda de 83% É possível que essa queda nas capturas seja resultado das alterações no regime hidrológico do rio após a construção da barragem, dado que o ritmo de enchente e vazante passou a ser regulado pelas atividades de operação da UHE. Isso pode ter desorientado e modificado o comportamento migratório dos cardumes de algumas

das

principais

espécies

de

peixes

comerciais

da

região,

contribuindo para a diminuição nas capturas (CMB, 2000, p.79). O relatório da Comissão Mundial de Barragens46 (CMB, 2000) indica ainda que houve uma redução no tamanho das populações das espécies migratórias que possuíam valor comercial. Isso ocorreu logo após o segundo ano de fechamento do rio, provocado pela construção da barragem, conforme constatado na pesca experimental. Esse fato está, em parte, sendo creditado à interrupção das rotas migratórias de espécies que subiam o rio, passando pelas corredeiras e indo desovar no Alto Tocantins e/ou rio Araguaia, como a ubarana (Anodus elongatus) e a curimatã (Prochilodus nigricans). Os dados da época de pré-barragem, na região de Cametá, indicavam

uma

participação

relativa

do

mapará

(Hypophthalmus

marginatus) equivalente a 37% dos desembarques do pescado que chegavam a Cametá (Carvalho & Merona, 1986). Contudo, entre 1988 e 1998, esse percentual caiu de 38% para 16,7%. A curimatã, que, na fase de preenchimento, era responsável por cerca de 35% dos desembarques, nesse período, apresentou uma queda acentuada, chegando a um mínimo de 4,4% em 1989. A ubarana (A. elongatus) foi a espécie que sofreu o maior impacto, praticamente desaparecendo desta região. Isso pode ser explicado porque essa espécie migra para os cursos superiores dos rios 46

O conjunto de dados e informações aqui usado está referenciado no relatório da comissão mundial de barragens sobre a hidrelétrica de Tucuruí (CMB, 2000).

221

Tocantins e Araguaia para reprodução, de modo que a construção da barragem impede que a região a jusante receba novo recrutamento a cada ano. Isso pode ser constatado pela presença significativa dessa espécie nas pescarias experimentais, na região a montante, e pela sua presença nas capturas comerciais naquele trecho. É importante salientar que a participação relativa das espécies na produção pesqueira mudou: em 1988, o mapará era a espécie dominante com mais de 35% da produção, seguida, de longe, pela curimatã com cerca de 13%, e bagres, jatuarana, pescada e tucunaré com menos de 10% cada. Em 1998, a participação do mapará caiu para cerca de 17%, a curimatã subiu para cerca de 14%, a jatuarana subiu para cerca de 13%, o mesmo ocorrendo com a pescada. Esses dados evidenciam a ausência de uma espécie dominante destacada, com participações relativas que ficam entre 16% e 13% entre as quatro principais espécies (CMB, 2000:56). Essa

consequência

negativa,

longe

de

ser

simplesmente

ecológica, tem um profundo impacto social e cultural na região do baixo Tocantins, em especial, na região de Cametá, pois o rio tem um papel fundamental na construção do modo de vida dessas populações. No que se refere à economia da região, é possível afirmar que a construção da UHT- Tucuruí provocou uma transformação radical na estrutura produtiva que antes tinha uma base agro-extrativa e passa, abruptamente,

para

monoprodução

de

energia.

Essa

transformação

representa forte limitação para gerar condições de desenvolvimento no nível local. O exame da estrutura fundiária, espacial e demográfica revela a incidência dessa mudança. Os processos desencadeados pela instalação do empreendimento energético funcionam de maneira cíclica, provocando fluxos de trabalhadores nas fases de construção da hidrelétrica e da infraestrutura de base, como estradas e novas cidades (CMB, 2000). A

construção

da

barragem

desencadeou

processos

de

transformação econômica que incidem, de um modo geral, na estrutura produtiva local. A economia predominantemente agrária e extrativa foi sendo alterada com a interferência direta e indireta do empreendimento em áreas de uso coletivo, tradicionalmente destinadas ao extrativismo, à pesca,

222

ao cultivo nas várzeas e na terra firme. Assim, esse processo afeta, de maneira dramática, os usos e os sistemas de apropriação tradicionais do território praticados por diferentes grupos sociais: indígenas, colonos, ribeirinhos, madeireiros, pecuaristas e empresas agropecuárias. Nesse sentido: O empreendimento tem a capacidade de impor novos recortes, além da sua área física. A instalação do empreendimento hidrelétrico superpõe à estrutura fundiária existente uma série de novos problemas - concentração, compra e venda ilegal de terras e benfeitorias, atos de força contra ocupantes ou „posseiros‟ - que estão na base dos conflitos fundiários. As áreas indígenas não demarcadas passaram a ser objeto de intrusão; as pequenas posses, não registradas, tornam-se invisíveis, não sendo, consequentemente, indenizadas quando do processo de reassentamento. Os processos de concentração, exploração de recursos, usurpação de posse cartorial e grilagem acentuaram-se com o avanço do projeto (CMB, 2000:79). As

progressivas

transformações

da

estrutura

fundiária

representam uma ruptura na dinâmica local de apropriação da terra. O empreendimento tem a capacidade de provocar uma elevação do preço da terra e aumento da procura. Trata-se de novos recortes impostos, inclusive para além da sua área física. Exemplo disso é a área do reservatório que foi ocupada - as chamadas ilhas – e que, atualmente, suscita problemas de disputa e definição jurídicas. Dessa forma, é necessário compreender o impacto do empreendimento sobre a terra, tanto a montante quanto a jusante (CMB, 2000). No que se refere especificamente à jusante, até a década de 1970, a extração vegetal tinha uma participação crescente em todos os municípios da região. O açaí ocupava o primeiro lugar, seguido da madeira e da borracha. Em alguns municípios, eram também extraídos produtos como malva e castanha. Também era expressiva a produção de arroz, mandioca, milho e feijão. Em algumas áreas, destacavam-se o cacau, a banana, a pimenta-do-reino e a pesca artesanal - peixe, camarão -, esta última predominante em toda a região do Baixo Tocantins. A pesca artesanal era utilizada não apenas para o consumo familiar, mas também para a comercialização nos mercados das cidades ribeirinhas. Desse modo,

223

apesar de uma leitura insistente classificando essa agricultura como de subsistência, com diminuta participação no mercado: Os números do IBGE contabilizam valores significativos na produção dos municípios. O empreendimento energético incide de forma desarticuladora sobre essas atividades produtivas, sobretudo no que diz respeito às desenvolvidas por grupos camponeses, ocasionando um processo crescente de empobrecimento e êxodo para as médias e pequenas cidades (CMB, 2000: 81). No que se refere ao município de Cametá, a economia continua dependente da agricultura de subsistência e comercial, com ênfase no cultivo da mandioca, do cacau e da pimenta-do-reino e no extrativismo vegetal, no qual se destaca o açaí e a madeira para corte. A atividade industrial é ainda incipiente, restringindo-se às serrarias localizadas no interior do município e na sede municipal, que operam com motor próprio, e às diversas marcenarias (CMB, 2000). Contudo, como já registramos anteriormente, a mudança do regime hidrológico alterou a produção, sobretudo nas culturas das áreas de várzea. Sendo assim, houve uma queda da produção de açaí e de cacau na área a jusante com reflexos importantes na economia local. Mas, hoje, o açaí continua sendo um alimento de significativa importância para a população ribeirinha, sendo a base essencial da dieta regional bem como um importante produto para a economia extrativa de toda a região. Na área a montante, a velha economia fundada no extrativismo é substituída pela geração de energia, pela nova produção agrícola, pecuária, de carvoejamento e pela atividade industrial (metalurgia e serraria). O resultado é que o dinamismo econômico e o ritmo de crescimento são profundamente diferentes. A região a jusante da UHT perdeu a vantagem que detinha frente ao aglomerado de municípios situados a montante da hidrelétrica. Como resultado do dinamismo econômico diferente, a região a montante alcançou o PIB dos municípios a jusante, historicamente, com maior base produtiva. Esses municípios têm apresentado uma estagnação econômica nas últimas décadas. Essas mudanças foram tamanhas na estrutura produtiva e na dinâmica econômica que, em 1980, o PIB da região a montante não

224

chegava a 10% se comparado ao PIB da região a jusante; enquanto que, hoje, decorridos 30 anos, os PIBs das duas regiões praticamente se equivalem. Vale notar que, em 1970, a renda per capita a montante equivalia a cerca de 50% da área a jusante; porém, ao longo desse tempo, mesmo com todo o crescimento populacional da área a montante, a renda per capita a montante é da ordem de 80% da estimada para a jusante47. No que se refere à dinâmica populacional, se for analisada a partir de uma escala temporal de três décadas, duração que coincide com o início do processo de construção da UHT, veremos uma metamorfose intensa. Em trinta anos (1970-2000), a região a jusante da UHT registrou um crescimento moderado da população, apesar de ter tido um aumento de 70% no total de habitantes. De acordo com os Censos Demográficos do IBGE, a população passa de 124 mil habitantes em 1970 para mais de 211 mil habitantes no ano 2000, o que representa uma taxa média de crescimento demográfico de 1,8% ao ano, bem inferior à registrada pela área a montante, que foi de cerca de 10% ao ano no mesmo período. Nesse sentido, percebemos diferentes ritmos de crescimento, pois

a

região

a

jusante

do

rio,

sem

o

dinamismo

do

grande

empreendimento, cresceu a partir de uma lógica endógena, fundamentada no crescimento vegetativo. Já a região afetada diretamente pelo vetor de modernização cresceu a partir de uma lógica exógena ligada a intensos fluxos migratórios oriundos de fora da região. Em termos populacionais, as duas regiões trocam de lugar. Em 1970, a população dos municípios a montante correspondia a apenas 25% da população a jusante. Em 2000, a população a montante (de formação recente, portanto) é superior em 17% à da região a jusante.

47

Os dados estatísticos usados neste trabalho estão baseados no PPDS-Jus (Plano Popular de Desenvolvimento Sustentável da região a jusante da UHT-Tucuruí. (ELETRONORTE, 2003).

225

Tabela 1

Evolução Populacional dos municípios localizados a jusante Municípi o

ANO 1970

1980

1991

2000

2010

Cametá

59.7 54

79.3 20

85.1 87

97.6 24

120. 896

Igarapé Miri

31.2 28

39.2 70

41.8 43

52.6 04

58.0 77

Mocajub a

9.08 7

17.7 09

25.7 09

30.3 55

26.7 31

Baião

12.1 34

16.2 58

20.0 72

21.1 19

36.8 82

Limoeiro do Ajuru

10.0 74

8.84 8

9.26 2

9.75 1

25.0 21

Total

124. 247

161. 405

182. 073

211. 453

267. 607

Taxa de Crescim ento Anual

-

2,65 %

1,10 %

1,7%

1,9%

(Fonte: IBGE, Censos Demográficos: 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010) A evolução demográfica da região do Baixo Tocantins a jusante da UHT apresenta-se, também, abaixo da média histórica do estado do Pará, que é de 3,3%. Ainda que na década de setenta tenha registrado uma média anual de 2,65%, durante os anos oitenta, o aumento da população foi muito baixo, cerca de 1,21% ao ano - muito próximo da taxa mínima de reposição. Esse

processo

demonstra

uma

temporalidade

própria

que

também se reflete no processo de urbanização, pois a região possui uma das menores taxas de urbanização do país, com menos de 45% da população residindo no espaço urbano (precisamente 44,74%), como mostra a tabela 2, bem abaixo da média da Região Norte, estimada em 69,7% em 2000, e do país calculadas em 81,2%. Do outro lado da hidrelétrica, a microrregião de Tucuruí (a montante) tem um perfil mais urbano, com cerca de 56% dos seus habitantes residindo na zona urbana,

226

demonstrando que o avanço da fronteira faz-se por intenso processo de urbanização, como sugeriram Becker (1990) e Machado (1999). Tabela 2 Taxa de Urbanização da Região a jusante da UHT % ANO Cametá Igarapé Miri Mocajuba Baião Limoeiro Ajuru

1980

1991

2000

18.38

26.82

35.54

41.40

23.24

36.17

47.31

47.49

26.79

31.18

45.73

47.97

23.00

25.13

39.24

51.45

8.84

17.72

27.23

38.66

19.60

28.90

39.67

44.74

1970

MUNICÍPIO

2010 49.51 45.12 68.38 50.31

do

Total

24.77 47.61

(Fonte: IBGE, Censos Demográficos: 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010)

A despeito da pequena taxa de urbanização atual, bem abaixo da média nacional e regional, verificamos que a população rural vem perdendo participação em relação à população urbana. Entre 1970 e 2000, a população urbana cresceu cerca de 288%, enquanto a população rural cresceu apenas 17%. O fato relevante neste processo é que, nas décadas de oitenta e noventa, a população rural cresceu menos que a taxa mínima de reposição (1,2% ao ano). Esses dados revelam um forte êxodo rural na direção dos principais núcleos urbanos desta e de outras microrregiões (PPDS-Jus, 2003). (ver tabela 3) O

desempenho

demográfico

da

região

indica

a

provável

ocorrência de forte emigração, na medida em que o crescimento vegetativo deve situar-se acima dos 2% ao ano, superior ao crescimento líquido registrado nas últimas décadas. Muitas famílias migraram para a região do lago de Tucuruí, forçadas pela queda na qualidade vida resultante da diminuição de peixes e da qualidade da água na área a jusante, causadas pela barragem do rio.

227

Tabela 3 Variação nos estoques de população urbana e rural dos municípios a jusante da UHT (Em hab.) DÉCADA 1970 MUNICÍPIO

Cametá

Igarapé Miri

Mocajuba

Baião

Limoeiro do Ajuru

U R B . 1 0 . 2 9 1 6 . 9 4 7 3 . 0 8 7 1 . 2 9 5

6 7 7

1980

R U R.

9. 27 5

1. 09 5

5. 53 5

2. 82 9

1. 90 3

1990

2000

U R B .

R U R .

U R B .

R U R .

9 . 0 0 2

3 . 1 3 5

1 0 . 1 4 1

2 . 2 9 6

5 . 5 9 2

3 . 0 1 9

5 . 1 8 6

5 . 5 7 5

1 . 7 6 5

2 . 8 0 5

1 . 8 4 1

2 . 9 8 9

1 . 9 4 2

6 . 2 3 5 3 . 7 9 1

2 3

9 5 4

5 4 0

1 . 2 4 8

7 5 9

U R B .

R U R

1 2 . 4 2 9

1 0 . 8 5 1

1 . 2 2 6

4 . 1 9 3

3 . 7 3 6

2 . 4 6 7

7 . 6 9 0

8 . 0 9 8

2 . 4 2 8

3 . 0 3 6

228

Total

2 2 . 2 9 4

14 .8 64

2 5 . 5 8 2

4 . 9 1 4

2 2 . 3 7 6

7 . 0 0 4

2 7 . 5 0 9

2 8 . 6 4 5

(Fonte: IBGE, Censos Demográficos: 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010). Na década de oitenta, ocorreu uma perda de dinamismo da agricultura e da pecuária nos municípios a jusante. Com exceção de Mocajuba e Baião, todos os municípios apresentam forte redução, em termos absolutos, nos estoques de população, com destaque para Limoeiro do Ajuru, que perdeu população rural em todas as décadas. Na década de noventa, além de Limoeiro, Baião também teve a sua população reduzida. Assim, o que podemos verificar é que, se por um lado a região a montante da hidrelétrica (área de influência direta) sofreu profundas mudanças, a região a jusante, tradicionalmente ribeirinha, não sofreu uma inserção direta e imediata nos processos de modernização, sendo afetada apenas

indiretamente

pelas

frentes

de

expansão

econômica,

experimentando efeitos de natureza em graus distintos da região a montante. De um lado, permanece sem grandes mudanças econômicas, socioespaciais e socioculturais, apesar de estar localizada entre os dois grandes “pólos de desenvolvimento”: a Usina Hidrelétrica de Tucuruí (produção de energia elétrica) e o Complexo Albrás/Alunorte (produção de alumina e alumínio). Por outro lado, os efeitos ecológicos, econômicos e sociais desestruturadores tornaram ainda mais difíceis as condições de produção e reprodução social da maioria das populações dessa região e, de maneira mais dramática, das populações ribeirinhas. Para entendermos a dinâmica socioespacial e sociocultural desses espaços, devemos operar analiticamente a partir de uma relação dialética de um tempo externo e um tempo interno, pois a dinâmica do capital e do Estado (tempo externo) influencia a dinâmica desses lugares. Essas temporalidades não são, contudo, um mero reflexo do avanço da fronteira. Para compreendê-las, é preciso levar em conta outros tempos e espaços, talvez tempos mais “lentos”, especialmente, tempo do modo de vida cotidiano dos sujeitos em suas histórias locais (tempo interno) que são

229

diferencialmente afetados pelas novas temporalidades hegemônicas e, como já ressaltamos, é dessa combinação que resulta o tempo espacial próprio de cada lugar (SANTOS 2004, p.257). Assim, o Baixo Tocantins tem o seu próprio tempo, seu tempo interno em relação aos tempos externos (a Amazônia, o Brasil, o mundo). Seu tempo é o tempo da fronteira, percebida aqui como a coexistência e o (des)encontro de temporalidades na contemporaneidade (Martins, 1996). No Baixo Tocantins, o tempo é múltiplo, plural – ele tem seus próprios ritmos –, sofrendo acelerações ou transformações mais intensas e extensas pela

introdução

de

outras

temporalidades,

através

do

ritmo

da

produtividade, do tempo da modernização, que vem reestruturando o espaço regional, bem como os tempos dos atores não hegemônicos (subalternizados) nos seus ritmos cotidianos. Tal processo dá-se em intensidades e densidades distintas que, historicamente, produzem uma imbricação e uma combinação sempre diversas nos diferentes lugares. Assim, num mesmo espaço, podemos encontrar o ritmo social, a temporalidade hegemônica do capital, marcada pela maior velocidade, em contraste com uma Amazônia que tem, no rio, sua referência quase exclusiva de ritmo social. Os lugares de incidência direta dos vetores de modernização, tanto do sistema de objetos (materialidade: paisagem cada vez mais artificial, tecnificada, cientificizada) quanto do sistema de ações (novas temporalidades e dinâmicas sociais mais velozes), aos quais acrescentaríamos os sistemas de valores (o modo de vida urbano e um novo imaginário), caracterizam-se por um grau cada vez maior de racionalidade, pela intencionalidade, pela artificialidade e pela fluidez capitalista. Esses lugares e suas sociedades experimentam, de uma forma hegemônica, aquilo que Santos (1993) denomina “tempos rápidos”. Essa rapidez, velocidade, vertigem, personifica o processo de “aceleração contemporânea que impôs novos ritmos aos deslocamentos dos corpos e o transporte das idéias” (SANTOS, 1993:30). A partir das reflexões de Santos (1993), poderíamos afirmar que, no

vale

do

Rio

Tocantins,

existem

diferentes

tempos,

ou

melhor,

temporalidades (ritmos) desiguais: os tempos ”rápidos” (hegemônicos) nos espaços “luminosos” e os tempos “lentos” (hegemonizados ou subalternos)

230

nos espaços “opacos”. Esses diferentes tempos tornam-se empiricizados através dos diferentes sistemas técnicos imprimidos no espaço a partir das diferentes lógicas da divisão territorial do trabalho, bem como através dos diferentes modos de vida. Mas é importante destacar que a desigualdade de tempos (ritmos sociais) que se traduz em tempos “lentos” e “rápidos” precisa ser vista como uma relação dialética e não como dualidade, pois esses tempos não têm um valor absoluto, seus significados só podem ser revelados na relação de um com o outro e pelo uso concreto dos diferentes atores sociais. É assim que, a partir de cada agente, de cada classe ou grupo social, estabelecem-se as temporalidades que são a matriz das especialidades vividas no lugar (SANTOS, 2002:133). A noção de tempo rápido se antepõe a um tempo lento. Aqui estamos falando de quantidades relativas. De um lado, o que chamamos de tempo lento somente o é em relação ao tempo rápido; e vice-versa, tais denominações não sendo absolutas. Essa contabilidade do tempo vivido pelos homens, empresas e instituições será diferente em cada lugar. Não há, pois, tempos absolutos. E, na verdade, o “tempo intermediário” tempera o rigor das expressões tempo lento e tempo rápido (SANTOS 2002: 267). Portanto,

esse

processo

tem

diferentes

ressonâncias.

A

instalação dessa nova dinâmica na região criou, de um lado, os lugares onde predomina um tempo “rápido”, ligado aos processos modernizadores da economia capitalista e a um modo de vida urbano e, de outro lado, lugares com um “tempo lento” fora da órbita das novas formas de apropriação e ocupação regional que continuam com modos de produzir e modos de vida tradicionais que pouco alteraram-se na medida em que experimentaram, com menor intensidade, os efeitos dos processos de “modernização”.

Nesses lugares, permanece uma espécie de “tempo

lento”, em que predomina uma dinâmica econômica ligada à lógica mais introvertida e endógena da divisão do trabalho e que tem como base o extrativismo e a pequena agricultura. Nessas áreas onde predomina o “tempo lento”, o rio continua tendo uma importância fundamental para a vida das populações que lá vivem, sendo o referencial central da

231

“geograficidade” (organização espacial, modo de vida), além de matriz da temporalidade (ritmo social) e do imaginário (lendas, mitos, crenças, cosmogonias). Essas diferentes experiências espaço-temporais produzidas pela dinâmica de “modernização da região” resultaram em transformações e permanências que afetam o significado social e cultural das práticas e representações de tempo e espaço, o que implica mudanças do significado das

identidades

socioculturais

que,

nesse

processo,

alteraram-se,

mesclaram-se e diversificaram-se a partir de uma combinação específica de temporalidades, concepções e vivências nos diferentes lugares. Sendo assim, entendemos que as diferenciações dos lugares do Baixo Tocantins é, ao mesmo tempo, um produto de uma construção “sistêmica” das desigualdades – principalmente, aquela promovida pela (des)ordem econômica resultante da inserção desigual dos lugares numa nova lógica de divisão territorial do trabalho, com elos e nexos mais extrovertidos e globalizados, resultante da “modernização” dos grandes projetos, o que implica novas espacialidades e temporalidades – e da recriação de singularidades culturais próprias de cada lugar através de diferentes experiências, vivências e identificações com o espaço. 4.5 Os Impactos da Hidrelétrica, mobilização social e constituição de Identidades sócio-políticas . Como observamos no item anterior a construção da hidrelétrica de Tucuruí alterou radicalmente a dinâmica regional, contudo esse processo ocorreu de maneira diferente para área montante em relação a área a jusante. Enquanto na área a montante houve uma mudança radical na estrutura demográfica, na estrutura econômica, na organização espacial, na dinâmica ambiental, na área a jusante os impactos foram indiretos, menos visíveis, contudo, não menos relevante, sobretudo, para as comunidades ribeirinhas que viviam na área de várzea ao longo do rio Tocantins e seus afluentes. Como os processos e os impactos foram distintos, também as lutas sociais por direitos e contra a ação da empresa responsável pela

232

construção da barragem foi diferente, em muitos momentos os chamados atingidos à montante e a jusante se juntaram na luta, contudo os movimentos

assumiram

distintas

trajetórias,

formas

organizativas

diferentes e, em muitos aspectos, objetivos e agendas próprias. A montante a construção da hidrelétrica provocou um intenso processo de mobilização compulsória levando um radical processo de desterritorialização parceiros,

visto

meeiros,

que

as

comunidades

arrendatários),

camponesas

ribeirinhas,

indígenas

(posseiros, e

também

comunidades urbanas foram obrigadas a deixar suas casas, suas terras, seus modos de vida, suas memórias

e de alguma forma tiveram que

refazer suas identidades e se adaptarem novos ambientes diga-se de passagem ambientais hostis a seus modos de vida na maior parte do assentamentos sejam rurais ou urbanos . No caso da montante, o movimento convergiu para a criação do Movimento dos atingidos por barragens – MAB, que encampou as inúmeras demandas das mais diversas comunidades

afetadas

pela

construção

da

barragem,

sejam

estas

comunidades ribeirinhas ou urbanas. Já do lado da jusante não houve um processo de desterritorialização no sentido literal, mas houve uma precarização dos vínculos territoriais das comunidades com seus ambientes e seus territórios, houve uma degradação das condições ambientais e sociais de reprodução dessas comunidades o que levou a uma deteriorização das condições de vida das comunidades localizadas na várzea e que foram afetadas de barragem do rio, desse processo resultou um movimento de migração para áreas urbanas dos municípios ou ainda uma migração para áreas do lago a montante da hidrelétrica onde as comunidades buscavam encontrar melhores condições de sua reprodução Ao perceberem a ameaça representada pela expropriação de seus bens – terras, benfeitorias –, as populações rurais, ribeirinhas e também urbanas empreenderam uma ação de r-existência como forma de afirmação de sua sobrevivência física, social e política. E, desse modo, construíram a identidade de “atingidos pela barragem” e a condição de sujeitos em luta por direitos e na defesa de seus modos de vida.

233

Sob a orientação da Prelazia de Cametá e pela ação da Pastoral da Terra e dos sindicatos dos trabalhadores rurais, além de outras instituições que atuavam nas assessorias, essas populações travaram inúmeras lutas contra a ação autoritária da ELETRONORTE, que ignorou as suas territorialidades e os seus modos de vida. Assim, esse processo de luta derivou das profundas negligências da empresa em relação aos impactos ecológicos e sociais causados pela hidrelétrica. Isso fica claro no que se refere à postura da empresa em relação à área a jusante da Barragem. Segundo as informações da CMB (2000), a ELETRONORTE considerou os impactos previstos para o trecho a jusante de natureza “temporal e circunstancial”. Diante dessa perspectiva, as medidas tomadas pela estatal foram no sentido de garantir a sobrevivência das populações ribeirinhas durante os dois meses de interrupção do curso do rio através da implantação de “medidas transitórias minimizadoras de impactos localizados”. O relatório da CMB (2000) mostra, ainda, que a análise da documentação da época revelava que dois objetivos orientaram as intervenções a jusante. O primeiro foi concebido para evitar os efeitos diretos da redução do nível de água e garantir a sobrevivência das populações assegurariam

ribeirinhas o

através

suprimento

de

do

planejamento

água,

a

de

assistência

medidas médica

que e

o

abastecimento alimentar. O segundo objetivo visava atenuar o clima de tensão resultante dos boatos que circulavam entre a população sobre as consequências do represamento do rio. No sentido de restabelecer a tranquilidade, estabelecer a confiança da população e acalmar os ânimos, a ELETRONORTE recrutou lideranças simpáticas ao projeto que pudessem ser aliadas na disseminação de informações “tranquilizadoras”. Essa estratégia adotada pela empresa funcionou num primeiro momento no sentido de produzir uma desmobilização das populações ribeirinhas. Além dessa ação intencional da empresa, existia inicialmente entre as populações localizadas a jusante da hidrelétrica uma grande receptividade à ideia da construção da hidrelétrica de Tucuruí, pois não se tinha clareza das conseqüências ecológicas e sociais negativas que tal empreendimento implicaria, visto que não se tinha feito qualquer discussão

234

com a população no sentido de esclarecer essas possíveis consequências negativas. Concorriam ainda para este entusiasmo as notícias veiculadas pela mídia local e nacional que anunciavam a construção da UHT como a chegada do progresso e do desenvolvimento para a região, afirmando que a energia elétrica viabilizaria a implantação de fábricas, de indústrias, criando novos postos de trabalho, melhorando, assim, as possibilidades de geração de renda. Esse imaginário, baseado no “fundamentalismo do progresso”, impediu de início a capacidade de mobilização das populações a jusante. Se diante das fortes pressões exercidas pela população atingida a montante identificou-se uma mudança no comportamento da ELETRONORTE no que concerne à implementação de política compensatória, o mesmo não ocorreu em relação à população a jusante, com a qual nada foi negociado. A área a jusante foi praticamente ignorada por estas políticas, mesmo quando foram

comprovados

os

impactos

de

forma

direta

ou

indireta

que

provocaram importantes alterações nas formas de vida e nos meios de sobrevivência das populações locais. Diferentemente da previsão feita pela ELETRONORTE, segundo a qual os impactos da UHT que incidiriam na área a jusante seriam de baixa intensidade e de natureza circunstancial, o relato dos moradores demonstra que, após o fechamento da barragem e a formação do lago, ocorreu uma alteração na dinâmica das várzeas, o que se refletiu na produção existente, a exemplo do cacau nativo da região do Baixo Tocantins. Essa atividade empregava muita gente no período da entressafra da pesca, mas, a partir das alterações na dinâmica das várzeas, baixou o nível de produção e algumas áreas praticamente desapareceram. Esse mesmo processo pode ser verificado também em outras culturas, como a do açaí e da andiroba, entre outras, além da pesca, como já foi ressaltado anteriormente. Além disso, diversos estudos sobre a qualidade da água desenvolvidos na área, especificamente entre 1986 e 1988, revelaram problemas graves para o abastecimento da população, em consequência das alterações na característica físico-química da água e da contaminação biológica em todo o trecho a jusante de Tucuruí, à exceção da vila residencial dos funcionários da ELETRONORTE. A poluição provocou

235

ainda doenças como meningite, no Município de Baião, gastrite, diarréia, infecção intestinal e problemas uterinos (muitos casos de aborto) em outros municípios (CMB, 2000). Ainda podemos verificar que, para além de uma dimensão mais ecológica que afetou os ecossistemas e a saúde das populações ribeirinhas, a construção da hidrelétrica de Tucuruí atingiu, em várias dimensões, o trabalho e o modo de vida de tais populações, pois: (...) ao alterar as esferas da produção altera profundamente a vida material e cultural. Sua privação corresponde à negação desse modo de vida, de suas relações sociais que estruturam e dão sentido às concepções sobre o uso da terra, sobre a apropriação da natureza, sobre sua concepção de mundo (CASTRO:1989, p. 54). No início, todavia, a maioria da população local não associava os seus problemas ao fechamento do rio. Enfrentando situações de dificuldades de toda ordem, muitos pescadores deixaram a família e migraram para outros lugares em busca de trabalho, o que gerou conflitos entre os pescadores desses lugares. Contudo, aos poucos, houve um fortalecimento da conscientização dos impactos negativos da barragem do rio, e essa crescente conscientização levou as populações “atingidas” a começarem a organizar-se para reivindicarem os seus direitos. Contrapondo-se à política de relocação e de indenização da ELETRONORTE e percebendo-se esvaziadas em direitos considerados por elas como legítimos, as populações rurais e ribeirinhas que sofreram com a construção da barragem do rio Tocantins começam a tomar consciência da necessidade de expressar-se através de uma outra linguagem e, assim, proclamam sua insatisfação, rompendo o silêncio e a passividade (CASTRO, 1989): A experiência de se sentir excluído de decisões que envolviam novos usos de suas terras (e da água) – agravadas ainda pelas formas autoritárias e violentas que revestiam as atitudes daquela empresa -, foi fundamental no entendimento de estarem numa situação limite. O que estava sob ameaça não era apenas a reprodução do seu sistema de vida, mas a própria dignidade. Percepção que lentamente ganhou sentido e amplitude política via processo de organização, contando com o apoio decisivo das estruturas sociais realimentadas pelas CEBs. Os trabalhadores

236

interiorizaram um discurso critico que veio a desempenhar um papel importante na apreensão de sua experiência concreta (CASTRO, 1989: 53). Contudo, assim como os impactos foram diferenciados na área a montante e a jusante, a mobilização também foi diferenciada e desigual. Conforme Castro (1989), nos anos de 1987 e 1988, os espaços de luta foram constituídos separadamente a montante e a jusante, embora incorporassem um elemento comum, que era a poluição das águas. Somente em fins de 1988, foram tomadas decisões concretas de unificação do movimento. A CUT teve um papel importante nesse processo apesar de certas fragilidades. Assim, o encontro das nações indígenas, em Altamira (fevereiro de 1989), foi um momento estratégico em que ficou consolidada a intenção de encontros mais amplos para a construção de uma estratégia comum na Amazônia, tendo em vista a ação da ELETRONORTE em toda região. No que tange aos trabalhadores rurais a jusante, estes foram “atingidos” não pela apropriação direta e imediata da terra, mas pela impossibilidade de reproduzirem seu modo de vida e de trabalho. Sob essa perspectiva, não ocorreu um processo de desterritorialização, no sentido da perda do território, como aconteceu com deslocamentos compulsórios ocorridos com a montante na formação do lago artificial. Ocorreu uma precarização dos vínculos territoriais, uma precarização dos processos de territorialização. Contudo, gradativamente, a consciência de que eram também afetados pelos “impactos” da barragem contribuiu para que essas categorias de trabalhadores da região a jusante reconhecessem-se na trajetória de “atingidos por barragens”, mobilizando-se na defesa de sua identidade (CASTRO, 1989). Foi a partir dessa politização da condição de “atingidos” e da aliança com as pessoas afetadas a montante, que já estavam num nível de organização e politização mais elevado, que o movimento a jusante da barragem começou a fazer reivindicações e a participar de várias manifestações

e

protestos

contra

a execução

da obra que

estava

prejudicando as suas vidas cotidianas.

237

Apesar de certa demora e lentidão na organização e mobilização, o movimento a jusante revela, aos poucos, significativos avanços, já que, no processo de luta, os pescadores e as populações locais tomaram consciência e começaram a perceber que o desaparecimento do peixe e as alterações no regime do rio e no ciclo de produção de frutas nativas não eram decorrentes do castigo de Deus, de uma ordem natural, mas resultante dos efeitos da construção da barragem do rio Tocantins. A partir daí, têm início a politização da sua condição de ribeirinho e a afirmação de uma identidade de “atingidos”. Assim, sob a liderança dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs) e das CEBs, em meados da década de 1980, as populações ribeirinhas a jusante começam a manifestar suas inquietações sobre os “impactos”

da

barragem.

Isso

levou

a

um

intenso

processo

de

problematização de suas condições sociais e à constituição de um campo de politização sobre a condição de ribeirinhos e de “atingidos”. Esse processo ocorre: Através de inúmeras formas de ação e de reflexão (reuniões, trabalho de comissões, elaboração de documentos, debates, assembléias gerais, passeatas, acampamentos etc.), emerge o movimento de politização, quando eles elaboram e constroem um discurso a partir de suas condições reais de vida enquanto pequenos produtores rurais atingidos pela barragem. Incorporam a linguagem da prática política que ao mesmo tempo afirma sua identidade e nega o discurso instituído do Estado. Diferentemente deste, o discurso dos atingidos é percebido como legitimador da busca de cidadania e valorização de iniciativas coletivas (CASTRO: 1989: 54). Atentos a esses processos, as STRs, as ações comunitárias e a Prelazia

de

Cametá

articularam

formas

de

pressão,

trabalhando

politicamente a identidade “de atingidos por barragem” a jusante (Castro, 1989). Trata-se, na nossa compreensão, de um processo de construção de uma consciência sócio-espacial de pertencimento, tendo o rio como espaço de referência identitária, e a condição de “atingidos” como motivação fundamental na constituição dessas populações como sujeitos políticos que emergem na cena pública.

238

Esse processo de mobilização a jusante teve como marco a realização do I Congresso de Pescadores do Baixo Tocantins, ocorrido em Cametá, em agosto de 1992, que teve como objetivo principal despertar a consciência da população local, especialmente a dos pescadores, para os problemas que estava enfrentando. Além desse encontro, outros ciclos de protestos ocorreram, seja em Belém, em Tucuruí ou em outros municípios, em especial os chamados “grito da terra”, organizados por um conjunto de entidades ligadas ao sindicalismo rural e os “encontros de anilzinho”, promovidos pela prelazia de Cametá durante toda a década de 1980 e o início da década de 1990. Esse conjunto de mobilização buscou sensibilizar a opinião pública e o fortalecimento da identidade do próprio movimento, a identidade de “atingidos”. Nesse contexto, segundo Castro (1989), foi fundamental o trabalho da CPT que, tomando como base organizativa a comunidade, reforçou as atividades de conscientização política sobre os problemas concretos enfrentados pelas comunidades no seu cotidiano.

Nesse

processo, dava-se um complexo processo de organização política e de afirmação identitária envolvendo “um misto de simbolismo religioso e reflexão sobre o real” que se tornaram traços fortes na constituição do movimento camponês nessa região da Amazônia. Na construção da consciência e da identidade política, “mesclam-se aos rituais religiosos (procissões, missas...), os cânticos de luta pela terra e pela conquista da cidadania afirmando com veemência o desejo de „libertação dos povos‟” (p.67). Com essas vivências o movimento dos expropriados formulou propostas inicialmente de caráter geral sobre a legalidade de seus direitos, aprendendo a analisar politicamente suas condições concretas com base em categorias estruturadas em princípios doutrinários da “igreja dos pobres”, tais como: povo, solidariedade, comunidades, justiça, igualdade etc. e que, inegavelmente, contribuíram com a recriação do nós, da união que iria constituir a força e a arma do movimento. Essas práticas estão presentes nas comunidades dos municípios abrangidos pela Prelazia de Cametá, a montante e a jusante da barragem. Esse processo de politização enriqueceu-se com as experiências dos municípios próximos, no sul/sudeste do Pará, região marcada há mais tempo por intensos conflitos (camponeses, posseiros, garimpeiros, extratores, índios) e em decorrência, com um grau

239

considerável de experiências nos confrontos políticos (CASTRO, 1989: 67). O processo de formação da identidade dessas populações envolve mobilização política, investimento emocional e crença religiosa numa ampla rede de sociabilidades densa de interações, de trocas emocionais e afetivas que articulavam o movimento tanto a montante quanto a jusante. É nesse contexto que o movimento ganhou mais legitimidade social nas bases, sobretudo a partir do momento em que a população constatou que os benefícios prometidos não se concretizaram com a formação do lago e o funcionamento da hidrelétrica. Nesse sentido, Castro acrescenta que: A construção da identidade “atingidos por barragem” no Tocantins traduz um longo exercício na aprendizagem da prática política, não poucas vezes pela pedagogia do ensaio e erro, descobrindo as ações coletivas, os elementos unificadores nas situações concretas de conflito. Os direitos à terra que ocupam – ou de que são proprietários - e ao trabalho nela incorporado, encerra os elementos-chave mais imediatos que reforçam os traços políticos culturais identificadores e mobilizadores, sobretudo no reconhecimento de que as conquistas dependem de como serão encaminhada as ações coletivas. Processo que traduz a própria constituição dos sujeitos políticos agindo sobre condições determinadas interna e externamente ao seu meio (CASTRO, 1989: 68). Nesse processo de construção de uma capacidade organizativa e de uma identidade política, a mediação política de atores sociais externos foi fundamental. Esses mediadores eram entidades governamentais e não governamentais:

Igreja

(religiosa),

dirigentes

sindicais

(sindical),

intelectuais locais (com ou sem vinculação partidária). Essa rede foi decisiva para o fortalecimento do movimento. Desse conjunto, destacam-se: A Comissão Pastoral da Terra que manteve um serviço constante de apoio, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – CONTAG que permitiu o intercâmbio de experiências com outros movimentos de atingidos, como, por exemplo, o movimento de Itaparica e Itaipu. Essas instituições mediadoras deram sustentação à organização e à constituição do Movimento de Resistência, inicialmente manifestado através da Comissão dos Expropriados, depois da Comissão dos Atingidos pela Barragem (CMB, 2000).

240

Nesse processo de lutas, uma das maiores conquistas foi a construção da linha de transmissão que permitiu o fornecimento da energia elétrica produzida pela barragem do rio para os municípios do Baixo Tocantins a jusante como Baião, Mocajuba, Cametá, e Oeiras do Pará, entre outros, pois, apesar dos danosos impactos produzidos pela construção da hidrelétrica, esses municípios ficaram mais de uma década, após o funcionamento da hidrelétrica, sem ter acesso

à energia, enfrentando

graves problemas de fornecimento de energia devido ao colapso do sistema termoelétrico que os abastecia. A conquista do acesso à energia envolveu uma intensa luta dos movimentos sociais que atuaram através de protestos, mobilizações e ocupações, bem como pela pressão ao governo através de parlamentares e lideranças religiosas etc. Mais recentemente, os movimentos sociais adquirem uma outra conquista significativa, pois a ELETRONORTE, depois de quase duas décadas, admitiu os impactos causados pela barragem do rio, abrindo, a partir de 2002, um amplo processo de negociação e construção de um plano de recompensas para os municípios a jusante, o chamado PPDS-Jus (Plano Popular de Desenvolvimento Sustentável da Região A Jusante da UHT). Nele, a ELETRONORTE assume sua responsabilidade social pensando, construindo e conduzindo o desenvolvimento regional juntamente com as populações da região a jusante da UHE Tucuruí (PPDS-Jus, 2003). Na redação final do documento é definido que: O PPDS-Jus se apresenta como um plano viável para o desenvolvimento sustentável da região a jusante da barragem de Tucuruí, se estendendo num horizonte de 20 anos. Implica em (a preposição existe no documento?) conhecer os dados, índices, valores, condições sócio-econômico-políticas do momento atual, que sob a ação dos agentes de transformação apontadas pelo Plano sofrerão modificações capazes de instaurar um novo cenário ao longo dos projetados 20 anos. Esse futuro novo cenário será atingido por etapas sucessivas, com mensuração e acompanhamento técnico que garantam a correta condução e direcionamento deste plano popular (PPDS-Jus, 2003:11). Trata-se de um “amplo pacto social, assinado entre prefeitos municipais, vereadores, movimentos sociais organizados, instituições de

241

pesquisas, religiosas, órgãos públicos e privados, ONG´s, comunidades indígenas e quilombolas etc.” (PPDS-Jus, 2003:7). Contudo, apesar do avanço na participação democrática, na construção participativa das demandas, efetivamente, ainda não se pode ver resultados significativos desse plano. Mas, para além dessas conquistas mais visíveis, um aspecto positivo fundamental nesse processo foi, indubitavelmente, o grande acúmulo de experiências e um grande aprendizado político proporcionado aos movimentos sociais. Isso implicou a construção de uma densidade histórica e de legitimidade política desses movimentos, proporcionando a emergência de uma nova cultura política, fruto da construção de “políticas culturais” que afetaram as tradicionais formas de fazer política, bem como o deslocamento e a fratura das velhas representações e dos discursos sobre a identidade dessas populações, pautados numa visão racista e colonialista que se personifica no estereótipo do “caboclo”. novas

representações

e

discursos

que

Nesse processo, emergem apontam

para

horizontes

emancipatórios a partir da produção de novas identidades políticas. 4.6. Lutas sociais, protagonismo político e a constituição de novos sujeitos ligados ao mundo da pesca em Cametá O município de Cametá é oriundo do processo de povoamento da Amazônia efetuado pelos portugueses, nos séculos XVII e XVIII, sob uma lógica geopolítica de defesa do território contra outros povos invasores. Como a região Amazônica não se inseriu de forma imediata e decisiva na lógica mercantilista do Estado português, o qual privilegiava outras parcelas do território brasileiro – que tinham recursos mais estratégicos para aquele momento da emergente economia capitalista – a vasta região ficou secundarizada nos interesses da Coroa Portuguesa. A região despertou interesses de outras empresas colonizadoras: os

franceses,

os

espanhóis,

os

ingleses,

entre

outros.

Havendo

a

possibilidade de perda deste território, o governo lusitano optou pela colonização a partir de uma visão estratégica de defesa, criando fortes e fortalezas, sobretudo no vale amazônico, definindo e controlando o acesso dos fluxos de entrada e saída pelos rios.

242

Assim, a estruturação e a configuração da rede de núcleos populacionais e, mais tarde, da rede urbana na região, está intimamente ligada aos rios, e é o padrão de drenagem da rede hidrográfica o principal elemento norteador das relações entre os lugares. Nessa perspectiva, o rio torna-se o principal elemento da circulação do espaço regional e um fator essencial

na

geopolítica

de

defesa

do

território

dos

colonizadores

portugueses. Um desses rios, que se constituía como verdadeiro portal de aceso à região, ligando-a ao território nacional, era o rio Tocantins. É na margem

esquerda

deste

rio

que,

após

a

fundação

de

Belém,

os

colonizadores estabeleceram um núcleo que daria origem à cidade e ao Município de Cametá. Segundo Moura (1986), esse processo de colonização que se dá pela “força da espada, da pólvora e da cruz”, e os interesses mercantilistas e cristãos chegam juntos ao solo da Amazônia. Em 1617, Frei Cristóvão de São José se estabelece às margens do Tocantins e ergue o maior símbolo de uma ordem sóciocultural e territorial: uma ermida (igreja), grafando na paisagem as marcas da força do colonizador, e por meio da catequese imprimindo o “processo civilizatório” nos índios da tribo Camutá. Isso se materializa

no

domínio

dos

gentios

e

na

estruturação

do

núcleo

populacional. Segundo Pompeu (2002) a donataria de Cametá foi concedida em 14 de dezembro de 1633 a Feliciano Coelho de Carvalho por ato de doação de seu pai Francisco Coelho de Carvalho, então Governador do Maranhão e do Grão-Pará. A sua extensão territorial foi marcada por Carta Régia de 26 de outubro de 1637. Desta maneira o povoado é elevado à categoria de vila, com o nome de Vila Viçosa de Santa Cruz de Cametá, cuja instalação aconteceu em 24 de dezembro de 1635. Moura (1986) afirma que a vila permaneceu sem grandes mudanças, como era típico da região na época. As atividades do comércio, do extrativismo, da pequena agricultura, da administração e da catequese constituíam-se como principais funções do núcleo populacional. Já no século XIX, a 24 de outubro de 1848, a vila é elevada à categoria de cidade e experimenta

um

relativo

“desenvolvimento

urbano”,

marcado

pela

243

transformação do espaço por obras de infra-estrutura que demonstravam uma certa modernização, o que implica em um grande destaque da cidade na região Amazônica. As mudanças da condição de Colônia para Império e deste para Republica pouco alteraram as relações sociais e a vida cotidiana da maioria da população na Amazônia, e mais especificamente de Cametá. Ocorre que, de uma forma mais geral, a Amazônia ficou fora do circuito de influência do centro do poder nacional, estruturando-se a partir de uma lógica própria ou sendo influenciada mais decisivamente por suas relações internacionais, em especial com a Metrópole portuguesa. Esta situação, de um cotidiano de “inércia”, é assim descrita por Moura apud Pompeu (2002, p.27):

Daí em diante, em cerca de quase dois séculos, a história da Vila de Santa Cruz passou quase ignorada num remanso da paz doméstica, por entre o labor dos lavradores de mandioca, milho, arroz, café dos plantadores de cacau e algodão, de que o distrito começou a se mostrar sáfaro e dos extratores de óleo de copaíba e azeite de andiroba, que tanto abundavam nas matas vizinhas. A economia cametaense historicamente esteve baseada no extrativismo de produtos tais como: cacau, andiroba, ucuúba, castanha, borracha, açaí, palmito, na pesca e na agricultura de subsistência. Estas atividades constituíram, ao longo da história do município, os meios de sobrevivência para a maioria da população, assim como a fonte de lucros para uma elite mercantil, que historicamente tem explorado as populações rurais e ribeirinhas via o mecanismo de aviamento, o que resultou num contraste social marcante: de um lado, a permanência da maioria da população nas ilhas, povoados e vilas vivendo em precárias condições. De outro, as famílias de comerciantes que viviam na cidade e ostentavam riqueza. A lógica de funcionamento da economia extrativa em Cametá estava pautada no sistema de aviamento, o qual era mantido por comerciantes e empresários quase sempre descendentes de estrangeiros (portugueses, turcos, libaneses, judeus etc), e, muito raramente, por

244

nativos da região tocantina egressos do extrativismo. Segundo Souza (2002): [...] era comum a ação integrada de uma família ou de um grupo de estrangeiros, compatrícios, comerciantes que estabeleciam a cadeia de aviamento entre as ilhas, a cidade de Cametá, a região de terra firme e a cidade de Belém. Esses grupos eram responsáveis, em Cametá, pela cadeia de circulação dos produtos extrativos e pelo abastecimento dos seringais com os produtos necessários à reprodução social dos camponeses ribeirinhos extratores de borracha (Souza, 2002:55). Segundo Souza (2002), esse sistema de exploração e circulação dos recursos naturais em Cametá possibilitou a reprodução social dos camponeses ribeirinhos e a formação de uma elite mercantil que sustentou o aviamento, em torno do qual se tornou possível a aquisição de outros bens, além de terras para o extrativismo vegetal. O referido autor descreve o funcionamento desse sistema em sua dinâmica sócio-geográfica.

Os produtos importados, trazidos das casas aviadoras de Belém para Cametá e que se destinavam ao abastecimento das populações das ilhas, eram fornecidos por um irmão, um parente, ou compatrício, comerciante que estabelecia residência nas ilhas, às margens de um rio, nas proximidades da área coletora de borracha e de outros produtos comercializáveis. Ali eram construídos verdadeiros casarões, que funcionavam como residências e pontos comerciais no mesmo espaço físico. Por se tratar de área sob a incidência da maré, eram construídas casas elevadas do solo sobre os pilares de madeira e ligadas ao rio por um grande trapiche, onde atracavam as embarcações com mercadorias para o abastecimento dos camponeses extratores e com produtos da floresta trazidos para o comerciante. Esses grandes comércios eram pontos de abastecimento das famílias de camponeses, ribeirinhos e extratores, e ponto de coleta dos produtos de interesse de comerciantes (SOUZA, 2002:63). O sistema de aviamento possibilitava a agregação de valor não na esfera da produção, mas, sobretudo, na esfera da circulação de produtos, na qual o valor agregado ficava com o comerciante, pois ele era o agente que controlava a cadeia de circulação de tais produtos. Assim, de um lado o sistema de aviamento possibilitou a criação de uma elite comercial afortunada em Cametá, de outro este sistema resultou na formação de

245

amplas camadas de camponeses pauperizados, tanto na região das ilhas quanto na região de terra firme (SOUZA, 2002:63). Esta lógica de exploração econômica das populações rurais e ribeirinhas em Cametá também se materializava na constituição e na configuração das formas de dominação expressas no poder político local, pois as famílias tradicionais de comerciantes normalmente, também compunham a elite política. Aliás, a própria lógica do aviamento forjava relações de compadrio e lealdade política, visto que neste sistema de trabalho e troca em torno do qual estruturava a relação patrão-cliente, a ausência do dinheiro sob o controle do camponês funcionava como uma forma de atribuição de poder ao comerciante-aviado-patrão, pois gerava uma total dependência do camponês/extrator em relação ao comerciante:

Embora cotidianamente o ribeirinho não precisasse de dinheiro para sobreviver, porém em situação de desespero (doença ou morte) o dinheiro era indispensável. E, nesse caso, somente o comerciante poderia ajudá-lo. O estreitamento das relações entre o camponês ribeirinho e o comerciante criava em ambos uma sensação de segurança: para o comerciante gerava expectativa de ter um trabalhador e cliente leal; para o extrator gerava a expectativa de poder dispor de uma “ ajuda” – como retribuição de lealdade- em dinheiro ou em forma de serviço. (SOUZA, 2002:59-60). A relação baseada na lealdade, no compromisso e na troca que ocorria no nível econômico era sacramentada, sobretudo no âmbito religioso, por meio das relações de compadrio que geravam o compromisso e a lealdade entre o afilhado e o padrinho. Esse compromisso era também transposto para o domínio do político, o que gerava a expectativa de reciprocidade entre o eleitor e o candidato a um cargo de poder na esfera publica. Era muito comum os casos de comerciantes, grandes proprietários, aviadores e políticos convidados para serem padrinhos de batismo, crisma ou casamentos de filhos e parentes ribeirinhos (Souza, 2002). No município de Cametá as relações políticas e o exercício do poder estiveram historicamente marcados por essa forma de dominação, pautada em práticas paternalistas e assistencialistas que têm nas relações de compadrio o seu alicerce. Essa cultura política baseada no autoritarismo

246

e na dominação da maioria da população e, em especial, das populações rurais e ribeirinhas, manteve-se e nutriu-se durante muito tempo nas práticas econômicas, sedimentadas no sistema de aviamento e no campo cultural

pelo

domínio

das

relações

religiosas,

ligadas

às

chamadas

irmandades de Santo e pela afirmação da memória e identidade dos homens “notáveis”. Esse sistema de exploração econômica e dominação política resultava no fortalecimento de uma elite mercantil e, ao mesmo tempo, de uma

cena

política

sob

o

domínio

das

oligarquias

familiares.

Essa

configuração do poder local vai permanecer absolutamente hegemônica e estável até o final dos anos 1960, quando surge um movimento que começa a esboçar os primeiros contornos de resistências ao exercício do poder econômico, político e religioso em Cametá. O marco desse processo é a reorientação da forma de atuação da prelazia de Cametá na região do baixo Tocantins. Até por volta de 1952 a ação pastoral em Cametá era orientada a partir da arquidiocese de Belém, não havendo envolvimento direto da ação pastoral nas práticas de organização comunitária de caráter mais político. Mas a partir do início da década de 50 a Prelazia ganha autonomia e passa a controlar um vasto território que envolvia diversos municípios. Contudo, até 1969, essa atuação da Prelazia de Cametá era alinhada com as elites comerciais e políticos locais, não apresentando nenhuma resistência institucional ao poder das oligarquias, nem no que se refere à prática de um catolicismo popular centrado na devoção de santos padroeiros – e não questionando o modelo de irmandades organizadas por leigos. Contudo, no final da década de 1960, uma nova direção assumiu a prelazia de Cametá e procedeu a uma avaliação da ação pastoral, juntamente com um estudo da realidade econômica e social da Prelazia. A partir desse estudo e avaliação considerou-se como problemas a serem enfrentados pela ação da Igreja em Cametá duas questões: A ausência de atividades produtivas que garantisse a sobrevivência dos camponeses e a falta de participação dos fiéis. Para enfrentar os dois problemas diagnosticados, a Prelazia de Cametá estabeleceu um plano de pastoral das comunidades, onde foram definidas duas frentes de atuação como prioridades a

247

serem assumidas pela ação pastoral: a criação das CCs (Comunidades Cristãs) e a linha de crédito destinada a incentivo de atividades produtivas (SOUZA: 2002: 106). Essa nova linha de orientação e atuação pastoral estabeleceu como prioridade a organização de comunidades cristãs e o apoio às atividades produtivas e de comercialização comunitária, colocando a Igreja Católica como uma instituição em posição de confronto com a hegemonia da elite local e com a atuação dos leigos dirigentes das Irmandades responsáveis pelo catolicismo popular centrado nas festas de santos padroeiros, visto que: Com o novo plano pastoral das comunidades estabelecido pela hierarquia da Igreja católica, que objetivava a organização de comunidades cristãs sobre o controle da hierarquia eclesiástica, essa instituição entrou em rota de colisão com os dois sustentáculos básicos do modo de organizar a vida social em Cametá, os santos padroeiros e os comerciantes patrões, duas personagens que representavam a expectativa de segurança dos devotos e clientes (SOUZA, 2002:77). Assim, o novo plano de pastoral das comunidades implementado pela Prelazia re-significa o papel da religião Católica em Cametá e a Igreja deixa de exercer o seu papel de instituição legitimadora da lógica do compromisso, da lealdade e da reciprocidade, que fundamentava as relações patrão-cliente, santo-devoto, candidato-eleitor, dissimulando o sistema de exploração que ocorria no domínio econômico e perpassava os demais domínios da vida social (SOUZA, 2002) para se tornar uma instituição com papel decisivo na fermentação de outra cultura política em Cametá - uma cultura política fundamentada na participação e na organização comunitária popular. É nesta perspectiva que a formação das chamadas comunidades eclesiásticas de base ou simplesmente comunidades cristãs tornaram-se o alicerce fundamental dessa nova cultura política, pois é neste processo de organização comunitária que vão se forjar as lideranças que mais tarde vão se tornar protagonistas na formação de entidades associativas e de organização política, que vêm sendo decisivas na vida política do município nos últimos anos.

248

Houve também outros importantes agentes nesse processo. É o caso da Federação dos Órgãos de Assistência Social e Educacional - FASE -, que no final dos anos 1970 teve um papel muito importante no processo de politização dos trabalhadores rurais em Cametá. Mas a influência da Igreja foi tão forte e decisiva na redefinição da dinâmica política do município que podemos verificar que hoje todas as entidades e organizações, e quase a totalidade das lideranças no município de Cametá, são tributárias do intenso processo de formação política na Igreja e pela Igreja, em especial, a partir dos anos setenta e até o inicio dos anos 1990; quando esta assumiu uma linha de atuação progressista baseada no princípio da “fé e política”, sendo decisiva na formação de uma nova cultura política, que primava pela participação política e o protagonismo das populações trabalhadoras em Cametá. Como legado desse processo de atuação da Igreja Católica, é possível

destacar:

a)

As

Comunidades

Cristãs;

b)

O

Sindicato

de

Trabalhadores Rurais de Cametá - STR; c) A Colônia de Pescadores - Z 16; d) A Organizações Não-Governamentais (como o Centro Miriti e o IDEAS); e) Os partidos políticos (em especial o Partido dos Trabalhadores - PT) e f) E ainda um conjunto de associações de trabalhadores rurais, associações de bairros, associações de mulheres, associações de preservação ambiental etc. Assim, o trabalho de formação comunitária da Igreja construiu um legado que se materializou num fortalecimento da sociedade civil com maior capacidade de organização e mobilização popular. A atuação da Igreja e o conseqüente fortalecimento da capacidade de organização comunitária e política foram construídas na base, sobretudo, com as comunidades rurais e ribeirinhas do município. Essa força da sociedade organizada está expressa numa pesquisa feita pelo Conselho Mundial de Igrejas, com sede em Genebra, onde foram levantadas as cidades mais politizadas do Brasil: Da Amazônia, excluindo-se as capitais, apenas a cidade de Cametá está entre as 100 mais politizadas. A pesquisa indicou que os municípios de Santa Maria e Pelotas, ambas no Rio Grande do Sul, apresentam a população com maior interesse pela política do País. Cametá está em septuagésimo lugar. Na pesquisa entre

249

as capitais, Belém ficou na vigésima colocação (Jornal O Liberal, 2003). Como já afirmamos, os movimentos sociais e a sociedade civil organizada em Cametá têm a base de sua composição nas organizações de entidades ligadas às populações rurais e ribeirinhas. Assim, a Colônia dos Pescadores Z-16, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais - STR, um conjunto de associações de créditos, associações de mulheres, associações de preservação ambiental, grupos ligados a dinâmica pastoral da Igreja, as comunidades cristãs, a base do Partido dos Trabalhadores, a base de atuação das organizações não-governamentais estão localizadas fora do núcleo urbano de Cametá, concentradas na zona rural e, em especial, nas ilhas. Daí o destaque nesse conjunto, do papel da colônia dos pescadores como protagonista nas mobilizações e lutas sociais e políticas no município e na região. Esse

conjunto

de

movimentos

de

trabalhadores

rurais

e

ribeirinhos em Cametá vem lutando pela garantias de melhores condições de produção e reprodução social, o que se expressa especialmente na luta por créditos e financiamentos para a agricultura familiar, para as atividades extrativistas e para a pesca artesanal. Essas organizações sociais buscam superar as condições históricas de miséria e exploração que essas populações vivenciaram, em especial pela lógica e legado do aviamento, que foi o principal mecanismo de enriquecimento da elite mercantil no município. No caso específico dos ribeirinhos, o nível de dificuldade para sua reprodução social foi fortemente agravado por conta dos profundos impactos negativos que a construção da UHT provocou na dinâmica ecológica e econômica das áreas de várzeas, o que afetou de maneira dramática os recursos pesqueiros e o extrativismo, base essencial na lógica produtiva e reprodutiva do modo de vida dessas populações. A luta desses movimentos sociais é também pela superação das formas de dominação política que se consolidaram historicamente no município, a partir do fortalecimento do sistema político oligárquico com base no domínio de algumas famílias (Mendonça, Parijós, Peres, entre outras) que se revezavam no exercício do poder municipal. Essa cultura

250

política tem se sustentado através de práticas políticas autoritárias, assistencialistas

e

populistas,

pautadas,

sobretudo

nas

relações

de

compadrio e mandonismo político que se sustentam pela extrema miséria da grande maioria da população, em especial das populações rurais e ribeirinhas que se tornam extremamente vulneráveis a essas práticas políticas, pois, num quadro social onde a grande maioria fica à margem de políticas públicas que garantam os direitos básicos como educação e saúde, florescem as políticas assistencialistas com fins eleitorais. Neste sentido, os movimentos sociais vêm nas últimas duas décadas

tentando

romper

com

essa

cultura

política

autoritária,

assistencialista e populista, buscando novos valores que garantam o protagonismo dessas populações como atores importantes no espaço público e como sujeitos de direitos. Desse modo, procuram construir uma nova cultura política pautada em valores como a organização popular, a participação democrática e a autonomia política. No plano mais institucional o resultado mais significativo tem sido a eleição de vereadores ligados aos movimentos, sobretudo a Colônia de Pescadores e o Sindicato de Trabalhadores Rurais, bem como a eleição em 2000 de um prefeito do partido dos trabalhadores ligado a esse movimento, rompendo um ciclo histórico de domínio das oligarquias familiares. Mas, para além desse quadro institucional que é algo significativo, é importante enfatizarmos que essa nova cultura política permitiu um processo de politização da cultura ou construção de “políticas culturais” que implicaram na produção de uma consciência da condição ribeirinha, o que parece ser um dos mais significativos produtos desse processo. Pois essas lutas

são

por

redistribuitivo,

demandas embora,

políticas esses

e

econômicas

movimentos

de

caráter

mais

também

lutem

pelo

reconhecimento de suas condições socais e culturais a partir da afirmação de suas identidades. Esse processo vem se dando através da “politização de sua cultura” e do seu modo de vida, lutando contra um conjunto de estigmas e preconceitos personificados no estereótipo do trabalhador rural e do ribeirinho como “caboclo”. (Mais adiante voltaremos a enfatizar esse processo de politização da cultura na construção de uma identidade ribeirinha).

251

Nesse quadro se destaca o papel da Colônia de Pescadores de Cametá Z-16, por sua intensa atuação na organização dos pescadores e na luta pela qualidade de vida das populações ribeirinhas. Contudo, apesar de existir desde 1923, só recentemente esta entidade assume uma postura política voltada para a defesa dos interesses dos pecadores, visto que na sua origem as colônias foram criadas como órgãos diretamente ligados aos interesses do Estado, como nos falava o presidente da colônia em 2005, hoje atual vereador pelo partido dos trabalhadores: O movimento dos pescadores, ele surgiu mesmo aqui na nossa região a partir da década de 80, organizado pela igreja, pela Pastoral dos Pescadores, né? E nós começamos a nos organizar nas comunidades de base e uma das diretrizes da Igreja era a organização social e os pescadores precisavam e precisam ainda muito de se organizar. Nesse período a colônia já existia, a colônia de Cametá ela foi fundada em 23 de junho de 1924, mas ela não tinha assim um desempenho em favor mesmo da categoria, a história nos dias que ela estava atrelada ao sistema que comandava. Até quando foi fundada as colônias ela não tinha a prioridade principal organizar os pescadores para exercer os seus direitos de cidadania (Iracy de Freitas Nunes , ex-presidente da colônia dos pecadores de Cametá -Z16 e atual vereador pelo partido dos trabalhadores entrevista: junho de 2005). Criadas a partir de 1919 por interesse da Marinha de Guerra do Brasil, as Colônias de Pesca, segundo Mello (1995:26), deveriam cumprir dois objetivos principais: a) a utilização militar dos pescadores e suas embarcações no controle da costa brasileira e rios interiores (tal qual se sucedia em outros países, como a Inglaterra) e b) seu aproveitamento enquanto trabalhadores livres em empreendimentos de interesse do capital urbano-industrial que, sobretudo, a partir dos anos 1920/30 despontava como fração hegemônica da burguesia nacional. Teoricamente representando os pescadores, as colônias na realidade foram criadas e geridas pelo Estado e desempenharam papel de órgãos reguladores, mais do que de representação, visto que foram criadas de cima para baixo, sem o aspecto participativo e decisivo dos pescadores (Leitão, 1996). É nesse quadro que a colônia de pescadores de Cametá foi criada e foi mantida durante décadas na mão de pessoas que não tinham

252

nada a ver como as populações ribeirinhas e não tinham afinidade alguma com os interesses dos pescadores. Esse quadro em Cametá era generalizado por toda a Amazônia e só começa a se modificar, segundo Mello (1995), com a abertura política, com o fim do regime militar e a rearticulação do movimento sindical em todo o país, pela influência das principais lideranças do sindicalismo rural no Pará e o apoio de entidades ligadas, sobretudo à Igreja (em especial a Comissão Pastoral da Terra, FASE, e ainda a recém criada Comissão Pastoral Pesqueira, que tem sua origem no final dos anos 1980). Algumas tentativas de reversão desse quadro foram tentadas na região, a começar pelas eleições de 1982, em Santarém (PA), que conduziram pela primeira vez pecadores à direção de uma Colônia na historia do país. Ainda

de

acordo

com

Mello

(1995)

foi

a

partir

daí,

e

particularmente em função destes movimentos de base da sociedade civil, que surgiram no Brasil em meados dos anos1980, o Movimento pela constituinte da Pesca, influenciado pelo apoio da Comissão Pastoral Pesqueira Nacional/CNBB (e suas ramificações regionais), Sindicatos de Trabalhadores Rurais, Partido dos Trabalhadores e outras lideranças político-partidárias. Esse movimento tinha como objetivo convocar todos os pescadores do país para discussão e elaboração dos novos princípios regulamentadores para as Colônias de Pesca, a serem defendidos junto aos parlamentares constituintes. Desse movimento resultou, conforme Leitão (1996), a mudança na constituição, apontando para o direito à liberdade organizativa, a autonomia e não-interferência do poder público na organização sindical, assim como a equiparação das colônias de pescadores aos sindicatos. Esse novo quadro jurídico e político possibilitaram a ascensão dos pescadores às diretorias das colônias. Contudo, esse processo tem se dado de maneira lenta e desigual e muitas vezes conturbado. Em Cametá já havia uma forte organização sindical ligada ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais existente desde o final dos anos 1970 e com uma diretoria progressista a partir do início dos anos 1980, muitos dos sócios e líderes do movimento sindical na verdade eram pessoas da região das ilhas e tinham como atividade fundamental a pesca, mas devido à

253

Colônia dos Pescadores ser uma entidade que não primava pelos seus interesses, os pescadores vivenciavam sua militância junto ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Mas a partir de 1982 a prelazia de Cametá passou a fazer um intenso trabalho de conscientização dos pecadores através de visitas às comunidades ribeirinhas, encontros, cursos etc. Este trabalho proporcionou a constituição de uma base de organização que começa a se projetar na direção de assumir o controle da colônia de pescadores. Contudo, isto só ocorre a partir da reformulação da constituição e dos novos marcos jurídicos que permitiram a liberdade e autonomia de organização. É somente nesse novo contexto que os pescadores conseguiram alterar o Estatuto e criar condições de eleições que permitissem a ascensão dessa categoria ao controle efetivo da sua entidade de representação. Depois de um conturbado

processo,

onde

representantes

da

oligarquia

local

que

dominavam historicamente a colônia impediram de forma autoritária o controle de fato e de direito dos pescadores, esse processo teve como desfecho a tomada plena do controle da entidade pelos pescadores. A fala do ex-presidente da colônia relata bem esse processo: A partir dos anos 80 começamos a travar essa luta e conseguimos ganhar a colônia de Abaetetuba para mãos dos pescadores, depois a colônia de Santarém já através do movimento estadual e já tinha o movimento nacional (...) e já em 1990 nós conseguimos ganhar aqui a colônia de Cametá (...). Na época a colônia tinha 30 fichas, trinta sócios. A partir daí (...) começamos a fazer um trabalho mais diferente, apesar de nós sofrer assim, uma certa pressão dos associados para querer aquela situação do assistencialismo, aquele modelo (....) de lá então a gente passou a fazer um trabalho de base, a organizar os pescadores na base, mas estava muito desorganizado, a maioria dos pescadores não estavam matriculados por que eles não tinham documento,não sabiam dos direitos que podiam ter né, com isso muitas pessoas não tinham condição de se aposentar, de requerer um benefício, então nós fizemos o seguinte, nós descentralizamos o trabalho aqui da colônia e formamos as coordenações de base (....) hoje nós temos 7.500 associados, mulheres e homens. (Iracy de Freitas Nunes, ex-presidente da Colônia dos Pescadores de Cametá –Z16 e atual vereador pelo partido dos trabalhadores, entrevista: junho de 2005).

254

Até esse momento histórico, apesar de uma experiência nas lutas contra os impactos da hidrelétrica sob a liderança do sindicato e da prelazia, os ribeirinhos, os pescadores, ainda apresentavam um baixo nível de organização pela ausência de uma entidade capaz de representar de fato seus interesses, isso estava expresso numa baixa auto-estima, numa invisibilidade política revelada pelo vereador José Fernandes, ex-presidente das colônias dos pescadores: Quando nós assumimos a colônia, a situação era muito complicada, os pescadores nem eles se identificavam, a gente chegava nas comunidades eles tinham título, mas não tinha certidão, quer dizer foi um grande trabalho para documentar, pois nem se identificar como pescador se identificavam, na verdade (...) naquele momento nós analisávamos que os políticos usam como trampolim, sabe, na verdade não tinha interesse em organizar, em mostrar os direitos deles, inclusive nessa época quem dava a declaração para aposentadoria era o sindicato dos trabalhadores, davam pros pescadores (...) Ai aos poucos com dificuldade nós fomos aos poucos organizando, primeiro a questão da documentação(..) para que a colônia de fato se tornasse representatividade e graças a Deus aos poucos nós fomos construindo isso, fomos construindo. Ai nós já começamos a declarar o pescador até porque em órgãos como INSS a Colônia era desacreditada (...) assim nós fomos dando passos devagar, assim conseguimos organizar os direitos previdenciários que são direitos já legais e garantidos (...) depois nós fomos compreendendo que não bastava só isso, que nós tinha que lutar por outros objetivos, lutar pelo financiamento, melhorar a condição de vida desse pessoal, porque os direitos constitucionais já eram garantidos(...) mais que tínhamos que avançar por exemplo as políticas públicas, qual é a intervenção de nossa entidade em relação a isso? E esse é um debate que nós começamos fazer, como é que nós vamos agir para fazer para melhorar a qualidade de vida dessas pessoas, haja visto que só do ponto de vista assistencialista não vai resolver? (...) (José Fernandes, vereador e ex-presidente da colônia de pescadores, entrevista concedida ao autor: junho de 2005, grifo nosso). Isso mostra que apesar dos pescadores compartilharem um conjunto de elementos semelhantes no “espaço vivido”, na “comunidade de vida” (o modo de vida, a cultura ribeirinha com seus saberes, fazeres e sociabilidades), não havia uma consciência sócio-espacial de pertencimento, uma “comunidade de destino” que valorizasse a condição ribeirinha. Somente com o fortalecimento da Colônia é que se inicia um processo de

255

politização da cultura e do modo de vida ribeirinho, que afirma o rio como espaço de referência identitária. Isso só vai a acontecer quando a afirmação do que é “semelhante” torna-se “interessante”, quando “ser pescador” implica na afirmação de direitos e acesso a recursos da sociedade. Isso mostra que a identidade não é construída em torno de um núcleo de autenticidade, de uma experiência cultural primordial (SILVA, 2003), mas é uma construção histórica de caráter estratégico e posicional (HALL, 2004) mobilizada na afirmação de um determinado grupo social na disputa por outros recursos simbólicos e materiais da sociedade. Pois, como nos afirma Silva (2004:81):

Na disputa pela identidade está envolvida uma disputa por outros recursos simbólicos e materiais da sociedade. A afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferença estão em estreita conexão com as relações de poder. O poder de definir a identidade e marcar a diferença não pode ser separado das relações mais amplas de poder. A identidade e a diferença não são, nunca, inocentes. (SILVA, 2004:81 grifo nosso). Dessa forma, a afirmação de uma identidade de pescador não se tratava da busca de um mero reconhecimento. A afirmação dessa identidade implicava em direitos que garantiam ter acessos a bens materiais e a melhoria de vida dessas populações como: a aposentadoria, o benefício ao seguro desemprego no período em que fica proibida a pesca e ainda acesso a financiamento de recursos do FNO via BASA (Banco da Amazônia), bem como o acesso a recursos oriundos de projetos advindos da cooperação internacional através de parcerias com OGNs locais. Isto explica o vertiginoso crescimento do número de associados e do grande fortalecimento da Colônia dos Pescadores Z-16, passando de 30 sócios para mais de 7 mil em pouco mais de uma década. A colônia hoje tem um papel diferenciado né, ela deixa de trabalhar o assistencialismo e parte para a questão de organização da busca de alternativa, porque com a construção da barragem ai modificou muito a nossa região, teve um impacto muito grande, esse impacto ai, ele causou o assoreamento do rio, a escassez do pescado; nós não temos uma água de qualidade

256

para a população ribeirinha, a educação sempre foi muito precária, sem falar na saúde que sempre foi muito ruim. Então, nós achamos o seguinte, dentro do nosso planejamento, a colônia não deve estar apenas, podemos dizer assim, a serviço da busca de benefícios da previdência e do seguro desemprego né, que também são benefícios que ajuda né, a aposentadoria, mas a gente ir mais além, procurando trabalhar fazer parcerias com governos, entidades, OGNs na busca de alternativas para melhorar a condição de vida dos pescadores ( Iracy de Freitas Nunes, presidente da Colônia dos Pescadores de Cametá –Z16 e e atual vereador pelo partido dos trabalhadores, entrevista concedida ao autor: junho de 2005). A força política do papel da colônia na busca da melhoria da qualidade de vida das populações ribeirinhas está expressa na quantidade significativa de recursos que tem convergido para a região das ilhas de Cametá, como demonstra o estudo de Costa (2003): [...] A quantidade total de recursos recebidos na forma de projeto (produtivo, manejo e/ou conservação ambiental e infra-estrutura) pelos camponeses das ilhas de Cametá, nos últimos 10 anos, estima-se que possam chegar a R$ 1,7 milhões de reais (incluindo os investimentos nacionais que conta com recursos da Prelazia, FNO/BASA e FNMA/MMA e estrangeiros a partir do PD/A e da casa familiar rural, com recursos do Banco Mundial, BIRD, PPG-7 e União Européia), esse dado não inclui os investimentos carreados pelas ONG‟s que atuam nas regiões das ilhas como IDEAS, o MIRITI e a APACC, entre as mais representativas e eficientes em captação de recursos, assim como não incluem os investimentos da Prefeitura Municipal de Cametá (PMC) nesta comunidade (COSTA, 2003: 197). Diante dessas significativas conquistas de recursos e de melhoria das condições de vida das populações ribeirinhas, essa identidade de “pescador”, ou melhor, “pescador artesanal” é a auto-identificação mais presente e mais usada entre os ribeirinhos, sobretudo, aqueles ligados a militância na colônia, trata-se de uma forma de identificação ligada a sua função ou a sua atividade produtiva. Essa afirmação da identidade de pescador é reforçada pelo discurso oficial dos órgãos estatais como os Bancos, o IBAMA, a Previdência Social e, agora, pela Secretaria da Pesca que possui um status de ministério no governo Lula. Esses órgãos constróem um conjunto de discursos e representações que influencia na maneira cotidiana de afirmação da identidade de “pescador” entre as

257

populações ribeirinhas, pois em todas as falas e documentos dessas entidades a identificação de “pescador artesanal” aparece como forma de identificar essas populações. Contudo, a afirmação de uma identidade ribeirinha ultrapassa e extrapola o espaço de organização e luta da colônia dos pescadores e se situa em uma dimensão mais ampla, pois nos últimos anos em Cametá ocorreram algumas modificações em diversos setores da sociedade que vem contribuindo para uma maior visibilidade da identidade ribeirinha. Um marco decisivo nessa construção foi a chegada ao poder municipal do Partido dos Trabalhadores que tem sua base de sustentação nas organizações ligada as populações rurais (Sindicato dos Trabalhadores Rurais - STR) e as populações ribeirinhas (a Colônia dos Pescadores Z -16). Após sucessivas candidaturas do PT, seja para o mandato de 48

vereador , seja para a Prefeitura Municipal, ampliou de maneira consistente o acúmulo de força eleitoral nas eleições de 2000, contribuindo para que a chapa Frente Popular Democrática Cametaense conseguisse vencer as eleições municipais. Nesse momento têm-se então no governo um representante forjado na intensa mobilização dos movimentos sociais, na luta pela melhoria das condições de vida das populações rurais e ribeirinhas. A chegada de um trabalhador (José Rodrigues Quaresma) à frente da administração do município, significou, pelo menos em tese, uma conquista dos trabalhadores. Assim, de 2001 a 2004 instala-se no município o “governo popular”. Essa administração que tem à frente o Partido dos Trabalhadores foi marcada por controvérsias, avanços e recuos, cuja análise foge ao objetivo desse trabalho, pois o que nos interessa em particular é verificar o que significaram as ações desse governo no processo de politização da cultura rural e, em especial, ribeirinha, e ainda qual o significado da ascensão dessas novas forças políticas na construção do discurso identitário em Cametá.

48

Registra-se que a Câmara Municipal de Cametá já vem integrando representantes do Partido dos Trabalhadores desde o mandato 1989 a 1992, tendo sido eleitos vereadores nesse mandato os nomes de Manuel Maria Rodrigues Louzada e José Maria de Jesus Cordeiro.

258

Nos últimos sete anos, forças políticas conservadoras ligadas as oligarquias locais retomaram o poder municipal muito dos avanços empreendidos na gestão de governo de origem mais popular retrocederam, contudo, uma cultura política de participação e fortalecimento de uma identidade cultural e política das comunidades rurais e ribeirinhas do município

de

Cametá

vem

progressivamente

aumentando

e

se

consolidando. Hoje, o principal ator político da sociedade civil no município é a Colônia dos Pescadores, uma entidade que demonstra grande capacidade de mobilização e de organização das comunidades ribeirinhas, esse fortalecimento também tem a ver com uma nova conjuntura a nível estadual e federal na qual o setor da pesca foi fortalecido pela criação de secretarias e ministérios, além de algumas políticas públicas que pela primeira vez foram direcionadas para os chamados “pescadores artesanais”, esse contexto favorável fortaleceu ainda mais o papel que essa entidade tem no contexto político local. Foi dentro dessa cultura política que se forjaram as lideranças e os movimentos que deram origem aos chamados “acordos comunitários de pesca” em diversas localidades do município, são essas experiências entendidas como uma estratégia territorial de reapropriação social do rio que iremos analisar no próximo capítulo.

259

“O terreno”

260

5. CAPÍTULO. ACORDOS COMUNITÁRIOS DE PESCA COMO ESTRATÉGIA DE REAPROPRIAÇÃO SOCIAL DO TERRITÓ-RIO. Para a análise dessa resistência, precisa-se superar, com firmeza, metodologias de pesquisa que, por sua rigidez, desconheçam atos tentativos de atores sociais marginalizados e submetidos a pressões que aumentam a sua exclusão da esfera pública. Cada gesto destes atores merece, ao nosso ver, atenção e apreço. A potencial unicidade de sentido indicada por estes gestos, por estes atos, muitas vezes só pode ser apreendida a partir de informações precárias e distorcidas. Nestes gestos, entretanto, pode haver um grito de revolta; a dor que busca alívio; a recusa da exclusão; a defesa de fortes valores compartilhados; o anseio por solidariedade; a denúncia de governantes; o sinal da esperança ainda preservada; a continuação de uma prática iniciada noutro lugar e noutro tempo; a possível superação da humilhação e da opressão.Concretamente, as lutas sociais sinalizam, ao mesmo tempo, o esgotamento de referências simbólicas da modernidade e a presença, ainda que somente experimental, de sujeitos sociais em busca de reconhecimento. (Ana Clara Torres Ribeiro, 2002) A interpretação dos sentidos da ação encontra-se em disputa em contextos marcados en decorrência do esgarçamento das relações sociais. Talvez caiba ao cientista social participar desta disputa, impedindo que gestos expressivos de carências sociais vividas em situações-limites sejam compreendidos, apenas, a partir do olhar das classes dominantes. Pensamos ser necessário oferecer interpretações alternativas da ação social, apoiadas no reconhecimento das características mais abrangentes das conjunturas econômica e política e na valorização de cada gesto de resistência do Outro. (Ana Clara Torres Ribeiro, 2002). 5.1.

Introdução

Nas últimas duas décadas, na America Latina, diversos grupos sociais indígenas, camponeses e as chamadas comunidades tradicionais vêm

261

assumindo um papel de protagonistas no que se refere às lutas pela reapropriação social da natureza (uma lógica não mercantil de apropriação). Esse processo significa não só a luta pelo controle dos recursos naturais e dos meios de produção necessários a sua sobrevivência, mas a luta para afirmação de modos de vida, de outras matrizes de racionalidade de usosignificado da natureza e a autogestão dos seus próprios territórios. Na Amazônia brasileira, desde final dos anos 1980, alguns movimentos reivindicação

sociais de

adotaram

direitos

como

territoriais.

principal Esses

bandeira

grupos

e

de

luta

a

comunidades

começaram a reivindicar que o Estado brasileiro reconhecesse as históricas formas de ocupação e apropriação da terra e dos recursos naturais, fundadas no uso coletivo ou familiar. É nesse embate que vão surgir diversas estratégias de reapropriação social da natureza, dentre as quais podemos destacar a luta pela criação das chamadas reservas extrativistas, iniciada pelo movimento dos seringueiros no Acre e que, depois, foi se ampliando como demanda de diversos grupos extrativistas por toda Amazônia. É nesse contexto de lutas por direitos territoriais e pela reapropriação social da natureza que diversos grupos de ribeirinhos e pescadores artesanais, em um embate contra as formas de apropriação privada e mercantil das áreas de várzeas, vêm inventando diversas táticas e estratégias territoriais de controle e reapropriação social de lagos, igarapés e rios na Amazônia. As áreas de várzeas, os rios, lagos e igarapés da Amazônia tornaram-se objetos de diversas formas de apropriação econômica, a partir da década de 1960, com o processo de modernização conservadora a que a região foi submetida. Essas apropriações vão desde a intensificação da pesca de caráter comercial, e muitas vezes de natureza predatória, até a construção de hidrelétricas, sem falar na apropriação para pecuária e agricultura comercial. Essas novas formas atingiram profundamente a vida daquelas comunidades que historicamente ocuparam essas áreas e, em muitos casos, os modos de vida dessas comunidades foram drasticamente afetados a ponto de ficar comprometida a própria sobrevivência desses grupos. Como forma de resistência e na busca por alternativas a essa nova situação, as comunidades ribeirinhas criam diversas formas de operações,

262

mecanismos, táticas e estratégias de controle e reapropriação dos seus territórios,

dentre

os

quais

vale

destacar

os

chamados

Acordos

Comunitários de Pesca. Esses

“Acordos” podem ser entendidos

como

uma dessas

estratégias territoriais de apropriação social da natureza. São instrumentos de gestão coletiva e comunitária dos recursos pesqueiros (podendo se estender a outros recursos naturais) que, através do diálogo entre os pescadores e os órgãos responsáveis pela legalização e fiscalização da atividade pesqueira, estabelecem normas de apropriação desses recursos. Em alguns casos esses acordos são regulamentados por meio de Portarias que possuem força de lei através de Instruções Normativas, mas, em outros casos, esses acordos não são reconhecidos legalmente, havendo, inclusive, em algumas situações, tensionamentos com o ordenamento jurídico vigente. Tais “Acordos” têm sido feitos com objetivo de reduzir as práticas de pesca predatória e aumentar a produtividade da pesca, garantindo o controle das comunidades sobre o seus recursos e territórios. A partir dos Acordos de Pesca, os pescadores adquirem a responsabilidade e a autonomia de gerir os recursos pesqueiros que estão disponíveis nos seus territórios, juntamente com os órgãos responsáveis pela fiscalização e legalização da atividade na localidade, através de um processo de cogestão dos recursos pesqueiros (gestão compartilhada). A participação dos pescadores na construção dos Acordos de Pesca produz identificações com as regras criadas, gerando um laço de identidade com esses acordos, fortalecendo o sentido de comunidade e facilitando o processo de monitoramento e cumprimento dos mesmos, mas não sem tensões e conflitos, como veremos mais à frente. Dessa forma, os acordos de pesca são um mecanismo de democratização da gestão dos recursos pesqueiros . Segundo CASTRO E MCCRATH (2001), o principal objetivo dos Acordos de Pesca é estabilizar ou reduzir a pressão sobre os recursos pesqueiros locais. Os “Acordos” normalmente tentam atingir esse objetivo indiretamente, através de restrições aos apetrechos de pesca e à capacidade de armazenamento, em vez de delimitar diretamente o tamanho

263

da

captura.

Além

frequentemente

de

incluem

regular medidas

a

atividade que

pesqueira,

pretendem

os

acordos

conservar

hábitats

considerados importantes para a população de peixes dos lagos, rios e igarapés. Apesar assumirem diversas formas de configurações e arranjos, os acordos tipicamente incluem algumas das seguintes medidas (CASTRO E MCCRATH, 2001: 114-115): Acesso ao Recurso Pesqueiro. A medida mais comum é proibir os pescadores, que não fazem parte da comunidade, de entrarem nos lagos, onde a pesca é principalmente orientada para a subsistência; esta medida é suficiente para restaurar ou manter a produtividade da pesca. Quando as maiorias dos pescadores comercializam sua captura, esta medida dificilmente é suficiente para manter a produtividade. Pesqueiro. Uma das formas mais fáceis de controlar a pressão sobre o recurso pesqueiro é restringir a comercialização da captura. Em alguns casos, a pesca comercial é totalmente proibida, enquanto em outros é restrita a certas espécies ou grupos de espécies, ou ainda a determinado período do ano. Há casos em que a comercialização do pescado é permitida somente dentro da comunidade, limitando a captura total às necessidades da comunidade como um todo. Apetrechos de pesca. As comunidades frequentemente proíbem o uso de um ou mais tipos de apetrechos durante todo ou parte do ano. O principal alvo dessa medida é a malhadeira, que é considerada a principal causa da pressão excessiva sobre os recursos dos lagos. Restringir o uso da malhadeira é considerada a forma mais efetiva de limitar o tamanho da captura. As malhadeiras podem ser permanentemente proibidas (frequentemente no caso da pesca de subsistência) ou durante parte do ano, normalmente na estação seca, quando os peixes estão concentrados em pequenos corpos d‟água. Além disso, acordos de pesca também podem proibir uma gama de tipos de apetrechos e técnicas de pesca, incluindo arrastões e redes de lancear, os quais podem ou não ser ilegais em alguns Estados amazônicos. Armazenamento. Uma outra maneira de restringir o tamanho da captura é limitar a capacidade de armazenamento. Existem várias medidas que comunidades podem adotar. Primeiro, a comunidade pode criar restrições sobre o tamanho ou o tipo de embarcação (barco a motor, por exemplo) que pode entrar no lago. Segundo, pode limitar o tamanho das caixas de isopor usadas para armazenar o pescado. Finalmente, pode proibir gelo e permitir somente o sal, a forma tradicional de preservar o pescado. A Conservação de Hábitat. Os pescadores possuem um conhecimento íntimo da relação entre a vegetação dos lagos e a sua produtividade pesqueira, e muitas comunidades definem medidas para proteger a

264

vegetação considerada importante para a pesca local. Alguns acordos de pesca, por exemplo, especificam regras para preservar a cobertura de macrófitas flutuantes e proteger árvores frutíferas durante a época da cheia. Em toda região de várzea, os pescadores reclamam dos efeitos prejudiciais do búfalo nos ambientes aquáticos, e em alguns casos, comunidades têm proibido a criação de búfalos na área da comunidade. Zoneamento de Sistemas de Lagos. Os lagos de várzea são na realidade sistemas de lagos que sofrem grandes mudanças físicas e ecológicas. Em certos casos, comunidades distinguem diferentes tipos de lagos e adaptam regras de pesca às características de cada tipo. Por exemplo, pescadores diferenciam lagos rasos e sazonais, que podem secar na estação de águas baixas, e lagos profundos e permanentes, muitas vezes chamados de “lagos de criação”, onde os peixes tendem a se concentrar durante a estação seca. A pesca comercial pode ser permitida em lagos rasos durante a estação seca, uma vez que os peixes nesses lagos podem morrer de qualquer modo, enquanto em lagos mais profundos a pesca pode ser restrita às necessidades de subsistência ou totalmente proibida durante a estação seca. Organização Coletiva e Fiscalização. Este é o aspecto mais problemático do manejo comunitário de lago. Os acordos são geralmente vagos com relação aos aspectos organizacionais do manejo coletivo. Geralmente a responsabilidade pela fiscalização das medidas fica sob os cuidados da liderança local da Colônia de Pescadores ou sob outros líderes comunitários. Como acordos de pesca não têm legitimidade formal, os indivíduos responsáveis pela organização do manejo coletivo não possuem a autoridade legal para fiscalizar medidas comunitárias. Essas experiências de acordos de pesca têm sido interpretadas de diversas maneiras por economistas, sociólogos, antropólogos, etc. Nessas leituras, o acordo tem múltiplos significados, sendo interpretado ora como uma estratégia de manejo, ora como uma forma de construção de uma economia alternativa, ou ainda enquanto uma expressão do capital social mobilizado por essas comunidades. Os “Acordos” também são interpretados sob a ótica do direito como um fenômeno ligado ao pluralismo jurídico. Compreendemos que os acordos de pesca envolvem todos esses elementos; entretanto, eles são, sobretudo, uma estratégia territorial, ou seja, uma estratégia de controle de um determinado espaço a partir de um esforço do grupo ou de uma comunidade pela afirmação dos seus direitos territoriais. Nossa análise será realizada a partir de uma visão geográfica. Nesse registro, analisaremos os chamados Acordos Comunitários de Pesca como uma estratégia territorial usada pelas comunidades ribeirinhas para

265

garantir o controle sobre os recursos pesqueiros, sobre os rios, lagos e igarapés na Amazônia, especialmente nas regiões de várzea. Estamos chamando de estratégias no sentido que Foucault atribui a este termo. Para Foucault (1995), a palavra estratégia é corriqueiramente empregada em três sentidos: Escolhas de meios para atingir um dado fim, ou melhor, a racionalidade empregada para atingir um objeto específico; Maneira pela qual um jogador, em um determinado jogo, age em função dos outros e, principalmente, em função do que ele acredita que será a ação dos demais; Maneira pela qual tenta-se obter vantagem sobre o outro. Partindo dessa leitura - o acordo como estratégia - verificamos que os acordos de pesca buscam atingir um fim específico, que é a garantia do

recurso

pesqueiro

através

de

uma

racionalidade

ambiental

fundamentada em determinados critérios de sustentabilidade que garantam a reprodução dessas comunidades. Para atingir esse fim, o acordo, como uma estratégia, implica na construção de um repertório de ações para impedir que outros grupos sociais se apropriem dos recursos pesqueiros. Nesse processo, se instituem formas de controle, regras de uso, formas de fiscalização e de classificação social, que permitem o controle físico e simbólico de uma determinada comunidade sobre um determinado espaço considerado importante do ponto de vista estratégico para garantir os recursos. É a partir desse registro que iremos analisar os acordos de pesca como estratégia territorial de reapropriação social do rio, como processo de territorialização dos ribeirinhos e pescadores na constituição de territórios coletivos de autogestão. Mas antes de entrarmos nas experiências específicas sobre como os acordos de pesca se constituem em uma estratégia territorial de afirmação de direitos nas comunidades ribeirinhas no município de Cametá, iremos fazer uma breve caracterização dessas comunidades, com objetivo de uma melhor contextualização dos processos que estamos analisando.

266

5. 2- Aproximações do terreno. O município de Cametá localiza-se à margem esquerda do rio Tocantins, pertencendo à segunda maior bacia hidrográfica do país, a bacia Araguaia – Tocantins. Fundado em 24 de dezembro de 1617, compõe a mesorregião do Nordeste do Estado e a microrregião de Cametá, abrange uma área de 3.108,2 km2 e estabelece fronteira com os municípios de Mocajuba, Oeiras do Pará, Limoeiro do Ajurú e Igarapé-Miri. Cortado pelo rio Tocantins no sentido sul-norte, o município é formado por 20,3% de rios e baías, 36,4% de campos naturais, 26,2% de várzea e ilhas e 17,1% de terra firme. O município de Cametá, em sua formação geográfica, é dividido em duas porções distintas de terras: a região das ilhas e a região de terra firme, dispostas nas duas margens do rio Tocantins. A população do município, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), é formada por 120.904 habitantes, sendo que 52.846 estão na área urbana e 68.058 na área rural. Deste total da área rural, mais de 50% encontram-se nas ilhas, distribuídas em 122 localidades com 523 comunidades cristãs (Prelazia de Cametá, 2005). O território municipal é formado por 10 distritos: a sede municipal com o mesmo nome do Município (Cametá), Carapajó, Curuçambaba, Joana Coeli, Juaba, Moiraba (São Benedito), Areião, Vila do Carmo do Tocantins, Porto Grande, Torres de Cupijó (BRASIL, 2005). A área que tomamos como referência para esta pesquisa é o distrito de Joana Coeli, especialmente as comunidades de Paruru, de Joana Coeli e Jorocazinho. Essas comunidades se encontram na área de várzea, ou chamada área ribeirinha ou das ilhas. Essas comunidades ribeirinhas do município de Cametá, apesar da sua imensa diversidade, têm características em comum; normalmente são comunidades de pequena escala que variam em torno de 50 a 300 famílias, as quais têm por características serem bastante numerosas, sendo habitual o núcleo familiar congregar em média entre 5 e 10 pessoas. Essas famílias tendem a se agrupar espacialmente próximas uma das outras,

267

sendo comum várias gerações da mesma família permanecerem na mesma área. A família é também a estrutura básica das relações de produção e trabalho, havendo uma divisão entre homens e mulheres, crianças e velhos. Os homens ficam responsáveis pelo trabalho da pesca, das pequenas lavouras e do extrativismo das frutas e sementes da floresta. Já as mulheres são responsáveis pelos afazeres domésticos, pelo cuidado dos filhos e também por atividades extrativas, como a coleta de sementes e frutas (ocuúba, andiroba, buruti, etc.) e a criação de xirimbabos (animais domésticos como galinha, pato, peru, porcos etc.); não raramente, as crianças participam dessa atividade. Os meninos, desde muito cedo, acompanham os pais nos trabalhos considerados “trabalhos de homem” e as meninas também vão aprendendo os hábitos do que é “ser mulher”.

Foto 7: Pescador retirando peixe da rede com paneiro (Foto: Edir A. D. Pereira, 2010)

268

Foto 8: Pescador usando rede de nailon (Foto: Edir A. D. Pereira, 2010) Entre as famílias que habitam essas comunidades, não há grandes distinções de estratificação social, sendo as rendas muito próximas e as condições sociais de reprodução cotidiana. Contudo há exceções constituídas por pequenos comerciantes, donos de mercearias que atendem o comércio local, donos de barcos de pesca e das redes, alguns poucos funcionários públicos, como é o caso de professoras e professores, agentes de saúde e outros, que, de algum modo, possuem um nível de renda um pouco maior e, às vezes, algumas condições mais confortáveis de vida. A base econômica dessas comunidades está fundada na pesca, no extrativismo e na pequena agricultura. No que se refere à pesca, trata-se de uma atividade basicamente de subsistência, ou seja, uma pesca de caráter artesanal com o uso de práticas e técnicas rudimentares, como a pesca de caniço, pequenas malhadeiras, pari, matapi e as chamadas tapagens. A quantidade de peixes, camarão, aviú obtida normalmente por uma família é pequena e, usualmente, serve para consumo doméstico; algumas

vezes,

esses

pescadores

vendem

o

excedente

na

própria

comunidade ou levam para feiras e mercados das vilas e povoados mais próximos, em alguns casos, para a sede do município, da cidade de

269

Cametá. Os peixes mais comuns nessa região são: o mapará, o curimatã, o aracu, o pacu, o pescado, o tucunaré, o jotorana, etc.

Fotos 9: Diferentes tipos de peixes do rio Tocantins (Foto: Edir A. D. Pereira, 2010) Além

da

pesca,

uma

parte

considerável

da

renda

e

da

subsistência dessas comunidades está centrada no extrativismo de frutas e sementes, como é o caso da borracha, da ocuúba, da andiroba, além de frutas, como cacau, jambo, araçá, carambola, cupuaçu, etc.; além do açaí, que, sem dúvida nenhuma, é a fruta que compõe a principal base de alimentação e de geração de renda para a maioria dessas comunidades. Além do fruto, ainda é explorado da palmeira do açaí o palmito que constitui um produto com grande mercado, especialmente para outras regiões do Brasil e para fora do país. Porém, apesar de ser um produto com grande valor comercial, normalmente, o valor pago para o ribeirinho por palmito é muito baixo, sendo que a maioria do lucro da exploração dessa atividade se concentra nas mãos dos atravessadores.

270

Fotos 10: Frutas e plantas da região (Foto: Edir A. D. Pereira, 2010). Ainda faz parte das atividades econômicas e também culturais dessas comunidades um tipo de artesanato, sobretudo ligado às fibras e à madeira. Neste sentido é comum a produção de paneiros, peneiras, chapéus, matapis, tipiti; além disso, há muitos artesãos que trabalham com brinquedos feitos de miriti e mututi os quais são vendidos nas feiras e portos da cidade de Cametá e alguns na capital do estado, em Belém. Ademais, em algumas comunidades há pequenas oficinas e estaleiros que produzem embarcações de pequenos e médios portes.

271

Fotos 11: Paneiros e Tipitis (Foto: Edir A. D. Pereira, 2010) A relação dessas comunidades com o mercado é de uma inserção parcial, pois estas vendem parte do excedente da produção nas cidades e vilas

e

compram

no

comércio

local

outros

alimentos

e

produtos

manufaturados, como é o caso de roupas, eletrodomésticos, etc. Mas uma grande parte da produção é dedicada ao consumo próprio, a doações para outras famílias, ou ainda ofertas e oferendas para festas e festivais normalmente

dedicados

aos

santos

e

santas

padroeiros

de

cada

comunidade, que a cada ano celebra missas e novenas para o seu padroeiro. Assim, podemos afirmar que a produção está, em primeiro lugar, voltada para a subsistência e não para o mercado.

272

Fotos 12: Festa religiosa com dança junina – comunidade cuxipiari furo grande (Foto: Edir A. D. Pereira, 2010) Além do extrativismo, muitas dessas comunidades possuem algumas atividades ligadas à agricultura, especialmente, através de hortas com plantas medicinais, algumas frutas e, em alguns casos, o plantio de arroz e mandioca, dependendo do tipo de terreno disponível. Esse complexo sistema de pesca, extrativismo e agricultura envolve um conjunto de técnicas e saberes profundos sobre a dinâmica dos ecossistemas, da especificidade da várzea e este saber é transmitido de maneira oral, de geração para geração; os pais e o avós, desde muito cedo, vão inserindo as crianças nas mais diversas atividades e lidas do cotidiano. Em resumo, a renda dessas famílias é oriunda basicamente da pesca, do extrativismo, da criação de pequenos animais domésticos, além de uma série de benefícios sociais pagos pelo Estado, como bolsa família, auxílio-doença, auxílio-maternidade, seguro-desemprego da pesca e ainda

273

aposentadorias rurais, e também de alguns financiamentos ligados a projetos de agricultura e manejo extrativista. Culturalmente, essas comunidades acabaram desenvolvendo um conjunto de práticas de sociabilidade que as diferenciam de outros grupos sociais que vivem em outras áreas do município. Essa cultura está diretamente vinculada ao tipo de ambiente em que vivem; assim, os ecossistemas ligados à várzea têm uma influência decisiva no modo de vida e na cultura ribeirinha. Há

uma

forte

presença

da

religião

nessas

comunidades,

especialmente, pela força das comunidades eclesiais de base, desde os anos de 1960, e, sobretudo, a partir dos anos 1970, período em que foram fundadas as mais diversas comunidades da região de várzea. Essas comunidades acabam exercendo um papel decisivo não só do ponto de vista da organização social, mas também política para essas populações. A Igreja e os barracões comunitários são espaços privilegiados de encontro, trocas e sociabilidades;

todas

as

comunidades

possuem

igrejas

e

salões

comunitários onde ocorrem cultos, festas, reuniões políticas e, em muitos casos, servem, também, como espaço para o funcionamento das escolas. É comum nessas comunidades a celebração de um santo ou uma santa como padroeiro/a da comunidade. Uma vez por ano, celebram seu padroeiro, sendo um momento singular na rotina dessas comunidades; durante um período de 10 dias realizam rezas e novenas, bingos e festas onde a comunidade se reúne e também recebe visitantes de outras comunidades para celebrar o santo padroeiro. Mais recentemente vem crescendo o número de moradores adeptos de religiões evangélicas, podendo-se perceber na paisagem, cada vez mais, a presença de templos e Igrejas evangélicas, sobretudo, o avanço da Assembléia de Deus, apesar de ainda permanecer claramente uma hegemonia da Igreja Católica, embora já exista uma diversidade de práticas e

cultos

religiosos

que

criam

uma

heterogeneidade

de

vínculos

e

participações na vida religiosa dessas comunidades.

274

Fotos 13: Escola e igreja evangélica na localidade de Cacoal (Foto: Edir A. D. Pereira, 2010) Uma outra característica marcante é um conjunto de lendas, mitos e de um certo imaginário mítico, envolvendo o universo da floresta e das águas. Assim, personagens como a cobra grande e o boto povoam a imaginação, as conversas e as crenças dessas comunidades. Esse conjunto de narrativas míticas não tem apenas um papel imaginário, pois, de alguma forma, regula ações e comportamentos cotidianos, sobretudo para os membros mais velhos das comunidades que têm uma relação muito mais forte e intensa com essas crenças; por exemplo, o fato das mulheres não tomarem banho no rio no período em que estão menstruadas, por conta da malícia do boto, ainda permanece como uma prática comum, assim como não pescar em determinadas partes do rio, porque é assombrado ou tem “visagem”, também é bastante comum. Mas, apesar de toda essa cultura mais tradicional, o modo de vida, a sociabilidade, a cultura e a identidade dessas comunidades vêm sofrendo consideráveis transformações nos últimos anos, em virtude da incorporação de uma modernidade técnica e de um imaginário moderno que têm acompanhado esse processo. Hoje, o espaço-tempo dessas populações é forjado pelo híbrido de ritmos que envolve a dinâmica da natureza, um tempo cultural próprio e a temporalidade do mundo moderno, que, aos poucos, se impõem através dos objetos técnicos, como a televisão, que através dos horários de sua programação,

especialmente

das

novelas,

acaba

por

demarcar

os

275

momentos de encontros das famílias. Esse tempo moderno e urbano, já apontado anteriormente, também começa a invadir o cotidiano dessas comunidades, mudando suas experiências do tempo e do espaço, como ocorre, por exemplo, através da introdução de meios de transporte a motor, as chamadas “rabetas” ou “rabudos” que, através de pequenos motores, aumentaram a velocidade e a capacidade de vencer as distâncias, inaugurando uma nova métrica que redefine as interações e os contatos que as comunidades ribeirinhas têm com o mundo exterior.

Fotos 14: embarcações motorizadas (Foto: Edir A. D. Pereira, 2010)

276

As viagens tornam-se mais frequentes e mais rápidas; isso redefine a relação que esses grupos têm com o mundo urbano. Percebemos também que essa dimensão técnica está presente através de uma espécie de fetiche o qual uma parte da população, sobretudo os mais jovens, tem em relação a certos equipamentos eletrônicos, como computadores, aparelhos de som, celulares etc . Assim, é comum encontrarmos, em praticamente a totalidade das casas,

equipamentos

técnicos,

como

televisão,

antenas

parabólicas,

celulares, aparelhos de som, barcos motorizados os quais alteram a experiência do tempo e do espaço e a forma de viver a cultura. Assim, sobretudo os mais jovens, estão ligados ao imaginário de uma cultura urbana, escutam músicas da moda, músicas americanas, funk carioca, axé da Bahia, usam roupas, joias, bonés tipicamente da juventude urbana, passam tinturas nos cabelos, falam gírias que aprendem nos programas de televisão. Nas conversas cotidianas, as novelas e os programas de reallity show são temas comuns. As culturas dessas comunidades ribeirinhas se apresentam como um híbrido entre traços mais tradicionais e certas práticas ligadas a um mundo moderno e urbano. Neste sentido, essas comunidades vivem de um lado ainda fortemente marcado por uma temporalidade e uma cultura ligadas à natureza, às tradições, a um ritmo cíclico, marcado por uma certa “lentidão” e, de um outro lado, é cada vez mais forte a presença de um novo sentido de tempo e da introdução, através das mudanças técnicas, de uma nova temporalidade e de um novo ritmo social, mais próximo do mundo urbano. A própria paisagem traz as marcas dessa mudança, as pequenas casas, ainda quase na totalidade de madeira, ostentam novos objetos, como antenas de celulares, parabólicas, televisores, computadores, geladeiras, máquinas de lavar roupa, caixas-d‟água, motores a diesel, geradores, fornecedores de energia elétrica. Também percebemos que os próprios padrões das habitações têm mudado, as casas têm aumentado de tamanho e qualidade, o que reflete uma mudança no poder aquisitivo e na qualidade de vida dessas comunidade

277

Fotos 15 – Melhoria do padrão das moradias (Foto: Edir A. D. Pereira, 2010)

Fotos 16 – Televisão, antena para celular e parabólica (Foto: Edir A. D. Pereira, 2010)

278

Do ponto de vista político e organizativo, essas comunidades se diferenciam. As que pertencem ao chamado “setor de baixo”, ou seja, que estão ligadas ao distrito de Paruru de Joana Coelis, têm uma forte mobilização e organização política. O núcleo essencial dessa organização surge com as denominadas comunidades cristãs, fundadas pela Igreja Católica nos anos de 1960. Nesse processo de evangelização se forja uma cultura de participação construída pela ação da prelazia de Cametá que oferecia

constantemente

cursos

de

formação

para

as

lideranças

comunitárias indicadas por cada comunidade. Esses cursos tratavam de temas diversos, desde questões estritamente religiosas até a formação de agentes comunitários de saúde, mas também estavam ligados à formação de uma cultura cooperativista, além da busca de alternativas de trabalho e renda. Nesse processo foi se constituindo várias lideranças importantes, que,

progressivamente,

foram

participando

de

outros

espaços

de

intervenção política, como é o caso do sindicato de trabalhadores rurais, colônias de pescadores, as associações de produtores rurais, associações ambientais, organizações não governamentais e partidos políticos. Hoje é comum que os moradores das comunidades ribeirinhas participem simultaneamente de várias entidades organizativas e políticas; assim, ocorrem casos em que uma mesma pessoa participa do sindicato rural e, ao mesmo tempo, é membro da colônia de pescadores, fazendo parte ainda de outro tipo de associação, bem como participando como militante em um partido político. A densidade de organização política e de politização do cotidiano dessas comunidades tem significativos avanços na luta por direitos e na melhoria na qualidade de vida. Hoje, a colônia de pescadores é a principal entidade de representação das comunidades ribeirinhas e o principal ator político da sociedade civil do município de Cametá; além disso, tem conseguido eleger representantes na Câmara Municipal e tem forte influência na política local. É nesse cenário das comunidades ribeirinhas que emerge as iniciativas as quais vão dar origem aos acordos comunitários de pesca, que entendemos ser uma estratégia de reapropriação social do rio e dos recursos naturais, através da afirmação do direito ao território, sendo este

279

processo de emergência que iremos analisar com maior profundidade no tópico a seguir. 5.4.

A

emergência

dos

Acordos

Comunitários

de

Pesca

nas

comunidades ribeirinhas do município de Cametá. As experiências dos acordos de pesca na Amazônia datam da metade da década de 1980, através de um conjunto de experiências fundamentadas

no

manejo

e

na

gestão

comunitária

dos

recursos

pesqueiros, sobretudo, na região do Baixo Amazonas, no Oeste do Pará. Na região do Baixo Tocantins, as primeiras experiências que envolvem essa estratégia de preservação ambiental surgem por volta de 1985 em algumas comunidades, como é o caso de Paruru de Joana Coelis, onde começaram a surgir determinadas iniciativas no sentido de garantir a reprodução do pescado. Nesse momento havia uma intensa diminuição de várias espécies de peixes, em virtude do impacto da construção da hidrelétrica de Tucuruí e de práticas de pesca predatória. Nas diversas falas das lideranças comunitárias, a construção da hidrelétrica é apontada como fator de profundo impacto econômico-social e ecológico, afetando drasticamente a produção e a sobrevivência das comunidades ribeirinhas localizadas à margem do rio Tocantins. Esse impacto diminuiu muito a quantidade de recursos pesqueiros disponíveis, como já demonstramos no capítulo anterior; no caso de algumas espécies esse impacto foi radical, tendo sido praticamente extintas. Diante dessa escassez, as comunidades se viram obrigadas a encontrar alternativas para garantir sua sobrevivência, das quais podemos destacar a psicultura, a agricultura de pequena escala, o manejo dos açaizais e os acordos de pescas. No que se refere aos acordos de pesca, essa experiência só irá ganhar uma escala significativa a partir da metade da década de 1990, em que um conjunto de comunidades começa a adotar essas estratégias, influenciadas por algumas experiências pioneiras. Os

Acordos

de

Pesca

representam

uma

tentativa

das

comunidades ribeirinhas de dar uma resposta a um conjunto sistemático de práticas e projetos de desenvolvimento que, tanto na escala local quanto na escala regional, subalternizaram e marginalizaram essas comunidades.

280

Na escala regional, esse projeto de desenvolvimento está materializado na construção da hidrelétrica de Tucuruí, que afetou drasticamente a dinâmica do rio Tocantins, com graves consequências ecológicas e sociais provocando um profunda injustiça ambiental49 para as comunidades que estavam territorializadas nas áreas de várzeas. Essa alteração na dinâmica do rio afetou os recursos pesqueiros e o extrativismo que eram a base fundamental de produção e reprodução dos ribeirinhos. Após a construção da barragem, registrou-se uma queda drástica na quantidade e na qualidade dos recursos pesqueiros disponíveis, além de uma sensível deteriorização da qualidade da água, provocando, desse modo, fome e doenças, afetando a qualidade de vida dessas comunidades. Diante dessa situação, se impõe a necessidade dessas comunidades se organizarem para lutar pelos seus direitos e para encontrarem alternativas econômicas

e

ecológicas

para

restaurar

minimamente

as

condições

sustentáveis de vida no ambiente das várzeas. Contudo, as dificuldades e a precarização da qualidade de vida e dos vínculos territoriais dessas comunidades com o ambiente da várzea não se restringiam aos impactos provocados pelos projetos de modernização, personificado pela barragem do rio Tocantins; a condição de subalternização dessas comunidades era resultado também de uma dinâmica local de dominação política e econômica por parte de uma elite mercantil e de uma oligarquia de famílias que dominavam o poder local. Neste sentido, a construção dos acordos de Pesca representou uma tentativa de ruptura com o sistema de dominação local, fundado nas práticas comerciais de aviamento, nas práticas políticas de apadrinhamento representadas pela força

que

determinados

comerciantes

tinham

nessas

comunidades,

49

Defini-se então por injustiça ambiental o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento das populações de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis. (...) É possível constatar que sobre os mais pobres e os grupos étnicos desprovidos de poder recai, desproporcionalmente, a maior parte dos riscos ambientais socialmente induzidos, seja no processo de extração dos produtos naturais, seja na disposição de resíduos no ambiente. (ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, 2009, p. 40-41)

281

controlando as propriedades, o rio e os recursos pesqueiros disponíveis, mesmo que essa apropriação fosse ilegal. Dessa forma, os Acordos de Pesca, entendidos como uma estratégia territorial de reapropriação social do rio, podem ser considerados simultaneamente como uma resposta à dinâmica de subalternização local e como um questionamento de um projeto mais amplo de modernização conservadora de desenvolvimento excludente que foi implementado na região como um todo. Esse duplo significado dessas experiências de reapropriação social do rio está expresso nas falas das lideranças comunitárias,

que,

ao

avaliar

as

motivações

que

originaram

essas

iniciativas, relatam esse processo: Essa questão da conservação dos recursos pesqueiros, ela vem se dando em decorrência de vários fatores. O principal é a questão da construção da barragem de Tucuruí, isso aí sem dúvida nenhuma a partir do momento que o rio foi represado, aí diminuiu a principal fonte de renda e alimentação da população ribeirinha daqui do Baixo Tocantins, que era o pescado. Então, com isso a população, digamos assim, passou de extrativista para a exploração mesmo, principalmente na época do açaí, do palmito, da madeira... Chegou uma época que não se tinha mais o peixe, não se tinha mais o açaí, e não se tinha mais a madeira. Antes a população ribeirinha, além da pesca, eles tinham as sementes (semente da ocoúba, andiroba), a borracha, o cacau... E depois eu não sei se existe estudo, mas existe a impressão -, a gente percebe que diminuiu a produção, principalmente do cacau. Hoje diminuiu muito a produção do cacau, a questão dos adubos orgânicos, que não ficaram mais suficiente, mais em cima da terra e com isso causou... todo esse problema. Então, o aumento da população também, aumentou muito a população, então, várias comunidades então se organizam para tentar criar as suas próprias normas, já que as normas que eram traçadas, digamos assim, antigamente pela SUDEPE... a pesca em nosso município e em nosso país ainda era, até pouco meses, ainda era normatizada por um decreto de 1967 e outro, 1984, na época da ditadura, ainda que foi feito lá de cima para baixo. Então a comunidade passa a se organizar. Algumas comunidades, então, para normatizar a pesca naquela região, naquela comunidade, cria sua própria lei, no que diz respeito a questão de qual material vai usar, de qual é o tamanho, qual o tamanho do material; o tamanho do peixe, o pescado que se pode pescar ali... E isso começou a fazer, na verdade, o repovoamento natural do pescado na região aonde eles fazem o acordo. (Iracy Nunes, expresidente da Colônia de Pescadores de Cametá e atual

282

vereador do município pelo PT 2009).

entrevista em outubro de

No ano de 1984, foi um ano crítico pra nós, porque foi o período da construção da barragem de Tucurui. Então com essa questão da montagem da barragem nós, ribeirinhos aqui em baixo, tivemos muito problema na área da saúde, da alimentação... Era muita desnutrição, era de criança, de 0 a 6 anos, e de mulheres grávidas. Então eu já estava fazendo um treinamento para trabalhar na área da saúde como voluntária, e a gente começou a enfrentar dificuldade. Mulheres abortando facilmente, porque não tinha alimento. A escassez do peixe era forte, nossos peixes sumiram, e o que tinha nas bacias... lá na nossa região são sete bacias maiores, e três bacias menores, isso era lá no Paruru de Joana Coelis, no Manuel Raimundo e no que a gente considera Curupitomba, mas as maiores bacias estão no Paruru. Então, essas bacias eram invadidas diariamente, porque tudo aquilo que aparecia de peixe no rio, o pescador ia e pescava com o puçá, não era rede aberta, era só o puçá. Então, tinha dias que eles iam e jogavam aquela rede e não pegavam nada, mas eles tinham o habito de fazer aquilo. E meu pai, era um dos que tomava conta de uma propriedade onde é localizado três bacias, quer dizer, o meu pai compactuava com tudo aquilo. Eu, ainda pequena, achava aquilo errado. Eu digo pequena, sim, no amadurecimento de ver as coisas, e meu pai que era um adulto devia ver mais que eu e pensar que aquilo é errado. Aí a gente começou a imaginar se era só a barragem mesmo que estava causando aquela situação, ou se era também aqueles predadores dali mesmo que estava influenciando aquela situação. Aí meu pai se virou contra o trabalho de preservação. A gente ia participar dos encontros, aí vinha dizendo aquilo que a gente aprendia lá nos encontros, que tinha que preservar, que se a gente não preservasse que ia acabar tudo... e tinha as crianças, e tinha nós mesmos. (Benedita Lamparina, líder comunitária – entrevista em janeiro de 2011). Esse trabalho com o meio ambiente começou por uma necessidade aqui das comunidades. Aqui nós temos seis bacias no rio, aí os caras vinham lá de fora, pegavam todo o peixe e iam embora, levavam tudo. Alguns proprietários diziam que tinham que deixar uma parte aqui para a população. Então, infelizmente não davam. Eles batiam nas crianças que iam lá no lance, chamavam de bicho lá para os caras, chamavam de guachimi para quem ia pedir o consulado. Aí nós começamos a refletir sobre essa situação na comunidade. Nós pensávamos: os caras vêm aqui, pegam o peixe e vão embora, e nossa população fica nessa situação difícil. Nós temos que fazer alguma coisa para mudar essa situação. Aí nós achamos que isso não estava certo. (Milson Gomes de Andrade, pescador e líder comunitário

283

da localidade Paruru de Joana Coelis – entrevista em janeiro de 2009). (...) Olhando o caos que se encontrava aqui no nosso rio, naquela época, era preocupante, não tinha mais nada. Naquela época, surgiu a pesca predatória do puçá, que é considerada muito predatória e, na época também, muita exportação de alevinos, aonde entrava também a exportação de acari e a gente viu que aquilo tava levando a uma miséria. Todo uma parte de alimentação piorava, pois esse povo vive em grande parte da pesca, e a gente vendo a retirada de acari do fundo desse rio, onde reviravam tudo; e nós víamos eles retirando todo e qualquer tipo de peixinho para a exportação. Antes de nós começarmos esse trabalho alguns peixes já haviam desaparecido da região, o jaraqui era um peixe que já não se comia mais por aqui, curimatã (...). As empresas, o representante japonês de uma empresa, é que comprava esses peixes. Quando nós prestamos atenção até a água, que já não era muito boa e já não era muito tratada, estava piorando, você não via a cor da água, só aquela água barrenta. Isso levou um surto de diarreia e a escassez do peixe. (Dona Rita, líder comunitária da comunidade Jorocazinho entrevista em fevereiro de 2011). Nós começamos a visualizar isso desde 1988, já começando a se preocupar, aí depois a gente tomou a iniciativa, nessa época nós tivemos uma luta que eu não quero esquecer organizada pela prelazia de Cametá que foi muito forte e fez um trabalho muito importante organizando as comunidades, por exemplo, começou a promover cursos, oficinas, pra chamar a atenção sobre os impactos da hidrelétrica de Tucuruí, e aí as comunidades ribeirinhas começaram a se preocupar e a divulgar, mas sabendo que a gente não tinha força e o apoio do poder público, nossos governantes são sempre alheios a essas coisas, mas as comunidades começaram a se fortalecer, mas a minoria não ganha, e acabou acontecendo a construção da hidrelétrica, e hoje a gente vê o resultado, trouxe o benefício para uma minoria e muitos problemas para a maioria, muitos prejuízos (...) (Dona Rita, líder comunitária da comunidade Jorocazinho entrevista em fevereiro de 2011).

Através desses depoimentos, podemos verificar que é a partir das duras e precárias condições de vida das comunidades, marcadas pela fome, doenças e outras formas de privação, que surgem as primeiras iniciativas da construção dos acordos de pesca na região de várzea, do município de Cametá. Foi uma tentativa de encontrar uma saída, uma alternativa para melhoria da qualidade de vida dessas comunidades que se deterioravam

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muito em função dos impactos ecológicos da barragem do rio e das diversas práticas predatórias e excludentes de apropriação de recursos pesqueiros realizados na escala local por parte da população, além do aumento demográfico da própria população que habitava as várzeas, bem como das áreas urbanas, aumentando a pressão sobre os recursos pesqueiros já escassos na região. As lideranças comunitárias, em seus relatos, apontam que a situação era dramática, visto que a qualidade da água era muito ruim, causando inúmeras doenças e o sumiço repentino de algumas espécies de peixes fundamentais à dieta local, acentuando o quadro de penúria e incerteza. Esse quadro, resultado da alteração da dinâmica do rio pela construção da barragem, agravava-se por algumas práticas locais, como o uso de certas modalidades de pesca e de certos instrumentos que são profundamente nocivos, como é o caso do uso do puçá, que acaba por pegar os peixes ainda num estágio extremante pequeno, impedindo o processo de reprodução das espécies. Além disso, havia um domínio privado do rio e dos recursos pesqueiros por parte de uma pequena elite local, composta por comerciantes que se consideravam “os donos rio”, os “donos da beirada”, os quais controlavam o acesso aos recursos, excluindo uma imensa maioria da população. É diante desse contexto que o processo de construção dos Acordos de Pesca teve início na região do chamado “setor de baixo”, no distrito de Joana Coelis, no município de Cametá. Essa é uma área marcada por grande capacidade de organização e mobilização política e, desde o final dos anos 1970, congregava as comunidades cristãs mais atuantes no município. Foi em uma delas, a comunidade Paruru de Joana Coelis, incorporando depois às comunidades de Manoel Raimundo e Curupitomba, que, na metade da década de 1980, se realizaram as primeiras iniciativas na tentativa de criação dos chamados acordos de pesca. Essa tentativa foi organizada pelas comunidades Cristãs com o apoio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e algumas outras entidades. Contudo, essas primeiras tentativas não obtiveram grande sucesso, por uma série de dificuldades, como nos relata a líder comunitária Benedita Lamparina, uma das protagonistas desse movimento:

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Então, naquela época, nós éramos uma população em torno de 600 famílias, lá naquela localidade que se considerava prejudicada. Então, meu pai sempre falava contra aquele trabalho, ele dizia que nunca ia deixar de fazer o que ele achava que tinha que fazer para preservar. Aí o pessoal do sindicato, da delegacia sindical, tentou nos ajudar, pra começar a fazer um trabalho, só que não teve sucesso. Meu pai era mais forte que eles, era comerciante, tomava conta de uma grande propriedade, então ele manobrava, as pessoas, mais do que o pessoal do sindicato. E aí, o que ele falava o pessoal fazia, e com isso dificultou o trabalho; ai nesse momento, não deu certo, essa tentativa de preservação. (Benedita Lamparina, líder comunitária – entrevista em janeiro de 2011). Como podemos verificar no relato, havia ainda um déficit de organização nessas iniciativas, a base de sustentação ainda era bastante frágil e o discurso da questão ambiental era novo e não tinha sido incorporado pelas comunidades. Além disso, houve uma contrarreação comandada,

sobretudo,

pelos

comerciantes

locais

que

controlavam

econômica e politicamente essas comunidades. Assim, esse processo não conseguiu força suficiente para se consolidar e, nesse primeiro momento, a criação e implementação dos acordos fracassaram. Contudo, num segundo momento, já no início da década de 1990, houve uma ampliação das bases comunitárias, uma ressignificação das agendas, visto que se juntaram às lutas sindicais as questões de gênero, reivindicadas pelas mulheres, e a preocupação com o meio ambiente. É a partir dessa nova configuração que as primeiras iniciativas, com o objetivo de preservação, ganham força nas comunidades de Paruru e Joana Coelis. Esse processo é reconstruído na fala de uma das principais lideranças do movimento: Já por volta de 1990, nós começamos a reunir as mulheres, e começamos a discutir com elas a criação de uma associação, porque nós fomos conversar com o advogado pra saber o que deveríamos fazer, aí ele disse para mim que o rio era público, e por ser público, só quem poderia fazer um trabalho era uma organização que fosse legalizada, por exemplo, a delegacia sindical. Apesar do sindicato ser legalizado eles não tiveram força. Achamos por bem que deveríamos fundar e legalizar uma associação e começar um trabalho de conscientização. Aí não tínhamos nessa época o dinheiro para pagar o processo de legalização da associação, aí ficamos dois anos, trabalhando com

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a conscientização da população e no ano de 1993 nós conseguimos a legalização da associação. (Benedita Lamparina, líder comunitária – entrevista em janeiro de 2011). Eu, com minha ex-esposa, em 1991, nós começamos com esse trabalho. Aí começamos a trabalhar com duas comunidades para conscientizar o pessoal. Esse foi o período mais difícil e mais intenso, nós chegávamos a se reunir 50 vezes por mês, porque aqui ninguém entendia o que era meio ambiente. Porque se tu chegasse aqui e dissesse que não pode bater água no rio, porque eles secavam a beira, e jogavam veneno nos rios nas beiras dos igarapés, colocavam matapis nos igarapés, batiam água e faziam de tudo, aí quando você questionava o que eles estavam fazendo, eles diziam assim: “Você não quer que eu coma, você não quer que eu dê comida para os meus filhos”, e nós íamos nessa conscientização, mas era muito difícil (...) (Milson Gomes de Andrade, pescador da localidade Paruru de Joana Coelis entrevista em janeiro de 2009). Posteriormente,

esse

processo

se

irradia

para

outras

comunidades da mesma área, como para comunidade de Jorocazinho, como nos relata uma liderança: Nós chegamos à conclusão de partir para o acordo de pesca, aqui nessa comunidade, pela necessidade e vendo a experiência recente do Paruru de Joana Coelis com a companheira Benedita e seu esposo, e a gente viu que dava certo. Nós começamos a visualizar isso desde 1988, já começando a se preocupar, aí depois a gente tomou a iniciativa. Nessa época, nós tivemos uma luta, que eu não quero esquecer, organizada pela prelazia de Cametá, que foi muito forte e fez um trabalho muito importante organizando as comunidades. Por exemplo, começou a promover cursos, oficinas, pra chamar a atenção sobre os impactos da hidrelétrica de Tucuruí.(Dona Rita, líder comunitária da comunidade de Jorocazinho – entrevista em fevereiro de 2011) Percebemos, nesse momento, que no processo de mobilização que deu origem à criação dos chamados acordos de pesca, como estratégia de reapropriação social da natureza, convergiram vários elementos de caráter político organizativo. Em

primeiro

lugar,

a

Igreja

Católica

exerceu

um

papel

fundamental; por meio da prelazia de Cametá, teve uma atuação contundente. Através do conjunto de cursos, oficinas, formação de

287

lideranças, acabou, junto com o trabalho de evangelização, construindo uma forte cultura de participação política; e, nesse processo, a luta contra a construção da hidrelétrica e seus impactos acabou por colocar na agenda de luta dos movimentos da região a questão ambiental, pois a dimensão ecológica surgia como uma dimensão fundamental de vida que estava sendo dramaticamente alterada. Um segundo elemento foi a emergência de um novo sindicalismo rural que ganhava força no Brasil inteiro e que, no município de Cametá, tinha no sindicato dos trabalhadores rurais a principal instituição e o principal instrumento de luta dos trabalhadores. Contudo, tencionando com essa tradição sindical, surgia, nesse momento, uma preocupação com as questões de gênero, com a afirmação da identidade e do papel de protagonismo das mulheres como atores políticos. É desse caldo complexo e tenso que vão emergir as iniciativas dos Acordos de Pesca. As tensões internas desse processo estão expressas na fala de uma das lideranças desse movimento: (...) como mudar aquela situação, depois com a participação lá fora, com a conscientização? Aí começou a questão da hidrelétrica, a preocupação ambiental. Aí veio os movimentos, aí nós vamos participando, aprendendo, se conscientizando. Eu já trazia em mim aquele destino de fazer alguma coisa. Aí o pessoal começou o trabalho em 1984. Em 1990 já era para ter avançado e muito, mas as mulheres não participavam, era só os homens que participava. O sindicato... era só o homem que ia à assembleia, que falava, que pagava o sindicato, a mulherada não entrava no sindicato. Aí, no inicio dos anos 1990, foi que as mulheres começaram a participar da assembleia, a fazer o dia internacional da mulher... Foi num momento também que nós começamos a avançar nas associações de mulheres, formar grupo de mulheres, formar trabalho coletivo de mulheres, fundação de cooperativas de mulheres, cantinas comunitárias... Foi aí que nós ganhamos forças para entrar no sindicato, na colônia. Nós, no ano de 1983, tentamos entrar no sindicato, mas não nos aceitaram lá, mulher casada não podia entrar no sindicato, mulher de sindicato... Aí passou 84, 85 e 86, aí em 1987 eu reuni um bocado de mulher para ir na assembleia, aí fizemos os homens assinarem um documento nos aceitando lá. Aí aquele dia eu levei a minha certidão de casamento: “se é isso que não permite eu entrar no sindicato, rasguem e me deem uma carteirinha de sindicato”. Aí, fazendo essa pressão, eles abriram para nossa participação. Nesse mesmo dia vinte mulheres se inscreveram. Aí nos fomos para dentro do sindicato. Aí a

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mulherada foi ganhando espaço. Aí, quando foi em 1990, o sindicato estava no nosso lado. Aí o movimento era maior, aí nós fomos organizando um trabalho muito bonito, também com as plantas, os remédios caseiros... Aí foi essa força que ajudou o trabalho de preservação. (Benedita Lamparina, líder comunitária – entrevista em janeiro de 2011). Nesse relato, percebemos que a sinergia de forças que levou à criação dos acordos de pesca envolveu a ampliação da base comunitária e, neste

processo,

o

papel

das

mulheres

assumiu

uma

importância

fundamental. Não por acaso, as principais lideranças desse movimento, nessa época, são mulheres. É esse novo agenciamento político, no qual se articula a agenda da questão social, ambiental e de gênero, que vai permitir a construção de ampla rede de apoio de inúmeras entidades e vai fortalecer essas iniciativas, levando à criação e à implementação dos acordos

de

maneira efetiva e duradora. Esse processo de organização política de construção e de parcerias fica evidente no depoimento de uma das lideranças entrevistadas: Nessa época do trabalho de preservação, nós fizemos vários seminários aqui. Foram quatro anos de seminário, o período todo de João Medeiros como prefeito, tudo patrocinado pelo poder municipal. Nós organizávamos, mas tínhamos a ajuda do poder municipal, então ele nos ajudou muito, seu João Medeiros como prefeito, referente a essa questão da preservação, ele foi um excelente prefeito. Mas depois que houve uma mudança de prefeito nós tivemos muita dificuldade, não tivemos apoio do prefeito, só que o pessoal que invadia aqui o rio não tinha mais poder de fazer isso. (Benedita Lamparina, líder comunitária – entrevista janeiro de 2011). Nós também tivemos muito apoio da universidade, tivemos apoio de muitas entidades, ONGs, como por exemplo, Caritas Brasileiras, da APAC, do sindicato rural, da colônia, de vereadores, deputados, todas as camadas da sociedade nos apoiaram nesse período. Foi considerada a primeira área de preservação de todo baixo Tocantins - Paruru de Joana Coelis. Depois que nós iniciamos o nosso trabalho, todas as comunidades de outros municípios, como Limoeiro do Ajuru, Baião, também começaram a fazer esse trabalho de preservação e acordo de pesca. Eles levavam de lá essa experiência, as pessoas sabiam dos relatos de que lá, nós estávamos nos dando muito bem, apesar da dificuldade no inicio. (Benedita Lamparina, líder comunitária – entrevista janeiro de 2011)

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Nós recebemos apoio da Caritás Brasileira e também de uma entidade da Holanda, era uma entidade ligada à luta das mulheres. Eles nos deram muito apoio. Essa entidade era holandesa. Nós tivemos ainda apoio de uma entidade alemã, até conseguimos com ele um recurso para comprar um barco, um transporte para a associação das mulheres. Manitese era o nome da entidade, hoje já nem existe mais. E tinha a entidade da Holanda, que era dirigida pelas mulheres, entidade que apoiava grupos, elas chegaram a nos doar máquinas de fazer arroz, nos ajudaram a fazer uma cantina comunitária, máquina para triturar grãos... Que nós fazíamos esses trabalhos ligados à pesca, mas também tínhamos esses trabalhos ligados à agricultura familiar. A gente produzia mas não tinha aonde guardar o produto, arroz, milho, mandioca... Aí nós tivemos muita ajuda dessas entidades, elas também nos ajudaram a legalizar a associação, essas mulheres da Holanda. (Benedita Lamparina, líder comunitária – entrevista janeiro de 2011). Grande parte do sucesso e do êxito dessas experiências foram resultados da capacidade dessas comunidades de agregarem apoios e aliados as suas causas. No relato das lideranças percebemos que essas comunidades contaram com uma ampla rede de apoio de diversas entidades locais,

como

é

o

caso

da

prelazia

de

Cametá,

do

Sindicato

dos

Trabalhadores Rurais, da Colônia dos Pescadores, mas rede política ultrapassava a escala local, sendo que esse movimento de preservação dos rios contou com o apoio de entidades de pesquisa, como universidades, além de organizações não governamentais nacionais e até internacionais. Foi essa construção de uma espécie de “políticas de escala” que permitiu a essas comunidades ganharem visibilidade e legitimidade, fortalecendo suas experiências. Nós também participamos de muitos encontros fora da nossa localidade. Eu pessoalmente fui representar a associação e a comunidade em muitos encontros em Belém, encontro que chegou a ter 80 entidades ambientalistas. Nós recebemos muitos convites para irmos falar e contar nossa experiência. Nós fomos a Brasília, fomos em Fortaleza, fomos no Maranhão, Piauí, em todos esses lugares nós fomos. Aí ia uma, duas mulheres, eu sempre representei muito lá fora, temos até retrato pela Europa, assim, com as fotografias estampadas, divulgando o nosso trabalho. Nós tínhamos uma divulgação e uma repercussão nacional. Essa experiência do Paruru era reconhecida nacionalmente, e com isso nós tivemos visitas das pessoas, das outras entidades no Paruru, pessoas que vinham conhecer, visitar o lugar, holandeses, e de

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outros países, passou por lá nessa época para ver, pra tirar retrato, porque era bonito. Tinha época que dava para ver peixe boiar no rio. Você ficava ali no casco, em cima de uma ponte, e você via lá embaixo peixe boiar, em toda bacia boiava, e aquilo fazia com que as pessoas iam ver porque elas não acreditavam. Aí depois vinham ver e diziam: “agora eu acredito que aqui existe o peixe, porque está boiando”. Mais ou menos em três anos que nós fizemos esse trabalho de preservação, aí começou a aparecer peixes de tudo quanto é tipo, é nessa área do Paruru, do Manuel Raimundo e do Curupitomba, era esse espaço todo que nós fazíamos esse trabalho de conscientização, mas era nesses locais da bacia que se concentravam os peixes. (Benedita Lamparina, líder comunitária – entrevista janeiro de 2011) As principais lideranças dessas iniciativas tiveram uma ampla circulação tanto na esfera local quanto regional, nacional e internacional, divulgando essa experiência e, ao mesmo tempo, agenciando uma relação mais forte com os discursos e as práticas ambientalistas, as quais, nesse momento, ganhavam grande popularidade no Brasil e na Amazônia como um todo. A origem dos Acordos de Pesca se dá a partir de uma necessidade espacial concreta na sobrevivência das comunidades; as estratégias de preservação do rio e dos recursos pesqueiros são frutos de uma certa prática ecológica popular, mas, aos poucos, é agenciada pelo discurso ambientalista e pelo processo de ambientalização que ressignificou o conjunto das lutas sociais na Amazônia como um todo, a partir da década de 1990, como discutimos no intermezzo três da tese. Essas estratégias de reapropriação social dos rios que constituem os Acordos de Pesca acabam por definir um tipo de territorialidade e a constituição de territórios específicos, em que são definidos tipos de uso, regras de acesso, locais que são permitidos ou não pescar, épocas do ano, tipos de espécie, etc. Apesar de haver uma diversidade de arranjos e configurações, de um modo geral, o que verificamos, ao analisar as atas de construção desses acordos, é que estes estão fundamentados em cinco elementos básicos: Regras e normas de controle, acesso e uso de determinados locais especiais dos rios, furos e igarapé, especialmente os “poços” e as bacias; Regras e normas sobre tipos de instrumentos e técnicas de pesca;

291

Regras e normas sobre determinadas espécies e sobre determinadas épocas do ano para captura; Regras e normas sobre a distribuição dos recursos pesqueiros na comunidade; E, por fim, regras de controle de fiscalização e punição daqueles que violam as regras coletivas. Podemos verificar esse conjunto de regras que compõe o Acordo de Pesca quando analisamos uma experiência especifica, como é o caso do Jorocazinho de Baixo, uma das comunidades que nós visitamos na pesquisa de campo. O estatuto da associação revela um arranjo normativo fundamentado nas regras coletivas de uso social do rio, por certas formas de controle e restrições definidas coletivamente. Reproduzimos abaixo essas regras: O Acordo de Pesca do Rio Jorocazinho de Baixo: A Acopremarj (Associação Comunitária de Preservação do Meio Ambiente do Rio Jorocazinho) é uma entidade civil sem fins lucrativos, regida pelos seus estatutos e pelas disposições legais aplicáveis. Tem o apoio das seguintes entidades: Ibama, Colônia Z-16 e PDA. A referida Associação, usando de suas atribuições legais e estatutárias, decreta a seguinte nota: -Todos os moradores da área em preservação têm o dever de colaborar pelo bem estar da população ajudando na educação ambiental, preservando junto ao meio ambiente. Para que os objetivos sejam alcançados devem ser obedecidas as normas estatutárias como: -Pescar no rio sem usar instrumentos predatórios como: Malhadeira de arrastão, ceboleira, tarrafa, fisgadeira e puçá. -Não será permitida a exportação dos alevinos (peixe miúdo), tiração de acarí, vendas de pássaros e animais silvestres. É proibido também o acesso de pessoal no local onde será feita a pesca do mapará evitando assim a invasão e proteção dos mergulhadores. Não é permitido corte de aturiá na área preservada assim como baque de água com vara na beira do rio. A bacia do poço da rampa é intocável. OBS: As malhadeiras a serem usadas serão limitadas da seguinte forma: malha 30 mm e com 30 metros de comprimento. Vamos todos desenvolver sem depredar! Jocarozinho de Baixo, 25 de junho de 2001. Acopremarj, Ibama, Colônia Z-16 e PDA (P. 34). Também verificamos, no relato dos moradores, o modo de funcionamento

desses

Acordos

de

Pesca.

Estes

estão

assentados

292

basicamente na limitação de uso de certos tipos de instrumentos, técnicas e tipos de peixes a serem capturados, além da restrição de pesca em alguns locais chamados de poços ou bacias, que constituem uma espécie de berçário de reprodução de várias espécies e que são os locais onde normalmente se concentram a maior parte dos peixes. Esse conjunto de regras e normas tem o objetivo fundamental de permitir a reprodução e a manutenção de determinados tipos de peixes, garantindo a sustentabilidade e a durabilidade do estoque dos recursos pesqueiros. Isso está expresso na fala de Dona Rita, líder comunitária da comunidade de Jorocazinho, e de Milson Lamparina, líder comunitário de Paruru de Joana Coelis. Aí a gente começou essa luta. A primeira coisa que conseguimos foi proibir a pesca com o uso do puçá e malhadeira de arrasto, também esse negócio, como diz aqui na nossa linguagem, de ficar cutucando na beirada foi proibido, assim como a retirada do acari. Aí entramos em acordo de experimentar essa preservação em seis meses, e aí nem chegou bem os seis meses e vimos o resultado, e aí fomos num poço chamado batelão, aqui próximo, e a gente via aquela grande quantidade do mapará que estava pulando. (Dona Rita – líder comunitária - comunidade Jorocazinho) Nós temos um regulamento, se você pegar nosso estatuto você vai ver, lá diz não pode jogar veneno no rio, não pode botar a malha 25 nem a malha 6, não pode fazer arrastão, não pode colocar matapi no igarapé, não pode bater água, não pode cutucar na beirada... Tem uma área aqui próximo que tem duas placas indicando, lá aquela área é uma área intocável, lá tem o cucuia que a gente chama, lá cai um monte de pau e aí se junta muito peixe, é um quilometro de área, lá ninguém pode jogar malhadeira (...) (Milson Gomes de Andrade - pescador da localidade Paruru de Joana Coelis - entrevista 2009). Todavia, o Acordo de Pesca não se resume a sua dimensão restritiva ou punitiva, não são apenas medidas do controle de acesso e de uso do rio, mas também envolve um conjunto de princípios e práticas de solidariedade e coletivização dos recursos. Isso está expresso na forma como as comunidades definem o destino e a distribuição dos recursos pesqueiros quando se autoriza a realização da pesca. Normalmente, o resultado da pescaria é dividido entre os pescadores que realizam o trabalho e toda a comunidade do entorno da área na qual foi realizada a

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pesca. Assim, todas as famílias que participam do Acordo, mesmo que não estejam diretamente ligadas à pescaria ou à área onde é realizada a pesca, recebem parte da produção e todos são contemplados de maneira igualitária. Esse sentido coletivo e comunitário é ressaltado com muito orgulho

pelas

experiência

da

lideranças gestão

como

sendo

comunitária

uma

dos

grande

recursos

conquista pesqueiros

dessa e

da

reapropriação social do rio. Em seguida, reproduziremos relatos que desenham bem como se dá esse processo dentro dos Acordos de Pesca. Aí começou, depois de todo esse tempo, uma discussão para pegar esse peixe. Começamos a discutir nas comunidades. Aqueles que eram do contra começaram a recuar, alguns morreram, alguns perderam o pique, e aí começou a haver uma discussão para a gente realizar a pesca. Fizemos umas três assembleias e numa assembleia com mais de 200 pessoas, nós chegamos a um acordo e fomos unânimes em aceitar que se realizasse a pesca. Aí eu e o rapaz lá do Manuel Raimundo fomos até o IBAMA conversar para liberar a pesca. Aí, chegamos lá para conversar com eles, aí eles disseram o seguinte: “o problema é o seguinte, se vocês se comprometem a responsabilidade vai ficar em cima de vocês. Tudo isso aconteceu, se não houver problema vocês podem pegar o peixe, agora se houver problema não venham aqui que a responsabilidade é de vocês”. Aí nós dissemos: “nosso povo nos garante”. Ai perguntaram: “qual é a proposta de vocês?” Aí nós dissemos: “é borqueio, não tem puçá, não tem rede aberta, porque o puçá pega todos os peixinhos pequenos, já o borqueio você bate um pouco de água, fecha uma parte, e não pega tudo no rio”. Aí nós fizemos assim e deu certo. Nós estamos fazendo há uns três anos assim. Aí, quando tem peixe, nós chamamos o pescador, aí vai o taleiro, vê quanto é que dá, se faz o borqueio, pega o peixe, e depois divide metade para o pescador, dono da rede, e a metade para toda a vizinhança. Agora nós temos cinco comissões, aí essas comissões vão dividindo o peixe de casa em casa. Olha, é um trabalho muito bonito, um trabalho que todo mundo dá dez, porque tu já pensaste dividir para tudo quanto é família, e tem família que ganha trinta, quarenta e até cinqüenta peixes, e todo mundo pega e fica satisfeito. Foi uma das coisas que nós fizemos que deu muito certo, que a gente se orgulha, e vê uma resposta do nosso trabalho, graças a Deus. (Milson Gomes de Andrade pescador da localidade Paruru de Joana Coelis – entrevista 2009). E aí entramos em acordo para pegar este peixe. Pegaram muitas toneladas, só grandão, e aquilo ajudou o trabalho, aquilo só fortaleceu. Nós tirávamos o peixe do pescador que tinha

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trabalhado, e o resto era dividido por todas as famílias, em partes iguais, que viviam no rio e participavam da comunidade. (Dona Rita – líder comunitária - comunidade Jorocazinho). Funcionava assim: no período em que a pesca estava aberta, se o taleiro que entende de lá, que só dá para pegar uns três ou quatro paneiros, a gente não permite a pesca, por causa do número de moradores, senão vai dar dois, três maparás para cada um. Tem que ser uma quantidade suficiente que dê para repartir para toda a comunidade. É assim, quando se pega o peixe, os representantes das comunidades ou as pessoas que trabalham com a gente vão de casa em casa deixando no porto de cada morador a quantidade que cabe a cada um. Por exemplo, se der dez maparás para cada um, todo mundo da comunidade vai receber esses dez, pois se dá para um, tem que dar para todos igualmente, é por isso que se for dois ou três paneiros que o taleiro calcula, não tem condições de fazer a pesca, tem que ser no mínimo de oito paneiros para frente, pois aqui no nosso acordo, nós tínhamos inicialmente em torno de 140 famílias. Aí, diminuiu depois que saiu algumas famílias para fazer um outro acordo, mas não vi muito resultado dessas famílias. Aqui tinha um trabalho organizado, com fiscalização e tudo, lá nesses outros acordos, é apenas ambição, pensando apenas no “eu”, no “nós” não. (Dona Rita – líder comunitária -comunidade Jorocazinho). Um dos problemas mais delicados da construção dos Acordos de Pesca é a questão da fiscalização, do cumprimento das regras estabelecidas pela comunidade. Sempre há membros da comunidade que não respeitam plenamente as regras e tentam burlar as restrições e sanções estabelecidas. Mas há também casos de pescadores de outras comunidades que tentam “invadir” os espaços que são protegidos pelos Acordos para pescar, por isso, há pelas comunidades a constituição de comissões de vigilância e fiscalização, assim como a definição de determinadas formas de punição. A fiscalização é realizada por pessoas voluntárias, algumas delas realizaram cursos de agente ambiental comunitário, outras não, as que ficam responsáveis por denunciar, autuar os infratores das normas do “Acordo”. Essas comissões saem à noite para fiscalizar se algum morador está praticando a pesca irregular, mas esse processo é muito conturbado, pois há resistências ao cumprimento das leis. Há também ambiguidade e falta de clareza das regras em alguns casos, além de uma ausência de apoio do poder público, tanto no processo de fiscalização quanto da punição por

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parte dos órgãos responsáveis pelo cumprimento da legislação ambiental. Esse difícil processo foi relatado em entrevista pelas lideranças comunitárias e reproduzimos a seguir: As regras de preservação era definida por toda a comunidade e havia pessoas indicadas pela comunidade para fiscalizar e vigiar o rio, para impedir que pessoas viessem de fora pescar aqui, e mesmo aqueles aqui de dentro. Essas pessoas iam à noite de lanterna para o rio fiscalizar o que estava acontecendo, e aí a coisa começou a dar certo e aí conseguimos recursos para iluminação. Aí, veio o primeiro celular aqui da região através do projeto PDA e aí veio ainda mais as oficinas, a parte de orientação, com pessoas capacitadas pra ajudar o trabalho de orientação das comunidades. Foi uma coisa, professor, que deu muito certo. (Dona Rita – líder comunitária - comunidade Jorocazinho). Se alguém ver o outro fazendo isso vai imediatamente denunciar para nós, aí nós levamos a denuncia para o IBAMA e damos a notificação para o cara. Então, se ele for sócio da colônia também vai ser suspenso o seguro desemprego dele, porque aí ele não tá respeitando nem as organizações locais e nem o defeso. Mas, quando chega o período da piracema aqui, nós suspendemos todo o tipo de rede, nós ficamos pescando só de caniço, pois estamos no período do defeso e o povo aqui, a maioria, é da colônia, por isso recebe o seguro desemprego, recebe o salário todo o mês. Então, o rio aqui é quase todo plaqueado, tem umas placas grandes, que mostram o nosso limite e isso tá demarcado no rio e até na estrada. Daqui do rio é quinze minutos para a estrada, e lá tem uma placa indicando. (Milson Gomes de Andrade pescador da localidade Paruru de Joana Coelis - entrevista 2009). Isso tem dado muito certo, mas é claro que tem problemas, tem exceções, não dá para você sair vigiando todo mundo. Eu, por exemplo, como presidente da associação, já sou marcado pelo pessoal, porque qualquer problema que surge, qualquer denuncia eles vão lá levar para mim levar para o IBAMA. Mas eu não posso ficar o tempo todo vigiando todo mundo. O que tinha que acontecer é que cada vizinho tinha que prestar atenção um no outro, mas isso não acontece, que o cara pensa: “Fulano de tal é meu amigo, não vou denunciar ele”. E nós não temos autoridade pra prender ninguém, o que nós fazemos é a conscientização do povo, mas se alguém não quer e resolve pegar tudo quanto é peixe, mesmo miudinho, ele tá prejudicando os outros e ele mesmo. (Milson Gomes de Andrade - pescador da localidade Paruru de Joana Coelis - entrevista 2009.)

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As pessoas que desrespeitam essas leis e as regras do Acordo de Pesca estão sujeitas a diferentes formas de sanções e punições como relata acima uma liderança comunitária. Contudo, essas formas de sanções e punições não são aceitas de forma tranquila, gerando grandes focos de tensões internas dentro das comunidades, e, não raramente, os Acordos de Pesca sofrem contestações por membros das comunidades descontentes, mas, de um modo geral, o resultado desses Acordos contribuem para a melhoria da qualidade de vida, garantindo, assim, sua legitimidade.

5.5. Acordos Comunitários de Pesca como estratégia de reapropriação do territó-rio: conflitos socioambientais e a criação de direitos territoriais comunitários. A construção e a afirmação da territorialidade dos pescadores, através da criação dos Acordos Comunitários de Pesca, não foi algo fácil e nem tranquilo. Houve muitas resistências e conflitos, pois essas iniciativas entraram em choque com outras territorialidades, sobretudo, de um conjunto de comerciantes e “donos” de terra que controlavam as áreas de várzeas e que mantinham um domínio sobre os recursos disponíveis no rio. Nesse sentido, os Acordos de Pesca significaram uma ameaça às fontes do poder que sustentavam essas formas de dominação, cujos “donos de beiradas”, que se julgavam os “donos do rio”, mantinham um total domínio sobre os recursos pesqueiros disponíveis nessas áreas, excluindo as comunidades mais pobres que ali viviam. O relato abaixo explicita como funcionava essa lógica do poder local: Naquela época só os donos das terras, os comerciantes, tinham acesso ao pescado, a geleira entrava no rio, enchia de peixe e ia embora para a cidade, o peixe ia todo para Cametá. Então tinha os comerciantes como o meu pai que tinha posse de três bacias, mas à frente tinha um Senhor Enedir que era dono de uma bacia, ele era até empregado da Petrobrás. Também o Sr. Pedro Moraes era dono de uma bacia no Curupitomba; Raimundo Leão era o outro comerciante que tomava conta de outra bacia, e a dona Luza, considerada professora desde não sei que época, a professora nata do rio, era dona de outra bacia, e a outra bacia do Curupitomba era de outro senhor que trabalhava na Petrobrás; eram pessoas que tinham uma condição, da alta sociedade; por exemplo, o meu pai tomava conta da metade da propriedade em Paruru. Só estrada de borracha era trinta, então ele beneficiava

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trinta famílias ligadas à estrada de borracha que ficavam debaixo do pé dele, ele era o maior produtor de arroz, milho e mandioca; ele era o maior comerciante do Paruru; então todas as pessoas que se relacionavam com ele, que compravam e vendiam com ele, estavam debaixo do pé dele, ele tinha um ciclo muito grande, os outros vinham para debaixo do pé de Pedro Morais, do Raimundo Leão, e o resto que sobrava ia para o pé da professora. Quer dizer, a comunidade era um grupo considerado pobre, as pessoas de uma certa condição não participavam da comunidade e o que predominava era a ambição. Já pensaste que é meu pai que levava trinta paneiros, setenta paneiros de maparás para a cidade de uma vez só, isso já era parte do dono da terra, porque o papai não era o dono da terra, ele era um arrendatário, eu cresci vendo aquilo e achando errado, mas eu não sabia o que fazer, como lidar com aquela situação. (Benedita Lamparina líder comunitário – entrevista janeiro de 2011). Quando as comunidades resolveram implementar uma estratégia territorial de reapropriação social do rio, através dos Acordos de Pesca, houve um confronto entre os interesses de preservação das comunidades, com os interesses daqueles que se consideravam os “donos da beirada”. Nesse sentido, houve reações desses comerciantes tentando impedir a construção

dos

“Acordos”;

em

alguns

casos,

houve

até

violência,

intimidação, ameaças de morte, mas, de um modo geral, as comunidades conseguiram imprimir suas estratégias e impor uma lógica comunitária de gestão dos recursos sobre a lógica de apropriação privada. Sobre essa contraofensiva, dos “donos da beirada”, o relato abaixo nos descreve muito bem essa situação: Mas não houve acordo entre as partes; a parte dos proprietários que queriam lancear o poço e pegar tudo, e nossa parte do movimento de conservação ambiental queria que fosse dividido em partes iguais; por exemplo, se a gente pegasse o peixe aqui, metade ia para o pescador e a outra metade ia para a população, nem que desse dois peixes para cada um, mas a população ia ser beneficiada, mesmo que essa população não pertencesse aqui à beira do rio, mesmo que morasse nos afluentes nós tínhamos que dar alimentação para essa população, mas eles não aceitavam. Essas pessoas eram comerciantes, empresários, alguns até de Belém, e tinham rede, barco, que vinha aqui e tiravam tudo e iam embora (....). (Milson Gomes de Andrade- pescador da localidade Paruru de Joana Coelis, em entrevista 2009.)

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A gente viu o resultado da organização, e agora tem um problema, quando não tem nada também não tem conflito, mas quando você vê aparecer o resultado, a produção, aí começou a surgir muito conflito; nós tivemos paz durante muito tempo, mas quando viram que tinha muito mapará, muito peixe, começou a aparecer o “dono de beirada” eles afirmavam, se o poço está aqui, esse terreno é minha propriedade, então esse poço é meu. Naquela época, aqui, e em todo o município de Cametá, e acredito que uma parte do Brasil e todo é assim, o povo tava morando aqui, aí ele tinha o terreno e dizia que toda a frente do rio era dele, eles se achavam “dono do rio”, eles achavam que os poços e as bacias era posse, era propriedade deles, aí dividia metade do peixe pro pescador e metade para ele, e o povo todo começava a ver navios, ver a banda passar. (Dona Rita – líder comunitária - comunidade Jorocazinho) Como podemos perceber, a reação dos “donos da beirada” foi intensa, pois ao perceberem que estava em risco o seu domínio, adotaram estratégias para garantir o controle, chegando a ponto de intimidação das lideranças comunitárias: Eu cheguei a sofrer ameaça na frente da justiça. Um senhor chamado Pedro Moraes, que era até meu tio, disse que ia arrebentar uma espingarda na minha cara se eu aparecesse com o meu grupo na bacia dele. Foi o que mais prejudicou esse grupo, pois depois dessa audiência lá, quando ele disse isso na frente da juíza, aí eles perderam a razão toda que ele tinha. Aí foi dado ordem pra prender, se eles continuassem ameaçando, eles iam presos. Eu fui ameaçada publicamente mais de uma vez, eu fui ameaçada por um outro “dono de poço”, eles consideravam que eram “donos do rio”, a bacia era deles, não era pública, eram deles, que o terreno deles passava pela beira... Então, eles diziam assim, eles mandavam recado: “fale lá para aquela mulher, se ela quiser morrer, pra ela aparecer aqui”. Aí nós se reunimos, vários grupos de homens e mulheres, e íamos para lá, e impediam a pesca deles, e eles não matavam ninguém. Depois que nós tinha a portaria em mão, nós impedia o bloqueio e ninguém invadiu mais. O pescador chegava lá e nós apresentava pra ele: “nós temos ordem e apoio da justiça para trabalhar aqui, se você quiser perder sua rede, jogue, mas que você vai ser notificado e a sua rede vai ser presa, vai!” E qual pescador vai querer perder sua rede? Uns três pescadores fizeram isso e voltaram, aí eles não tinham mais força, e o que definia nossa força era nossa capacidade de organização, que era tão forte e ainda hoje existe. (Benedita Lamparina líder comunitário – entrevista janeiro de 2011).

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Aí depois com as organizações a gente começou a discutir, aí descobrimos que o rio é público, que nem eu nem ninguém é dono do que tá lá; mas aí começou o conflito, nós tivemos conflitos terríveis, chegaram a me ameaçar de morte, com pistoleiro, gente aqui do rio, porque da federação da pesca teve gente que veio apadrinhar o cara que se dizia “ dono do rio”, porque era um comerciante, dependia um pouquinho, aí veio o pessoal aqui da federação aqui da pesca mediu o rio, e quando nós nem pensamos, nós fomos intimados, aí nós tivemos que enfrentar, ir para a justiça; nós tivemos 26 audiências, no fórum, no IBAMA, chegamos lá, nos deparamos com situações onde o Seu Orlando lobato foi muito duro, que ele disse que todo o rio que era varado não podia ser preservado, que nós estávamos impedindo o povo de pescar, e não era isso não, nós tínhamos umas normas, várias regras que era para a gente poder ter respaldo; aí a gente respondeu que todo o rio deságua no outro rio, mas pode ser perante a lei do meio ambiente, pode ser rios lagos ou igarapés, desde que seja por uma entidade devidamente legalizada ou organizada mesmo que não seja legalizada, ela pode ser preservada. (Dona Rita – líder comunitária comunidade Jorocazinho). Depois que a gente legalizou a associação, nós fomos até a juíza de Cametá; chegamos lá uma equipe de vinte mulheres, com o documento da associação em mãos, e a juíza baixou uma portaria; nós já tínhamos realizado muitas assembleias com todos os moradores, aí as pessoas que tomavam conta, que se achavam donos da bacia iam questionar lá na assembleia, eles achavam que estavam sendo prejudicados pela associação, pois a bacia estavam na frente dos terrenos deles, aí sempre a assembleia tinha que ter pessoal do Ibama, polícia, era sempre um choque; aí nesse momento se juntou a associação das mulheres, as delegacias sindicais, as capatazias da colônia de pescadores, as duas comunidades cristãs (Paruru e Manuel Raimundo), todos ali se juntaram formando um grupo a favor da preservação, e do outro lado tinha um outro grupo que era contra a preservação, só que era menor, a minoria, nosso grupo era bem maior, mesmo assim o meu pai ficou do lado do outro grupo, e aí foi obrigado a gente ter essa ideia de ir até a juíza. (Benedita Lamparina líder comunitário – entrevista janeiro de 2011). Aí quando a juíza nos deu a portaria, dando o direito para a gente fazer o trabalho, dentro do rio, essa portaria ainda existe lá no Paruru, e com essa portaria nós fizemos uma grande assembleia que deu 304 pessoas, representantes das famílias da comunidade inteira; diante desta portaria o meu pai disse que não atendia nada, eu tive que me levantar e falei, que se ele continuasse, o primeiro que ia ser preso era ele, que ninguém podia mais tolerar e porque as bacias tinham que ser preservadas, e que a pesca

300

deveria acontecer apenas de caniço, anzol, nem malhadeira, nem rede, nem puçá, não poderia usar; nós definimos um conjunto de regras, malhadeira só era 20 metros para cada família, matapi era só 10 para cada família; aí a gente fez assim naquele momento, a gente tirou uma linha de ação pra trabalhar com todas as famílias do rio, para que futuramente tivesse “o acordo” prescrito. (Benedita Lamparina líder comunitário – entrevista janeiro de 2011). Houve muita dificuldade no início do trabalho, a dificuldade foi muito forte, nós tivemos audiência na justiça, e assembleia pública na câmara municipal; isso provocava muito sofrimento para nós, nós fomos muito ofendidos, e até humilhados, pois a câmara daquela época era praticamente toda de direita, e o nosso movimento era considerado de esquerda, e então teve pessoas ali, como vereadores, que fizeram uma espécie de desacato com nosso grupo, dizendo que estávamos fazendo coisas erradas, que a gente não era dono do rio, dizendo que quem era dono do rio era quem era dono das terras, naquele tempo nós não tivemos apoio dos vereadores, só que nosso grupo já estava fortalecido, a gente tinha o trabalho ligado ao Ibama, que naquele tempo era o doutor Otávio, coordenador em Cametá, e ele ajudou muito nós, e outras figuras mais que nos ajudaram. (Benedita Lamparina líder comunitário – entrevista janeiro de 2011) Nesse processo de disputa a partir de lógicas distintas do uso/significado do rio e dos seus recursos, as comunidades mobilizaram estrategicamente o direito, a justiça e todo o aparato legal disponível para tentar legitimar e legalizar essa prática de gestão comunitária dos recursos. Nós tivemos uma vantagem, nós nunca agimos nem tomamos uma ação sem saber nada sobre a lei, nós sempre consultamos os advogados, consultamos as leis das águas, dos igarapés, das bacias; então nós discutimos e procurávamos saber o que podia ser feito e o que não podia ser feito; eu como presidente da associação, eu nunca fiz uma coisa sequer sem consultar um advogado ou uma pessoa que soubesse nos dar uma ajuda e uma instrução, e desde o momento que eu descobri que o rio era público, não era privado, e que era uma luta coletiva e não individual, em benefícios de todos, daí certamente que eu não podia agir somente pelas minhas ideias. Assim, a gente reuniu um grupo e discutia com eles, trazia as pessoas que conheciam as leis, como Dr. Nivaldo, que foi muitas vezes nos ajudar lá, para orientar o que a gente podia fazer e o que não podia fazer, o pessoal do IBAMA também nos ajudou, foi também essas orientações que nos ajudou, e com isso nós tivemos muito avanço. (Benedita Lamparina líder comunitário – entrevista janeiro de 2011)

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Quando o grupo daqueles que eram contra a preservação iam levar queixa até a delegacia, dizendo: olha, o pessoal do Paruru, a comunidade, está fazendo coisa errada, tem uma associação de mulher lá que tá fechando o rio; aí nós fomos chamados a depor na delegacia, aí nós dissemos para o delegado: isso que nós fazemos, é correto ou não é? Nós estamos contra a lei ou não? Aí o delegado disse que nós estávamos certos. E em todo o lugar e setores que eles nos denunciavam nós ganhávamos na questão, porque nós tínhamos o apoio, nós trabalhávamos com as portarias em mão, discutimos noites e noites artigos da lei, o que diz e o que não diz, e esse aprendizado nos ajudou muito; assim não era chegar, por exemplo, e fazer o que der na minha cabeça, nós tínhamos que ver, a lei diz isso, então nós vamos ver se podemos cumprir a lei. Quando nós proibimos o puçá de entrar no Paruru, nós estávamos baseados numa portaria, assim nunca mais entrou o puçá, aí os pescadores inclusive na colônia, diziam assim: lá vem aquela mulher! Essa mulher não presta! Ela acabou com nós! E eu estava errada? O que esse pessoal fazia? Eles estavam retirando os menores peixes que existiam na bacia, e com isso eles comprometiam todo o peixe do rio. Assim, a partir de então, só permitimos entrar rede aberta, isso quando era acertado pela comunidade, porque a coisa era muito séria; uma vez cheguei a contar num só dia, chegaram a pegar 18 paneiros de peixinho, no outro dia, boiava muito peixinho morto no rio, aí nós pegamos, botamos no álcool, e levamos para a juíza ver, aí ela baixou a portaria proibindo pescar lá. (Benedita Lamparina líder comunitário – entrevista janeiro de 2011). As lutas pela implementação dos Acordos de Pesca como uma estratégia territorial de reapropriação social do rio implicou na ação direta dos pescadores controlando partes, ou mesmo, o rio como um todo. Assim, podemos verificar nos relatos das lideranças comunitárias que

as

comunidades chegaram a fazer “cercos”, “empates”, “bloqueios”, impedindo a ação de outros pescadores que pretendiam realizar a pesca em locais considerados apetrechos

proibidos considerados

pelos

Acordos

predatórios.

e

também,

Nesse

usando

sentido,

houve

tipos

de

conflitos

intensos marcados por ameaças, intimidações, além da tentativa de usos das instituições por parte dos comerciantes que tentavam, a todo o custo, garantir a sua posse sobre os recursos pesqueiros e sobre o rio. Nesse processo, há um acionamento de uma territorialidade entendida como uma estratégia de afetar, influenciar, controlar pessoas, relações e fenômenos através do controle de uma área (Sack, 2011). Essa estratégia é acionada pelas comunidades implicando diferentes níveis de

302

acesso aos recursos pesqueiros e criando um zoneamento nos rios e igarapés, do mesmo modo que se cria um complexo calendário de acordo com o ciclo reprodutivo dos peixes já normatizado pela legislação ambiental vigente. Assim, certas épocas do ano, no período de reprodução dos peixes, chamado de piracema, é proibida a pesca em determinadas áreas e com determinados tipos de instrumentos; os pescadores hoje têm o direito a um seguro desemprego pago pelo governo federal nesse período em que a atividade da pesca não pode ser realizada livremente. Partindo dessas reflexões, os Acordos de Pesca são claramente estratégias espaciais de controle e de exercício do poder, a partir dos quais determinado grupo aciona um conjunto de ações que vão desde construção de normas e regras, até a vigilância e o bloqueio físico dos rios, igarapés e lagos, na tentativa da afirmação de um domínio sobre os recursos. Assim, como afirma Sack (2011), a territorialidade é uma forma de definição de diferentes graus de acesso, ou seja, na definição de um território, como ocorre na construção dos Acordos de Pesca, define-se quem, quando e como

se

tem

acesso

a

certas

áreas

consideradas

estratégicas

e

fundamentais, como é o caso dos chamados “poços” e “bacias”. Desse modo, o acionamento de uma conduta, de um comportamento territorial por partes das comunidades na defesa de seu território implica em processos classificatórios de inclusão e exclusão. Segundo Robert Sack (1986), o uso ou acionamento de uma territorialidade envolve três elementos básicos: 1) a construção de uma classificação por área; 2) uma forma de comunicação; e 3) um esforço para controlar o acesso. Esses três elementos parecem explícitos quando analisamos o Acordo de Pesca como uma estratégia territorial. Os “Acordos” instituem formas de classificação por área quando definem o processo de exclusão e inclusão que determinados grupos de pescadores podem ou não pescar em determinada área. Há também formas de sinalização e de comunicação que marcam as fronteiras desse território instituído e protegido pelos “Acordos”; estes signos e símbolos das fronteiras estão expressos nos diversos marcadores que as comunidades utilizam para explicitar os limites das áreas nas quais os “Acordos” funcionam. Como tivemos a oportunidade de observar nos trabalhos de

303

campo, há inúmeras placas de sinalização no rio, orientando que naquelas áreas são proibidos certos usos e práticas de pesca. As placas apresentam, ainda, informações sobre o tipo de entidade e/ou associação que controla aqueles trechos do rio que estão sob a normatização dos Acordos de Pesca. Essas formas de classificação por área e a comunicação dos limites das fronteiras

acabam

por

reforçar

o

terceiro

elemento

constitutivo

da

territorialidade, que, segundo Sack (1986), tem a ver com o exercício espacial do poder, expresso através do controle diferenciado de acesso sobre uma determinada área. Aí nós colocamos placas, até hoje está lá essas placas que indicam que lá só é permitido a pesca de caniço e rede aberta eles não jogam na bacia. Eles têm uma forma de retirar o peixe da bacia sem tocá-la dentro; mas assim quando eles retiram é muitos peixe, dá para todo mundo. Como é muita gente hoje lá, já ultrapassa 1.000 pessoas e todas as famílias estão cadastradas, participam, eles pegam duas, três, bacias e pegam todo aquele peixe e dividem. (Benedita Lamparina líder comunitário – entrevista janeiro de 2011) A partir dos diversos relatos dos sujeitos diretamente envolvidos com a experiência da criação dos Acordos Comunitários de Pesca, podemos ter um panorama descritivo dos vários elementos que envolvem tal experiência,

considerada,

nesse

trabalho,

enquanto

uma

estratégia

territorial. Mas, para além dessa dimensão descritiva e fenomênica dos acordos, se faz necessário realizarmos uma síntese de caráter analítico sobre o processo de territorialização das lutas por direitos empreendidos pelas comunidades ribeirinhas. Como todo processo de territorialização, os Acordos

de

Pesca

envolvem

diversos

aspectos

que

precisam

ser

cuidadosamente analisados. Nesse sentido, o que faremos a partir de então é uma tentativa de sistematização sobre o Acordo de Pesca como estratégia territorial. Para tanto, lançaremos mão de uma grade analítica construída no segundo capítulo desta tese e que envolve os seguintes elementos: Agentes/sujeitos/protagonistas. O ponto de partida para a análise dos acordos de pesca, como um processo de territorialização, ou, simplesmente, como uma estratégia

304

territorial é a análise de quais sujeitos são protagonistas desse processo e de que modo suas ações afetam e influenciam a ação de outros sujeitos. Não há como pensar em território, em territorialidade, em processos de territorialização protagonista,

sem

ter

entendendo

como

ponto

protagonista

de no

partida sentido

o

agente/sujeito

usado

por

Porto-

Gonçalves (2008): Protagonista é aquele que busca se colocar como principal sujeito de uma ação, aquele que se coloca em movimento. O protagonismo social é a ação de um grupo, classe ou segmento da sociedade que se coloca como principal sujeito na dinâmica social, é a forma de se colocar e se afirmar como produtores da história e do devir social. O protagonismo social significa que as pessoas tomam para si próprias o controle de suas vidas, constroem estratégias de ação coletiva para se colocarem como sujeitos políticos efetivos, amenizando e buscando superar os limites da democracia representativa e, principalmente, colocando-se como portadores de novos direitos políticos, culturais, econômicos, estéticos, sexuais, etc. (PORTOGONÇALVES, 2008, p.12) Entender

o

protagonismo

social

implica

compreender

os

processos de constituição de sujeitos coletivos. Essa dinâmica passa por “um complexo processo de construção social de uma identidade coletiva, de um

imaginário

social,

uma

subjetividade,

formas

de

organização,

manifestação, possibilidades concretas de organização, margem política e econômica de manobra e, por fim, o interesse em superar determinada condição social”. (PORTO-GONÇALVES, 2008, p.12) Os protagonistas dos chamados acordos de pesca são as comunidades ribeirinhas que vivem da prática da pesca artesanal e que diante de uma condição de profunda de subalternização - devido aos grandes impactos sociais, ecológicos e econômicos da construção da hidrelétrica de Tucuruí e de uma dinâmica de dominação na escala local tornaram-se sujeitos protagonistas na luta por seus direitos. Esse processo, no qual as comunidades ribeirinhas saem da condição de coadjuvantes e subalternos para condição de protagonistas, foi lento e complexo e envolveu vários elementos: a) a construção de uma nova cultura política caracterizada pela participação; b) a constituição de identidades coletivas que levaram afirmação da condição de ribeirinho e

305

pescador; c) a conformação de uma subjetividade não conformista; d) a capacidade de organização institucional expressa na Colônia dos Pescadores e nas inúmeras associações ambientais construídas por essas comunidades nos últimos anos. Essa reconfiguração das identidades sociopolíticas e a resignificação das estratégias de ação possibilitaram a construção dos Acordos de Pesca como uma estratégia de reapropriação social do território. Os tipos de objetivos que envolvem os processos de territorialização. Os

objetivos

dos

acordos

de

pesca

são

o

controle

de

determinados rios, trechos dos rios, ou igarapés e lagos para garantir o controle e sustentabilidade dos recursos pesqueiros. Essa estratégia territorial busca impedir que determinados grupos usem, de maneira predatória, os recursos pesqueiros, como é caso de grupos de pescadores ligados à atividade pesqueira de caráter comercial, bem como questionar a exclusividade do controle do rio e dos recursos pesqueiros realizados, até então, pela elite local de comerciantes que se denominavam os “donos da beirada” e os “donos do rio”. A construção dos territórios a partir dos Acordos implica em que prevaleçam os interesses comunitários e coletivos sobre os interesses individuais. Nessa perspectiva, o valor fundamental do rio

e

dos

recursos

pesqueiros

é

a

garantia

da

sobrevivência

das

comunidades e não a produção de dinheiro e lucro. Os objetivos dessa estratégia territorial é a garantia da soberania da comunidade sobre o espaço coletivo que é o rio, e, com isso, a garantia da sobrevivência dessas comunidades. Os Conflitos/antagonismos: Como todo processo de territorialização, os acordos de pesca se definem pela capacidade de um determinado grupo afetar e influenciar o acesso, o uso e o controle dos recursos através do controle de uma determinada

área

(Sack,

1986).

Nesse

exercício

de

poder,

ocorre

construção de determinadas linhas de fronteira que demarcam a quem pertence e quem está fora do território; quem está incluído e quem está excluído; quem tem o direito e quem não tem o direito de acesso aos recursos. Esse processo implica em conflitos de natureza socioambiental, pois trata-se de uma disputa conflitiva e antagônica na qual diferentes

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grupos, a partir de diferentes lógicas e racionalidades, buscam se apropriar dos recursos com fins e finalidades distintas. São conflitos socioambientais entendidos como: (...) aqueles envolvendo grupos sociais com modos diferenciados de apropriação, uso e significação do território, tendo origem quando pelo menos um dos grupos tem a continuidade das formas sociais de apropriação do meio que desenvolvem ameaçada por impactos indesejáveis – transmitidos pelo solo, água, ar ou sistemas vivos – decorrentes do exercício das práticas de outros grupos. (Acselrad, 2004a, p. 26). Os conflitos socioambientais que as implementações dos acordos de pesca produziram na área de várzea foram de duas ordens. Inicialmente houve a disputa e o antagonismo com grupos de pescadores que exerciam essas atividades para fins comercias e com os chamados “donos da beirada”, que eram comerciantes locais que controlavam as terras, os rios e os recursos pesqueiros disponíveis. A afirmação do controle territorial por parte das comunidades ribeirinhas provocou inúmeras reações desses grupos que tiveram o seu poder questionado. Contudo, os conflitos e antagonismos não se restringem à relação com “os de fora”; ocorrem muitos conflitos internos nas próprias comunidades implementadoras dos acordos, não raramente havendo um alto grau de tensão no que se refere à fiscalização e punição daqueles pescadores que transgridem as regras comunitárias construídas coletivamente, como vimos nos depoimentos das lideranças comunitárias, sendo um dos pontos sensíveis, que dificulta a manutenção e o funcionamento dos acordos comunitários. A configuração espaço-temporal do território e/ou dos processos de territorialização Normalmente, a definição dos chamados territórios de pesca, ou melhor dizendo, dos territórios dos pescadores apresentam configurações muito particulares, pois, diferente da definição dos territórios em espaços de terra firme, a territorialidade dos pescadores é uma espécie de “territorialidade anfíbia”, pois ela se materializa em um terreno de várzea no qual há um misto de terra e água com regime ecológico muito específico.

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Além disso, a lógica do território não pode ser resumida ao seu aspecto zonal; os territórios dos pescadores são constituídos de muitos pontos chamados “pontos de pesca”, além de uma série de caminhos ou itinerários por furos e igarapés, construindo uma sinuosa e labiríntica rede de lugares definida pelo uso concreto e pelo significado simbólico desses espaços. Outro aspecto a ser considerado na definição desses territórios é que, na várzea, não há um regime de propriedade tipicamente capitalista e limites claros da propriedade; a posse e a legitimidade se dão pelo uso e pela tradição. Nesse sentido, as propriedades dos pescadores e ribeirinhos, de uma forma geral, são demarcadas de uma maneira mais fluida e ambígua do que propriedades nas áreas de terras firmes. Essas características tornaram mais complexa a construção de uma normatização coletiva do uso do território. Dessa maneira, o esforço dos pescadores, ao construir um acordo coletivo de pesca, era definir áreas de

uso

comum,

consideradas

estratégicas

para

sobrevivência

da

comunidade. Nessas áreas chamadas de “poços ou bacias” existe um rigoroso controle do acesso que é realizado através de uma sinalização com placas, boias, além de fiscalização noturna, a fim de impedir que “os de fora”, mas também “os de dentro” não realizem pesca predatória nesses trechos do rio considerados berçários de reprodução dos peixes e que, portanto, são áreas estratégicas que garantem a sustentabilidade dos recursos pesqueiros. Sistema de diferenciações e classificações sociais resultantes dos processos de territorialização. Os acordos de pesca, como todo processo de territorialização, implicam em um processo de classificação e de diferenciação social; o território, seus limites e suas fronteiras implicam em jogos de inclusão, exclusão e hierarquias. Dessa forma, os acordos de pesca acabam definindo quais grupos sociais, os chamados “do lugar” ou “da comunidade”, têm direito de explorar os recursos e quais não têm. Isso implica em dizer aqueles que são bem-vindos à comunidade e aqueles que não são, e há muitos casos em que, em uma mesma comunidade, há determinadas famílias que se recusam a participar dos acordos, gerando conflitos internos

308

na própria comunidade. Nesse sentido, os acordos de pesca geram muitos focos de tensão e de conflitividade, pois sua legitimidade é constantemente questionada por aqueles que se sentem excluídos. Não raramente ouvimos de moradores, os quais não pertencem aos acordos de pesca, que estes produzem privilégios, que o rio é público e de todos, e que, portanto, ninguém tem o direito de impedir o acesso de quem quer que seja. Mas essas tensões também envolvem a construção de uma cultura política de participação e da construção coletivas de decisões, o que é sempre um difícil aprendizado. As modalidades instrumentais de exercício de poder nos e através de espaços resultantes dos processos de territorialização. A maneira de domínio, controle e apropriação do espaço realizado pelas comunidades ribeirinhas, para a implementação dos chamados acordos de pesca, vai desde a demarcação física do espaço, através de placas e sinalização, até a fiscalização feita por equipes eleitas e designadas pela comunidade, as quais exercem uma vigilância constante para evitar que “forasteiros” possam quebrar as regras determinadas pela comunidade. Mas esta vigilância se dá também para controlar os próprios membros da comunidade, evitando que estes possam exercer a atividade da pesca fora dos parâmetros estabelecidos pelo acordo. Além desse claro controle e domínio que gera muitas tensões e conflitos, há uma apropriação e uma definição de limites de natureza mais simbólica que estão expressos, muitas vezes, através das próprias regras definidas pela comunidade e assentadas em tradições, lendas e mitos. Desse modo, nos acordos de pesca e na definição dos territórios, a tradição, os costumes e o imaginário mítico e fantástico, que fazem parte do modo de vida ribeirinho, têm um papel regulador importante nos comportamentos e condutas cotidianas. Formas de uso social do território/ processo de territorialização. O processo de territorialização tem como variável essencial as diferentes formas de uso cotidiano do território. O modo de vida ribeirinha implica em um conjunto de práticas, técnicas e saberes específicos que

309

definem diferentes usos para a terra e para a água e para os diferentes recursos naturais; isso não se restringe à atividade da pesca, mas também de determinadas formas de extrativismo vegetal, da agricultura, da criação de animais e, em algumas circunstancias, da caça. Esse complexo conjunto de atividades define a configuração e os limites do território. As formas de desterritorialização.

normatização

do

território/processos

de

Uma característica fundamental dos acordos de pesca é a definição de um conjunto de regras e normas que definem o tipo de uso do território, especialmente o tipo de pesca realizada; definem-se os tipos de instrumentos autorizados e os que não são; definem-se os tipos de espécies de peixes que são permitidos e os que não são; também são definidas determinadas áreas que são consideradas “criadouros” e que, portanto, não podem ser usadas. Esse conjunto de regras e normas é definido coletivamente e fundamentado em práticas sustentáveis historicamente pela comunidade e repassado através da tradição de geração para geração. Produz formas de direitos específicos, pautados no uso e na tradição, muitas vezes, tensionando com ordenamentos jurídicos convencionais. O acordo de pesca é a afirmação de direitos territoriais coletivos e comunitários e que institui uma nova forma de juridicidade que emerge das condições concretas e das necessidades reais das comunidades. Em muitos aspectos, os Acordos de Pesca foram bem-sucedidos, contudo, não foram legalizados50, pois contrariam a legislação brasileira na qual o rio é um bem público e todo e qualquer pescador regularmente cadastrado tem direito a pescar em qualquer parte do território nacional.

50

O IBAMA, órgão responsável pelo gerenciamento pesqueiro no Brasil, elaborou um documento, em 1997, considerando os acordos de pesca legalizáveis. Posteriormente, em 31 de dezembro de 2002, o mesmo órgão publicou a Instrução Normativa nº 29, reconhecendo os acordos de pesca como instrumento de ordenamento pesqueiro e estabelecendo critérios para a sua regulamentação, Contudo foi definido uma série de procedimentos e condições para realização desse processo de legalização que torna muito difícil às comunidades efetivarem essa legalização. Hoje, dos mais de 20 acordos em vigência no município de Cametá, nenhum é legalizado. Em conversa com as lideranças dos pescadores, sinalizaram que estão elaborando um projeto para criação de legislação municipal para regularizar a situação dos acordos de pesca no município.

310

Em muitos momentos, os adversários das comunidades utilizaram estes argumentos para deslegitimar as práticas dos Acordos de Pesca, alegando que se tratava de uma prática ilegal e feria princípios básicos do direito. O que está em jogo nesta experiência é a emergência de novos padrões de normatividade, a emergência de outra juridicidade que institui regras, normas e formas de direito gestadas a partir do cotidiano e das necessidades concreta das comunidades. Trata-se da emergência de direitos territoriais

insurgentes,

que,

baseados

em

princípios

coletivos

e

comunitários, contrariam a lógica liberal e privada do direito à propriedade. 5.6. O significado jurídico, político e ecológico-econômico dos Acordos de Pesca para as comunidades ribeirinhas no município de Cametá: possibilidade e limites. Os

Acordos

de

Pesca

têm

muitos

significados

para

as

comunidades ribeirinhas, mas eles representam, sobretudo, o direito a autogestão dos seus territórios. O território funciona como uma espécie de catalisador ou condensador de direitos; portanto, a garantia dos direitos territoriais é também a garantia das condições básicas de sobrevivência, como a alimentação e um ambiente saudável; significa também o direito à autonomia, à identidade e a um modo de vida próprio. Mas a relação dessas comunidades com o direito não é simples, pois ora se beneficiaram da justiça formal, ora se depararam com problemas e restrições com o ordenamento jurídico formal. No conturbado processo de implementação desses Acordos, as comunidades mobilizaram a justiça local, obtendo, de certo modo, apoio as suas iniciativas. Em muitos depoimentos percebemos que as comunidades fizeram um uso não hegemônico de um instrumento hegemônico que é o direito. Nesse sentido, buscaram brechas e artifícios nas legislações para justificar e legitimar suas ações; todavia, esse processo foi bastante acidentado, visto que do ponto de vista do ordenamento jurídico formal, os Acordos de Pesca ferem vários princípios legais. Os Acordos de Pesca significaram a criação e a invenção de novas formas de direito que atendessem às necessidades concretas e cotidianas dessas comunidades, sinalizando para a emergência de direitos insurgentes, direitos que nascem do rio.

311

O direito nasce e é produzido e exercido a partir de múltiplas fontes e nos mais diversos campos sociais. O Direito Estatal, simbolizado pela lei escrita e por códigos formais, representa, segundo WOLKMER (2001), “somente uma espécie dentro do gênero do Direito”; no entanto, o Estado detém o monopólio da positivação que transforma o direito em lei e institui o sentido de legalidade. Evidentemente que,

em uma sociedade

como a nossa (burguês-capitalista), o direito projetado e corporificado pelo modelo de centralização estatal hegemônico impõe um rígido sistema de fontes formais, caracterizado pela supremacia do direito legiferado e escrito sobre o direito consuetudinário e o direito dos juristas e, ainda, pelo sufocamento e exclusão de práticas informais vinculadas ao direito comunitário insurgente. No entanto, não raramente, esse ordenamento jurídico formal instituído pelo Estado é incapaz de dar conta das demandas sociais por justiça, por isso emergem outras práticas do exercício do direito não formal, constituindo

o

que WOLKMER (2001) denomina de

comunitário-participativo”.

Esse

pluralismo

expressa

um “pluralismo nas palavras

de

WOLKMER (2001 p.151) a “insuficiência das fontes clássicas do monismo estatal e determina o alargamento dos centros geradores de produção jurídica mediante outros meios normativos não-convencionais, sendo privilegiadas, neste processo, as práticas coletivas engendradas por sujeitos sociais”, como é o caso da criação dos Acordos Comunitários de Pesca. É inegável a constatação de que a “fonte”, no âmbito do Direito, traduz os diferentes modos de sua formação e as múltiplas expressões de seu conteúdo histórico dentro da realidade social. Daí que a fonte primária do Direito não está na imposição da vontade de uma autoridade dirigente, nem de um poder legiferante ou de uma criação iluminada de magistrados onipotentes, mas, essencialmente, na dinâmica interativa e espontânea da própria sociedade humana. Assim, a fonte jurídica por excelência encontra-se interligada às relações sociais e as necessidades fundamentais desejadas, inerentes ao modo de produção da vida material, subjetiva e cultural. (...) As fontes de produção jurídica que se estruturam em termos de um conteúdo (sentido material) e de uma configuração simbólico-cultural (sentido formal), reproduzem a manifestação de seres humanos inter-relacionados, que vivem, trabalham, participam de lutas e conflitos, buscando a satisfação de necessidades cotidianas fundamentais num interregno marcado pela “convivência das

312

diferenças”. Nestas condições, a produção jurídica não pode deixar de retratar o que a própria realidade dimensionalizada, bem como de corresponder às reais necessidades da sociedade em dado momento histórico, moldando-se às flutuações cíclicas que afetam também os demais fenômenos do mundo cultural (aspectos sociais, econômicos, políticos, éticos, religiosos, lingüísticos etc.). (WOLKMER, 2001 p.151-2). O direito, portanto, está intimamente ligado às transformações da vida social e está sujeito à dinâmica dos conflitos, das contradições e dos antagonismos sociais, sendo constantemente transformado e reformulado a partir de necessidades e interesses dos diversos grupos sociais, tendo um caráter processual, dinâmico, flexível e circunstancial. Nesse sentido, para WOLKMER (2001) parece claro que: (...) o problema das fontes do direito numa sociedade determinada e historicamente concreta não está mais na priorização de regras técnico-formais e na completude de ordenações teórico-abstratas, porém na dialética de uma práxis do cotidiano e na materialização normativa comprometida com a dignidade de um novo sujeito social. Os centros geradores de Direito não se reduzem, de forma alguma, às instituições e aos órgãos representativos do monopólio do Estado, pois o Direito, por estar inserido nas e ser fruto das práticas sociais, emerge de vários e diversos centros de produção normativa, tanto na esfera supra-estatal (organizações internacionais) como no nível infra-estatal (grupos associativos, organizações comunitárias, corpos intermediários e movimentos sociais). (WOLKMER, 2001, p. 153). Segundo WOLKMER (2001, p. 156), os novos sujeitos coletivos podem ser reveladores de uma fonte diferenciada de produção jurídica; desse modo, os movimentos sociais, são, conforme o autor, uma fonte “não estatal” geradora de direitos emergentes e autônomos. O ponto de partida para a constituição e o desenvolvimento do direito vivo comunitário não se prende nem à legislação, nem à ciência do direito, tampouco à decisão judicial, mas nas condições da vida cotidiana, cuja real eficácia apoia-se na ação de grupos associativos e organizações comunitárias. Nesse quadro de referência, as “vontades coletivas” organizadas, utilizando-se de práticas sociais que instrumentalizam suas exigências, interesses e necessidades, possuem a capacidade de instituir “novos”

313

direitos, direitos ainda não contemplados reconhecidos pela legislação oficial do Estado.

e

nem

sempre

Nesse sentido, fica claro que a produção jurídica não reside tão somente

no

Estado,

mas

pode

surgir

de

outras

instâncias

sociais

diferenciadas e independentes, mais exatamente do bojo complexo e do contingente

de

diversos

espaços

ocupados

por

sujeitos

coletivos

autônomos. Para WOLKMER (2001, p. 156), é significativo número de doutrinadores contemporâneos que são unânimes em admitir que amplas parcelas dos “corpos intermediários”, com baixo grau de institucionalização, podem elaborar e aplicar suas próprias disposições normativas, dentre as quais as corporações de classe, associações profissionais, conselhos de fábrica, sindicatos, cooperativas, agremiações esportivas e religiosas, fundações culturais e educacionais etc. Em cada um desses grupos comunitários de interesses livremente organizados, ocorre uma “regulação interna”, “informal”, “autônoma” e “espontânea”, paralela e independente da normatividade estatal, dos códigos oficiais, das legislações elaboradas pelas elites políticas dominantes e pelos juízes nos tribunais estatais. Reforçando a interpretação da existência das várias formas jurídicas autônomas de grupos ou movimentos coletivos, assinala Georges Gurvitch que “as proposições jurídicas abstratas formuladas pelo Estado, (...) não se dirigem, no fundo, senão aos tribunais estatais e a outros órgãos do Estado. Os grupos e indivíduos vivem freqüentemente sua vida jurídica na ignorância do conteúdo dessas proposições”. Assim, só “uma ínfima parte da ordem jurídica da sociedade pode ser alcançada pela legislação do Estado, e a maior parte do Direito se desenvolve independentemente das proposições jurídicas abstratas”. (WOLKMER, 2001, p. 154). É justamente esse grande espaço informal, não estatal que, nos últimos anos no Brasil e, especialmente na Amazônia, um conjunto de comunidades

tradicionais,

objetivado

em

movimentos

sociais,

vem

instituindo novas formas de direito comunitários fundados em práticas cotidianas, no costume e na tradição. Essas práticas são produtoras de direito e de um sentido de justiça comunitária. Trata-se de uma nova forma de gerar legitimidade a partir de práticas e relações sociais surgidas na concretude plural e efetiva do cotidiano.

Conforme WOLKMER (2001), o

314

centro de gravitação e de produção jurídica desses “novos direitos” aparece através

de

sociopolíticos”

“pactos e

setoriais”,

“convenções

“negociações

normativas”

coletivas”,

firmados

por

“arranjos identidades

coletivas e por associações voluntárias, que passam a ser encaradas como fonte do Direito em certo sentido prevalecente e não subordinado ao formalismo das fontes chamadas formais, constituindo uma espécie de “legalidade paralela” ao ordenamento jurídico formal e abstrato de monopólio estatal. Essa prática acaba por instituir um tipo de pluralismo jurídico que, segundo Wolkmer, (2003) é uma espécie de resposta à injustiça, ineficácia e esgotamento da legalidade liberal-individualista, face às demandas por direitos básicos, deduzidas pelas classes subalternizadas através da ação de movimentos sociais em luta pela concretização de tais direitos. As lutas por novos direitos são travadas principalmente por aqueles sujeitos históricos que, na prática cotidiana de uma cultura políticoinstitucional e um modelo socioeconômico particular, são atingidos na sua dignidade pelo efeito perverso e injusto das condições de vida impostas pelo alijamento do processo de participação social e pela repressão da satisfação das mínimas necessidades (Wolkmer, 2003). Essa especificidade explica a razão de a maioria das ações coletivas que se organiza e se mobiliza para a implementação de “novos” direitos, está em busca de necessidades não atendidas, com seus direitos desrespeitados, excluídos de fato da cidadania ou do “direito de ter direito” para usar a expressão de Hanna Arendt Ainda que os chamados direitos “novos” nem sempre sejam inteiramente “novos”, na verdade, por vezes, o “novo” é o modo de obtenção de direitos que não passam mais pelas vias tradicionais - legislativa e judicial -, mas provêm de um processo de lutas e conquistas das identidades coletivas para o reconhecimento pelo Estado. Assim, a designação de novos direitos refere-se à afirmação e materialização de necessidades individuais (pessoais) ou coletivas (sociais) que emergem informalmente em toda e qualquer organização social, não estando necessariamente previstas ou contidas na legislação estatal positiva. (Wolkmer, 2003:9).

315

Do ponto de vista sociopolítico, os Acordos de Pesca significam um avanço rumo à construção de uma relativa autonomia das comunidades em relação à força do poder local, representados pelos comerciantes e pelas famílias oligárquicas que dominam a política local. Os Acordos de Pesca, de uma maneira bem simples, podem ser entendidos como as comunidades “criando e instituindo suas próprias leis”. Esse processo aponta para construção de uma autonomia, que no sentido etimológico expressa exatamente essa ideia, quando uma comunidade ou uma sociedade se autoinstitui, definindo suas próprias normas e leis, como bem nos afirma Souza (2006): Autonomia vem do grego autós, “o próprio”, mais nómos, que tanto significa “lei” quanto “convenção”. Ser autônomo significa, assim, “dar a sua própria lei”, em vez de recebê-la por imposição. O que isso quer dizer? Tomar nas mãos o próprio destino: liberdade política e percepção da história como criação. A autonomia é o contrário de paternalismo, de tutela. (SOUZA, 2006, p. 69). Indo para além do significado etimológico da palavra e avançando no campo mais filosófico, ético e político, podemos verificar que a ideia de autonomia aponta para a capacidade de construção da própria história, seja individual ou coletivamente, bem como para a afirmação de relações sociais baseadas na liberdade, na igualdade e na democracia. Retornando ao conceito de autonomia, há que se diferenciar entre os dois lados da mesma moeda: autonomia individual e autonomia coletiva. A autonomia individual tem a ver com a capacidade psicológica e a possibilidade material e institucional efetiva de cada indivíduo adulto de estabelecer fins para a sua existência e persegui-los de modo lúcido em igualdade de oportunidades com outros indivíduos pertencentes a mesma sociedade (...). Por outro lado, não há indivíduos autônomos, em qualquer sentido politicamente digno de nota, sem uma sociedade autônoma (e vice-versa, não custa salientar). A autonomia coletiva tem a ver com a presença de instituições sociais que garantam igualdade efetiva – e não apenas formal – de oportunidades aos indivíduos para a satisfação de suas necessidades e, muito especialmente, para a participação em processos decisórios relevantes para a regulação da vida coletiva; em outras palavras, ela tem a ver com as instituições sociais que permitem a existência de indivíduos autônomos (livres) e de indivíduos educados para a liberdade, a sua própria e a dos

316

outros (vide CASTORIADIS, 1975; 1983a; 1986d; 1990c; 1996b). (SOUZA, 2006, p. 70) A autonomia coletiva pode ser entendida, igualmente, como um sinônimo de democracia radical, também expressável como autogestão (...), e como instituições políticas (e econômicas) que garantam a autonomia individual, mas não só: também como um imaginário que propicie o caldo de cultura para uma socialização autônoma do indivíduo. Isso sem contar, é até ocioso lembrar, a independência e a soberania em face do “externo”, isto é, de outras coletividades político-territorialmente organizadas. A autonomia individual, no caso de projeto de autonomia, mesmo se traduzindo na possibilidade de um indivíduo de planejar e modelar sua trajetória de vida com a maior liberdade possível (não esquecendo jamais, claro, as contingências, o imprevisível...), não se esgota em uma liberdade privada, como um mero atributo da vontade individual, sobre a base de um individualismo egoísta e ensimesmado. A liberdade é, também, liberdade para estar com os outros e fazer com os outros, levando em consideração as necessidades coletivas, que não se reduzem a um simples agregado de vontades e preferências individuais. A liberdade e a qualidade de vida privadas do indivíduo são inseparáveis da liberdade que se pode gozar na esfera pública: a liberdade para se informar confiavelmente, atuar e decidir sobre os negócios de interesse coletivo. (SOUZA, 2006 p. 70-71). O processo de construção dos Acordos de Pesca passou por uma pedagogia da participação em que cada membro da comunidade precisou participar, negociar, decidir, em comum acordo com os demais, o conjunto de regras, normas e restrições sobre o uso individual e coletivo dos recursos pesqueiros e do rio como um todo. Esse processo de autogestão, ou seja, cujas próprias comunidades definem as normas, os usos e o significado do seu território, implicou na construção de um novo imaginário, de uma nova cultura política que fortaleceu ideias como a solidariedade, o trabalho coletivo, proporcionando certo empoderamento para essas comunidades no sentido da definição dos seus próprios destinos. Esse processo significou progressivamente a luta contra uma situação política e territorial de heteronomia, isto é, os Acordos de Pesca são uma estratégia territorial e política contra um processo de alienação por parte dessas comunidades e das suas próprias condições materiais de vida, pois, como afirma Souza (2006), a heteronomia significa que uma comunidade e uma sociedade não detêm o poder de autocriação e

317

instituição das suas próprias regras e leis, justificando a sua configuração a partir de forças e elementos transcendentes. Neste sentido, é que o autor afirma: Ao não ser a “lei”, seja formal ou informal, escrita ou consuetudinária (normas, códigos, tabus), livremente acordada por aqueles que deverão ser regidos por ela, mas sim imposta por um poder “superior”, ou percebida como imposta por um tal poder, está-se diante de uma situação de heteronomia. Uma imposição heterônoma da lei pode ser proveniente “de cima” (opressor no interior de um grupo ou uma sociedade), mas também externa (opressão a partir da conquista ou ocupação por parte de outro grupo ou sociedade) ou, ainda, “naturalística” (atribuição de causas à natureza e culpabilização da natureza) ou “divina” (origem religiosa ou sobrenatural de normas e interdições). As sociedades se auto-instituem, mas na maioria dos casos ao longo da história da humanidade, o fizeram e o fazem sem que isso tivessem ou tenham consciência. Ora o fundamento das leis (em sentido amplo: o nomos) é buscado em uma instância transcendente (Deus, os deuses...: “foi assim porque Deus quis”, “seja feita a vontade de Deus”), ora se vasculha a própria natureza à procura de fatores, pretextos ou desculpas (seja enquanto uma “natureza humana” supra-histórica e hipostasiada, seja enquanto condicionantes geográfico-naturais, seja enquanto determinantes biológicos). Para dizê-lo de outra maneira, a heteronomia se instala quando as leis e normas com base nas quais uma sociedade é, direta ou indiretamente, governada e organizada, são deliberadas não pelo conjunto de indivíduos pertencentes a essa sociedade, de maneira tão lúcida e tão bem informada quanto possível, mas sim impingidas na base da opressão interna, da opressão externa e/ou “divinizadas” ou “naturalizadas” (sendo que a “divinização” e a “naturalização” costumam servir a opressão interna ou externa, ou a ambas de uma só vez). A heteronomia é, sempre, alienação política de uma parte da população, consentida ou arrancada à força (SOUZA, 2006 p. 69-70). Desse modo, quando as comunidades ribeirinhas deixam de atribuir sua situação e suas condições de vida a um desígnio divino ou natural, ou seja, quando deixam de atribuir as suas péssimas condições de vida à vontade de Deus ou a própria natureza, percebem que os problemas da qualidade da água, da falta de peixe, da pobreza e da concentração do poder dos recursos na mão de poucas pessoas eram frutos de relações de força e poder que vinham de cima para baixo na escala local, materializadas através das relações de poder exercido pelos comerciantes, pelas famílias

318

oligárquicas que, através das práticas do aviamento e do compadrio, sustentavam relações políticas de tutela sobre essas comunidades. Também ficou claro na percepção dessas comunidades que uma parte de seus problemas era resultado de causas externas produzidas pelo projeto de desenvolvimento em uma escala regional materializada na construção da Hidrelétrica de Tucuruí, que barrou o rio, alterando a sua dinâmica social e ecológica. Do ponto de vista econômico/ecológico ou produtivo, os Acordos de Pesca significaram indiretamente uma importante fonte de renda e subsistência, pois essas comunidades vivem com rendas bastante frágeis e escassas. A sobrevivência cotidiana vem essencialmente da pesca, do extrativismo e da pequena agricultura, além de recursos que chegam através de políticas públicas e benefícios sociais, como aposentadoria, auxílio maternidade, bolsa família, etc. É notória, na fala das lideranças comunitárias, a mudança na qualidade de vida dessas comunidades após a criação dos “Acordos”. Eles relataram que houve um repovoamento do rio e que nenhum dos moradores das comunidades vivencia situações de fome e muitas espécies de peixe que não existiam mais, ou que tinham desaparecido, hoje podem ser encontradas nos rios. Essas

iniciativas

de

preservação

ambiental

representam

importantes estratégias de manejo dos recursos e mostram que a alternativa de construção da sustentabilidade ambiental na região das várzeas

na

Amazônia

passa

necessariamente

pela

ação

direta

das

comunidades. Nesse sentido, os Acordos de Pesca apontam caminhos para a construção de políticas ambientais que incluem os sujeitos sociais que historicamente ocuparam esse ambiente. O que percebemos também é que há um claro processo de ambientalização das práticas e dos discursos dessas comunidades, há uma legítima preocupação com a questão ambiental,

até

porque

essas

comunidades

ainda

sofrem

de

graves

problemas ambientais, a exemplo da questão da água, do destino do lixo e de todo um conjunto de problemáticas ligadas ao saneamento básico. Isso ficou evidente na fala das lideranças das comunidades e dos movimentos sociais ligados à área de várzea; todos destacaram a questão da água como o grande problema a ser enfrentado. Dessa forma, os Acordos de Pesca

319

representam um avanço no campo da estratégia de manejos e também como forma de educação ambiental; contudo, essas iniciativas ainda são incipientes e insuficientes diante de tamanhos problemas que essas comunidades enfrentam do ponto de vista ambiental. A experiência com os acordos de pesca enquanto uma experiência de reapropriação social do rio, de afirmação da autonomia das comunidades e da busca por uma alternativa de sustentabilidade econômica, ecológica e social tem sido bem-sucedida em várias comunidades na região das várzeas, no município de Cametá; contudo, há alguns limites nessas experiências. O primeiro limite importante que podemos apontar é a dimensão escalar dessas experiências. Normalmente os Acordos de Pesca se resumem às comunidades em reduzida escala, abrangendo uma pequena área, ou um trecho de um rio, de um furo, de um igarapé. Essa pequena escala de abrangência impõe limites a essas experiências tanto do ponto de vista ecológico, quanto social e político, visto que é muito limitadora. Do ponto de vista ecológico, a escala do território demarcado pelos Acordos nem sempre coincide com o comportamento migratório dos peixes e com o espaço de reprodução das espécies. Assim, mesmo quando uma comunidade adota estratégias de preservação controlando uma parte do rio, ou um furo ou um igarapé, outras comunidades e outros pescadores vizinhos podem não adotar os mesmos procedimentos e, desse modo, explorarem livremente os recursos, comprometendo os esforços

de

construção dos Acordos. Por isso, é fundamental ampliar a escala, criando acordos

intercomunitários,

territórios

de

reservas,

corredores

de

preservação capazes de adequar, tanto do ponto de vista ecológico como social, essas experiências. Outro fator fundamental no sucesso ou não da construção dos acordos de pesca é o grau de politização e a capacidade de organização de cada

comunidade.

As

experiências

bem-sucedidas

ocorreram

em

comunidades onde há um grande capital social, uma estrutura organizativa bem consolidada, lideranças ativas que conseguem construir pactos e consensos, mesmo que provisórios e precários, para a implementação das regras que compõem os Acordos. É preciso um alto grau de consciência de

320

trabalho coletivo e também uma sensibilidade para superar a necessidade e os interesses imediatos, pois, em muitos sentidos, a construção dos Acordos implica em restrições imediatas para, em um futuro próximo, ter uma espécie de recompensa. Mas essa lógica não é facilmente assimilada e só consegue ser implementada onde há uma cultura política de participação e de um sentido comunitário e coletivo, o dado mais contunde a respeito disso é que segundo informação da colônia de pescadores e IBANA ja foram criadas mais de 100 inciativas de acordos no município de Cametá e hoje efetivamente funcionam 22 acordos. O fortalecimento do Acordo de Pesca passa pelo fortalecimento das organizações comunitárias, das associações, da capacidade de mobilização em torno de causas comuns. Esse trabalho de fortalecimento e organização vem sendo feito nos últimos anos pela Colônia de Pescadores; por exemplo, no ano de 2011, ofereceram um curso sobre Gestão Compartilhada dos Recursos Pesqueiros para diversas lideranças das comunidades, com o objetivo de fomentar novas iniciativas na construção dos Acordos, mas, para isso, é preciso um processo de difusão e informação e de capacitação das lideranças, pois percebemos que o número de iniciativas de Acordos de Pesca que fracassa ou que não consegue se sustentar é muitos alto, e um dos principais motivos está na fragilidade da organização política dessas comunidades. Outra fragilidade dos Acordos de Pesca é, em muitos casos, a falta de critérios claros sobre as sanções para aqueles que infringem as regras dos acordos, pois não existe uma legislação oficial (seja em nível estadual ou municipal) que regulamente essas práticas, bem como não há apoio dos órgãos ambientais responsáveis e fiscalizadores, a exemplo das secretarias de meio ambiente e do IBAMA. O sistema de sanções e punições é pouco claro e rigoroso, sendo que a própria comunidade exerce o papel de fiscalizadora, todavia, as relações de poder, afetividade, parentesco e outras formas de mediação tornam difícil um exercício mais rigoroso de fiscalização e punição. A ausência de uma definição clara sobre o sistema de sanções e punições produz um clima propício para a quebra das regras por parte de alguns membros que, por motivos legítimos ou ilegítimos, acabam por burlar o pacto comunitário e colocar o seu interesse individual sobre o coletivo. Desse modo, o fortalecimento dos Acordos de Pesca precisa da

321

construção de uma legislação própria, a nível estadual e municipal, bem como o apoio do poder público no que concerne a fiscalização e punição das inflações e dos crimes ambientais. Os Acordos de Pesca representam um avanço significativo na melhoria da qualidade de vida das comunidades ribeirinhas, especialmente no que se refere à alimentação, mas para a sua consolidação são necessárias outras fontes de renda complementares, pois somente a pesca não é suficiente para manter essas comunidades. O Acordo de Pesca tem que ser uma estratégia dentro de um conjunto maior de alternativas que permita a essas comunidades melhorarem as suas condições de vida, pois quando não há outras alternativas há uma pressão muito grande sobre o pacto comunitário de gestão dos recursos pesqueiros. Assim, a todo o momento há uma espécie de ameaça, pois as comunidades apresentam muitas necessidades materiais básicas; desse modo, qualquer desequilíbrio, como um caso de doença, torna-se um motivo para alguém quebrar as regras do Acordo, tornando esses arranjos normativos muito instáveis. Nos últimos anos, uma série de projetos e políticas públicas implementadas pelo poder federal ampliou o repertório de alternativas de renda através da psicultura, da apicultura do manejo florestal, da pequena agricultura, melhorando e diversificando as fontes de renda, mas ainda há muito que fazer em termos de ampliação das bases de sustentação econômica das comunidades.

322

6-CONSIDERAÇÕES FINAIS.

O apanhador de desperdícios Uso as palavras para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas. Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo inseto mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim esse atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos como as moscas. Queria que a minha voz tivesse o formato de canto. Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios ( Manuel de barros )

I Muitas das questões que motivaram a construção deste trabalho estão para além dele. Mesmo tratando de uma realidade específica, os questionamentos que nos moveram ao longo desse percurso eram mais amplos e foram orientados pelas seguintes questões: O que significa resistir no mundo de hoje? O que significa construir alternativas? Qual o sentido da emancipação social? Como reconhecer experiências de emancipação em curso no mundo contemporâneo, especialmente na Amazônia? Qual o estatuto dessas experiências para pensarmos projetos mais amplos de emancipação social? Existem diversas maneiras de lidar com esses questionamentos, mas

queremos

nos

distanciar

de

algumas

posições

que

achamos,

323

particularmente, pouco promissoras no que se refere à forma de tratar e avaliar as experiências de resistências e emancipação social no mundo contemporâneo. Uma dessas posturas é aquela fundada em uma versão mais “estreita” e dogmática do marxismo que, em nome de uma radicalidade abstrata e na construção de modelos normativos ideais com base em reflexões abstratas sobre a natureza da sociedade, do indivíduo ou da razão humana, fundada muito mais na lógica do que na historicidade, pensa existir uma única forma e um único caminho de mudança e transformação social. Essa posição acaba por invisibilizar, desacreditar, distorcer e despotencializar as diversas formas de ações e resistências que emergem no mundo contemporâneo. Em nome de uma visão formatada e normativa, os que compartilham

dessa

“maneira

de

ver

o

mundo”

negligenciam

as

experiências históricas em curso, por julgarem que estas lutas não são suficientemente radicais, perfeitas ou fortes para indicar o rumo da transformação social. Esse tipo de interpretação da realidade acaba por colocar, em primeiro plano, o papel normativo da teoria sobre a realidade. Dessa maneira, é muito comum, entre os que defendem esse ponto de vista, a desqualificação de ações, de movimentos sociais, de projetos

políticos

e

mesmo

de

teorias,

como

sendo

“reformistas”,

“conservadoras” ou, como alguns preferem, “pós-modernas” por estas não se enquadrarem no esquema explicativo e no ideal normativo do que deveria ser a realidade. Assim, o intérprete do mundo, produz um diagnóstico a partir de um ideal normativo do que deveria ser o mundo, não raramente, ignorando as possibilidades históricas do que ele é e do que ele poderia ser. Esse tipo de visão acaba por desperdiçar um conjunto de experiências sociais de resistências, por estas não se realizarem de acordo com a lógica que esses intérpretes pensam a transformação e a emancipação social. Nessa perspectiva normativa e dogmática, não raramente, são questionadas se certas experiências de lutas e resistências têm, ou não, o caráter de classe, ou ainda, qual a contradição primordial sobre a qual devemos lutar. Nessas análises, algumas escalas de luta são consideradas pertinentes, outras não, a radicalidade da ação está sempre sob suspeita, a

324

temporalidade e o tipo de projeto também, dentre outras. Normalmente a avaliação desses elementos é feita a partir de uma postura do intelectual como um ser soberano legislador que sabe exatamente o que é e como deveriam ser as lutas sociais, ignorando a difícil labuta cotidiana daqueles que lutam contra os mais diversos processos de subalternização. Como resultante dessa forma de leitura do mundo, temos o diagnóstico de que vivemos uma espécie de “morte da política”, de regressão dos espaços de participação política e o fim de um certo imaginário

político,

no

qual

ideias

“transformação social”, que eram

como

“utopia”,

“alternativa”,

“magmas de significação” e que

sustentavam as ideias e as práticas de emancipação social, hoje,

são

consideradas como pertencendo ao passado. Resumindo, esse diagnóstico declara que vivemos um período de pobreza das experiências políticas instituintes e significativas, e como consequência, não há alternativas! Mas será que estamos realmente diante de uma pobreza das experiências, ou não conseguimos reconhecê-las e, com isso, o que temos não é uma pobreza das experiências, mas sim um desperdício dessas experiências51, pois quando as tornamos invisíveis ou as catalogamos a partir de rótulos, classificações e conceituações que as desqualificam, atentamos contra o potencial ético, político e epistêmico de inúmeras lutas que se travam em lugares distantes e, que, mesmo de maneira incipiente, inauguram “espaços de esperança” e “territórios alternativos”. Nesse sentido, será que estamos em busca da política (Bauman, 2000) com as lentes erradas? As lutas políticas, hoje, se realizam da Boaventura de Souza Santos atribui o desperdício das experiências a um modelo de racionalidade totalitário e eurocêntrico. O autor define essa situação do seguinte modo: em primeiro lugar, a experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que o que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e considera importante. Em segundo lugar, esta riqueza social está a ser desperdiçada. É deste desperdício que se nutrem as ideias que proclamam que não há alternativa, que a história chegou ao fim, e outras semelhantes. Em terceiro lugar, para combater o desperdício da experiência, para tornar visíveis as iniciativas e os movimentos alternativos e para lhes dar credibilidade, de pouco serve recorrer à ciência social tal como a conhecemos. No fim de contas, essa ciência é responsável por esconder ou desacreditar as alternativas. Para combater o desperdício da experiência social, não basta propor um outro tipo de ciência social. Mais do que isso, é necessário propor um modelo diferente de racionalidade. 51

325

mesma

maneira

que

no

passado

ou

pode

estar

ocorrendo

uma

transfiguração do político (Maffesoli, 2005)? Essa nova situação pode ser analisada e compreendida a partir de nossos tradicionais referenciais teórico-conceituais ou exige novas lentes e outras formas de narrativas capazes de abrir nossos horizontes cognitivos e políticos? Esta pesquisa moveu-se por um desafio e por uma convicção: encontrar, relatar e dar visibilidade e credibilidade às experiências políticas instituintes de uma outra ordem social que apontam, mesmo que de maneira frágil e incipiente, para alternativas e caminhos de uma sociedade mais justa, democrática e autônoma. Por isso insistimos em falar de lugares e grupos subalternizados, localizados nos labirintos de floresta e água que constituem o interior da Amazônia. Mesmo que, à primeira vista, esses grupos pareçam tão distantes dos grandes centros urbanos e fora das luzes e do foco das grandes narrativas políticas do nosso tempo, acreditamos que experiências vivenciadas por esses grupos podem nos ensinar e apontar para alternativas. Contudo, isso não significa assumir uma postura que cria uma espécie de “fetiche pela resistência”, em uma visão que Boaventura de Souza

Santos

denomina

de

“pós-modernismo

celebratório”.

Não

compartilhamos da visão que abdica de toda crítica e construção de projetos coletivos e que negligencia, ou mesmo desqualifica, a ideia de transformação e emancipação social coletiva. Nessa forma de conceber o mundo, a questão da igualdade e as lutas de classes não passam de uma utopia dogmática e ultrapassada. Desse modo, não há espaço para o debate de

projetos e

alternativas;

quando

muito,

temos

que valorizar as

resistências. Nessa perspectiva, queremos nos distanciar da postura de alguns intelectuais que, no intuito de valorizar e dar potência às ações de lutas e resistências, acabam por romantizar excessivamente tais lutas, ignorando suas contradições e não problematizando o sentido, as possibilidades e os limites que elas apresentam. Acabam por hipervalorizar a resistência e, por isso, não discutem possibilidades de projetos emancipatórios mais amplos. Dessa

maneira,

o

que

importa

é

a

“ação

possível”,

mesmo

que

fragmentária, localizada e até individualizada. Pequenas sabotagens, linhas

326

de fugas são tornadas uma espécie de “totem” em um mundo marcado pelo conformismo. Contudo, não podemos esquecer que, se é importante valorizar, do ponto de vista tático, essas mais diversas formas de resistência, a luta envolve uma dimensão estratégica, que pressupõe escalas de lutas e projetos mais amplos, mesmo que sejam múltiplos os projetos. Assumir uma postura metodológica e política que tente escapar das armadilhas de uma visão excessivamente dogmática e normativa que desperdiça as experiências sociais e, de uma outra, que é demasiadamente otimista e celebratória das experiências de resistências em curso, não é algo fácil, nem tranquilo, pois exige, ao mesmo tempo, uma abertura e um acolhimento dessas experiências, da mesma maneira que um espírito reflexivo capaz de não abdicar o papel de um rigor crítico diante da realidade. Esse foi o desafio, analisar as experiências de lutas por reapropriação social da natureza, especialmente, o caso dos chamados “acordos comunitários de pesca” sem cair nessas posturas extremas que apontamos acima.

II. No

capitulo

inicial

desse

trabalho

fizemos

uma

escolha

metodológica em trabalhar com o referencial empírico da pesquisa, não como um estudo de caso no sentido clássico, mas sim, dando um estatuto de caso paradigmático às experiências analisadas. Num diálogo com o filosofo italiano Giorgio Agamben (2009) nos convencemos que é possível estudar certos casos exemplares de fenômenos sociais que, devido a sua importância e representatividade, possam servir de paradigmas que iluminam a compreensão de realidades mais amplas, não pelo simples raciocínio dedutivo, mas por analogias e iluminações. Esse é o caso das experiências analisadas nessa tese. A luta pela implementação dos “acordos comunitários de pesca” como uma forma de reapropriação social dos rios e de afirmação dos direitos territoriais das comunidades ribeirinhas no município da Cametá, no Baixo Tocantins, apesar de serem experiências circunscritas a uma realidade singular e a um contexto especifico, contêm a densidade e a

327

complexidade de elementos que hoje constitui a trama político/territorial da Amazônia. Nas experiências dos “acordos de pesca” aparecem, de maneira exemplar, as principais linhas de força que atravessam e constituem a Amazônia contemporânea. Assim, a compreensão dessa realidade especifica ilumina a nossa compreensão do conjunto das lutas que envolvem as comunidades ou povos tradicionais na Amazônia. A primeira linha de força que está presente nas experiências dos acordos comunitários de pesca, mas que atravessa o conjunto das lutas sociais

na Amazônia é o papel que a natureza, o meio ambiente e os

recursos naturais, de um modo geral, vêm assumindo nas lutas e nos conflitos sociais na região. Em grande parte, os conflitos sociais também são conflitos ambientais e as lutas por justiça social estão diretamente ligadas as demandas por justiça ambiental e reapropriação social da natureza. Uma segunda linha de força que apresenta-se como uma tendência, diz respeito a uma tensão teórica e política entre as lutas por redistribuição e igualdade e as lutas pelo reconhecimento das diferenças nas agendas construídas por esses novos movimentos sociais protagonistas. Já a terceira linha de força, nesse esboço interpretativo, para a compreensão dos novos movimentos sociais na Amazônia é o papel do território como uma espécie de “condensador” de direitos. No que se refere à primeira grande linha de força que atravessa as experiências dos “acordos comunitários de pesca” e que também pode ser considerada uma tendência mais ampla dos movimentos sociais ligados aos povos e comunidades tradicionais é o papel que a natureza e o meio ambiente, e os recursos naturais de um modo geral, vêm assumindo nas lutas e nos conflitos sociais na Amazônia. As

comunidades

ou

povos

tradicionais

vêm

lutando

para

imprimirem outra racionalidade na apropriação dos recursos e dos meios de produção, no sentido mais geral. Esse processo faz parte de um esforço da construção de um projeto de autonomia política, mas também econômicoprodutiva desses movimentos que buscam, através das mais diversas formas alternativas de produção e de economias solidárias, a construção de sua autonomia material e simbólica em relação às forças do mercado, do Estado e de outros setores da sociedade civil, como os partidos políticos.

328

Mas essa autonomia relativa é muito frágil, como vimos na experiência dos “acordos

de

pesca”,

embora,

exista

uma

importante

tendência

da

consolidação de uma nova cultura política e de um novo imaginário em que esses

movimentos

cada

vez

mais

consolidam

uma

pedagogia

da

participação e da autonomia. As lutas pelos recursos e por reapropriação social da natureza a partir de outra matriz de racionalidade econômica e ambiental que não a racionalidade

liberal-capitalista

aponta

para

uma

tendência

de

desmercantilização das relações sociais. Os movimentos sociais ligados às comunidades e povos tradicionais buscam afirmar novas práticas de produção e de comércio fundadas em formas de organizações solidárias, populares e cooperativas, bem como a valorização de formas alternativas e não mercantis (familiares, comunitárias, cooperativas etc.) de apropriação social dos recursos. Essa tendência está no centro das experiências dos “acordos comunitários de pesca” nas quais são construídas regras de coletivização dos recursos, afirmação do valor de uso sobre o valor de troca, e o privilégio das formas coletivas sobre as formas individuais de apropriação dos recursos. Mas essas disputas pelos recursos e pelo território se dão ao mesmo tempo no plano material e no campo simbólico. Nessa perspectiva, segundo Acselrad (2004a), podemos distinguir dois espaços onde se definem as relações de poder nas sociedades, espaços estes pertinentes também aos modos de apropriação da base material da sociedade, ou seja, na disputa pela apropriação dos territórios e seus recursos: 1. O primeiro é o espaço da distribuição, entre os sujeitos sociais, do poder sobre os diferentes tipos de “capital material”. Neste espaço se configura, portanto, a capacidade diferencial dos sujeitos terem acesso a terra fértil, a fontes de água, aos recursos vivos, aos pontos dotados de vantagens locacionais etc. O diferencial de poder sobre o que chamamos de “capital material”, por exemplo, resultaria tanto da capacidade de influência dos sujeitos sobre os marcos regulatórios jurídicos-políticos do meio ambiente, como da operação de mecanismos econômicos de competição e acumulação ou do exercício da força direta.

2. O segundo é o espaço em que se confrontam as representações, valores, esquemas de percepção e idéias que se organizam as visões de mundo e legitimam os modos de distribuição de poder verificados no primeiro espaço. No espaço de distribuição de poder sobre os recursos do território, portanto,

329

cada agente tem uma dotação de capital material diferenciada, enquanto no espaço das representações vigoram categorias de percepção e julgamento que tendem a legitimar as condições da distribuição desigual do poder sobre os recursos referidos. (ACSELRAD, p. 23) Segundo Henri Acselrad (2004a) os conflitos ambientais se realizam simultaneamente nos espaços de apropriação material e simbólica dos recursos do território. Ambos são, por certo, espaços onde se desenrolam disputas sociais em geral, onde o modo de distribuição de poder pode ser objeto de contestação. No primeiro espaço, desenvolvem-se as lutas sociais, econômicas e políticas pela apropriação dos diferentes tipos de capital, pela mudança ou conservação da estrutura de distribuição de poder. No segundo, desenvolve-se uma luta simbólica para impor as categorias que legitimam ou deslegitimam a distribuição de poder sobre os distintos tipos de capital. No caso do meio ambiente, verificamos no primeiro espaço, por exemplo, disputas por apropriação dos rios entre populações ribeirinhas e grandes projetos hidroelétricos, “empates” confrontando seringueiros e latifundiários pelo controle de áreas de seringais etc. No espaço das representações, veremos disputa entre as distintas formas sociais de apropriação do território pela afirmação de seus respectivos caracteres “competitivo”, “sustentável”, “compatível com a vocação do meio”, “ambientalmente benigno” etc. (ACSELRAD, 2004a p. 23) As lutas, os conflitos e os movimentos sociais, todos esses elementos

vêm

se

ressignificando

por

conta

de

um

processo

de

“ambientalização” que altera as condições materiais e simbólicas de luta, pois, nos últimos anos, falar a respeito da Amazônia se tornou quase sinônimo de falar de meio ambiente. Os discursos sobre essa região estão recheados de termos como biodiversidade, desenvolvimento sustentável, preservação/conservação ambiental etc. Essa associação entre a região Amazônica e a questão ambiental que vem ocorrendo nas últimas duas décadas está ligada àquilo que alguns autores vêm denominando de um processo de “ambientalização” dos discursos e das práticas dos diferentes atores sociais envolvidos na região. O termo "ambientalização", segundo Lopes, (2006:34), é um neologismo semelhante a alguns outros usados nas ciências sociais para

330

designar novos fenômenos ou novas percepções de fenômenos vistos a partir de uma perspectiva processual52.

Segundo o autor trata-se de

um processo histórico de construção de novos fenômenos, associado a um processo de interiorização pelas pessoas e pelos grupos sociais - e, no caso da "ambientalização", dar-se-ia uma interiorização das diferentes facetas da questão pública do "meio ambiente". Essa incorporação e essa naturalização de uma nova questão pública poderiam ser notadas pela transformação na forma e na linguagem de conflitos sociais e na sua institucionalização parcial (LOPES, 2006:34). Já Henri Acselrad (2010) define a “ambientalização” tanto como o processo de adoção de um discurso ambiental genérico por parte dos diferentes grupos sociais, como a incorporação concreta de justificativas ambientais para legitimar práticas institucionais, políticas, científicas etc. (ACSELRAD, 2010:103) Esse processo implica na incorporação da temática ambiental nos mais diferentes domínios da vida social, como, por exemplo, através de certas atividades econômicas, nas políticas públicas do Estado, nas ações e agendas dos diferentes atores que compõem a sociedade civil, como ONGs e movimentos sociais, além de ganhar também uma grande visibilidade nas instituições acadêmicas e educacionais de uma forma geral. E como não poderia deixar de ser, esse processo de “ambientalização” ganha grande destaque nos meios midiáticos. Esse processo de “ambientalização” tornou-se uma espécie de regime discursivo, ou, como prefere Michel Foucault, um “regime de verdade” que molda, influencia, estrutura e é estruturado dentro de um campo relacional de antagonismos, entre os diferentes atores sociais. Para Michel Foucault, cada sociedade, em cada época, cria seus próprios regimes 52

Neste sentido o termo assume uma conotação parecida; os termos "industrialização" ou "proletarização" (este último, usado por Marx) foram indicativos de novos fenômenos no século XIX, como se poderia também falar de tendências de "desindustrialização" e de "subproletarização" desde o final do século XX. Ou ainda, num sentido mais estrito, os termos usados por Norbert Elias para caracterizar processos históricos passados, percebidos de forma nova como importantes, tais como "curialização" - designativo da formação das sociedades de corte europeias entre os séculos XIV e XVIII - ou "esportificação" - que ganharam o mundo no século XX a partir da Inglaterra do século XIX.

331

de verdade53 que funcionam como uma espécie de “economia política da verdade”, como um conjunto de características e dispositivos próprios. Foucault elenca uma série de características que constitui o “regime de verdade” das quais destaca cinco historicamente importantes: 1. A “verdade” é centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem; 2. Está submetida a uma constante incitação econômica e política (necessidade de verdade tanto para a produção econômica, quanto para o poder político); 3. É objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e de um imenso consumo (circula nos aparelhos de educação ou de informação, cuja extensão no corpo social é relativamente grande, não obstante algumas limitações rigorosas); 4. É produzida e transmitida sob o controle não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade, exército, escritura, meios de comunicação); 5. Enfim, é objeto de debate político e de confronto social (as lutas “ideológicas”). (FOUCAULT, 1979, p. 13). Quando analisamos estas características que Foucault destaca como constitutivas de um “regime de verdade”, podemos verificar que representa claramente o que estamos denominando, na esteira de outros autores, de “ambientalização” dos processos sociais e dos conflitos sociais na Amazônia, pois, quando verificamos o discurso ambiental, vemos claramente que este está centrado supostamente em uma base científica que o sustenta, produzida por certos agentes e algumas instituições consideradas legítimas por estarem sob a assinatura da ciência; entretanto, 53

A verdade é deste mundo; ela é produzida graças a múltiplas coerções e produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 1979, p. 12)

332

quando olhamos mais de perto, vemos que está longe de ser um campo tranquilo da produção da verdade, mas sim um campo de batalha e disputa. Conceitos como “sustentabilidade”, “desenvolvimento sustentável” são objetos de intensa disputa epistêmica, política e ideológica. Disputas de legitimidade instauram-se, concomitantemente, na busca de caracterizar as diferentes práticas como ambientalmente benignas ou danosas. Nessas disputas em que diferentes atores sociais ambientalizam seus discursos, ações coletivas são esboçadas na constituição de conflitos sociais incidentes sobre esses novos objetos, seja questionando os padrões técnicos de apropriação do território e seus recursos, seja contestando a distribuição de poder sobre eles. (ACSELRAD, 2010:103) Isso ocorre porque o discurso ambiental, a questão ambiental, estão diretamente ligados às esferas econômica e política e os efeitos de verdade do discurso ambiental afetam e são afetados pelos interesses econômicos e políticos que estão em jogo na região. Esse regime de verdade da “ambientalização” tem ganhado uma intensa difusão na sociedade, através dos mais diversos canais de comunicação, informação e educação, e tem sido internalizado pelos diferentes atores, desde grandes empresas que buscam construir uma imagem positiva, incentivando determinados projetos ligados ao meio ambiente, até aquelas que usam os mais diversos mecanismos de certificação dos seus produtos para legitimar suas diversas práticas econômicas como formas sustentáveis de produção, mesmo que, na grande maioria das vezes, o discurso desses atores econômicos internalize a preocupação ambiental muito mais como uma estratégia de marketing do que uma efetiva mudança de paradigma produtivo54. Esse processo de 54

ACSELRAD (2010) mostra o quanto é problemática e contraditória essa ambientalização conservadora em que “empresas suspeitas de práticas predatórias ambientalizam seu discurso, recusando, ao mesmo tempo, controles externos e proclamando sua capacidade de autocontrole ambiental; autoridades governamentais flexibilizam a legislação ambiental, alegando ganhos de rapidez e rigor nos licenciamentos; promotores de grandes projetos hidrelétricos que desestruturam a vida de comunidades indígenas afirmam que desenvolverão programas de “sustentabilidade” destinados “a assegurar a continuidade dos aspectos econômicos, sociais, culturais e ambientais” dos grupos indígenas”. (ACSELRAD, 2010a:105)

333

ambientalização está assentado no paradigma da “modernização ecológica”, noção que, segundo Acselrad (2010a), em diálogo com Blowers (1997), designa como o “processo pelo qual as instituições políticas internalizam preocupações ecológicas no propósito de conciliar o crescimento econômico com a resolução dos problemas ambientais, dando-se ênfase à adaptação tecnológica, à celebração da economia de mercado, à crença na colaboração e no consenso” Mas o arco de influência da “ambientalização” atinge outro extremo do campo ambiental; ele chega até as mais diversas comunidades tradicionais e movimentos sociais que vêm reconfigurando suas identidades sociopolíticas, as suas estratégias e táticas políticas e sua rede discursiva pela incorporação do debate ambiental em suas agendas de lutas. Nesse sentido, podemos afirmar que há diferentes efeitos do processo de “ambientalização” na sociedade amazônica. De um lado temos uma espécie de “ambientalização” conservadora, cuja questão ambiental é discutida a partir de critérios técnicos e econômicos, buscando soluções no âmbito do mercado, em que a natureza e a preocupação com o meio ambiente estão diretamente vinculadas a uma lógica mercantil, e mesmo quando se busca algum tipo de solução para problemas ambientais, esta solução está diretamente ligada à produção de lucros. Já, de outro lado, temos uma espécie de “ambientalização” mais contestadora, vinculada a grupos

subalternizados,

os

quais

incorporam

em

suas

agendas

as

preocupações ambientais mais à luz de uma matriz política e cultural, que questiona o uso e apropriação dos recursos naturais somente a partir das leis do mercado e busca construir alternativas coletivas e comunitárias de gestão e apropriação dos recursos naturais. Esse processo é descrito por Aceselrad em escala mais ampla, mas que representa também a dinâmica que vem ocorrendo na Amazônia: No campo do ecologismo combativo, inserem-se progressivamente movimentos sociais já bem constituídos, que ambientalizam as pautas dos grupos subalternos que pretendem representar, analogamente ao que acontecera já nos anos 1980

334

com os seringueiros do Acre. Esse é o caso do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) que acusa a economia do setor elétrico de rentabilizar seus investimentos pela expropriação do ambiente dos atingidos e do Movimento Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que questiona a noção corrente de produtividade, sustentando que não é “produtiva” a terra que produz qualquer coisa a qualquer custo, acusando a grande agricultura químico-mecanizada de destruir recursos em fertilidade e biodiversidade, e, assim, descumprir a função social da propriedade. (ACSELRAD, 2010a:106). Esse processo de “ambientalização”, representado pelo novo imaginário, novas instituições, tem um claro rebatimento na dinâmica espacial e territorial da Amazônia, pois o discurso da “preservação e conservação ambiental” implicou em uma nova política de reordenamento do território, através da criação de inúmeras áreas, chamadas de “reservas” pelo Estado. Assim, parques nacionais, áreas de proteção ambiental, áreas de reserva biológica, áreas de desenvolvimento sustentável e inúmeras outras serão criados e vão compondo uma nova tessitura do território da Amazônia. Desse modo, podemos dizer que a “ambientalização” como um regime de verdade vem produzindo novas formas de agenciamento, agenciamento no sentido que Gilles Deleuze e Félix Guattari dão a esse termo55. Nesse

sentido,

podemos

afirmar

que

a

“ambientalização”

inaugurou uma nova agenda e novas formas de agenciamento, pois criou novas formas de composição, dando início a novas formas de conexões, de mistura de diversos processos sociais. O agenciamento, segundo Deleuze, envolve quatro elementos: 1. Um novo estado de coisas; 55

.Segundo Tomas Tadeu da Silva, a palavra agenciamento, no dicionário Petit Robert, “agencement” é “ação, maneira de agencer, arranjo resultante de uma combinação”. “Agencer”, por sua vez, quer dizer “arranjar, combinando elementos, organizar um conjunto por uma combinação de elementos”. No léxico de Deleuze e Gattari, sobretudo no de Mil platôs, “agenciamento” não passa mesmo disso: o arranjo, a combinação de elementos heterogêneos, díspares, fazendo surgir algo novo, que não se pode resumir a nenhum dos elementos isolados que o compõem. (...) Os agenciamentos seriam, pois, a resposta ao constante apelo deleuziano para se “fazer multiplicidade”. Agenciar: fazer multiplicidade. É o paragmatismo de Deleuze no seu mais alto grau. Combinar. Conjugar. Misturar. Mesclar. Ajuntar. Reunir. Agrupar. Amontoar. Somar. Enxamear. Conectar. Ligar. Compor. Articular.

335

2. Um novo estilo/regime de enunciação/discurso; 3. A constituição de territórios; 4. E movimentos ou linhas de desterritorialização. O processo de “ambientalização” afeta e reconfigura um conjunto de movimentos sociais e de lutas sociais ligados aos chamados povos ou comunidades

tradicionais.

A

forma

como

esse

processo

de

“ambientalização” afeta tem implicações em diferentes níveis. Um primeiro elemento importante dessa reconfiguração trata-se das próprias identidades sociopolíticas dos movimentos ligados a essas comunidades. Há um claro deslocamento de identidades ligado à ideia de camponês, trabalhador rural e lavrador, para a ideia de povos e comunidades tradicionais ou, ainda, para a especificidade de identidades ligadas a formas de relação direta desses diferentes grupos com a natureza ou com esses ecossistemas específicos, como é o caso do pescador artesanal, do ribeirinho, do açaizeiro, do seringueiro, do castanheiro, etc. Há todo um conjunto de novas identidades que remetem a uma constituição direta da relação do modo de vida dessas diferentes comunidades com os diferentes ecossistemas e das práticas sociais de uso dos recursos que essas comunidades desenvolveram ao longo do tempo. Mas a transformação e a reconfiguração não se resumem à constituição de novas identidades; a incorporação da dimensão ambiental, da organização das agendas das formas de luta, desses movimentos, também alterou muito a forma de organização política, os níveis de organização dessas comunidades, visto que estas constituem formas associativas que se distanciam da tradicional forma de sindicato, sobretudo dos chamados sindicatos dos trabalhadores rurais. Buscam formas de associações ligadas não raramente a organizações não governamentais que constituem redes políticas vinculadas a espaços mais amplos e mais distantes. Neste sentido, a ação dessas comunidades, dos movimentos, ligados a essas comunidades, ganha, cada vez mais, uma escala mais ampla, isto porque uma série de mediadores e de agentes ligados a essas comunidades têm uma inserção via questão ambiental em escala nacional e internacional. Outra mudança importante advém do campo, das estratégias territoriais da garantia dos direitos; essas comunidades historicamente

336

tiveram suas demandas sustentadas na ideia do direito à terra, do direito individual à terra. Diante desse novo contexto, as demandas e as agendas se deslocam da terra para o território. Esse deslocamento tem várias implicações, as quais não só complexifica a questão da terra, pois essas comunidades não querem simplesmente a posse da terra, mas desejam a garantia de que a terra e os recursos naturais serão apropriados de uma maneira adequada (ou peculiar) que tem a ver com os modos de vida fundados em maneiras coletivas e comunitárias de gestão dos recursos.

III A segunda dessas linhas de força presente na experiência dos acordos comunitários de pesca e que atravessa o conjunto das lutas sociais na Amazônia é a tensão teórica e política entre uma agenda de lutas por igualdade e redistribuição e as lutas pelo reconhecimento das diferenças. Nas agendas construídas por esses novos protagonistas, as lutas contra a exploração econômica, a exclusão e a marginalização se entrelaçam com as lutas contra as diversas formas de preconceitos e discriminações étnicas, de gênero, raciais e culturais. Esse debate coloca centralidade na questão identitária e num novo sentido de justiça capaz de abarcar simultaneamente redistribuição e reconhecimento. Os “acordos de pesca” se constituem enquanto uma luta por recursos materiais. De uma maneira radical, o que está em jogo são as condições materiais mínimas de existência, como por exemplo, a luta pelo direito à alimentação. Desse modo, é uma luta pela redistribuição no sentido clássico, uma luta contra as formas de exploração econômica, marginalização social, resultante das estruturas econômicas e políticas que produzem uma desigualdade estrutural entre aqueles que têm acesso e detêm o monopólio dos recursos e das riquezas produzidas pela sociedade e aqueles que estão alijados do acesso a esses recursos. Nessa perspectiva, os “acordos de pesca” trazem uma agenda clássica de luta, que se traduz no direito à terra, à água e aos recursos naturais de uma forma geral, ou seja, há um questionamento do monopólio dos recursos por parte de alguns grupos sociais e há também, em certo sentido, um questionamento da própria ideia capitalista de propriedade individual.

337

Mas as experiências dos “acordos” são mais complexas do que simplesmente uma luta por recursos naturais, pois verificamos que no interior do processo de luta emergiram outras questões e outras agendas que deslocam ou, pelo menos, ressignificam a ideia de emancipação social. Esse é caso das questões relacionadas à problemática de gênero, visto que apareceu

com

muita

força,

nas

experiências

que

analisamos,

um

tencionamento sobre o papel de protagonista das mulheres nesse processo. Verificamos nos depoimentos e narrativas que somente houve sucesso e êxito das iniciativas de criação e implementação dos “acordos comunitários de pesca” com a participação das mulheres como protagonistas nas lutas, tencionando organizações

as

estruturas

sindicais.

e

Esse

mentalidades elemento

machistas

está

expresso

presentes nas

nas

próprias

lideranças, visto que, na maioria das comunidades, os principais expoentes de lutas são figuras femininas. Essa movimentos

parece

sociais

ser

uma

oriundos

das

tendência

mais

chamadas

ampla

comunidades

ligada ou

aos

povos

tradicionais na Amazônia, onde, cada vez mais, as mulheres assumem o papel

de

protagonistas,

seja

no

movimento

camponês,

quilombola,

seringueiro, indígena e ribeirinho, ou num movimento que traz no próprio nome essa marca, essa identidade de gênero, como é o caso das mulheres quebradeiras de coco de babaçu. É cada vez mais decisiva a atuação das mulheres, criando novas estratégias e inaugurando novas agendas em que entrelaçam a questão de gênero com questões étnicas, ambientais, agrárias, produzindo um complexo emaranhado de ideias e práticas emancipatórias que desafiam as antigas formas de conceber a emancipação social. Nesse processo de criação dos “acordos de pesca” houve uma ressignificação das identidades, pois a própria afirmação da condição ribeirinha e de pescador artesanal, enquanto identidade sócio-política, envolveu um complexo processo de construção de uma nova subjetividade política, visto que até então os pescadores e ribeirinhos estavam ligados às lutas e à instituição do sindicato dos trabalhadores rurais. Nesse sentido, a valorização e politização dessa condição especifica de uma cultura, de um modo de vida dos grupos que vivem territorializados na várzea e que

338

estavam subsumidas, foram progressivamente ganhando visibilidade e afirmando-se com uma identidade própria, enquanto protagonista das lutas por direitos e, desse modo, superando uma visão negativa e estereotipada da ideia de “caboclo”. Esse processo de reconfiguração das identidades e de valorização das diferenças implica na emergência de novas agendas e na construção de novos agenciamentos coletivos, fazem parte de uma nova sensibilidade, de um novo imaginário político que está fundado na valorização das diferenças e das identidades, sintetizadas na ideia do reconhecimento do “outro”. A incorporação

desse

novo

imaginário

tem

como

resultado

uma

res-

significação de nossa cultura política, colocando novos desafios analíticos e políticos para pensarmos as lutas, os conflitos sociais, bem como, as ideias e princípios de justiça e emancipação social que inspiram as lutas por direitos no mundo contemporâneo. A posição de uma parte do pensamento progressista de esquerda, hoje muito minoritária, (organizações igualitárias, trabalhistas e socialistas) em relação a essa nova sensibilidade política centrada na ideia de reconhecimento, tem sido de negar, negligenciar ou marginalizar essa reflexão, considerando que tal temática faz parte de uma agenda pósmoderna que nega o materialismo histórico, as lutas por igualdade, a dimensão de classe dos conflitos, e que, por fim, obscurecem o horizonte da luta por uma sociedade socialista. Igualmente problemática é a posição daqueles que se filiam na postura de um “multiculturalismo celebratório” que coloca o papel da diferença e do reconhecimento em uma condição totêmica (valorização das identidades,

das

individualidades,

das

subjetividades

como

algo

fundamental e acima de todas as coisas) e que teimam em ignorar que vivemos numa sociedade estruturada em torno de um capitalismo cada vez mais perverso, onde nunca foi tão urgente uma agenda pautada nas lutas por igualdade e justiça social orientadas por processos radicais de redistribuição dos recursos materiais e do poder. Entendemos que, ao invés de negarmos, marginalizarmos ou simplesmente, de maneira apologética, celebramos esse debate sobre a questão da diferença e das lutas por reconhecimento, torna-se urgente uma

339

reflexão de natureza teórica e política mais profunda sobre essa questão. No atual momento histórico que vivemos, as lutas por reconhecimento e pelo direito à diferença, as políticas de identidade como demandas por “respeito” e “dignidade” vêm se tornando centrais e até paradigmáticas em muitos campos da vida social. Por essa visibilidade e densidade histórica, esse debate torna-se algo fundamental e estratégico para o entendimento das lutas emancipatórias e para a renovação do pensamento crítico. Para nos situarmos no debate que hoje povoa o cenário intelectual e contemporâneo sobre a importância da ideia da diferença e do reconhecimento

como

categorias

explicativas

e

normativas

para

compreender a realidade das lutas sociais contemporâneas, temos que ter claro que essas categorias assumem uma dupla centralidade em nossa sociedade. Uma centralidade empírica, histórica e política e, ao mesmo tempo,

uma

centralidade

no

campo

das

ideias,

uma

centralidade

epistemológica e teórica no campo da filosofia e das ciências sociais. No que se refere à dimensão empírica, nós vivemos um momento histórico e político no qual muitas das problemáticas centrais para compreender as sociedades contemporâneas passam por entendermos os conflitos sociais que têm como demanda fundamental o reconhecimento das identidades e das diferenças. No caso da Amazônia essa é uma questão contundente. As questões religiosas, étnico-raciais, questões de gênero e as formas de viver a sexualidade aparecem como uma força catalisadora das energias políticas do nosso tempo. Há um claro processo de politização da cultura, da subjetividade e do corpo que inaugura uma nova sensibilidade e um novo

imaginário

político, onde

princípios

como

a igualdade, o

universalismo e a coletividade perdem terreno para princípios como a singularidade, a diferença e o individualismo. Já no que se refere à centralidade epistemológica e teórica, o que assistimos no campo do pensamento social contemporâneo é a emergência do conjunto de perspectivas teóricas, éticas e políticas que afirmam o papel da diferença e da diversidade como um princípio fundamental de leitura da realidade

social.

Nesse

processo,

surgiram

diversas

correntes

de

pensamento que se imbricam, mas que se separam, como o pós-

340

modernismo, o pós-estruturalismo, o feminismo, os Estudos Culturais, os Estudos pós-coloniais, entre outros. Tais correntes de pensamento se ergueram, enquanto propostas teórico-políticas, a partir do ataque ao legado epistemológico e teórico da modernidade iluminista ocidental, que tinha como centro gravitacional o racionalismo, o universalismo, princípios estes, expressos na ideia de que a sociedade era uma unidade homogênea e que podia ser vista como uma totalidade. Nesse registro o sujeito era concebido como soberano e unificado e a história era vista como sendo universal. Essas ideias têm sido duramente criticadas por esse conjunto de novas perspectivas teóricas que afirmam que o universalismo da história, a ideia de um sujeito soberano e unificado, a afirmação do conhecimento ocidental como o único e verdadeiro, são todos mitos e estratégias de poder que serviram historicamente para afirmar uma certa ordem social. Esse debate ganha várias matizes e tonalidades, especialmente na filosofia política e no interior de uma tradição que podemos qualificar de teoria crítica. Assistimos um acirrado, denso e polêmico debate teórico com fortes consequências éticas e políticas em torno da ideia do reconhecimento como uma categoria moral e política, considerada por muitos como fundamental para a compreensão da dinâmica dos conflitos sociais em nossa sociedade. Mas esse debate constitui-se um campo de batalha teórico e político, pois a valorização da ideia da diferença e do reconhecimento tem sido apropriada das mais diversas maneiras, por diferentes interesses políticos e filosóficos, criando uma arena de disputa, onde podemos encontrar posições completamente antagônicas no espectro político atual, desde

posições

radicalmente

conservadoras

até

aquelas

claramente

progressistas. Segundo Nancy Fraser (2006), os termos reconhecimento e redistribuição podem ser analisados a partir de duas perspectivas: a) Como paradigma filosófico – trata-se de um conjunto de formulações teóricas de caráter político-normativo a respeito das ideias de justiça/injustiça formuladas, sobretudo no campo da filosofia moral e da filosofia política.

341

b) Paradigma popular de justiça que se refere a um conjunto de ideias e reivindicações formuladas a luz das lutas sociais concretas travadas pelos movimentos sociais do presente e que apontam para as causas e as soluções da injustiça do nosso tempo. No que se refere à dimensão filosófica, Nancy Fraser (2006) afirma que o termo redistribuição tem sua filiação localizada na tradição liberal de filósofos analíticos anglo-americanos que, desde o final dos 1970 vêm buscando construir uma teoria de justiça distributiva, onde o ideário de justiça está ancorada na justa distribuição de recursos socioeconômicos na sociedade. Já o reconhecimento é uma categoria hegeliana, mas que recentemente vem sendo retomada por filósofos e pensadores sociais como o filósofo canadense Charles Taylor (1994 [1992]) e o filósofo e sociólogo alemão Axel Honneth (2003 [1992]). Cada um, à sua maneira retomaram a alguns insights de Hegel em seus escritos de juventude para recuperar a categoria de reconhecimento. Através do resgate desse conceito esses pensadores

vêm

revitalizando

o

debate

acadêmico

e

político

contemporâneo. Nessa perspectiva, o sentido da ideia de justiça está ancorado no reconhecimento mútuo das diferenças. Outra forma de localização relacional na filosofia dessas duas categorias é aquela que coloca a categoria da redistribuição como uma questão moral e o reconhecimento como uma questão ética. O fato é que, com origens, horizontes políticos e normativos

distintos,

esses

conceitos

apresentam-se

como

duas

perspectivas completamente antagônicas de pensarmos a justiça e a emancipação social. Mas, para além do debate filosófico, é preciso analisar essas categorias a partir de uma reflexão que leve em conta as experiências concretas de lutas, como é o caso das chamadas comunidades ou povos tradicionais na Amazônia que, na luta pelo reconhecimento de seus territórios e identidades, vêm desafiando nossas tradicionais formas de pensar justiça e emancipação. Entendidos como paradigmas populares de justiça, ou seja, analisados a partir das experiências concretas de luta dos movimentos

342

sociais, segundo Nancy Fraser (2006), a concepção de justiça assentada na ideia de redistribuição está materializada nas políticas classistas, ou seja, está expressa naquelas lutas e reivindicações onde há um claro horizonte político de classe ancorado em tradições socialistas. Já a noção de reconhecimento, como um principio orientador de reivindicações pelos movimentos sociais, está claramente materializado nas chamadas “políticas de identidade”, com uma agenda composta por questões étnicas, raciais, de gênero, sexualidade etc. Não

raras

vezes,

essas

duas

agendas

estão

em

inteiro

descompasso, para não falar em antagonismos. A retórica e a estratégia política de cada uma dessas correntes tende a secundarizar e invisibilizar a outra. Assim, movimentos de uma tradição mais igualitarista colocam à margem qualquer debate sério sobre o chamado reconhecimento das diferenças, do mesmo modo que movimentos feministas, anti-racistas entre outros,

colocam

a

dimensão

de

classe

fora

de

seus

horizontes

programáticos. Nancy Fraser (2006) distinguiu esses paradigmas populares de justiça em aspectos a serem considerados: (1) concepções distintas de injustiça, (2) concepção distintas de justiça (remédios e soluções). No que se refere a concepções distintas de injustiça, do ponto de vista distributivo, a injustiça tem origem na forma de desigualdades semelhantes às da classe, baseadas na estrutura econômica da sociedade. Nessa perspectiva, a quintessência da injustiça é a má distribuição, em sentido amplo, engloba não só a desigualdade de rendimentos, mas também a exploração (ter os frutos do trabalho de uma pessoa apropriado em benefício de outros), marginalização (ser limitado a trabalhos indesejáveis ou baixamente renumerados ou ter negado acesso completamente ao mercado de trabalho assalariado) e a privação (ter negado um padrão material adequado de vida). Já do ponto de vista do reconhecimento, por contraste, a injustiça surge na forma de subordinação de status, assentada nas hierarquias institucionalizadas de valor cultural. A injustiça paradigmática neste caso, é o falso reconhecimento, que também deve ser tomado em sentido amplo, abarcando a dominação cultural (individuo ou grupos sendo

343

sujeitados a padrões de interpretação e comunicação associados a outra cultura estranha e/ou hostil), o não-reconhecimento (ser considerado invisível pelas práticas comunicacionais, representacionais e interpretativas de uma cultura) e o desrespeito (ser difamado habitualmente em representações

públicas

estereotipadas

culturalmente

e/ou

interações

cotidianas). Compreendendo que a natureza e os processos de produção de injustiças são distintos, para Fraser (2006) teríamos ideias e práticas de justiça também distintas, ou seja, os remédios e soluções para tipos de injustiças diferentes também seriam distintos. Nessa perspectiva, contra as formas de injustiça que produzem a desigualdade, o remédio está na redistribuição, também entendida em sentido amplo, abrangendo não só a transferência de rendimentos, mas também a reorganização da divisão do trabalho, bem como a transformação da estrutura da posse da propriedade e a democratização dos processos através dos quais se tomam decisões relativas aos investimentos públicos. A ideia de redistribuição é termo genérico usado por Nancy Fraser (2006) que abarca um amplo leque de possibilidades de ideias e práticas de justiça e de transformação social, desde perspectivas reformistas, superficiais e assistencialistas até posturas radicais e socialistas de questionamento da própria ordem política e econômica e da estrutura de produção e da propriedade capitalista. Já no que se refere aos remédios para as formas de injustiça oriundas do não-reconhecimento, igualmente em sentido amplo, Fraser (2006) propõe medidas que incluam não só as reformas que visam revalorizar as identidades desrespeitadas e os produtos culturais de grupos discriminados, mas também os esforços de reconhecimento e valorização da diversidade, por um lado e, por outro, propõe os esforços de transformação da ordem simbólica e de desconstrução das diferenciações de status existentes, de forma a mudar a identidade social de todos. No paradigma da redistribuição os sujeitos coletivos, “vítimas” da injustiça, são as classes ou outras coletividades que tenham um caráter classista no sentido estrutural de inserção nas relações sociais e econômicas de produção. Já no que se refere ao paradigma do reconhecimento os

344

sujeitos coletivos, “vítimas” da injustiça, são os grupos de status definidos por relações de reconhecimento, de respeito, estima, estigma e não pelas relações de produção - como exemplo, grupos étnicos, religiosos, de gênero e de formas diferenciadas de viver a sexualidade. Compreendendo essas distintas práticas de injustiça e justiça e seus desdobramentos para a ideia de emancipação social, Fraser (2002:8) afirma que um traço que define o mundo contemporâneo é a politização generalizada da cultura, especialmente, nas lutas pelas identidades e diferenças – ou, como a autora prefere designá-las, as lutas pelo reconhecimento. As lutas e os conflitos que envolvem o processo de politização da cultura e uma demanda por reconhecimento ampliaram-se e intensificaram-se nos últimos vinte anos, a expressão fenomênica desse processo é profundamente diversa a partir de problemáticas e contextos específicos, o conteúdo político e ético dessas manifestações são muito diversos, situando-se em escalas que vão daquelas que são claramente emancipatórias às que são absolutamente condenáveis. Mas apesar de toda essa diversidade de situações e conteúdos especificos dos conflitos, para Fraser (2002) o recurso a uma gramática comum é notório, apontando para uma profunda mudança dos ventos políticos: um ressurgimento maciço da política de status. A contra-face deste ressurgimento, segundo a autora, é um declínio correspondente da política de classe que outrora era gramática hegemônica da contestação política. As reivindicações de igualdade econômica sofrem um sensível processo de desvalorização no imaginário político e nas práticas políticas emancipatórias: Portanto, em geral, a globalização está a gerar uma nova gramática de reivindicação política. Nesta constelação, o centro de gravidade foi transferido da redistribuição para o reconhecimento. Como deveremos caracterizar esta transição? Quais são as suas implicações para a justiça social? (FRASER, 2002:9) Para a referida autora Nancy Fraser (2002) há um deslocamento do eixo das lutas sociais ancoradas na noção de justiça e emancipação fundadas no principio de igualdade e distribuição para um novo eixo que se

345

estrutura em torno da ideia de valorização do direito a diferença e de uma noção de justiça alicerçada na idéia de reconhecimento. Esse processo tem implicado em resultados profundamente ambivalentes e problemáticos. Esse deslocamento do paradigma da redistribuição representa

para

um

o

do

reconhecimento,

alargamento

da

segundo

contestação

Fraser

política

e

(2002),

um

novo

entendimento de justiça social ultrapassando uma visão restrita de justiça e de emancipação fixada em torno eixo da classe, ou seja, o debate sobre reconhecimento

amplia

e

complexifica

a

concepção

de

dominação,

contestação, emancipação social e justiça, abarcando outros eixos de subordinação, incluindo a diferença sexual, a “raça”, a etnicidade, a sexualidade, a religião e a nacionalidade, etc. Assim, para Fraser (2002) esse deslocamento constituiu um claro avanço

relativamente

aos

restritivos

paradigmas

de

justiça

que

marginalizavam essas outras dimensões de subordinação social. Nessa nova perspectiva a noção de justiça social já não se limita só às questões de distribuição,

abrangendo

agora

também

questões

de

representação,

identidade e diferença. Portanto, essa nova sensibilidade e conceitualização constituem um avanço positivo relativamente aos redutores paradigmas economicistas que tinham dificuldade em conceitualizar males cuja origem reside, não na economia política, mas nas hierarquias institucionalizadas de valor e status. Contudo, se essa nova cultura política amplia e enriquece noções de justiça e emancipação a partir da incorporação do principio do reconhecimento da diferença, não é nada evidente, conforme Fraser (2002), que as atuais lutas pelo reconhecimento estejam contribuindo para complementar ou fortalecer as lutas pela redistribuição igualitária. Antes pelo contrário: no contexto de um neoliberalismo em ascensão, podem estar a contribuir para deslocar as últimas. Se assim for, os recentes ganhos no nosso entendimento da justiça podem estar entrelaçados com uma perda trágica Nesse sentido, a autora é contundente ao afirmar que em vez de chegarmos a um paradigma mais amplo e rico, capaz de abarcar tanto a redistribuição como o reconhecimento, o que vem ocorrendo é a troca de

346

um paradigma por outro: um economicismo truncado por um culturalismo igualmente truncado, segundo ela, o resultado seria um exemplo clássico de desenvolvimento combinado e desigual: “as recentes conquistas notáveis no eixo do reconhecimento corresponderiam a um progresso paralisado, se não mesmo a francas perdas, no eixo da distribuição”. (Fraser, 2002, p.9-10) Como escapar dessa armadilha conceitual e política? Como incluir essa nova sensibilidade política que valoriza o direito à diferença e as lutas por reconhecimento sem abandonar a agenda distributiva e igualitária tão importante

e

urgente

em

nossa

sociedade?

Rejeitando

formulações

sectárias que caracterizam a distribuição e o reconhecimento como visões mutuamente incompatíveis da justiça, Fraser (2002) procura formular uma concepção que tenta abranger ambos paradigmas de justiça. O resultado seria uma concepção bidimensional de justiça, o único tipo de concepção capaz de abranger toda a magnitude da injustiça no contexto da globalização. Dessa maneira, afirma Fraser: O que é preciso é uma concepção ampla e abrangente, capaz de abranger pelo menos dois conjuntos de preocupações. Por um lado, ela deve abarcar as preocupações tradicionais das teorias de justiça distributiva, especialmente a pobreza, a exploração, a desigualdade e os diferenciais de classe. Ao mesmo tempo, deve igualmente abarcar as preocupações recentemente salientadas pelas filosofias do reconhecimento, especialmente o desrespeito, o imperialismo cultural e a hierarquia de status.A abordagem que proponho requer que se olhe para a justiça de modo bifocal, usando duas lentes diferentes simultaneamente. Vista por uma das lentes, a justiça é uma questão de distribuição justa; vista pela outra, é uma questão de reconhecimento recíproco. Cada uma das lentes foca um aspecto importante da justiça social, mas nenhuma por si só basta. A compreensão plena só se torna possível quando se sobrepõem às duas lentes. Quando tal acontece, a justiça surge como um conceito que liga duas dimensões do ordenamento social – a dimensão da distribuição e a dimensão do reconhecimento. (FRASER, 2002:11)

IV Uma terceira e última linha de força que podemos identificar nesse esboço interpretativo dos novos movimentos sociais é o papel do

347

território como uma espécie de “condensador” de direitos. De alguma forma, essa terceira linha de força é resultante das duas primeiras, pois, a luta por maior igualdade (redistribuição) e pela diferença (reconhecimento); a luta pelo direito aos recursos e a natureza e, consequentemente, por justiça ambiental; a luta por uma nova racionalidade econômica e ambiental e por autonomia e auto-gestão, todas essas formas de luta por direitos se materializam no direito ao território. Desse modo, a luta por direitos territoriais

é

a

plataforma

primordial

nessas

novas

experiências

emancipatórias, pois é a partir do território que esses diferentes povos e comunidades buscam afirmar suas identidades, sua autonomia, seu modo de vida, sua forma de produzir, enfim, seus diferentes modos de existir. Esse papel do território está claro nas experiências dos “acordos comunitários de pesca” como estratégia territorial de reapropriação social da natureza. Percebemos que para os pescadores, ribeirinhos e também para as comunidades e povos tradicionais em geral, há um intenso processo de valorização material e simbólica do espaço, isto está expresso através do papel estratégico que esses movimentos dão à terra, ao território e às territorialidades

como

fundamento

das

estratégias

de

afirmação

da

autonomia e de seus direitos. Assim, o território torna-se referência material e simbólica de vida, de identidade e resistência para esses novos protagonistas na Amazônia. Nesse processo podemos identificar uma tendência que poderíamos chamar de uma territorialização das lutas sociais. Os

movimentos

seringueiros

têm

camponeses, como

indígenas,

característica

quilombolas,

fundamental

um

ribeirinhos,

repertório

de

estratégias e táticas de luta pela apropriação física e simbólica dos territórios. Pois, como afirma Henrique Leff (2002): “o território é o lugar onde a sustentabilidade se enraíza em bases ecológicas e identidades culturais. É o espaço social onde os atores sociais exercem seu poder para controlar a degradação ambiental e para mobilizar potenciais ambientais em projetos autogestionários criados para satisfazer necessidades, aspirações e desejos dos povos, que a globalização econômica não pode cumprir”. (LEFF, p. 276). O Território é o lócus das demandas e dos reclamos das pessoas para reconstruir seus mundos de vida. (...) é onde se forjam as identidades culturais, onde se expressam como uma valorização

348

social dos recursos econômicos e como estratégias para a reapropriação da natureza. (...) O território é um espaço onde se precipitam tempos diferenciados, onde se articulam identidades culturais e potencialidades ecológicas. É, pois o lugar da convergência dos tempos da sustentabilidade: os processos de restauração e produtividade ecológica; de inovação e assimilação tecnológica; de reconstrução de identidades culturais. (LEFF,2002 p. 276) . O direito ao território condensa o projeto de luta dessas comunidades, o território é garantia e plataforma de futuros projetos de autonomia. Finalizando com as palavras de Leff: Uma nova política do lugar e da diferença está sendo construída a partir do sentido do tempo nas lutas atuais pela identidade, pela autonomia e pelo território. O que está subjacente ao clamor pelo reconhecimento dos direitos à sobrevivência, à diversidade cultural e a qualidade de vida dos povos é uma política do ser; é uma política do devir e da transformação, que valoriza o significado da utopia como um direito de cada indivíduo e cada comunidade de forjar seu próprio futuro. Os territórios culturais estão sendo fertilizados por um tempo que recria as estratégias produtivas e os sentidos existenciais. Não é só a reivindicação dos direitos culturais que incluem a preservação dos usos e costumes de suas línguas autóctones e suas práticas tradicionais, mas uma política cultural para a reconstrução de identidades, para projetar seus seres coletivos transcendendo um futuro prefixado e excludente; é resistência à hegemonia homogeneizante da globalização econômica e afirmação da diversidade criativa da vida, construída a partir da heterogênese cultural e ecológica. (LEFF, 2002 p. 277)

349

7. NOSSOS INTERCESSORES E OUTRAS COMPANHIAS.

Ninguém produz do nada, no vazio. A produção depende de encontros com nossos intercessores. ACEVEDO M, R. CASTRO, E. Amazônia Oriental: Territorialidade e Meio Ambiente. In: LAVINAS eti ali (Orgs) Reestruturação do espaço Urbano e Regional no Brasil. São Paulo: Hucitec annablume/ANPUR, 1993. _______Negros do Trombeta: Guardiães das Matas e Rios. Belém: NAEA/UFPA, 1998. _______Mobilização Política de Comunidades Negras Rurais. Domínio de um conhecimento praxiológico. In: Novos Cadernos NAEA. Belém: NAEA/UFPA. V. 2, N° 2, 1999. ACSELRAD, H. Ambientalização das lutas sociais o caso do movimento de justiça ambiental. Estudos Avançados (USP. Impresso) v. 24, 2010a. __________ Mapeamentos, identidades e territórios. In: ACSELRAD, H (org.). Cartografia social e dinâmica territoriais: marcos para o debate: Rio de Janeiro, 2010b. _________ Cartografia social e dinâmica territoriais: marcos para o debate. 1. Ed. Rio de Janeiro: ETTERN/IPPUR, 2010c. _________. Cartografia Social e Território. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ, 2008. _________. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, H. (Org.) Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004a. __________. Justiça Ambiental: ação coletiva e estratégias argumentativas. In: H. Acselrad, S. Herculano, J. A. Pádua. (Org.). Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004b. ________. O Zoneamento ecológico-econômico da Amazônia e o panoptismo imperfeito. Cadernos IPPUR/UFRJ, Rio de Janeiro, v. XV/XVI, n. 2, 2002. ACSELRAD, H; BEZERRA, G. Inserção econômica internacional e “resolução negociada” de conflitos ambientais na América Latina. In: ZHOURI A; LASCHEFSKI, K. (Org.). Desenvolvimento e Conflitos Ambientais. Minas Gerais: UFMG, 2010. ACSELRAD, H; MELLO, C. C. A; BEZERRA, G. O que é Justiça Ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009 ACSELRAD, H; COLI, L. Disputas Cartográficas e Disputas Territoriais. In: ACSELRAD, H. (Org.). Cartografia Social e Território. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ, 2008 ACSELRAD, H; HERCULANO, S; PÁDUA, J. A. A Justiça Ambiental e a Dinâmica das Lutas Socioambientais no Brasil – Uma Introdução. In: ACSELRAD, H; HERCULANO, S; PÁDUA, J. A. (orgs) Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.

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Orçamento

Política

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