\" MANDA NUDES? \" : IMAGENS ÍNTIMAS E AS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO NA MÍDIA BRASILEIRA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA

NEALLA VALENTIM MACHADO

“MANDA NUDES?”: IMAGENS ÍNTIMAS E AS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO NA MÍDIA BRASILEIRA

CUIABÁ-MT 2016

NEALLA VALENTIM MACHADO

“MANDA NUDES?”: IMAGENS ÍNTIMAS E AS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO NA MÍDIA BRASILEIRA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso, como parte dos requisitos para defesa do título de Mestre. Área de concentração: Comunicação e Mediações Culturais.

Orientador: Prof. Dr. Flávio Luiz Tarnovski

CUIABÁ-MT 2016

Dados Internacionais de Catalogação na F o n t e .

V155m Valentim Machado, Nealla. “Manda nudes?”: Imagens íntimas e as representações de gênero na mídia brasileira / Nealla Valentim Machado. -- 2016 129 f. ; 30 cm. Orientador: Flávio Luiz Tarnovski. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens, Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea, Cuiabá, 2016. Inclui bibliografia. 1. Imagens ìntimas. 2. Relações de Gênero. 3. Internet. 4. Mídia. I. Título.

Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo (a) autor (a).

Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.

AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a minha mãe Rute, que sempre me apoiou em todas as decisões que eu tomei na vida. Ela que é uma verdadeira heroína, é meu modelo de mulher e de coragem, palavras que para mim são sinônimos. A minha irmã Têmise, que é meu motivo de maior orgulho e quem me faz ter coragem de caminhar sempre em frente, em busca de melhores oportunidades. Ao meu orientador, o professor Dr. Flávio Luiz Tarnovski, que me deu a oportunidade de realizar essa pesquisa e acreditou em meu potencial, mesmo quando parecia improvável. E por também fazer despertar a veia pesquisadora na jovem jornalista, além dos materiais concedidos e de acolher e referendar minhas pesquisas bibliográficas. À professora Dra. Lucia Helena Vendrusculo Possari, que me acolheu de forma calorosa e permitiu minha participação em seu grupo de pesquisa, provendo grande auxílio e muitas bibliografias fundamentais para esta pesquisa. Ao meu querido amigo Lauro Leite, que dividiu comigo os dois anos do mestrado, dando não só conselhos, mas me iluminando com suas conversas e debates e também provendo um apoio incondicional e grande amizade em todos os momentos durante esses anos. E na figura de Mirian e Céliomar, agradeço a todos os meus amigos que me acolheram quando cheguei a Cuiabá e me abraçaram como se eu aqui tivesse nascido, que colaboram com ideias, discussões e ofereceram sempre um ombro amigo, que me consolava e revigorava a cada novo dia. Agradeço também à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo auxílio concedido.

RESUMO Em um universo cada vez maior de imagens compartilhadas nos sites e nas redes sociais, em que os usuários são cada vez mais produtores e divulgadores de conteúdo, pretendemos compreender como a divulgação não consentida, na internet, de imagens produzidas em um contexto de intimidade constitui uma realidade social e como é representada pela narrativa jornalística brasileira. Por meio da análise de notícias levantadas em dois grandes portais de comunicação, buscaremos identificar e analisar os processos de produção de novas categorias culturais e das relações de poder envolvidas nessas categorias, nas esferas da sexualidade e das relações de gênero. Nossa hipótese é que a prática de exposição de imagens eróticas na internet pode ser uma forma de violência contra as mulheres, relacionada com valores assimétricos de gênero e sexualidade. Nesse contexto, a mídia produz diferentes narrativas que dão significado para novas práticas sociais, que podem tanto reafirmar representações tradicionais de masculinidade e feminilidade, como transformar de maneira crítica modelos tradicionais de relações de gênero e moralidade. Palavras-chave: imagens íntimas, relações de gênero, internet.

ABSTRACT In a growing universe of shared images on websites and social networks, in which its users are constantly producing and sharing more content, this paper intends to comprehend how the unauthorized disclosure of pictures that are produced in an intimate settting and are spread on the internet have created a social reality and how this is represented in Brazilian journalism. Through analyzing news that was researched from two great communication portals, new processes of production from a recent cultural category will be identified and the power relations involved in the layers of sexuality and gender relations. Our hypothesis is that exposing these erotic images on the internet can be a form of violence against women related to assymmetrical gender values and sexuality. In this context, media presents different journalist views which give meaning to new social practices that reaffirm traditional representations of gender or critically transform traditional models of gender relations and morality. Keywords: intimate pictures, gender relations, internet.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ONG

Organização não governamental

SaferNet

Organização não governamental de direitos humanos na internet

UNICEF

Fundo das Nações Unidas para a Infância

IBGE

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

PF

Polícia Federal

FBI

Federal Bureau of Investigation

CEOP

Child Exploitation and Online Protection Centrer

EFE

Agência de notícias espanhola

CTV News

Agência de notícias canadense

DEPCA

Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente

USP

Universidade de São Paulo

DRCI

Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática

ABC News

Agência de notícias americana

NCMEC

National Center for Missing & Exploited Children

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 ...........................................................................................................................58 Tabela 2 ...........................................................................................................................59 Tabela 3 ...........................................................................................................................59/60 Tabela 4 ...........................................................................................................................62

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10

1. CAPÍTULO – Gênero, sexualidade e rede: imagens sexuais na internet e suas implicações na contemporaneidade ...................................................................................... 13

1.1 – As imagens íntimas e a relação com a cibercultura ......................................................... 16 1.2 – A interatividade e suas relações com a produção das imagens íntimas........................... 20 1.3 – As imagens eróticas e o borramento do conceito de intimidade na cibercultura ............ 22 1.4 – As imagens íntimas, as mídias e as representações sociais da sexualidade .................... 27 1.5 – O estudo da sexualidade e as relações de poder .............................................................. 32 1.6 – As imagens íntimas, as relações de poder e as questões de gênero ................................. 33 1.7 – O gênero na construção social do feminino e do masculino ........................................... 36 1.8 – A consolidação social dos sujeitos femininos e masculinos na cibercultura................... 38

2. CAPÍTULO – Metodologia de pesquisa, imagens íntimas, representações midiáticas e a construção social da realidade ............................................................................................ 42

2.1 – Metodologia de pesquisa: a internet como aspecto central à prática do “manda nudes” na contemporaneidade ................................................................................................................... 45 2.2 – Aspectos metodológicos: a mídia tradicional e a consolidação dos termos referentes à divulgação não consentida de imagens íntimas ........................................................................ 51 2.3 – Escolha dos termos: sexting, revenge porn, “manda nudes” e a construção de categorias sociais por meio das notícias .................................................................................................... 56 2.3.1 – Notícias Folha de São Paulo ............................................................................... 57 2.3.2 – Notícias G1.......................................................................................................... 60

3. CAPÍTULO – Notícias como constituidoras de categorias sociais: masculinidade, feminilidade, vulnerabilidade e estigma ............................................................................... 65

3.1 – Imagens íntimas e as narrativas policiais ........................................................................ 67

3.2 – Imagens íntimas e as mulheres famosas ......................................................................... 72 3.3 – Imagens íntimas e as adolescentes................................................................................... 80 3.4 – Imagens íntimas e a pornografia infantil ......................................................................... 87 3.5 – Imagens íntimas e a narrativa de vingança ...................................................................... 92 3.6 – Imagens íntimas e os homens .......................................................................................... 97

4. CAPÍTULO – Consentimento, vulnerabilidade e violência: a construção dos sujeitos “mulher” e suas representações .......................................................................................... 104

4.1 – Mulheres e a vulnerabilidade: os marcadores sociais como constituidores de sujeitos 105 4.2 – A sexualidade feminina e a consolidação do sujeito estigmatizado .............................. 110 4.3 – Transposição da narrativa: a construção social da sexualidade da mulher na contemporaneidade ................................................................................................................. 113

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 122

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 126

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INTRODUÇÃO

A internet transformou todos os setores da sociedade. Após a sua disseminação, praticamente todas as comunicações humanas passam através desse meio. Desde transações bancárias internacionais a mensagens entre amigos, como operações criminosas internacionais e a união de pessoas em todo o mundo em prol de uma mesma causa. Os relacionamentos amorosos e sexuais passaram a se dar também por meio das redes. O ciberespaço altera a maneira com a qual nos relacionamos com o mundo e com as pessoas. E é dentro desse contexto que se constrói esta pesquisa. A modificação social causada pela internet é tão notável que todo um novo campo de estudos é criado para conseguirmos compreender as mudanças que estão sendo instauradas e constituídas. Esse campo é a cibercultura. A internet surge nesse novo território de estudos como um espaço desterritorializado, lúdico, interativo e onipresente, no qual quem possui acesso aos meios tecnológicos pode participar produzindo e compartilhando todo tipo de informação. Pretendo promover uma análise sobre uma situação social específica, que envolve, entre outros fatores, a produção “espontânea” por mulheres, ou por seus parceiros (homens), de imagens com conteúdo íntimo (fotografias e vídeos), a divulgação não consentida, desejada ou prevista dessas imagens na rede mundial de computadores, e a posterior consequência como fenômeno social que essa “exposição” na internet ocasiona. Como a divulgação não consentida e viralizada 1 na internet de imagens produzidas em um contexto de intimidade constroem uma realidade social que é representada pela narrativa jornalística brasileira. Em meio a esse oceano de imagens (fotografias, vídeos) na rede, todas com conteúdo íntimo, me dedico àquelas que parecem estar diretamente associadas aos usos das tecnologias da informação, que seriam de produção, compartilhamento e divulgação de conteúdos pelos usuários da rede. Segundo André Lemos (2013), o grande interesse sociológico e antropológico do ciberespaço reside no vitalismo social que este pode canalizar. Todas as formas sociais encontram nesse ambiente catalisador e potencializador um instrumento de divulgação e viralização de comportamentos.

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Termo normalmente usado no vocabulário do senso comum para indicar a ação de fazer com que algo (imagem, vídeo, áudio ou texto) se espalhe rapidamente na internet, com um efeito semelhante ao de um vírus – no sentido biológico.

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Nesta pesquisa, foi feita uma abordagem qualitativa do objeto de estudo. Inicialmente foi feita toda a revisão bibliográfica necessária para a sustentação teóricometodológica deste trabalho. O próximo passo foi a realização de um mapeamento de dois portais de notícia nacionais: Folha de São Paulo e G1, em que foram levantadas as notícias referentes à produção de imagens com conteúdo íntimo e à divulgação não consentida, desejada ou prevista dessas imagens. Com o objetivo de entender como uma realidade social é constituída e realimentada por intermédio das notícias, propus uma abordagem multidisciplinar para a análise das delas, com elementos da comunicação, da antropologia, da semiótica, entre outros. Pois a análise não é somente do texto das notícias, mas de todo um contexto socioeconômico e de relações de gênero e de poder também. Como esta dissertação é a continuação de um projeto de graduação, a observação de campo é feita desde o ano de 2012 e a pesquisadora está inserida nesse meio social. Por isso, o levantamento prévio observou casos nos meios de comunicação mais tradicionais, como televisão e rádio, na internet, nas mídias sociais e em conversas com pessoas que fazem essa prática. Também a própria pesquisadora já recebeu, por meio das redes sociais, esse tipo de imagem de conteúdo íntimo. Esta é uma dissertação com quatro capítulos. No primeiro capítulo, “Gênero, sexualidade e rede: imagens sexuais na internet e suas implicações na contemporaneidade”, apresento um panorama do contexto contemporâneo de produção e divulgação das imagens íntimas. Questões de publicização do espaço privado, o ciberespaço e a internet como locais de viralização dessas imagens, o estudo da sexualidade e as relações de poder, bem como as relações de gênero dentro desse contexto. No segundo capítulo, “Metodologia de pesquisa, imagens íntimas, representações midiáticas e a construção social da realidade”, explico como o mapeamento das notícias foi realizado, bem como a escolha das palavras-chave que foram utilizadas e as similaridades e diferenças entre cada termo. Descrevo também como a produção jornalística e o trabalho do jornalista são importantes para a produção e retroalimentação de uma realidade social específica que diz respeito a essas imagens íntimas. No terceiro capítulo, “Notícias como constituidoras de categorias sociais: masculinidade, feminilidade, vulnerabilidade e estigma”, apresento a análise das notícias que foram levantas, em que os casos que consideramos relevantes para entendermos essa realidade social específica são apresentados e analisados dentro do contexto social brasileiro. Estes têm

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pontos em comum e características bastante significativas e por isso foram escolhidos para serem analisados com o auxílio da revisão bibliográfica. É percebido que a vergonha e a humilhação são os sentimentos que descrevem e caracterizam as mulheres como sujeitos estigmatizados. No último capítulo, “Consentimento, vulnerabilidade e violência: a construção dos sujeitos ‘mulher’ e suas representações”, é descrito como a divulgação não consentida das imagens íntimas se configura como uma violência contra as mulheres, que se caracterizam como sujeitos que carregam um estigma, tanto dentro da rede como fora da rede. A violência simbólica é utilizada para manter a consolidação do poder. Apesar de uma tentativa de negociação de poderes dentro das relações de gênero que parte das próprias mulheres, consegui perceber, no contexto da narrativa das notícias, que são elas que sofrem no corpo as consequências da divulgação dessas imagens. Por fim, seguem as considerações finais desta pesquisa, retratando de forma sucinta pontos observados durante todo o trabalho, sem que se tenha a pretensão de esgotar todas as análises e os apontamentos que podem ser feitos a respeito do tema.

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1.

CAPÍTULO – GÊNERO, SEXUALIDADE E REDE: IMAGENS SEXUAIS NA INTERNET E SUAS IMPLICAÇÕES NA CONTEMPORANEIDADE

Ao término da minha graduação em Comunicação Social: Habilitação em Jornalismo, ao fim de 2012, me interessei por um tema, que na época já tinha muita visibilidade na mídia brasileira e que me fazia refletir sobre uma série de questões como gênero, sexualidade, mídia, privacidade e espaço público. A todas essas perguntas, eu encontrei uma resposta temporária, que a mídia, naquela época, chamava de sexting. Em comum, eram notícias que contavam a história de meninas, adolescentes e algumas mulheres que tiveram fotografias ou vídeos de momentos íntimos expostos na rede mundial de computadores. Essas imagens eram viralizadas normalmente por alguém em que elas confiavam, um parceiro íntimo, que disponibilizava na internet mensagens com imagens de conteúdo íntimo, feitas no contexto do relacionamento amoroso privado. Durante o processo de pesquisa para a pós-graduação, descobri vários outros termos utilizados pelos portais de notícia para narrar situações muito similares como aquelas que a mídia jornalística já havia se familiarizado e até batizado com termos herdados do exterior. Foi percebido que a mídia em geral utiliza termos como “pornografia de revanche”, revenge porn, sexting, “vingança pornô”, “exposição sexual internet”, “caiu na rede”, “caiu na net”, “manda nudes”, entre outras, para descrever situações em que imagens de conteúdo íntimo produzidas sem fins lucrativos (porque elas não são feitas, necessariamente, para a promoção pessoal ou com alguma finalidade de lucro) são divulgadas e compartilhadas na rede mundial de computadores sem o consentimento prévio de quem aparece estampando essas imagens. São fotos e vídeos que registram situações de relacionamento amoroso ou sexual, produzidos em um contexto privado e divulgados em um ambiente público, a internet, pelos meios tecnológicos. Longe de tentar compreender o que leva as pessoas a se fotografarem e/ou filmarem e disponibilizarem esse conteúdo na internet, este trabalho procura uma análise das consequências sociais da divulgação dessas imagens. Não estamos aqui interessados no que pensou a mulher que se fotografou/filmou (ou que foi fotografada/filmada por seu parceiro) e quais foram os motivos alegados que levaram essa imagem a ser massificada na internet. E sim, procuramos promover uma análise sobre uma situação social específica, que envolve,

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entre outros fatores, a produção “espontânea 2” por mulheres, ou por seus parceiros (homens), de imagens com conteúdo íntimo (fotografias e vídeos), a divulgação não consentida, desejada ou prevista dessas imagens na rede mundial de computadores e a posterior consequência como fenômeno social que essa “exposição” na internet proporciona. Quais são as relações de poder presentes nesse ato social? A questão do consentimento é fundamental em neste trabalho, pois, segundo Maria Filomena Gregori: “É possível afirmar que consentimento e vulnerabilidade constituem hoje os termos centrais em torno dos quais são acionados os direitos e práticas sexuais” (Gregori, 2014: 53). Isso significa dizer que esses dois termos são fundamentais para o entendimento social das práticas sexuais da contemporaneidade, e nós não podemos simplesmente supor um consentimento prévio e desproblematizado em relação à produção das imagens íntimas. Ainda nos baseando na autora, em nossa sociedade em que as relações entre os sujeitos são muito desiguais, o consentimento é muito mais complexo e difícil de ser determinado. O problema da definição do que é consentimento está ancorado na complexidade da definição do sujeito e de sua vulnerabilidade enquanto tal, ou seja, se o sujeito é capaz de externar de modo consciente o seu consentimento. No caso da produção das imagens íntimas, não podemos nos esquecer que elas são produzidas, principalmente, em contextos de relacionamentos amorosos e sexuais, em que as relações de poder e violência têm uma configuração mais complexa e específica, em que muitas vezes os vínculos de dependência são relacionados e o sujeito pode estar em uma situação de vulnerabilidade. Quando refletimos sobre a circulação social de imagens íntimas, devemos, primeiramente, estabelecer à que esfera das relações de intimidade e sexualidade essas imagens pertencem. De acordo com Georges Bataille (1987), pornografia e erotismo são conceitos complexos e de significados múltiplos, que possuem variações sociais. Ainda de acordo com o autor, ambos os conceitos se referem a relações que borram os limites de público e privado nos vínculos sociais. Bataille, quando fala sobre o erotismo, descreve dois tipos de episódio: um que leva à agressão e outro que leva ao êxtase. Para o autor, o deleite erótico exige um movimento de ruptura que prepare os corpos para o prazer que será 2

Essa “vontade” que as mulheres estão tendo de produzir e de enviar fotos e vídeos íntimos pode e será questionada nesse trabalho. Muitas vezes, como podemos perceber pelas narrativas jornalísticas utilizadas na pesquisa, as mulheres são de alguma maneira coagidas a produzir e enviar essas imagens. Seja por meio de ameaça direta, seja como uma prova de amor, os casos se mostram repetitivos nas amostras da pesquisa e nos fazem questionar o quão livre de pressão externa são feitas essas escolhas. Também não podemos nos esquecer das relações de poder que se fazem presentes nessa “troca” de imagens e que serão levantadas mais à frente, neste trabalho. Mas também não excluímos o grupo de mulheres que desejam produzir essas imagens, pois as mulheres são sujeitos que possuem desejos e fetiches.

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recebido. Essa ruptura pode ser entendida como um desnudamento, uma violação ou uma transgressão. Bataille afirma que a nudez aparece como um canal privilegiado para essa ruptura, à medida que essa exposição do corpo desnudo se abre para um sentimento de obscenidade, fundamental para o deleite erótico. Neste trabalho, foi percebido que essas imagens íntimas (fotos e vídeos) divulgadas na rede se caracterizam, entre outros fatores, por mostrar o corpo (feminino, mas não somente) desnudo ou parcialmente desnudo, ou também por registrar relações sexuais propriamente ditas. Imagens produzidas nas relações íntimas amorosas/sexuais, feitas inicialmente em um contexto de intimidade. De acordo com Jorge Leite Júnior (2005): É neste mesmo período, a passagem do século XIX para o XX, que nasce o produto conhecido hoje como “pornografia”. Diferente das representações sobre a sexualidade humana que a precederam e eram indissociáveis de uma crítica políticosocial, este novo material caracteriza-se pela intenção de provocar o desejo e a excitação sexual em seu público consumidor como um fim em si mesmo, além da produção em massa alheia às questões filosóficas. (Leite Júnior, 2005: s/p)

O autor levanta a questão de que esse produto cultural nasceu, entre outros fatores de sua história, como um material que se caracteriza pela intenção de provocar o desejo e a excitação sexual em seu público consumidor, como um fim em si mesmo, se utilizando da noção de intimidade, para construir uma ruptura que causasse o deleite erótico. Nesse ponto, as imagens íntimas desta pesquisa aparecem como a materialização da ruptura do outro. Neste caso específico, a ruptura e a exposição pública do corpo da mulher para o desejo erótico, muito mais que a própria produção pornográfica. As imagens íntimas descritas neste trabalho chamam atenção por apresentar pessoas que não estão atuando, não estão recebendo pagamento para realizar aquelas performances, são mulheres muitas vezes “comuns” que as produzem. E essa ruptura do que é feito para ser privado e acaba sendo viralizado para a observação pública é o que causa o deleite erótico. Tanto que a pornografia, constituída como indústria cultural, se segmenta3 para conseguir alcançar o maior público possível, inclusive forjando vídeos que simulam essa situação social (de registrar um momento íntimo e torná-lo público na internet), para chamar atenção de um público específico e segmentado, visando a venda e o lucro.

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De acordo com Jorge Leite Júnior: “A pornografia, que no início estava totalmente associada à delinquência moral ou legal, com sua lenta assimilação social, vai se distanciando da representação considerada perversa ou doente, e com isso ganhando maior legitimidade e aceitação pública. As práticas e imagens fantásticas deixam de ser algo comum neste discurso visual e tornam-se apenas uma ramificação”. (s/p)

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Desta forma, as imagens íntimas aqui analisadas pendem muito mais para o erotismo, do ponto de vista de Bataille, por borrar de forma bastante complexa as noções de público e privado, além de pertencerem, na sua divulgação não autorizada, ao domínio da violência e ao da violação, que o autor afirma serem esferas das relações de deleite erótico. Para Bataille, no erotismo, há sempre uma dissolução das formas constituídas no estabelecimento da nossa organização social: dissolução dessas formas de vida social, regular. E é justamente isso que essas imagens íntimas nos fazem questionar atualmente. Elas colocam em xeque as definições de relações amorosas/sexuais presentes nos nossos dias atuais. Quando unimos esse universo da sexualidade com o ciberespaço, adentramos a uma nova galáxia de outras possibilidades de estudos e análises. É dentro desse universo que este trabalho se propõe. Em meio a esse oceano de imagens, fotografias e vídeos na rede, todos com conteúdo íntimo, me dedico àquelas que parecem estar diretamente associadas aos usos das tecnologias da informação, que seriam de produção, compartilhamento e divulgação de conteúdos pelos usuários da rede. Segundo André Lemos (2013), o grande interesse sociológico e antropológico do ciberespaço reside no vitalismo social que este pode canalizar. Todas as formas sociais encontram nesse ambiente catalisador e potencializador um instrumento de divulgação e viralização de comportamentos.

1.1 – As imagens íntimas e a relação com a cibercultura

Atualmente, a imagem de todos está sujeita a ser filmada e compartilhada na internet. Não importa onde você esteja, sempre pode ter alguém com um aparelho eletrônico que registre imagens, e o exemplo a seguir mostra bem isso. Em setembro de 2006, a ex-modelo e apresentadora Daniella Cicarelli 4 foi filmada durante uma relação sexual com o empresário Tato Malzoni, com quem ela estava namorando na época, em uma praia espanhola. Essas imagens feitas sem o consentimento do casal foram parar no YouTube. A partir desse momento, a apresentadora começou uma verdadeira saga judicial para retirar as imagens da rede. O portal retirou o material em razão de uma ordem judicial, mas os internautas continuaram a publicar cópias do vídeo 5. Os advogados da apresentadora pediram a retirada

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Fonte: Jornal Folha de São Paulo.

5

O YouTube é um portal em que o internauta pode inserir e fazer o download de vídeos. O portal também possibilita compartilhar em outros sites e redes sociais os vídeos que estão disponíveis. A principal dificuldade em bloquear a visibilidade de qualquer conteúdo é que é praticamente impossível estar ciente e acompanhar

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do portal da rede. Em função disso, o Tribunal de Justiça de São Paulo suspendeu temporariamente o YouTube em todo o país por um pequeno período de tempo. Em 2010, os sites Google, Terra, YouTube e IG foram condenados em primeira instância a pagar uma multa de R$ 35 mil a Daniella. Tato Malzoni e a apresentadora pediram, em segunda instância, 96 milhões em indenização ao Google, pela divulgação do vídeo no YouTube, mas não conseguiram o aumento da multa. E em maio de 2012, o canal de televisão Bandeirantes foi multado em R$ 250 mil por usar as imagens de forma indevida. Atualmente, ainda é possível encontrar o vídeo na web, mesmo que o Google se esforce em dificultar o acesso aos resultados da busca. Todos nós estamos produzindo e divulgando conteúdos diversos no ciberespaço. A palavra ciberespaço foi inventada, em 1984, por William Gibson em seu romance de ficção científica Neuromante e designa o universo das redes digitais. Pierre Lévy (1997) define o ciberespaço como o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores. Nessa definição, ele inclui todo o conjunto dos sistemas de comunicação que são digitais, e que atualmente incluem também celulares, televisões, carros, geladeiras ou qualquer produto que tenha acesso à rede. Ainda segundo o autor, nesse ambiente existe uma cibercultura, que nada mais é do que o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente do crescimento do ciberespaço. Ainda de acordo com Lévy, a cibercultura não possui centro nem linha diretriz, o que significa que ela não pode ser controlada por um único emissor, à maneira dos antigos mass media. Mas isso não quer dizer que a cibercultura é neutra, nem que não existam tentativas de controlá-la. Como todos os outros meios construídos pela técnica, o ciberespaço é mais uma das facetas das relações humanas e, por esse motivo, passível de análise pelas ciências sociais. As relações humanas, dentro do ciberespaço, se tornam um complemento da constituição do sujeito e da sua sociabilidade. Pierre Lévy afirma que os usuários do ciberespaço, quando o utilizam, emocionam-se, envolvem-se, trocam ideias e constroem relações de sociabilidade como fariam fora desse espaço. A vida on-line e as relações

onde e com quem estão todos os conteúdos publicados. Além do fato de que o vídeo também pode ser copiado e disponibilizado em outras plataformas de visualização.

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construídas nesse espaço são partes constituintes da vida “real6” de cada um de nós na contemporaneidade. A cibercultura é uma constante em nossa realidade social nos dias atuais. De acordo com Richard Miskolci (2012), em seu trabalho sobre as relações homoeróticas mediadas digitalmente, afirma que a própria emergência das mídias digitais contemporâneas proporcionou a todos nós pesquisadores um “terreno” novo de investigação. O ciberespaço e a cibercultura permitem aos pesquisadores acessos a experiências que, antes da conexão mundial entre os aparelhos eletrônicos, eram vividas de forma individualizada, silenciosa e invisível, mas nem por isso menos sociais. Os comportamentos que dizem respeito à vida amorosa e sexual das pessoas se tornam mais facilmente observados pela investigação antropológica por meio da internet. Para o autor, atualmente é praticamente impossível tentar entender as relações sociais sem as mediações tecnológicas, porque elas estão tão presentes em nossas vidas cotidianas que nós nos comunicamos com os outros e com o mundo por intermédio delas. Compreender que vivemos em uma sociedade em que as mídias digitais têm um papel cada vez mais central e generalizado é mais desafiador em termos analíticos porque essa tecnologia não apenas media, mas molda subjetividades e a articula no processo incessante de (re)constituição de nossa vida coletiva. Vivemos em uma cultura crescentemente digitalizada desde o advento da internet comercial, mas mal começamos a compreendê-la em seus próprios termos. (Miskolci, 2012: 39)

André Lemos (2013) afirma que a cibercultura é uma sinergia entre a nossa vida social, os dispositivos eletrônicos e as suas redes telemáticas. Mais do que nunca a cibercultura está colada, emaranhada e inserida em toda a nossa vida social. Lemos conta sobre este “imaginário tecnológico” da cibercultura que se apresenta para nós como a ruptura máxima com os paradigmas da modernidade.

Segundo Lemos, na pós-modernidade, o

sentimento é de compressão do espaço e do tempo imediato, e de redes telemáticas desterritorializadas, tendo um forte impacto nas estruturas econômicas, políticas e sociais, criando esse “novo” ambiente comunicacional no qual todos nós nos encontramos e nos relacionamos atualmente. Lemos também argumenta que nessa pós-modernidade é acrescentado a apropriação cotidiana das técnicas dos meios telemáticos e tecnológicos. De acordo com o autor, todos

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A noção de real e virtual, discutida pelo autor, será apresentada nas próximas páginas deste trabalho.

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nós 7 conseguimos manejar, em algum grau, celulares, computadores, tablets, entre outros, e a maioria de nós aprende a como utilizar de maneira prática e cotidiana esses aparelhos. Para Lemos, essa apropriação da tecnologia tem uma dimensão técnica, que seria o nosso treinamento para a utilização do objeto, e outra simbólica, que seria a utilização própria do nosso imaginário em relação ao objeto, o subjetivo. Para André Lemos, a apropriação, dessa maneira, aparece tanto como um aprendizado técnico, do saber manejar e utilizar o objeto tecnológico, como uma forma de desvio, que aparece na lacuna imaginativa deixada pelo inventor/desenvolvedor da tecnologia. No entanto, de acordo com Clifford Geertz (1989), do ponto de vista e antropológico, não é somente uma questão de imaginação pessoal do usuário de aparelhos tecnológicos (ou outros elementos simbólicos da cultura), mas de significados e práticas culturais que são colocados naquele aparelho e que têm uma base social/coletiva. Essas práticas não partem somente de um “imaginário individual” e específico de cada usuário da rede, mas, sim, são pertencentes a uma rede de significados culturais. Na perspectiva das ciências sociais, a ideia de um “inventor” aparece como um conceito ilusório, já que seria difícil imaginar que existe uma pessoa que “inventa” um objeto, sendo ele qual for, com um propósito único e específico. A problemática da pesquisa se insere no uso social dos meios midiáticos para a produção e circulação do conteúdo visual produzido nos contextos de intimidade de relacionamentos amorosos/sexuais. Ainda dissertando sobre o “espírito” da cibercultura, Lemos (2013) o descreve como transgressor, apropriador, performático e participativo. Transgressor e apropriador porque não respeita as “fronteiras” que a modernidade antes havia instaurado, causando um esfacelamento delas (invasão de privacidade, roubo de documentos, criação de vírus, cibercrimes). É flutuante e imprevisível, como o fluxo das informações na rede. Performático, porque todos os usuários praticariam, na rede, performances de identidades que são mutáveis, maleáveis e fragmentadas. Virtualmente, de acordo com Lévy (1997), cada um pode se tornar exatamente aquilo que deseja ser e do jeito que deseja8. E participativo porque quem possui acesso pode postar uma quantidade irrestrita de conteúdos os mais variados possíveis na rede. Todos que possuem um aparelho com acesso à internet e uma conta em uma rede social

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Como um trabalho de perspectiva antropológica não podemos deixar de mencionar que não são todas as pessoas que, mesmo nos dias atuais, possuem acesso aos meios tecnológicos de comunicação. Segundo Paula Sibilia (2008), dois terços da população mundial nunca terão acesso à internet. Entretanto, esses dados são antes da massificação dos smartphones e tablets. Esse também é um conceito que pode ser questionado nesta pesquisa. Porque apesar de ser um espaço/tempo diferente, como mostraremos neste estudo, os atos on-line têm implicações muito presentes no off-line.

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podem produzir qualquer tipo de conteúdo, em qualquer lugar, a qualquer hora, e postar esse mesmo conteúdo praticamente de imediato. De acordo com Cristiane Pereira Dias, graças às múltiplas experiências proporcionadas pelo on-line e off-line, o tempo se sobrepõe e tem relação direta com a velocidade de conexão, o que possibilita às pessoas produzirem conteúdo em qualquer lugar e postá-lo a qualquer hora, desde que a conexão permita. E esse conteúdo poderá ser acessado em qualquer lugar do mundo, a qualquer hora, bastando somente uma conexão com a rede. André Lemos, citando a obra de Pool (1983), explica de maneira otimista que estas seriam as “tecnologias da liberdade 9”, aquelas em que não se pode ou se consegue controlar toda a produção de dados que é disponibilizada a todos que têm acesso, que colocam em xeque questões sobre hierarquias da produção e da divulgação de conteúdos, que proporcionam agregações sociais e que multiplicam os polos da emissão não centralizada. Para Lemos, mais do que mostrar o mundo, as tecnologias de informação da cibercultura são as ferramentas técnicas que proporcionam o deslocamento do espaço e do tempo para quem tem acesso a esse meio, favorecendo a criação de redes de sociabilidade por meio do compartilhamento de imagens, fotos, vídeos, textos, ideias, sentimentos e uma infinidade de outras coisas. O que não significa, necessariamente, que todas as redes de sociabilidade são utilizadas necessariamente para propósitos éticos. Por esse motivo, todo e qualquer conteúdo, uma vez disponibilizado on-line, tem uma possibilidade praticamente nula de ser retornado ao seu estado de desconhecimento. Dizendo de maneira mais clara, uma vez na rede, o conteúdo estará lá para sempre, como a história da apresentadora Daniella Cicarelli pode atestar. O que queremos entender neste trabalho é como são constituídas as relações de poder dentro das redes de sociabilidade, nesse espaço/tempo dos meios digitais.

1.2 – A interatividade e suas relações com a produção das imagens íntimas

Muito mais do que simplesmente um fenômeno técnico, o ciberespaço é um fenômeno social, como já foi dito. A dinâmica social existente no ciberespaço cria sempre novos programas e aplicativos que permitem a interatividade social, fazendo do meio “uma incubadora espontânea de formas midiáticas” (Lemos, 2013: 139). O campo da cibercultura e 9

Podemos questionar essa noção de “liberdade” utilizando como exemplo países em que a conexão e o acesso à internet são restritos, e muitas vezes quem burla essas restrições está sujeito a penalidades legais.

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da internet é marcado pela intertextualidade, em que convivem conteúdos veiculados pelas variadas mídias que se retroalimentam (Beleli, 2012). Por meio dessas retroalimentações, acontecem as trocas de sentidos pelas relações pela internet (Rüdiger, 2013). De acordo com Possari e Neder, “a interatividade diz respeito à ação do receptor que é a de interferir, modificar o que está sendo objeto de construção de sentidos/de conhecimento. Para que ambos ocorram, é necessária a corporificação do texto (verbal, não verbal, hipertextual) e a mediação (voz, internet, impresso e outros)” (2009: 57-58). As imagens íntimas são produzidas pelos próprios usuários e divulgadas na rede por eles, tanto que os usuários utilizam os vários aplicativos de produção e divulgação de imagens para esse fim. Um bom exemplo sobre a dinâmica da circulação social de imagens íntimas é o Snapchat. Um aplicativo para celular lançado no ano de 2011 e que funciona enviando imagens pelo bate-papo que duram de 1 a 10 segundos, sendo “destruídas” em seguida. O aplicativo tem se tornado cada vez mais popular 10 entre os usuários brasileiros da rede para compartilhar conteúdo mais íntimo, como imagens de vídeos contendo nudez ou relações sexuais, por conta de sua suposta segurança com esses arquivos. O aplicativo é programado para ativar as imagens na rede com dois tipos de tempo de duração diferentes. O primeiro desses tempos envia a imagem que aparece na tela de quem recebeu por até 10 segundos, e o outro disponibiliza a imagem durante 24 horas, sendo apagada depois desse tempo. A divulgação desse aplicativo afirma que ele seria mais seguro que os outros concorrentes, porque avisa a quem enviou a foto que a pessoa que recebeu a imagem fez uma fotografia da tela do celular (mantendo desse jeito a imagem que deveria ter sido apagada após a visualização). Mas o que a pessoa que enviou a imagem pode fazer sabendo que a outra tem posse de uma imagem dela nua? O Snapchat também oferece a opção de poder escolher a quem enviar a imagem. Um contato específico, ou vários ao mesmo tempo, com o tempo de duração de visualização da imagem de até 24 horas. Até mesmo redes sociais que exibem publicamente condutas políticas bastante rígidas em relação a conteúdos íntimos e/ou considerados sexuais (por conter nudez ou imagens pornográficas/eróticas) apresentam falhas que permitem o compartilhamento e a divulgação desse tipo de conteúdo produzido pelos próprios usuários da rede.

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Fonte: Portal Folha de São Paulo.

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O Instagram é uma rede social on-line de compartilhamento de fotos e vídeos. A rede permite aos seus usuários aplicar filtros digitais em suas imagens e compartilhá-las na própria rede e em uma variedade de outras redes sociais. Eles possuem uma política bastante específica e rígida 11 em relação a conteúdos que possam conter nudez, cenas de sexo explícito ou imagens pornográficas e/ou eróticas. O usuário que detectar esse tipo de imagem pode denunciar imediatamente o conteúdo para o servidor, ajudando assim a minimizar a sua disseminação. Os participantes da rede social conseguem se localizar por meio dos nomes de usuários ou de hashtags12. Algumas dessas hashtags levam diretamente para conteúdo sexual, como por exemplo a #Adult, pela qual o usuário pode ter acesso fácil a conteúdo considerado pornográfico, que mesmo sendo denunciado e retirado do ar, volta a aparecer postado de outro servidor ou de outro usuário, fazendo com que o controle dessas imagens seja praticamente impossível dentro da rede social. Segundo Lemos, a realidade virtual como mídia de comunicação permite a qualquer usuário modificar o conteúdo da memória digital compartilhada. Segundo Cristiane Pereira Dias, as nossas experiências virtuais criam novos 13 sentidos para o afeto e a nossa relação com nossos corpos e com os outros, os quais ultrapassam a plataforma do off-line. As relações virtuais se tornam cada vez mais “reais”, com encontros na internet, troca de imagens e sexo virtual. E nossas relações reais se tornam cada vez mais virtuais, com mensagens para familiares, amigos e conhecidos que vivem em outras partes geograficamente separadas. Essa simbiose de fronteiras, antes delimitadas (público e privado), acontece por possibilitar a mistura de um tempo/espaço paralelo na nossa realidade off-line, com características próprias e diferenciadas (Dias, 2012).

1.3 – As imagens eróticas e o borramento do conceito de intimidade na cibercultura

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Fonte: Jornal O Globo.

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Tags são palavras-chave ou termos associados a uma informação, tópico ou discussão que se deseja indexar de forma explícita nas redes sociais Twitter, Facebook, Google+, Instagram. Hashtags são compostas pela tag da palavra-chave do assunto antecedida pelo símbolo cerquilha (#). As hashtags viram hiperlinks dentro da rede, indexáveis pelos mecanismos de busca. Sendo assim, outros usuários podem clicar nas hashtags ou buscá-las em mecanismos como o Google, para ter acesso àquele conteúdo indexado ao hiperlink.

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Abro o questionamento aqui se esses sentimentos de afeto e sexualidade são realmente novos ou só foram potencializados com a existência e massificação da internet, como meio e artefato cultural.

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A circulação social de imagens com conteúdo íntimo, ou até mesmo considerado erótico, não é uma coisa recente. Em 1866, o artista Gustave Courbet fez o quadro L'Origine du Monde (A Origem do Mundo), que mostra frontalmente a figura das coxas e da vagina de uma mulher. Essa tela foi um escândalo na época e, até os dias de hoje, fomenta uma série de discussões sobre os limites da arte e a diferença entre o erótico e o pornográfico. O quadro tem um percurso atribulado. O primeiro dono da obra, um diplomata turco, de nome KhalilBey, de passagem por Paris, encomendou a tela a Courbet para a sua coleção. Khalil-Bey era um colecionador de arte erótica. Pouco tempo depois, Khalil-Bey viu-se obrigado a vender diversas peças da sua coleção para pagar dívidas de jogo. Escondida debaixo de uma outra tela de aspecto mais pacífico, A Origem do Mundo foi então comprada por um antiquário, passando de mão em mão até chegar ao seu último dono, o célebre psicanalista francês Jacques Lacan. Após a sua morte, a família doou-o ao Museu d'Orsay, onde a obra se encontra hoje presente. Essa tela foi durante muito tempo escondida embaixo de outras telas consideradas menos perturbadoras ou até mesmo coberta por tecidos 14. Segundo Bataille (1987), a experiência erótica está diretamente relacionada à experiência do pecado, da transgressão realizada, bem-sucedida. A realização da experiência erótica está ligada ao desejo, ao medo, ao prazer e à angustia. O autor afirma que o erotismo nasce da sexualidade envergonhada. Esse quadro é um exemplo claro dessa sexualidade velada que causa fascinação e repulsa ao mesmo tempo. No entanto, a mulher que pousou para a pintura sabia que seu retrato estava sendo produzido para ser exposto. Este é um retrato sem rosto, sem identidade estabelecida, e é cercado de mistérios para saber a quem pertence aquele órgão sexual, um dos componentes que mantêm a sua eroticidade latente até nossos dias. As imagens íntimas que circulam atualmente na rede mantêm esse viés erótico, ainda por conta da transgressão, mas com diferenças consideráveis em relação à obra de arte. Nos dias atuais, é essa massificação das imagens que se configura em uma violação da intimidade, porque o rosto e toda a vida da mulher que ilustra as fotografias e os vídeos se tornam públicos junto da imagem, desvelada para todos observarem. Ainda segundo Bataille, uma das formas do viés erótico é a transgressão do corpo feminino, que deixa de pertencer a mulher. Nesse caso, mais do que o corpo que se torna público, a intimidade feminina é desvelada aos olhos dos usuários.

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Fonte: Revista Época.

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O próprio ato de produzir conteúdo erótico por conta própria, sem fins lucrativos e em situação de intimidade não se iniciou com o desenvolvimento e massificação da internet15. No entanto, somente após a invenção e a disseminação das tecnologias da informática, como computadores, celulares e tablets, é que foi facilitado ao máximo a produção própria, a divulgação e o acesso a conteúdos produzidos no interior de uma relação íntima. Fotos e vídeos feitos com o pretexto de servirem para o deleite erótico dos que estão inseridos naquela relação, mas que, com a internet, são viralizados para todos. No contexto desta pesquisa, me concentrei em analisar o uso social da circulação desse conteúdo visual produzido em contextos de intimidade, privacidade e de um relacionamento amoroso, em uma circunstância de eroticidade. Mesmo com as similaridades com o caso da apresentadora/modelo famosa, as notícias pesquisadas descrevem situações em que as imagens são produzidas em locais historicamente constituídos como privados, de intimidade, e não em lugares públicos. Essas imagens também não são produzidas no sentido de serem feitas especificamente para a divulgação em massa, como uma campanha publicitária ou um filme. E não é feita a diferenciação entre as imagens de pessoas que eram “comuns” ou “não famosas” antes da exposição na rede ou as de pessoas que eram conhecidas do público. O ponto que se torna problemático aqui é tornar pública uma cena que foi realizada primeiramente para um contexto de intimidade. A circulação social dessas imagens íntimas diz muito também a respeito da questão do consentimento – ou nesse caso, a falta de consentimento, que é percebida por meio das consequências sociais da divulgação das fotos e dos vídeos. Essas imagens são publicadas na internet por outras pessoas, sem a permissão óbvia de quem aparece nelas. Esses fatos levantam questionamentos acerca das características de manutenção e continuidade das relações de poder por meio desses comportamentos e seus efeitos sociais. De acordo com Lévy, é uma característica própria do ciberespaço colocar em sinergia e integrar todos os dispositivos de criação de informação, de gravação, de comunicação e de simulação (1997). Essa característica de integrar os aparelhos tecnológicos, somada ao fato de 15

Lembro-me que durante a graduação, no ano de 2012, meu orientador do TCC na época, o professor mestre Silvio da Costa Pereira, dividiu, no início de nossa incursão pela escrita do trabalho, a história de uma mulher que ele havia conhecido quando ainda era somente um estudante de graduação. Essa mulher foi exposta no campus da universidade que ele frequentava. O homem com quem ela estava envolvida revelou e colou uma série de fotos dela de conteúdo íntimo por todo o campus. Ela foi ridicularizada e humilhada por algum tempo, mas as imagens foram eventualmente destruídas no campus. No entanto, a história foi tão marcante, que mesmo meu professor, que não conhecia a mulher na época dos acontecimentos, se lembra das histórias e das imagens. As fotografias foram removidas dos espaços físicos da universidade. Na internet, o mesmo procedimento já é muito mais complexo, senão impossível.

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a internet se caracterizar como um espaço/tempo que se comunica, interage e convive com a nossa “realidade” (Dias, 2012) e faz com que as fronteiras que delimitam o que é público e o que é privado fiquem borradas ou percam um pouco o sentido que tinham anteriormente. A própria noção de intimidade ou privacidade foi difundida durante o século 19, uma construção da sociedade moderna (Bozon, 1997) que instaurou o que poderia ser feito na vida privada e em público e quais são os limites entre esses espaços. Na contemporaneidade, essa noção se perde e não cabe mais nos espaços instaurados anteriormente. Segundo Scott MacQuire (2011), ocorreu uma desestabilização geral exercida pela mídia eletrônica e digital na produção do espaço público e privado nas cidades contemporâneas. A vida íntima, na pós-modernidade, pode ser exposta em caracteres, fotografias e vídeos nas redes sociais. A casa, como centro de mídia, para o autor, transforma nosso entendimento de público e privado. Mudanças significativas nas fronteiras – domésticas, locais, urbanas, regionais, nacionais, transnacionais – eram antes distintas, ou ao menos assim se acreditava ser, agora parecem estar irredutivelmente imbricadas umas nas outras. A globalização de fluxos midiáticos caminha junto com a reorganização do espaço da vida doméstica, incluindo as micropolíticas da família. (MacQuire, 2011: 203)

Lemos (2013), citando Simmel (1988), utiliza a metáfora da ponte e da porta para explicar o quão emaranhado se torna a questão do público e do privado na internet. O ciberespaço pode ser visto como uma rede ou “ponte de pontes”, ligando potencialmente todos a todos. Mas ele também pode ser a porta, que representa aquele que não quer um contato profundo e intenso com o outro. Mas ainda, para o autor, o ciberespaço é a socialização que mantém distâncias que compõem os indivíduos. Ele pode ser tanto a ponte, que liga ao outro, como a porta, que afasta e separa do mundo. Partindo da ideia, desenvolvida por Lévy, de que a própria rede, por suas caraterísticas híbridas, condensa os ambientes e limites em si mesma, há uma sensação de privado a situações que são públicas e de publicitação de relações que teoricamente seriam de cunho privado e que na internet são abrangentes e sem controle. Lévy ainda explica que a palavra “virtual” pode ser entendida ao menos por três significados diferentes: filosófico, técnico (ligado à informática) e corrente (do senso comum). Na vertente filosófica do significado da palavra, “é virtual aquilo que existe apenas em potência e não ato, (...) que tende a resolver-se em uma atualização” (Lévy, 1999: 47). Dentro desse contexto, a filosofia acredita que a virtualidade (potência) e atualidade (ato) são

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apenas dois modos diferentes de observar uma mesma realidade, uma que ocorreu e a outra que pode vir a ser, que só é possível na realidade do pensamento. De acordo com o autor, o termo virtual, quando se remete à informática, está ligado diretamente à cibercultura. O terceiro sentido dado à palavra virtual está ligado ao significado mais recorrente e conhecido popularmente, o que se opõem ao mundo real. Para o autor, “a palavra virtual é muitas vezes empregada para significar a irrealidade – enquanto a realidade pressupõe uma efetivação material, uma presença tangível” (Lévy, 199:47). Dentro desse conceito, a palavra virtual estaria mais ligada ao estar on-line (conectado à internet) e o real ao estar off-line (desconectado da internet). Dessa maneira, as pessoas “acreditariam” que poderiam “passar” de uma realidade a outra quando ligam o computador, por exemplo. No entanto, quando falamos da produção e circulação das imagens íntimas, estamos nos referindo a imagens produzidas por celulares com câmeras digitais e web câmeras. São imagens produzidas ao alcance da mão, a um clique de distância, na rotina cotidiana das pessoas. Não acontece nenhum evento ou produção para que essas imagens sejam produzidas e enviadas. A possibilidade da produção própria já faz parte do cotidiano de quem tem acesso aos meios tecnológicos de comunicação. Me questiono se essa produção de imagens passa a sensação de passagem, de transpor de um lugar para outro ambiente. Ou seja, sair de nossa realidade para entrar na outra (Lemos, 2013). Ou se este é um ato que se tornou tão cotidiano (o de tirar e enviar fotos) que por isso não é pensado como tendo grandes consequências na vida social e é praticado sem muita reflexão sobre ele. Para MacQuire, “numa era na qual a mídia se tornou móvel, ubíqua e personalizada, tecnologia e pessoa se fundiram, e essa fusão está rapidamente se naturalizando” (2011: 204). Segundo o pensamento de Dias (2012), pode-se argumentar que, apesar dessa suposta dualidade que constituiria os sentidos dentro do ciberespaço, não há ruptura. Não existe essa “passagem” de uma realidade a outra. Ou seja, não há mais a separação do virtual e real, pois os sentidos que temos da rede não foram constituídos do nada. De acordo com a autora, para a constituição dos signos do ciberespaço nos apoiamos nos sentidos do “mundo” off-line para construirmos o mundo on-line. Para a autora, o que existe no ciberespaço são outras filiações, outras relações, que se transformam na direção de ambos os espaços. Ou seja, de acordo com Dias, os atos praticados “dentro” ou “fora” do ciberespaço terão consequências sociais similares.

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Me questiono acerca das similares consequências entre atos no mundo on-line e offline. Pois, seguindo o que já foi exposto aqui por estudiosos da rede, a internet é capaz de uma abrangência sem medidas e, dessa forma, as consequências de atos feitos na rede teriam também uma abrangência maior, difícil de prever ou controlar, por conta das características da própria rede.

1.4 – As imagens íntimas, as mídias e as representações sociais da sexualidade

Segundo o autor Michel Bozon (1997), as representações cada vez mais abertas e explícitas sobre a sexualidade, tanto no cinema como nos meios de comunicação em geral (que hoje em dia incluem nossos meios eletrônicos – computadores e celulares), devem ser observadas a fim de contribuir com uma redefinição sobre os significados da sexualidade e do desejo. As representações explícitas da sexualidade estão hoje presentes nos produtos culturais de massa não classificados como pornográficos, como filmes de grandes orçamentos, os chamados blockbuster, seriados, telenovelas, videogames e outros produtos culturais. Atualmente, a mídia tem um espaço para mostrar representações da sexualidade que antes seriam consideradas pornográficas, por conta do conteúdo explícito, da nudez e do direcionamento para a fomentação do desejo na audiência, e hoje são transmitidas em produtos culturais comuns na nossa sociedade. Essas representações estão inseridas em nosso cotidiano, vêm se tornando, a cada dia, mais comuns e ilustram a nossa realidade social, como os exemplos a seguir demonstram. Segundas Intenções é um filme norte-americano produzido no ano de 1999, dirigido por Roger Kumble. A película é estrelada por Sarah Michelle Gellar, que interpreta a personagem Kathryn Merteuil, Ryan Phillippe, que interpreta Sebastian Valmont, Reese Witherspoon, como Annette Hargrove, e Selma Blair, no papel de Cecile Caldwell. Trata-se de uma adaptação moderna do clássico da literatura francesa Les Liaisons Dangereuses, de Pierre Choderlos de Laclos. Descrevo a primeira cena desse filme para contextualizar esse ato de produzir imagens sexuais sem fins lucrativos e em situação íntima e sua relação direta com o começo da facilitação do acesso à internet e a meios midiáticos digitais. Nessa cena em particular, o personagem Sebastian conversa com sua psiquiatra sobre seus “transtornos sexuais” e seu “problema” de usar os relacionamentos amorosos como uma maneira de manipular as pessoas. Ele a agradece à médica pela ajuda para fazê-lo superar essa condição.

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O rapaz levanta do consultório e vai embora, quando imediatamente após a sua saída o telefone toca. A médica atende. A filha da psiquiatra conta aos prantos que imagens sexuais dela foram colocadas em um website de imagens pornográficas por Sebastian, com quem ela estava tendo um relacionamento amoroso/sexual. A médica sai de sua sala e procura o rapaz, que já está quase na porta de saída do prédio e sabe de tudo o que está acontecendo. A psiquiatra grita de raiva chamando seu nome. Corta a cena. A circulação social de imagens íntimas produzidas em um contexto de privacidade, sem fins lucrativos e divulgadas sem a autorização de quem aparece nelas se tornou uma relação tão frequente em nossa sociedade contemporânea que vários produtos culturais, como as novelas, utilizam essa narrativa para se aproximar do público e angariar maiores níveis de audiência. Na novela Insensato Coração, exibida pela Rede Globo de televisão, no ano de 2011, é a primeira vez que aparece dramatizado em rede nacional de televisão um caso de divulgação indevida de imagens sexuais íntimas na internet. A trama dessa parte do folhetim conta a história de que um vídeo com cenas de sexo entre os personagens Rafa (Jonatas Faro) e Cecília (Giovanna Lancellotti) foi divulgado na internet, resultando numa briga entre o casal e na humilhação pública da personagem Cecília. Em entrevista, o autor da telenovela, Ricardo Linhares, disse que a ideia era abordar as consequências de quando vídeos e fotos com conteúdo sexual vazam na internet, por meio de celulares ou por aparelhos de mídias móveis 16. Para entendermos essas representações de sexualidade que a mídia nos passa, pensamos a sexualidade por meio do enfoque construtivista, que, segundo a autora Carole Vance (1995), é utilizado em relação aos estudos da sexualidade, porque afasta os modelos unidirecionais de mudança sociais para descrever os relacionamentos complexos que se estabelecem em nossa sociedade. A abordagem interdisciplinar aparece como uma das maneiras de tentar responder a vários tipos de questionamentos. E os estudos da sexualidade se beneficiam dessa abordagem. Segundo Vance (1995), todas as abordagens construtivistas concordam na necessidade de problematizar os termos do estudo da sexualidade. De acordo com a autora, atos sexuais fisicamente idênticos podem ter abordagens históricas e sociais variadas e significados diversos. Um ato sexual não traz em si mesmo nenhum significado social universal. Tudo depende de como esses atos são compreendidos e definidos em diferentes 16

http://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/entretenimento/2011/05/27/transa-de-cecilia-e-rafa-serafilmada-e-vai-parar-na-internet.htm

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culturas e períodos históricos. Isso mostra que a relação entre os atos sexuais e os significados sexuais não é fixa. É nesse campo que localizo esta pesquisa. Porque não é exatamente o ato que as imagens mostram que tem toda essa relevância, mas, sim, os significados sociais e as relações de poder que se estabelecem com a produção e a divulgação das imagens produzidas em situação de intimidade e sem fins lucrativos por terceiros, sem a aprovação da pessoa que aparece nas imagens. Quando me refiro aqui a ato sexual não me resumo somente o sentido “biologista” do termo. Quando descrevo o sexo neste trabalho, não falo aqui de uma força “natural” ou do “desejo” da reprodução e continuação da espécie humana. Muito menos fali das características biológicas que diferenciam os órgãos reprodutores masculinos e femininos. De acordo com Júlio Simões (2009), a sexualidade é muito mais do que simplesmente um corpo biológico. O que entendemos por sexo e relações sexuais aqui são aquelas relações constituídas socialmente. Para o autor, a sexualidade tem tanto a ver com nossas crenças, ideologias, relações sociais e imaginações quanto com nosso corpo físico. Todos nós fomos “apresentados” de uma maneira ou de outra às nossas fantasias e repressões sexuais. A própria forma “correta” e “normal” de se ter relações sexuais é compreendida e formatada a partir de todo um contexto social e cultural que nos cerca. Para Simões, é por meio do social que compreendemos onde, como, quando, por que e com quem devemos nos relacionar sexualmente. O que consideramos sexual e todas as fronteiras que instauramos para o que pode ou não pode ser feito em relação a comportamentos sexuais são delimitados culturalmente. E, principalmente, são fronteiras que se transformam de cultura para cultura, mesmo que algumas mantenham características parecidas com outras. As representações e práticas humanas relacionadas à sexualidade são produzidas historicamente e em contextos sociais determinados. Os estudos de sexualidade podem ser um meio prestigiado para entendermos as relações sociais, de poder, hierárquicas e, principalmente, de gênero, em nossa sociedade. Partindo do pressuposto de que a sexualidade é uma construção social, podemos caminhar ainda mais se pensarmos essa sexualidade e sua construção em relação à sua história, a sua historicidade. De acordo com Jeffrey Weeks (2000), assim como Foucault (1997), nossas definições, convenções, crenças, identidades e nossos comportamentos sexuais não são o resultado de uma simples evolução, uma biologia específica, como se tivessem sido causados

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por algum fenômeno natural inerente a toda a humanidade. Weeks argumenta que todas essas “convenções sexuais” têm sido modeladas no interior de relações definidas de poder. Segundo o autor, os nossos códigos e nossas identidades sexuais que tomamos como naturais, ou seja, como inevitáveis, inerentes à nossa fisiologia complexa como seres humanos, têm sido, na maioria das vezes, forjados nesse complexo processo de definição e de autodefinição das identidades (de gênero, de orientação sexual e de desejo sexual), tornando todo esse “aparato da sexualidade” (Foucault, 1997) como central para o modo como o poder atua em nossa sociedade contemporânea. Utilizo uma das definições de Weeks para a sexualidade como uma descrição geral para a série de crenças, comportamentos, relações e identidades socialmente construídas e historicamente modeladas que se relacionam diretamente com o que Michel Foucault denominou “o corpo e seus prazeres” (1997). Foucault (1997) afirma que toda a história ocidental, principalmente desde o século 19, é marcada por uma verdadeira explosão discursiva e um “interesse público” relacionado à área da sexualidade. A partir de processos de constituição de poder que partiram de várias instituições distintas de nossa sociedade, a incitação que leva a constituir todo um discurso sobre a sexualidade “normal” e permissível sempre parte de uma perspectiva institucional, por meio de localidades de poder como a escola, a Igreja ou a própria construção do conhecimento científico. São essas instituições de poder que detêm em si próprias as condições para a legitimação social desse discurso construído. A experiência ocidental da sexualidade não é a da repressão, mas de um constante incitamento ao falar e ao pensar sobre o sexo. Mas o essencial é a multiplicação dos discursos sobre o sexo no próprio campo do exercício do poder: incitação institucional a falar do sexo e a falar dele cada vez mais; obstinação das instâncias de poder a ouvir falar e fazê-lo falar ele próprio sob a forma da articulação explícita e do detalhe infinitamente acumulado. (Foucault, 1997: 22)

Foucault afirma que foi instaurada a obrigação de discursar sobre o sexo. Devem-se construir publicamente discursos sobre a sexualidade humana. No entanto, essa construção discursiva foi orquestrada de uma maneira que não seja ordenada somente em função de demarcar o que é lícito e ilícito (não deve ser um discurso jurídico, no sentido de determinar somente os deveres). Para o autor, é necessário falar sobre o sexo como uma situação que não deve simplesmente ser condenada ou tolerada. Quando se discursa sobre a sexualidade se deve gerir, inserir todas as sexualidades desviantes em sistemas de utilidade pública, dirigidos para o bem do Estado. No novo “saber-

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poder” da sexualidade, em seu princípio, se preocupou em regular a sexualidade das mulheres, das crianças e dos homens para o bem de todos os cidadãos, gerindo assim o biopoder, fazendo a sexualidade funcionar segundo “padrões de qualidade” designados especificamente para uma função social, que depende diretamente da época. Ou seja, para biopoder, “o sexo não se julga apenas administra-se” (1997:27). Com a criação, no século 19 e 20, desse “novo saber”, descrito como sexualidade, foi necessário que se falasse sobre os vários outros tipos de comportamentos sexuais que antes eram esquecidos, deixados de lado das preocupações dos médicos, padres e juízes, ou colocados todos sobre o grande campo das “perversões sexuais”. Uma a uma, todas essas sexualidades “aberrantes”, consideradas diferentes da sexualidade heterossexual do casamento burguês, foram inseridas no discurso sobre o sexo e em sua história. Foucault (1997) fala que os “atos sexuais” são constantemente reatualizados ou ressignificados dentro da história humana. Essa explosão discursiva é parte de um complexo processo de aumento do controle sobre os indivíduos, controle não por meio da negação ou da proibição, mas pela produção do discurso. Pela incorporação de uma grade de definições sobre as possibilidades do que se pode fazer em relação ao sexo é que se tem o poder do Estado sobre os indivíduos, atualizando dessa maneira o regime do poder-saber-prazer. É por esses discursos que modelamos as formas como construímos e conduzimos nossa corporeidade, as noções de desejo sexual e a nossa performatividade de gênero (Butler, 2013). O poder que, assim, toma a seu cargo a sexualidade, assume como um dever roçar os corpos; acaricia-os com os olhos; intensifica regiões; eletriza superfícies; dramatiza momentos conturbados. Açambarca o corpo sexual. Há, sem dúvida, aumento da eficácia e extensão do domínio sob controle, mas também sensualização do poder e benefício de prazer. (Foucault, 1997: 44/45)

Sexualidade é o nome que se dá a um dispositivo histórico. A nossa sexualidade é construída dentro da nossa sociedade e não é ordenada biologicamente. Esta é a importância de um entendimento histórico e de uma análise social sobre qualquer questão ligada à sexualidade humana. É a partir desse ponto de vista que devemos pensar e tentar compreender o objeto de pesquisa. Tentar compreender como os mecanismos de poder atuam nas nossas definições de sexualidade, desejo e gênero. As imagens íntimas são uma porta para o questionamento das relações de poder existentes na sexualidade.

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1.5 – O estudo da sexualidade e as relações de poder

A sexualidade é uma área simbólica e política ativamente disputada (Vance, 1995), em que grupos lutam para implementar suas próprias plataformas sexuais e tentar transformar os modelos e ideologias sexuais que já vigoram socialmente. Em outras palavras, a sexualidade está inserida em uma série de disputas de poder, desigualdades e modos de opressão. “O sexo é sempre político” (Rubin, 1998). Essas disputas de poder percorrem diversos campos da vida social dos indivíduos, e a sexualidade é importante porque é definidora de questões indenitárias, que perpassam as questões de gênero como outro ponto também determinante da identidade mutável e maleável do sujeito contemporâneo. As relações de gênero, assim como as de sexualidade, estão completamente inseridas nos vínculos de poder e nos sociais contemporâneos. Vance (1995), citando Rubin, enxerga a sexualidade e o gênero como fenômenos inter-relacionados, mas analiticamente distintos. Mesmo que em nossa cultura percebemos estes pontos de intersecção entre os dois como naturais, eles não o são. Esses pontos de interseção são maleáveis e bem distintos de culturas para culturas. As teorias de sexualidade não conseguem abranger com a máxima capacidade analítica todas as complexidades do gênero, e o reverso também é verdadeiro. Nossa tarefa é examinar a relação das mudanças sociais no modo como o gênero e a sexualidade se organizam e se inter-relacionam no âmbito de relações sociais mais amplas. Para Rubin (1998), o sexo é o vetor da opressão social, porque corta transversalmente todos os outros modos de desigualdade social. A autora fala isso quando disserta sobre as leis que “regularizam” os atos sexuais, afirmando que o valor coercivo da lei é o que garante a transmissão de alguns valores sexuais conservadores a toda a sociedade. A ideologia sexual incorporada nessas leis reflete as hierarquias de valor que medem a “qualidade” das relações sexuais vistas como “ideais”. Alguns atos sexuais são vistos simplesmente como abomináveis e pervertidos e quem pratica esses atos é visto automaticamente pela maioria da sociedade como pervertido. A lei traz o suporte às estruturas de poder já vigente, aos códigos de comportamento de homens e mulheres e às formas de preconceito inerentes a atos sexuais que homens e mulheres devem praticar e com quem devem praticar. Ainda segundo Rubin, o público, em geral, auxilia na condenação de quem não está em conformidade com a “legislação sexual” daquela determinada sociedade e com os “valores sexuais” que foram ensinados a todos.

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Levantamos a hipótese de que essa condenação é destacada para o gênero feminino. Por argumentos que serão exibidos ao longo deste trabalho, as mulheres sofrem mais com as pressões sociais para manter um comportamento sexual considerado aceitável do que os homens. Essa repressão mostra as relações de poder que se estabelecem por meio das relações de gênero e de sexualidade que se embrenham no tecido social. Bozon (1997), por intermédio de uma análise histórica, em concordância com Vance (1995) e Rubin (1998), acredita que as relações amorosas/relações sexuais têm pontos de interseção que mudam através das décadas e de sociedade para sociedade. Quando descreve as relações amorosas contemporâneas, Bozon indica que a sexualidade, que antes aparecia como um mero produto dentro das relações amorosas e de parentesco, se transformou na linguagem base da maioria dos relacionamentos amorosos da atualidade. Mas, segundo Bozon, essa transferência de patamar da sexualidade não transformou de maneira significativa as relações de gênero nem modificou radicalmente os lugares ocupados por homens e mulheres dentro da dinâmica social. Ainda nos dias de hoje, as experiências sexuais dos indivíduos continuam a serem estruturadas dentro dos pares homem=desejo/mulher=amor. Essas oposições que perpassam os relacionamentos entre homens e mulheres continuam a serem vistas como divisões naturais e estáveis entre os sexos, as quais seriam justificadas em termos de diferenças de natureza psicológica entre homens e mulheres. Segundo Bozon, enquanto os homens são pensados como sujeitos de desejo independente, as mulheres continuam a serem vistas como objetos a serem possuídos ou sujeitos de desejo moderado, atentas à atração que possam vir a despertar nos homens. “É às mulheres que incumbe resolver as tensões da sexualidade” (Bozon, 1997: 94).

1.6 – As imagens íntimas, as relações de poder e as questões de gênero

No dia 4 de março de 2015, a marca de absorventes íntimos Always lançou uma campanha publicitária17 em parceria com a ONG SaferNet Brasil, que busca a conscientização sobre a divulgação indevida de material íntimo na internet e em dispositivos móveis. A campanha aparece com a #JuntasContraVazamentos e convida mulheres e moças a tirar uma

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Fonte: Jornal o Globo.

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foto (selfie 18) com a logo da campanha – um 0 com um traço na transversal – escrita na mão e postar a imagem em suas redes sociais. Ao todo, foram produzidos sete vídeos publicitários que estão disponíveis na TV e na internet. A campanha tem como principal representante a apresentadora de TV e atriz Sabrina Sato. Em um primeiro momento, 24 horas antes do lançamento oficial da campanha, um vídeo em que Sabrina Sato é filmada sem sutiã, levantando da cama, foi divulgado no YouTube. Esse primeiro vídeo foi publicado na internet para simular o vazamento de imagens produzidas na intimidade e sem fins lucrativos, ao mesmo tempo em que chama a atenção para a publicidade da marca. A campanha também conta com depoimentos de duas mulheres que tiveram imagens de conteúdo sexual divulgadas em redes sociais e redes de dispositivos móveis. Uma representante da ONG SaferNet Brasil também aparece em um dos vídeos oferecendo dicas e auxílio para mulheres que passaram por essa situação. A campanha recebeu numerosas críticas em diversas redes sociais por associar o vazamento do sangue menstrual com o “vazamento” de imagens de conteúdo sexual produzidas em ambiente privado. Os críticos à campanha chamaram a atenção, também, para o fato de que o principal conselho dado pela campanha às mulheres em geral é que, para não ter imagens divulgadas, as mulheres deveriam não produzir esse tipo de conteúdo. Da maneira como é transmitida, podemos afirmar que esta é uma campanha direcionada especificamente para o público feminino – principalmente porque é produzida por uma marca de um produto direcionado para necessidades femininas, relacionadas ao ciclo menstrual. Em nenhum momento, a campanha publicitária faz qualquer tipo de referência a um sujeito masculino: ou o homem que estaria no local no momento de produção dessas imagens, ou o homem para quem essas imagens foram enviadas. Ele simplesmente é esquecido. Também não há nenhum direcionamento, por parte da campanha, a quem compartilha esse tipo de imagens nem uma fala de algum especialista relacionada ao comportamento das pessoas que recebem as imagens e as compartilham. E também não foi utilizada em nenhum momento uma chamada de algum ator do sexo masculino nos comerciais. Toda e qualquer responsabilidade sobre o vazamento de imagens de conteúdo sexual é colocada a cargo das mulheres. Em outras palavras, essa publicidade específica transmite a mensagem de que este é um problema específico das mulheres, que elas devem se proteger, que elas devem resolver. Esta é uma questão de gênero. 18

É a junção do substantivo self (do inglês myself – a própria pessoa) e o sufixo ie — ou selfy. Descreve um tipo de fotografia específica de autorretrato, normalmente tirada por um celular com câmera. Foi considerada a palavra internacional do ano de 2013 pelo Oxford English Dictionary.

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Não podemos deixar passar despercebido que estes são casos que se relacionam com situações de poder e estão inseridos dentro das expectativas de gênero e sexualidade construídas socialmente, como já foi dito anteriormente. O questionamento que é levantado aqui é por que esta é uma situação que se torna problemática somente para as mulheres? Não podemos perder de vista que se trata de relações sociais, as quais se modificam ao longo do tempo e de sociedade para sociedade. As relações de gênero não têm uma essência fixa, variam tanto dentro do tempo quanto além dele. Este trabalho se apoia nas bases dos estudos pós-modernos feministas, que se preocupam em analisar as relações de gênero por meio da ótica social (Grossi, 2004). Esse ponto é primordial se pensarmos que, desde a barriga da mãe, a partir do momento em que se descobre o sexo do bebê, a criança já começa a ser influenciada pelas características sociais definidoras do que é masculino e do que é feminino. E a nossa construção de identidade de gênero e sexualidade passa por todo esse caminho a ser percorrido (Butler, 2013). O próprio pensamento que diz respeito à questão do gênero – como uma problemática epistemológica e filosófica – é uma das principais vertentes que permeia todo o estudo das teorias feministas. O conceito de gênero foi historicamente utilizado como um termo gramatical que diferenciava as características físicas de cada tipo de corpo, masculino e feminino. No entanto, as primeiras teóricas feministas se apossaram do termo para indicar as diferenciações de caráter social que mulheres e homens vivem. Essa primeira diferenciação foi importante porque demonstrou que homens e mulheres recebem características secundárias que muito pouco são relacionadas com a biologia de cada um. De acordo com Joan Scott (1995), em um sentido mais vanguardista, o conceito de gênero seria uma maneira de se referir à organização social e a relação dual entre os sexos (masculino e feminino), utilizado para designar as relações de poder entre eles. Gênero tornase uma forma de indicar essas construções, as quais seriam os papéis sociais “adequados” para homens e mulheres dentro de um determinado contexto social. No entanto, com a introdução dos estudos pós-modernos na teoria feminista, a própria natureza da teorização começa a ser questionada, como quais seriam os métodos apropriados para explicar e/o interpretar a experiência humana. Jane Flax (1992) afirma que os discursos pós-modernos são todos “desconstrutivos”, já que procuram se distanciar ao máximo possível de valores modernistas da epistemologia, como verdade, conhecimento, poder, identidade e linguagem. Todos esses conceitos estabelecidos pelos modernistas,

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segundo a autora, somente servem de legitimação de ideais que vêm sendo, a cada dia, mais questionados por diversas áreas de estudo. Flax (1992) fala que os estudos feministas devem ser observados dentro da ótica dos estudos pós-modernistas de “desconstrução”, dos conceitos e das crenças já historicamente fincados e legitimados na sociedade ocidental. Para ela, as teorias feministas mergulham dentro dos discursos pós-modernistas e fazem eco, revelando qualquer um dos antigos conceitos problemáticos que se escondem atrás da fachada da “neutralidade universalizante”. Segundo a autora, os estudos feministas devem buscar um distanciamento crítico das crenças já existentes que legitimam a cultura ocidental contemporânea. Para ela, esses discursos refletem parte da experiência de poucas pessoas (predominantemente os cientistas, homens, brancos e ocidentais). A questão do gênero é, principalmente, uma problemática feminista. E o principal avanço, segundo Jane Flax (1992), dentro da teoria feminista, consiste em se ter problematizada a existência de relações de gênero fora da perspectiva da naturalidade, dos órgãos sexuais e do duplo padrão dos sexos biológicos, questionando dessa maneira uma das facetas mais “naturalizadas” da existência humana. Os estudos feministas se preocupam em não perceber os acontecimentos sociais entre homens e mulheres como fatos simples e naturais. As teorias feministas, assim como todas as outras, dependem de certo conjunto de experiências sociais complexas e as refletem. Por esse motivo, dentro das teorias pós-modernistas, não se consideram interações sociais como présociais ou dadas naturalmente. Flax afirma que o gênero se refere a um conjunto mutante de processos sociais historicamente variáveis e, por esse motivo, funciona tanto como uma categoria analítica quanto como processo social. Dentro desses vários contextos, ele aparece sempre como relacional. Ou seja, “as relações de gênero são processos complexos e instáveis constituídos através de partes inter-relacionadas. Homens e Mulheres” (Flax, 1992 :228).

1.7 – O gênero na construção social do feminino e do masculino

Como já foi exposto anteriormente, as relações de gênero são utilizadas para designar divisões e atribuições diferenciadas e assimétricas entre os seres humanos. Essas divisões criam dois tipos distintos e diferentes de pessoas, homens e mulheres. Flax explica que dentro da visão antropológica dos estudos modernistas, nunca se pode pertencer a ambos os

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gêneros 19 e que, por isso, homens e mulheres são categorias excludentes entre si. No entanto, a autora ressalta que as relações de gênero, na maioria das sociedades analisadas em estudos antropológicos, são dominadas por um dos aspectos inter-relacionais (o homem). Dentro da perspectiva das relações sociais, homens e mulheres são marcados subjetivamente pelas características de gênero. Embora é importante ressaltar que essas marcas são substancialmente diferentes entre os gêneros e dependem de cultura para cultura, mas são inter-relacionadas. Tendo isso em vista, as relações de gênero não são uma preocupação para os homens (Flax, 1992). Eles não se vêm nem são vistos por essa perspectiva. Os homens por si só já definem todo o ambiente e toda a história por meio do ponto das várias masculinidades, que têm em comum as situações de dominação e poder. “Numa ampla variedade de culturas e discursos, os homens costumam ser vistos como livres de relações de gênero ou como não determinados por elas” (Flax, 1992, p. 228). Podemos compreender o gênero como uma relação social que entra em todas as outras atividades e vínculos sociais e que parcialmente os constitui. Essa situação é compreendida somente por meio do exame detalhado dos significados de “masculino” e “feminino” e das consequências dessas atribuições de gênero dentro das práticas sociais concretas de nossa sociedade. “Mais e mais o ‘natural’ deixa de existir como o oposto do ‘cultural’ ou social. A natureza se torna objeto e produto de ação humana; ela perde sua existência independente” (Flax, 1992: 237). Por mais que os nossos conceitos de biologia estejam enraizados em nossas relações sociais, eles não são a causa dessas relações e, sim, refletem a estrutura da própria realidade. Para entender o gênero como uma relação social, precisamos desconstruir todos os significados pré-fabricados a diversos conceitos, principalmente biologia, sexo, gênero e natureza. Todas as relações são sociais, principalmente as de gênero. [...]Vivemos num mundo em que o gênero é uma relação social constituinte e também uma relação de dominação. Portanto, tanto o entendimento do homem quanto o da mulher de anatomia, biologia, corporificação, sexualidade e reprodução estão parcialmente enraizados em relações de gênero preexistentes, refletem-nas e devem justificá-las (ou contestá-las). (Flax, 1995: 240)

Joan Scott (1995) descreve gênero, principalmente, como uma categoria analítica, “uma categoria social imposta em um corpo sexuado” (1995: 75), e um meio para distinguir as práticas sexuais dos papéis sexuais atribuídos tanto a homens quanto a mulheres. 19

Na pós-modernidade, em alguns casos específicos (como em relação a drag queens ou travestis) já são aceitos, não sem protestos, essa “permeabilidade”, mesmo que parcial e superficial entre os gêneros (Butler, 2013).

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Entretanto, para se presumir o gênero por essa linha de raciocínio, afirma a autora, é necessário se guiar pela noção de poder de Foucault, entendido como várias constelações dispersas de relações de desigualdades discursivamente construídas em muitos campos de disputa de poderes sociais. Nós só podemos escrever a história desse processo se reconhecermos que “homem” e “mulher” são, ao mesmo tempo, categorias vazias e transbordantes. Vazias, por que não têm nenhum significado último, transcendente. Transbordantes, porque mesmo quando parecem estar fixadas, ainda contêm dentro delas definições alternativas, negadas ou suprimidas. (Scott, 1995: .93)

Scott argumenta que o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais que se baseia nas diferenças biológicas dos corpos humanos e é uma forma primária de dar significado às relações de poder, ou seja, seria o primeiro campo em que o poder é articulado. O gênero, então, seria uma maneira de decodificar e dar significado palpável às complexas conexões entre as várias formas de interação humana. 1.8 – A consolidação social dos sujeitos femininos e masculinos na cibercultura

O ciberespaço abre novas possibilidades de definição do sujeito, mas isso não quer dizer que as práticas sociais regulatórias não surtam efeito nesse espaço. O próprio conceito de gênero sofre mudanças no ciberespaço, para acompanhar os processos pós-modernos de construção de identidades dos sujeitos. Para Judith Butler (2013), o conceito de identidade de gênero é intrínseco às ficções de coerência e da legitimidade heterossexual obrigatória. Para a autora, a coerência e a continuidade da pessoa não são categorias lógicas ou analíticas da condição do sujeito, mas, ao contrário, são normas de inteligibilidade socialmente instituídas e mantidas. As próprias regras da descontinuidade e da incoerência só são concebíveis em relações às normas de coerência já existentes. Ela afirma que a “heterossexualização do desejo” requer e institui a produção de oposições discriminadas e assimétricas entre o feminino e o masculino. Em toda a construção de nossas identidades de gênero, seguimos, de uma maneira ou outra essa matriz de inteligibilidade. O gênero de Butler possui um efeito substantivo nos sujeitos, por atribuir características, e é performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras sociais dessa coerência de gênero. Utilizando o conceito da “metafísica da substância” de Nietzsche, o gênero se mostra performativo dentro desse discurso. “[...] não há identidade de gênero por

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trás das expressões do gênero; essa identidade é performativamente constituída, pelas próprias ‘expressões’ tidas como seus resultados” (2013: 48). Butler (2013) afirma que o feminismo precisaria aprender a produzir uma legitimidade narrativa para todo um conjunto de gêneros não coerentes, abrangendo também lésbicas, gays, travestis, transexuais e toda a diversidade de gêneros existentes. Dentro das novas leituras sobre gênero, percebe-se o esforço de eliminar qualquer naturalização da noção de diferença sexual. A presunção aqui é que o ‘ser’ de um gênero é um efeito, objeto de uma investigação genealógica que mapeia os parâmetros políticos de sua construção no modo da ontologia. Declarar que o gênero é construído não é afirmar sua ilusão ou artificialidade, em que se compreende que esses termos residam no interior de um binário que contrapões com opostos o ‘real’ e o ‘autêntico’... é sugerir que certas configurações culturais de gênero assumem o lugar do ‘real’ e consolidam e incrementam sua hegemonia por meio de uma autonaturalização apta e bemsucedida. (Butler, 2014: 58)

Butler (2013), dentro dessa corrente pós-estruturalista, pensa no gênero/sexo como construção cultural complexa que se materializa nos corpos como efeito de uma dinâmica de poder. Mesmo sendo um processo, uma questão de materialização e construção do ser humano como indivíduo, o sexo não se torna menos real ou menos palpável para as pessoas. A materialização das normas exige processos identificatórios, pelos quais essas “regras sociais” são assumidas ou apropriadas, e essas identificações precedem e possibilitam a formação do sujeito. Mas não são, estritamente falando, executadas pelo próprio sujeito. A identidade de gênero é performativamente construída, pelas próprias expressões tidas como seu resultado. Como consequência direta, percebemos que o sexo também é um meio discursivo/cultural. O envio de imagens de conteúdo íntimo é percebido por esta pesquisa como uma dessas práticas sociais reguladoras, pois, apesar de ser um comportamento imerso no ciberespaço, carrega consigo as noções de sexualidade e gênero já cristalizadas socialmente. O que não quer dizer, por exemplo, que essas mesmas imagens não possam ser usadas para descontruir essas práticas sociais reguladores. As relações de poder que estão presentes na recepção e decodificação dessas imagens dizem muito a respeito da produção da identidade dos sujeitos e como ela é recebida socialmente. E essas relações de poder são sentidas tanto no ciberespaço como no mundo offline, nos corpos e na vida dos sujeitos e de maneira abrangente, social.

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Miskolci, enquanto dialoga com Sherry Turkle (2011), nos fala que a internet tem se revelado como uma tecnologia para regular a vida social e sexual, exemplo empírico daquilo definido como um desejo contemporâneo de que a tecnologia seja o arquiteto de nossas intimidades. Dessa maneira, as imagens íntimas aparecem como definidoras, na rede, do que é considerado e como essa experiência erótica deve ver apresentada e vivida. Elas também aparecem como definidoras de uma masculinidade hegemônica que tem como principal característica a agressividade, que pode se expressar por meio da violência da exposição do corpo feminino ou feminilizado. De acordo com Iara Beleli, a feminilidade na internet é passiva, quando nos referimos ao que se espera das mulheres dentro das relações amorosas/sexuais na internet, em que as noções de beleza (física) e do desejo do amor romântico (Beleli, 2012) estão relacionadas com as características esperadas das mulheres no mundo on-line. Então, quando imagens íntimas de mulheres aparecem espalhadas na rede, elas são de uma sexualidade desconectada do amor romântico. O que causa a ruptura e um questionamento das relações de poder existentes. Segundo Miskolci (2011), por meio da internet, os homens podem exercitar sua masculinidade e reafirmá-la, por sites de namoro e aplicativos de encontros, ampliando o espectro de suas relações amorosas e sexuais. Complementando o pensamento acima, Eva Illouz (2012) afirma que fazer sexo dentro da lógica da “sexualidade acumulativa” ou “em série” é uma prática bastante presente na economia sexual desde meados do século 20. A autora afirma que possuir muitos parceiros sexuais sem grandes comprometimentos morais e sociais só se tornou algo possível para homens e mulheres nas sociedades de matriz ocidental após 1960. Ela chama esse fenômeno de “valorização do sex appeal”, que, segundo a autora, tem se tornado um bem simbólico valorizado no mercado dos afetos. Ao mesmo tempo, Illouz argumenta que, se essas transformações promoveram uma maior simetria de gênero, também possibilitaram a manutenção de algumas assimetrias e até mesmo seu aprofundamento em alguns casos. Illouz fala que, nas relações heterossexuais, o acesso democratizado a muitas mulheres, não sendo mais necessário ter muito dinheiro ou poder para multiplicar amantes, estreitou a relação entre sexualidade e status masculino. As novas mídias digitais aumentam essa possibilidade de acesso a um mercado em que homens heterossexuais têm um acesso

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facilitado a um número maior de mulheres. Mantendo velhos padrões em que a sexualidade masculina deve ser necessariamente exagerada (muitas parceiras e parceiros feminilizados) e exacerbada para comprovar uma masculinidade hegemônica (Welzer-Lang, 2001).

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2. CAPÍTULO – METODOLOGIA DE PESQUISA, IMAGENS ÍNTIMAS, REPRESENTAÇÕES MIDIÁTICAS E A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA REALIDADE

Cada período histórico tem suas regras relacionadas ao que se pode fazer com o corpo e a sexualidade. Depois da implementação e massificação dos meios de comunicação de massa, a imprensa aparece com uma participação significativa nesse processo de ação, tanto no surgimento de novas regras sobre o que é ou não permitido em relação à sexualidade, como também no rompimento dessas regras. Com a massificação da internet, esses processos de retroalimentação de categorias sociais pelas mídias em geral se tornaram mais velozes, abrangentes e complexos. O exemplo a seguir ilustra como a mídia participa ativamente desses processos. “Quando você ‘manda um nudes’ 20 para alguém, e essa pessoa mostra para outra pessoa, isso é uma versão de estupro né? Não foi consentido 21”. Esta é a frase que a youtuber22 Jout Jout usa para descrever o que foi designado como sexting23 por meio das redes sociais. Essa chamada faz parte de uma campanha sobre o uso seguro da internet pensada pela UNICEF Brasil. Com a utilização da #InternetSemVacilo, a ação publicitária lançada no YouTube tenta fazer um alerta aos usuários sobre os comportamentos de risco na internet. Jout Jout foi chamada, juntamente da também youtuber Pyong Lee, para promoverem a campanha, por conta de sua influência junto ao público-alvo, que normalmente são os adolescentes, e também pela maneira pela qual as duas abordam assuntos considerados polêmicos, sempre com bom humor e leveza. A campanha publicitária, com uma linguagem mais coloquial e acessível, típica dos conteúdos produzidos especificamente para o YouTube, aborda diversos temas relacionados à 20

Uma forma verbal pela qual, popularmente, se faz referência à troca de imagens íntimas em ferramentas de comunicação instantânea, como WhatsApp ou Messenger, ou outras redes, como o Snapchat, Facebook, entre outros.

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Fala retirada da ação publicitária da UNICEF Brasil, sobre o uso seguro da internet para jovens e adolescentes.

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Termo utilizado para se referir a quem trabalha produzindo conteúdos para a plataforma do YouTube. Os youtubers mais famosos podem chegar a ter, no Brasil, mais de 2 milhões de inscritos que recebem conteúdo.

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Como foi notado durante a pesquisa, os diferentes termos para se referir à divulgação de imagens com conteúdo íntimo têm algumas particularidades específicas. O sexting, nessa perspectiva, normalmente se refere a casos envolvendo crianças, adolescentes e jovens. As especificidades de cada termo, percebidas nesta pesquisa, serão detalhadas no decorrer deste trabalho.

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segurança, à privacidade, ao preconceito expresso nas redes sociais, entre outros assuntos. A campanha foi lançada em julho de 2015. Em uma das esquetes, Pyong Lee fala para pessoas em uma praça e oferece a elas a possibilidade de verem fotos da sua suposta ex-namorada nua e também um vídeo em que eles fazem sexo. Uma atitude comum nas mídias sociais, mas não tão bem recebida no mundo offline, pede para que os mais jovens e adolescentes não compartilharem fotos ou vídeos de conteúdo íntimo, que eles eventualmente venham a receber. A campanha faz um apelo ao que representa compartilhar esse tipo de conteúdo, que é descrito como um “estupro”, por violar a intimidade e a privacidade de quem aparece nas imagens. Conseguimos perceber nesse alerta publicitário que as relações de poder e de gênero estão ligadas a esse tipo de divulgação de conteúdo. A campanha também liberou uma cartilha on-line para ensinar aos jovens e adolescentes como tentar resguardar a privacidade nas redes sociais em geral. Entre as dicas listadas, estão: como definir as configurações de segurança nas redes sociais; refletir sobre qual tipo de conteúdo os adolescentes estão compartilhando; e não divulgar conteúdos como endereço residencial, número de telefone particular e locais comuns aos adolescentes, como endereço do colégio, cursos de línguas, casas de amigos, entre outros24. A produção e a circulação de conteúdos íntimos são uma atitude comum para quem detêm os meios e dos aparelhos com essa tecnologia nos dias atuais, como o exemplo acima demonstra, e também em todas as notícias que foram levantadas durante a pesquisa. A campanha publicitária ainda mostra o quanto a sexualidade é transformada pelas instituições detentoras de poder, como uma ação com uma força socialmente destrutiva (Rubin, 1998), por conta das repercussões que essas imagens podem vir a causar na vida de quem teve o rosto e a intimidade expostos. Mas, além disso, esse exemplo demonstra como o avanço das tecnologias de comunicação modificam todas as formas de nos relacionarmos, tanto com as mídias, como com as pessoas. A internet aparece com um papel fundamental nessa nova forma de comunicação e interação social e suas posteriores consequências. A circulação de conteúdos íntimos publicamente vem sendo modificada ao longo do início do último milênio, com influência direta dos produtores desse tipo de conteúdo (nós, os

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Fazemos um apontamento para a cartilha aqui, porque ela se comunica especificamente com quem tem acesso diário aos meios de comunicação, pessoas com uma classe social mais elevada. No Brasil, um país com tantas desigualdades sociais, uma parcela considerável da população fica de fora desses “alertas”, porque não há conteúdos pensados para a realidade social dela.

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usuários) e da mídia tradicional, que tenta se adaptar para a tradução deste acontecimento social a todos. Passamos a perceber, a partir da massificação da internet, um borramento dos conceitos de privado e público, como já foi dito anteriormente no capítulo 1. Para Lemos, a perda de privacidade é um fato no ciberespaço. E ainda segundo o autor, essa perda se dá em dois contextos distintos: a ausência de privacidade para o próprio sistema, para as redes sociais e sites em que disponibilizamos nossos dados por livre e espontânea vontade; e a ausência de privacidade em razão da grande exposição à qual nos submetemos. “O espaço privado se imbrica no espaço público e vice-versa, numa verdadeira publicização do privado” (Lemos, 2010: 120). MacQuire afirma que “o desenvolvimento de novas gerações de mídias móveis, as quais são portadas no curso da vida diária, intensificou ainda mais o desafio de estabelecer os limites entre espaço público e privado” (2011: 204). Essa “grande exposição” é o fato de colocarmos na rede nosso endereço residencial, nossos horários cotidianos, onde estamos almoçando ou jantando, fotografias de nossos amigos e familiares, de maneira contínua na internet. Abrindo espaço para que qualquer pessoa do outro lado do computador ou do celular, a qual podemos ou não conhecer, possa nos “seguir” em todas as nossas redes sociais e na nossa vida real também. A internet tem em si mesma a característica de conectar todas as pessoas, de formar redes.

Para Manoel Castells, “a internet é uma tecnologia particularmente maleável,

suscetível a ser modificada profundamente pela prática social e de nutrir uma vasta gama de efeitos sociais” (p.13). Castells, quando fala da sociedade em rede, quer dizer sobre a criação desses espaços de interpelação entre os cidadãos do mundo. Para ele, as comunicações em rede são umas das forças impulsionadoras da sociedade em rede. O autor vê a internet como “o fundamento tecnológico da forma de organização [social] apropriada à era da informação: a rede” (2002: 9). Para MacQuire, o próprio funcionamento e entendimento das relações sociais, hoje, se baseia em como nos relacionamos uns com os outros por meio da utilização das mídias sociais digitais. O autor afirma que, ainda que a questão sobre como o mundo é construído na e por intermédio da mídia mantenha-se criticamente importante, é igualmente crítico aceitar plenamente que a mídia não pode mais ser separada do social nem, dessa forma, do político, econômico e cultural. Aceitar o papel da mídia na produção da experiência contemporânea

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demanda, na opinião do autor, uma adoção crítica do insight de McLuhan pelos pesquisadores, de que a mídia constitui um ambiente social.

2.1 – Metodologia de pesquisa: a internet como aspecto central à prática do “manda nudes” na contemporaneidade

Esta pesquisa se interessa pela produção de realidades sociais pela internet, mais principalmente pelo jornalismo tradicional, e como esses dois termos interagem socialmente, participam da criação de subjetividades e são objeto de disputas de poder. Dessa forma, definimos qual é a realidade do acesso à rede no Brasil. De acordo com a última pesquisa do IBGE, entre 2013 e 2014, o Brasil teve 9,8 milhões de novos internautas, indicando um crescimento de 11,4%, em apenas um ano, no número de pessoas com mais de 10 anos que tem acesso à rede no país. O IBGE também afirma que proporção de pessoas com acesso à internet, entre a população geral, passou de 49,4%, em 2013, para 54,4%, em 2014. Os dados também afirmam que a maioria das pessoas que possuem acesso facilitado à internet são jovens de idade entre 10 e 29 anos, sendo 51%. Outro ponto bastante significativo para esta pesquisa é que as mulheres são maioria, de acordo com o IBGE, de quem possui acesso à rede, 52,2% dos números25. Miskolci (2011) traz dados de que, no Brasil, onde as classes médias (incluindo a classe C) chegam a mais de 100 milhões de pessoas, 80 milhões de pessoas têm acesso facilitado à internet. Acreditamos que a popularização das tecnologias de informação e a massificação do acesso à internet e dos aparelhos tecnológicos que possibilitam essa comunicação, como os smartphones e celulares com câmera, sejam fatores que levaram ao crescimento do fenômeno de produção e compartilhamento de imagens íntimas. E também a popularização dos relatos e das notícias do vazamento dessas imagens. Segundo Suely Fragoso, Raquel Recuero e Adriana Amaral (2011), a internet constitui uma representação de nossas práticas sociais e demanda novas formas de observação. Segundo as autoras, nas ciências sociais, a interação social ampla é muito difícil de observar, e a internet aparece como um “possibilitador” que permite a visualização das interações sociais como jamais imaginamos.

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Dados estatísticos retirados da matéria do G1: http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2015/11/brasil-tem-98milhoes-de-novos-internautas-entre-2013-e-2014-diz-ibge.html.

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As mesmas estudiosas, citando Costigan (1999), afirmam que as narrativas científicas sobre a internet são interpretações personalizadas sobre a história da internet, de acordo com as visões individuais de cada pesquisador. O que implica na relação com as próprias trajetórias e identidades de pesquisa e no espírito da época no qual estão inseridas quando escritas e consumidas pelo público, uma vez que a sociedade que pesquisa e escreve sobre a internet é a mesma que a utiliza e consome os artigos. Ainda falando sobre esse espírito da época, Miskolci (2011) afirma que o pesquisador interessado em explorar o estudo de mídias digitais precisa estar atento ao fato de que elas potencializam e transformam meios anteriores de comunicação, os quais, por sua vez, já foram inovadores e causaram grandes mudanças sociais e subjetivas. O autor também descreve que a invenção de uma nova forma de comunicação nem sempre equivale à data de seu impacto social e histórico. Por esse motivo, ele expõe que devemos priorizar a data de sua disseminação e real massificação para a população pesquisada. Esse “espírito da época” aparece de maneira muito presente em nesta pesquisa, pois esta é uma discussão extremamente contemporânea que é traduzida, ressignificada e transmitida em diversos meios, dos quais o mais fértil é a internet, mas não somente o único. A própria criação e consolidação do “meme”26 “manda nudes”, no ano de 2015, demonstra aos pesquisadores que esta é uma ação que está presente e é comum na atualidade. Tumblr, sites humorísticos, de atualidades, blogs diversos, vídeos no YouTube, entre outros conteúdos on-line, utilizam o termo para angariar cliques e chamar a atenção da audiência para o conteúdo deles. “Manda nudes” se tornou uma gíria usada no mundo off-line também, por chamar a atenção para uma prática que envolve nudez, sexualidade e intimidade. O foco deste trabalho é compreender como a internet se mescla com os interesses e conflitos sociais, com outras mídias e com as próprias pessoas. Em linguagem puramente metodológica, o deslocamento da pesquisa das mídias para seus usos vinculou essas tecnologias comunicacionais aos interesses sociais e subjetivos conferindo ao objeto de pesquisa contornos mais precisos e, portanto, mais promissores para a investigação alcançar resultados substantivos. Empiricamente, passei do interesse inicial pela internet como foco da pesquisa para a forma como as pessoas a usam, ou melhor, para o desejo que rege seu uso. Um desejo que precisa ser reconstituído em termos históricos, sociais e subjetivos, afinal ele expressa uma relação entre o que se quer com os valores e as condições tecnológicas atualmente existentes. (Miskolci, 2011: 17-18)

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O termo “meme” é usado para descrever qualquer conteúdo que se espalha de maneira viralizada pela internet. O termo é uma referência ao conceito de “memes”, que se refere a uma teoria ampla de informações culturais criada por Richard Dawkins, em 1976, no seu livro The Selfish Gene.

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Quando pensamos sobre a circulação de imagens íntimas na rede, nos deparamos com muitas possibilidades em relação à escolha da metodologia utilizada, por conta da própria carência de pesquisas produzidas nessa área. As fotos que “caíram na net” têm como uma das características principais o fato de serem imagens que circulam de forma indiscriminada na rede. A própria viralização dessas imagens é um ponto metodológico problemático, porque como mapear e saber com precisão o alcance de um vídeo ou imagem na internet? E o acompanhamento dessa determinada imagem responderia às questões levantadas? Por acreditar que a resposta a essas duas questões se dá de forma negativa, decidi propor um caminho diferente. Também destaco as questões relacionadas à ética de acompanhar ou utilizar qualquer uma dessas imagens íntimas, mesmo que com objetivos acadêmicos. São imagens de pessoas que não autorizaram a divulgação e que, muitas vezes, não a desejam. Não podemos esquecer que o trabalho acadêmico também se apresenta como uma documentação histórica, principalmente em um terreno como a internet, no qual as transformações são tão velozes. Para Miskolci (2011), os estudos sobre usos sociais das mídias digitais exigem dos pesquisadores um esforço interdisciplinar na busca por fontes históricas e teóricas, assim como também um esforço específico na reflexão metodológica. “[...] Trata-se de um campo multifacetado cuja aproximação envolve diversas áreas de pesquisa assim como uma metodologia que acione técnicas distintas e complementares de investigação” (2011: 14). Dessa forma, utilizamos o que George E. Marcus (2001) chama de etnográfica multilocal, uma etnografia móvel que toma trajetórias inesperadas ao seguir formações culturais por meio e dentro dos múltiplos lugares de atividade que desestabilizam a distinção. Do mesmo modo que essa modalidade investiga e constrói etnograficamente os modos de vida de vários sujeitos situados, também elabora etnograficamente aspectos do sistema em si mesmos, por meio das conexões e parcerias que aparecem sugeridas nas localidades (2001: 111). Essa etnografia se torna útil em um universo cibernético de proporções tão grandes. Porque, para esta pesquisa, a internet é o local de múltiplos locais e múltiplas atividades culturais, como são os meios de comunicação e a vida off-line das pessoas. Segundo Marcus, a participação desse tipo de pesquisa etnográfica em áreas interdisciplinares, como os estudos dos meios de comunicação, os estudos feministas, os estudos de ciência e tecnologia e algumas linhas dos estudos culturais, faz muito sentido,

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principalmente porque os estudos multidisciplinares muito raramente têm um objeto de estudo delimitado, e por conta desse método seguir literalmente as conexões, as parcerias e relações atribuíveis se encontra no centro do mesmo projeto de investigação. Segundo Marcus, construir a modalidade de investigação multilocal é especialmente potente para unir locais de produção cultural que não haviam sido conectados de maneira evidente e, portanto, para criar visões empiricamente argumentadas de panoramas sociais. Como pesquisadora desta temática desde a época da graduação, estive imersa nesse problema por alguns anos, e a própria descoberta e escolha das palavras-chave dos termos usados durante o levantamento foi produzida por meio de observações tanto nos meios midiáticos tradicionais, como telejornais, revistas e jornais impressos, como nos meios midiáticos digitais, como as mídias sociais, tumblrs, blogs, “memes”, e até mesmo minhas interações pessoais. Como muitas pessoas de meu círculo social sabem sobre esse meu tema de pesquisa pouco comum, por muitas vezes recebi de amigos, colegas, familiares e conhecidos material, como imagens e depoimentos, que não se encaixa necessariamente no recorte proposto neste trabalho, mas que auxiliou a contextualizar esses acontecimentos como fenômenos sociais e, mais importante ainda, refletir sobre a constituição destes fenômenos e suas relações de poder. Destaco aqui que as análises sobre a imprensa em particular e a mídia em geral contempla igualmente as variadas contribuições dos estudos sobre as sexualidades e as relações de gênero. Segundo Marcus (2001), o tipo de construção do espaço multilocal de investigação implica em acompanhar a circulação de objetos de estudo por meio de diferentes contextos, que podem ser bens, presentes, dinheiro, obras de arte e propriedade intelectual, sendo este último o mais comum dos estudos etnográficos, como Bruno Latour e Donna Haraway fazem em seus trabalhos. Nesse caso, as notícias são propriedades intelectuais e que estão presentes no processo de construção e subjetivação da realidade (Meditsch, 1992. Berger & Luckmann, 2003) Foram escolhidos dois portais de notícia brasileiros de circulação nacional para se fazer o levantamento de notícias que fazem referência direta à circulação de imagens íntimas. Os portais escolhidos foram a Folha de São Paulo, referente ao Grupo Folha, e o portal de notícias G1, do Grupo Globo de telecomunicações. Foram feitos um mapeamento e um levantamento referente a um período de 10 anos das notícias divulgadas sobre o tema pesquisado, e posteriormente, uma análise desse material utilizando bibliografias com elementos da comunicação, da semiótica e da antropologia, interessados na compreensão dos

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modos de como as notícias descrevem essa realidade social específica (Magnani, 2002; Marcus, 2001). Pois bem, esse tipo de etnografia mapeia um novo objeto de estudo no qual diversas narrativas prévias que situam os objetos, como as de resistência e as de acomodação, se vêm qualificadas ao expandir o que está etnograficamente “na paisagem” da investigação, no tempo em que se desenrola no campo e, eventualmente, se escreve 27. (Marcus, 2001: 115)

Neste trabalho específico, não serão analisadas as notícias levantadas por meio da técnica da análise do discurso. Interessei-me, principalmente, pela circulação social dessas imagens e pelos recortes utilizados para a construção de uma realidade social específica que utiliza vários termos para significar um mesmo fenômeno. Por intermédio do exame das notícias levantadas, é percebido um recorte social determinado sobre a circulação desse tipo de imagem, mesmo que esse recorte já venha mediado pelo olhar dos meios e dos jornalistas, o que também nos levanta uma outra problemática. As notícias neste trabalho são a matéria-prima, em que buscamos as referências para tentar compreender esse fenômeno social. O trabalho teve como foco o levantamento de todo o material documental e jornalístico, mas não somente. Partindo da definição apresentada por Fragoso, Recuero & Amaral, citando Hine (2000), a internet é vista neste trabalho como artefato cultural. Essa linha de estudos observa a inserção da tecnologia em nossa vida cotidiana e levanta a percepção da rede como um elemento cultural a mais em nossa sociedade (elemento cultural este que traz muitas transformações). A internet não é vista como um objeto único, mas, sim, “multifacetado e passível de apropriações” (2011: 42). Como já foi dito, a pesquisa se interessa pela internet como meio que os sujeitos utilizam para a construção de sentidos nos usos sociais dessa tecnologia. As experiências virtuais criam novos sentidos para o afeto, para o corpo, para a relação com o outro que ultrapassa o off-line. As relações virtuais se tornam cada vez mais reais, e as relações reais se tornam cada vez mais virtuais. E, por possibilitar simbioses de um mundo a ser vivido, com características próprias e diferenciadas, a “constituição do sujeito no ciberespaço não pode ser pensada apenas sobre os mesmos paradigmas do mundo físico, é preciso compreender os seus modos de subjetivação no espaço virtual. (Dias, 2012: 199)

A internet, nesta pesquisa, aparece tanto como o espaço onde esse evento social acontece e se manifesta, onde a produção, a troca e a viralização das imagens ocorrem, e 27

Tradução minha.

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como o espaço onde o levantamento das matérias e dos termos relacionados foi realizado. A internet é utilizada tanto como o local onde foi realizada a pesquisa, como também o instrumento de pesquisa (Fragoso, Recuero & Amaral, 2011). De acordo com Cristiane Pereira Dias (2012), o ciberespaço produz várias transformações no modo de constituição do sujeito no mundo físico, no seu ser social, familiar, amoroso e, acrescento eu, de gênero e sexual. A constituição do ciberespaço traz uma outra noção de espaço-tempo, pela qual os sujeitos se relacionam e se constituem. As grandes modificações do ciberespaço, de acordo com Dias, produzem um rompimento em relação ao que é preestabelecido, na medida em que a produção de novos instrumentos, de novas técnicas, produz uma nova linguagem e uma nova forma de comunicação. A internet, nesse sentido, é uma reorganização dos sujeitos nos espaços de sociabilidade (que, agora, são a internet e o mundo off-line, muitas vezes existindo ao mesmo tempo). Portanto, ela não escapa às formas de controle da sociedade, porque o sujeito ainda está nesse espaço de convivência. Para Dias, o que muda são os dispositivos que são utilizados para manter o poder e não o próprio poder em sua forma mais clássica (Foucault, 2014). Os espaços de convivência social podem ser novos, mas as relações de poder atuantes não. Esses mecanismos de poder são coercivos, fazem parte da produção da subjetividade do sujeito (Foucault, 2014) e, por isso, devem ser levados em conta no estudo. A partir da internet, com os dispositivos de transferência de arquivos, correio eletrônico, fóruns de discussão e, principalmente, com a world wide web, todos os setores da sociedade sofreram modificações com a introdução e a massificação dessa nova ferramenta cultural midiática. Desde o governo dos Estados nacionais às organizações criminosas internacionais, passando pelo cidadão de classe média mundial. A possibilidade de participação no universo digital afeta a relação humana e a comunicação, perpassando os aspectos antropológicos, sociais e mesmo filosóficos. Esta é uma das características que faz tão importante o estudo das relações sociais nesse novo meio comunicacional. Atualmente, essas práticas começaram a ser documentadas e se tornaram um fenômeno social relevante (por isso são noticiadas, transformadas em fatos jornalísticos) o que despertou a atenção da mídia e o fenômeno ganhou várias nomenclaturas, como sexting, “vingança pornô”, revenge porn, “vingança pornô”, “exposição sexual internet”, “vídeos íntimos” e “imagens íntimas”, “caiu na rede”, “caiu na net”, “manda nudes”, entre outros termos muitos utilizados.

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Dias (2012) afirma que as diferentes compreensões sobre o ciberespaço produzem mudanças significativas na maneira de “habitar” e “circular” por esse espaço. Ela afirma que novos rituais, novas formas de relação, de sociabilidade e exercício de poder são criados em função de uma nova concepção de mundo que se modifica com a utilização em massa da internet. Acreditamos que, antes de serem novas formas e concepções que são criadas, a internet reatualiza as relações de sociabilidade e outras relações que já existiam no mundo offline. Não há como saber se as pessoas produziam imagens íntimas e já as divulgavam antes da ampliação da internet, mas pode-se dizer que a difusão sem precedentes desse tipo de conteúdo é um fenômeno recente, que os usos das tecnologias ajudaram a deixar a produção e o acesso a esse tipo de material mais fácil e que esse fenômeno específico passou a ser classificado pela mídia tradicional, que se esforça em compreender e traduzir essa realidade.

2.2 – Aspectos metodológicos: a mídia tradicional e a consolidação dos termos referentes à divulgação não consentida de imagens íntimas

Por meio dos dois portais de notícia, Folha de São Paulo e G1, fiz um levantamento de como a mídia tradicional classifica de diversas formas a produção e o compartilhamento de imagens íntimas. Por mídia tradicional entendemos as mídias que eram propagadas pelo meio analógico antes da massificação da internet. São elas a televisão, o jornal, a rádio, entre outros. No entanto, neste trabalho, também classifico como mídia tradicional os sites de notícia, por manterem uma série de características das mídias analógicas associada à rede. Esta foi uma alternativa metodológica encontrada que visa perceber um certo recorte da realidade social que pode ser analisado, mesmo que parcialmente, por intermédio do que é escolhido como importante para ser noticiado. Ou seja, medido por meio dos valores de noticiabilidade: veracidade, atualidade, abrangência, profundidade e interesse público (Meditsch, 1992, Pontes e Silva, 2009) de determinado meio. Foi realizado um levantamento com o objetivo de localizar as primeiras notícias que faziam referência à divulgação não consentida de imagens íntimas, produzidas sem fins lucrativos em um contexto de intimidade, até o último termo citado no ano de 2014. O recorte temporal da pesquisa, de 10 anos, leva como referência esses primeiros relatos jornalísticos encontrados durante o levantamento.

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Isso não significa, de maneira alguma, que antes dos anos aqui destacados não foram realizadas reportagens ou notícias com essa temática, ou mesmo que esse tipo de comportamento já não era praticado e divulgado por meio das mídias mais “populares” de cada época. Este levantamento específico feito dessa maneira nos mostra que, a partir de meados da primeira década do novo século, a mídia tradicional começou a relatar e demonstrar interesse em noticiar esse tipo de fato e que, ao longo dos anos, esses relatos foram se tornando mais constantes e abrangentes. A partir do ano de 2005 e 2007 respectivamente, nos portais de notícia Folha de São Paulo e G1, encontramos os primeiros relatos sobre a divulgação não consentida de imagens íntimas. A pesquisa também foi realizada no ano de 2004 em ambos os sites, mas não conseguimos localizar matérias que faziam referência ao assunto. Dessa forma, por meio de um levantamento que abarca ao todo 10 anos, feito desde o ano de 2005 até o ano de 2014, foram reunidas 395 notícias em ambos os portais pesquisados. A intenção desse estudo não é fazer um comparativo entre os dois jornais, como por exemplo o modo da produção das notícias ou da escolha do que noticiar. Mas, sim, é um estudo analítico, de como realidades sociais são constituídas por meio da produção das notícias. Um dos motivos da escolha dos portais de notícia foi o fato de eles serem de grande circulação nacional e que, apesar desse fato, tentam de alguma maneira promover uma cobertura mais regionalizada, tanto da produção como da divulgação da notícia, principalmente o G1, que possui editorias em várias capitais brasileiras. A Folha de São Paulo contrata jornalistas freelancers para coberturas pontuais de assuntos considerados relevantes pela editoria central. O trabalho não vai comparar como as notícias foram escritas, o estilo ou a qualidade técnica dos textos, mas esses relatos coletados serão usados para uma análise da produção de um recorte específico dessa realidade social pelo discurso jornalístico. O jornalismo e o trabalho do jornalista são importantes porque se tornam canais pelos quais o processo de construção e consolidação de um determinado recorte de uma realidade social se forma e se realimenta. De acordo com Berger e Luckmann (2003), mulheres e homens são seres sociais que contribuem para a construção do mundo a sua volta. E por isso, todas as atividades humanas influenciam na construção desse mundo. O que é considerado real é muito relativo e refere-se a questões e contextos sociais bastante específicos e diferentes. É importante perceber que a realidade social é uma construção e não deve ser dada como natural. A realidade é, em grande

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parte, um produto humano, pois foi tecida por toda a humanidade ao longo da história. O jornalismo, nesse processo de construção da realidade, é ele mesmo uma prática humana e social, que resulta de processos diversos de institucionalização e que a história mostra sua dinamicidade, mudanças e complexificações (Pontes e Silva, 2009). Segundo Berger e Luckmann (2003), o que consideramos como realidade seria uma qualidade permanente a fenômenos que reconhecemos serem independentes de nossa vontade, nós não podemos desejar que existam, eles estão lá e acontecem. No entanto, existe outro aspecto dessa realidade que tem relação direta com a relatividade social, ou seja, com o nosso trabalho de modificação e significação da realidade à nossa volta. Nossas ideias e pensamentos são influenciados por uma realidade subjacente que é diferente do pensamento, mas o nosso pensamento também age em cima dessa realidade e coloca vários significados sobre ela (p. 54). Para os autores não existe pensamento humano que seja imune às influências ideologizantes de seu contexto social. A nossa realidade empírica, do senso comum, da vida cotidiana é dotada subjetivamente à medida que todos nós construímos um mundo coerente à nossa volta. Dessa maneira, todos nós somos capazes de acessar coletivamente significados que são fundamentais na vida diária. “A vida cotidiana apresenta-se como uma realidade interpretada pelos homens e subjetivamente dotada de sentido para eles na medida em que forma um mundo coerente” (2003: 35). Os portais de notícia, nesse contexto, aparecem como um local onde nós conseguimos coletar informações acerca dessa construção da realidade empírica à nossa volta. Everardo Rocha (2000), quando disserta sobre a relação do consumo com a comunicação de massa, afirma que na nossa cultura contemporânea a publicidade, o marketing, o jornalismo e a mídia, entre outros fatores, podem nos fornecer a chave tradutora de toda a produção de uma realidade social (no caso específico do trabalho do autor, o consumo). O simbólico, representado pelos meios de comunicação de massa, é que organiza o comportamento. Essa organização se realiza primeiramente na mídia, para que todos nós possamos ter acesso coletivamente a vários tipos de significados. Ao tornar público o significado atribuído ao mundo da produção, disponibilizando um enquadramento cultural e simbólico que o sustenta, esse sistema realiza a circulação de valores e a socialização, reafirmando dessa maneira que a cultura é pública (Geertz, 2008).

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Nesta pesquisa, vemos a mídia em geral como uma instância específica da cultura, designada para tecer uma teia de significados (Geertz, 2008). Nesse sentido, as notícias são os produtos que nos informam sobre essas teias de significados. A mídia on-line também apresenta a característica dos hiperlinks, ferramentas muito utilizadas pelos usuários durante a navegação na rede. Por meio da notícia, o usuário pode encontrar um outro número de informações ligadas àquele fato, de maneira ordenada ou não (Lévy, 1997). Ele tem o acesso, pela notícia, a vídeos, imagens, músicas, infográficos interativos e outras notícias do mesmo fato, no mesmo site ou em outros. As características do hiperlink nos mostram as próprias características apropriadoras, performáticas e participativas da internet da rede (Lemos, 2013), tanto na divulgação das imagens, quanto na propagação das informações jornalísticas, sendo elas usadas de diferentes formas, por diferentes pessoas, com diversos objetivos. Os portais de notícia foram escolhidos como uma tentativa de facilitar a reunião do maior número possível de material que oferece um ponto de vista sobre essa realidade social pesquisada. O mesmo trabalho poderia ter sido feito por meio de jornais impressos, mas a dificuldade em ser resgatadas as edições mais antigas desse tipo de mídia foi levada em conta também durante o planejamento da pesquisa. Muitas vezes, para se acessar esse tipo de mídia física é necessário estar na cidade cede do jornal e obter sua autorização para pesquisa em acervo, o que pode ou não ser concedido. Mesmo em uma era completamente conectada, muitos jornais ainda não disponibilizaram o acervo da mídia física na internet, o que, para este estudo, seria praticamente o mesmo que realizar a pesquisa em sites on-line de notícia. Além da maior dificuldade de localizar os termos de busca nas edições impressas. Pela análise das notícias dos portais, também me distanciei um pouco do dilema ético que é pesquisar esse tipo de imagem. Como elas foram feitas em contexto de intimidade e privacidade, a utilização direta dessas imagens poderia ferir o direito à privacidade das mulheres e alguns poucos homens que já tiveram a intimidade exposta na rede. Este é um questionamento que aparece na análise do material, pois, ao mesmo tempo em que os jornalistas buscam preservar intimidade e a privacidade da fonte, é percebido que algumas pessoas têm mais direito à privacidade que outras, o que também se configura pertinente nas situações sociais de poder. A internet, como alguns estudos já indicam, traz uma crise ao jornalismo tradicional. A maior participação do público, tanto na produção, quanto na divulgação de informações,

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modifica a forma da própria produção do jornalismo. Essa crise no jornalismo tradicional28 perde leitores a formatos menos “oficiais” de conseguir acesso ás notícias, como as redes sociais, e as informações chegam ao público de forma muito mais esparsa. Mas o jornalismo ainda é uma das fontes de informação das pessoas. O jornalismo tradicional, principalmente na internet, se adapta para transmitir as notícias. Os sites de notícia já recebem fotos, vídeos e fatos diretamente dos leitores, que, com a rede, conseguem um canal mais direto de comunicação com a emissora. O jornalismo tradicional se utiliza da rede para a difusão de conteúdos massivos. É esse crédito de confiança no jornalismo, dado por toda uma sociedade, que é utilizado por essa própria sociedade para a produção e a construção de uma realidade que é concebida nos próprios vínculos sociais e realimentada pela mídia. Eduardo Meditsch (1992) nos fala que o jornalismo é uma forma de conhecimento, um modo de representações de diferentes realidades. Pelas notícias, tanto de jornais impressos, como de jornais on-line, nós não temos condições de fazer qualquer tipo de medição quantitativa em relação à circulação das imagens. Não posso fazer parâmetros de quantas mulheres no Brasil já tiveram imagens íntimas expostas ou quantas desse tipo circulam na internet brasileira. Mas posso compreender esse fato social recente, por meio de uma análise qualitativa das matérias publicadas sobre o tema, fundamentada em uma etnografia do discurso jornalístico e da mídia. Devo perceber o recorte da escolha das notícias de forma crítica também. Não alimento a ilusão de que só os fatos que são relatados e que aparecem descritos nas notícias seriam referentes a todos os casos, que, por conta de toda a observação de um meio social, acredito que, provavelmente, são bem mais amplos e ricos do que o que aparece retratado nas matérias. Jorge Leite Jr., quando fala da pornografia, nos indica que, muitas vezes, ela se utiliza do “grotesco” e do “bizarro” para atrair público. Como indústria cultural, alguns produtos pornográficos se especializam em espetacularizar uma vivência sexual que choca, impressiona e muitas vezes incomoda, lidando direta e explicitamente com os limites sociais do bom gosto e do ultrajante (2009; 510). Meditsch (1992) afirma que o jornalismo não se preocupa em informar o que é mais importante para o menos importante, mas, sim, que ele parte do singular, do que é característico, ímpar, para uma situação mais geral. Dessa forma, o 28

Não irei, neste trabalho, entrar na discussão específica de como a internet modificou o jornalismo (e as mídias em geral) e quais são os impactos dessas mudanças na sociedade. Esta é uma discussão própria e, para a finalidade deste trabalho, será pensado o jornalismo já na era digital, tentado se adaptar a todas essas mudanças.

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que é considerado sexual pode ser tirado como ponto singular, como exótico ou diferente, como, por exemplo, usar a prática do sexo anal para chamar a atenção para uma notícia. As imagens íntimas, como o próprio nome já indica, saem do privado para o público, e o jornalismo se utiliza desses fatos com o mesmo propósito. O fato de haver troca das imagens íntimas não é, necessariamente, um critério de noticiabilidade por só definidor. Como pude comprovar com o levantamento das notícias, outros valores notícia aparecem acompanhando a divulgação das imagens íntimas, como, por exemplo, se essas imagens viraram “memes”, se são pessoas consideradas famosas que aparecem nelas, se são jovens e adolescentes que praticaram essas ações e se as pessoas que aparecem nas imagens são de faixas etárias distantes. Por meio da pesquisa das matérias nos portais de notícias, o objetivo principal deste trabalho é buscar compreender esses filtros e como eles funcionam moldando a nossa realidade.

2.3 – Escolha dos termos: sexting, revenge porn, “manda nudes” e a construção de categorias sociais por meio das notícias

O levantamento realizado nos portais de notícia Folha de São Paulo e G1 foi feito nos espaços destinados a buscas nos próprios sites. Esse levantamento só levou em conta as notícias encontradas por meio desse mecanismo de busca e são matérias que foram publicadas somente nos espaços da Folha de São Paulo e do G1 (espaço de notícia e espaço de opinião, como blogs específicos desses portais). Obviamente que, somente pela busca por essas palavras-chave, deixei passar algumas notícias relacionadas ao objeto de pesquisa. E como os portais de notícia são de abrangência predominantemente nacional, também não consegui ter uma abordagem mais local dessa realidade social específica. Todos estes são pontos que devem ser destacados para deixar bem delimitados os limites da pesquisa e até aonde consegui chegar com ela. As palavras-chave foram escolhidas por intermédio de uma pesquisa empírica prévia acompanhando vários meios de comunicação de massa diferentes. Como esta é uma pesquisa que começou a ser desenvolvida desde a ano de 2012, durante a graduação em Jornalismo, alguns dos termos escolhidos foram percebidos pela observação direta das mídias em geral através dos anos.

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Dentro desta pesquisa, descobri uma grande quantidade de termos que são utilizados pela mídia para descrever o fenômeno da divulgação não autorizada de imagens íntimas, produzidas no contexto de intimidade de um relacionamento amoroso e sem fins lucrativos. Termos como “caiu na net”, “caiu na rede”, “manda nudes”, entre outros, também são utilizados na fala cotidiana das pessoas quando se referem a essa situação social. No entanto, para o levantamento desta pesquisa, escolhi os seguintes termos ou palavras-chave: sexting, “vingança pornô”, revenge porn, “pornografia vingança”, “exposição sexual internet”, “vídeos íntimos” e “imagens íntimas”. Esses termos específicos foram escolhidos com o intuito de abranger de forma representativa como a mídia descreve e traduz para o grande público a circulação social das imagens íntimas. E também, porque, por meio da utilização desses termos, consegui realizar as buscas nos sites e ter acesso a várias versões da construção dessa realidade social que a mídia produz. Esses termos são utilizados, mais do que para descrever uma característica de um fenômeno, para a construção de “categorias sociais” que são diretamente afetadas pelos termos utilizados. Por intermédio da observação das primeiras notícias, pude levantar alguns questionamentos em relação à gênese, como categoria social presente no discurso midiático. Essa “descoberta” dos jornalistas desse fenômeno social não quer dizer que ele não acontecia antes e, sim, que, em determinado momento histórico de nossa sociedade, adquiriu características que foram destacadas e, por isso, ganharam as páginas da imprensa. No levantamento das notícias, reunidas em ambos os portais, percebi que os relatos referentes à divulgação não consentida de imagens íntimas foram aumentando progressivamente, de ano em ano, em diversos tipos de editorias jornalísticas, como páginas policiais, páginas de atualidades, páginas de entretenimento (notícias normalmente sobre a vida pessoal de pessoas públicas) ou notícias de divulgação de pesquisas científicas.

2.3.1 – Notícias Folha de São Paulo

Começando pelo site Folha de São Paulo, no total, foram encontradas 140 notícias. O primeiro relato é do ano de 2005 e ele é o único do tipo. Foi encontrado com a palavra-chave “exposição sexual internet”. No ano de 2006, não encontrei nenhuma notícia que fizesse referência a esse fenômeno. Em 2007, duas notícias foram encontradas e ambas fazem referência a casos de vazamento de imagens íntimas de atrizes famosas. Em 2008, quatro

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notícias que falam de vazamento de imagens íntimas foram encontradas, mas uma dessas matérias fala sobre a criação de um site na internet para difamar uma pessoa, no caso uma mulher, ex-namorada de um rapaz. A partir dessa data, as matérias que descrevem os casos de divulgação indevida de imagens íntimas crescem bastante. Em 2009, foram 22 matérias; em 2010, foram 6; em 2011, foram 12; em 2012, foram 24; em 2013, foram 30; e em 2014 foram 39, indicando um crescimento de abordagem sobre o tema. Todas essas notícias foram levantadas de fevereiro a abril de 2015, e também levantei as matérias referentes ao ano de 2015, apesar de não usar esse levantamento no trabalho, porque ele vai estar incompleto. Mas, mesmo incompleto, pude perceber claramente o aumento do número de relatos descrevendo casos similares de divulgação indevida de imagens íntimas, produzidas no contexto de intimidade.

FOLHA DE SÃO PAULO 2005

1

2006

0

2007

2

2008

4

2009

22

2010

6

2011

12

2012

24

2013

30

2014

39

TOTAL

140

No site Folha de São Paulo, com a palavra-chave “pornografia vingança”, foram encontradas nove notícias. Entre os temas abordados, estão a criação de leis para reprimir a divulgação indevida desse tipo de imagem e algumas análises pessoais sobre essa divulgação, no formato de texto de blog que comenta alguma notícia, mas que também aparece na busca do portal jornalístico. Com a palavra-chave “vingança pornô”, foram encontradas nove notícias. Essas matérias também falam sobre a criação de leis para tentar reprimir a divulgação indevida das imagens íntimas, fala de casos em que essa divulgação aconteceu e também faz uma relação

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direta entre as imagens e um conteúdo pornográfico, abrindo uma questão, porque essas imagens não são necessariamente pornográficas. Com o termo revenge porn, foram levantadas nove notícias, que também falam da tentativa da criação de leis para reprimir a divulgação não indevida. Com a palavra-chave sexting, foram encontradas 32 notícias. Diferentemente dos outros termos, este faz referência direta ao ato de tirar e divulgar imagens íntimas de jovens e adolescentes. Por fazer essa associação, algumas notícias falam da divulgação não permitida dessas imagens íntimas diretamente associada com a pornografia infantil, por conta da produção e divulgação de imagens íntimas feitas por menores de 18 anos. Com o termo sexting também encontramos matérias que falam de aplicativos que facilitam a troca de imagens íntimas, principalmente por celulares, e algumas notícias que falam da preocupação de pais e autoridades com esse comportamento entre os adolescentes. Também achamos matérias que falam do “crescimento” desse tipo de comportamento entre jovens e adolescentes, tanto no exterior, quanto aqui no Brasil. Com o termo “exposição sexual internet”, no site Folha de São Paulo, foram encontradas sete notícias. Essas matérias são praticamente um compilado da forma como o portal de notícias aborda esse comportamento. Foi também com essa palavra-chave que foi encontrada a primeira notícia que faz referência a esse tipo de comportamento, em julho de 2005. Essa notícia já conta a história de adolescentes tendo imagens íntimas expostas por meio de aparelhos eletrônicos e também traz a fala de pesquisadoras, para tentar problematizar socialmente essa questão. O título da matéria, “Exibir sexo em sites é machismo, dizem pesquisadoras” 29, não faz referência à nenhuma palavra-chave, mas traz uma problemática de gênero. Interessante também observar que só foram chamadas a dar a sua visão pesquisadoras mulheres. Com a palavra-chave “vídeos íntimos”, foram compiladas 17 notícias. As matérias fazem referência a casos de pessoas públicas que tiveram imagens íntimas expostas na rede, entre elas, um ator homem; sobre a criação de legislações específicas para tentar impedir ou pelo menos diminuir essas divulgações indevidas; e também fazem referência a casos de mulheres comuns que cometeram suicídio após a publicação das imagens íntimas na internet. Foram encontradas também notícias que dão dicas e conselhos de como as pessoas podem manter a privacidade na rede, para não terem fotos ou vídeos íntimos divulgados sem a sua permissão. 29

http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u18651.shtml

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O termo de busca “imagens íntimas” foi o que mais trouxe resultados, mostrando 57 notícias relacionadas a esse termo. Essa palavra-chave traz matérias que falam do vazamento de imagens íntimas de pessoas públicas, como atrizes, atletas, modelos, apresentadoras de TV, entre outras. Essas notícias descrevem mais o vazamento das imagens íntimas de pessoas que já são conhecidas do público e as posteriores repercussões dos vazamentos dessas imagens, como investigações policiais para descobrir o responsável pelo vazamento e, quando descobrem o suposto responsável, o julgamento dessa pessoa. As notícias do ano de 2014 também trazem pronunciamentos públicos das mulheres famosas que tiveram a intimidade exposta, como se elas tivessem a obrigação de dar uma explicação sobre a intimidade delas exposta.

TERMOS DA PESQUISA “Pornografia de vingança” “Vingança pornô” Revenge porn Sexting “Exposição sexual internet” “Vídeos íntimos” “Imagens íntimas”

9 9 9 32 7 17 57

2.3.2 – Notícias G1

No portal de notícias G1, contabilizando todas as matérias catalogadas, no total, foram encontradas 230 notícias. O primeiro relato é do ano de 2007, com o termo “exposição sexual internet”, e relata o caso de uma apresentadora de TV do Vietnã que teve imagens íntimas divulgadas sem a sua autorização e acabou se envolvendo no que foi chamado de um “escândalo sexual” em seu país.

LEVANTAMENTO G1 2007 2008 2009 2010 2011 2012

1 0 8 8 8 43

61

2013 2014 TOTAL

64 98 230

Com a palavra-chave “vingança pornô”, também foram encontradas oito notícias. A maioria das notícias com esse termo fazem referências a casos que são de investigação policial. Com a palavra-chave “pornografia vingança”, foram catalogadas cinco notícias. A similaridade dos outros termos que relacionam vingança e pornografia às notícias encontradas fala de casos relacionados com investigações policiais, julgamentos e um caso específico de mulheres que teriam reagido à exposição da intimidade na internet. Essa reação seria o fato de as mulheres começarem a dizer que não existe nada de errado em se ter uma vida sexualmente ativa e, sim, que o problema seria a exposição dessa parte da vida delas sem sua autorização. Com o termo em inglês revenge porn, encontrei notícias com as mesmas características das palavras-chaves citadas acima, mas, nesse caso, existem duas matérias que descrevem como as mídias sociais30 lidam com esse tipo de conteúdo e os conflitos que se dão nesse espaço. Com termo “exposição sexual internet”, foram encontradas oito notícias e todas elas contam histórias referentes à divulgação não consentida de imagens de mulheres, duas se referindo ao vazamento de imagens íntimas de adolescentes menores de idade. Alguns relatos têm caráter policial, porque descrevem a denúncia e a investigação do vazamento dessas imagens. Com a palavra-chave sexting, no site G1, foram encontradas 21 notícias. Semelhantes às notícias que foram encontradas no portal Folha de São Paulo com o mesmo termo, as matérias aqui descrevem o envio de imagens íntimas feitas por adolescentes e jovens. Algumas notícias falam de vídeos filmando relações sexuais dentro de escolas e divulgados entre os adolescentes e como os jovens utilizam as redes sociais para compartilhar esse tipo de conteúdo. As próprias notícias têm em seus títulos palavras como jovem, adolescente, pais, escola e educação sexual. 30

Muitos usuários criticam a maneira pela qual algumas redes sociais lidam com conteúdo de nudez em relação ao mesmo modo que eles lidam com conteúdo tidos como de ódio, como páginas com discursos nazistas, racistas ou outros. Essas críticas afirmam que sites de comunidades virtuais como o Facebook permitem comunidades com discursos considerados de ódio e banem de seu sistema, por exemplo, fotos de amamentação ou partos. No caso das imagens íntimas, foco aqui em nosso estudo, a questão é mais complexa porque são imagens que não têm a divulgação permitida e mesmo assim, muitas vezes, a rede social não as tira de seu sistema, mesmo com um pedido direto da mulher que foi exposta ou com pedidos da Justiça, continuando assim a possibilidade de maior divulgação e viralização das imagens.

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As notícias também falam de pesquisas que atestam que os jovens compartilham mais imagens íntimas que as outras idades e que i número de pessoas adeptas a essa prática aumenta. As matérias também tentam fazer alertas aos pais dos adolescentes, para conversarem com seus filhos e os alertarem a não produzir ou divulgar imagens com conteúdo íntimo. As notícias também falam da inclusão de novas terminologias, como o próprio sexting, em dicionários de várias línguas, como o Oxford. No site G1, com a palavra-chave “vídeos íntimos, encontrei 73 notícias. A maioria delas tem uma abordagem policial sobre o envio de imagens íntimas, mostrando investigações sobre a divulgação indevida desse tipo de imagem. As narrativas se repetem. Normalmente, mulheres têm imagens íntimas pegas sem sua permissão e depois são chantageadas para que o conteúdo não seja divulgado na internet. Neste ponto, elas recorrem à intervenção policial, que tenta achar a pessoa que fez a ameaça e fazer com que responda aos procedimentos legais. Outro caso muito recorrente de situação de vazamento de imagens íntimas é de mulheres que já tiveram a imagem divulgada na rede e que acionam a polícia para tentar minimizar a divulgação e achar o responsável pelo vazamento. Esse termo também fala de narrativas que contam um só caso, mas se estendem desde a primeira investigação aos depoimentos e por último ao julgamento. Essas narrativas procuram a mulher que teve a imagem divulgada para, se ela quiser, dar a sua versão dos fatos. Essas matérias também têm depoimentos de advogados, promotores, delegados e agentes da justiça em geral. Algumas dessas matérias fazem ligação dessas imagens com redes de pedofilia. E com essa palavra-chave, foi encontrada a única referência ao vazamento de imagens com conteúdo íntimo em relacionamentos nos quais homens fazem sexo com outros homens. Pelo termo “imagens íntimas, foi achado o maior número de notícias, da mesma maneira que aconteceu no portal Folha de São Paulo. Esse termo também apresenta uma variedade de notícias maior que os outros, reunindo todas as “temáticas” dos outros termos. Uma particularidade dessa palavra-chave é descrever o vazamento de imagens íntimas de pessoas públicas. A maioria dessas matérias fala de imagens íntimas de atrizes, atletas, pessoas envolvidas na vida política, entre outras pessoas públicas, que tiveram as imagens expostas na internet. Essa palavra-chave parece ser um compilado das outras, com narrativas policiais, narrativas que associam as imagens à pedofilia, matérias que contam sobre o suicídio de mulheres expostas, todas elas reunidas sob esse termo.

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TERMOS DA PESQUISA “Vingança pornô” “Pornografia vingança” Revenge Porn “Exposição sexual internet” Sexting “Imagens íntimas” “Vídeos íntimos”

4 5 4 8 21 115 73

No terceiro capítulo, serão apresentadas análises detalhadas dos dados coletados. A escolha de descrever as notícias foi importante porque pude problematizar a seleção e a publicação de determinados termos, falas e fontes. Quem é levado em conta e quem é desconsiderado? E, sobretudo, perceber como certos estereótipos de gênero se tornam repetitivos, mesmo em diferentes notícias, com diferentes palavras-chave. E como esses papéis performados pelos gêneros transitam e fluem nas disputas de poder representadas nessas narrativas (Butler, 2013, Foucault, 1998). Por conta da extensão da produção levantada, tive de estabelecer parâmetros, pois não consegui fazer um detalhamento de todo o material para esta pesquisa. Desta forma, as notícias analisadas foram escolhidas por meio de três pontos, que trabalham em conjunto: a quantidade de matérias relacionadas a um mesmo caso, ou seja, o número total de notícias que foram feitas para acompanhar um mesmo caso; a representatividade de determinada notícia, o quanto aquela notícia tem de elementos que são iguais aos encontrados em todas as outras matérias; e o terceiro ponto são as notícias que têm elementos que se destoam das demais, contêm pontos que são únicos dela e que, em razão disso, se destacam. O capítulo três foi dividido em subcapítulos, nos quais as notícias analisadas se encaixam em “narrativas” específicas que identificamos nos sites de notícias, são elas: imagens íntimas e as narrativas policiais; imagens íntimas e as mulheres famosas; imagens

íntimas e as adolescentes; imagens íntimas e a pornografia infantil; imagens íntimas e a narrativa de vingança; e, por último, imagens íntimas e os homens. Dentro desses subcapítulos, relacionei as palavras-chave e também o contexto de determinadas notícias. No âmbito do discurso e das modalidades de pensamento, ainda segundo Marcus (2001), segui a circulação de signos, símbolos e metáforas como guia nesta pesquisa. Desta maneira, serão debatidas as relações sociais de associação que estão claramente vivas na

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linguagem e nos recursos dos usos dos meios visuais e impressos, e o jornalismo se utiliza de todos esses meios para descrever a nossa realidade.

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3. CAPÍTULO – NOTÍCIAS COMO CONSTITUIDORAS DE CATEGORIAS SOCIAIS: MASCULINIDADE, FEMINILIDADE, VULNERABILIDADE E ESTIGMA

Neste capítulo, serão analisadas as notícias catalogadas a partir de trechos das matérias, o que incluirá, quando necessário, a descrição das fotografias e dos vídeos. As matérias que descrevem esse fenômeno social foram analisadas no contexto das literaturas dos estudos de gênero e sexualidade. Nesta seção, será entendido como o jornalismo participa do processo de construção e de reformulação de uma realidade social já existente. Posso adiantar que serão notadas, por meio da análise das várias notícias, muitas caraterísticas em comum entre as variadas narrativas jornalísticas que foram identificadas. Essas similaridades são confirmadas, principalmente, no que diz respeito aos sentimentos femininos em relação às imagens divulgadas, e também alguns pontos de destaque, sobretudo nas falas escolhidas para ilustrar as notícias. A internet traz mudanças sociais na forma como as pessoas se comunicam com outras pessoas e como a mídia se comunica com o público geral, tendo de se atualizar para acompanhar essas mudanças. No entanto, não posso afirmar que essas modificações transformam de maneira significativa as relações de gênero. Um desses exemplos é o da revista americana Playboy, que, lançada em 1953 com a capa da atriz mundialmente conhecida como um ícone de beleza e sensualidade Marilyn Monroe, anunciou em outubro de 2015 que diante da concorrência de sites pornográficos vai parar de publicar fotos de mulheres nuas31. Muitos sites de notícias nacionais e internacionais fizeram chamadas que destacavam o fato de que a revista não conseguia mais concorrer contra os “nudes” trocados livremente entre as pessoas. Seguindo a tendência exterior, a editora brasileira Abril anunciou no mês de novembro de 2015 que decidiu pelo fim da publicação das versões brasileiras das revistas Playboy, Men’s Health e Women’s Health. No caso da Playboy, a última edição será a do mês de dezembro de 2015. Em comunicado a mídia, a editora Abril informou que a retirada de circulação das revistas dá continuidade à estratégia de reposicionar-se focando e dirigindo seus esforços e investimentos às necessidades dos leitores e do mercado. A Playboy era editada no Brasil há 40 anos. (G1, 2015)

Sobre o fato da interrupção da publicação de fotos de nus e da própria revista, é

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http://g1.globo.com/economia/midia-e-marketing/noticia/2015/11/editora-abril-anuncia-que-deixara-depublicar-revista-playboy.html

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especulado que a retirada do mercado brasileiro desse título também aparece como um reflexo dos sites pornográficos e da circulação dos “nudes”. Ou seja, as imagens eróticas e pornográficas encontram novas formas de serem produzidas e compartilhadas na internet. Muitos desses sites pornográficos que a revista afirma estarem tirando seus leitores são lugares na rede de compartilhamento de conteúdo pessoal, como blogs, o Tumblr e as redes sociais, em que pessoas comuns tiram fotos de nudez ou atos sexuais e postam na internet. Essa “nova” forma de circulação social de conteúdos eróticos não se trata da instauração de dispositivos de sexualidade, a forma a qual Foucault cunhou a terminologia, mas sim outro tipo de práticas eróticas que estão na fronteira das sexualidades consideradas “normais” e “saldáveis”, e são essas práticas de fronteira que tencionam a atuação dos dispositivos e das relações de poder. A mídia tradicional, nesse cenário contemporâneo de circulação de imagens eróticas, tenta traduzir esse fato social por meio da utilização de narrativas que utilizam o gênero como um fator de diferenciação social. Como as análises à frente demonstram, o gênero aparece como um agregador de valores sociais, por meio do qual a mídia categoriza as mulheres como “vítimas” e os homens como “autores”, “suspeitos” ou “criminosos”. No entanto, é compreendido que as relações de poder não são sempre unilaterais, pois sempre há uma disputa social, e em alguns momentos as matérias analisadas refletem um pouco dessa complexidade social. O pesquisador Sérgio Adorno (2002), ao relacionar o fato televisionado com a violência e ao falar sobre a imprensa e a mídia em geral, destaca que os meios de comunicação tradicionais (rádio, TV e jornais) são importantes veículos de expressão, pelos quais são dadas as percepções sociais no que concerne à criminalidade, ao crime, ao criminoso e ao modo como a sociedade transforma essa questão em um problema de interesse público. Será visto nas análises que os casos de vazamento de imagens íntimas são tratados nas notícias como casos criminais, mais especificamente casos policiais, o que deixa claro e muito bem delimitado o gênero das “vítimas” e dos “acusados”. Para o autor, se a imprensa não pode ser utilizada como fonte de informação sobre a violência em si, como números de pessoas mortas ou as causas da violência, a mídia é uma fonte muito rica para a compreensão da percepção social sobre essa mesma violência. De acordo com a autora Elizabeth Rondelli (1998), os meios de comunicação em geral são construtores privilegiados de representações sociais sobre o crime, a violência e aqueles envolvidos em suas práticas e em sua coibição. Portanto, seguindo o pensamento da

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autora, a mídia não estabeleceria um retrato fiel da realidade, mas, ao noticiar certos fatos e colocar ênfase em alguns aspectos em detrimento de outros, estabelece um recorte desta mesma realidade.

3.1 – Imagens íntimas e as narrativas policiais

Após o levantamento de dados e a análise, pude notar um padrão bastante comum na forma como a mídia reporta a divulgação de imagens íntimas não consentidas na internet, qual seja: pessoas que mantêm relações sexuais e de afeto (casal heterossexual) estão em momento íntimo e o homem pede que as relações sexuais sejam gravadas, ou ainda, casal está conversando pelas mídias sociais na internet, quando o homem também pede o vídeo ou a imagem íntima da mulher. Depois disso, o casal se separa por algum motivo, as imagens começam a ser compartilhadas na rede e a mulher sente a pressão social. Ela procura os meios legais e jurídicos, sendo o principal deles a polícia, para fazer a denúncia, e a Justiça, para o processo. Abre-se uma investigação e a polícia entra em contato com o ex-companheiro da moça, em seguida, o caso vai à justiça e o rapaz pode ou não vir a ser condenado. O principal exemplo dessa narrativa clássica e que teve grande acompanhamento por parte da mídia é o de uma jovem, com 19 anos na época, moradora da cidade de Goiânia, no Estado de Goiás, que foi filmada tendo relações sexuais com o seu então namorado. O vídeo mostra a imagem da moça fazendo um sinal de “ok” com a mão, esse sinal se refere a uma positiva para que o homem pratique sexo anal com a jovem, e o mesmo sinal acabou por se transformar em um “meme”, que foi replicado por várias pessoas, muitas delas famosas. Foi feito pelo site de notícias G1 todo o acompanhamento do caso, em várias fases, desde a denúncia até a investigação, e um posterior julgamento, passando então pelos três momentos das narrativas policiais, a denúncia, a investigação e o julgamento. O portal de notícia G1 fez, ao todo, 8 matérias sobre o caso. Não foi encontrado no levantamento no portal Folha de São Paulo alguma matéria que fala do caso, somente notícias que fazem menção a ele. Os conteúdos são referentes aos anos de 2013 e 2014. A matéria selecionada traz a fala da jovem, a qual foi escolhida para dar o título à notícia “‘Não me arrependo porque fiz por amor’, diz garota sobre vídeo de sexo” 32. A chamada associa a relação sexual a uma relação amorosa, e também tem um tom de 32

http://g1.globo.com/goias/noticia/2013/10/nao-me-arrependo-porque-fiz-por-amor-diz-garota-sobre-video-desexo.html

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justificativa por parte da jovem exposta, afirmando que ela não fez nada de errado em produzir as imagens porque este teria sido um “ato de amor”. A jovem ainda disse que sua vida “virou um inferno”, sendo esta frase corroborada em um parágrafo que descrevia que ela saiu do emprego em que estava, parou de frequentar a faculdade e que até mesmo parou de sair de casa por pelo menos 20 dias, em razão das ameaças físicas e morais que recebia. A matéria ainda ressaltou que ela teve de mudar o número do celular e desfazer suas contas pessoais nas redes sociais, por conta do assédio recebido também por esses meios. Ela afirmou, além disso, que considera o caso “humilhante” e que na época desejava ter “sua vida de volta”. “Eu não cometi nenhum crime. Mas pessoas me ofendem virtualmente e moralmente. Muita gente me chamou de vadia, prostituta. Um homem chegou a me mandar uma mensagem falando que viria a Goiânia no final de semana e que me pagava R$ 10 mil para sair com ele”. Esta fala associa o vazamento das imagens íntimas à moral da jovem, que, mesmo apresentando a justificativa do afeto, seus atos são associados a trocas sexuais por dinheiro. Na notícia, a menina afirmou categoricamente que o único que teria acesso a essas imagens seria o ex-namorado, com o depoimento dela servindo como guia da investigação policial. “Não tem punição para esse tipo de crime, não tem uma lei que enquadre ele. Ele até pode ser considerado culpado, mas não vai ficar preso. Ele nunca vai conseguir pagar pelo mal que me fez”. A matéria é relativamente grande e foi dividida em três partes; a primeira traz as falas da “vítima” contando o que foi mudado na vida dela; a parte “vídeos”, em que conta alguns detalhes do vídeo íntimo vazado; e a terceira parte, “punição”, na qual a matéria traz três falas da jovem dizendo que não existe punição para esse tipo de caso no Brasil. A matéria usa termos como “abalada” para se referir ao estado de espírito dela, termos como “índole” e “humilhante” também aparecem. Essas palavras se associam à “honra” da jovem, que é posta em xeque por conta da divulgação das imagens. “Não me arrependo porque fiz [o vídeo] por amor, com uma pessoa que eu amava e confiava. Só que isso não deveria ter sido mostrado para ninguém”, destacando um compromisso de confidencialidade e intimidade do relacionamento. É possível perceber na narrativa que a jovem é sempre chamada de “vítima”, que o ex-namorado é tido como “o agressor”, os advogados de ambas as partes e a delegada responsável por investigar o caso, a qual apresenta as três fases das narrativas policiais

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recorrentes. O caso é classificado como “policial” porque a pessoa vitimada, no caso a mulher, teve alguma coisa retirada dela, como por exemplo o trabalho, o direito de ir e vir e a “moral”. E ela tenta, por meio dos dispositivos de controle, como a polícia e a Justiça 33, reaver o que lhe foi tomado pela exibição indesejada e indevida dessas imagens. O companheiro aparece nas narrativas de violência doméstica como agressor, responsável por “tomar a vida” dessas mulheres. Na notícia do portal G1 com o título: “Em RR, por ciúmes, ex posta fotos íntimas da mulher em grupo de celular” 34, também segue a narrativa acima, mas com consideráveis diferenças. A denúncia é de uma mulher de 32 anos que diz que o ex-marido, 31 anos, estava divulgado suas imagens íntimas, fotos e vídeos por meio do WhatsApp. O conteúdo da matéria afirma que a mulher teria dito que o motivo para o homem estar espalhando esse conteúdo seria “ciúme” e a não aceitação do fim do relacionamento. O próprio título relaciona o vazamento das imagens íntimas ao “ciúme” do homem e o vazamento à vingança. A matéria usa o termo “suposta vítima” para se referir à mulher que fez a denúncia, mas não usa o termo “suspeito”, sempre se referindo ao homem como “ex-marido”. Essa é uma indicação de que a palavra dela não é percebida como suficiente para fazer uma denúncia, mesmo como os fatos, que são as imagens íntimas divulgadas. Ao mesmo tempo em que a matéria não trata o homem como suspeito, a denúncia da mulher é colocada em xeque. São destacados o depoimento da mulher e o registro da ocorrência em quatro parágrafos, e o do homem em dois parágrafos, separado com o subtítulo “Ex-marido nega a publicação de fotos”. A matéria começa com o lead que resume a notícia: “Uma mulher, de 37 anos, denunciou o ex-marido, de 36 anos, após publicação de fotos íntimas em um grupo de WhatsApp (aplicativo de troca de mensagens de texto e mídia que usa conexão de internet). Ela alegou que o homem estava com o propósito de depreciá-la em público. Segundo disse, ele é ciumento e não aceita a separação, motivos que o levaram a expor as imagens.”. É possível ver, a partir disso, que a matéria põe o motivo da divulgação das fotos nas falas da vítima, mas ao mesmo tempo sempre coloca em xeque a veracidade dessas falas, usando interjeições como “alega”. Quando apresentam as falas do homem, apesar da gravidade das declarações, ele não 33

http://g1.globo.com/goias/noticia/2014/10/jovem-vai-mover-nova-acao-contra-suspeito-de-divulgar-video-desexo.html 34 http://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2014/05/em-rr-por-ciumes-ex-posta-fotos-intimas-da-mulher-em-grupode-celular.html

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é colocado nem como “suspeito”, e suas falas escolhidas têm o propósito de “denegrir a honra” da mulher: “Saía para trabalhar, ela começava a tirar as fotos em casa. Esse celular que estou, há muitos ‘segredos’. Tem um vídeo dela íntimo no banheiro. Além disso, trocava fotos com rapazes. Não fiz nada. Ela mesma causou toda essa situação”. A última frase dessa fala tira toda e qualquer responsabilidade do homem e redireciona ao comportamento que a mulher teria tido. Na última fala da matéria, “‘Ela mandou me excluir. Agora eu pergunto: Por qual motivo ela fazia fotos e vídeos, se sexo não faltava? Isso é o que eu não entendo. Eu era apaixonado por essa mulher. Mas fiquei magoado ao ver que ela trocava imagens com homens quando não estava em casa’, destacou, complementando que não quer saber mais de brigas com a ex-esposa”. A linha final, acrescentada pelo jornalista homem, corrobora com todo o discurso construído pelo homem, de que o motivo da separação e da divulgação das imagens seriam as brigas e uma “traição”, não comprovada, da mulher. Me pergunto, então, se os gêneros dos jornalistas são variáveis significativas para compreender também o porquê de certos termos escolhidos. Marko Monteiro (2001) analisa essa variável em seu artigo sobre a representação das masculinidades na revista Vip Exame. Monteiro afirma que a tarefa do repórter é simplificar o debate e interpretar as opiniões apresentadas. E é exatamente isso que o jornalista realiza ao finalizar essa matéria. A pergunta que o homem faz em sua fala, relacionando a produção das imagens íntimas à falta de sexo com ele, aparece como uma tentativa de desassociar a participação dele no jogo erótico da produção dessas imagens, que poderiam muito bem ser produzidas para o deleite erótico do casal. Quando ele diz que “era apaixonado por essa mulher”, finaliza a matéria relacionando os sentimentos de “posse” aos sentimentos de “amor”, todos relacionados ao homem. Os sentimentos que motivaram a liberação das imagens íntimas das matérias acima foram os relacionados a condições de posse, como o ciúme. A diferença da primeira notícia é que os sentimentos de amor e de afeto eram direcionados à mulher, servindo como uma espécie de “justificativa” para a produção das imagens. E na segunda matéria esse sentimento de “amor” é direcionado ao homem, “justificando”, assim, um vazamento intencional de imagens íntimas. O que muda não é o sentimento demostrando, e sim como esse sentimento é entendido socialmente e atribuído a cada gênero. Eva Illouz (2009) fala de uma “cultura do amor”, na qual, para a autora, a sexualidade está subordinada aos mesmos discursos culturais que constituem o que é

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considerado amor e o que o justifica nos relacionamentos heterossexuais. Por esse fato se tornaria “justificável” para o homem liberar as imagens, pois ele estaria “cego de amor”. A notícia com o título “PF acredita que hacker que ameaçava mulheres pode ter feito 180 vítimas” 35 introduz uma terceira pessoa ao caso do vazamento das imagens, os “hackers”. Ou seja, tira o vazamento das imagens íntimas do contexto do relacionamento amoroso e torna o caso mais “criminal” e não “passional”. A matéria narra a investigação da polícia federal brasileira em relação a um homem suspeito de ter feito mais de 180 mulheres como vítimas de seus crimes virtuais. De acordo com a narrativa, o “hacker” invadia as contas de e-mails das mulheres e conseguia, dessa forma, ter acesso às imagens íntimas. Depois, ele entrava em contato com essas mulheres pelas redes sociais e as ameaçava com a possibilidade de publicação dessas imagens, e em troca, pedia que as mulheres fizessem “sexo virtual” com ele. A matéria traz termos como “ameaça”, “condenação” e “denúncia”, com a fala de uma das “vítimas”, sem identificação, e de uma perita em crimes cibernéticos. É uma matéria de tamanho menor, que mostra um parágrafo separado com o subtítulo “condenação”. Quem identifica e “alerta” é a Polícia Federal, que aparece como uma entidade despersonalizada. A matéria é escrita de modo que alerte as mulheres, mas ela não vem com os termos que normalmente são relacionados ao vazamento das imagens íntimas. A matéria é tratada totalmente como um caso policial. O homem, que é sempre chamado de “suspeito” pela matéria e que na época morava em Londres, “chantageou” mulheres em várias cidades e Estados brasileiros. Entre os lugares citados na notícia estão Londrina, Ponta Grossa, Maringá, Rondônia, Mato Grosso, Minas Gerais e Santa Catarina. A perita em crimes cibernéticos, na fala que foi escolhida, afirmou que esse homem não é “perigoso” somente na rede, como também na vida “real”, porque pode marcar um encontro em um lugar e culminar em um abuso sexual “real”. Percebemos na notícia uma divisão entre o mundo “real” e o mundo “virtual”, e que hacker é uma categoria que representa perigo para as mulheres em ambos os “mundos”. Esse hacker não tinha envolvimento pessoal, íntimo ou sexual com nenhuma das mulheres abordadas por ele, de acordo com a matéria. Ele é classificado como um elemento exterior, perigoso e passível de merecer investigação pela polícia federal por conta da quantidade de casos. Ele é apresentado como um “chantagista serial”, mas a matéria, corroborada com a fala da perita, dá a entender que ele é menos perigoso do que alguém 35

http://g1.globo.com/pr/norte-noroeste/noticia/2014/10/pf-acredita-que-hacker-que-ameacava-mulheres-podeter-feito-180-vitimas.html

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classificado como um “estuprador serial”, porque sua chantagem não chegou ainda ao mundo “real”. A matéria não traz preocupação com os sentimentos expressados pelas mulheres, com uma narrativa mais impessoal. Das três notícias analisadas até agora, somente uma teve a preocupação dos sites de notícia para acompanhar todas as fases do caso, que foi o caso que já tinha sido destacado anteriormente porque tinha se transformado em um “meme”. Nos outros dois só há um ponto da sequência temporal da história, que é primeiramente a denúncia, como é o caso de Roraima, que apresenta só o primeiro Boletim de Ocorrência, sem a investigação, ou a investigação, como é o caso do hacker. Há também matérias que apresentam somente a condenação, na vara cível ou na vara criminal. É visto, então, que a preocupação em acompanhar o caso em todas as partes aparece quando existe algum outro fator externo de influência além da notícia, como a criação de um “meme”, ou se for alguma figura já conhecida do público que teve a imagem íntima divulgada.

3.2 – Imagens íntimas e as mulheres famosas

Quando as narrativas midiáticas comentam casos de vazamento ou de divulgação indevida de imagens íntimas de pessoas públicas, como atrizes, cantoras, atletas, políticos entre outros, é percebido que há uma preocupação com o acompanhamento de todas as etapas do caso policial, desde a denúncia até uma posterior condenação, mesmo que essa condenação demore alguns anos. Esses também são os casos nos quais as mulheres “vitimadas” têm a oportunidade de falar abertamente sobre o ocorrido, pois elas são procuradas pela mídia a se pronunciarem justamente pelo fato de serem pessoas já previamente familiares ao grande público. Advogados, promotores e delegados também aparecem como personagens frequentes dessas narrativas, como figuras que oferecem a possibilidade de justiça. Um dos primeiros casos a aparecer na mídia mundial e na brasileira é o da atriz norte-americana Scarlett Johansson, que teve fotos íntimas divulgadas na internet. A matéria com o título “Supostas fotos de Scarlett Johansson nua viram hit no Twitter” 36 é a primeira de uma série de notícias, todas falando do vazamento de duas imagens íntimas da atriz. O caso foi acompanhado desde o vazamento até a investigação e a condenação do 36

http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2011/09/supostas-fotos-de-scarlett-johansson-nua-viram-hit-notwitter.html

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suspeito. Nos dois portais de notícia, foram encontradas seis matérias nos anos de 2011 e 2012, sendo em 2012 noticiada a condenação do suspeito37. O primeiro parágrafo dessa notícia faz uma descrição de quais partes do corpo da atriz aparecem nas imagens, “É possível ver o corpo inteiro da atriz de costas, assim como um close de seus seios enquanto ela está deitada em uma cama”, e também vem com a descrição “supostas fotos de Scarlett Johansson nua”. Essa primeira notícia é toda baseada na comprovação da veracidade das imagens, ou seja, os internautas tentarem descobrir, por meio de uma série de artifícios, se realmente era ou não a atriz quem aparecia nas fotos. “Para provar que as imagens são reais, internautas compararam uma tatuagem que Scarlett possui no antebraço com aquela que aparece levemente desfocada nas fotos do nu. Também rastrearam a origem da foto: outubro de 2010, e elas foram tiradas por um smartphone Blackberry Bold 9000”. O caso indica uma necessidade de que as imagens fossem reais e todo um trabalho dos usuários da rede em indicar, sem sombra de dúvidas, que é a atriz nas imagens. Essa preocupação em associar a pessoa “real” à sua imagem íntima divulgada aparece também em outras notícias que falam da viralização de imagens íntimas. Com a preocupação em descrever o corpo da atriz e comprovar a veracidade das imagens, percebe-se o quanto a imagem do corpo dela se torna público não somente pela viralização, mas pela notícia também. A notícia “Scarlett admitiu ficar ‘paranoica’ com publicação de fotos suas sem roupa” 38 traz agora as falas da atriz e se baseia em uma entrevista cedida à revista americana Vogue. O título traz a palavra “paranoica” em aspas e já indica o estado de espírito da atriz em relação ao vazamento de suas imagens. Nos depoimentos que a reportagem retirou da entrevista, são destacadas as falas que também dizem acerca do estado de espírito dela: “‘Quando saíram aquelas fotos, eu saía para jantar e pensava que as pessoas que estavam lá tinham me visto nua. Foi terrível, me sentia paranoica’, disse Scarlett para a revista”. Com esta fala, é possível perceber o quão difícil foi para a atriz manter uma vida social após o ocorrido. Ao mesmo tempo, as falas da atriz sinalizam que a experiência de ter essas imagens vazadas não a define como uma pessoa “vítima”, “Scarlett, de 27 anos, disse que não guarda

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http://www1.folha.uol.com.br/tec/1203080-hacker-que-divulgou-fotos-de-scarlett-johansson-e-condenado-adez-anos-de-prisao.shtml 38 http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/04/scarlett-admitiu-ficar-paranoica-com-publicacao-de-fotos-suassem-roupa.html

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rancor do culpado por divulgar as imagens, mas destacou que ele deve pagar pelo que fez. ‘Não quero me passar por vítima e baixar a cabeça. No entanto, ele me roubou algo e foi muito desagradável’”. Apesar de a atriz não conhecer a pessoa que divulgou suas imagens, a matéria usa as palavras “rancor” e “culpado” para falar do hacker. É possível notar na fala escolhida que as imagens, e, por associação, a intimidade da atriz, foram “roubadas” dela; desta forma, ela espera que os dispositivos de controle façam o hacker “pagar pelo que ele fez”. Apesar de não haver uma relação íntima entre a pessoa que aparece nas imagens e quem as divulgou, alguns discursos aparecem de forma similar aos casos em que essas pessoas possuem uma relação íntima. Outro caso fundamental para a popularização das coberturas midiáticas desse tipo de situação social foi o da também atriz Carolina Dieckmann, que em maio de 2012 teve mais de 40 imagens íntimas divulgadas e viralizadas contra a sua vontade na internet. Escolhi para analisar a matéria “Carolina Dieckmann fala pela 1ª vez sobre fotos e diz que espera justiça” 39. O próprio título já dimensiona a importância que a mídia brasileira deu ao caso. A notícia contém o vídeo da entrevista. Ao todo, contanto as matérias da Folha de São Paulo e do G1, foram contabilizadas vinte e sete reportagens que fazem relação com a cobertura direta do caso da atriz. Algumas matérias, como as que falam sobre o Marco Civil na Internet e também do vazamento de imagens íntimas de outras mulheres famosas, fazem referência ao caso Carolina Dieckmann. De acordo com os jornais, um grupo hacker invadiu o computador da atriz e teve acesso às imagens. O grupo exigiu que a atriz pagasse 10 mil reais ou as imagens seriam divulgadas. A atriz não pagou e as fotos foram viralizadas. Outros hackers se aproveitaram da situação e também espalharam as imagens da atriz em sites institucionais de vários Estados brasileiros. O nome da atriz foi um dos termos mais procurados no Google na época, tanto que ela entrou com um processo contra a página de buscas, para evitar que as pesquisas em seu nome levassem o usuário diretamente às imagens íntimas divulgadas sem a permissão e o consentimento. O primeiro grupo hacker que invadiu o computador foi encontrado e algumas pessoas sofreram julgamento. Todos os hackers citados nas notícias são homens. A matéria foi resumo de uma entrevista que a atriz concedeu ao Jornal Nacional, um dos noticiários televisionados com maior audiência no país. A entrevista foi concedida à jornalista Patrícia Poeta e não foi ao vivo, sofreu edições e depois foi exibida no telejornal. O 39

http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2012/05/carolina-dieckmann-fala-pela-1-vez-sobre-roubo-de-fotosintimas.html

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cabelo, preso em formato de coque, e as vestimentas da atriz são sóbrias e em tons neutros. Percebemos nessa caracterização indicações de uma tentativa de passar uma imagem mais “séria” e não sexualizada da atriz. Uma das falas mais destacadas pela notícia foi a relação entre as imagens íntimas e o fato de a atriz ser mãe: “Emocionada, Carolina Dieckmann afirmou que sua ‘maior angústia’ era de que o filho de 13 anos visse as fotos sem que ela estivesse presente para explicar. Contou que estava em São Paulo quando foi avisada por seu empresário de que as fotos tinham vazado. Assim que soube, ligou para casa pedindo que a internet fosse desconectada até que ela pudesse conversar com Davi, seu filho mais velho. ‘Minha preocupação era só falar para desligar a internet, porque não queria que ele tivesse acesso àquilo’. Em seguida, a atriz diz ter ficado ‘muito nervosa’ por estar longe da família nesse momento, e foi para a casa de uma amiga, que deu um calmante a ela”. Carolina Dieckmann disse que a decisão de nunca ter posado nua sempre foi, em parte, pelo fato de ter um filho que hoje é adolescente. “A coisa de [não] me expor nua tem muito a ver com eu ter um filho de 13 anos, eu sempre coloquei isso abertamente”. Diante do vazamento de suas fotos, se perguntou: “Pensei: o que é pior? Ter uma mãe nua ou uma mãe que cede a uma chantagem?”. (G1, 2012)

A condição da nudez pública da atriz é diretamente relacionada à opinião do filho dela. Grossi (2005) nos fala que a mulher na condição de mãe é uma mulher marcada pelo sofrimento caracterizado pela dor do parto e a mulher que faz de tudo pelos filhos, a “mater dolorosa”, um modelo de mãe sofrida e digna. Então, a fala da atriz se encaixa nesse modelo social bastante abrangente, no qual ela se sacrifica expondo a imagem publicamente para manter a sua honra e a da família, em vez de ceder a uma chantagem e perder ainda mais a honra. Ao mesmo tempo, a matéria coloca uma fala da atriz com relação ao marido dela e que ela “não tem culpa de nada”: “A atriz também falou da reação e do apoio do marido, Tiago Worcman. ‘Eu me lembro que estava chorando muito no carro (...), e ele ‘meu amor, calma. Ninguém morreu, não tem ninguém com câncer terminal. Você é linda, as fotos eram para mim, tá tudo certo’. ‘O mais louco, Patrícia, é que eu não fiz nada de errado’, declarou. ‘É uma sensação de faca no peito’”. Preocupações com o estado físico da atriz “você é linda” e o contexto em que as imagens foram produzidas – “as fotos eram pra mim, tá tudo certo” – indica a relação das imagens íntimas com relacionamentos amorosos e que, mesmo vazadas sem o consentimento da mulher, essas imagens deveriam apresentar mulheres “bonitas”. A notícia é dividida em três partes, uma delas, a maior, contém os depoimentos de

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Carolina Dieckmann e as outras duas são a ação da polícia investigando o caso e um breve resumo de todos os acontecimentos. O subtítulo “Ação” mostra toda a investigação policial relacionada ao caso, e o “O caso” vem com o resumo e mais algumas ações na tentativa de encontrar quem divulgou as imagens. A instituição polícia aparece com frequência e destaque em todas as matérias do caso “Carolina Dieckmann”, como, por exemplo, na matéria “Advogado diz que Carolina Dieckmann elogiou trabalho da polícia” 40. A ONG SaferNet afirmou em outra matéria41 que as imagens da atriz nunca mais poderão ser retiradas completamente da internet, em razão da vastidão da rede e de as imagens estarem salvas também fora da rede, em HDs. Em 2013, entrou em vigor a Lei 12.737, de 2012, apelidada de lei “Carolina Dieckmann”, que, entre outras coisas, torna crime a invasão de aparelhos eletrônicos para obtenção de dados particulares. Sancionada em dezembro de 2012, a alteração do Código Penal foi apelidada com o nome da atriz graças à repercussão que o caso tomou, muito em prol do acompanhamento de todo o caso que a mídia deu e das declarações da atriz42. Outro caso que teve um grande acompanhamento da mídia, desta vez já no ano de 2014, foi o vazamento em massa de imagens e vídeos íntimos de várias atrizes, cantoras ou mesmo celebridades hollywoodianas. Em relação a esse caso, foram levantadas 28 notícias nos portais G1 e Folha de São Paulo falando das denúncias, da investigação pelo FBI e as declarações das atrizes que tiveram suas imagens íntimas vazadas. A mais afetada desse vazamento de imagens íntimas foi a atriz hollywoodiana Jennifer Lawrence. Seu nome também virou “meme” nas redes sociais, e suponho que as imagens dela se espalharam mais que as das outras atrizes, por conta de seu destaque na mídia mundial, estrelando filme como “Jogos Vorazes” e por ela ter ganhando o Oscar de melhor atriz no ano de 2013 pelo filme “O Lado Bom da Vida”. Tanto que a primeira notícia divulgada no site G1 tinha o título: “Supostas fotos de Jennifer Lawrence e mais famosas nuas vazam na web” 43. Já direcionando o destaque para as fotos de Lawrence, e não às outras atrizes que também tiveram fotos divulgadas.

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http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/05/advogado-diz-que-carolina-dieckmann-elogiou-trabalhoda-policia.html 41 http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2012/05/fotos-de-dieckmann-nunca-poderao-ser-eliminadas-diz-ongsafernet.html 42 http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2013/04/lei-carolina-dieckmann-que-pune-invasao-de-pcs-passa-valeramanha.html 43 http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2014/08/supostas-fotos-de-jennifer-lawrence-nua-vazam-nainternet.html

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Essa primeira matéria mostra a preocupação com a veracidade das imagens, o lead apresenta a notícia desta forma: “Fotos que seriam da atriz Jennifer Lawrence nua foram divulgadas em redes sociais na internet neste fim de semana. Por conta das imagens, o nome da atriz é um dos mais citados no Twitter no Brasil neste domingo (31)”. Outro aspecto muito destacado é a grande relevância que o caso tomou, como a citação do Trending Topics Brasil demostra. Nessa matéria, só duas outras mulheres foram citadas, a atriz Kirsten Dunst e a modelo Kate Upton. A notícia “Jennifer Lawrence ameaça processar quem postar suas fotos íntimas” 44 já traz a associação direta da atriz às imagens e também um pronunciamento público por meio da assessoria de imprensa dela, e o título já associa a divulgação indevida das imagens a uma consequência judicial, no caso, um processo. “Este é um caso flagrante de violação de privacidade. As autoridades foram contatadas e vão processar qualquer pessoa que publicar as fotos roubadas de Jennifer Lawrence”, disseram representantes da atriz à imprensa”. A notícia também associa o vazamento à ação de hackers e ao mau funcionamento do serviço de hospedagem de arquivos na nuvem da Apple, o iCloud, que é um sistema de armazenamento de dados pessoais na internet por meio de uma conta. Essa notícia traz outros nomes de mulheres famosas que também tiveram fotos íntimas expostas, como Victoria Justice e Mary Winstead, as cantoras Selena Gomez e Ariana Grande, e também Kim Kardashian, Rihanna, Mary-Kate Olsen e Avril Lavigne. A matéria também fala do compartilhamento dessas imagens em fóruns da internet como 4chan e Reddit. A notícia cujo título é “‘Não é um escândalo, é um crime sexual’, diz Jennifer Lawrence” 45 apresenta trechos de uma entrevista que a atriz concedeu à revista americana Vanity Fair. O título já associa, pela fala da atriz, o vazamento não consentido de imagens íntimas a uma ação criminal. Essa matéria traz várias as declarações de Lawrence sobre o caso. “Só porque eu sou uma figura pública, só porque eu sou uma atriz, não significa que eu pedi isso. É o meu corpo, e deve ser a minha escolha”. Somente no ano de 2014 pude constatar essa declaração tão direta na mídia sobre a questão do consentimento da divulgação das imagens. Em outro parágrafo, o vazamento das imagens é associado a uma violação sexual. “Eu estava com tanto medo. Eu não sabia como isso afetaria minha carreira”, disse Lawrence, que ameaçou processar quem divulgasse as fotos. “É uma violação sexual. É nojento. A lei 44

http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2014/08/jennifer-lawrence-processara-quem-publicar-supostasfotos-nuas-diz-site.html 45 http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2014/10/nao-e-um-escandalo-e-um-crime-sexual-diz-jenniferlawrence.html

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precisa ser mudada e nós precisamos mudar. É por isso que esses sites são os responsáveis. Quando alguém pode ser sexualmente explorada e violada, o primeiro pensamento que vem à mente de alguém é fazer lucro com isso”, afirmou. Os sentimentos expressados nesta fala são de medo e de nojo, mas a responsabilidade pelo dano causado pela divulgação das imagens não é associada unicamente a quem primeiro divulgou, mas a todos que compartilham as imagens. No último parágrafo, que traz declarações de Lawrence, “A atriz revela que tentou escrever uma declaração quando saiu a notícia da violação de privacidade. ‘Mas cada coisa que eu tentei escrever me fez chorar ou ficar com raiva. Comecei a escrever um pedido de desculpas, mas eu não tenho nada para pedir desculpas. Eu estava apaixonada, em um saudável e ótimo relacionamento de quatro anos. Foi namoro de longa distância, e ou o seu namorado vai olhar pornografia ou ele vai olhar para você’”. Além da associação da produção dessas imagens à pornografia, é possível perceber também, pela fala, que isso se repete em outros contextos, como no caso da moça de Goiânia, em que a justificativa para a produção dessas imagens seria o envolvimento no relacionamento amoroso. Ao menos esta seria uma justificativa pública plausível para a produção dessas imagens íntimas, já que essas declarações são feitas como resposta à pergunta de jornalistas, e as mulheres sabem que estas serão publicadas. Novamente, o caso em questão nos remete à questão da legitimidade, da necessidade de justificação pela produção das imagens íntimas e de uma moralidade de gênero que já foi bem analisada em vários estudos (Grossi, 2004). A justificativa para a sexualidade feminina seria estar em um relacionamento amoroso estável e, dependendo do contexto, casamento. No entanto, analisando as notícias, percebo também uma continuidade com a moral tradicional. A Folha de São Paulo, por exemplo, deu destaque às mesmas falas da atriz, tanto no título “Todos os que viram minhas fotos nua cometeram um crime sexual, diz Jennifer Lawrence”16 quanto nas declarações internas da matéria. Com a diferença de que a Folha também trouxe a fala em que a atriz conta como foi ter de contar ao pai que suas imagens íntimas haviam se espalhado pela rede, associando de novo uma figura masculina próxima como grande preocupação das consequências do vazamento de imagens íntimas. Mas a grande precursora das notícias da divulgação indevida de imagens íntimas foi a socialite e empresária norte-americana Kim Kardashian, que teve imagens nuas divulgadas sem a sua autorização em 2007. O caso foi a viralização de um vídeo em que Kim aparece fazendo sexo com seu então namorado na época, o rapper Ray J. Em 2014, a mesma situação

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aconteceu com Kardashian, que teve mais imagens íntimas, dessa vez fotos, divulgadas por hackers. No entanto, somente o segundo caso foi noticiado pelos portais G1 e Folha de São Paulo em 2014, quando aconteceu esse vazamento de imagens íntimas de atrizes em massa. O título da notícia era: “Hackers divulgam supostas fotos de Kim Kardashian e mais famosas nuas” 46. Essa notícia não tem a fala de nenhuma das atrizes, ou mesmo da própria Kardashian, e também destaca que várias outras atrizes e personalidades públicas tiveram imagens íntimas expostas. A matéria também traz o subtítulo “outros casos”, no qual relembra o caso da Scarlett Johannson e da Carolina Dieckmann, com um pequeno resumo dos dois. Antes de 2007, Kim Kardashian não era uma personalidade conhecida mundialmente, e, ao contrário dos outros casos, esse não foi noticiado pelos sites de notícia tradicionais em 2007. Na época, somente sites de jornalismo especializados em “celebridades” ou sites e blogs de fofoca falaram sobre o vazamento do vídeo íntimo. Esse se tornou um dos casos mais emblemáticos quando se fala em vazamento de imagens íntimas. O próprio fato de ser um caso emblemático e não ter sido noticiado revela como os portais ou agências de notícias segmentam as reportagens. Uma diferença considerável é a maneira como a socialite lidou com a situação, ao menos publicamente, por meio de suas declarações sobre o vazamento das imagens. Em momento algum ela negou ser a mulher das imagens e também declarou que fez o filme e as fotos porque “estava com tesão”. Fazendo uma análise, mesmo que superficial, sobre a carreira de Kim Kardashian, acredito que ela capitalizou com a divulgação de suas imagens. Pois foi partindo desse fato ela ganhou um espaço na mídia mundial, criando um programa de televisão no estilo reality-show em que ela e sua família aparecem em situações do dia a dia fazendo propaganda de várias marcas famosas e com empresas fazendo parcerias e comercializando a sua marca, sua personalidade. No entanto, há notícias que nos mostram que os meios sociais, econômicos e culturais aos quais as mulheres expostas têm acesso para lidar com a aparição indevida variam muito, sobretudo em relação à idade das mulheres, e são essas notícias que serão analisadas agora.

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http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2014/09/hackers-divulgam-supostas-fotos-de-kim-kardashian-e-maisfamosas-nuas.html

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3.3 – Imagens íntimas e as adolescentes

A partir do levantamento, do ano de 2009 em diante, percebo uma associação que os portais de notícias fizeram entre o envio e a viralização de imagens com conteúdo íntimo como um comportamento praticado por jovens e adolescentes. Nesse ano, dezessete matérias contendo no título a palavra sexting foram feitas nos dois portais de notícia. A matéria “Mania do sexting cresce entre adolescentes britânicos” 47 foi publicada em agosto de 2009 e aparece com esse título tanto no G1 quanto na Folha de São Paulo, fazendo a associação direta entre adolescentes e o ato de produzir e mandar imagens íntimas. Esse conteúdo é traduzido da agência de notícias Reuters e fala acerca do contexto britânico. Na mídia brasileira, é a primeira tentativa de classificação dessa ação utilizando o termo de sexting. Antes dessa matéria, o termo foi citado em reportagens que contam casos ocorridos nos Estados Unidos, em maio de 2009. Essa notícia destaca a preocupação de que o ato de tirar fotos e gravar vídeos íntimos traz problemas de segurança para os jovens, e ainda ressalta que as principais atingidas são as meninas, porque elas seriam “pressionadas a tirar e distribuir fotos íntimas por seus namorados”. Outra preocupação que o conteúdo também apresenta é o caso de alguma dessas imagens cair em “redes de pedofilia”, o que iria expor os jovens (moças e rapazes) a um perigo “real”. A matéria é idêntica nas duas publicações, com as mesmas falas escolhidas. Nessa reportagem, só existe a fala de uma especialista, a diretora do Centro de Proteção e Exploração On-Line (CEOP, na sigla em inglês). Um dos discursos dela é “Temos cada vez mais crianças produzindo imagens sexuais delas mesmas, e com isso vemos o desenvolvimento normal da curiosidade sexual das crianças se traduzindo em propriedade pública”. Ou seja, a grande preocupação é a de proteger as crianças e adolescentes dessa exibição. Em 2010, uma matéria do site G1 relaciona diretamente o ato de produzir e enviar fotos com conteúdo íntimo à faixa etária de crianças e adolescentes brasileiros: “Adolescentes aderem ao sexting e postam fotos sensuais na internet” 48. Logo no lead, essa matéria dá uma origem ao termo sexting e estabelece uma faixa

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http://www1.folha.uol.com.br/tec/2009/08/604761-mania-do-sexting-cresce-entre-adolescentesbritanicos.shtml http://g1.globo.com/Noticias/Tecnologia/0,,MUL1254343-6174,00MANIA+DO+SEXTING+CRESCE+ENTRE+ADOLESCENTES+BRITANICOS.html 48 http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2010/05/adolescentes-aderem-ao-sexting-e-postam-fotos-sensuais-nainternet.html

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etária bem definida, além de colocar uma razão pela qual os jovens produziriam e postariam imagens íntimas na internet. “Em busca da fama virtual, adolescentes de 12 a 17 anos estão aderindo cada vez mais ao sexting. O fenômeno, criado por jovens nos EUA há cerca de cinco anos, chegou recentemente ao Brasil. O termo é originado da união de duas palavras em inglês sex (sexo) e texting (envio de mensagens). Para praticar o sexting, meninos e meninas produzem e enviam fotos sensuais de seus corpos nus ou seminus usando celulares, câmeras fotográficas, contas de e-mail, salas de bate-papo, comunicadores instantâneos e sites de relacionamento”. A matéria, afirmando que o termo sexting nasceu nos Estados Unidos, estabelece uma unidade de tempo, uma referência, que depois é seguida e destacada em outras matérias. O próximo parágrafo associa a produção das imagens ao preenchimento de algum tipo de lacuna em relacionamentos sexuais e amorosos, e o alerta das instituições de poder para o risco das meninas para a “pornografia infantil” e para a “prostituição”. Os adeptos também mandam mensagens de texto eróticas no celular ou internet com convites e insinuações sexuais para namorados, “ficantes”, paqueras, pretendentes ou amigos. A prática preocupa representantes da Polícia Civil, do Ministério Público de São Paulo e entidades civis de preservação dos direitos humanos na internet ouvidos pelo G1. Todos alertam para o risco da pornografia infantil e prostituição. No próximo parágrafo, aparece a seguinte fala: “‘Vejo isso como um perigo muito grande. O pedófilo ou o aliciador percebe isso e começa a ganhar intimidade. Isso acaba sendo porta para prostituição’, afirmou o promotor Tales de Oliveira, do Departamento de Execução da Infância e Juventude de São Paulo, ao G1”, indicando que seria a ingenuidade dos jovens em produzir e divulgar essas imagens que os coloca expostos aos perigos do sexo (Rubin, 1998), e que caberia às forças do Estado e da família proteger e controlar esse impulso do jovem. A matéria coloca responsabilidade sobre as fotos e os vídeos produzidos e viralizados pelos próprios adolescentes em sites como Fotolog, o extinto Orkut e o YouTube. O subtítulo “Vício Virtual” começa assim: Em um dos sites de Fotolog visitados pela reportagem na quarta, havia mais de 465 mil páginas pessoais. Até as 13h, mais de 8 mil fotos tinham sido postadas. As regras de uma das comunidades não permitem postar fotos contendo, por exemplo: “lingerie, cueca, calcinha ou sutiã”; “zoom ou close-up em decotes ou em outras partes sexualmente apelativas do corpo”; entre outros. Mas, apesar das restrições, a mesma comunidade tem fotos de garotas de 15 e 16 anos de biquíni em frente a espelhos ou cobrindo os seios apenas com as mãos. Algumas páginas pessoais têm música. Numa delas, era possível escutar uma com letras de cunho sexual enquanto a foto de uma garota de 17 anos, usando fio-dental, tremia. (G1, 2010)

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A matéria também traz definições do que é “sexual” e como é um “comportamento sexual”, falando em “partes sexualmente apelativas do corpo” e outros signos que são considerados sexuais, como lingerie e fio-dental. Todo o discurso da matéria tem foco em falar diretamente com pais e responsáveis por esses jovens, e não com os próprios adolescentes, no sentido de que eles seriam muito vulneráveis para entender o que significa de verdade uma imagem íntima espalhada na rede. Ao mesmo tempo, fala que os adolescentes tiram essas fotos com a tentativa de ganhar “fama” e “chamar atenção”. O próprio subtítulo associa a produção das imagens a um tipo de vício, e caberia aos responsáveis cuidar desses jovens. Seguindo a mesma tendência, em 2010 foi feita uma reportagem que conta o caso de dois jovens, uma menina de 14 e um rapaz de 16, os dois praticavam atos sexuais que estavam sendo transmitidos ao vivo pelo Twitter. A matéria com o título “Adolescentes são identificados após exibir cenas de sexo na internet” 49 não fala da denominação sexting, mas possui um tom de preocupação pelo fato de serem jovens e adolescentes os produtores dessas imagens íntimas, e que eles seriam, de novo, muito ingênuos para entender a real significância e consequência dessa publicação. De acordo com a história divulgada, o adolescente afirmou que a menina havia perdido uma aposta em um jogo de cartas on-line e que as roupas dela seriam tiradas de acordo com o número de espectadores. Eles chegaram a praticar atos sexuais. Segundo o delegado que investigou o caso, ele foi avisado sobre o vídeo, que teria tido cerca de 25 mil visualizações, por meio de seu Twitter pessoal. Os adolescentes também foram identificados com a ajuda da internet, e prestaram depoimentos acompanhados de seus pais. Na matéria aparece a fala do delegado de repressão a crimes informáticos, que diz que “Os adolescentes contaram que se conheceram há menos de um mês e teriam se encontrado pessoalmente pela primeira vez na sexta-feira (23)”. Esse parágrafo indica que os adolescentes não tinham um envolvimento afetivo, sentimental, e esse ponto é bastante significativo, já que a condição de se estar em um relacionamento amoroso foi usada como justificativa para a produção das imagens em outras matérias já analisadas. Esse fator nos indica o quanto os jovens são “inocentes” por produzirem essas imagens sem a justificativa do relacionamento amoroso. Vi na pesquisa também narrativas que falam da divulgação de imagens íntimas sem 49

http://g1.globo.com/brasil/noticia/2010/07/adolescentes-sao-identificados-apos-exibir-cenas-de-sexo-nainternet.html

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consentimento e adolescentes que sofrem grande humilhação social, sofrendo impactos muito profundos em suas vidas. O questionamento levantado é se são esses impactos profundos, somados ao fator das imagens íntimas, que fazem essas histórias serem dotadas dos critérios de noticiabilidade (Meditsch). Um caso bastante significativo foi o de uma jovem do Piauí que cometeu suicídio por ter imagens íntimas vazadas. Ela se enforcou com o fio da prancha alisadora de cabelo. A primeira notícia sobre o caso é “Polícia investiga morte de garota que teve vídeo íntimo divulgado no Piauí” 50. O título, de cara, nos mostra a participação ativa da polícia no caso, sobretudo em função da morte51. E coloca, também, qual a natureza do vídeo e associa o seu vazamento com o desfecho trágico. De acordo com as notícias, o que teria motivado o suicídio seria o vazamento de um vídeo íntimo em que a adolescente aparece mantendo relações sexuais com outros dois jovens, uma moça e um rapaz. No parágrafo “A adolescente chegou a postar mensagens de despedida na conta que mantinha em uma rede social no mesmo dia em que foi encontrada morta. Em uma delas, Julia parecia se despedir dos pais. ‘Eu te amo, desculpa eu n ser a filha perfeita, mas eu tentei... desculpa desculpa eu te amo muito’, postou a garota. Antes, Julia havia publicado ‘É daqui a pouco que tudo acaba’. A última mensagem deixada na rede foi ‘E tô com medo, mas acho que é tchau pra sempre’, postou”. Por meio desse parágrafo, é possível ver o arrependimento da adolescente e a preocupação em ser uma “filha perfeita”, ou seja, uma preocupação com a opinião dos pais. A família comentou que a menina nunca disse nada em relação ao vazamento das imagens íntimas e que foi pega completamente de surpresa 52. Outro caso que aconteceu praticamente ao mesmo tempo e teve o mesmo final é o suicídio de uma jovem de 16 anos no Rio Grande do Sul que havia mostrado os seios para o namorado da época, pela webcam. O rapaz salvou as imagens e compartilhou com amigos. A garota não aguentou a pressão social e acabou tirando a própria vida. A Folha de São Paulo fez uma matéria associando os dois casos “Garotas foram encontradas enforcadas após

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http://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2013/11/policia-investiga-morte-de-garota-que-teve-video-intimodivulgado-no-piaui.html O vídeo em que a jovem aparece foi, durante um curto período de tempo comercializado, por R$ 4,90 e o site garantia o envio do link para o e-mail do comprador e que o nome do ‘produto’ não apareceria na fatura do cartão de crédito de prováveis compradores. A página que propunha a comercialização era intitulada como SP News e administrada por Master Web World. Outro vídeo que foi colocado à venda no site é o da jovem de Goiânia, que foi citada neste trabalho e que também teve imagens íntimas compartilhadas na internet. http://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2013/11/familia-de-julia-rebeca-diz-que-so-soube-de-video-apos-morteda-jovem.html

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fotos e vídeos publicados na internet” 53. Um parágrafo da reportagem diz “Elas tiveram a intimidade devassada com a divulgação de fotos e vídeos íntimos. E, com uma diferença de quatro dias, foram achadas enforcadas em casa; Júlia, no dia 10, e Giana, no dia 14. As suspeitas são suicídio. A polícia e familiares questionam: por que alguém espalhou essas imagens?”. Esse parágrafo também demonstra que a família e a polícia procuram uma razão para tamanho dano à vida dessas adolescentes e indica a temporalidade, que provavelmente foi o motivo para a matéria ter associado os dois casos. O pai da jovem disse em entrevista não entender a razão de ela ter tirado a própria vida: “Por que acabar com a própria vida? Por uma coisa tão pequena?”. Percebe-se a preocupação da notícia em trazer a fala de algum membro homem da família, porque ele tem o aval social de assegurar que não havia grandes “questões” com o vazamento das imagens íntimas. Após investigação do caso, a polícia civil conseguiu ligar dois adolescentes à divulgação indevida das imagens. Além do rapaz apontado como autor da imagem da estudante seminua e também divulgador, um outro jovem que recebeu a imagem foi identificado. Mais pessoas foram interrogadas, mas a polícia não conseguiu comprovar que eles haviam distribuído ou armazenado a imagem. Antes de a jovem tirar a própria vida, ela não conversou com nenhum familiar sobre o fato. Nesse caso específico, nenhum adulto foi autuado54. É percebido por meio desses casos analisados até agora que essa realidade descrita e traduzida pela mídia se mostrou muito dura no caso das meninas que tiraram a própria vida, por conta da vergonha e do estigma. Uma realidade tão dura que elas não tiveram coragem nem de dividir com familiares e amigos, cabendo apenas alguns breves momentos de despedida ao mundo por meio das redes sociais. Na região do triângulo mineiro, em meados do ano de 2014, dois perfis do Instagram, um deles com o nome de “Putas do Araxá”, postaram várias fotos vazadas de meninas e adolescentes nuas e seminuas da região. A matéria, com o título “Perfil feito com fotos de adolescentes nuas é investigado em Araxá” 55, mostra que é um caso policial. O nome do

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http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/12/1379103-garotas-foram-encontradas-enforcadas-apos-fotose-videos-publicados-na-internet.shtml 54 http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2013/12/policia-responsabilizara-2-em-caso-de-jovem-mortaapos-foto-intima-no-rs.html 55 http://g1.globo.com/minas-gerais/triangulo-mineiro/noticia/2014/02/perfil-feito-com-fotos-de-adolescentesnuas-e-investigado-em-araxa.html

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perfil nos levanta questionamentos em relação a essa “moral” sexual assimétrica, por meio da qual as adolescentes expostas são nomeadas “putas” somente por terem produzido imagens íntimas. O lead começa dando destaque à investigação policial, que tenta achar os culpados, e também diz que o período de tempo que esses perfis ficaram on-line não foi muito grande, mas o suficiente para que a mãe de uma das meninas envolvidas dissesse que a família está passando por momentos difíceis. Mais do que a garota afetada, percebe-se que familiares próximos também sofrem com a viralização dessas imagens. A matéria mostra uma imagem, a qual teria sido postada pela mesma pessoa que divulgou as fotos das adolescentes, que contém o seguinte texto: Oi gente, hoje e o último dia que vou postar fotos, não vou excluir o instagram pelas meninas, mas sim pelas famílias delas! Espero que sirva de lição para todas que estão sendo difamadas. Fiquem tranquilas meninas vou remover a página em breve, (sic). (G1, 2014)

Essa fala retirada da imagem é reveladora de uma moralidade sexual assimétrica, e que, em razão da exposição do corpo e de uma sexualidade não adequada aos comportamentos reconhecidos socialmente como femininos, essas jovens mereceriam serem difamadas. O próprio ato de apagar a página no início da investigação pouca coisa significa, pois essas imagens são copiadas e reproduzidas por qualquer pessoa, como o parágrafo a seguir mostra “‘Os crimes de internet precisam de mais atenção, porque as pessoas não têm medo de expor ninguém, afinal, é um crime que ainda é quase impune. Muitas vezes não existem suspeitos e alguém cria um perfil anônimo, mostra dezenas de garotas e ninguém sabe quem é. Isso encoraja o criminoso’, desabafou”. Entende-se nesta fala, e em algumas outras já apresentadas aqui, a necessidade e o desejo de que a pessoa que divulgou as imagens sofra as punições legais, mesmo que não isso traga reparação concreta aos danos que essas mulheres expostas sofreram. A punição aparece no sentido do exemplo, para que todos saibam que quem tem esse tipo de atitude de divulgar imagens íntimas tem grande probabilidade de sofrer alguma consequência legal. Matérias que são traduzidas de agências internacionais de notícia e, ao contrário das outras, podem aparecer nos editoriais de tecnologia e ciência, relacionam as imagens íntimas a um comportamento de jovens e adolescentes. Uma notícia da Folha de São Paulo do ano de 2012 traz uma pesquisa realizada pelo Departamento Médico da Universidade do Texas que,

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segundo os autores, dá indícios sobre o comportamento sexual dos adolescentes e relaciona o envio de imagens íntimas a “condutas sexuais perigosas”. Com o título “Sobe número de adolescentes que enviam fotos de si mesmos nus por celular ou e-mail” 56, uma matéria da agência de notícias internacional EFE já dá, na própria apresentação, a indicação de que eles têm um controle do número de adolescentes que produzem e enviam imagens íntimas e os meios que eles utilizam para a produção de divulgação dessas imagens, que seriam o celular e o e-mail. O primeiro parágrafo da notícia diz “Quase 30% dos adolescentes enviam fotos de si mesmos nus pelo telefone celular e por e-mail, mais do que se achava, segundo o primeiro estudo do impacto do chamado sexting sobre a saúde pública, informou nesta segunda-feira o Proceedings of the National Academy of Sciences”. Percebe-se que a preocupação, como é dito, é com a saúde pública, ou seja, este é um caso em que as autoridades devem agir para a prevenção. O próximo parágrafo da matéria diz “O estudo foi feito pelo Departamento Médico da Universidade do Texas, em Galvestin, e segundo seus autores dá indícios sobre o comportamento sexual em geral dos adolescentes e, em particular, avalia a participação dos jovens quanto a condutas sexuais perigosas”. As imagens íntimas nesta matéria são o tempo todo relacionadas a uma conduta sexual perigosa, sobretudo para jovens e adolescentes, e a vida sexual desses jovens aparece como um assunto de muito interesse para os pesquisadores. Os adolescentes são considerados “ingênuos” e, apesar de este ser um comportamento comum, traz sérias consequências para a vida desses jovens. Como o parágrafo a seguir mostra, “Aparentemente, o sexting é a versão moderna do ‘eu mostro o meu e você mostra o seu’, os médicos pesquisadores e pais consideram que esse seja um comportamento que se tornou tão comum e não perdoa sua ocorrência”, assinalou o autor principal do estudo Jeff Temple, professor do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia”. Os dois últimos parágrafos da notícia indicam uma “moral sexual dúbia”, que assinala as relações de poder desiguais entre os gêneros. “Os pesquisadores também avaliaram a ligação entre o sexting e as atividades sexuais e descobriram que tanto os meninos quanto as meninas com esse comportamento são muito mais propensos a ter atividade sexual que seus pares que não praticam sexting. Além disso, as adolescentes que enviam fotografias de si mesmas nuas têm uma prevalência de comportamento sexual de risco mais alta que entre os meninos”. Devemos nos questionar por que esse comportamento é considerado de mais alto 56

http://www1.folha.uol.com.br/tec/2012/07/1114316-sobe-numero-de-adolescentes-que-enviam-fotos-de-simesmos-nus-por-celular-ou-e-mail.shtml

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risco para as meninas do que para os rapazes. E o porquê dessa definição “alto risco”. O que é colocado em risco quando jovens e adolescentes enviam imagens nuas de si mesmos? A pesquisa foi feita em escolas nos Estados Unidos, mas a matéria foi realizada por uma agência de notícias mundial e traduzida para o português, sendo também significada dentro da realidade social brasileira. Entretanto, quando as imagens íntimas fazem relação com adolescentes e crianças, existe a preocupação de que esse comportamento leve os jovens à pornografia infantil e à pedofilia, e muitas vezes as próprias matérias trazem esses paralelos, como será visto a seguir.

3.4 – Imagens íntimas e a pornografia infantil

No portal de notícias G1 e na Folha de São Paulo, foram levantadas cinquenta e três notícias com a palavra-chave sexting, e todas estavam relacionadas à faixa etária de adolescentes e jovens. Algumas vezes, a trajetória das imagens íntimas se cruza com fronteiras bastante turvas, que as associam com pornografia infantil e pedofilia no discurso midiático. A grande questão que se coloca pela mídia nesse caso é a idade de consentimento dos adolescentes e quão “vulnerável” a “internet os deixou”, como é possível notar nas matérias analisadas acima. As trocas de imagens íntimas aqui aparecem como componentes para comprovar uma atividade criminosa, como a pedofilia e a pornografia infantil. A grande questão é colocada quando, por exemplo, a idade de quem produziu as imagens e idade da pessoa que as espalhou é bastante próxima, sendo ambos adolescentes, o que causa transtornos nos discursos para os meios de divulgação midiáticos. Um caso que exemplifica foi noticiado pela Folha de São Paulo. Uma adolescente de 17 anos foi condenada por pedofilia no Canadá após compartilhar fotos de outra garota nua na rede. A matéria tem o título “Canadense de 17 anos é indiciada por pornografia infantil por prática de sexting” 57. O título relaciona o ato do sexting à pornografia infantil, e apresenta uma adolescente em uma idade limite entre o término da adolescência e o início da vida adulta, pelo menos no sentido jurídico dessa faixa etária. Segundo a notícia, ela teria compartilhado as fotos por ciúme, pois a jovem exposta 57

http://www1.folha.uol.com.br/tec/2014/01/1397021-canadense-de-17-anos-e-indiciada-por-pornografiainfantil-por-pratica-de-sexting.shtml

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era ex-namorada do atual namorado da “acusada”. O seguinte parágrafo diz “A corte disse, em decisão na última sexta-feira (10), que o intuito da acusada era de ‘humilhar e intimidar a vítima’, e que as imagens e o tom das mensagens eram ‘cruéis, rudes e antagonistas’. As imagens em questão ‘encaixam-se na definição de pornografia infantil’, disse a juíza Sue Wishart, responsável pelo caso, à rede CTV News”. Os sentimentos descritos acima são semelhantes aos de outros casos aqui já mostrados, como “humilhar” e “intimidar” a mulher que teve as imagens íntimas expostas; a grande diferença é que foi uma outra menina quem divulgou as imagens. No entanto, as questões relacionadas a um relacionamento amoroso estavam presentes, e esta seria uma “vingança” realizada. Como a notícia descreve, em 2014, no Canadá, a troca de imagens sexuais entre adultos era permitida, e por isso a denúncia não se manteria, pois esta seria somente uma simples troca de imagens sexuais entre adolescentes, a “vítima” e a “acusada” com idades semelhantes. No entanto, o advogado de defesa da adolescente de 17 anos afirma se preocupar com o futuro da moça, porque, mesmo se for inocentada, ela carregará para o resto da vida o “estigma da pedofilia em suas costas”. O gênero aqui também aparece como uma corresponsabilidade. A mulher é culpada tanto por produzir as imagens, pois não deveria ter feito isso, como também por espalhar as imagens, porque fez “por maldade”. Mesmo com a associação entre a produção das imagens íntimas e a pornografia infantil, o que coloca mais uma variável na pesquisa, encontramos outros pontos em comum com as narrativas que falam de imagens íntimas, sobretudo nos que dizem respeito aos sentimentos envolvidos na viralização dessas imagens, que normalmente são sentimentos de “vergonha”, “humilhação” e “vingança”. De acordo com a Folha de São Paulo, a própria Polícia Federal brasileira considera pornografia infantil casos em que imagens íntimas são trocadas ou viralizadas por jovens e adolescentes com idades mais próximas. Como nos mostra a notícia com o título: “Prisões em flagrante por pornografia infantil mais que duplicam em 2013 no Brasil” 58. A notícia diz que essas prisões em flagrante são de pessoas que possuem imagens consideradas pornografia infantil, e não incluem os casos de abuso sexual ou estupro. O parágrafo fala sobre a relação da pornografia infantil com a internet: “Esse tipo de crime tem basicamente origem no mundo digital e na internet, pois envolve a produção, distribuição, comercialização, divulgação e posse de material em que crianças aparecem 58

http://www1.folha.uol.com.br/tec/2014/02/1417794-numero-de-prisoes-em-flagrante-por-pornografia-infantilmais-que-duplica-em-2013-no-brasil.shtml

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fazendo sexo ou simulando o ato, com fotos e vídeos”. Dentro dessa definição, as imagens íntimas produzidas e compartilhadas e armazenadas por menores de idade também entram na definição de “pornografia infantil”. Outro parágrafo também faz a associação direta entre esses casos e a internet: “Apesar do crescimento, números reportados nos Estado Unidos indicam que os casos de tais crimes na internet são grandes. Em 2011, por exemplo, o Facebook reportou ao NCMEC (Centro nacional para crianças abandonadas e abusadas, na sigla em inglês) 81.017 casos de pornografia infantil. O Google registrou 55.960”. Tais informações indicam que existe uma preocupação dos grandes conglomerados de internet com o conteúdo e a viralização dessas imagens. A notícia utiliza um representante da ONG SaferNet como fonte, que faz declarações que associam o sexting à pornografia infantil. No parágrafo “Aparentemente, o sexting é a versão moderna do ‘eu mostro o meu e você mostra o seu’, os médicos pesquisadores e pais consideram que esse seja um comportamento que se tornou tão comum e não perdoa sua ocorrência”, isso não significa que há menos criminosos mais velhos. “O uso da internet é maior entre os mais novos. Além disso, o sexting (troca de mensagens com imagens e vídeos de caráter sexual) resulta, em muitos casos, na divulgação de conteúdo. Isso faz a prática estar ligada aos mais jovens”, diz Oliveira. Entretanto, há notícias que falam das imagens íntimas que seriam provas de uma ação criminal ou, ainda, que as imagens íntimas facilitariam o acesso de pessoas consideradas “pedófilas” às crianças e adolescentes, “comprovando” o discurso de preocupação das autoridades que já apareceu em outras notícias analisadas. A notícia é de um estudante de Direito, de 20 anos, preso em Goiás no ano de 2013, suspeito de divulgar na internet fotos íntimas de uma menina de 11 anos que ele conheceu nas redes sociais. A matéria “Aluno de direito é preso por postar fotos íntimas de menina de 11 anos” 59. O título indica que o motivo da prisão é a divulgação indevida das imagens íntimas. O lead da notícia é este: “Um estudante de Direito, de 20 anos, foi preso em Rio Verde, no sudoeste de Goiás, suspeito de divulgar na internet fotos íntimas de uma menina de 11 anos que ele conheceu nas redes sociais. De acordo com os pais, a garota chegou a ser chantageada por colegas de escola, que exigiam dinheiro para não divulgar as imagens. 59

http://g1.globo.com/goias/noticia/2013/11/aluno-de-direito-e-preso-por-postar-fotos-intimas-de-menina-de-11anos.html

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Deprimida e envergonhada, a menor teve até de trocar de escola e parou de fazer todas as atividades, como aulas de teatro e inglês”. Percebe-se neste parágrafo que a internet é um ambiente perigoso, que facilitou o encontro entre “vitima” e “agressor”, e que os sentimentos da vítima também se repetem, sendo representados aqui como “depressão” e “vergonha”, e também acrescenta um elemento a mais nessa narrativa, que são os colegas de escola que estavam cobrando dinheiro para não viralizar mais ainda essas imagens íntimas. Outro parágrafo associa o jovem de 20 anos à pedofilia, em virtude das imagens íntimas de menores que o homem possuía em seu celular. “No celular do suspeito, a polícia encontrou mais de 6 mil de fotos pornográficas de menores. O jovem, que também trabalha como vendedor em uma loja de móveis e eletrodomésticos, foi localizado na sexta-feira (22), após uma denúncia feita pela família da menina. ‘Ela vinha sofrendo, perdendo noites de sono. Eu desconfiava que tinha algo errado, mas não consegui detectar o que era. Até que um dia fui chamado pela professora e pela coordenadora da escola, e lá ela me mostrou no celular as fotos’, disse o pai, que não quis se identificar”. Três envolvidos são citados nesse parágrafo, a família, que fez a denúncia, a escola, que percebeu a situação perigosa, e a polícia, que investigou e prendeu o suspeito, e de novo, fala dos sentimentos da menina, que são de sofrimento vivido no corpo, com a perda de sono. A notícia também destaca a fala do delegado responsável por investigar o caso e prender o homem, nos parágrafos “O delegado regional de Rio Verde, Danilo Fabiano Carvalho, disse que o suspeito também tentou chantagear a garota por causa das fotos. Segundo ele, o rapaz chegou a convidá-la para um encontro onde eles pudessem ter uma relação sexual. ‘Nessas conversas tidas com ela, depois que teve acesso às fotos, ele havia oferecido inclusive drogas e chamou ela para ir ao motel para manter relações. Ele utilizava, como uma forma de pressão, e de ameaça inclusive, as fotos que ela mesmo havia passado para ele. Poderia ocorrer um mal maior, mas foi evitado. Agora, é claro, a intimidade dessa criança foi violada e, consequentemente, ele será responsabilizado pelos atos praticados’, explicou o delegado”. Compreende-se um tom em que a intimidade violada não se equipara, por exemplo, com algum tipo de abuso sexual físico, e que por conta de uma ação rápida da polícia um “mal maior” foi evitado, apesar de todos os sentimentos de “humilhação” descritos como sendo da menina. Percebe-se também que as imagens íntimas são utilizadas como uma “moeda”, por meio da qual é possível chantagear a mulher, ou no caso a garota, para ter

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relações sexuais, por exemplo, como já foi citado em uma matéria já analisada, ou ter acesso a mais imagens. Nesse caso, a idade aparece como um fator mais preponderante que o gênero nos discursos midiáticos, em alguns exemplos, pois garotos mais novos podem sofrer o mesmo tipo de “chantagem”, uma vez que as imagens íntimas são usadas, preponderantemente, como moeda de troca para definir uma “obrigatoriedade” das relações sexuais. Uma dessas ocorrências foi noticiada quando agentes da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente em Roraima, no ano de 2014, prenderam um homem de 31 anos suspeito de pedofilia. A notícia tem o título “Em RR, suspeito de pedofilia é preso em flagrante com garoto de 13 anos”³¹. Essa notícia específica apresenta falas somente dos agentes se segurança, no caso, da delegada responsável pelo caso, como o parágrafo mostra: “De acordo com a delegada Maria de Lourdes Duarte Fernandes, no último sábado (8), o pai de um adolescente de 13 anos o flagrou tirando foto das partes íntimas para enviar ao suspeito de pedofilia. Ao verificar o celular do filho, ele encontrou conversas nas quais o homem manifestava o desejo de praticar atos libidinosos com o garoto, bem como solicitava fotos e vídeos íntimos dele, de acordo com depoimento prestado na delegacia”. Mais uma vez, a família e a polícia estão presentes no discurso. No próximo parágrafo, “Ainda conforme informações de Maria de Lourdes, o suspeito passou a ser monitorado, sendo preso nesta quinta no momento em que conversava com o adolescente. Ela conta que no celular dele, apreendido pela polícia, havia um ‘farto material pornográfico’. Ao ser ouvido pela polícia, o homem confessou ‘ter uma fraqueza por se envolver com adolescentes do sexo masculino’”. Nesse item, há associação entre as imagens íntimas, utilizadas para chegar até o homem, com a pedofilia e ainda um terceiro elemento, que seria a homossexualidade, por destacarem a preferência do acusado em “adolescentes do sexo masculino” 60. Outro parágrafo da matéria, “Em depoimento, ele diz sempre se sentir culpado depois da prática das ‘condutas delituosas, tendo inclusive já se flagelado por causa desse tipo de comportamento’. Segundo a titular do DPCA, o suspeito disse ao adolescente que é coordenador de um clube de futebol e prometeu levá-lo para treinar, caso eles tivessem relações íntimas”. 60

Essas associações entre a pedofilia e a homossexualidade não podem deixar de ser notadas no discurso midiático, porque, tanto no discurso médico e científico, durante muito tempo essas associações foram feitas. Acreditamos que esse discurso midiático pode ser um reflexo desses discursos. (Fry, 1982)

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A matéria demonstra que outros artifícios são usados, além das imagens íntimas, para conseguir relações sexuais, e que eles são um meio de destacar a “ingenuidade” do menino de 13 anos em manter contatos com o homem acusado e, apesar de um pretenso arrependimento do suspeito, o ele já foi preso em flagrante com o mesmo tipo de comportamento.

3.5 – Imagens íntimas e a narrativa de vingança

No levantamento, somente com as palavras-chave que associam diretamente a divulgação viralizada e não consentida das imagens íntimas às narrativas de vingança como “vingança pornô”, “pornografia de vingança” e revenge porn, foram levantadas quarenta notícias em ambos os portais, diretamente relacionadas à temática. Além, é claro, de outros casos que, apesar de não relacionarem o termo, colocam em seu conteúdo que o motivo da divulgação das imagens seria causar algum dano, como o caso já citado da jovem de Goiânia, ou mesmo da mulher de Roraima. Viu-se também que as primeiras reportagens que utilizam o termo foram divulgadas em 2008, tendo nesse ano uma notícia veiculada; somente no ano 2013, foram quatorze; e em 2014, vinte notícias divulgadas, e a maioria das notícias já trazia no título essas denominações. Esses dados já demostram o quanto essa narrativa é comum no discurso midiático. A notícia do G1 de 2013 tem o título “Jovem denuncia ex-namorado por ameaça e desabafa contra foto nua” 61. O lead da notícia é “Uma jovem de 21 anos, aluna de Letras da Universidade de São Paulo (USP), procurou a internet e a Polícia Civil de São Paulo para denunciar o ex-namorado, um búlgaro de 26 anos, também estudante do mesmo curso na mesma universidade, por postar fotos íntimas dela no Facebook e de ameaçá-la de morte após o fim do namoro”. Percebe-se que neste caso a divulgação indevida da imagem íntima foi uma forma direta de atingir a mulher por conta do término de um relacionamento, e que, além dessa divulgação, o caso se torna maior por conta da ameaça contra a vida da jovem, novamente a polícia aparece como o órgão que pode proteger, ou pelo menos deter, o homem que está causando danos. O parágrafo traz a seguinte fala da jovem “Em entrevista nesta segunda-feira (18) ao 61

http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2013/11/jovem-denuncia-ex-namorado-por-ameaca-e-desabafa-contrafoto-nua.html

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G1, (nome completo da jovem), estudante de Letras da Universidade de São Paulo, falou que pensou em suicídio após a publicação, em 31 de outubro, de fotografia na qual ela aparece nua. ‘Eu recebia muitas mensagens de pessoas falando do meu corpo, e tive vontade de morrer’, disse a universitária, que revelou o caso na sua página pessoal. Quase um mês antes, ela tinha denunciado o ex à polícia por ameaças de morte”. Identifica-se neste parágrafo a aproximação dos sentimentos descritos nas outras notícias de “vergonha” e “humilhação”. O discurso escolhido da jovem para explicar a história na notícia foi este “Terminamos em 15 de julho. A gente brigava muito. Ele achou que foi porque eu queria farrear e estava traindo. Mas nunca o traí. Terminei porque o namoro era desgastante. Então meu ex-namorado publicou uma foto minha em grupos de pornografia do Facebook. Ele tinha exposto uma foto do meu rosto, sem sutiã. Eu tirei print screen como prova de que foi ele”. Nesta fala, há uma narrativa bastante comum nos casos de violência doméstica, caracterizados por brigas envolvendo o relacionamento amoroso. (Gregori, 1993) A matéria é dividida pelo subtítulo “Queixa-crime”, porque, como o homem que está sendo acusado pelos crimes não é brasileiro e não foi encontrado, nem pela reportagem, nem pela polícia, esse é um mecanismo pelo qual a Polícia Civil consegue iniciar uma investigação sobre o caso, como explica o parágrafo: “Pela lei, Thamiris tem o prazo de seis meses para representar queixa-crime contra Kristian. Essa etapa é necessária para a polícia instaurar um inquérito para investigá-lo como suspeito dos crimes. Após a conclusão da investigação, a vítima poderá ter elementos para dar entrada num processo contra o acusado”. A notícia é concluída em um parágrafo que relaciona os casos da jovem com o das adolescentes que cometeram suicídio. Levanto, então, a questão de que, muitas vezes, as matérias identificam as mulheres que tiveram a imagem exposta com nome, sobrenome e idade, o que muitas vezes pode ser utilizado como mecanismo de busca para encontrar e compartilhar ainda mais as notícias. Qual seria a responsabilidade que esses meios teriam em relação a essas mulheres? Como já foi citado algumas vezes, em casos relacionados a mulheres famosas, existe a ameaça direta de processo aos meios midiáticos e aos mecanismos de busca da rede. Mas o que as mulheres “comuns” podem fazer em relação a essa exposição pelas próprias notícias? O fato do “não aceitar” o término do relacionamento é sempre uma constante nas narrativas de vingança. Um caso bastante representativo aconteceu com uma jornalista do Estado no Paraná. Tanto o portal de notícias G1 quanto a folha de São Paulo fizeram matérias utilizando a jornalista como fonte. Essas reportagens foram feitas em dois períodos de tempo

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diferentes, e têm como link as imagens íntimas divulgadas. Essas matérias mostram diferentes desfechos para as mulheres que foram expostas na rede sem o consentimento delas. A primeira notícia é do site G1, do ano de 2011, e tem como título “‘Dormia com o inimigo’, diz mulher que teve fotos publicadas pelo ex” 62. A própria descrição do título da notícia demostra a gravidade da divulgação dessas imagens para a mulher, e também a passionalidade dos sentimentos, porque o homem é descrito como um “inimigo”. O lead da notícia era “A jornalista (nome da mulher) comemora ter obtido na Justiça uma vitória contra o ex-namorado, que foi condenado por injúria e difamação por ter postado na internet fotos íntimas dela. O caso ocorreu no fim de 2005 logo após o fim do namoro. Em entrevista ao G1 nesta quarta-feira (17), um dia após a divulgação da sentença, (nome da jornalista) disse que o episódio foi um pesadelo em sua vida. ‘É a tal sensação de estar dormindo com o inimigo’, disse”. As palavras “comemora” e “vitória” indicam que a condenação na Justiça do homem acusado é percebida de maneira positiva em um primeiro momento. Mas a frase de maior impacto é aquela em que a mulher compara a sensação de ter as imagens íntimas divulgadas a um “pesadelo”, e o homem com quem ela mantinha um relacionamento descrito pela matéria como um relacionamento amoroso com um “inimigo”. O seguinte parágrafo “Moradora de Maringá, no Norte do Paraná, a jornalista conta que o fim do relacionamento motivou o ato do ex-namorado, que atua como empresário na cidade. ‘Depois de quase quatro anos de namoro, percebi que ele não se dava bem com os meus dois filhos e que um possível casamento não daria certo. Aí resolvi terminar de vez, foi quando ele afirmou por várias vezes que não aceitava e ficou totalmente transtornado, me ameaçava por telefone quase todos os dias’, explicou Leonel”. Percebe-se novamente indícios de narrativas de “ciúme”, causado pela não aceitação do término do relacionamento. O parágrafo com a fala da jornalista: “‘Foi a partir daí que o pesadelo começou. Ele disse que não tinha medo da Justiça e, além de publicar minhas fotos, informava que eu era garota de programa e ainda divulgou o telefone da minha casa, do meu trabalho e o celular do meu filho. Eu comecei a receber ligações do Brasil inteiro perguntando se eu estava disponível, me senti muito mal, decepcionada, não tenho nem palavras pra descrever os péssimos momentos que passei (...)’, relatou”. Novamente, a associação das imagens íntimas a uma publicização do corpo da mulher, e não somente da sua imagem, porque a partir do momento em que sua imagem está 62

http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2011/08/dormia-com-o-inimigo-diz-mulher-que-teve-fotos-publicadaspelo-ex.html

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em um ambiente público/privado, como a internet, o corpo também é tomado como público. A notícia resumiu, dessa maneira, os sentimentos da jornalista durante a entrevista: “Emocionada, Rose contou que, além de se sentir excluída da sociedade, perdeu amigos, emprego e pediu para que o filho mais velho fosse morar em outro país junto com o pai para que ele se afastasse dos boatos”. Novamente, há uma associação entre a figura da mulher como mãe protetora, que se sacrifica pelo bem-estar da família e principalmente pelo dos filhos. A notícia é dividida pelos subtítulos “Condenação” e “Como o crime foi desvendado”, que funcionam como separadores das declarações da jornalista de um perito em crimes digitais. No subtítulo “Condenação”, temos o parágrafo: “Seis anos após a repercussão do caso, o empresário foi condenado por injúria e difamação por ter veiculado na internet fotos íntimas da ex-namorada na mídia digital. Ele terá que prestar serviços comunitários e pagar uma indenização mensal durante um ano e onze meses no valor de R$ 1.200,00. A decisão foi em segunda instância”. Por meio desse parágrafo, entende-se que, quando o caso do vazamento de imagens íntimas acontece dentro de um relacionamento amoroso, a condenação vem no âmbito civil, e não criminal. A Folha de São Paulo escolheu o documento da sentença na Justiça para fazer a matéria sobre o caso com o título de “Empresário é condenado por publicar fotos de exnamorada na web” 63. O foco escolhido nesta matéria, como o próprio título coloca, é no fato de ser um empresário condenado na Justiça. Ao contrário do G1, a Folha não entrevista a jornalista, ela se baseia somente no documento da sentença para escrever a reportagem. Percebemos o mesmo no lead da notícia “Um empresário de Maringá, no norte do Paraná, foi condenado pela Justiça do Estado por ter publicado na internet fotografias íntimas de uma ex-namorada após o fim do relacionamento. O crime ocorreu em 2005”. Apesar de ser citada como uma “ex-namorada”, no corpo da matéria, a jornalista tem o nome completo e a idade divulgados, ao contrário do homem, que não identificado em nenhuma das matérias. Diferentemente da matéria do G1, na Folha, todo o entorno da matéria se refere às ações do empresário, como demostra o parágrafo: “O empresário, de acordo com a Justiça, também encaminhou fotografias íntimas dela por e-mail para diversas pessoas e publicou as imagens em diversos sites nacionais e internacionais de conteúdo pornográfico. Algumas dessas imagens eram fotomontagens, segundo a vítima”. É possível perceber, então, que a 63

http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/961143-empresario-e-condenado-por-publicar-fotos-de-ex-namoradana-web.shtml

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associação a sites pornográficos foi uma coisa planejada pelo homem para associar a mulher ao comércio sexual. No parágrafo “Ainda segundo a sentença, as fotos publicadas eram acompanhadas de textos cujo conteúdo descrevia a vítima como prostituta. Alguns dos textos chegaram a divulgar o telefone pessoal da mulher e o nome da empresa onde ela trabalhava”. Temos aqui uma comparação direta com a produção das imagens íntimas e a prostituição. Segundo Piscitelli (2009), dialogando com Bataille, a prostituição já é uma das marcas da transgressão, que podem ser ligadas a outras, e como já foi mostrado, o nome e contatos pessoas da jornalista foram divulgados em sites internacionais. Essa associação com a prostituição, que já foi citada em outras matérias, é, também, uma tentativa de desmoralizar publicamente as mulheres que aparecem nas imagens íntimas. O parágrafo fala da decisão judicial “Uma das juízas que votou pela condenação do empresário afirmou que a ação dele ‘inquestionavelmente destruir a sua [da vítima] reputação tanto no plano pessoal, profissional como familiar, além de lhe ter ofendido a dignidade e decoro’”. Diferentemente da matéria do G1, a Folha de São Paulo, baseada no documento da sentença, designa a jornalista como vítima e também destaca o fato de que foi uma juíza (mulher) quem deu o voto favorável à sentença de condenação do empresário, colocando o gênero como um fator de diferenciação no julgamento dela. Três anos depois, em 2014, o portal de notícias G1 fez outra matéria com a mesma jornalista, desta vez, falando da criação da ONG Marias da Internet. Mais uma vez, a publicação escolhe um título de força impactante “‘Fui assassinada’, diz mulher que criou ONG contra ‘vingança pornô’” 64. A notícia é ilustrada com uma foto da jornalista fazendo uma pose bastante altiva, de braços cruzados. O lead da notícia explica o motivo da criação da ONG: “A ONG Marias da Internet existe há um ano e já salvou algumas vidas, segundo a criadora dela, (nome da jornalista), que mora em Maringá, no norte do Paraná. O trabalho é feito para ajudar mulheres que foram vítimas de ‘vingança pornô’, ou seja, que tiveram fotos ou vídeos íntimos espalhados pela internet por ex-companheiros”. Nesse parágrafo, há a associação direta entre o termo e as pessoas, as quais tiveram algum tipo de envolvimento íntimo, como um relacionamento amoroso. A divulgação das imagens íntimas, como foi destacado nas matérias analisadas que tinham a fala das mulheres, causa muita dor emocional e transtornos sociais. É bastante forte a 64

http://g1.globo.com/pr/norte-noroeste/noticia/2014/03/fui-assassinada-diz-mulher-que-criou-ong-contravinganca-porno.html

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declaração “fui morta moralmente”, e muito significativa para esta pesquisa. A jornalista explica, na fala recortada pela reportagem, de que criou a ONG no “auge de sua dor”, como uma forma se se curar e ajudar outras pessoas. Pode-se, então, questionar aqui quais são as diferenças sociais entre as mulheres expostas. Como já foi demostrado nas análises das matérias escolhidas, algumas conseguem meios, tanto legais como psicológicos, para lidar com o vazamento dessas imagens. Outro fato que merece destaque é que os termos “vingança pornô”, “pornografia de vingança” e revenge porn são associados às imagens íntimas e à pornografia. Serão classificadas neste trabalho as imagens como eróticas no mesmo sentido que Bataille descreve o significado de erótico. No entanto, Jorge Leite Júnior nos traz o seguinte questionamento quando retoma Bourdieu (1988), a respeito da divisão entre pornografia e erotismo. Para Bourdieu, essa divisão reflete um exercido de violência simbólica para legitimar ou não determinadas representações sobre sexo e sexualidade. Diante disso, questiono o porquê da utilização dessa terminologia pelo discurso das matérias ao relacionar diretamente as imagens íntimas com conteúdos pornográficos. Essas imagens são usadas como forma de “denegrir” e “envergonhar” publicamente as mulheres expostas, quando as estas recusam a permanência em relacionamentos amorosos. Percebe-se a utilização da própria terminologia como uma tentativa de deslegitimar uma representação diferente sobre a sexualidade, ou uma sexualidade dissociada de relacionamentos amorosos.

3.6 – Imagens íntimas de homens

Mulheres e homens interagem por meio de formas físicas e virtuais nos mercados dos afetos. No entanto, é possível perceber, no decorrer da análise, que os homens não recebem o mesmo tratamento em relação ao compartilhamento não desejado das imagens íntimas. Os significados da produção e da divulgação das imagens apresentam valores sociais diferentes para homens que se relacionam com mulheres e homens que se relacionam com outros homens. Em 2011, o jogador de futebol Ronaldinho Gaúcho teve um vídeo viralizado em que ele supostamente aparecia fazendo atos sexuais. A matéria foi divulgada pela Folha de São Paulo e tem como título “Ronaldinho Gaúcho diz que vídeo que o mostra nu é montagem”36. No lead da notícia estava “O jogador do Flamengo Ronaldinho Gaúcho registrou uma ocorrência na Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI) para que se apure quem são os responsáveis por distribuir na internet um vídeo em que o atleta

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aparece em cenas íntimas e que, segundo ele, trata-se de uma montagem”. O título e o lead questionam a veracidade das imagens, um ponto que vimos ser importante no caso de mulheres famosas. O lead também levanta a possibilidade de que a divulgação dessas imagens não é uma espécie de retaliação ao término de um relacionamento amoroso do jogador, e sim uma ação orquestrada por criminosos. Em outro parágrafo, é dito que “Em comunicado divulgado no site do flamengo, o jogador definiu o vídeo como ‘ofensivo e de mau gosto’, e garantiu que levará os responsáveis à Justiça assim que forem identificados”. Nesse comunicado, o jogador não expressa sentimentos de “humilhação” ou “vergonha”, mas sim de que o fato da divulgação e associação dele com essas imagens causou mais um desagrado. Nesse trecho, a possibilidade de divulgação indevida das imagens recai sobre hackers: “Ronaldinho Gaúcho contou ainda que na quarta-feira seu site foi invadido por hackers, o que considerou no mínimo muita coincidência, por isso pediu às autoridades que investiguem se existe relação entre os episódios”. Além dessa nota, o time não deu mais comunicados e o caso não teve maiores repercussões na Folha de São Paulo nem no G1. Não podemos nos esquecer de que uma das principais definições da masculinidade na cultura ocidental é que o masculino é sexualmente ativo (Grossi, 2004), sendo a iniciação e a comprovação públicas de atos sexuais comprovações de masculinidade (Salem, 2004). O ator Murilo Rosa, que no ano de 2013 estava interpretando o Capitão Élcio, na novela Salve Jorge, teve uma imagem em um momento de sua privacidade com a esposa, a modelo Fernanda Tavares, exposta na internet. O site noticiou o fato com o título “Murilo Rosa tem foto íntima exposta na internet e sofre chantagem no Rio” 65. O ator esteve na mesma situação que Carolina Dieckmann, mas resultou em duas notícias acerca do caso. O lead da notícia explica a situação: “O ator Murilo Rosa, no ar atualmente no papel do Capitão Élcio, em Salve Jorge, foi vítima de chantagem na última sexta-feira (15). Segundo o advogado do ator, Ricardo Brajterman, informou, nesta terça-feira (19), uma foto de Murilo em um momento de sua privacidade com a esposa, a modelo Fernanda Tavares, foi exposta na internet. Segundo Brajterman, o ator recebeu mensagens de texto e uma ligação afirmando que o criminoso teria outras fotos e que as divulgaria. Contudo, ator não sabe dizer como esse criminoso teve acesso a essas imagens”. Constata-se, então, que uma das principais diferenças entre os outros casos de 65

http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/03/murilo-rosa-tem-foto-divulgada-na-internet-e-sofrechantagem-no-rio.html

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vazamento de imagens íntimas de mulheres famosas é que não foi destacado pela notícia o que o ator estaria sentindo com o vazamento dessas imagens. O ponto principal aqui é que ele está sofrendo chantagem em relação a outras imagens íntimas que poderiam ser divulgadas na rede. O homem que espalhou as imagens também não é chamado de hacker ou “suspeito”, mas sim “criminoso”, indicando já uma classificação prévia e mais dura da pessoa que divulgou as fotos. Em seguida, podemos ler que: “‘Não tem como precisar quantas fotos ele teria. A chantagem dizia que ele teria outras. A polícia agiu de forma enérgica e já fez algumas notificações e através de algumas pesquisas eletrônicas, conseguiu coibir a divulgação, que foi discreta. Está sendo feita uma investigação profunda e estão bastante avançadas’, afirmou Brajterman”. O texto afirma que a polícia agiu de forma “energética”, e que a viralização das imagens foi “discreta”, o que não aconteceu com nenhuma das notícias das mulheres expostas. No seguinte trecho da notícia: “‘A gente agiu de forma rápida. O objetivo é, depois de feito os depoimentos e terminar de colher as provas, punir exemplarmente essa conduta. Ele está tranquilo, não cometeu nenhum crime, está sendo vítima e qualquer pessoa sendo de meio de comunicação ou não, que expor a intimidade do Murilo e da mulher estão sujeitos civicamente e criminalmente’, completou o advogado, que ressaltou que qualquer um que estiver exibindo estas imagens estará cometendo um crime”. Percebe-se no parágrafo acima que a divulgação das imagens íntimas não causa muitos transtornos na vida do ator, tanto que o advogado afirma que ele está “tranquilo”. Outro ponto significativo é o que o advogado fala de “punir exemplarmente essa conduta”, esse tipo de discurso não aparece em nenhum dos casos de vazamento de imagens íntimas de mulheres, só o pedido de “justiça” das mulheres expostas. Outro ponto importante é que nenhuma matéria traz declarações diretas do ator, somente de pessoas falando por ele. O sogro de Murilo Rosa foi procurado para dar uma opinião sobre o vazamento dessas imagens ao portal de notícias G1. A matéria tem o título: “‘Nada de mais’, diz sogro de Murilo Rosa sobre foto que vazou na net” 66. O título mostra que a reportagem também procurou familiares homens do ator para emitir uma opinião, mas que eles não deram importância a esse fato. No lead da matéria, encontra-se: “O cantor Fernando Luiz, pai da modelo potiguar 66

http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2013/03/nada-demais-diz-sogro-de-murilo-rosa-sobre-fotoque-vazou-na-net.html

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Fernanda Tavares, mulher do ator Murilo Rosa, disse ao G1 que não viu nada demais e não se sentiu constrangido com a foto íntima do genro que vazou na internet. ‘Isso não teve importância para a nossa família. A gente tem que se sentir constrangido com pessoas que cometem delitos. Murilo não fez nada. Isso não abalou em nada a imagem de Murilo. Não vejo nada demais’, comentou”. Como é possível ver de forma bastante clara, o ator Murilo Rosa, teve poucas matérias sobre o vazamento de suas imagens íntimas veiculadas, e seu personagem, que na época estava na TV, não mudou em nada, tampouco sua carreira teve grandes alterações. Ao contrário da atriz Carolina Dieckmann, que teve uma cobertura muito maior do seu caso por parte dos meios mediáticos, quando esteve na mesma situação, criando-se, inclusive, uma lei que foi apelidada com o seu nome. O ator não precisou dar uma entrevista no Jornal Nacional, horário nobre da televisão brasileira, se justificando do porquê ter feito as imagens, muito menos dizendo-se invadido pela situação. Ele também não precisou se justificar para algum filho, ou para a mulher. A polícia em conjunto com seu advogado agiu de forma rápida, fazendo com que a viralização ficasse, assim, “discreta”. Pouco se falou sobre o caso, e atualmente poucas pessoas se lembram que esse fato aconteceu. No entanto, a partir deste levantamento, pude relacionar duas notícias em que as consequências sociais do vazamento das imagens íntimas se assemelharam às das mulheres. Essas duas informações têm em comum o fato de mostrarem o vazamento de imagens íntimas entre homens que tiveram relações sexuais com outros homens. O primeiro caso aconteceu em 2010 e a matéria tem como título: “Polícia investiga suicídio de universitário exposto em vídeo íntimo na internet” 67. O lead da notícia destaca mais pistas para a análise: “Um talentoso violinista de 18 anos teria pulado de uma ponte após ter sido filmado em um momento íntimo com outro homem por seu colega de quarto e ter sido exposto na internet”. Em nenhum momento a matéria afirma que o rapaz era homossexual ou que ele estava em um relacionamento amoroso com esse outro homem. Em razão disso, se sobressai o fato de que um terceiro envolvido, um homem, foi quem divulgou as imagens na rede. Outro ponto a ser pensado é que o nome e a idade do rapaz exposto também são divulgados na notícia da mesma forma que o nome e sobrenome das mulheres expostas são mencionados. E a reportagem continua, afirmando que: “Não se sabe exatamente quando o violinista descobriu o que seu colega de quarto havia feito, mas o incidente teria se tornado a 67

http://g1.globo.com/mundo/noticia/2010/09/policia-investiga-suicidio-de-universitario-exposto-em-videointimo-na-internet.html

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grande fofoca do dormitório. Na noite do dia 22, o violinista teria pulado da ponte George Washington, que liga Nova Jérsei a Nova York. Segundo a rede ABC, pouco antes, ele teria postado uma mensagem no Facebook: ‘Pulando da ponte gw desculpa’”. São vistas aqui características semelhantes aos casos das adolescentes que cometeram suicídio após a exposição na rede, como um pedido de desculpas público por meio das redes sociais. Esta é uma notícia internacional e foi traduzida e divulgada no Brasil, mostrando que ela foi considerada bastante relevante na época para a mídia. A notícia é dividida com o subtítulo “Prisão”, no qual temos o parágrafo “O reitor da Universidade Rutgers, Richard L. McCormick, divulgou uma nota em que diz ter sido informado pela família do suicídio. ‘O jovem teria sido vítima de um incidente que aconteceu em um de nossos dormitórios na semana passada. Dois estudantes da Rutgers foram presos e acusados de invasão de privacidade por suas ações naquele incidente’, diz a declaração”. Uma diferença considerável é que a matéria cita o nome completo dos suspeitos de colocarem as imagens na rede, o que não é realizado em matérias que falam da divulgação indevida de imagens íntimas de mulheres. O outro caso citado que foi noticiado conta a história de um rapaz de 21 anos em Santos, litoral paulista. O homem foi agredido na saída de uma casa noturna, em razão de um vídeo íntimo no qual ele aparece fazendo sexo com outro homem. A matéria tem o título “Jovem é agredido após vazamento de vídeo íntimo e chantagem em SP” 68. A matéria tem anexado o vídeo que mostra a agressão que o rapaz sofreu na saída da casa noturna. O lead da notícia indica que o rapaz tinha um relacionamento amoroso com outro homem, em virtude da utilização do termo “homoafetivo”. Veja: “Um jovem de 21 anos foi agredido na saída de uma casa noturna em Santos, no litoral de São Paulo, por conta de um vídeo íntimo homoafetivo vazado pelo ex-companheiro nas redes sociais. A agressão aconteceu na madrugada do último sábado (8)”. Neste caso, a narrativa é colocada dentro de um contexto de pornografia de vingança, porque indica que o vídeo foi vazado intencionalmente por um ex-companheiro do rapaz. O parágrafo da notícia: “Segundo a vítima, que preferiu não se identificar, a confusão começou dentro do estabelecimento. ‘Escutei um pessoal comentando sobre o vídeo, tirando sarro. Não gostei da situação e fui tirar satisfação. Começou uma confusão, mas ficou na conversa. Na saída, por volta de umas 5h, cerca de 15 pessoas vieram me abordar, me expulsando da balada e me chamando de ‘machão’. Eu não sou medroso, não ia fugir. Ainda 68

http://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2014/11/jovem-e-chantageado-e-agredido-apos-vazamento-devideo-intimo.html

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tentei encarar, mas era muita gente’, explica”. Ao contrário dos outros casos em que homens são expostos, aqui o rapaz é chamado de “vítima”, mas não é identificado. O que foi classificado como “agressão” no título, agora, é colocado como uma “confusão” no corpo da matéria. A troca dos termos é importante de ser destacada, porque uma agressão é um ataque direcionado à integridade física ou moral de uma só pessoa, ao posto que uma confusão seriam várias pessoas brigando. Percebe-se também um recorte na fala do jovem quando se utiliza das expressões “tirar satisfação”, “machão” e “tentei encarar”, como uma tentativa de manter a “masculinidade” por parte do rapaz que foi agredido. A matéria também tem o subtítulo “Vídeo íntimo”, seguido do parágrafo: “A vítima conta que o vídeo foi gravado há cerca de um ano, mas que o material só foi postado na internet há um mês. ‘Nem gosto muito de tocar nesse assunto. Não sabia que estava sendo gravado. O outro rapaz que está no vídeo foi quem colocou ele na internet e depois tentou me chantagear’, lembra”. Percebemos de novo a semelhança entre os casos de “vingança pornô”, em que um dos envolvidos usa as imagens íntimas como forma de chantagem após o término do relacionamento. A notícia também destaca o desconforto do rapaz em falar do assunto. No último parágrafo da reportagem consta: “A vítima das agressões na saída da casa noturna finaliza dizendo que, apesar do vídeo onde aparece em cenas íntimas com outro rapaz, não é homossexual. ‘Depois daquele episódio, namorei uma garota. Foi apenas uma fase confusa na minha vida’, conclui”. A partir disso, é concebida uma espécie de justificativa por parte do rapaz por ter sido filmado em cenas íntimas, a diferença das justificativas das mulheres nas outras matérias é que não foi feito “por amor”, e sim que foi “uma fase confusa”. Deduz-se, então, que nessa narrativa midiática que casais de homens não são adjetivados de maneira romântica. Apesar da utilização do termo “homoafetivo” pela matéria, o próprio rapaz envolvido faz questão de não ser associado a ele. A relação sexual é descrita como “vazia de sentimento amoroso” relacionando à sexualidade homossexual à “promiscuidade” (Tarnovski, 2013). Por meio da análise dessas matérias, compreendo que nem todos os homens compartilham as mesmas experiências e vivências no espectro das masculinidades. E isso se torna bastante claro por meio da descrição dos atos e da própria constituição das matérias. Dessa forma, segundo Welzer-Lang (2001), todo homem está submetido às hierarquias das masculinidades. De acordo com Freitas Silva,

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[...]Marcadores sociais como etnia, classe social, identidade nacional e/ou regional, orientação sexual, identidade de gênero, nível educacional e geracional, contribuem na sedimentação de um modelo de masculinidade branca e heterossexual em detrimento de outras, a masculinidade feminilizada, por exemplo, todas historicamente forjadas. (Freitas Silva, 2015: 15)

As falas escolhidas para compor a matéria nos dão uma mostra do quanto a masculinidade brasileira está atrelada à atividade sexual na posição ativa, e que, se um homem é filmado mantendo relações com outro homem, ele “se torna” homossexual, sem possibilidade de outras orientações. Como “homossexual”, ele se aproxima de categorias femininas e, com isso, corre o risco de agressões físicas e psicológicas, como também de humilhações públicas, tal qual as mulheres que se encontram na mesma situação de terem imagens viralizadas. Como pude perceber a partir dos levantamentos, as notícias que falam sobre o vazamento das imagens íntimas prezam muito por descrever os sentimentos das personagens participantes, e esses sentimentos sofrem variações que são diretamente associadas ao gênero. As mulheres, quando têm imagens íntimas expostas, sentem “vergonha”, “depressão”, “medo”, “nojo”, e descrevem situações em que elas têm a “intimidade devastada”, levando a alguns casos a pensamentos suicidas. Os homens, por sua vez, quando tem imagens íntimas expostas, não descrevem os mesmos sentimentos, demostrando algumas vezes sentimentos contrários, como “tranquilidade”. Este foi um ponto de destaque que apareceu durante a realização do levantamento. A sexualidade dos homens deve ser exposta e divulgada, ela é um comprovador público da masculinidade do sujeito (Welzer-Lang, 2001), ao contrário da sexualidade das mulheres, que deve ser velada e casta (Grossi, 2004). São essas as diferenças sociais baseadas no gênero que o próximo capítulo vai tratar. Essas diferenças não somente influenciam as concepções externas do que é ser homem ou ser mulher, mas também influenciam a constituição dos sujeitos em nossa sociedade.

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4. CAPÍTULO – CONSENTIMENTO, VULNERABILIDADE E VIOLÊNCIA: A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO “MULHER” E SUAS REPRESENTAÇÕES

Miskolci (2011) descreve que quando nos interessamos em estudar e explorar as mídias digitais, universo ao qual as imagens íntimas que falamos aqui pertencem, precisamos estar atentos para o fato de que essas mídias digitais potencializam e transformam meios anteriores de comunicação, os quais, por sua vez, já foram inovadores e causaram grandes mudanças sociais e subjetivas. As imagens íntimas aparecem aqui como uma dessas mudanças sociais e subjetivas que o autor fala, porque ela transforma de alguma maneira os relacionamentos amorosos e sexuais na pós-modernidade. O jornalismo dos portais de notícia aparece nesta pesquisa como uma junção do tradicional, por meio do modo como as notícias são produzidas, e também por meio do novo, pois as próprias notícias são divulgadas na rede e estão sujeitas aos mesmos processos de viralização sem controle de todos os dados que estão na internet. A internet é também um espaço de interação pública, no qual diferentes pessoas conseguem se encontrar e criar pontes em comum. E onde se mostram mais propensas e abertas justamente por não a verem como um espaço público. A internet, na pós-modernidade, é esse espaço/tempo que confunde o que é público com o que é privado. E os celulares com câmeras fotográficas facilitam ainda mais essa percepção difusa. O ciberespaço possui essas características, como já foi dito, Lemos (2013) descreve esse local/tempo como um espaço desterritorializado, lúdico, interativo e onipresente. E é nesse local interativo onde as pessoas participam não só trocando informações e dados, mas também seus sentimentos e corpos. Lemos (2013) afirma em relação às tecnologias da cibercultura, as quais Miskolci (2011) chama de mídias digitais, que o erotismo é um dos principais vetores de apropriação diária dessas novas tecnologias, o que nos indica um dos sentidos da produção das imagens, mas esses sentidos não são tão simples assim. Lemos explica que a simples transferência da pornografia da cultura de massa para a pornografia do ciberespaço continua com os mesmos estereótipos e valores dos outros produtos não cibernéticos. E que no ciberespaço nós podemos realizar as mais diversas fantasias, na tranquilidade do quarto, estando sós, sem estarmos isolados. Esse é o ponto a partir do qual toda esta pesquisa se constrói, nesse estar só em um ambiente público. Desta maneira, muitas pessoas realizam trocas sexuais e de afetos. Mas muitas vezes essas trocas acabam saindo do controle, sendo viralizadas e parando em

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todos os lugares, nas rodas de amigos, no trabalho, na escola e nas narrativas jornalísticas. Neste contexto das trocas sexuais e de notícias da internet, Monteiro (2001) explica que a criação de um produto jornalístico envolve a tradução de conceitos e “fatos” em textos (neste trabalho, matérias jornalísticas) interessantes e fáceis, que chamem atenção de uma audiência ávida ao consumo. O autor ainda complementa que a própria criação de interesse nas matérias por parte dos jornalistas já demonstra tanto os conceitos e preconceitos dos próprios jornalistas quanto da sociedade em que nós, e os jornalistas, estamos inseridos. O trabalho jornalístico se referencia na audiência ao mesmo tempo em que serve de referência a ela. Nesta dança de influência os tradicionais marcadores de gênero e sexualidade continuam a ser difundidos sem uma real reflexão por parte da mídia.

4.1 – Mulheres e a vulnerabilidade: os marcadores sociais como constituidores de sujeitos

Por meio das notícias levantadas, dentro do discurso midiático nós percebemos que mulheres de uma idade mais elevada e de um nível socioeconômico maior conseguem visibilizar mais formas sociais, psicológicas e materiais de lidar com essa exposição. Garotas mais jovens se veem subjetivamente e diretamente atadas à divulgação das imagens, o que torna mais complexas as aparições públicas sem os sentimentos de “humilhação” e “vergonha”. Ou seja, elas não encontram meios de se desassociar da imagem íntima que foi divulgada. Mas isso não significa que todos os casos são assim, ou que de alguma maneira seja “fácil” para qualquer mulher exposta lidar com esse tipo de situação. Desta forma, percebe-se que as notícias contêm o que Gregori (2014) chama de marcadores sociais de diferença; entre eles, o gênero, a idade, classe e status, cor/raça, que operam como eixos na configuração das posições sociais desiguais quando consideramos relações de abuso. Estes se mostram como diferenciadores muito significativos de como as mulheres manejam suas vidas sociais após a exposição e confirmam que nas matérias analisadas as imagens são sempre divulgadas no intuito de humilhar publicamente a mulher, seja por uma chantagem, seja pelo término do relacionamento amoroso, entre outros. Segundo Illouz (2011), quando falamos de sentimentos e de afetos, nas ciências sociais, devemos nos lembrar que eles não são simplesmente características inatas dos seres humanos, mas sim redes de significados culturais e relações sociais inseparavelmente comprimidos. De acordo com a autora, portanto, os sentimentos organizam-se

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hierarquicamente, ordenando nossos arranjos morais e sociais. Ainda conforme Illouz, quando falamos de afetos nas sociedades ocidentais, para ser um “homem de caráter”, é exigido do indivíduo que demonstre em seus sentimentos coragem, racionalidade fria e agressividade disciplinada. Já a feminilidade, por outro lado, exige dos sujeitos bondade, compaixão, sensibilidade e otimismo (2011:10-11). Desta forma, as hierarquias sociais produzidas pelas divisões de gênero contêm também divisões afetivas implícitas, sem as quais homens e mulheres não reproduzem seus papéis e identidades. Quando uma mulher tem suas imagens íntimas divulgadas sem o seu consentimento, mas não tem um comportamento considerado feminino, percebemos um desinteresse da mídia em acompanhar o caso. Foi o que aconteceu com Kim Kardashian, que não declarações de que ela estaria com “medo”, “vergonha” ou “depressão”. Ela não afirmou, em momento algum, que sua intimidade havia sido devastada, ou que havia feito das imagens “por amor”. Pelo contrário, ela utilizou o caso para construir uma imagem de pessoa pública. O fato de os sites de notícia não acompanharem esse caso tão de perto quanto o de outras famosas que sofreram a mesma circunstância, mas que deram declarações mais compatíveis com o que entendemos e esperamos como “sentimentos femininos”, nos faz refletir acerca dos modelos de feminilidade que são passados pelas notícias. A reportagem publicada e traduzida da Reuters pela Folha de São Paulo, no ano 2015, tem o título “Mulheres enfrentam ameaça crescente de violência doméstica online” 69, que faz uma relação direta entre o vazamento de imagens íntimas e as ações de violência dentro dos relacionamentos amorosos heterossexuais. A notícia descreve uma realidade em que as imagens íntimas são feitas já no intuito de serem usadas para exercer controle sobre a ação das mulheres mais jovens, principalmente adolescentes, pois o contexto da notícia são adolescentes da classe média do Rio de Janeiro. Essa notícia não entra no levantamento realizado pela pesquisa, mas nos mostra que a mídia já faz a associação entre a divulgação dessas imagens e uma forma de violência contra as mulheres, e que essas imagens são “ameaçadoras”. Uma característica que se repete em todas as notícias analisadas é a colocação da mulher como “vítima”. É ela quem sempre sofre a ação de ter as imagens íntimas expostas em todas as narrativas das notícias, e quando ela tem fala, percebemos que responde a uma “expectativa social” com justificativas para os atos. Pelas declarações destacadas das mulheres nas notícias analisadas, é possível perceber que o “sofrimento” acaba se tornando 69

http://www1.folha.uol.com.br/tec/2015/03/1601238-mulheres-enfrentam-ameaca-crescente-de-violenciadomestica-on-line.shtml

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uma questão central para a construção da feminilidade pela mídia. Pesquisadoras que trabalham com os casos de violência contra as mulheres já indicam que as queixas femininas dentro desses relacionamentos são uma maneira de envolver outras pessoas no sofrimento (Grossi, 2004; Gregori, 1993), e que essa expressão é importante para a constituição do sujeito mulher socialmente. No entanto, é importante dizer que as mulheres efetivamente sofrem as consequências dessa exposição das suas intimidades pelos homens ou por hackers homens. De acordo com Gregori (1993), de certo modo ser vítima, dentro das narrativas de violência doméstica, significa aderir a uma imagem de mulher, ou seja, uma maneira de se constituir como sujeito feminino. Para a autora, dentro dos relacionamentos heterossexuais com casos de violência doméstica, esse é um jogo perverso de masculinidades e feminilidade, no qual os dois participantes do relacionamento formam imagens que desenham papéis de homens e mulheres nas relações conjugais por meio da violência. Existe alguma coisa que recorta a questão da violência contra a mulheres que não está sendo considerada quando ela é lida apenas como ação criminosa que exige punição (a leitura reafirma a dualidade agressor versus vítima). As cenas em que os personagens se veem envolvidos e que culminam em agressões estão sujeitas a inúmeras motivações – disposições conflitivas de papéis cujos desempenhos esperados não são cumpridos, disposições psicológicas tais como esperar do parceiro certas condutas e inconscientemente provocá-lo, jogos eróticos, etc. (Gregori, 1993 :183)

Seguindo a análise de Gregori, acredito que as notícias mostradas são modulares no sentido de revelarem com intensidade que a agressão de divulgar as imagens íntimas dessas mulheres funciona como uma espécie de ato de comunicação violenta dentro dos relacionamentos, no qual diferentes matrizes de poder podem estar atuando, tanto no sentido de consolidação de uma realidade social quanto na subjetividade das pessoas envolvidas (Gregori, 1993). Isso pode ser exemplificado na forma como os homens insistem em manter um diálogo violento e uma maneira de agir como se ainda existisse relacionamento, mesmo quando as mulheres já deixaram bem claro que elas não querem mais a relação. No entanto, esta é uma hipótese que não vale para todos os casos, como nas situações de imagens íntimas espalhadas por hackers. Foi refletido aqui se a existência de relacionamentos amorosos heterossexuais influencia as decisões judiciais, uma vez que os hackers parecem sofrer penas maiores e reclusão, pelo que foi constatado nas notícias analisadas, ao contrário do que ocorre com os ex-companheiros íntimos das mulheres, que são condenados a pagarem multas ou cestas básicas, penas que podem ser consideradas como

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simbólicas. Porém, percebemos que a violência é também uma forma de comunicar o lugar dos sujeitos na sociedade e de diferenciar os homens das mulheres, porque estes causariam a violência e as mulheres receberiam a ação. Percebe-se que a violência é uma das formas escolhidas para comunicar ideias de masculinidade e feminilidade dentro dos relacionamentos heterossexuais, e que essas ideias estão relacionadas, como foi visto nas notícias, a fatores relacionados com questões morais de “honra” e “vergonha”. Interpelo aqui sobre o “valor da honra” em uma sociedade de parâmetros sexuais diferenciados para os gêneros, e como essa questão é negociada nas relações afetivas e sexuais contemporâneas. Miriam Grossi, quando faz um apanhando sobre os estudos das masculinidades, aponta que, no Brasil, a honra masculina está diretamente conectada com a vivência da sexualidade das mulheres. Segundo a autora, [...] Para nossa cultura, um homem honrado é aquele que tem uma mulher de respeito, ou seja, uma mulher recatada, controlada, pura, etc. É a mulher quem detém o poder de manter a honra do marido, pois se um homem não tem uma mulher virtuosa ele perde a sua honra. (Grossi, 2004: 12)

Grossi ainda indica estudos que buscam identificar as questões de “honra” e “vergonha” e traz o termo “lavar a honra com sangue”, que era utilizado para descrever o assassinato de mulheres que eram consideradas adúlteras. Durante muitos anos em nosso país, esse termo foi utilizado como argumento jurídico para evitar o encarceramento de homens que assassinavam suas mulheres (Grossi, 2004). Mariza Corrêa (1983) trabalha em seu livro “Morte em Família: representações jurídicas de papéis sexuais” os processos criminais envolvendo o assassinato de mulheres entre os anos de 1952 e 1972, em Campinas. A autora fala de papéis sexuais nesses processos criminais em que homens e mulheres têm posições diferentes e que os atores jurídicos pensam os processos como uma espécie de “fábula”, na qual o real específico conseguiria ser moldado em uma outra realidade. A utilização da terminologia “defesa da honra” é derivada em nosso país do antigo Código Penal brasileiro, que vigorou entre 1890 e 1940 e previa em seu artigo 27 que se excluía a ilicitude dos atos cometidos por aquelas pessoas que “se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime”. Basicamente, ele estava dizendo que não era considerada criminosa a pessoa que cometesse um crime quando estava em um estado emocional alterado. Mariza Corrêa mostra, entre outros fatores, que alguns advogados, promotores e juristas se utilizavam da alegação de

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defesa da honra para justificar os crimes em que homens assassinavam mulheres, porque o homem estaria “cego” de paixão, não tendo controle sobre suas ações, e a honra dele só pode ser lavada com a morte da mulher. No entanto, como já foi dito anteriormente e visto por meio da análise das notícias, a publicação das imagens íntimas é uma tentativa de desmoralizar publicamente as mulheres. Questiono, então, se o vazamento dessas imagens não seria uma versão moderna do “lavar a honra com sangue”. Como afirma Grossi (2004), são as mulheres as responsáveis pela honra, e caberia aos homens o controle sobre a virtude feminina. De acordo com a autora, “Virtude que é reconhecida publicamente pela categoria respeito. Uma mulher de respeito é, portanto, uma mulher que está adequada aos comportamentos reconhecidos socialmente como femininos”. (2004:13). Então, mesmo após o vazamento das imagens íntimas, ainda é esperado das mulheres um comportamento socialmente reconhecido como feminino. A divulgação das imagens íntimas é vista como um ataque direto à respeitabilidade feminina, que deve ser prezada e cultivada culturalmente pelas mulheres. Da mesma forma que a honra masculina está diretamente ligada ao comportamento sexual feminino, o respeito para com as mulheres está ligado à revalidação masculina. E, novamente, o ato de fazer sexo, assim como o de gostar de fazer sexo, é um comportamento diretamente associado à masculinidade em nossa sociedade. As imagens íntimas se encaixam dentro dos contextos de violência nessas interações românticas e amorosas heterossexuais, a partir dos modelos de masculinidades e feminilidades brasileiros. E as notícias analisadas mostram que esses conceitos de violência continuam sendo perpetuados dentro das narrativas. Apesar de que se poderia pensar, com a utilização da internet e das novas tecnologias de comunicação, que os velhos padrões de gênero continuam a ser repassados pela mídia somente com a mudança de contextualizar esses relatos de violência a nossa realidade contemporânea, na qual a internet se mostra um local de interação social. Um indicador que não aparece nas matérias é a raça, o que por si só já levanta questionamentos acerca da representatividade de mulheres negras em nossa sociedade. Não podemos nos esquecer que essas matérias já passaram pelo filtro jornalístico que define o que é importante ou não de ser noticiado. Devemos nos questionar acerca da posição das mulheres negras no mercado amoroso e erótico e também na mídia. Supõe-se que essas mulheres também participam das trocas eróticas dos mercados amorosos, no entanto, levanta-se a

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questão de por que os casos de mulheres negras que tiveram imagens íntimas viralizadas foram noticiados? Percebe-se, então, dois conceitos que se mostram importantes na análise das notícias que falam da divulgação indevida das imagens íntimas, que é o consentimento e a vulnerabilidade.

4.2 – A sexualidade feminina e a consolidação do sujeito estigmatizado

Foi definido aqui que as imagens íntimas, no contexto deste trabalho, pertencem à esfera do erótico, e como este é entendido por Bataille. Também foi visto que são as imagens que borram e confundem as fronteiras pré-definidas de privado e público. De acordo com Maria Filomena Gregori, os tensores libidinais, ou seja, aquilo que provoca o gatilho do “desejo sexual”, são resultantes da noção de que o desejo é feito daquilo que provoca, que incita e que assinala a diferença. Para a autora, os marcadores sociais de diferença, como cor, gênero, idade, e diferenças socioeconômicas, que são usados para identificar relações de abuso em discursos como o jurídico, são os mesmos que atuam na configuração daquilo que provoca o prazer. “As hierarquias, as normas e proibições formam o repertório para o erotismo, a partir de todo um esforço de transgressão” (Gregori, 2014: 50). O ato de produzir e enviar imagens íntimas remete à criação desse “deleite erótico” que a autora fala, porque são situações relacionais envoltas em proibições e riscos, como a análise das notícias nos mostra, sobretudo para as mulheres. Ainda sobre o aspecto da produção própria de imagens eróticas e íntimas, é importante considerar que a questão do consentimento, abordada no primeiro capítulo, deve ser retomada. Segundo Gregori (2014), o modo como o consentimento é definido e operacionalizado socialmente faz referência direta sobre o seu elemento de contraste, que seria a vulnerabilidade. Ou seja, a noção de consentimento só faz sentido socialmente se levarmos em conta o seu contrário, que é a vulnerabilidade. Para a autora, que pensa esses conceitos em meio aos acordos sexuais propostos em situações específicas, como o sadomasoquismo, a conceituação de vulnerabilidade na contemporaneidade coloca ênfase nos marcadores de diferenciação social (raça, idade, situação socioeconômica, entre outros), como elementos que conduzem as pessoas à vulnerabilidade. No entanto, são esses mesmos elementos que são utilizados na criação dos jogos e do deleite erótico, em muitos casos. Então, dentro dos relacionamentos amorosos e

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sexuais, a mulher que aceita produzir a imagem íntima para o deleite erótico próprio e de seu parceiro é a mesma que se mostra mais vulnerável dentro das relações de poder nas quais os relacionamentos amorosos contemporâneos se constituem. Por isso dizer que a produção da imagem foi feita por “livre e espontânea vontade” é muito problemático. Entende-se que essas imagens, quando foram produzidas, foram pensadas para pertencerem à esfera do privado, do deleite erótico. E mesmo que elas sejam experiências sexuais envoltas no “perigo dos prazeres”, não há justificativa para a sua divulgação pública. A mulher, pela descrição midiática, nos fez perceber que já é, de antemão, classificada como a mais vulnerável nessas relações amorosas/sexuais, porque as notícias mantêm os conceitos de masculinidade violenta e feminilidade frágil. E quanto maior o grau de diferenciação social, seja ele de idade, seja de raça ou seja de situação de vulnerabilidade econômica, maior o nível de “vulnerabilidade” que essas mulheres são classificadas nesse discurso midiático. E isso se mostra de forma bastante clara nas narrativas que descrevem as adolescentes como “ingênuas” e na fala das artistas famosas, que têm um discurso de pertencimento do próprio corpo e fazem esse discurso publicamente. Mas, em geral, nas notícias analisadas, as mulheres são colocadas como vítimas, e é retirada delas praticamente toda e qualquer agência de sujeito. A elas cabe a narrativa do “sofrimento” (Gregori, 1993), por meio da qual elas compartilham os sentimentos de “vergonha” e de “humilhação e, salvo raras exceções, sofrem a agência de discursos exteriores e respondem a eles. São elas que mudam de casa, de trabalho, de faculdade, de cidade, de Estado e outros. E em alguns casos mais extremos, cometem suicídio. A divulgação das imagens íntimas é uma situação de violência, praticada contra corpos específicos, corpos de mulheres ou corpos feminizados, como o caso dos homens que se relacionam com homens. É preciso que fique claro que, se a mídia coloca as mulheres em posição de vítima, esse fato somente reflete o que ocorre socialmente: são as mulheres que sentem na pele o que acontece quando as imagens íntimas são divulgadas sem o consentimento delas e viralizadas na internet. E as mulheres jovens e pobres sofrem mais as consequências dessa situação do que mulheres famosas. De acordo com Gregori (2014), os discursos que retiram qualquer agência desses sujeitos, na questão do consentimento e da vulnerabilidade, funcionam para transformar o que é marca de diferenciação social e de desigualdade em atributos individuais, dificultado o fluxo e dinâmica dos processos de mudança social. Nesta pesquisa, nas notícias analisadas, as

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narrativas de imagens íntimas divulgadas e viralizadas são descritas e colocadas como situações individuais. E quando mais de um caso é noticiado ao mesmo tempo, ele é lembrado como um “influenciador”. São essas notícias que, com o passar dos anos, vão constituindo uma situação na qual as mulheres sofrem o estigma de vítimas, de mulheres desonradas perante a sociedade porque tiveram imagens íntimas expostas. Goffman (1975) é o principal pesquisador a ver o estigma por meio de uma perspectiva social. De acordo com o autor, é a própria sociedade que estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros da sociedade. Para Goffman, são as relações sociais cotidianas em ambientes já estabelecidos que propiciam um relacionamento entre pessoas previstas e esperadas a tal lugar, sem atenção ou reflexão particular umas com as outras. Ou seja, são as relações previstas que fazem com que as pessoas passem desapercebidas, ou destigmatizadas, nos locais sociais. As pessoas que o autor chama de “normais” já antecipadamente preveem as categorias e os atributos de um sujeito considerado “estranho”, que se aproxima por meio de seus primeiros aspectos. Goffman afirma que o processo de estigmatização não ocorre em razão da existência do atributo diferenciado em si, mas pela relação incongruente entre esses atributos diferenciadores e os estereótipos que os “normais” criam para cada determinado tipo de sujeito. Todos aqueles atributos que os sujeitos possuem e que não são proporcionais ao estereótipo que os “normais” criam para um determinado tipo de indivíduo são os que caracterizam o processo de estigmatização, por gerar identidades deterioradas, ou seja, identidades destoantes daquelas esperadas. De acordo com Goffman, as pessoas que compõem a sociedade são as próprias responsáveis pela perpetuação de estigma. Como membros da sociedade, os indivíduos perpetuam as suas concepções de estigma e a forma de responder a ele. Isso se dá pelo passar das gerações, por meio da aprendizagem social e da socialização. Dentro desse argumento, é possível dizer que as matérias trabalham para a construção do estigma na vida dessas mulheres expostas. Porque a maioria delas tem o nome, o endereço e a idade expostos nas matérias, o que facilita para quem quer pesquisar as imagens on-line e continuar a espalhá-las. As falas escolhidas também ajudam na construção social desse estigma, pois as próprias mulheres se reconhecem como sujeitos que estão marcados por esse fato. Questiono então por que quanto mais jovens essas meninas são, mais marcadas por esse fato elas se tornam.

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4.3 – Transposição da narrativa: a construção social da sexualidade do sujeito “mulher” na contemporaneidade

A discussão da necessidade e da própria existência do sujeito “mulher” já vem há muito tempo sendo levantada nos estudos feministas, pós-estruturalistas e pós-modernos. De acordo com Adriana Piscitelli (2001), foi a partir da década de 60 que o sujeito “mulher” tornou-se importante como um sujeito político coletivo que representaria todas as mulheres. Essa categoria, segundo a autora, teria raízes no feminismo mais radical, de que as mulheres seriam oprimidas pelo simples fato de serem mulheres, algo que poderíamos chamar de Sororidade 70. Piscitelli afirma que o reconhecimento como coletividade é fixado na ideia de que o que uniria as mulheres ultrapassaria em muito a diferença entre elas, que seria a “opressão patriarcal”, termo que depois seria amplamente discutido nas teorias de gênero. Nesta linha de pensamento, a categoria mulher é pensada como incluindo traços biológicos e também os aspectos socialmente construídos. De acordo com a autora: [...] A conhecida ideia ‘o pessoal é político’ foi implementada para mapear um sistema de dominação que operava no nível da relação mais íntima de cada homem com cada mulher. Esses relacionamentos eram considerados, sobretudo políticos, na medida em que político é essencialmente definido como poder. (Piscitelli, 2001: 67)

Ainda de acordo com Piscitelli, com a introdução do conceito de gênero, que depois viria a ser o termo mais usado, começa a proposta de pensar as construções sociais das mulheres em termos de sistemas culturais, exigindo de todos nós pesquisadores teorizar de maneira mais complexa as relações de poder. Joan Scott (1995), citada no primeiro capítulo, afirma que o gênero pode ser utilizado como uma categoria de análise histórica, uma categoria analítica. Ela afirma que, durante algum tempo, a categoria gênero foi usada como sinônimo da categoria “mulher”, e que esta categoria, de alguma forma, tem uma conotação mais neutra do que “mulheres”. De acordo com a autora, o termo “gênero” “[...] parece se ajustar à terminologia científica das ciências sociais, dissociando-se, assim, da política (supostamente ruidosa) do feminismo” (p. 75). A autora nos explica que a utilização do termo “história das mulheres” proclama uma posição

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No original, a autora chama de “womanhood”. O termo foi trocado no texto, de acordo com a sugestão da banca.

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política de que as mulheres são sujeitos históricos, e não simplesmente sujeitos inseridos em um mundo masculino, ao passo que o termo “gênero” incluiria as mulheres sem necessariamente as nomear. Segundo Scott, “gênero” “[...] é também utilizado para designar as relações sociais entre os sexos” (p. 75), e esta é uma forma de indicar as “construções culturais” que constroem a ideia de que homens e mulheres teriam papéis sociais específicos: [...] O uso de “gênero” enfatiza todo um sistema de relações que pode incluir o sexo, mas não diretamente determinado pelo sexo, nem determina diretamente a sexualidade. (Scott, 1995: 76)

Jane Flax (1992) também pensa o “gênero” como uma categoria analítica de processos sociais, e ela ainda afirma que as relações de gênero são processos “complexos e instáveis”. Como colocado no primeiro capítulo, é por meio das relações de gênero que a autora afirma que são criadas as categorias “homem” e “mulher”, e ela também argumenta que essas relações são normalmente mais definidas e controladas pelos homens. Na medida em que o discurso feminista define sua problemática como a “mulher”, ele, também, ironicamente privilegia o homem como não problemático ou livre de determinação das relações de gênero. Na perspectiva das relações sociais, homens e mulheres são ambos prisioneiros do gênero, embora de modos altamente diferenciados, mas inter-relacionados. (Flax, 1992: 229)

Flax também problematiza a categoria mulher de modo que, segundo ela, os homens seriam excluídos. Ao ponto que as autoras criticam o pós-estruturalismo, segundo Piscitelli, elas se utilizam do mesmo argumento para afirmar que a categoria “gênero” se esvaziou por incluir toda uma gama de “gêneros”, que não abrange somente homens, mas também todos os componentes dos estudos queer, como gay, lésbicas, bissexuais, transexuais, entres outros. Todos que se encaixam na categoria “estudos de gênero”. Butler (2013) discute as categorias sexo/gênero em suas raízes epistemológicas e, como demostrado nas discussões do primeiro capítulo, a autora confronta a ideia de que a identidade seria um conceito fixo, conceituação que segue o pensamento de autores pósestruturalistas, que questionam a ideia de uma identidade fixa do sujeito, como o Anthony Giddens ou Arjun Appadurai, entre outros. Butler discute essa dualidade sexual supostamente já “dada” e argumenta que o sexo é culturalmente construído, que a “natureza sexual” é produzida e estabelecida como pré-discursivos. Para ela, nesse ponto, as categorias sexo e gênero devem ser reformuladas, sobretudo a categoria “gênero”, pois esta seria a performatividade do corpo, marcas repetidas em um corpo, que continuam sendo repetidas

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por meio do tempo, criando uma “substancialidade”, um aspecto de naturalidade. Dentro dessa perspectiva, a autora critica a utilização da categoria “mulher” pelos movimentos sociais, porque, para ela, esta categoria atualmente não é suficiente para representar todos os tipos de “mulheres”, os quais os movimentos políticos e acadêmicos do feminismo deveriam abarcar. No contexto deste trabalho, utilizo o conceito “mulher” no sentido de que a realidade social das mulheres se opõe de forma muito clara à vivência masculina, no que diz respeito à viralização das imagens íntimas, como demostrado no capítulo 3. No entanto, foi pensado muito mais na pluralidade da terminologia “mulher” do que em um conceito que a unifica. A própria análise das matérias no terceiro capítulo mostra, de forma bastante clara, que a descrição das notícias apresenta uma série de sujeitos mulheres, cada qual com suas especificidades, mas inseridas em nosso contexto social. Apesar de terem uma base social muito próxima e familiaridades de situações sociais, mesmo por meio das notícias, percebe-se que as mulheres lidam de maneiras diferentes com o fato de terem suas imagens íntimas expostas. Quando as mulheres produzem essas imagens íntimas, elas fogem a essas expectativas sociais já preestabelecidas. Mesmo que sejam imagens produzidas no contexto de relacionamentos amorosos, quando essas imagens vazam, elas saem da esfera privada e ficam públicas, fazendo com que experiências da sexualidade feminina se tornem públicas. As mulheres que estão nessas imagens sofrem, e nesta pesquisa as próprias notícias ajudaram a constituir esse espaço de estigma da mulher exposta. Entretanto, no mesmo ambiente em que percebemos uma continuação dos estereótipos de gênero, é possível observar que a própria produção dessas imagens pode se configurar em uma tentativa de quebra nessas referências a modelos de feminilidade, por serem mulheres expressando de alguma maneira a própria sexualidade. O Vice, uma revista eletrônica, publicou uma matéria em 2015 com o título “A Bucepower Gang É a Nova Geração de Feminismo no Tumblr” 71, que descreve um grupo de mulheres negras da periferia de São Paulo que usa o Tumblr para colocar suas próprias imagens nuas. E, com tanta história de suicídio e vidas acabadas por causa do revenge porn, talvez a proposta de se criar uma página de mulher pelada possa parecer um pouco esquisita de início. Inclusive, as meninas contam que muito homem ainda passa mal com a quantidade de menina conhecida que aparece pelada por lá, mas que a 71

http://www.vice.com/pt_br/read/a-bucepower-gang-a-nova-geracao-de-feminismo-no-tumblr

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existência do Tumblr é importante para garantir a sanidade mental das meninas. ‘A página é para expor para as mulheres que você pode mostrar seu corpo e sua sexualidade. Mas, no particular, é um espaço onde as mulheres possam se conhecer, trocar vivências e desabafar coisas pesadíssimas’, conta Cris. (VICE, 2015)

Esse Tumblr foi criado para ser um espaço de vivências femininas, no entanto, essas vivências não são mais relacionadas com os paradigmas mais tradicionais de feminilidade. A própria reportagem aparece com esse esforço de mostrar que há mulheres que tentam lidar de alguma forma com o fato de sua intimidade e de sua sexualidade serem expostas. A possibilidade de um espaço de exposição do corpo por vontade própria já é por si só um rompimento da tradicional definição de feminilidade, e dá uma mostra do que Miskolci chama de “protagonismo nas redes sociais”: O que chamo de protagonismo individual nas novas mídias é a experiência de se colocar e viver nelas, portanto sem mais depender da sua projeção em astros e estrelas, os únicos que – até recentemente – tinham suas imagens e personalidades difundidas midiaticamente e nas quais as pessoas “normais” encontravam modelos de comportamento e/ou projetavam a si mesmas. Trata-se de um feito nada desprezível, o qual não apenas democratiza a experiência como também a modifica profundamente em um misto de transformação técnica, social e também subjetiva. (Miskolci, 2011:13)

Como já foi dito, é esse esforço de transgressão que Bataille usa para descrever, também, como se articula a construção do desejo erótico. Ainda dialogando com Gregori, a autoprodução e a posterior viralização pública (ou podendo vir a ser pública) dessas imagens seria uma prática que testa os “limites da sexualidade”, como para citar os exemplos da autora, o masoquismo, o sadismo ou o bondage. Entretanto, acredita-se que a grande questão é quem publica as imagens e o motivo pelo qual elas são colocadas na rede. Embora a página tenha pouco tempo de existência, o rolê do Bucepower já quase transcende a seara virtual. Todas relatam em tom orgulhoso que já foram abordadas por muitas garotas muito felizes em ter achado um lugar no qual ser sexual e gostar de usar o corpo como forma de expressão é uma vantagem, e não um problema. “As selfies são terapêuticas. Você presta mais atenção no seu corpo: você o entende, você se aceita”, ratifica Cris. (VICE, 2015)

Larissa Pelúcio (2015), em seu artigo “Narrativas infiéis: notas metodológicas e afetivas sobre experiências das masculinidades em um site de encontros para pessoas casadas”, traz a fala de sua única entrevistada mulher, que descreve que a relação entre ela e o homem com quem ela se envolvia no momento só se tornou possível, e “muy calinte”, porque as mídias digitais, somadas à portabilidade e à conectividade, permitiram. “Pelo Skype a

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gente fez sexo”. Vê-se claramente que o desejo sexual, o deleite erótico, tem relação direta também pelos meios que as pessoas se inter-relacionam, no caso da entrevistada, o Skype. Para Pelúcio, a possibilidade da portabilidade com a aquisição e uso dos celulares smartphones e a conexão com a internet são facilitadores para flertes on-line. Em seu artigo, a autora descreve que os novos suportes para essas tecnologias foram se caracterizando como objetos pessoais cujo compartilhamento não é comum em nossa sociedade, e esses mesmos objetos podem ser protegidos por senhas ou códigos tácitos, atribuindo algum grau de privacidade a esses aparelhos. Um meio que de alguma forma passa sensação de segurança, além da facilidade da produção das imagens íntimas, pois esse aparelho já vem com câmeras fotográficas acopladas. Para Gregori, que dialoga diretamente com Bataille, risco, diferença, transgressão e prazer são os termos articulados nas relações eróticas. E, pelo exemplo acima, baseado nos argumentos da autora, entende-se que a publicização ou viralização consentida das imagens íntimas se apresentaria como uma dessas práticas transgressoras, principalmente para a sexualidade feminina, historicamente vigiada e normatizada (Foucault, 1997). Mais do que isso, quando as imagens são liberadas pelas próprias mulheres, elas podem ser fonte de prazer e diversão. Esta seria uma das várias experiências em que gênero, sexualidade e o “perigo dos prazeres”, que é o que ocorre com o risco da violência, se articulam de um modo dinâmico. Até mesmo as pesquisas mais recentes nos indicam que as mulheres estão encontrando, na rede, um espaço em que, ao contrário do que poderíamos imaginar, elas podem expressar suas vivências e sua sexualidade. Paula Sibilia (2015), em seu artigo “A nudez auto exposta na rede: deslocamentos da obscenidade e da beleza”, que relaciona a nudez feminina com a prática de se expressar politicamente em defesa de alguma causa, cita que muitas mulheres, as quais ela chama de “mulheres comuns”, produzem suas fotografias e vídeos com o objetivo de expor o corpo como uma bandeira de inclusão, na qual todos os tipos de corpos femininos, de diversos tamanhos e formas, se incluiriam no mercado erótico e amoroso. O artigo fala da associação entre a feminilidade e a exposição do corpo nu, em que o “poder” feminino é diretamente relacionado à sua “beleza”. A autora afirma que nas últimas décadas tem se ampliado muito os limites do que se considera válido mostrar no espaço público, em especial no que diz respeito à nudez dos corpos femininos. Ela afirma que o nu feminino é utilizado atualmente como uma ação política, um movimento em que as mulheres

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estão mostrando o corpo para protestar por causas políticas diversas. Sibilia também cita o site brasileiro “Diário de Putaria”, de acesso gratuito, no qual qualquer mulher pode postar imagens autoproduzidas, classificadas por ela como “pornografia amadora”, e fala de “blogs pornôs”, onde cada mulher decide o que mostrar e como mostrar, sendo a própria diretora ou fotógrafa. Ao mesmo tempo, a autora nos chama a atenção para refletir acerca da associação entre a “feminilidade” e a exposição do corpo nu, por meio do qual o “poder” feminino é diretamente relacionado à sua “beleza”. Ela afirma que as imagens de corpos femininos nus ou seminus se tornaram triviais no campo de visibilidade contemporâneo não só por causa das “celebridades” que se exibem sem roupas em campanhas publicitárias, videoclipes ou reportagens, mas também pelas “pessoas comuns”, que alimentam fenômenos que a autora chama de “pornografia amadora” e as selfies que circulam na internet, as quais podem ser classificadas como “manda nudes” ou sexting, motivos pelos quais a revista Playboy americana deixará de publicar ensaios nus em suas páginas a partir do ano de 2016. Sibilia nos diz ainda que, muitas vezes, na internet, por meio da exposição dos corpos de mulheres, acontece uma transformação nos “regimes de visibilidade” de imagens de nudez, principalmente no que se refere a imagens femininas e suas conotações eróticas ou mesmo “obscenas”. Uma das “boas causas” defendidas pelos corpos femininos hoje é que qualquer um pode mostrar seu corpo nu para além dos limites do espaço privado, como a exposição de corpos de modelos plus size e mulheres “reais”, ou imagens sem adição de retoques com programas como o Photoshop, entre outros. A autora afirma que os motivos para posar nua na rede são os mais diversos, desde “reivindicação política” a “vaidade”, que pode ser nomeada de “autoestima”, mas que essa autoestima é intricadamente ligada à reivindicação política. Para ela, o que choca hoje o “olhar censor” é a questão estética do corpo feminino apresentado. Ou seja, o que é considerado “feio” ou “fora do padrão” em um corpo feminino nu é o que causa o choque. As preocupações com a beleza e com a obscenidade não saíram de cena, mas elas estão se reformulando de modos complexos e extremamente significativos, principalmente com a utilização de programas de edição de imagens. Pelúcio explica que a mídia e, nesse contexto, as mídias sociais exercem uma influência inusitada nas vidas individuais e na dinâmica da sociabilidade. Podemos nos questionar aqui se a própria produção dessas imagens, sobretudo pelas mulheres que se utilizam das redes sociais e dos aplicativos para se comunicarem e terem experiências

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românticas, amorosas ou eróticas, não seria uma maneira de promover esse deleite erótico, pela produção própria e troca dessas imagens. Percebe-se que a questão não é tanto em relação ao conteúdo das imagens, mas a quem divulga essas imagens e a razão disso. A reportagem da Vice, citada nesta matéria, aparece na nudez utilizada por algumas mulheres como uma forma de política, pensada direta ou indiretamente. Não são todas as mulheres que têm imagens expostas na rede que teriam condições de manejar essas esferas sociais dessa forma. E são esses casos citados pela autora, tão bem quanto a matéria da vice, que a escolha de fazer dessas imagens públicas foi uma decisão das mulheres, e não como nos casos das notícias apresentadas, nas quais as imagens foram divulgadas sem a autorização. Desta forma, a questão da valorização de uma sexualidade feminina se perde a partir do momento em que outra pessoa decide expor essa mulher na internet. Outra questão que aparece de forma bastante destacada neste trabalho é quais são os mecanismos econômicos, sociais e culturais aos quais essa mulher pode, de alguma forma, tentar transpassar o estigma de ter sido exposta. O parágrafo da matéria da Vice apresenta o caso de uma menina exposta: “A Janna teve no ano passado uma foto sua compartilhada por um ex em um grupo de 50 pessoas no WhatsApp. Um dos integrantes do grupo era seu namorado da época. ‘Achava que isso nunca iria acontecer comigo. Acabei até saindo dos dois empregos que eu estava na época por causa disso. Sofri muito, ouvi as minas me zoarem. Umas vieram me bater na rua. Hoje, posso dizer que amo meu corpo e que o Bucepower me mudou e me ensinou a aprender a me aceitar – e foda-se se eu quero mostrar meu corpo’”. Henrietta Moore (1997) afirma que toda forma de mudança social implica na reelaboração das relações de gênero, e a internet, sobretudo o acesso facilitado à internet para as pessoas é, sim, mudança cultural. Moore também diz que o gênero, como uma forma de representação cultural, é envolvido nas disputas de poder e nas tentativas de definição dos sujeitos em meio a uma disputa de tentativas de repor significados sociais. As mulheres citadas nessa matéria tentam de alguma forma negociar os poderes e as definições de gênero em meio a essas disputas, e a internet oferece esse espaço. Mas a internet também oferece o mesmo espaço para os ex-companheiros das mulheres que foram analisadas nas matérias colocarem as imagens delas na rede, causando sentimentos de vergonha e humilhação. O mesmo espaço que também é utilizado por outras pessoas, homens e mulheres, para falarem mal e denegrirem socialmente as mulheres que tiveram as imagens expostas. Essas mudanças sociais ocorrem em meio a complexas disputas de poder, nas quais homens e mulheres ainda

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não têm paridade de forças, principalmente no que envolve o campo da intimidade e da sexualidade. Percebo que, mesmo quando há vontade de mostrar o corpo e propagar a sexualidade de uma forma mais livre, elas podem vir a sofrer represálias, no mundo real e no mundo virtual. Efetivamente, quem sofre as consequências da circulação na internet das imagens íntimas são as mulheres, independentemente de quais mulheres são. Jean Langdon (1993), em artigo bastante pessoal e tocante, diz que as narrativas são sistemas simbólicos que expressam a percepção do mundo, dos acontecimentos e das relações sociais. É desta forma que foram pensadas as notícias analisadas neste trabalho. Elas são narrativas que são construídas para dar sentido a situações sociais que já acontecem, mas ainda não têm classificação, não são nomeadas. As notícias não são somente filtros de uma realidade social, são também partes constituidoras desta realidade. Elas são produzidas à medida que trazem conhecimento (Meditsch), sentido para o mundo. Essas categorias e narrativas vão se cristalizando ao longo dos anos, e é essa cristalização que vai, também, participando da construção de sentido dessa realidade do ponto de vista prático. Iara Beleli (2007) fala que a propaganda cria contextos sexualizados, por meio da exposição do corpo de mulheres e homens, orientando modos de ser e viver. A propaganda conseguiria persuadir o consumidor, seduzindo com uma erotização que passa pelo corpo da mulher e do desejo sexual do homem. A autora declara que, muito mais do que simples desígnios morfológicos, as construções de gênero e sexualidade são perpassadas por atributos morais. No artigo em que a pesquisadora analisa imagens midiáticas, ela explica que a maior parte das imagens analisadas por ela essencializa as marcas corporais, apresentando masculinidades e feminilidades diretamente acopladas ao corpo de mulheres e homens. Acredito que as notícias aqui apresentadas também cumprem esse papel, essencializando feminilidades e masculinidades atreladas à violência e ao sofrimento causado pela divulgação das imagens íntimas. Kim Kardashian pode ter capitalizado uma carreira de sucesso a partir de um vídeo de sexo divulgado sem o consentimento dela, no entanto, isso aconteceu, acredito, por conta também de um apoio econômico e social que já existia para ela. Não se pode dizer o mesmo das duas jovens adolescentes que se suicidaram e foram notícia por alguns dias. Existem mulheres que de alguma forma estão negociando essa realidade, como foi citado no último capítulo, uma tentativa de transformar os significados sociais da realidade sexual feminina,

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uma resposta, de alguma forma, à violência sofrida. Mesmo perante essa resposta, ainda existe o estigma de ter uma imagem nua exposta na rede. Ainda que encontrando algumas raras exceções acerca do que acontece quando imagens íntimas de mulheres são divulgadas sem o consentimento delas, percebe-se que, efetivamente, quem sofre as consequências são as mulheres.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como foi possível verificar, este trabalho analisou como a mídia, por meio das notícias, constrói e retroalimenta uma realidade social específica, nomeando-a e associando uma série de significados à prática, como acontece com as imagens íntimas divulgadas sem consentimento e que acabam viralizadas na internet. Essa construção e retroalimentação por parte do processo de construção jornalística e por meio das notícias estão repletas de estereótipos de gênero e de sexualidade, que continuam a ser retransmitidos pelas notícias. Os primeiros conceitos que foram indagados e que perpassam toda a pesquisa são os de consentimento e vulnerabilidade. Esses conceitos são importantes porque essas imagens, como o próprio nome já diz, são produzidas na intimidade, em relacionamentos íntimos. E o presente trabalho tem como foco as relações heterossexuais, em que essas questões de consentimento e vulnerabilidade se tornam ainda mais significativas, pois essas podem conduzir tanto a gatilhos do desejo erótico (Bataille, 1987) quanto a relações violentas. Dei início a este trabalho primeiramente definindo a qual campo essas imagens íntimas pertencem, que seria a esfera do erótico e do privado (Bataille), mas associadas ao conceito de cibercultura e de ciberespaço (Lemos, 2013). Esse ambiente espaço/tempo é propício tanto para a produção de conteúdo por todos os usuários como também para a propagação desse conteúdo. Propagação essa que não se tem controle sobre quais caminhos os conteúdos vão tomar, nem quem tem acesso a esses conteúdos. “O espaço privado se imbrica no espaço público e vice-versa, em uma verdadeira publicização do privado” (Lemos, 2010:120). Nesse universo em que privado e público disputam o mesmo espaço, essas imagens íntimas são viralizadas à escala dos milhares e expõem mulheres das mais vaiadas idades, etnias e classes sociais ao julgamento público. Nesse julgamento público, as questões referentes ao gênero e à forma pela qual a sexualidade dos indivíduos é vivenciada são pontos de grande relevância. Weeks (2000) e Foucault (1997) sustentam que as nossas definições, convenções, crenças, identidades e comportamentos sexuais não são o resultado de uma simples “evolução”, uma biologia específica, como se tivessem sido causados por algum fenômeno natural inerente à humanidade. Weeks afirma que todas essas “convenções sexuais” têm sido modeladas no interior de relações definidas de poder.

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A sexualidade é uma área simbólica e política ativamente disputada (Vance, 1995), em que grupos lutam para implementar suas próprias plataformas sexuais e tentar transformar os modelos e ideologias sexuais que já vigoram socialmente. Em outras palavras, a sexualidade está inserida em uma série de disputas de poder, desigualdades e modos de opressão. “O sexo é sempre político” (Rubin, 1998). Dentro dessas políticas sociais sexuais, o gênero aparece como fator muito significativo nessas disputas de poder. Joan Scott fala das relações de gênero como uma categoria analítica, que funciona para compreendermos como essas disputas de poder realmente acontecem. Entende-se que as relações de gênero estão completamente embrenhadas em todas as outras atividades e relações sociais, e que o gênero parcialmente constitui o âmago dessas relações. A divulgação não consentida e a posterior viralização das imagens íntimas só podem ser compreendidas por meio de um exame detalhado dos significados de se identificar como um sujeito “masculino” ou “feminino” em nossa sociedade e das consequências sociais desses significados. De acordo com Butler (2013), a materialização das normas heteronormativas exige processos identificatórios pelos quais essas “regras sociais” são assumidas ou apropriadas pelos mais diversos tipos de pessoas, e essas identificações precedem e possibilitam a formação da identidade do sujeito. Mas não são, estritamente falando, executadas pelo próprio sujeito. A identidade de gênero é performativamente construída pelas próprias expressões, tidas como seu resultado. O envio de imagens de conteúdo íntimo é entendido por esta pesquisa como uma dessas práticas sociais reguladoras, pois, apesar de ser um comportamento imerso no ciberespaço, carrega consigo as noções de sexualidade e gênero já cristalizadas socialmente. O que não quer dizer, por exemplo, que essas mesmas imagens não possam ser usadas para desconstruir essas práticas sociais reguladores, entretanto, não digo isso neste trabalho, o que já abre uma questão de pesquisa por si própria. As relações de poder que estão presentes na recepção e decodificação dessas imagens dizem muito a respeito da produção da identidade dos sujeitos e como ela é recebida socialmente. E essas relações de poder são sentidas tanto no ciberespaço como no mundo offline, nos corpos e na vida dos sujeitos, e de maneira muito abrangente. Nesta pesquisa, não foi dito acerca de como o sujeito se comporta nessas disputas, e sim como a mídia as percebe. Dentro e fora desse ciberespaço, as noções de gênero são pensadas de forma dual pela mídia, na qual a sexualidade feminina deve ser representada como passiva, ao contrário

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da sexualidade masculina, que é vista como ativa e, sobretudo, deve ser demonstrada em público para comprovar a masculinidade hegemônica. Entretanto, quando as imagens íntimas são vazadas, essa expectativa de como homens e mulheres deveriam se comportar é quebrada, e, dentro desse corte, as relações de poder começam a ser negociadas. O jornalismo e o trabalho do jornalista são uma das formas de construir e também de retroalimentar uma realidade social (Berger e Luckmann). A própria mídia em geral se apresenta como uma instância específica da cultura, designada para tecer uma teia de significados (Geertz, 2008). Nesse sentido, as notícias são os produtos que informam essas teias de significados. E todas essas relações sociais são transpassadas pela influência do gênero. As matérias jornalísticas analisadas neste trabalho, no atual cenário contemporâneo de circulação de imagens íntimas na internet, tentam traduzir esse fato social por meio da utilização de narrativas que fazem uso do gênero como um fator de diferenciação social. Como as análises demonstraram, o gênero aparece como um agregador de valores sociais, por meio do qual a mídia categoriza as mulheres como “vítimas” e os homens como “autores” “suspeitos” ou “criminosos”. No entanto, compreende-se que as relações de poder não são sempre unilaterais, há sempre uma disputa social. As mulheres e homens lidam das mais variadas formas com o vazamento de imagens íntimas, e não se pode dizer que esses são sentimentos universais para todos. No entanto, a mídia, de alguma forma, passa, por meio de suas notícias, esses sentimentos vivenciados pelo gênero ao público. As notícias aparecem como construtoras de uma realidade social, quando “batizam” situações que antes não eram nominadas. Os termos sexting, “pornografia de vingança”, revenge porn e “manda nudes”, entre outros, só ganham significados sociais quando são transmitidos e todos conseguem identificar e diferenciar esses signos como culturais. Os sentimentos de “vergonha”, “humilhação”, “medo” e “intimidade devastada” são associados às vivências femininas da divulgação não consentida de imagens íntimas. No entanto, os homens mostram “incômodo” e “indignação” com o vazamento das imagens (a menos que não sejam heterossexuais, o que os aproximaria das vivências femininas). Mas a vida dos homens não muda, e, mormente, eles não sentem vergonha de terem produzido as imagens.

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Outra diferença bastante significativa é em relação aos sentimentos descritos do motivo da produção das imagens íntimas. Os sentimentos de “amor” e de “afeto” são direcionados às mulheres e servem como uma espécie de “justificativa” para a produção das imagens. Porém, os mesmos sentimentos de “amor”, quando direcionados ao homem, funcionam “justificando” o vazamento intencional das imagens íntimas. O homem vaza aquela imagem porque ama a mulher demais e não quer perdê-la, ou ele quer humilhá-la em público, para “lavar a honra”. O que muda não é o sentimento, mas sim como esse sentimento é entendido socialmente e atribuído a cada gênero. As mulheres, como pude perceber, já são previamente classificadas como mais vulneráveis nessas relações amorosas/sexuais pelo trabalho jornalístico. E as notícias continuam a manter e a transmitir os conceitos de masculinidade violenta e feminilidade frágil. Existem algumas tentativas de negociação e disputa pelo poder por meio do comportamento e de declarações de algumas mulheres na mídia contra esse estigma de sujeito vítima ao qual as mulheres são destinadas. No entanto, esse discurso ainda é muito pouco difundido e mesmo essas mulheres acabam sofrendo represálias sociais. Quanto maior o grau de diferenciação social, seja ele de idade, seja de raça ou de situação de vulnerabilidade econômica, maior o nível de “vulnerabilidade” a que essas mulheres são classificadas no discurso das notícias. É possível perceber isso de forma bastante evidente nas narrativas, em que as adolescentes são colocadas como “ingênuas” e as artistas famosas apresentam um discurso de pertencimento do próprio corpo, além de fazer esse discurso publicamente. A mídia destina os sujeitos mulheres à narrativa do “sofrimento” (Gregori, 1993), por meio da qual elas compartilham os sentimentos de “vergonha” e de “humilhação”. A divulgação das imagens íntimas são situações de violência praticadas contra corpos específicos, corpos de mulheres ou corpos feminizados, como o caso dos homens que se relacionam com homens. É preciso que fique claro que, quando a mídia coloca as mulheres em posição de vítima, esse fato somente reflete o que ocorre socialmente: São as mulheres que sentem na pele o que acontece quando as imagens íntimas são divulgadas e viralizadas na internet sem o consentimento delas. São elas que mudam de casa, de trabalho, de faculdade, de cidade, de Estado e outros. E, em alguns casos mais extremos, cometem suicídio.

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