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June 11, 2017 | Autor: Helisane Mahlke | Categoria: direito Internacional público, Direito Internacional dos Direitos Humanos
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“O Direito Internacional dos Refugiados e a Pretensão de Universalidade” Helisane Mahlke1

RESUMO O presente artigo analisa a efetividade do Direito Internacional dos Refugiados em relação ao princípio da universalidade, sob a perspectiva da Teoria de Jürgen Habermas. Estabelecendo, para tanto, uma discussão sobre três pontos fundamentais sobre os quais entende-se que o refúgio deve ser percebido: o refugiado como sujeito; o Estado e seus paradigmas; e o Direito como um instrumento de emancipação do indivíduo. Palavras-Chave:

Direito

Internacional

dos

Refugiados.

Universalidade.

Reconhecimento.

1. Introdução: o Instituto do Refúgio “Cada homem e cada mulher deve ser alvo de um tríplice reconhecimento, ou seja, devem encontrar igual proteção e igual respeito em sua integridade: enquanto indivíduos insubstituíveis, enquanto membros de um grupo étnico ou cultural e enquanto cidadãos, ou membros de uma comunidade política.” (HABERMAS, Direito e Democracia: da facticidade à validade).

O presente artigo busca estabelecer uma reflexão sobre a condição do refugiado face ao paradigma da universalidade, especialmente de acordo com a Teoria de Jürgen Habermas2. Assume-se a premissa de que o reconhecimento do direito ao refúgio é parte

Doutoranda em Direito Internacional pela USP. Mestre em Relações Internacionais e Especialista em Direito Internacional pela UFRGS. 2 A Teoria Crítica de Jürgen Habermas, herdeiro da Escola de Frankfurt, é composta por uma obra extensa, mas um elemento que permeia todo seu esforço intelectual é a “Teoria da ação comunicativa”, processo dialógico que aproxima os atores, que partilham o mesmo “mundo da vida”, tido como o conjunto de experiências sociais, culturais, religiosas e históricas compartilhadas, produzindo um saber comum aceito por todos e, portanto capaz de produzir valores que irão fundamentar a noção de validade de uma norma 1

do conjunto de normas e princípios do Direito Internacional dos Direitos Humanos e, portanto compartilha do mesmo fundamento: a concepção de que esses direitos são essencialmente universais. Tal fundamento pode ser deduzido a partir da própria definição trazida pela Convenção Internacional sobre Refugiados de 1951 “(...) um refugiado ou uma refugiada é toda pessoa que por causa de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer regressar ao mesmo.”.

O refúgio é um instituto internacional, amparado por Convenções Internacionais, que geram direitos àqueles a quem ele é concedido, como também gera um dever de responsabilidade ao Estado que firmou compromisso com estas Convenções. Portanto, como vertente do Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Direito Internacional dos Refugiados está amparado pelos mesmos princípios que o afirmam. O reconhecimento do direito ao refúgio é um ato declaratório por parte do Estado, com efeitos ex tunc. Uma vez reconhecido o status de refugiado ao solicitante, este recebe proteção e amparo material do Estado que o recebe, até que seja possível e seguro retornar à sua terra natal. Os solicitantes de refúgio possuem situação diferenciada dos imigrantes comuns, pois possuem Direito de Ingresso ex jure, ou seja, o refugiado possui um direito subjetivo ao acolhimento3, até que a decisão final sobre o reconhecimento seja proferida. Desse direito decorre outro, previsto pela Convenção de 1951, que representa prerrogativa fundamental ao Direito dos Refugiados que é o Princípio do nonrefoulement, o qual encontra sua base legal, no art. 33 da Convenção sobre Refugiados, de 1951 e em uma série de documentos posteriores4. Conforme a definição de BETHLEHEM & LAUTERPACHT (2003, p. 89) “Non-refoulement is a concept which prohibits States from returning a refugee or asylum seeker to territories where there is a risk that his or her life or freedom would

(HABERMAS, 2012). É esse processo que, segundo Habermas, é capaz de conferir legitimidade às Instituições e torná-las capazes de, democraticamente, construírem o Estado de Direito. 3 É importante ressaltar, que o refugiado não está sujeito à extradição e nem à reciprocidade. 4 Dentre esses documentos, ressalta-se as previsões constantes na Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (art.22, VIII) e na Declaração de Cartagena de 1984 (Seção III, §5).

be threatened on account of race, religion, nationality, membership of a particular social group, or political opinion.”

A afirmação desse princípio, além do evidente caráter humanitário, que implica na não exposição do refugiado à situação que motivou sua fuga do país de origem, resguardando assim sua integridade, também representa um elemento vinculativo do Estado-parte à Convenção e, portanto uma obrigação por ele assumida em proteger os direitos desses indivíduos em situação de vulnerabilidade. Portanto, segundo HATHAWAY (2005, p. 6), em princípio, os Estados comprometem-se a não usar a “desculpa” da autoridade política soberana ou da diversidade cultural para “rationalize failure to ensure the basic rights of persons subject to their jurisdiction – including refugees.” Contudo, a realidade demonstra que existe um paradoxo entre o reconhecimento internacional desses direitos e a dificuldade de torna-los efetivos em território nacional. Entende-se que o grande desafio imposto pela consolidação do Direito dos Refugiados é o reconhecimento de um direito humano, por essência universal, face ao paradoxo imposto pelos interesses do Estado soberano. Por sua própria definição e características, o refúgio é um direito transcendente ao Estado, quando não oponível.5 Em contraponto, a concretização desse direito tal como ocorre atualmente, depende diretamente de uma “concessão”6 do Estado soberano que “permite” a recepção do indivíduo em seu território em caráter provisório. Essa realidade relega um direito humano às dispensas da discricionariedade estatal, o que frequentemente leva a situações de seletividade política e violações de direitos fundamentais. Da maneira como o sistema de proteção aos refugiados é posto (se é que se pode falar em sistema), o solicitante de refúgio é um indivíduo em situação de extrema vulnerabilidade, a mercê da concessão de direitos pelo Estado. Caso ele não obtenha o reconhecimento devido, o que se tem é um indivíduo condenado a um “limbo jurídico”, ou seja, sem a proteção do seu Estado de origem e sem a proteção do Estado de acolhimento.

Nesse sentido, refere-se à necessidade de refúgio ocasionado pela perseguição imposta ao indivíduo pelos agentes do próprio Estado. 6 O termo “concessão” é reproduzido aqui, pois é o comumente utilizado no tratamento da questão. Contudo, entende-se que tal termo é equivocado, pelas razões que serão expostas nesse artigo. 5

Diante dessa perspectiva, a reflexão aqui desenvolvida aponta para a necessidade de observar que não é possível a construção de um verdadeiro sistema de proteção ao refugiado, sem considerá-lo como parte integrante do sistema internacional de proteção aos Direitos Humanos. Para Jürgen Habermas, a consolidação desses direitos contém implicitamente uma pretensão de universalidade construída a partir da ética do discurso, entendido como um processo comunicativo que necessariamente implica o paradigma da alteridade, ou seja, o reconhecimento do outro como alguém legítimo e igual em direitos e deveres. Segundo o autor, “Pressupondo-se o princípio de universalização, e de modo a superar a postura monológica, é necessário um princípio da ética do discurso (D)” segundo o qual "uma norma só deve pretender validez quando todos os que possam ser concernidos por ela cheguem (ou possam chegar), enquanto participantes de um discurso prático, a um acordo quanto à validez dessa norma" (HABERMAS, 2012, p. 86). Nesse sentido, a construção dessa universalidade está baseada, necessariamente, em um processo democrático de inclusão do outro, por meio do seu reconhecimento como parte de uma comunidade política. Porém, como chegar à concretização desse preceito? Para realizar essa análise estabelecem-se três pontos fundamentais para a discussão sobre a universalidade do Direito dos Refugiados: a relação entre o Sujeito e o Estado, e a realização do Direito como instrumento capaz de intermediar essa relação.

2. O Sujeito O refugiado desafia a noção tradicional dos Direitos Humanos, por denunciar a “nudez abstrata” do indivíduo. Se a cidadania é expressa como o “direito a ter direitos”, como reconhecê-los sem a pertença a uma comunidade política? Segundo Giorgio Agamben em sua obra “Homo Sacer: o poder e a vida nua” (p.141) “O refugiado deve ser considerado por aquilo que é, ou seja, nada menos que um conceito limite que põe em crise radical as categorias fundamentais do Estado-nação, do nexo nascimento-nação àquele homem-cidadão, e permite assim, desobstruir o campo para uma renovação categorial atualmente inadiável, em vista de uma politica em que a

vida nua não seja mais separada e excepcionada no ordenamento estatal, nem mesmo através da figura dos direitos humanos.”

O Direito dos Refugiados, que transcende os direitos do cidadão, somente poderia ser garantido a partir de uma tutela internacional. A suposta “ natureza humana” não nos garante a igualdade de direitos, pois esta não nos é dada, mas resulta da organização humana orientada pelo princípio da justiça, ou seja, não nascemos iguais, mas tornamo-nos iguais por força da nossa decisão de nos garantirmos direitos reciprocamente iguais. (ARENDT, 1989). É por esse motivo que perceber o refugiado como um sujeito de direitos é antes uma questão de reconhecer a alteridade (alter: outro) que cultivar a tolerância (nãoreconhecimento disfarçado de aceitação). Somente a ética da alteridade pode construir a ideia de hospitalidade. A tolerância é a soberania do mais forte que “permite” ao vulnerável “existir”, portanto é totalmente oposta à hospitalidade. A tolerância é uma “hospitalidade condicionada” a regras e imposições. (DERRIDA, 2003a) Por outro lado, a hospitalidade absoluta pressupõe o reconhecimento total da alteridade em uma situação utópica que subverte o ideário jurídico e político e, portanto, é impossível de ser regulada. (DERRIDA, 2003b). Nesse ponto de inflexão expressa-se a dificuldade de universalização de valores, que prescinda de certa intervenção jurídica. No que se refere ao sujeito, a teoria habermasiana está alicerçada na intersubjetividade, ou seja, na ação comunicativa como instrumento para o mútuo reconhecimento – base para uma perspectiva concreta do conceito de “dignidade humana” -

e fundamento último para a noção de solidariedade. Tal postulado é

essencial para a afirmação dos Direitos Humanos e, por extensão, para o Direito dos Refugiados, cuja natureza está intrinsicamente ligada ao paradigma da alteridade. Em “A Inclusão do Outro” (2007, p.172), Habermas comenta “A coexistência com igualdade de direitos de diferentes comunidades étnicas, grupos linguísticos, confissões religiosas e formas de vida, não pode ser obtida ao preço da fragmentação da sociedade. O processo doloroso do desacoplamento não deve dilacerar a sociedade numa miríade de subculturas que se enclausuram mutuamente. Por um lado, a cultura majoritária deve se soltar de sua fusão com a cultura política geral, uniformemente compartida por todos os cidadãos; caso contrário, ela ditará a priori os parâmetros dos discursos de autoentendimento. Como parte, não mais poderá constituir-se em fachada do todo, se não quiser prejudicar o processo democrático em determinadas questões existenciais, relevantes para as minorias.”

Com base na perspectiva da ação comunicativa, Habermas aduz que há uma relação estreita entre a preocupação pelo bem do próximo e o interesse pelo bem comum, pautada no reconhecimento intersubjetivo. Assim, a igualdade não é alcançada por benevolência, mas por solidariedade, que para Habermas é “a outra face da justiça”. A solidariedade é entendida em uma perspectiva pragmática e não metafísica, como elemento essencial para a sobrevivência de uma sociedade e, contém em si, uma exigência de universalidade. Por essa razão, a solidariedade está intimamente ligada com interesses compartilhados entre indivíduos que foram socializados. Nesse sentido a ética universalista de Habermas está intrinsecamente relacionada a essa solidariedade construída intersubjetivamente. Em Comentários à Ética do discurso (1999, p.75), é dito: “este princípio tem sua raiz na experiência de que cada um deve fazer-se responsável pelo outro, porque todos devem estar igualmente interessados na integridade do contexto vital de que são membros. A justiça concebida deontologicamente exige, como sua outra face, a solidariedade. Não se trata, neste caso, de dois momentos que se complementam, mas de aspectos da mesma coisa. Toda moral autônoma tem que resolver, ao mesmo tempo, duas tarefas: ao reivindicar trato igual, e com ele um respeito equivalente pela dignidade de cada um, faz valer a inviolabilidade dos indivíduos na sociedade; e ao mesmo tempo em que exige a solidariedade por parte dos indivíduos, como membros de uma comunidade na qual são socializados, protege as relações intersubjetivas de reconhecimento recíproco. A justiça refere-se à igualdade da liberdade dos indivíduos que se determinam a si mesmos e que são insubstituíveis, enquanto a solidariedade refere-se ao bem, ou à felicidade dos companheiros irmanados em uma forma de vida intersubjetivamente compartilhada, e deste modo também à preservação da integridade dessa forma de vida. As normas não podem proteger um sem o outro, isto é, não podem proteger a igualdade de direitos e as liberdades dos indivíduos sem o bem do próximo e da comunidade a que eles pertencem”.

Entende-se que a solidariedade alcançada por meio da intersubjetividade é um instrumento fundamental para a afirmação da universalidade. Mais que isso, pode-se dizer que há uma relação intrínseca entre esses dois elementos, os quais, tidos em conjunto, evitariam que a universalidade fosse falsamente imposta, mas sim construída a partir de bases democráticas. Sem o reconhecimento do sujeito como fundamento do Estado de direito, não é possível a construção da justiça.

3. O Estado Porém, como acomodar tal concepção diante dos interesses estatais, que frequentemente excluem, estabelecendo como paradigma a nacionalidade, o reconhecimento de outros sujeitos que não seus nacionais? Que lugar tem o refugiado na estrutura jurídico-política do Estado? Há uma ambivalência moral presente nos discursos sobre a proteção aos refugiados: é o Direito dos Refugiados um conjunto de “direitos” entendidos como obrigações morais recíprocas fundamentadas em nosso senso de humanidade, ou são esses direitos, normas aplicáveis às quais se pode reivindicar e forçar o Estado a observa-las. O direito à hospitalidade (na perspectiva kantiana) compreende uma reivindicação moral com possíveis consequências legais como a do Estado de acolhimento oferecer residência temporária aos estrangeiros, de acordo com a ordem republicana cosmopolita. Todavia, por não haver uma autoridade executiva supranacional para garantir sua aplicação, ele permanece como um ato voluntário do Estado soberano. Logo, surge a inquietação: como tornar essas normas efetivas, vinculando o Estado ao seu cumprimento? (BENHABIB, 2004). O pilar do Direito dos Refugiados é o reconhecimento. A Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 confere àquele por ela protegido um direito subjetivo ao acolhimento. Contudo, a figura do refúgio representa o limiar da proteção internacional dos Direitos Humanos. Como garantir direitos a um indivíduo considerado à margem da sociedade, negligenciado a um vazio político, causado pela exclusão originária e pela possibilidade de ulterior rechaço? Na Constelação de Estados os direitos humanos inalienáveis são mera abstração sem um Estado para dar-lhes concretude, ou seja, um indivíduo carece de cidadania para ter seus direitos reconhecidos (AGAMBEN, 2010). Habermas ressalta a importância do processo democrático na afirmação dos direitos fundamentais e na construção de um Estado de direito, expondo o embate político e jurídico presente na esfera pública7 e apontando o uso da racionalidade comunicativa como o instrumento para tornar efetiva a cidadania. A “esfera pública”

Habermas define a “esfera pública” como “uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomada de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos” (HABERMAS, 2012, p. 92). 7

converte-se no palco onde expressa-se o mundo da vida (essencialmente diverso)8 onde se reproduz o conflito inerente em qualquer sociedade, o qual revela a permanente tensão entre o “político” e o “jurídico”9. Contudo, a própria existência da “esfera pública” pressupõe o consenso que, segundo a teoria habermasiana é atingido por meio de regras procedimentais que tornem viável a prática discursiva. Porém, a frequente dicotomia entre os interesses do Estado e dos indivíduos (especialmente grupos de minorias e vulneráveis) estabelece um conflito aparentemente intransponível na tentativa de consolidação dos Direitos Humanos. O Estado é ao mesmo tempo necessário à concretização desses direitos, mas, também, um obstáculo à universalidade essencial ao reconhecimento destes. Por outro lado, o próprio Estado também sofre uma crise/transformação de sua soberania clássica para adaptar-se às exigências de um sistema internacional cosmopolita em construção. Nesse sentido, Habermas observa Na transição de uma ordem marcada pelo Estado nacional para uma cosmopolita não se sabe exatamente o que é mais perigoso: o mundo (que naufraga) dos sujeitos soberanos do direito internacional que perderam há tempos a sua inocência ou a situação misturada confusa de instituição e de conferências supranacionais que podem atribuir legitimações questionáveis, mas que ainda continuam dependentes da boa vontade dos Estados poderosos e das alianças. (2001, p. 151)

Diante dessa inegável mudança de paradigma, é fundamental que se estabeleçam bases jurídicas sólidas e legítimas que evitem que direitos sejam usurpados. Diante disso, a grande questão proposta pelo filósofo é a que questiona se “será possível

Nesse sentido, oblitera o autor: “A irrupção da reflexão em histórias de vida e tradições culturais promove o individualismo dos projetos de vida individuais em um pluralismo de formas de vida coletivas. Ao mesmo tempo, as normas de convivência tornam-se reflexivas e impõem-se orientações de valores universalistas. (...) Com a distinção entre ações autônomas e heterônomas revoluciona-se a consciência normativa. Ao mesmo tempo, cresce a necessidade de legitimação, a qual sob condições do pensamento pós-metafísico, só pode ser feita através de discursos morais. (...) Ao contrário das considerações éticas, que estão orientadas pelo telos da minha e/ou nossa vida boa ou não-fracassada, as considerações morais exigem uma perspectiva distanciada de todo ego e etnocentrismo. (HABERMAS, 2012, p. 131). 9 Segundo o autor: “Na medida em que programas legais dependem de uma concretização que contribui para desenvolver o direito – a tal ponto que a justiça, apesar de todas as cautelas é obrigada a tomar decisões nas zonas cinzentas que surgem entre a legislação e aplicação do direito – os discursos acerca da aplicação do direito têm que ser complementados, de modo claro, por elementos dos discursos de fundamentação. Esses elementos de uma formação quase-legisladora da opinião e da vontade necessitam certamente de outro tipo de legitimação. O fardo dessa legitimação suplementar poderia ser assumido pela obrigação de apresentar justificações perante um fórum judiciário crítico. Isso seria possível através da institucionalização de uma esfera pública jurídica capaz de ultrapassar a atual cultura de especialistas e suficientemente sensível para transformar as decisões problemáticas em foco de controvérsias públicas”. (HABERMAS, 2012, Vol. II, p. 183). 8

fundamentar a prioridade dos deveres especiais – referidos à pertença a um Estado – sobre as obrigações universais que ultrapassam as fronteiras dos Estados?” (HABERMAS, 1997, p. 299). Essa é discussão feita a seguir.

4. O Direito O refugiado, excluído da comunidade política, encontra-se em situação de vulnerabilidade absoluta. A contrario sensu, é justamente a abstração desses direitos universais que acaba por condenar o indivíduo a uma posição original (a “vida nua”) da qual ninguém reivindica tutela. Em um sistema de Estados a garantia de direitos depende menos da sua sacralidade e mais de sua inserção em um ambiente político que lhe forneça reconhecimento. (AGAMBEN, 2010). Diante dessa realidade, qual o papel do Direito?10 Para Habermas, a validade das normas advém de um processo democrático que pressupõe a participação de todos os indivíduos em sociedade. Isso determina que o cidadão deve estar em condições de manifestar o desejo de ser um membro dessa comunidade histórica particular, com seu passado e seu futuro, com suas formas de vida e instituições, no interior das quais seus membros pensam e agem. (HABERMAS, 2012, vol. II). Esse fator, obviamente, eleva a um outro patamar o termo “acolhimento”. Porém, também se observa que a política para refugiados sempre esteve atrelada, em quaisquer países, aos imperativos da raison d’État, sejam as oscilações econômicas e crises sócio-identitárias11, aos interesses das elites e aos conflitos geopolíticos. Tal fato, por exemplo, explicaria porque o fim da Guerra Fria inaugura uma fase de políticas mais restritivas na Europa12. Assim, a proteção aos refugiados fica submetida aos caprichos de políticas governamentais que sempre tratam de burlar acordos assumidos perante a comunidade internacional.

Segundo o autor, tal concepção encontra fundamentação “Porque esse medium da potência estatal se constitui sob a forma do direito, as ordens políticas alimentam-se da reivindicação de legitimidade do direito. O direito reclama não apenas aceitação; ele demanda dos seus endereçados não apenas um reconhecimento fático, mas antes reivindica merecer o reconhecimento.” (2001, p. 144) 11 Como exemplo, pode-se ilustrar questões como a “islamização da França”, conflitos étnicos entre Estados, ou intra-estatais. 12 Ao final da Guerra Fria a questão dos refugiados perdeu seu caráter político-ideológico par a os países ocidentais que recebiam, especialmente, aqueles que fugiam de países sob o regime comunista. 10

Enquanto os Estados continuam proclamando sua disposição em oferecer proteção aos refugiados, como parte de sua discricionariedade política ou de seu caráter humanitário, na verdade formulam defesas estratégicas com o objetivo de evitar imigrantes forçados. Contudo, isso não sugere que deva haver uma “reforma” da Convenção sobre Refúgio de 1951, mas sim, que os mecanismos de implementação do Direito dos Refugiados devam ser aperfeiçoados. (HATHAWAY, 2005). Em uma época onde a profusão de fluxos migratórios mistos criam redes transnacionais de pessoas expostas a todo tipo de vulnerabilidades, indivíduos geralmente provenientes das regiões mais pobres do globo, acirra-se o conflito entre os Princípios universalistas do Estado Democrático de Direito e as pretensões particularistas de formas de vida tradicionais. Nessa realidade, a integração social e política dos imigrantes (aqui entendidos em todas as suas categorias) dependerá de como as populações autóctones assimilam as consequências da imigração. (HABERMAS, 2012, vol.II). Diante dessa realidade, não é difícil deduzir porque a Convenção sobre Refugiados (1951), dentre tantos outros Tratados de Direitos Humanos, ainda não possui um mecanismo próprio para promover a responsabilidade dos Estados sob os auspícios de um órgão supervisor independente13. Mesmo que muitos países tenham se comprometido com a Convenção e seu Protocolo, o que se observa é que há uma tendência a burlar o dever legal de oferecer ao refugiado a proteção de que ele precisa. Como já mencionado, o refúgio ocupa um lugar especial no Direito Internacional delineado pelo conflito entre a soberania estatal (caracterizada pela territorialidade e autopreservação) e os princípios humanitários (expressos no Direito Internacional dos Direitos Humanos). Contudo, o Direito Internacional dos Refugiados continua sendo um regime de proteção incompleto, encobrindo imperfeitamente o que deveria ser uma situação de exceção. (GOODWIN-GILL & MAcADAM, 2007). Como é sabido, o sistema de proteção ao refugiado foi criado para aqueles indivíduos vitimados por graves violações de Direitos Humanos, pelo colapso da ordem social ocasionado por conflitos, guerra civil ou agressão. Todavia, é um sistema

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O ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) sequer possui o status de agência especializada, o que limita não apenas seus recursos mas sua autonomia em atuar, tornando totalmente dependente da ação dos Estados.

imperfeito enquanto aos solicitantes de refúgio é negado inclusive a permanência temporária ou o retorno seguro aos seus países de origem. O status internacional legal de refugiado implica, necessariamente, consequências legais para os Estados (notadamente o respeito ao princípio do non-refoulement). E, portanto, a despeito dos interesses políticos existentes, o reconhecimento do status de refugiado gera responsabilidades legais ao Estado em relação à proteção que deve ser dispensada ao indivíduo. (GOODWIN-GILL & MAcADAM, 2007). O paradigma da nacionalidade, ainda profundamente arraigado na concepção estatocêntrica geralmente utilizada para administrar a questão da mobilidade humana, persiste como uma barreira à afirmação de direitos que deveriam ser universalmente reconhecidos. Enquanto as instituições não adotarem procedimentos que permitam a participação democrática dos indivíduos em sociedade, a exclusão continuará sendo uma amarga realidade. Como HABERMAS (2012, Vol. II, p. 300) assevera “O etnocentrismo instrumental embutido nas expectativas de proveito mútuo propõe uma política de imigração que permite o acesso de estrangeiros apenas quando houver uma perspectiva fundamentada de que eles não colocarão em risco o equilíbrio existente entre pretensões e prestações.”

Para Habermas, a construção de um Direito Cosmopolita que permita o reconhecimento dos direitos, não de “cidadãos do Estado”, mas de “cidadãos da sociedade internacional” é fundamental para a afirmação dos Direitos Humanos. A crítica feita pelo autor ao egoísmo soberano dos Estados é amenizada pela possibilidade da emancipação do ser humano da lógica de um poder opressivo. É importante ressaltar, contudo, que o filósofo não prega a superação do Estado, mas sua legitimação por meio de um processo dialógico democrático, bem como no reconhecimento de que este está inserido em uma comunidade internacional. Habermas também defende a importância das Instituições Internacionais14 no processo de construção da sociedade cosmopolita formada pela Constelação PósNacional15, apesar das críticas veementes que são feitas quanto à sua falta de legitimidade. Mesmo assim, ele reitera a importância de aperfeiçoá-las, reconhecendo

Aqui compreendidas as Organizações Internacionais Governamentais e as Cortes Internacionais. Aqui compreendida como a construção de movimentos sociais transnacionais, impulsionadas pela globalização econômica e marcada pelo surgimento de novos atores, que não os Estados, a exercer influência no cenário internacional. 14 15

seu papel inestimável como alternativa às armadilhas da soberania do Estado usada como argumento para a supressão de direitos. Os maiores males da história (guerras, perseguições políticas e religiosas, genocídio, fome) são fruto da injustiça política. A construção de uma sociedade mais justa – tanto nacional quanto internacionalmente – pressupõe a ideia de justiça como equidade, ou em um sistema de reciprocidade e equanimidade entre os povos. (RAWLS, 2002). Assim, a construção de um “Direito dos Povos” (e não dos Estados), garantiria a proteção do conjunto essencial de Direitos Humanos, cuja observância é basilar para uma visão liberal cosmopolita de uma justiça global. (RAWLS, 2004). Mas, qual a viabilidade da “utopia realista”16 rawlsiana? No atual sistema internacional, o Estado não é mais a única fonte de regulação política e jurídica, pois deve conformar sua soberania a uma realidade mundial composta por organismos internacionais, movimentos sociais, organizações nãogovernamentais e outros atores que constroem o tecido da globalização. Tal realidade implica refletir sobre a necessidade de implementar canais de participação e aperfeiçoar os já existentes, que permitam que os indivíduos possam se manifestar em processos de decisão que ocorrem em esferas transnacionais ou supranacionais. Assim, surge a necessidade de refletir sobre a possibilidade de uma cidadania global, que segundo Habermas, desafia o Estado-nação. Já que o Estado nacional se vê desafiado internamente pelo multiculturalismo, e externamente pela pressão problematizadora da globalização, cabe perguntar se há hoje um equivalente para o elemento de junção entre a nação de cidadãos e a nação que se constitui a partir da ideia de povo. (HABERMAS, 2002, p.139).

Esse substitutivo, sugerido por Habermas, é o advento de uma sociedade cosmopolita que ainda em construção, pois as Instituições Internacionais ainda são arranjos dos Estados soberanos. Segundo a visão do filósofo, a criação de mecanismos que permitam a participação democrática em nível global é fundamental para a transição de um “cidadão do Estado” para o “cidadão da sociedade” e do Direito Internacional (entre-nações) para um Direito Cosmopolita.

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Para utilizar o termo auto-nominado pelo próprio autor.

Dessa forma, a validade das normas jurídicas e a legitimidade da atuação das Instituições (nacionais e internacionais) a quem compete aplicá-las e preservá-las devem ser fundamentadas na lógica democrática, cuja afirmação política deve ser baseada na ética do discurso, que pauta o reconhecimento intersubjetivo, pilar da construção da solidariedade entre os homens e, por conseguinte da ideia de justiça. Pois, como HABERMAS (2012, vol. I, p. 133) afirma: “Os direitos humanos e o princípio da soberania do povo formam as ideias em cuja luz ainda é possível justificar o direito moderno”

Considerações finais O principal problema da consolidação do Direito Internacional dos Refugiados é a ausência de um sistema de proteção. Apesar de afirmações em contrário, não se pode perceber um sistema internacional integrado que congregue normas e instituições agindo de maneira harmônica para atingir o mesmo fim: o da “máxima proteção”. O que se tem hoje, é um conjunto fragmentado de normas e organismos internacionais governamentais (sem autonomia) e não-governamentais que tentam agir no vácuo do Estado. O arranjo internacional que fora provisoriamente estabelecido para resolver os problemas dos refugiados das duas grandes guerras na Europa, agora precisa atender às demandas de um número alarmante de deslocados. A estrutura atual não é capaz de agir sem a intervenção dos Estados. Assim como, a falta de uma uniformização do tratamento jurídico sobre as normas do Direito dos Refugiados enfraquece a capacidade de vinculação destas e aumenta a discricionariedade dos Estados em interpretar essas normas como lhes aprouver. Reconhece-se a dificuldade inerente à afirmação de direitos universais sob a perspectiva de uma sociedade internacional formada por uma constelação de Estados, centrados em seus interesses. Contudo, a construção de um verdadeiro sistema de proteção aos refugiados só será possível com a afirmação da universalidade dos direitos humanos, fruto do reconhecimento intersubjetivo que é a base fundamental da comunidade cosmopolita. Nesse contexto, não se advoga a supressão do papel do Estado e nem se negligencia a gestão de seus interesses, já que tal perspectiva é além de utópica,

ineficaz. Ainda, não se preconiza um enfraquecimento da soberania do Estado, mas uma transformação necessária desta, direcionada ao reconhecimento da responsabilidade deste pela pertença a uma comunidade internacional. Essa comunidade, complexa e plural, reclama do Estado outro perfil: não o de ente autocentrado, mas como um instrumento para consolidar direitos que transcendem suas fronteiras. Mesmo que o direito possa ter outra base fundamental, como a afirmação do poder, como advogam alguns, nenhuma ordem jurídica, especialmente uma internacionalmente constituída, pode sustentar-se sem legitimidade. A solidariedade intersubjetiva é base para essa legitimidade. A efetividade do Direito Internacional dos Refugiados necessita dessa pretensão de universalidade. Porém, ela não é possível sem a afirmação da solidariedade como base da comunidade internacional, seja idealmente baseada no senso de humanidade ou, simplesmente pelos imperativos da necessidade.

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