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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO

ISMAEL ANDRES STEVENSON DECHELETTE

“O MEXILHÃO É OURO PRETO”: RESSIGNIFICAÇÃO E RESILIÊNCIA NUM GRUPO DE MARISQUEIROS EM NITERÓI.

NITERÓI 2014

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO

ISMAEL ANDRES STEVENSON DECHELETTE

“O MEXILHÃO É OURO PRETO”: RESSIGNIFICAÇÃO E RESILIÊNCIA NUM GRUPO DE MARISQUEIROS EM NITERÓI.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, como requisito para a obtenção do título de mestre em Ciências Jurídicas e Sociais. Orientador: PEDRO HEITOR BARROS GERALDO Co-Orientador: JOSE COLAÇO DIAS NETO

Niterói, 2014

ISMAEL ANDRES STEVENSON DECHELETTE “O MEXILHÃO É OURO PRETO”: RESSIGNIFICAÇÃO E RESILIÊNCIA NUM GRUPO DE MARISQUEIROS EM NITERÓI.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Ciências Jurídicas e Sociais.

Aprovada em ________________________. BANCA EXAMINADORA: _____________________________________________________________________ Orientador: Prof. Dr. Pedro Heitos Barros Geraldo – UFF _____________________________________________________________________ Co-Orientador: Prof. Dr. José Colaço Dias Neto - UFF _____________________________________________________________________ Prof. Dr Melissa Vivaqua – UNIFEP

_____________________________________________________________________ Prof. Dr. Fabio Reis Mota – UFF Niterói, 2014

AGRADECIMENTOS Aos Pescadores da APASP, por terem me acolhido tão bem, pelas conversas, risadas, incentivos e sinceridade. Este trabalho é de vocês, mais uma vez muito Obrigado! A minha familia, tão amada e tão longe. Ao meu estimado orientador, Prof. Pedro Heitor Barros Geraldo, por, desde o início, ter tentado esta nova experiencia. Pelo apoio e incentivo em cada momento de dúvida, pela atenção e compromissso com cada um de seus alunos. Obrigado por proporcionar, além de boas risadas, mais esta conquista profissional. Ao meu estimado co-orientador, Prof. José Colaço Dias Neto, quem me ajudou em momentos cruciais para ampliar minha visão sobre o tema da pesca e me acompanhou na Ilha da Conceição em momentos de campo. Obrigado pelos incentivos! Ao estimado Prof. Ronaldo Joaquim da Silveira Lobão, pelas desorientações necessárias e saudáveis, pelas conversas, os incentivos e a amizade! Mais uma vez Obrigado! Aos Profs. Roberto Kant de Lima, Fabio Reis Mota, Lenin Pires, Marco Antonio Mello pela belíssima trajetória, pelos incentivos, amizade e a qualidade da reflexão. Muito Obrigado. Ao grupo do NEPEAC e suas ramificações por ter me acolhido como uma família. A Verissimo, Flavinha, Fred, Abrão... Obrigado pelas trocas e pelos incentivos, mais uma vez Obrigado! Às amizades que o PPGSD, o GIPED e o NUPIJ me proporcionaram: amigos especiais que, direta ou indiretamente, contribuíram para o aprofundamento das lições aprendidas; pelo incentivo para persistir na caminhada, por cada palavra de apoio, cada abraço e sorriso, pela torcida sincera. Um agradecimento especial a quem compartilho de minha trajetória e que, hoje, são irmãos e a quem devo muito: ao Bruno, à Luciana, ao Papu, à Patricia, ao Gabriel, à Elisa, à Carole, à Geraldine, ao Vitor, ao Jovelino, à Moema... Aos meus amigos na França por terem me ajudado a pagar a viagem e pelas mensagens sempre positivas, mesmo longe. Aos amigos que conheci no Brasil e, particularmente, em Niteroi. À Universidade Federal Fluminense que me recebeu e possibilitou momentos de estudo, trabalho e crescimento acadêmico. Ao Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito e seus prezados Professores, pela oportunidade das valiosas lições e da realização deste trabalho. Ao Programa CAPES Ciências do Mar, por financiar esta pesquisa. Muito obrigado!!!!! IV

Ismael Andres Stevenson Dechelette “O mexilhão é ouro preto”: Ressignificação e resiliência num grupo de marisqueiros em Niterói. Dissertação de Mestrado. Orientador Professor Dr. Pedro Heitor Barros Geraldo, Co-orientador Dr. José Colaço Dias Neto. Niterói: Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito, 2014.

RESUMO Esta pesquisa foi efetuada num grupo de pescadores e marisqueiros da Praia Grande, Niterói, RJ. Através de uma metodologia baseada na etnografia, a pesquisa caracteriza o(s) espaço(s) de reprodução cultural que estão em constante transformação. Nos últimos anos, devido à requalificação do centro de Niterói, passou a haver especulações de realocação dessas pessoas. No entanto, esse grupo invisível consegue se sustentar na atividade artesanal da cata do mexilhão, mostrando uma resistência/resiliência frente aos impactos de novos ordenamentos jurídicos e a renovação da orla de Niterói. Observaremos como o grupo convive com a “modernidade” da sociedade envolvente e se ressignifica nela através de relações sociais “tradicionais”. Assim, o mercado justifica que esta atividade continue apesar dos riscos, porque eles “nasceram para isso”. Apoio: Este trabalho contou com financiamento da CAPES com a concessão de Bolsa de Pesquisa do programa Ciências do Mar. Palavras-chave: Pescadores Identidade e Resiliência.

Artesanais,

Marisqueiros,

Gentrificação,

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“O MEXILHÃO É OURO PRETO”: Ressignificação e Resiliência num grupo de marisqueiros em Niterói.

ISMAEL ANDRES STEVENSON DECHELETTE NITEROI 2014

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Lista de siglas

APASP, Associação de Pescadores e Amigos de São Pedro. CAPES, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. CLT, Consolidação das Leis Trabalhistas. FIPERJ, Federação Instituto de Pesca do Estado do Rio de Janeiro. GIPED, Grupo Interdisciplinar de Pesquisas Em Direito. IES, instituições de ensino superior. InEAC Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos INCT, Instituto Nacional de Ciências e Tecnologia. MPA, Ministério da Pesca e da Aquicultura. NEPEAC, Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão de Administração Institucional de Conflitos. NUPIJ, Pesquisas sobre Práticas e Instituições Jurídicas. PESCART, Programa de Assistência à Pesca Artesanal. PPGSD, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito. PROPPI, Pró-reitora de Pesquisa, Pós- Graduação e Inovação. Resex-Mar, Reserva Extrativista Marinha. RGP, Registro Geral da atividade Pesqueira. UFF, Universidade Federal Fluminense.

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Lista de figuras e fotos Foto 1 Praia Grande Antes e depois do "Aterro", foto montagem feita pelo autor. ................ 33 Foto 2 Deslocamentos no tempo do espaço de reprodução, produzida pelo autor. ................. 34 Figura 3 - Cadeia do processamento do Mexilhão, o espaço do Del, desenho próprio. .......... 49 Foto 4 Espaço do Del com Mayara e Maria descascando, foto do autor. ................................ 51 Figura 5 - Processamento no espaço do Luisão, desenho do autor. ......................................... 53 Foto 6 Espaço do Luizão; Triagem e Cozimento, foto do autor. ............................................. 53 Foto 7 Espaço do Luizão; “Descascamento” do Mexilhão cozido, foto do autor. .................. 54 Foto 8 Espaço do Luisinho; processamento do Mexilhão dentro do barco, foto do autor. ..... 55 Foto 9 Lavando o mexilhão, tríptico do autor.......................................................................... 56 Figura 10 "circularidade" das rendas entre marisqueiros......................................................... 60 Figura 11 Caráteres estruturais da concha do bivalve Perna perna (RIBEIRO-COSTA e ROCHA, 2002). ....................................................................................................................... 68 Figura 12 Mexilhões cozidos, foto do autor. ........................................................................... 70 Figura 13 - Os pescadores da Praia Grande e os grandes empreendimentos que o cercam, foto Google Earth, desenho do autor. .............................................................................................. 72 Foto 14 Espaço de reprodução dos Pescadores, fonte Google Earth. ...................................... 73 Figura 15 - Box e rampa, desenho do autor. ............................................................................ 74 Foto 16 Os boxes e um dos pescadores, foto do autor. ............................................................ 75 Foto 17 A rampa, foto do autor. ............................................................................................... 76 Figura 18 Área inicialmente prevista a ser "requalificada" ou "revitalizada", e situação da APASP, feito pelo autor) ......................................................................................................... 83 Figura 19 Os grandes empreendimentos que envolvem a APASP, feito pelo autor................ 84

VIII

Sumário Introdução ................................................................................................................................ 10 Metodologia: “O que você está fazendo aqui, o gringo?” (Airton) ......................................... 16 Sobre a atividade da Pesca ....................................................................................................... 25 As transformações: “Nós saímos de lá, nós viemos pra cá, agora estamos aqui, e amanhã nós vamos pra onde?” (Pardal). ...................................................................................................... 30 Breve história do local ............................................................................................................. 31 Lugares de cata ........................................................................................................................ 37 Estatuto das pessoas envolvidas............................................................................................... 40 “Mas se ficamos por aqui perto está bom” (Paraíba). .............................................................. 43 A Atividade: “O mexilhão é ouro preto” (Del) ........................................................................ 47 O mergulho: “A gente gosta de mergulho mesmo” (Luizão) .................................................. 62 Se Situar: “Vou estar aqui no cais” (Del) ................................................................................ 70 Descrição física do local .......................................................................................................... 73 Relações Sociais: Vínculos, Socialização e Hierarquia. .......................................................... 77 Os Desafios: “Nós temos que estar preparados” (Airton). ...................................................... 80 Requalificação do centro.......................................................................................................... 81 Resiliência e ressignificação .................................................................................................... 88 Conclusões ............................................................................................................................... 93 Bibliografia .............................................................................................................................. 94 Bibliografia mexilhão ............................................................................................................ 100 Sitografia jurídica................................................................................................................... 101 Leis ......................................................................................................................................... 102

IX

Introdução “Mar de Rosas”: assim os pescadores chamavam antigamente a nossa famosa Baía de Guanabara. Famosa um dia por suas “flores aquáticas” e pela vida marinha em abundância. Hoje, observam-se estaleiros, barcos gigantes e lixo. Mas ainda sobrevive uma categoria sócio profissional de pesca artesanal num local que foi transformado por inúmeros empreendimentos. Neste espaço da antiga Praia Grande, atualmente Aterro no centro de Niterói, há um local onde a Associação de Pescadores e Amigos de São Pedro, a APASP – constituída por pescadores da Praia Grande – compartilha um espaço comum de reprodução cultural. Este espaço, em constante transformação nos últimos anos, encontra-se novamente sujeito a especulações de realocação. Todavia, dentro desta paisagem improvável, quase invisível, esse grupo de pescadores e marisqueiros consegue se sustentar em uma atividade artesanal, com formas de processamento tradicionais, através de um recurso que veio a ser a especificidade do local: o mexilhão. Assim, como me falou Del, meu amigo e informante, no meu primeiro encontro: “mexilhão é ouro preto”, justificando a atividade e as relações com as quais se sustenta. Os catadores de mexilhão acordam cedo, e saem para o mar entre às 4h e 5h da manhã, para o lugar de destino. Isso acontece quando há mexilhão. Del é “marisqueiro”, tem 47 anos e nasceu e foi criado em Niterói: “Praticamente na favela, no morro do Cavalão”, contou. Mergulha há mais de 30 anos e é pescador de “avô pra pai e pai pra filho”. Segundo ele, essa atividade é a sua paixão.

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Essa configuração particular traz consigo uma série de questionamentos relevantes a respeito dos impactos que novos ordenamentos jurídicos, bem como a renovação da orla de Niterói, podem provocar na atividade pesqueira da antiga Praia Grande. Descobriremos que tal atividade resiste e se adapta, por homens que não deixam de trabalhar e a continuando a se projetar. Observaremos como, mediante relações sociais tradicionais mantidas no grupo, convivem com a modernidade na sociedade envolvente. Mas podemos nos perguntar o que seria desse grupo de pescadores sem uma capacidade de resistência/resiliência sustentada pelo mercado? Mercado este que justifica que esta atividade continue apesar dos riscos, porque “mexilhão é ouro preto”, e eles “nasceram para isso”. Meu encontro com os pescadores começou quando da confecção do projeto “Uma etnografia comparada de quatro situações de pesca”, no qual eu descrevi qual seria o meu projeto de estudo para o mestrado em Sociologia e Direito. O projeto pretendia estudar, sob a perspectiva antropológica, os pescadores de Arraial do Cabo, Jurujuba, Itaipu e Ilha da Conceição, mais precisamente em relação ao novo Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP) de 2011. Após o início do mestrado, me pareceu, assim como para os professores que me orientaram, que quatro situações de pesca seriam demais para se fazer uma etnografia como projeto de mestrado. Em dois anos, duas situações já eram suficientes. A partir daí, decidi estudar a Ilha da Conceição e Jurujuba. Depois de algumas idas a campo, porém, Jurujuba me pareceu um pouco distante das problemáticas que então me interessavam; além disso, conheci pouco depois um grupo dos “pescadores da Praia Grande”, cujo verdadeiro nome é Associação de Pescadores e Amigos de São Pedro (APASP) – Na verdade, há dois locais de pesca que entram nessa categoria, isto é, os pescadores da Rua da Lama e a APASP. Contaram-me que durante algum tempo todos se chamavam “pescadores da Praia Grande”, mas, devido à pouca permeabilidade, cada grupo passou a agir de forma independente. Durante essa fase indecisa, na qual procurava “colocar minha âncora num local”, surgiu o interesse da Prefeitura de Niterói pelos pescadores e mergulhadores da APASP, com o objetivo de desenvolver um projeto chamado de “Requalificação do centro de Niterói”, exatamente no local de reprodução dos membros desta associação. 11

Em novembro de 2012, fui pela primeira vez no local onde está situada a APASP a fim de conversar com os pescadores e tentar entender as particularidades daquele espaço. A princípio, minha pesquisa tinha a clara intenção de compreender os direitos dos pescadores artesanais, conforme previsto no novo Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP), sob uma perspectiva comparativa com a Ilha da Conceição, onde já havia, há três meses, estabelecido vínculos. Não sei exatamente o que me intrigou nesse local, talvez o simples fato de sempre passar em frente sem nunca ter percebido que existiam ali pescadores, em meio a tantos empreendimentos urbanos. Na primeira vez, lembro-me de ter acompanhado o fluxo de pessoas saindo das barcas é indo para o terminal rodoviário, correnteza humana que, dependendo do horário, torna-se um rio que transborda da calçada para a rua. Não sabia exatamente como chegar, mas me deixei levar e atravessei o Bay Market, para aproveitar o ar fresco e fugir do sol quente – atrás, onde o terminal e o shopping se encontram, bem na esquina, há um “boteco”, que oferece um lugar em baixo de árvores grandes. No final do dia, as pessoas costumam beber cervejas “geladas”, sob a sombra de uma árvore, perto de uma prainha; um cantinho minúsculo, cuja areia é cheia de resíduos de conchas de mexilhão: vestígio da famosa e antiga “Praia Grande” de Niterói? Em um primeiro momento, nós (no grupo de pesquisa) chamávamos aquele grupo de “Pescadores da Praia Grande”; embora eu não entendesse o porquê dessa categoria, se não havia praia, tampouco “Grande”. Fui descobrir, entre conversas e pesquisas sobre a história de Niterói, que, na década de 1940, aconteceram transformações urbanísticas importantes nesse local. O decreto-lei federal nº 2441 de 23 de Julho de 1940 autorizou a “Prefeitura de Niterói a executar o Plano de Urbanização e Remodelação da Cidade, permitindo o aterro da faixa litorânea central entre a Ponta da Armação e a Praia das Flexas”. O Plano de ocupação teria “constituído no arruamento e parcelamento de aproximadamente 1.000.000m² de aterro”. O loteamento recebeu a denominação de Jardim Fluminense, somente sendo aprovado pela Prefeitura em 29 de Agosto de 1967, compreendendo as áreas da Enseada da Praia Grande, Enseada de São Domingos e Morro do Gragoatá. Durante certo tempo, continuamos a chamá-los assim, até um dia descobrir que havia, em algum lugar, uma associação, constituída pelos pescadores desse local, chamada de “Associação de Pescadores e Amigos de São Pedro (APASP)”. 12

Ao passar o terminal das barcas, entrei no Bay Market – antes do terminal de ônibus e antes do teatro popular, onde passa o caminho Niemeyer, com obras do célebre arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012) – e fui parar em uma rua estreita, com cheiro forte de urina e esgoto, onde estavam sentadas algumas pessoas em baixo do muro do terminal, aproveitando a sombra. Continuei meu caminho dirigindo-me para os barcos. Uma pequena entrada entre os “boxes” alinhados permite entrar no espaço dos pescadores ali instalados; um cachorro preto, velho e gordo estava dormindo na sombra e perto dos chuveiros. Na minha frente encontrava-se uma escada que levava a um cais de madeira. Descendo pelos seus degraus, alcancei a rampa onde estavam parados os barcos à frente de seus respectivos boxes. No cais havia uma pessoa: era Brinquinho, a quem me apresentei, explicando o objetivo de minha visita, ou seja, que estava pesquisando sobre pescadores. Perguntei se ele era pescador e o mesmo respondeu afirmativamente, levando-me até Del, um pescador que estava conversando com Paraíba, quem pintava seu barco, e Airton; estavam sentados na sombra dos boxes. Brinquinho me apresentou a Del como o “cara que entende tudo daqui” e o “presidente da associação”. Conversamos um pouco, expliquei meu projeto de pesquisa, entre os boxes e os barcos; eu no sol e eles na sombra. Mas, para ser franco, na primeira visita não entendia quase nada. Conforme minhas idas a campo tornavam-se mais frequentes, minha socialização me permitiu entender mais, compreendendo um mundo totalmente diferente e complexo. Em primeiro lugar, nos locais de pesca que visitei, percebi que quando se fala de pescador artesanal na Baía de Guanabara, tem-se necessariamente que ligar com temas sobre a ilegalidade e a informalidade, que caracterizam a atividade pesqueira na região, tanto nos ordenamentos espaciais, ambientais e de higiene, quanto nos relativos à legislação trabalhista. Pesquisando sobre o tema, fui me socializando com as pessoas que exerciam atividades no local, como a cata de mexilhão em banco natural, a pesca de mergulho com arpão e alguns trabalhos avulsos de mergulho, como limpar plataformas, barcos etc. Fui surpreendido pela diacronia entre as transformações desse grupo de pescadores e a “sociedade” envolvente, no que diz respeito ao entendimento do ordenamento jurídico acerca dessa atividade, que termina por marginalizá-la, 13

colocando-a na “ilegalidade”. Entretanto, a Prefeitura de Niterói propôs um projeto chamado “requalificação e revitalização” do centro de Niterói, que consiste em “modernizar” os bairros do centro da cidade, a fim de transformar a “cara” do centro da cidade, melhorando as vias de transportes, os prédios, a orla e a estética desse espaço. Projeto que contém uma série de questões de realocação dos marisqueiros e pescadores da APASP, uma vez que o lugar de reprodução cultural deles entra em outros projetos como a “plataforma intermodal de transportes”.1 A “realocação” dos pescadores, a princípio, deveria ser feita nas proximidades do mercado de peixe e da rua da lama, onde está prevista a construção da dita “Nova Vila de Pescadores”. Como pesquisador do local, fui convidado a participar de reuniões entre o Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisa (NUFEP) e a Prefeitura de Niterói, a fim de elaborar uma parceria entre a UFF e a Prefeitura. Parceria que não aconteceu, mas que orientou minha pesquisa a caracterizar essa atividade no local da APASP e a entender as complexidades para poder trabalhar sobre uma “realocação”. Esta “realocação” visaria à melhoria do processo da atividade e à incorporação dos “pescadores” dentro da requalificação do centro, tanto econômica como turisticamente. O tempo de minha pesquisa permitiu entender a complexidade do local e identificar tensões e conflitos entre a referida atividade e o conjunto de transformações urbanísticas, sociais e jurídicas que pressionam os atores envolvidos na APASP. Estas transformações importantes vêm reconfigurar as “projeções” para dar continuidade a essa atividade como fonte de renda e produção de mexilhão. Paralelamente, a resiliência do grupo molda as identidades desses pescadores no local em que tiveram que reconfigurar suas atividades e espacialidades. Na primeira parte desta dissertação, explicitarei de que forma empreendi a pesquisa, descrevendo minha relação com a metodologia aplicada para obter o material que aqui será exposto. Assim, tornarei clara a minha trajetória quanto à relação desenvolvida com o objeto de estudo, assim como em relação à forma como me socializei com o tema.

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Explicarei num capítulo a posteriori em que consiste este projeto de plataforma intermodal de transportes.

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Em seguida, descrevo a particularidade do local e da atividade principal que é a “cata de mexilhão”, uma atividade pouco conhecida pela sociedade envolvente. Apresento, também, as formas de conviver numa espacialidade particular, na beira da Baía de Guanabara, e as relações sociais no local relatando, onde se pratica uma atividade que se tem conservado praticamente a mesma desde os anos 1970. Com mais familiaridade com essa atividade, apresento as transformações ocorridas nestes últimos anos. A partir de relatos e pesquisas, demostro a trajetória desses pescadores no que diz respeito à atividade deles nos âmbitos jurídico, urbanístico e ambiental, para entender as projeções elaboradas por tais atores. Essas transformações relatam as pressões de uma modernidade sobre um grupo que resiste aos novos ordenamentos. Finalmente, descrevo quais seriam os novos desafios para esses pescadores que resistem à gentrificação do centro, continuando a exercer esta atividade, com base numa resiliência da identidade desse grupo.

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Metodologia: “O que você está fazendo aqui, o gringo?” (Airton) Esta pesquisa teve início em dezembro de 2011, quando recebi um e-mail, no qual me ofereceram uma bolsa para fazer um mestrado em ciências sócias e jurídicas (PPGSD) na Universidade Federal Fluminense; a bolsa seria vinculado ao CAPES, dentro do programa Ciências do Mar. Essa proposta foi encaminhada para a França pelo Professor Pedro Heitor Barros Geraldo, quem hoje me orienta na linha de pesquisa “Relações de trabalho, direitos sociais e instituições”. Ao receber o e-mail, todo um processo foi desencadeado, a começar pela decisão de ingressar nessa “aventura”; o que iria transformar radicalmente a minha vida. Nesse sentido, o material aqui apresentado insere-se em uma genealogia de estudos desenvolvida no âmbito do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas da Universidade Federal Fluminense sobre as denominadas “populações tradicionais”, tomadas sob seus mais diversos aspectos, quais sejam, o direito costumeiro, o conhecimento naturalístico, as características das estruturas de produção, seus contextos tecnológicos, as formas de manejo dos ecossistemas, bem como a organização social dos grupos dedicados à atividade pesqueira. Tal empreendimento foi impulsionado pelo Professor Luís de Castro Faria, com a elaboração de uma etnografia sobre o assentamento de Ponta Grossa dos Fidalgos ainda no final dos anos de 1940. Castro Faria empreendeu um amplo registro da morfologia social e da atividade pesqueira desenvolvida historicamente nessa localidade fixada na margem norte da Lagoa Feia, no município de Campos dos Goytacazes. Seu trabalho fazia parte de um ambicioso programa de Estudos de Comunidade do qual resultaria, nos anos 1940 e 1950, uma série de publicações relevantes para a assim chamada Antropogeografia e para as Ciências Sociais no Brasil, tanto do ponto de vista conceitual, quanto metodológico. Uma década mais tarde, o mesmo professor iniciou trabalho etnográfico junto aos pescadores de Arraial do Cabo – porção litorânea da conhecida Região dos Lagos no litoral do Rio de Janeiro. Se por um lado seus esforços em Arraial chamaram a atenção pela maneira peculiar com que se evidenciaram as tensões entre pescadores artesanais, uma grande empresa produtora de barrilha e sal e órgãos de controle e monitoramento ambiental, por outro, marcou o início de trabalhos acadêmicos feitos 16

por pesquisadores com formação em Antropologia e com preocupações voltadas aos povoados pesqueiros espalhados pela costa fluminense. O interesse pela tópica da pesca artesanal, ainda na década de 1970, pode ser atestado também pela participação de pesquisadores que, atualmente, estão ligados ao NUFEP e que naquela época integravam a equipe do Programa de Assistência à Pesca Artesanal (PESCART). Deste empreendimento participaram, ainda no início de suas carreiras, os professores Roberto Kant de Lima e Marco Antonio da Silva Mello, colegas de departamento e ex-alunos de Castro Faria, por ocasião do Bacharelado em Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense. A aproximação junto aos assentamentos pesqueiros litorâneos que se deu através do PESCART abriu um interessante campo de estudo levado à frente por esses e outros pesquisadores. A consolidação dessa temática, por um lado ligada à gestão governamental e por outro às preocupações acadêmicas dos membros envolvidos, gerou trabalhos seminais como “Pescadores de Itaipu - Meio Ambiente, Conflito e Ritual no Litoral do Estado do Rio de Janeiro”, apresentado primeiramente como dissertação de mestrado ao Museu Nacional em 1978 e, posteriormente, publicada na Coleção Antropologia e Ciência Política da Editora da Universidade Federal Fluminense (Eduff) e “Gente das Areias – História, Meio Ambiente e Sociedade no Litoral Brasileiro”, fruto de um logo trabalho de campo iniciado em 1975 e publicado pela mesma editora no ano de 2004. Ao me socializar dentro desse âmbito acadêmico entrei também numa longa genealogia acadêmica de estudos e pesquisas sobre tais temáticas, que me permitiu participar do Programa Ciências do Mar da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Este programa tem como objetivo estimular e apoiar a realização de projetos conjuntos de pesquisas no País, utilizando-se de recursos humanos e de infraestrutura disponíveis em diferentes instituições de ensino superior (IES). O projeto associado ao Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (InEAC) – o qual o NUFEP é a sede – chamava-se “Formação de Recursos Humanos para a Concepção, Consolidação, Gestão de Políticas Públicas de Conservação e Manejo de Recursos Naturais Renováveis e Áreas Marinhas Protegidas”. O propósito era institucionalizar uma interlocução acadêmica entre diferentes grupos de pesquisa, cujos interesses 17

estivessem voltados para a investigação comparativa de criação e gestão de Unidades de Conservação Marinhas, ou Áreas Marinhas Protegidas, no Brasil e na Argentina. Tal proposta se justifica, ainda, em virtude do interesse comum dos grupos do Brasil e da Argentina em torno do eixo temático central do projeto. O mencionado programa deu bolsas de pesquisa para oito alunos da Universidade Federal Fluminense, entre os quais faço parte. Do mesmo modo, devese destacar alguns importantes trabalhos confeccionados no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito: Carolina Llanes Guardiola está produzindo uma tese de doutorado intitulada Gestão Local em áreas marinhas protegidas: o caso da Resex de Corumbau no território indígena de Barra Velha; Tatiana Calandrino Maranhão defendeu a dissertação Significados da Pactuação entre Órgãos Públicos Ambientais e Populações Tradicionais, em 2012;; Luciana Loto apresentou a dissertação Reservas Extrativistas Marinhas vs. Áreas de Manejo e Exploração de Recursos Bentônicos: comparação de modelos de gestão compartilhada de áreas marinhas protegidas no Brasil e no Chile, em 2012. Na área da Antropologia, através do Programa de Pós-graduação em Antropologia, destacamse os trabalhos de Geraldine Augusto de Araújo e Silva intitulado Dinâmicas Sociais, Organização Política e Conflitos da Pesca Artesanal na Foz do Rio São João (RJ), em 2012, e de Victor Von Rondon Carvalhido, "Do direito à vez" a vez dos direitos: Conflitos e Representações acerca do espaço e do trabalho no Canto de Itaipu, no mesmo ano. Juntam-se a esses textos, os trabalhos, em fase de conclusão, de Bruno Leipner Mibielli e de Allan Sinclaur Haynes de Menezes, mestrandos do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito. Como a bolsa era proveniente do Programa Ciências do Mar, o “contrato” era para trabalhar sobre populações pesqueiras. Nesse sentido, apresentei um projeto que foi elaborado a partir de uma proposta do Professor Ronaldo Lobão. O intuito era estudar, numa perspectiva comparada, quatro situações de pesca no estado do Rio de Janeiro no âmbito do novo RGP, na linha de pesquisa Relações de Trabalho. Chegando à Niterói, entrei no grupo de pesquisa que se auto intitulava Grupo Interdisciplinar de Pesquisas em Direito (GIPED), sediado no Núcleo de Pesquisas sobre Práticas e Instituições Jurídicas (NUPIJ), o qual está ligado ao Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão de Administração Institucional de Conflitos (NEPEAC), 18

vinculado a Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós- Graduação e Inovação (PROPPI). Através do GIPED, dirigido pelo professor Ronaldo Lobão, me socializei com as temáticas ligadas à pesca, na medida em que entrei em contato com outros estudantes e pesquisadores da área e do mesmo Programa Ciências do Mar. Além disso, passei a compreender outros temas, como as unidades de conservação, os conflitos socioambientais, as populações tradicionais e o Direito; especialmente no estado do Rio de Janeiro. Até entender onde “eu me encontrava”, tive dificuldades em concatenar inúmeras informações acerca dessa trajetória, da qual hoje eu faço parte. Primeiro fui descobrir os pescadores de Itaipu, local que tem sido uma fonte de conhecimento e de atuação desse grupo. A maioria dos pesquisadores que tem trabalhado com temas ligados à pesca conhece muito bem a região de Itaipu, desde a década de 1970 até recentemente. Na ocasião, me pareceu um campo “cercado demais” por outros pesquisadores, motivo pelo qual fui explorar as pistas de Jurujuba e da Ilha da conceição. Duas situações de pesca já bastante diferentes devido à relação mais “industrial” da atividade. Após algumas idas à Jurujuba e à Ilha da conceição, com a finalidade de entender melhor as políticas relativas à pesca e a sua trajetória na paisagem institucional, comecei a perceber temas ligados à pesca dentro da Baía de Guanabara, bem como alguns conflitos relativos a esse lugar, a exemplo das problemáticas ligadas à espacialidade e ilegalidade. À época, em uma das reuniões sobre o projeto da implementação de uma Reserva Extrativista Marinha (Resex-Mar) de Itaipu, Niterói, um grupo de pescadores conversou com o Prof. Ronaldo Lobão sobre os problemas que lhe afetavam, como a pressão urbana e os grandes empreendimentos no centro da cidade. Naquele momento, apresentaram-se com o nome de “Pescadores da Praia Grande”; mas logo descobrimos que eram os pescadores da APASP. Encontrei na APASP um campo perfeito pra trabalhar, com a intenção de fazer uma etnografia comparada com a Ilha da Conceição, uma vez que se trata de um lugar de fácil acessocom temáticas similares e um bom acolhimento por parte das pessoas que ali exercem suas atividades; embora haja atividades diferentes nos dois lugares. 19

Entre idas e vindas, da Ilha da Conceição para a APASP, concentrava-me em entender as estratégias ligadas aos usos dos direitos dos pescadores profissionais artesanais na paisagem da atividade. Após alguns meses de socialização no local, fui convidado a participar de uma reunião entre o NUFEP e a Prefeitura de Niterói sobre uma possível colaboração no “Projeto de Requalificação do Centro de Niterói” no campus da UFF no Gragoatá. Essa reunião mudou ou de alguma forma transformou o foco da pesquisa. Por acreditar em uma possível colaboração, imaginei receber uma bolsa para trabalhar com os pescadores da APASP, e, rapidamente, me debrucei sobre temáticas ligadas à reprodução cultural no espaço da beira, como o processamento do mexilhão, a utilização espacial, as rendas e as pessoas envolvidas no processamento etc. Isso certamente influenciou a coleta de dados e, portanto, o trabalho aqui apresentado. Quando se trata de fazer uma pesquisa etnográfica a respeito de temas que abrangem problemas sociais no âmbito do Direito associado à realidade local, confrontamo-nos com dilemas metodológicos que merecem alguma reflexão prévia. Para mim, incorporar o Direito dentro do meu objeto de pesquisa é um desafio importante, ainda mais quando se trata de direitos brasileiros. Atualmente, a Antropologia e seus campos de estudo tornam-se cada vez mais em uma reflexão sobre as relações entre grupos ou coletivos diferenciados, de certa forma, com o Estado e sua gestão do território. As leis são formas de se organizar essa relação entre pessoas ou coletivos em um território especifico e de se definir sua relação “legal” com o mundo envolvente. Mas entender o Direito é também entender os mecanismos sociais intrínsecos a ele, e ver como se cria uma “cultura” do Direito em relação ao poder. No Brasil, assim como detalha Roberto Kant de Lima, “a liberdade de cada sujeito (...) não depende daqueles que lhe são iguais, mas daqueles que ocupam uma posição social superior” (KANT DE LIMA, 2009). Embora o romantismo da democracia nos tenha alimentado de ideais acerca de nossa condição de indivíduos livres e iguais em direitos, as sociedades e as culturas têm interpretado, ou utilizado, o direito como fonte de poder dentro de uma estrutura 20

social desigual em status: O contrato moderno não nasceu de um acordo entre homens livres e iguais em status, embora não necessariamente em poder, o status não foi eliminado do sistema social. O status diferencial associado com classe, função e família, foi substituído pelo único status de cidadania que ofereceu o fundamento da igualdade sobre a qual a estrutura da desigualdade foi edificada (MARSHALL, 1967). Ao observar as relações entre indivíduos na sociedade brasileira, entendemos melhor o conceito de “sabe com quem você está falando” de Roberto Da Matta, no qual as relações sociais, intersubjetivas, ligadas ao status dentro da pirâmide de poder determinam sua posição na sociedade e seu grau de “respeitabilidade”. O Estado, na sociedade brasileira, sempre teve um papel muito forte, de regulador; mas dá a impressão que, como comenta Kant de Lima, Para estabelecer arranjos mais justos na estrutura social, a estratégia oficial tem sido a minimização da interferência na vida social para deixar que as forças sociais e os interesses econômicos se ajustem e organizem o livre jogo do mercado, apenas monitorado pelo Estado (KANT DE LIMA 2009). Essa estratégia estatal tem, contudo, seus paradoxos: O paradoxo da Estratégia mencionada; deseja-se o mercado e a explicitação dos interesses para que se autorregulem, mas considera-se indesejável a turbulência daí decorrente (...) é clara a estratégia repressiva da cultura institucional (Idem). Em um modelo de cima para baixo, piramidal, o Estado regula a sociedade através do poder do Direito nas relações entre indivíduos e instituições. Nesse sentido, o Direito não é visto como uma coisa neutra e imparcial, mas como um conjunto de relações sociais nas quais as estruturas estruturadas estruturam (BOURDIEU, 1988) os indivíduos no modelo citado, ou seja, cada vez mais sujeitos ao mercado econômico e as especulações feitas pelo mesmo. Essas observações me parecem importantes ao observar as relações de 21

pescadores nas relações que eles mantêm com o Estado, o Direito e com a economia. A fim de entender da melhor maneira possível o local, tentei basear minhas observações sobre a empiria do trabalho de campo etnográfico. Parece-me importante, nesse sentido, ter uma postura que relativize a importância do “saber local” (GEERTZ, 1986) em relação ao saber acadêmico e institucional. Para tanto, considerei-me como “Outro”, tentando entrar em contato com um grupo de indivíduos que tem estabelecido uma socialização em torno da atividade pesqueira, em locais bem específicos, com temáticas particulares. Detalhar e comparar as diversas situações particulares de pesca em Niterói, quanto ao novo RGP de 2011, permitiu produzir conhecimento e reflexões sobre a realidade local no que diz respeito à definição legal, mesmo que, para Weber (2004), “o direito faz [faça] a mediação entre os ideais e a realidade e, por isso constitui a essência da ordem normativa da sociedade”. Parece-me que no caso a ser estudado e aprofundado, no que diz respeito à relação entre ideais e realidade, há um grande abismo, na medida em que cada um olha para as vantagens que pode tirar do mercado. Minha pesquisa foi ganhando em complexidade cada vez que eu ia a campo e conforme as questões relativas a projeções feitas sobre qual seria meu foco de estudo foram se diluindo com as temáticas locais no período da minha socialização no local. Para mim, fica claro que a partir do momento em que o tema da realocação entrou como possível parceria entre a Prefeitura de Niterói e a APASP, o objeto que tratava de trabalhar sobre o novo RGP de 2011 deixou lugar a uma observação feita na base do espaço na beira; mais precisamente, sobre a atividade de pescadores ali estabelecidos. Das entrevistas As entrevistas são, nas Ciências Sociais, um recurso para obter dados qualitativos e quantitativos que complementam as observações feitas no campo (BEAUD e WEBER, 2003). Já sabemos que as perguntas, assim como a postura do entrevistador, são elementos importantes para realizar as entrevistas. No meu caso, comecei no meu segundo dia de campo a fazer uma entrevista aberta gravada com o 22

Del. O tema abordado foi obviamente a pesca. Essa entrevista me permitiu abrir a porta para várias interrogações quanto à atividade e ao uso do espaço no local; ao final, fechei o meu tema e fiquei perguntando mais sobre os usos dos direitos – o que foi, a meu ver, um erro metodológico, pois quis obter informações de forma muito rápida. Essa “pressa” teve consequências: quando quis marcar outras entrevistas, eles, de certa forma, tentaram se esquivar. Assim, apesar de querer falar novamente com o Del, este me disse que não era mais necessário.. Entretanto, enquanto minha socialização se construía no local, minha postura de “pesquisador” se diluía com a minha identidade que se construía no grupo; de alguma forma passaram a se sentir mais à vontade comigo e com a minha postura de pesquisador. Ao entender a relação das pessoas com a espacialidade e a forma de socializar no local, percebi que tentar de qualquer forma fazer entrevistas poderia se tornar um elemento prejudicial à continuidade da pesquisa. Naquele espaço, as pessoas transitam constantemente de um lado pra outro, dando prioridade a uma socialização baseada no trabalho e nas relações com alguma intenção de utilidade. Tal espaço de reprodução sociocultural está estruturado para a reprodução da atividade, e são poucos os espaços que permitem uma socialização mais aberta. Observando como se dividem os espaços, entendi que a socialização gravitava em torno da atividade do trabalho; o que definia de certa forma os tempos de socialização e os tempos nos quais eles tinham que se “encaixar” na minha pesquisa. Isso fez com que modificasse a minha relação de pesquisador rígido para um pesquisador socializado. Falo a respeito disso porque acho interessante como as relações vão se transformando à medida que as pessoas se (re)conhecem dentro de um âmbito de socialização, que permite a ambos identificar o outro como fazendo parte do universo dele, tanto no significado da presença de cada um nesse espaço, como na posição que valoriza essa experiência como parte de uma metodologia de pesquisa. As entrevistas feitas, posteriormente, foram baseadas em situações mais informais, assim como em conversas nas quais me interessava por um tema em particular e “trocávamos ideias” sobre temas diversos. Algumas vezes, busquei informações mais precisas, e anotava em um caderno as respostas que preenchiam 23

indagações. Essa metodologia que se construiu ao longo da pesquisa teve a dupla vantagem de ser uma fonte de coleta de dados concretos e de mostrar para as pessoas entrevistadas que eu estava de alguma forma fazendo meu trabalho de pesquisador, ou seja, o de “coletar dados”. A Socialização como postura do pesquisador Como mencionado anteriormente, a minha socialização tem importância no momento de se abordar a metodologia, na interpretação que tive na construção de um campo e na sensibilidade intersubjetiva que construí com esse grupo de pescadores. Desde que as Ciências Sociais interpretaram a relação entre sociedade e individuo, socialização tem sido um conceito chave na compreensão de como grupos de indivíduos constroem uma interdependência social e cultural, o que podemos chamar de “sociedade”. Chamarei de socialização, de maneira geral, o processo a partir do qual o indivíduo se “insere” num conjunto social através do qual se constrói uma nova identidade social. Assim como existem agentes de socialização diferenciados para cada indivíduo, acho que existem vários tipos de socializações dentro da nossa socialização. Estou querendo explicar através desse argumento a incompletude do olhar do pesquisador; posso, inclusive, agregar as considerações epistemológicas de Merleau-Ponty sobre a “fenomenologia da percepção”, a qual nos leva a refletir sobre como o mundo é percebido através de órgãos sensitivos e interpretado por nós mesmos dentro de uma “cosmologia” própria. Ou seja, a minha relação com o campo é única e, portanto, corresponde a um olhar, um escutar, um sentir e uma escrita singular; uma experiência intersubjetiva compartilhada com um grupo de pescadores, em tempos e espaços definidos. A metodologia da pesquisa de campo tem se construído em grande parte por autores como Marcel Mauss (1926), quem aconselha aos etnógrafos que se anote tudo, e com Malinowski (1922), quem inventou o que costumamos chamar na antropologia de “observação participante”, método que consiste em uma aproximação dos pesquisadores com a realidade dos atores locais – segundo a minha proposta, uma espécie de socialização –, a fim de ter um olhar mais próximo da cultura observada, o que Roberto Cardoso de Oliveira chama de “fusão de 24

horizontes”, em um famoso artigo intitulado “Olhar, ouvir, escrever”2,confeccionado a partir de uma de suas aulas, em 1994. Atualmente, a Antropologia tem tomado direções múltiplas no que diz respeito à metodologia, ao campo e às correntes de pensamento, fruto de um século de trajetória da disciplina. Com as transformações da “modernidade”, como contexto de multi-transformações, o campo como base de uma etnografia tem tomado cada vez mais dimensões, dependendo de onde se vai observar. O pesquisador, nesse caso, torna-se uma figura “ativa” do processo, o que implica, de certa forma, em uma atuação cada vez mais política na hora de pesquisar onde há conflitos. Com a intenção de elaborar uma etnografia que envolve vários atores e, entre eles, a “sociedade envolvente” da APASP – tanto fisicamente; a pressão urbana, ou então politicamente com a construção de projetos e leis exteriores que afetariam diretamente este grupo – não podia deixar de consultar outras fontes. Assim, utilizei a internet como uma extraordinária fonte de informações, para obter artigos, mapas, leis, atas etc., de modo que pudesse ampliar minha visão sobre a realidade, em construção com a minha socialização no campo. Além disso, foi possível produzir conhecimento a partir do cruzamento de dados obtidos em campo, nas leituras e através de interpretações pessoais.

Sobre a atividade da Pesca Trajetória das políticas relativas à Pesca Luís de Castro Faria identificou três fases para a produção bibliográfica sobre pescarias e pescadores, concebidas mais em termos de problemáticas comuns do que em função de uma cronologia linear. A primeira corresponde à presença do Estado no ordenamento, nacionalização e gestão oficial das atividades pesqueiras. A segunda tem como marca a produção de trabalhos de cunho científico ou técnico, voltados para a dimensão da melhoria da produção pesqueira. A terceira engloba os trabalhos acadêmicos produzidos na, e para, a própria academia, dissociados, em sua 2

Em sua primeira versão, intitulada “Olhar, ouvir, escrever", como Aula Inaugural de 1994 dos Cursos de PósGraduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp; e uma segunda versão ampliada, já com novo título, "O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever" que a Revista de Antropologia da USP publicou em 1996, foi incluída no livro O trabalho do antropólogo, de 1998 de Roberto Cardoso de Oliveira.

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elaboração, de objetivos aplicados. Uma característica dessa fase é seu foco etnográfico sobre os pescadores, e não sobre o resultado das pescarias. (L. CASTRO FARIA, apresentando o livro; Pescadores de Itaipu, Meio ambiente, conflito e ritual no litoral do Estado do Rio de Janeiro, de KANT DE LIMA e L F. PEREIRA, 1997). Kant de Lima et al. (2009) propõem circunscrever uma quarta fase “que corresponderia aos estudos interdisciplinares sobre políticas públicas do setor pesqueiro”, na qual é explicitada uma contextualização importante para a compreensão de como esses grupos se relacionam com as políticas de governo às quais são submetidos. Primeiramente: As comunidades de pescadores foram marcos na construção de Portugal e no Brasil não foi diferente (Silva, 2001). Os primeiros pescadores locais, os índios, escravizados no primeiro momento, e remunerados em seguida, beneficiaram-se de inovações trazidas pelos portugueses, como o anzol de ferro, como atestam vários historiadores e arqueólogos (op cit.). Ainda no século XVIII, a praia transformara-se em um espaço de moradia e de atividade econômica, formando uma unidade produtiva no litoral brasileiro. No início do século XIX, começaram os investidos oficiais para domesticar este grupo de trabalhadores.

[...] Em 1845 foi aprovada a lei que criou e

regulamentou as Capitanias dos Portos e com elas uma força militar de reserva formada compulsoriamente pelos pescadores artesanais registrados em cada Capitania. Ao se registrarem, os pescadores não mais teriam que servir à Guarda Nacional. Somente prestariam serviço militar quando a Marinha os chamasse. Em 1846 o regulamento aprovado pelo Ministério da Marinha fez com que cada Capitania fosse dividida em distritos e cada distrito entregue a um capataz. Surgiram, assim, as “capatazias” de pescadores. Em 1912, a República, através da Lei 2.544/12 criou as Colônias de Pesca, subordinando-as ao Ministério da Agricultura. Em 1920, pelo Decreto 14.086/20, a Marinha retomou sua tutela sobre os serviços de pesca, e o Capitão Villar realizou ‘missões colonizadoras’ quando “promoveu a instalação de mais de mil colônias no litoral” (PESSANHA, 2002 apud op cit.). 26

A criação do Conselho Nacional de Pesca em 1933, no âmbito do Ministério da Agricultura, fez com que as colônias retornassem para a jurisdição deste ministério. Em 1942, ainda no período do Estado Novo, as colônias voltaram para a responsabilidade do Ministério da Marinha, até que, em 1950, se fixaram na jurisdição do Ministério da Agricultura, que organizou a pesca em um sistema confederativo (colônias locais, federações estaduais, confederação nacional) e definiu estatutos padronizados para todas as colônias de pesca. Na década de 1950, o segundo governo de Getúlio Vargas criou Escolas de Pesca nos Estados de Pernambuco e do Rio de Janeiro, com o objetivo de dotar cada pescador artesanal brasileiro de um barco a motor e uma casa, a fim de “tirar a pesca do seu primitivismo, modernizando-a” (PONDE, 1977)”. A política que concedeu incentivos fiscais à produção pesqueira iniciou-se em 1967 com a promulgação do Decreto-lei Nº 221, oficializando uma política federal para o setor. A partir de então, os incentivos fiscais concedidos a empreendimentos pesqueiros, de 1967 a 1986, contribuíram significativamente para ampliar a produção nacional de pescado e o parque industrial processador desse produto. Nos primeiros anos dessa política, mais de 50% dos recursos obtidos foram aplicados na indústria pesqueira, não havendo investimentos na área de pesquisa e levantamento de dados. Tal fato contribuiu para o aparecimento de sobre-exploração de algumas espécies de recursos pesqueiros marítimos (FURTADO, 1981). Várias foram as estratégias para manter a filiação dos pescadores às colônias. Até a década de 1980, o documento obrigatório para o exercício da atividade da pesca profissional era a matrícula correspondente, fornecida pela Capitania dos Portos. Além desse documento, o pescador deveria estar filiado a uma Colônia e, consequentemente, a uma federação e à confederação, além de estar registrado na Superintendência do Desenvolvimento da Pesca - SUDEPE -7, para poder exercer a atividade profissional da pesca. Com a equiparação dos pescadores artesanais aos trabalhadores rurais para fins de obtenção de benefício de aposentadoria especial, cresceu a vinculação às colônias, pois eram estas as entidades aptas a fornecer a documentação necessária (PESSANHA, 2002). Somente a partir da década de 1980 é que se começou a esboçar algumas 27

reações, como as “Associações Livres de Pescadores”, incentivadas por Frei Alfredo Schnüettgen, à época secretário geral da Pastoral da Pesca no Brasil. Finalmente, a Constituição de 1988 acabou com qualquer tipo de filiação compulsória. Mas, mesmo assim, em 2003 o decreto que regulamentou a concessão do Auxílio Defeso manteve a filiação compulsória às colônias para a obtenção do benefício. Criada nesse mesmo ano, a Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca e o posterior Ministério da Pesca de da Aquicultura deram novo impulso à pesca e à aquicultura,

porém

no

mesmo

diapasão

do

empreendedorismo

e

do

desenvolvimentismo, com controle dos grupos sociais locais nas estruturas montadas pelo Estado.(KANT DE LIMA et al., 2006). RGP 2011 A princípio, comecei a pesquisar com enfoque nas relações de trabalho no âmbito da pesca, a partir da problemática do novo cadastro, o RGP de 2011. Este cadastro se divide em duas categorias principais para integrar o RGP: o Pescador Profissional Artesanal e o Pescador Profissional Industrial. As distinções entre essas duas categorias dizem respeito às relações de trabalho e, sobretudo, às formas de repartição da produção. De acordo com o artigo 2º do Capítulo I do RGP: Pescador Profissional: pessoa física, brasileiro nato ou naturalizado, assim como o estrangeiro portador de autorização para o exercício profissional no País, desde que atendam os requisitos estabelecidos nesta Instrução Normativa e que exerçam a pesca como atividade principal e com fins comerciais, fazendo dessa atividade sua profissão e principal meio de vida, podendo atuar na pesca artesanal ou na pesca industrial, da seguinte forma: a) Pescador Profissional na Pesca Artesanal: aquele que exerce a atividade de pesca profissional de forma autônoma ou em regime de economia familiar, com meios de produção próprios ou mediante contrato de parceria, podendo atuar de forma desembarcada ou utilizar embarcação de pesca com AB3 menor ou 3

Arqueação Bruta: A arqueação é a medida do volume interno de uma embarcação. A arqueação de cada navio compreende a arqueação bruta e a arqueação líquida. Atualmente, as medidas de arqueação internacionalmente

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igual a 20 (vinte); e b) Pescador Profissional na Pesca Industrial: aquele que, na condição de empregado, exerce a atividade de pesca profissional em embarcação de pesca com qualquer AB (RGP 2011). Na categoria “artesanal” foram incluídos os pescadores profissionais que exercem sua atividade sobre o regime de parceria, ou familiares. A retribuição pelo trabalho está associada às partes do produto da pesca que serão divididas entre os “parceiros”. Na categoria “industrial” estão enquadrados os pescadores profissionais que têm sua remuneração estabelecida em um contrato de trabalho regido pela Consolidação das Leis Trabalhista (CLT), semelhante aos demais trabalhadores em geral. Entretanto, há inúmeras formas que são praticadas efetivamente, mas não correspondem às descrições do RGP, como se pode observar nas pesqueiras da APASP. A verdade é que através da minha inserção no âmbito da pesca, e mais especificamente na Baía de Guanabara, tanto na Ilha da Conceição, em Jurujuba, Itaipu e na APASP, descobri que existem várias formas de “fazer” a atividade da pesca, que não necessariamente se encaixam dentro de RGP, seja quanto às formas de remuneração, seja em relação aos regimes de parceria. Nota-se, pois, que há um desconhecimento dos conflitos trazidos pelo ordenamento da pesca. No local onde a pesquisa ocorreu, um tema ressurgia constantemente ao entrevistar as pessoas a respeito da Carteira de Pescador Profissional: “O problema é que os que pescam não têm carteira e têm outros que nunca pescaram na vida e recebem seguro-defeso”, comentavam. Desse modo, descobri que há um debate a respeito de quantos pescadores artesanais têm na Baía de Guanabara. Isso porque, segundo as colônias, a Petrobras deveria indenizar esses pescadores pelo derramamento de petróleo ocorrido no dia 18 de janeiro de 2000.

em vigor consistem em valores adimensionais obtidos por fórmulas de cálculo onde entram os volumes expressos em metros cúbicos, o número de passageiros, o pontal e a imersão de cada navio.

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No entanto, o objetivo não é especular sobre o derramamento, tampouco acerca dos interesses econômicos e políticos ligados a esse fato. A questão central é compreender como os pescadores efetivos não são “declarados”, no âmbito da APASP, uma vez que o Del me disse certa vez que o problema era todo o processo burocrático que “afasta os pescadores”, assim como o tempo de espera e entrega dos documentos. Informaram-me que antigamente era bastante fácil declarar quem era pescador artesanal. Del comentou que “basta só a declaração de dois pescadores já cadastrados, com os números da carteira, aí você passa a ser declarado como pescador”. A importância da documentação está vinculada ao recebimento do chamado seguro-defeso e dos benefícios da aposentadoria. Hoje, o cadastramento de pescador artesanal pode ser efetuado através da portaria do Ministério da Pesca e da Aquicultura (MPA), mediante a comprovação de que a pesca praticada é artesanal. Esse debate tem tomado relevantes proporções, uma vez que quando se fala em pesca artesanal da Baía de Guanabara os interesses econômicos são muito grandes. Por isso, preferi não tomar posição, e simplesmente relatar o que o campo quis me revelar. Quanto à carteira de Pescador Profissional Artesanal, os membros da APASP não são contrários a uma “fiscalização de proximidade”: “Seria até bom que os órgãos venham [sic] passar alguns dias aqui, mas eles têm que vir quando a gente está saindo para o mar, e acompanhar a gente, primeiro se tem que verificar o material, e depois a produção, aí vão saber quem é pescador de verdade!” afirmou Del. Além de saber quem é pescador de “verdade”, há outro debate interessante a respeito de quem tem direito à carteira de pescador artesanal. Tema que desenvolverei em um capítulo posterior.

As transformações: “Nós saímos de lá, nós viemos pra cá, agora estamos aqui, e amanhã nós vamos pra onde?” (Pardal). Nos anos 1970, a Baía de Guanabara, assim como Niterói, deu lugar a grandes empreendimentos urbanísticos. Empreendimentos estes que mudaram a cara da 30

cidade e suas atividades locais. Essas transformações relatam uma pressão por parte da sociedade envolvente. Pressão de uma modernização fomentada pelo Estado, que tenta formalizar os modos de fazer em padrões ordenados por lei. Revela-se, portanto, uma tensão forte entre o processo da atividade e esses ordenamentos jurídicos. Geralmente, temos uma leitura muito centrada no objeto e nas suas funções quando falamos de transformações. Esquecemos, contudo, que os mencionados empreendimentos, além de terem como única função o que é programado, ocultam, da maioria das pessoas, determinadas problemáticas. Dentre elas, os pequenos lugares que decorrem involuntariamente de um projeto como a Ponte Rio-Niterói e o aterro da Praia Grande no Centro de Niterói, foram espaços utilizados e ressignificados por pescadores artesanais. Esses dois lugares emblemáticos da grande transformação urbanística dos anos 1970 na Baía de Guanabara criaram involuntariamente uma atividade ligada à pesca e, particularmente, à cata de mexilhão.

Breve história do local Antes da implementação das Barcas (antes de 1959 e da “revolta das barcas”), do Bay Market, ou também do terminal João Goulart, havia, da Ponta da Areia até são Domingo, a “maior Praia da Baía de Guanabara”: a chamada Praia Grande. Praia onde pescadores artesanais exerciam suas atividades de pesca e venda de peixe. Todavia, com o grande projeto urbanístico do aterro tiveram que sair; embora, na verdade, ali tenham continuado, sendo cada dia mais oprimidos pelos empreendimentos, até se tornarem, hoje, quase invisíveis, porém resistentes à gentrificação produzida por esse tipo de transformações. Com a construção da ponte, que há pouco festejou seus 40 anos, criou-se um verdadeiro “viveiro marinho” no meio da Baía de Guanabara. Oferecendo aos mexilhões um substrato duro onde se fixar, levados pelas correntes marinhas, e com toda uma fauna marinha no entorno. De alguma forma criou-se um novo ecossistema. A lógica orienta o pescador, pelo conhecimento naturalístico que possui, a “correr atrás do peixe”, e a ponte se tornou, para muitos pescadores da Baía 31

de Guanabara, um local de “muito mexilhão e muito peixe”. “Hoje esses marisqueiros são os únicos catadores da ponte”, me disse Airton. O atual espaço de reprodução social e cultural dessa atividade foi construído no final dos anos 1990, mediante financiamento da Prefeitura, da Marinha e do Bay Market. O aterro Da praia Grande como projeto urbanístico resinificado O Aterro da Praia Grande, como ficou conhecido, é uma área aterrada na parcela litoral de Niterói dentro da Baía de Guanabara. O Aterro era uma solução consorciada público/privada, para criar um território na forma de uma planície, que iria do Morro da Armação até o Morro de Gragoatá. Esses são os marcos geográficos que limitavam a enseada da Praia Grande, principal litoral do centro e a Praia Vermelha, litoral dos bairros de Gragoatá e Boa Viagem. É possível constatar que a maior intervenção no Centro, que deu origem ao aterro da Praia Grande, foi concebida em 1940 quando o Presidente Getúlio Vargas assinou o Decreto-Lei autorizando a Prefeitura a executar um plano de urbanização e remodelação da cidade, podendo, para isso, permitir o aterro da faixa litorânea compreendida entre a Ponta da Armação (bairro da Ponta da Areia) e a Praia das Flechas no bairro do Ingá. O prazo para a execução era de 5 anos, que foram sucessivamente prorrogados até a década de 1970.4 Até 1972, só havia aterrado uma pequena parte, onde está atualmente o Shopping Center Bay Market. O governo estadual investe com recursos próprios e inicia as obras do Aterro, que entre 1971 e 1974 estiveram a cargo da Companhia de Desenvolvimento e Urbanismo do Estado do Rio de Janeiro, criada pelo governador Raimundo Padilha, desmontando-se o Morro do Gragoatá, para fornecimento de terra para os aterros. Na área aterrada previa-se a construção de um Teatro Grego, Concha Acústica, Fontes sonoras e luminosas, 'playgrounds', restaurantes turísticos, aquários, praças de esporte, planetário, passarelas, auditórios ao ar livre, um bosque com 15.000 espécies, o Museu Monumento do IV Centenário de Niterói, um Centro Cultural e 4

http://www.urbanismo.niteroi.rj.gov.br/noticias/materias/projeto/vivacentro/aeiu_caminho_niemeyer/Historico. pdf

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um Hotel de Convenções no Morro do Gragoatá (único edifício construído). Com a saída do governo estadual da cidade, com a mudança de capital, Niterói deixou de ser prioridade dos investimentos públicos, após o aterramento as obras de implantação do Parque da Praia Grande sequer foram iniciadas.5

Foto 1 Praia Grande Antes e depois do "Aterro", foto montagem feita pelo autor. Entretanto, um grupo de pescadores acomodava-se na beira do aterro do Gragoatá, onde está situado atualmente um dos campus da UFF. Em 1977, o trecho sul do Aterro da Praia Grande, uma área aterrada na parcela litorânea de Niterói dentro da Baía de Guanabara, foi desapropriada pelo Governo Federal para a construção do referido campus da Universidade Federal Fluminense, cujos cursos, até então, estavam dispersos pela cidade. Essa área engloba, assim, o Campus do Gragoatá e o Campus da Praia Vermelha. Nesse processo de construção do primeiro campus, ocorreu, nos anos 1990, o deslocamento do espaço de reprodução dos marisqueiros da beira daquele para a beira do aterro do, agora, Shopping Center Bay Market antigo Mercado de Peixes São Pedro, onde já havia alguns pescadores situados.

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Idem.

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Na figura 16, vemos como o espaço de reprodução dos marisqueiros e pescadores que estavam situados no aterro sul da Praia Grande (cor violeta) passaram para a beira do que é hoje o shopping Bay Market (amarelo), espaço que a Prefeitura lhes reservou, atrás do terminal rodoviário João Goulart (verde), e como tiveram que se apropriar de um local novo para poder “processar” o mexilhão por falta de espaço (vermelho). Podemos observar nesta imagem como esse espaço restrito foi e é o palco de transformações para um grupo de pescadores. Um grupo que não está mencionado no projeto do aterro da Praia Grande e que ainda, de alguma forma, resiste à opressão urbana e à gentrificação perpetradas por esse tipo de processo.

Foto 2 Deslocamentos no tempo do espaço de reprodução, produzida pelo autor. Outra observação que se pode fazer é que o lugar das barcas é o único espaço “original” da Praia grande que não foi aterrado. E, extraordinariamente, esse grupo de pescadores da Praia Grande está “envolvendo” esse lugar, conservando um vínculo com um espaço “tradicional” de uma atividade pesqueira que teve que se 34

transformar e se adaptar aos projetos e aos grandes empreendimentos urbanísticos na Praia Grande de Niterói.

A ponte como empreendimento da produção de recursos marinhos. A Ponte Presidente Costa e Silva, popularmente conhecida como Ponte RioNiterói, localiza-se na Baía de Guanabara, estado do Rio de Janeiro, e liga o município do Rio de Janeiro ao de Niterói em 13 km. Construída durante os governos militares simbolizava, junto com a rodovia Transamazônica e a usina de Itaipu, o compromisso do regime com a pátria. Hoje integrada a complexa infraestrutura de transportes da cidade completa o grande projeto de mobilidade urbana da grande Metrópole do Rio de janeiro6. A ponte foi financiada em parte pela empresa inglesa N. M. Rothschild & Sons, em nome de um consórcio de bancos britânicos. O início da construção da ponte foi marcado pela presença da rainha da Inglaterra. Em novembro de 1968, no bairro do Caju, Elizabeth II participou de cerimônia simbólica, onde descerrou uma placa que registra o começo da obra de uma das maiores construções da engenharia do país. Seis anos depois, em 4 de março de 1974, a Ponte Presidente Costa e Silva, nome oficial da Rio-Niterói, foi inaugurada com grande festa popular, iniciada depois que o presidente Garrastazu Médici e o ministro dos Transportes, Mário Andreazza, romperam a fita simbólica, e atravessaram de Rolls-Royce os 13,2 quilômetros em direção a Niterói. Ao anoitecer, uma missa acompanhada por deis mil pessoas, na Praça do Pedágio lembrou os operários mortos durante a obra. Na manhã seguinte, a ponte foi aberta ao tráfego7. Mal se imaginava no projeto de construção dessa ponte que a construção dos pilares dentro da água seria um ótimo substrato duro para o estabelecimento de bancos de mexilhões. Como sabemos, os mexilhões se fixam ao estado de larva no substrato duro levados pelas correntes marítimas. 6

http://salacristinageo.blogspot.com.br/2014/02/ponte-rio-niteroi-completa-40-anossua.html http://brasileconomico.ig.com.br/ultimas-noticias/memoria-revelada-ponte-rioniteroi-completa-40-anos-em2014_137846.html 7

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Este substrato duro (os pilares da ponte) que ia acolher uma população considerável de mexilhões Perna perna, assim como outros tipos de recursos bentônicos, como ostras japonesas ou até vieiras, que foram encontrados nas coletas dos marisqueiros, como disse Airton: “Você tinha que ver como era a ponte antes, tinha tanto mexilhão que a gente ficava parado acima, quando mergulhávamos na ponte”. Essa população de mexilhões que veio a se fixar nos pilares foi crescendo, e com ela a vida submarina. Tais bancos naturais transformaram-se em um lugar de abundância de vida submarina. No início das minhas pesquisas sobre a pesca artesanal na Baía de Guanabara, tanto na Ilha da conceição como com os pescadores da Praia Grande, não havia entendido o porquê da abundância de recursos pesqueiros na ponte Rio-Niterói, uma vez que, à época, não entendia os ecossistemas marinhos. Após várias leituras de artigos sobre cultivos de mexilhões e observações sobre a minha pesquisa, entendi “que pescador sabe onde tem peixe” e pesca nesses lugares. Hoje, não sabemos quantos pescadores atuam nos pilares da ponte, mas tanto para os pescadores artesanais da Ilha da Conceição como para os pescadores da Praia Grande a ponte representa um bom lugar de pesca, pela fartura de peixe assim como pela localização central e próxima dos lugares de encalhe e desembarque. Os relatos dos pescadores sobre a ponte contam que antes “era melhor” para os catadores de mexilhão, pois “se podia catar quase o ano todo”. Agora, porém, “com a poluição da Baía” e a “sobre-exploração”, o recurso diminuiu, embora não tenha “acabado”. Esse fato levou o grupo de marisqueiros a “fazer pesquisa”, como falou o Del, sobre os bons lugares de cata na região. Apesar de ser uma fonte de renda para muitas famílias, tanto no Rio de Janeiro como em Niterói, pescar na ponte está totalmente proibido pela lei8, assim como em muitos dos lugares onde o mexilhão se fixa nos bancos naturais.

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Está escrito no folheto n°8/12 sobre a Baía de Guanabara que está totalmente proibida à pesca “a menos

de 400m da ponte Rio–Niterói, ao norte e ao sul da ponte”. (Ver Anexo)

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Lugares de cata Os lugares de cata de mexilhão passaram por transformações notáveis no decorrer das últimas décadas. Quando a atividade começou, os pescadores comentam que a Ponte era a maior provedora de recurso bentônico na área e que em outros lugares, como São Domingos (ao sul do Gragoatá), Boa Viagem (perto de Icaraí), catava-se também um pouco. Dizem que Boa viagem era o berçário da Baía de Guanabara em termos de mexilhão: “A gente não deixava nada; e alguns meses depois, estava de novo tudo preto de novo” (Del). Hoje, com o passar do tempo, e segundo eles, a diminuição do recurso bentônico na Ponte deslocou os lugares de cata para as Ilhas Cagarras (ilhas situadas em frente a Ipanema, verde no mapa) e Itaipu-Piratininga (zona oceânica de Niterói, em vermelho no mapa). Os lugares de fixação do mexilhão em substrato duro na região de Rio-Niterói são bastante importantes, e o recurso tem uma capacidade de reprodução impressionante. Atualmente, contudo, os lugares de cata estão todos proibidos por lei e têm diminuído em produção; “hoje é muita craca”, diz o Del. Como mencionei anteriormente, a pesca está proibida na Ponte, a menos de 400 metros de distância. No que diz respeito às r Ilhas Cagarras, a Lei nº 12.229, de 13 de abril de 2010, sanciona no artigo 1º: “Fica criado o Monumento Natural do Arquipélago das Ilhas Cagarras,9 situado no Oceano Atlântico, ao largo da Praia de Ipanema, no Estado do Rio de Janeiro, com a finalidade de preservar” o ecossistema e as belezas cênicas do local. Através dessa lei, fica proibido no artigo. 2º, parágrafo VI, “a pesca com a utilização de redes, armadilhas e outras artes de pesca predatórias”. Já no artigo 3° está estipulado que o órgão responsável deve coordenar o plano de manejo gestor da área; o plano relativa à pesca está previsto no parágrafo II do mesmo dispositivo: “O desenvolvimento ordenado do ecoturismo, do mergulho

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Parágrafo único. Compõem o Monumento Natural do Arquipélago das Ilhas Cagarras: I - as ilhas Cagarras, Palmas e Comprida e a ilhota Filhote da Cagarra, bem como a área marinha num raio de 10m (dez metros) ao redor das ilhas e da ilhota; II - a ilha Redonda e a ilhota Filhote da Redonda, bem como a área marinha num raio de 10m (dez metros) ao redor da ilha e da ilhota;

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e da pesca”.10 O que no caso destes pescadores nunca foram comentados.

Figura 3 Principais lugares de cata, Ponte, Piratininga-Itaipu e As Cagarras Outros lugares importantes de cata são Itaipu-Piratininga e as Ilhas do Pai, Mãe e filha situadas na zona oceânica de Niterói. Essa área é hoje (2013) uma Reserva Extrativista Marinha Estadual, o que “proíbe” a extração do recurso por pessoas não autorizadas pelo conselho deliberativo que tomou posse há pouco tempo. Trata-se, pois, de uma área de desenvolvimento sustentável reservada à pesca para a população “tradicional” artesanal de Itaipu. Além disso, as Ilhas do Pai, Mãe e Filha fazem parte do parque estadual da Serra da Tiririca, anexadas em 2013. Torna-se bastante claro como as legislações têm transformado os lugares de 10

Art. 3º O órgão gestor do Monumento Natural do Arquipélago das Ilhas Cagarras coordenará, ouvidos os órgãos estaduais e municipais competentes, bem como os representantes da comunidade local, a elaboração do plano de manejo da unidade, o qual contemplará, entre outras, diretrizes para: I - a conservação dos ecossistemas naturais; II - o desenvolvimento ordenado do ecoturismo, do mergulho e da pesca; III - a promoção de atividades científicas e educativas destinadas ao uso sustentável dos ecossistemas; IV - o ordenamento de atividades no entorno da unidade.

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cata em unidades de proteção ambiental e, através dessa ação, transformado um pescador artesanal em pescador ilegal. Atualmente, a cata de mexilhão permanece quase a mesma, nos mesmos lugares e com a mesma frequência, porque a fiscalização não tem sido extrema. No entanto, alguns catadores têm transformado seus hábitos no processamento do mexilhão e elaboram desde o cozimento até a embalagem do produto (ver capítulo sobre o processamento) no espaço do barco, o que diminui o espaço e aumenta o risco, como queimaduras, por exemplo. Com essas transformações legislativas de espaços de cata de mexilhão, os pescadores artesanais que utilizam esses lugares há décadas encontram-se hoje em situação de ilegalidade em relação à lei de ordenamento espacial e às unidades de conservação ambiental. Diante dessas observações podemos nos interrogar: qual será o futuro dessa atividade e desses pescadores? Podemos indagar qual é o futuro dessa atividade enquanto os lugares onde se cata o mexilhão estiverem proibidos por lei. Por outro lado, através do questionamento da atividade, surge outra questão fundamental sobre a identidade das pessoas que a exercem há anos, constituindo a maior fonte de renda de um grupo importante de pessoas no local. As transformações ocorridas no ordenamento jurídico de certos espaços “naturais”, bem como as transformações físicas motivadas por grandes empreendimentos, têm sido ressignificadas por um grupo de pescadores artesanais, a partir de uma atividade econômica, cultural e social, pouco visível, nas margens da lei, como a cata de mexilhão em bancos naturais. Tendo em vista que a cata de mexilhões em banco natural nos lugares citados ainda é possível, os marisqueiros continuaram a exercê-la da mesma forma, como tem feito há mais de 30 anos. O perigo para esses pescadores é a fiscalização nos lugares de cata, impossibilitando a atividade e criminalizando aqueles que vêm se sustentando através dela há gerações. O desafio desses pescadores é ressignificar a atividade dentro de um enquadramento legal capaz de garantir o direito a ter uma identidade baseada na atividade artesanal e profissional de catar mexilhões para os consumidores ou, como diria João Grandão, “para a população”.

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Estatuto das pessoas envolvidas Estatuto do pescador Meu trabalho, em uma empresa primeira fase, consistiu em entender dentro de qual paisagem acadêmica estava entrando. Para tanto, fui ler os trabalhos desenvolvidos acerca da pesca no âmbito do grupo de pesquisas do NUFEP, sobre as cosmologias que governam as instituições e os conflitos que podem decorrer em espaços de reproduções culturais (KANT DE LIMA 1997, MELLO 2004, LOBÃO 2010, REIS-MOTA 2003, DIAS-NETO 2012). Isso me permitiu entender as ações das políticas do Estado sobre populações tradicionais e o fenômeno ambientalista dentro de uma perspectiva diferente. Vale ressaltar que eu estava longe do caminho percorrido até aquele momento quando me foi proposto fazer um projeto de pesquisa sobre as relações de trabalho referentes à pesca, a fim de analisar a relação in situ dos pescadores com o novo RGP de 2011. Entendendo a divisão dicotômica entre pescador profissional artesanal e pescador profissional industrial na lei do novo RGP de 2011, observei que em numerosas situações os pescadores não se definiam ou se adequavam em uma única categoria. Havia, assim, situações particulares que mereciam um olhar mais atento, a fim de entender as diferentes configurações quanto às relações de trabalho na atividade pesqueira. Tais problemáticas me levaram a estudar quais eram os regimes jurídicos nos quais os pescadores se encaixavam. Desse modo, descobri que os pescadores industriais estavam vinculados à Consolidação de leis trabalhistas (CLT), como os demais trabalhadores da sociedade civil, e, no entanto, os pescadores artesanais pertenciam a um regime diferenciado de “autonomia” ou “parceria” dentro de uma “economia familiar”. Essas considerações têm certa relevância para o estudo das configurações locais no que concerne à declaração e à fiscalização dos atores da atividade pesqueira. O pescador industrial, com carteira assinada, tem direito à previdência social, conforme explicitado no sítio do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE): A Previdência Social é um seguro que garante a renda do contribuinte e de sua 40

família, em casos de doença, acidente, gravidez, prisão, morte e velhice. Oferece vários benefícios que juntos garantem tranquilidade quanto ao presente e em relação ao futuro assegurando um rendimento seguro. Para ter essa proteção, é necessário se inscrever e contribuir todos os meses (portal.mte.gov.br). Os benefícios da providencia social são: Aposentadoria por idade, aposentadoria por invalidez, aposentadoria por tempo de contribuição, aposentadoria especial, auxílio-doença, auxílio acidente, auxílio reclusão, pensão por morte, pensão especial (aos portadores da síndrome da talidomida), salário-maternidade, salário-família, assistência social bpc – loas. (portal.mte.gov.br/) Nesse sentido, o pescador profissional industrial, o chamado “pescador embarcado”, goza dos mesmos direitos que um trabalhador da sociedade civil, claro que com carteira assinada. Em contrapartida, a relação dos pescadores artesanais com a Previdência Social está assentada na categoria de contribuinte individual, o que os coloca em uma situação de regime especial, do mesmo modo que os trabalhadores rurais e os índios, por exemplo. A grande diferença diz respito à renda. Os trabalhadores rurais, assim como o pescador artesanal, “produzem em regime de economia familiar, sem utilização de mão de obra assalariada” os “produtos” de suas rendas respetivas. Há nessa comparação básica um paradigma sobre a ideia de trabalho dentro de um mercado previsível – no qual se pode olhar em números os custos e benefícios – para escolher melhores estratégias de investimento. No caso da pesca artesanal, a informalidade, na extração do recurso e na distribuição no mercado econômico, oculta das estatísticas de pesca grande parte das informações da produção pesqueira do Brasil. Isso confirma o diagnóstico sobre a pesca marítima comercial no Estado do Rio de Janeiro, ou seja, “ainda não existem instrumentos que demostrem a verdadeira importância da pesca artesanal em termos estadísticos no Estado do Rio de Janeiro” (VIANNA M. et all 2009). Quando falo de desafios que norteiam o estatuto das pessoas envolvidas na 41

atividade do mexilhão, quero trazer uma reflexão sobre os “descascadores” que trabalham no processamento do recurso bentônico (mexilhão) da Praia Grande. Esses homens e essas mulheres indispensáveis ao processamento do mexilhão, ainda não estão enquadrados dentro do novo RGP. Todavia, ao tentar qualificar o direito com a atividade do local pareceu-me que essa discussão é válida para o debate aqui proposto. Na Lei n° 10.779, de 25 de novembro de 2003, que dispõe sobre a concessão do benefício de seguro desemprego, durante o período de defeso, ao pescador profissional que exerce a atividade pesqueira de forma artesanal, pode-se ler no artigo 1°: O pescador profissional que exerça sua atividade de forma artesanal individualmente ou em regime de economia familiar, ainda que com o auxílio eventual de parceiros, fará jus ao benefício de seguro-desemprego, no valor de um salário-mínimo mensal, durante o período de defeso de atividade pesqueira para a preservação da espécie. E no § 1º do mesmo artigo: Entende-se como regime de economia familiar o trabalho dos membros da mesma família, indispensável à própria subsistência e exercido em condições de mútua dependência e colaboração, sem a utilização de empregados. Agora, se comparamos com “nova lei de pesca”, a Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009, na seção II da Atividade Pesqueira, constatamos o seguinte no artigo 4º: A atividade pesqueira compreende todos os processos de pesca, explotação e exploração, cultivo, conservação, processamento, transporte, comercialização e pesquisa dos recursos pesqueiros. Parágrafo único. Consideram-se atividade pesqueira artesanal, para os efeitos desta Lei, os trabalhos de confecção e de reparos de artes e petrechos de pesca, os 42

reparos realizados em embarcações de pequeno porte e o processamento do produto da pesca artesanal. E a instrução normativa nº 2, de 25 de janeiro de 2011, no § 3º do artigo 1º, Capítulo I, fala sobre quem tem direito à carteira de pescador profissional: As pessoas físicas que atuam em trabalhos de confecção e de reparos de artes e petrechos de pesca e em reparos realizados em embarcações de Arqueação Bruta (AB) igual ou inferior a 20 (vinte), assim como aquelas que atuam no processamento do produto da pesca artesanal, de que trata o parágrafo único do art. 4º da Lei 11.959, de 29 de junho de 2009, serão qualificadas e inscritas no RGP sob condições e critérios estabelecidos em norma específica. (RGP 2011) Nota-se que nem a própria legislação esclarece como se deve considerar a pesca artesanal. Esta é definida como uma pesca artesanal ou industrial a partir da arqueação bruta da embarcação. Para ser artesanal a arqueação bruta – Calculo complexo – deve dar um resultado inferior ou igual a 20, o que todos os pescadores artesanais respeitam. Em seguida, vem a renda: “Regime de economia familiar” e “parceria”. Como podem ser consideradas as pessoas que trabalham com o Del? Elas são empregadas por ele? Ou, ao contrário, entram na categoria de parceiros? Caso a atividade seja considerada como “parceria”, a instrução normativa nº 2, de 25 de janeiro de 2011, diz claramente: “Aqueles que atuam no processamento do produto da pesca artesanal” têm direito a ser cadastradas no RGP. Assim, se atender a todos os requisitos do seguro defeso, tem direito a recebê-lo. Outro desafio importante para o futuro dessa atividade é o reconhecimento dessa categoria local dentro da atividade pesqueira, considerando-a como a atividade principal de sujeitos que estabelecem uma relação cotidiana com os pescadores e marisqueiros da APASP.

“Mas se ficamos por aqui perto está bom” (Paraíba). Ao chegar ao local, os pescadores “catadores de mexilhão” se definiam com sendo “maricultores”. A princípio, sem ter pesquisado muito sobre essa categoria, me 43

pareceu como óbvia. Mas, ao entender mais sobre a pesca e sobre a extração de recursos bentônicos, percebi que se tratava de uma categoria local aplicada de forma inapropriada por não ser cultivo de mexilhões, mas coleta em banco natural. Com o passar do tempo esta categoria foi mudando, passando de “catador”, como eles sempre têm se definido, a “marisqueiro”, como são definidos pela Prefeitura, quando tratam desse tema nas reuniões sobre a “requalificação do centro”. Parece-me, hoje, que essa categoria inicial de “maricultor” não foi utilizada de forma inocente ou como erro de linguagem. Mas, ao contrário, essa categoria tem todo o peso dentro da paisagem institucional como estratégia política. Efetivamente, ao se denominar como “maricultores”, descrevem a atividade deles como a de “cultura de mariscos”, ou seja, de produtores regulares, que, na realidade deles, não deixam de ser. Como explicitado mais acima, a “cata de mexilhão” em banco natural representa para as instituições relativas ao meio ambiente e à pesca uma atividade altamente predatória e ilegal nas zonas de fixação do mexilhão em banco natural, por serem substratos duros numa zona altamente urbanizada e demasiado “ordenada” por leis. Como sabemos, os lugares de cata desses pescadores são hoje todos ilegais. Disso os pescadores estão conscientes e estão preparando há muito tempo novas alternativas para continuar “produzindo” mexilhão. Como me contou o Pardal, houve várias iniciativas para estabelecer uma produção de mexilhão com base na maricultura: Eu fiz várias experiências com mais de 200 boias aqui na frente [mostrando a beira do campus Gragoatá] e também desse lado [mostrando o sul do teatro Niemeyer], peguei o mexilhão novinho e coloquei numa cestinha” (...) era para ver se dava certo neste cantinho, mas nem cheguei a saber. Alguns meses depois fui ver e tinham pego tudo”. A respeito dessa experiência, ele disse, ainda, com certa ironia: “era para eles!”. A APASP tentou por inúmeras vias concretizar um projeto de “fazenda de mexilhão”, tanto no local, perto da APASP, como nas Ilhas Cagarras. Tentaram fazer parcerias com a FIPERJ (Federação Instituto de Pesca do Rio de Janeiro) e outros organismos institucionais ligados à pesca. Mas quando foram apresentar os projetos não encontraram respaldo: “Uma vez a gente foi na FIPERJ para tentar fazer um projeto com mexilhão, mas depois de um tempo a moça nos falou que ela só 44

financiava projetos com algas. Aí eu falei pra ela, minha senhora, entenda bem, nós não trabalhamos com alga, nós trabalhamos com mexilhão, e ela me respondeu: ‘faz alga e depois de um tempo você trabalha com mexilhão’. O que que eu vou fazer com as algas?”, contou Pardal. Com as transformações jurídicas dos espaços de cata, poucos lugares seriam suscetíveis de receber um projeto de “fazenda de mexilhão”, embora essa solução possa trazer muitos benefícios tanto para os pescadores locais (catadores de mexilhão), como para o consumidor do recurso e para as áreas destinadas à conservação ambiental. O cultivo de mexilhão traz consigo algumas particularidades interessantes, a exemplo de uma fauna marítima de um ecossistema peculiares. Além de uma variedade de peixes, possibilitam a preservação dos bancos naturais de mexilhão em face da exploração extensiva e predatória. O que leva os marisqueiros a considerar a possibilidade de construir um “berçário” da natureza em um espaço reservado ao cultivo. Outro fator importante a ser comentado dentro deste capítulo sobre os projetos e projeções é o “famoso” projeto que a Prefeitura de Niterói pretende votar na câmara de vereadores sobre a “requalificação do centro” de Niterói. Este projeto tem como objetivo a “revitalização” dos bairros do centro de Niterói através de um processo de modernização urbana “do primeiro mundo”. Como ouvi falar muitas vezes em campo, ele consistiria em valorizar os bairros do centro de Niterói pela situação geográfica privilegiada de estar a 15 minutos do centro do Rio de Janeiro. Tal empreendimento “integraria” os pescadores do local dentro de um espaço reservado para essa atividade, assim como o mercado de peixes de Niterói, conhecido de toda a Baía de Guanabara, guardaria seu lugar e, no entorno, seria construído um “polo turístico” com pousadas, restaurantes e a “nova vila de Pescadores”, onde tanto pescadores da Rua da Lama como pescadores da APASP seriam integrados no projeto. Foram feitas reuniões com pesquisadores da UFF, em particular integrantes do NEPEAC, com a intenção de estabelecer uma cooperação entre a Prefeitura e a universidade para estudar as pessoas que habitam esses espaços “destinados” a serem transformados pelo projeto de “requalificação”. Como eu estava fazendo campo com os pescadores catadores de mexilhão, fui convidado a participar das reuniões. Logo 45

depois, participei das reuniões entre a Prefeitura e a APASP, nas quais os representantes do poder municipal esforçaram-se para explicitar o projeto aos pescadores, sempre ressaltando que eles seriam integrados ao projeto. Em uma dessas reuniões, foi “prometido” um local onde os pescadores da APASP poderiam continuar suas respectivas atividades, ao sul da atual Rua da Lama e ao norte do atual Teatro Popular. Entretanto, esses pescadores seriam removidos de forma provisória para outro local, esperando o término das obras, fato que não escapou aos pescadores, imagináramos quais já imaginavam serem removidos de forma definitiva e, de alguma forma, serem “expulsos” do centro de Niterói. Evolução dos projetos Os projetos, desde que comecei a observar o processo, têm evoluído bastante. Em relação a um centro de beneficiamento, fica cada vez mais difícil encontrar um espaço possível para o cultivo de mexilhão, mas fica claro que a única “saída” para os atores desaa atividade passa pelo cultivo ou manejo do recurso bentônico. Agora, vários fatores na organização social e na história dessa atividade fazem com que não se tenha um manejo coletivizado sobre o recurso; ao contrário, a produção de mexilhão depende do mexilhão (se está “gordo”) e da capacidade física do mergulhador, ou seja, quem cata mais. No começo, alguns pescadores imaginavam utilizar os arredores do aterro da Praia Grande para cultivar o mexilhão, como já explicitei antes. Depois do exemplo dos marisqueiros de Jurujuba, foi possível imaginar uma estabilidade na produção de mexilhões através do cultivo. Mas as intensões de algumas pessoas na APASP foram abandonadas ao ver que, em poucos meses, tinham “catado tudo” e o “mexilhão nem estava de bom tamanho”. Mas isso não desestimulou a ideia de construir um projeto de cultivo de mexilhão. Ao conversar com Del e Pardal, estes me explicaram como se imaginou elaborar um projeto em torno do mexilhão em parceria com estudantes da biologia marinha, nas Ilhas Cagarras: “O que a gente imaginava, e dava para todo mundo, era fazer uma fazenda de mexilhão, lá nas Cagarras, com a parceria dos estudantes e pesquisadores da biologia marina (...) a gente podia até pegar os barcos afundados da Baía e levar pra lá, ia dar casas para o peixe”, disseram O projeto tinha como 46

finalidade integrar tanto pescadores artesanais através do cultivo de mexilhão e da pesca, como pesquisadores das universidades que trabalham com essas temáticas, podendo beneficiar o turismo de mergulho. Finalmente, alguns anos depois as Ilhas Cagarras passaram a ser unidade de conservação, como expliquei antes, o que interrompeu esse projeto. A situação agrava-se cada vez mais para esse grupo de pescadores pouco conhecidos das políticas públicas e dos órgãos “responsáveis”. Os lugares de cata estão sendo todos ordenados dentro da legislação, tanto por razões de segurança como em função da conservação ambiental, sem que esses pescadores catadores de mexilhão tenham muito peso nas decisões. Fica claro que através do campo se observa uma diacronia entre o tempo do “trabalho”, que consiste em reproduzir um conhecimento na atividade, e o das projeções, no qual se observa as evoluções da sociedade envolvente através dos projetos e leis que ordenam o espaço onde esses pescadores exercem suas atividades econômicas.

A Atividade: “O mexilhão é ouro preto” (Del) Neste capítulo, tratarei da atividade no local, enfocando mais sobre a atividade de marisqueiro, que guarda formas de fazer tradicionais. Estas formas que chamo de tradicionais dizem respeito a uma atividade que mantém certa simplicidade nos modos de produção, como os apetrechos e a cadeia produtiva do recurso mexilhão, sendo, ainda, conhecimentos complexos que sustentam toda uma atividade no local. Quando cheguei ao local, foi-me dito que a associação tinha 35 pescadores e marisqueiros, dentre os quais, 15 recebem seguro defeso por estarem cadastrados no novo RGP; os outros não estão cadastrados como pescadores, nem artesanais nem industriais. Logo fui descobrir que não eram todos “pescadores”. Depois me falaram que só havia 24 “pescadores de verdade”. Os “pescadores” da Praia Grande se dividem em quatro categorias: pescadores e marisqueiros considerados artesanais, mergulhadores e pescadores amadores. Nesse âmbito nos encontramos em um local de socialização extremamente masculino; todos os “pescadores” são homens, embora seja interessante ressaltar que 47

nos processos de socialização da atividade me encontrei com várias mulheres que acompanham o processo. Por exemplo, a Mayara, “filha11” de Del, com cerca de uns 20 anos, que tem uma filha de 3 anos e trabalha em todos os processos produtivos do mexilhão com o Del. Também me encontrei com as três Marias, que, em certos períodos, ajudam no descascamento para poder recuperar pedaços de mexilhão e pescar na Baía, onde são jogadas as conchas, “porque ali tem peixe”. Ao jogar as conchas na Baía, os restos das conchas, assim como pequenos outros moluscos cozidos juntos com os mexilhões, oferecem um alimento para os peixes, que se concentrarão nesse lugar. Os pescadores pescam na Baía de Guanabara, sobretudo na ponte, e em algumas zonas oceânicas entre Maricá e a Barra da Tijuca. Os marisqueiros catam mexilhão, principalmente na ponte Rio-Niterói, na boca da Baía, nas Ilhas Cagarras, em Piratininga e Itaipu (nas Ilhas Pai, Mãe e filha) e nas “tijucas”, lugares hoje quase todos proibidos por lei, o que explicarei mais à frente. Inicialmente, Del me explicou que eram “maricultores”. Não sei se me disse isso como estratégia política, mas me lembro que várias categorias locais surgiram nas conversas, assim como “marisqueiros”, “catadores de mexilhão” e “arrancador de mexilhão”. Mas a atividade principal de quem cata mexilhão consiste em “arrancar” (extrair) o mexilhão do banco natural, isto é, de onde o mexilhão se gruda naturalmente, processo conhecido pelos biólogos, através do mergulho numa faixa de 0 a 8 metros de profundidade, o que corresponderia à faixa da luz na água, com a ajuda de uma cavadeira, instrumento utilizado em todo o processo. A questão dos instrumentos ou apetrechos de pesca surgiu em uma conversa sobre a ilegalidade e a fiscalização, quando o Del me disse que o Ministério da Pesca tinha que ter a responsabilidade de vir passar cinco dias com eles, para ver quem pesca e quem não pesca: “A primeira coisa que se precisa ver para saber quem está registrado como pescador profissional artesanal e recebe o seguro defeso do mexilhão é o seguinte: uma cavadeira, roupa de mergulho, um “sarrico” (feito por um dos pescadores em inox) e um barquinho; depois, tem alguns que têm compressor e fogão a gás para cozinhar o mexilhão”, comentou.

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O Del chama a Mayara de filha embora ela não seja « filha biológica ».

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O marisqueiro, através da cavadeira e com a roupa de mergulho como equipamento, mergulho na água para catar o marisco. Cata-se do nível do mar até 8 metros de profundidade, o que corresponde à faixa da luz na água, mas, como falam os próprios marisqueiros, “depende de como está a água, se está clarinha ou não” assim “Se o mar estiver bom é porque os mexilhões também” dizem. Alguns lugares permitem a cata em apneia; em outros mais complicados, como na ponte, utiliza-se compressor para garantir maior segurança. Os marisqueiros saem dali às 4h da manhã, vão para o lugar de cata e trabalham mergulhando em média durante quatro horas. Obtém-se entre 120kg (em um dia muito bom) e 50 kg (em um dia normal) de “produto final” (chama-se de “produto final” o mexilhão cozido, descascado e embalado). Veja a figura abaixo. Agora, vejamos como se processa o mexilhão no espaço do Del:

Figura 3 - Cadeia do processamento do Mexilhão, o espaço do Del, desenho próprio.

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Ao observar o processamento do mexilhão no “espaço do Del”, observam-se seis etapas essenciais. Neste desenho só foi comentada a espacialidade do processamento. 1) Uma vez catado o mexilhão, a embarcação chega por volta das 11h da manhã, em tabuleiros. Del e seu ajudante remador desembarcam o “produto” no ponto de desembarque. 2) Uma Vez que o “produto” está desembarcado ele é levado à mesa de triagem, onde se fará uma leve triagem das conchas, separando-as. 3) Depois, o mexilhão será cozido em latas (latas de óleo recuperadas de 10 litros). Com a lata cheia de mexilhão, a mesma é coberta com um pano, a fim de manter a homogeneidade no cozimento, o qual é feito com gás. 4) Após alguns minutos, o mexilhão cozido passará por um período transitivo de esfriamento, em um tabuleiro com pequenos buracos sobre outro tabuleiro. 5) Estando o mexilhão na temperatura adequada para ser “descascado”, é levado para a mesa de descascamento, onde os descascadores estão separando o produto final das conchas. 6) As conchas serão jogadas diretamente na água, e o produto final enxaguado e embalado em sacolas plásticas. Uma vez que o mexilhão catado está nos tabuleiros e na embarcação, os marisqueiros voltam para a associação para processar o mexilhão. Cada um tem seu espaço próprio e cada processamento obedece a seis etapas, descritas após a figura. Etapas estas que se adaptarão com a espacialidade que cada marisqueiro dispõe para exercer sua atividade. Utilizei aqui o espaço que o Del ocupa para entender as diferentes etapas do processo. O lugar onde o Del exerce sua atividade é um pouco diferente dos outros marisqueiros. Isso porque ele construiu um lugar “um pouco mais apropriado” para poder processar o mexilhão – na verdade não foi construído para ele, mas para todos, como espaço para processar o mexilhão, apesar desse espaço não pode acolher mais de uma pessoa. Os outros marisqueiros do local utilizam a orla do aterro (Veja Figura 50

3), onde tiveram que se adaptar às condições de cada espaço, utilizando pedras para desembarcar, portas no chão como mesas de descascamento, madeira e plásticos para o fogo. O lugar é retangular, perfazendo 7 metros de largura e 8 metros de comprimento. No espaço acontece toda uma cadeia de processamento do mexilhão que envolve tanto os marisqueiros quanto os descascadores, pessoas essenciais ao processo. Del chega a ter cinco descascadores em período “bom”, isto é, quando se produz até 100 kg de mexilhão descascado. Esses descascadores, geralmente invisíveis das instituições responsáveis da pesca, fazem parte do processamento do mexilhão. O lugar deles é definido na atividade. Farei uma breve descrição sobre o papel, a renda e o lugar dos mesmos.

Foto 4 Espaço do Del com Mayara e Maria descascando, foto do autor. O produto final será vendido para o mercado São Pedro ou para atravessadores. Geralmente, as transações são feitas às 3h da manhã. De 30kg de mexilhão com 51

concha, equivalente a um tabuleiro que chega ao ponto de desembarque, é aproveitado como “produto final” entre 2kg e 3kg de mexilhão descascado, o que determina a relação entre produto catado para produto final de 1/10. Esse “produto final” é vendido em vários lugares, como no Mercado São Pedro, para atravessadores locais, para restaurantes e até na Bahia, onde não há o mexilhão, e em São Paulo; “o certo é que nunca faltam os compradores”, de acordo com Del. Entretanto, o espaço descrito é o espaço que está mais bem organizado até então, já que não são todos que têm essa facilidade no processamento. O Luisão tem 40 anos, por exemplo, que veio da Bahia vrou marisqueiro após passar por Jurujuba. Ele relata que os conflitos internos de Jurujuba fizeram com que ele fosse expulso da associação. Logo depois, encontrou-se em um canto com os marisqueiros da associação e nela permaneceu. Quando fui visitar o espaço de processamento dele, pude observar o quanto o mesmo era precário. Para poder chegar nesse lugar, caminhei por uma trilha muito estreita, que passa pela borda do aterro, onde lá em baixo, na terra, foi cavado um espaço de uns 8 metros de comprimento por 3 metros de largura. O desembarque dos tabuleiros se faz sobre duas pedras situadas na orla. Depois, eles são levados ao lugar do processamento. Sobre uma prancha de madeira, uma antiga porta de madeira, é feita uma leve triagem. Após essa etapa, o mexilhão será cozido num tonel de metal cortado ao meio com um pedaço de tecido a fim de homogeneizar o cozimento, sobre um fogo de madeira e plásticos; estes são usados pois supostamente elevam a temperatura do fogo. Uma vez cozidos, duas pessoas levarão o panelaço com um pau de madeira de uns 2 metros para a zona de descascamento, onde os descascadores esperarão o mexilhão esfriar um pouco antes de descascá-lo. As conchas serão jogadas diretamente na água da Baía, e o produto final será guardado em um tabuleiro antes de ser embalado em sacolas plásticas próprias para conservar alimentos.

Nesse espaço chegam a circular umas seis

pessoas. Na realidade, a maioria delas está no processo de descascamento, sendo apenas duas pessoas responsáveis pelo processo de cozimento e transporte do mexilhão (zona de “circulação” na figura). 52

Figura 5 - Processamento no espaço do Luisão, desenho do autor. É importante ressaltar que é como cada um dos marisqueiros tem seu próprio espaço, adaptando-se ao local e às configurações físicas do espaço. O interesse dessa descrição comparativa é ver como cada marisqueiro precisa de um espaço próprio. Ultimamente, os debates sobre a requalificação e a fiscalização da atividade fizeram com que os atores mudassem os locais de processamento, como, por exemplo, dentro da embarcação, pois o que me foi explicado é que não pode ser proibido, se o barco e o registro de pescador artesanal estiverem em dia.

Foto 6 Espaço do Luizão; Triagem e Cozimento, foto do autor.

53

Nesta figura podemos ver um marisqueiro fazendo a triagem sobre uma tábua, separando o mexilhão a ser cozido e quebrando-o com a cavadeira para facilitar o cozimento. Na foto, vemos como ele é cozido sobre um fogo à lenha e coberto por um pano para conservar o vapor.

Foto 7 Espaço do Luizão; “Descascamento” do Mexilhão cozido, foto do autor. Nesta outra foto, vemos como se realiza o processo de descascamento dos mexilhões cozidos. Terminado o cozimento, duas pessoas (homens) levaram o recipiente no qual o mexilhão está cozido e jogam o conteúdo em cima da mesa. Após um tempo de espera para que esfrie, o mexilhão é descascado e juntado na cestinha azul. O produto final é embalado em sacolas de plástico e as conchas jogadas na Baía. No projeto de realocação dos marisqueiros, falava-se sobre um centro de beneficiamento coletivo para o processamento do mexilhão, como explicarei mais tarde. Após essas observações, feitas com a descrição do espaço do Del e do Luisão, 54

podemos ver como cada um trabalha no mesmo espaço temporal é dizer no mesmo horário, mas não no mesmo espaço fisico. Precisaria então coletivizar toda a cadeia produtiva ou então oferecer um espaço para cada “marisqueiro”? Esse debate tem sua relevância, já que se observa nas contendas internas a vontade de melhoria do processo, tanto no aspecto visual e ergonômico, quanto no que se refere aos níveis de segurança.

Foto 8 Espaço do Luisinho; processamento do Mexilhão dentro do barco, foto do autor. Nesta foto, vemos como o barco foi adaptado ao processamento do mexilhão, restringindo ainda mais o espaço. Falando em segurança, tive uma experiência bastante preocupante no espaço do Del, quando a válvula do gás “estourou” e o botijão começou a pegar fogo. O bombeiro do terminal contentou-se em não fazer nada, não prestando o auxílio devido, observando apenas um dos pescadores, o Brinquinho, salvar do fogo todo aquele espaço do Del que seria queimado. Esse episódio traumatizante me fez pensar que, quando se trata de querer melhorar os processos de transformação – nesse caso, do fogo de madeira ao gás –, é preciso cogitar outros parâmetros de nível de

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segurança, como um acesso para o Corpo de Bombeiros, o que não era o caso naquele dia, já que o caminho estava fechado pela Prefeitura.

Foto 9 Lavando o mexilhão, tríptico do autor. A produção e distribuição da renda na atividade dos marisqueiros Obter informações sobre a renda quando se trata de pesca é uma tarefa bastante difícil. Certa vez, tentei obtê-las com uma das Marias que estava pescando perto de onde se jogam as conchas na água no espaço do Del. Ao perguntar se ela tinha renda, me respondeu que sim. Perguntei logo depois quantos peixes havia, abrindo a tampa do envase onde ela guardava os peixes, no que me respondeu: “Que isso menino, contar peixe é falta de educação!”. Nunca havia pensado, nem feito a associação, mas me lembrei do tabu sobre o dinheiro que temos em nossas sociedades e o quanto é mal visto perguntar para alguém quanto ele ganha. Tive a sorte, na minha socialização com os marisqueiros, de ter a confiança da parte do Del, que me deixou ter acesso a certas informações pessoais sobre a renda. É claro que ainda é uma informação que precisa ser contextualizada da melhor forma, mas pelo menos permite abrir para uma reflexão um pouco mais ampla sobre as rendas e a distribuição delas no local.

56

Para entender melhor da renda dos marisqueiros é importante compreender o quanto ela é flutuante e incerta. Para um marisqueiro poder exercer a atividade dele, existem duas condições primordiais: em primeiro lugar, o mar tem que estar em condições propícias, e em segundo, o mexilhão tem que estar “maduro”. Essa incerteza sobre a atividade pode levar o marisqueiro a não trabalhar durante alguns dias e até semanas. Outro fator importante é o preço do mercado; geralmente o preço do quilo de mexilhão gira em torno dos R$10 o quilo, chegando a descer a R$9/kg e subir até R$ 12/kg. Quando o preço chega abaixo dos R$ 9,00, segundo os marisqueiros, “é tempo de descansar um pouco”. Esse trabalho tem a particularidade de ser muito exigente fisicamente. Por isso, é aconselhável trabalhar dois dias e descansar um, mas, na maioria dos casos, os marisqueiros trabalham seguidamente, enquanto o mar e o mexilhão estão bons. Muitos dos marisqueiros e pescadores que mergulham chegam a ter acidentes por exigir muito mais do que o corpo pode suportar. Um dia, tive uma conversa com Del sobre isso, e ele me contou que estava catando “direto” há mais de três semanas e que o corpo dele estava começando a ter reações como “tonteira” e “extremidades ultrassensíveis”. “A verdade é que”, como ele mesmo enfatizou, “é tempo de parar; pelo menos até segunda”, era quarta-feira, o que perfazia um período de pausa nas atividades de quatro dias. Mesmo assim, podemos estabelecer uma descrição da renda da atividade, quando ela funciona. Del compartilhou comigo os valores de seus rendimentos, fruto de nove dias de trabalho. O

rendimento

de

um

dia

será

dividido

entre

o

marisqueiro,

o

remador/descascador e os descascadores. O salário do remador descascador e dos descascadores varia em função do tempo de trabalho e da produção (geralmente entre 60 e 150 reais/dia). Assim, o Del me comentou: “O outro dia, em uma semana (4 dias), fiz R$ 3.800 bruto; contando seis funcionários, dei R$ 100 por dia pra quem foi ao mar comigo, e R$ 80 pra quem descasca”. Se contarmos são R$ 400 para quem foi para o mar e 5 (descascadores) x R$80 = R$ 400 x 4 dias = R$1600 para os descascadores. No total, são R$ 2.000 para os funcionários e R$1.800 para o Del, dos quais descontar desconta-se o botijão de gás de R$ 40, mais 5 litros de gasolina diária (5x4=20 litros aprox. R$ 40). Ao esclarecer essa distribuição de renda, deve-se levar em consideração os investimentos que envolvem a atividade e que estão a cargo 57

do mergulhador, como a roupa de mergulho a R$ 600, o compressor a R$ 2.000 etc.. Quanto à distribuição da renda, Del afirma que geralmente ele gosta de dividir o bruto em dois, entre ele e os funcionários: “Gosto de guardar um pouco mais, por causa das despesas”. Tabela 1 Rendimento Bruto em reais do Del num período de 9 dias consecutivos de cata. Quilos de Dia

mexilhão processado

Preço Rendimento

por

em R$

quilo em R$

11-jul

75

674

9

12-jul

55

490

9

13-jul

80

720

9

14-jul

52

465

9

100

900

9

18-jul

86

775

9

20-jul

132

1182

9

15,16 e 17-jul

Total em

9

580kg

R$5206

dias

Em termos de renda, esta circula entre os marisqueiros, as famílias destes e os descascadores. Se tomarmos o caso de Del, o tempo de trabalho dele se situa entre às 4h e às 12h. Quando o mar está bom (“num dia bom”), Del consegue catar aproximadamente 100 quilos de mexilhão processado, o que representa R$10 o quilo, ou seja, R$1.000. 58

Desses R$ 1.000, guarda para ele R$600, e divide os outros R$ 400 com aquele que está trabalhando. Geralmente, há quatro pessoas trabalhando nas tarefas de limpar, ferver e descascar o mexilhão. Del afirma que tem no total até oito pessoas que trabalham com ele. O que representa oito famílias, e até mais de 30 pessoas. Na maioria das vezes, porém, são duas ou três pessoas que trabalham na atividade. Conforme Del me explicou, há diferentes graus de rendas. No entanto, os que trabalham com ele não são declarados. Aliás, ele justifica outras práticas quando me conta que “eles deveriam ter direito ao seguro defeso. (...) Por isso que também não posso respeitar o defeso, sou responsável por várias pessoas que contam com essa renda, e R$ 622 não dá”. Por ser o presidente da associação, ele é cadastrado e recebe o seguro defeso no período do defeso do mexilhão, do 1° de setembro ao dia 31 de dezembro. Isso equivale a quatro parcelas de R$ 622. Ainda assim, ele continua catando mexilhão no período do defeso. Ele afirma que “o mexilhão é como uma fruta, quando está madura tem que se catar”. Mais adiante na conversa, disse que o trabalho do mexilhão representa muito mais que R$ 622 por mês. Aliás, um dos argumentos importantes na valorização da atividade é que mexilhão é “ouro preto”, que “traz muito dinheiro”. E que se “pode fazer mais de um salário mínimo em um dia”. Sobre a atividade de coleta do Perna perna, há duas considerações importantes. A primeira é que a maioria dos marisqueiros desse local considera a cata “como um presente” da natureza, pois quando o mexilhão está maduro tem que se coletar. Além disso, o ciclo natural do mexilhão não permite que os marisqueiros coletem a totalidade de mexilhão disponível no banco natural. Desse modo, eles explicam: “Quando o mexilhão está maduro, a gente cata tudo o que puder, porque de um dia para outro ele desova e não tem mais nada dentro da concha”. O outro fator que se revela muito interessante na compreensão, como complemento do primeiro argumento, é que o seguro defeso não cobre de maneira satisfatória o que se ganha quando o mexilhão está pronto para a coleta. Ao perguntar qual seria o valor justo para eles, Del respondeu “uns R$3.000 para um mergulhador e R$1.500 para um descascador, aí a gente respeitaria os períodos de defeso”. Del diz que uma vez chegou a fazer R$ 28.000 brutos em 45 dias trabalhados; é claro que se 59

precisa de dois dias ou até três dias de trabalho e um dia de descanso, mas quando as condições climáticas estão ótimas os marisqueiros se esforçam para ter uma maior produção. O discurso relacionado à sensibilidade ecológica e ambiental também é importante por parte do Del, mas a responsabilidade na rede de rendas locais parece ser muito mais importante. O que me permite ver a distribuição de rendas como círculos circunscritos da produção pesqueira.

Familias

Descascadores

Marisqueiros

Figura 10 "circularidade" das rendas entre marisqueiros. Ao identificar uma rede mais complexa da atividade, entre os marisqueiros e as famílias no local, é importante pensar na maneira pela qual os descascadores fazem parte de uma cadeia produtiva. Eles são pessoas essenciais no processamento do mexilhão. Em “período fraco”, cada marisqueiro tem pelo menos de um a dois descascadores; em “período gordo”, até cinco cada um. Essa rede de rendas não é evidente de se observar. É preciso descrever esse mecanismo a fim de identificar quem são essas pessoas envolvidas e quais são as estratégias de renda deles. Cada mergulhador marisqueiro tem seus ajudantes. Geralmente são os mesmos, mas em momentos de tensões entre as pessoas, há uma rotatividade que traduz, na verdade, em uma relação de solidariedade com quem compartilha o local e a atividade há anos. Eu pude observar um conflito entre um marisqueiro e um ajudante 60

remador que reclamava da renda que lhe era atribuída. Por motivos de hierarquia e vaidade, o mergulhador marisqueiro não quis mais contratá-lo como ajudante. O ajudante, sem trabalho e triste por motivos afetivos, bebeu muito durante mais de três dias, para chamar a atenção de todos no cais, para reconquistar a posição dele. Eu também fui utilizado nessa estratégia: lembro-me do acolhimento “exagerado” por parte dele que tive naquele dia. Mais adiante no dia, fui falar com outro marisqueiro, que me contou que ia catar mexilhão no dia seguinte para poder dar trabalho ao ajudante desesperado, “mas se ele está bêbado, não vou!”, afirmou. No outro dia, o ajudante foi trabalhar com alguma dificuldade. Desde então, ele reconquistou sua posição no local. Esse exemplo demonstra a relação entre as pessoas no local. Entre a hierarquia e a solidariedade, vive-se uma relação bastante paternalista entre o marisqueiro-mergulhador e os ajudantes descascadores, o que certamente determina uma relação social baseada na socialização do trabalho, em partes estruturadas pela espacialidade estreita que deixa pouco espaço à privacidade. As famílias cumprem também um papel bastante importante nesse processamento. Muitos dos descascadores são pessoas que pertencem à família dos marisqueiros ou dos pescadores e são geralmente pessoas que estão o tempo todo no local, como a Mayara que participa de todos os processamentos do mexilhão acompanhada de sua filha (a neta do Del). Mencionar esses descascadores é bastante interessante, porque eles são trabalhadores avulsos que não pertencem a nenhum tipo de filiação institucional. Eles não têm direito a um seguro desemprego, nem a um seguro-defeso pelo Ministério da Pesca e da Aquicultura, apesar de fazerem parte do processamento que é reconhecido pelo novo RGP de 2011. Dois problemas decorrem dessa descrição, o primeira diz respeito à distribuição de renda e o segunda a quem deve ter direito à carteira de pescador. Consideraram-se o pescador artesanal dentro de uma rede de distribuição de rendas. Mas, se buscarmos desenvolver uma percepção mais acurada, podemos observar que há pessoas que vivem da pesca sem serem pescadores, e contam com essa renda para sobreviver. O que nos leva ao segundo problema: Quem tem direito à carteira de pescador artesanal? 61

O mergulho: “A gente gosta de mergulho mesmo” (Luizão) A atividade mais realizada no local é, sem dúvida, o mergulho. Tanto a cata de mexilhão como a pesca subaquática são realizadas através de mergulho. Além dessas atividades ligadas diretamente à pesca, existem também outras formas de rendas, certos “bicos” quando “o mar está ruim”, ou quando “estamos na faltura” (antônimo de fartura). A atividade de mergulho merece ser destacada como um conhecimento importante no local, tanto pelo conhecimento da atividade de mergulho em si, como sobre o conhecimento naturalístico dos locais de pesca e de cata. Na atividade de cata de mexilhão, o mergulho oscila numa faixa de 0 a 8 metros de profundidade, o que o Del chama de “faixa da luz”. São ferramentas essenciais ao mergulho: a roupa de mergulho constituída de uma roupa de neoprene, de uma máscara, um “pé de pato” (nadadeira) e de ferramentas complementares como a cavadeira; um sarico (cesta de inox onde se coloca o mexilhão recém-catado da pedra; o tamanho varia entre 20L e 70L); eventualmente, uma lanterna de mergulho e, claro, um compressor para mergulhar com mais segurança. Muitas vezes, mas nem sempre, o mergulho se faz com um compressor que está no barco e ligado ao mergulhador através de uma mangueira. No barco está o “ajudante” que tem a tarefa de verificar o funcionamento do compressor, recepcionar os mexilhões para colocá-los nas caixas e remar para manter o barco no mesmo lugar em razão da correnteza da água. O mergulho, como pesca subaquática, é composto pela roupa de mergulho e por um arpão. Uma das características dessa pesca é a de ser efetuada em apneia. Muitas das pessoas da APASP pescam através do mergulho: “Quando não tem mexilhão, vamos atrás de peixe”, dizem os marisqueiros. Mesmo catando mexilhão, podem, em oportunidades especiais, “matar” um peixe como eles dizem. O mergulho também é considerado trabalho avulso, uma vez que consiste em utilizar o conhecimento do corpo e do mar para fazer trabalhos em baixo da água. Geralmente se trata de limpar plataformas ou grandes embarcações. Esse trabalho é bastante ocasional, mas tem sua importância para algumas pessoas do local. Como o Airton explicou: “Eu já tirei da lama uma lancha novinha em fibra de vidro, só a ponta saía da lama, aí fui tocando com a mão, e vi que era uma lancha”. 62

O mergulho é um conhecimento muito importante das pessoas envolvidas nesse local. Cada um dos mergulhadores tem histórias sobre a Baía de Guanabara; representando quase 30 anos de conhecimento da evolução do fundo da Baía de Guanabara. Como me contou o Del: “Eu conheço quase tudo nessa Baía, já mergulhei por tudo e qualquer canto, mas o que mais me impressionou foi quando fui mergulhar num local que conhecia muito bem, tinha uma pedra bem grande de 5 ou 6 metros de altura, que são as tocas que costumamos chamar aqui. As tocas são pedras-referências onde se encontram os peixes; assim, existem os nomes de toca do badejo, toca do robalo etc. Essa toca era utilizada como referência; eu tive lá e me surpreendi! Sumiu tudo! Quando fui ver melhor, ela estava escondida pelo lodo, mas lodo mesmo; se você parar em cima você afunda, é tudo lodo de esgoto! É merda! E aqui [Baía de Guanabara] nós não temos correntes suficientes, nós temos uma entrada só!”. Apesar do conhecimento sobre a geomorfologia subaquática da região, existe também um conhecimento naturalístico local em relação aos lugares de cata do mexilhão, sobre a reprodução deste e sobre os lugares de pesca em função do mar, do tempo e da estação. As anedotas sobre o mergulho são várias, assim como a “história do sino”. Airton me contou a história: há uns 8 metros de profundidade entre duas pedras estava preso um sino de alguma igreja (supõe-se); Del, quem mergulhava bastante nesse lugar, utilizava o sino como referência geográfica em baixo d’água. Um dia, o sino “sumiu”. Um mergulhador que por acaso passou por ali decidiu tirar o sino para poder vendê-lo. O sino foi vendido por R$ 15.000, e Del ficou sem referência nesse lugar, prejudicando sua atividade de pesca. Além de ser um conhecimento (naturalístico e corporal) a partir do qual esses pescadores exercem as suas atividades, o mergulho representa um “mar de oportunidades” no qual tudo ainda é possível. Assim, fala-se de tesouros, de embarcações recuperáveis e de todo tipo de objetos esquecidos nas profundidades das águas, aos quais poucas pessoas tem acesso. Esse conhecimento, aliás, continua sendo transmitido a novas pessoas que integram a associação. Eu conheci o Brinquinho nos primeiros meses de sua chegada ao local. Nesse momento, Del, Airton e Luizão começaram a “zoá-lo” acerca da 63

maneira de mergulhar. O Luizão comparava as pernas do Brinquinho a um pato. E ele respondia sempre com alegria: “Estou aprendendo, estou aprendendo”. Alguns meses depois, uma reportagem foi feita para um jornal sobre os quarenta anos da ponte Rio-Niterói. Airton e Brinquinho acompanharam o entrevistador até a ponte, explicando a pesca de mergulho. Nesse dia, Brinquinho pegou um peixe maior do que o do Airton. Quando cheguei estava o Brinquinho “zoando” o Airton. O aprendiz superou o mestre, dessa vez... “De onde vem o Mexilhão?” “De onde vem o mexilhão?” foi sem dúvida a pergunta que mais fiz no local aos catadores, dada às múltiplas localizações de cata do mexilhão por este grupo de marisqueiros. O mexilhão é o recurso majoritário no local da APASP. Ele é considerado um recurso bentônico12, que se fixa no estado de larva numa superfície dura (chamado de substrato duro). A especialidade dessa pesca é que os recursos são fixos e são os pescadores que se deslocam para coletar o recurso. É importante compreender o ponto de vista da biologia marinha para entender um pouco mais sobre o que estamos tratando, de modo que possamos dialogar com o ponto nativo dos marisqueiros do local. O mexilhão Perna perna, que é o mexilhão que encontramos na Baía de Guanabara e para alem da cidade de Rio de Janeiro e Niterói, é uma espécie nativa do continente africano, introduzida na América do Sul há mais de 200 anos. O molusco bivalve filtrador se fixa em substrato duro onde vivem normalmente. Por esse motivo, acredita-se que a espécie veio do continente africano fixada no casco de navios negreiros durante o período de colonização do Brasil, porque não se tem encontrado conchas desse molusco nos resíduos de conchas pré-colombianas nas costas do Brasil. Embora seja considerado pelo IBAMA, na instrução normativa n°105 do 20/07/2006, como uma espécie “exótica invasora” dentro do ambiente da costa brasileira, entra na categoria 2, que se refere às espécies que podem ser utilizadas em condições controladas, com restrições, sujeitas a regulamentação 12

Os organismos bênticos ou bentônicos são aqueles animais que vivem associados ao sedimento, seja marinho, seja das águas interiores, como por exemplo, os corais.

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especifica, o que justificaria o período de defeso entre o 1° de setembro e o 31 de dezembro. Atualmente, os bancos naturais da espécie no Brasil ocorrem, principalmente, entre o Espírito Santo e o Rio Grande de Sul. Perna perna é uma espécie subtropical que tem um crescimento mais rápido do que espécies originárias de clima temperado. O crescimento de mexilhões em bancos naturais varia de acordo com o tempo de emersão dos animais (RESGALLA Jr. et al., 2008). Estes animais são expostos periodicamente ao ar como nas regiões “entre marés”, Boa Viagem em Niterói é um exemplo onde se cata regularmente mexilhões na beira, onde o recurso cresce mais lentamente; pelo estresse fisiológico como privação de alimento. A grande maioria dos bivalves comercializados no Brasil provém de um ambiente natural, o que torna essa atividade economicamente importante, não só em termos de ocupação da força de trabalho, mas também na formação de renda do setor primário da economia, constituindo um dos elos da cadeia produtiva do agronegócio da malacocultura (cultura de moluscos), sendo utilizados essencialmente para a cata de semente para o cultivo (HENRIQUES et al., 2000). No caso de uma grande parte dos catadores de mexilhões, também chamados de marisqueiros, é o mexilhão maduro que é arrancado da pedra para ser cozido, embalado e vendido aos mercados, o que a distingue de uma atividade “agrícola”, de “cultivo”, sendo uma “coleta”, que se “cata”. A classe Bivalvia abrange animais como “mariscos”, ostras e mexilhões. Os bivalves são comprimidos nas laterais e possuem uma concha composta por duas valvas, encaixadas em dobradiça dorsalmente. O pé como o restante do corpo é lateralmente comprimido, além disso, possui a cabeça mal desenvolvida. As brânquias nesta classe assumem outro papel além de trocas gasosas, de captação de alimentos (RUPPERT; BARNES, 1996). Mexilhão é o termo utilizado para denominar as diversas espécies de moluscos bivalves da família Mytilidae, sendo os gêneros mais comuns Mytilus, Perna e 65

Mytella. Dependendo da região e do país, recebem diversos nomes, como “marisco, sururu, bacu-cu e/ou ostra-de-pobre” (MAGALHÃES, 1985). “Seu comprimento varia entre 5 a 8 cm podendo atingir 14 cm; possui 3 a 4 cm de largura e 2 a 3 cm de espessura” (RIBEIRO-COSTA; MARINONI, 2002). Os animais possuem pé alongado em forma de língua, com um sulco no meio para a passagem do bisso. O bisso é usado para a fixação do mexilhão no substrato (RUPPERT; BARNES, 1996). O mexilhão, espécie do local, compreende a seguinte taxonomia: Filo Mollusca (Linnaeus, 1758) Classe Bivalvia (Linnaeus, 1758) Subclasse Pteriomorphia (Beurlen, 1944) Ordem Mytiloida (Férussac, 1822) Superfamília Mytiloidea (Rafinesque, 1815) Família Mytilidae (Rafinesque, 1815) Subfamília Mytilinae (Rafinesque, 1815) Gênero Perna (Retzius, 1788) Espécie Perna perna (Linnaeus, 1758) A concha do Perna perna é “equivalve”, possuindo três margens: dorsal, ventral e posterior. A margem dorsal possui suave angulação próxima à metade da concha; a margem ventral é ligeiramente côncava; e a margem posterior é arredondada Espécimes de Perna perna provenientes de bancos naturais apresentam valvas mais espessas, desgastadas com menor altura e maior largura do que espécimes provenientes de cultivos, os quais ficam permanentemente submersos devido a ação abrasiva das ondas (RESGALLA Jr. et al., 2008)

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A ação da maré (diferente) em cada local faz com que o mexilhão crie uma concha diferente reconhecida pelos catadores. De acordo com Del: A gente reconhece de onde vem o mexilhão, pela forma da concha ou pelo tamanho do bicho. Por exemplo, quando chega um catador com mexilhão bonito, ele não vai dizer de onde vem, ele vai dizer que vem de outro lugar, mas a gente conhece e sabe de onde vem cada mexilhão. Esse conhecimento naturalístico in visu tem se construído com o tempo e um cotidiano baseado na atividade. O umbo define a região anterior do mexilhão; e pela região ventral saem os filamentos do bisso. A concha é lisa, apresentando apenas linhas concêntricas de crescimento. va (Figura 1 (RESGALLA Jr. et al., 2008; RIBEIRO-COSTA; ROCHA, 2002). O mexilhão é uma espécie dióica, sem dimorfismo sexual externo. Interiormente, a diferenciação é possível graças à diferença de coloração dos tecidos gonádicos (que é relativo às glândulas sexuais) dos animais sexualmente maduros. O manto em animais maduros apresenta-se alaranjado nas fêmeas e esbranquiçado nos machos. “Esta cor é devido à presença de gônadas no manto, pois nesses animais as gônadas são difusas, estendendo-se para o manto” (ibid.), conhecimento que os marisqueiros tem, ao falar que “os mexilhões vermelhos são bem mais gostosas”, por serem fêmeas. Os mexilhões são animais filtradores que se alimentam de microrganismos capturados pela corrente de água que é produzida pelo batimento dos cílios das brânquias. A seletividade do seu alimento ocorre pelo tamanho da partícula. Esses animais filtram de 0,5 a 4 L/h (litros por hora) dependendo do tamanho e das condições ambientais (RESGALLA Jr. et al., 2008). A alimentação dos mexilhões é um processo contínuo que só é interrompido quando os mexilhões são expostos ao ar, ou permanecem submetidos a qualquer outra condição ambiental desfavorável, como baixa salinidade ou reduzidos teores de 67

oxigênio dissolvido na água (MARQUES, 1998).

Figura 11 Caráteres estruturais da concha do bivalve Perna perna (RIBEIRO-COSTA e ROCHA, 2002). Os mexilhões fixam-se ao substrato através de um conjunto de filamento denominado bisso após a fase larval planctônica. Esses filamentos são formados a partir das glândulas localizadas na base do pé que secreta um líquido viscoso que se coagula. Os mexilhões são móveis, estes pode se movimentar através dos seus pés, se as condições do ambiente não estão muito favoráveis. O mexilhão pode até desprender-se completamente como estratégia de sobrevivência através da força da tração do pé que leva ao rompimento do bisso (SANTOS, 1982). Assim, após a fase larval planctônica, os mexilhões passam a ter hábitos bentônicos, vivendo aderidos a qualquer substrato rígido como rochas, pilastras de portos, correntes e cordas submersas, cascos de embarcações e boias. Mas habitam, preferencialmente, os costões rochosos na região entremarés até a zona infralitoral, em profundidades variáveis em locais mais expostos à ação das ondas. Pode chegar até 7 metros de profundidade dependendo da inclinação do costão, intensidade do batimento das ondas e da proximidade de fundos arenosos. Locais 68

expostos à ação de fortes ondas e mais profundos podem possuir mexilhões até em maiores profundidades. Em Arraial do Cabo, P. perna são encontrados em lajes submersas a 35 metros. A maior concentração de mexilhões se dá na parte inferior da zona entre marés até um metro de profundidade, podendo formar densas populações com até 20.000 animais por metro quadrado (RESGALLA Jr. et al., 2008). Os mexilhões representam uma importante fonte de alimento em muitas partes do mundo por possuírem ampla distribuição geográfica e por serem organismos dominantes e de bom crescimento. Os mexilhões também são fonte de alimento alternativo, quando a pesca artesanal não é bem sucedida (RESGALLA Jr. et al., 2008). No Brasil, a comercialização dos mexilhões se dava basicamente de duas maneiras: na concha ou desconchado, em embalagens plásticas de 500 gramas ou um quilograma. Atualmente, com o aumento da competitividade entre os produtores, ocorreu uma diversificação nas formas de apresentação do mexilhão para comercialização, através do processamento do produto e consequentemente agregando valor (SANTOS, 2009). Como vimos no capítulo anterior, nesse local o mexilhão é cozido e descascado e vendido pronto nas embalagens. Isso permite contratar mais pessoas e ganhar tempo, peso e comercialidade. A composição química do mexilhão varia com o sexo e a fase do ciclo reprodutivo em que os mariscos se encontram. O mexilhão fresco é constituído por 10 % de proteína, 3,5% por carboidratos e 1,5% por lipídeos, sendo considerado um alimento de excelente qualidade nutricional. O teor de lipídeos desses animais é baixo comparado à maioria das carnes e são importantes fontes de ácidos graxos poli-insaturados, principalmente ômega 3 (RESGALLA Jr. et al., 2008). Além disso, os mexilhões são importantes fontes de cálcio, ferro e zinco.

69

Figura 12 Mexilhões cozidos, foto do autor. “O mexilhão é uma riqueza” como me disse o Pardal.

Se Situar: “Vou estar aqui no cais” (Del) Cheguei nesse local de pescadores pela recomendação do meu professor Ronaldo Lobão, que falou com Del, presidente da associação, por causa do debate sobre a Resex-Mar em criação no “canto” de Itaipu. Tratava-se de entender a atividade dos marisqueiros no local de Itaipu, a fim de trazer para a discussão elementos de conhecimento sobre quem poderia continuar a atividade na Resex-mar em Itaipu (pescando ou catando). O local de reprodução sociocultural desta atividade caracteriza-se por estar localizado entre grandes empreendimentos urbanos. Destaco a quase invisibilidade desse local no centro da cidade de Niterói. Entretanto, o lugar de hoje não é o lugar de ontem, pois o espaço da beira, onde estes pescadores exercem esta atividade, tem sido, através do tempo, um lugar marcado pelas transformações, pelos conflitos e pelos deslocamentos. Hoje, os membros da APASP continuam as atividades de pesca na beira, em um local que acompanha a orla do aterro da Praia Grande; caracterizado por ser um 70

espaço alongado, cuja função principal está ligada ao trabalho, embora na verdade tenha vários usos. Dentro dessa configuração espacial, pode-se observar certa forma de socializar e de se organizar como grupo de pescadores. Entre grandes Empreendimentos A Associação dos Pescadores e Amigos de São Pedro (APASP) está situada atrás do terminal de ônibus João Goulart, da cidade de Niterói, próximo ao shopping Bay Market. É nesse lugar extremamente urbanizado que um canto de acesso ao mar está reservado a alguns pescadores e marisqueiros da Baía de Guanabara, com autorização da Marinha e da Prefeitura. A situação desses pescadores é pouco comum. Trata-se de uma área intensamente cercada pelos grandes empreendimentos, onde se encontram um terminal de ônibus, shopping, terminal das barcas e o teatro popular. Marisqueiros e pescadores têm receio de serem expulsos da cidade, pois se encontram no meio do projeto chamado “Caminho Niemeyer”, que atualmente passa por um processo de transformação no qual se preconiza uma “revitalização do centro”, como se observa na figura 3. Com o novo projeto de “requalificação” do centro e a “revitalização” da orla da Baía de Guanabara, a Prefeitura de Niterói planeja transformar a cidade. O centro de Niterói será concebido como um lugar do “bem-estar”, de turismo moderno e verde. Esse projeto enorme que ainda está em processo de votação na Câmara de Vereadores de Niterói apresenta-se como um grande desafio para o futuro da cidade, tanto técnica como sócio-culturalmente. Em relação aos pescadores e marisqueiros de São Pedro, a Prefeitura entrou em contato com a Universidade Federal Fluminense (UFF), através do InCTInEAC/NEPEAC,

para

estabelecer

uma

parceria

que

pretendia

produzir

conhecimento sobre a atividade deles, frequentemente invisíveis, tendo em vista que esse processo de “requalificação” não pretende “remover ninguém”. No lugar onde os pescadores e marisqueiros reproduzem suas respectivas atividades, pretende-se fazer uma plataforma dos diversos serviços de transporte, assim ônibus, barcas, VLT e outros. Para realizar esse projeto, a Prefeitura de Niterói precisa “realocar” a Associação de Pescadores e Amigos de São Pedro para outro lugar. 71

No planejamento espacial do centro está prevista uma “vila dos pescadores”, construída em torno do “mercado de peixe”, na atual “Rua da Lama”, com a integração das sessenta famílias de pescadores da Rua da Lama e da Associação dos Pescadores e Amigos de São Pedro, além de restaurantes e outros tipos de serviços de caráter turístico. Esse projeto de transformação traz várias indagações, tais como: qual é o conhecimento das atividades no local? Como está organizado o espaço? Quem são esses “pescadores” e seus “amigos”? Existem regras internas suscetíveis de modificar a importância das informações? Essas questões precisam ser acompanhadas de uma descrição das atividades no local. Todavia, quando o pesquisador entra no local, as primeiras observações e percepções são raramente as mais fidedignas; o tempo de socialização permite entrar pouco a pouco em uma realidade cujos contornos tornam-se cada vez mais nítidos. Esses grandes empreendimentos que cercam a referida associação de pescadores os tornam invisíveis e improváveis. Essa situação peculiar levanta uma série de questionamentos sobre como uma atividade artesanal conseguiu continuar/permanecer nesse local e de alguma forma resistir à pressão urbanística.

Figura 13 - Os pescadores da Praia Grande e os grandes empreendimentos 72

que o cercam, foto Google Earth, desenho do autor.

Foto 14 Espaço de reprodução dos Pescadores, fonte Google Earth.

Descrição física do local Os Boxes e a rampa Hoje, com a construção do novo espaço (desde 1998), a associação conta com 44 “Boxes” alinhados (todos os Boxes têm as seguintes proporções: altura: 1m78, largura: 1m20, comprimento: 2m), um cais e uma rampa com acesso à água onde guardam e consertam as embarcações de pequeno porte como na figura Box e Rampa.

A utilização desses Boxes varia em função do dono. Para alguns, é um lugar onde se vive, pois tem uma instalação que lhes permite permanecer no local durante toda a semana, com uma cama na qual se pode guardar os apetrechos que precisarem na parte de baixo. Para outros, é somente um lugar para armazenar o material necessário para exercer sua atividade. Ao observar um pouco melhor, sob uma 73

perspectiva interna, tive a oportunidade de entender que os Boxes são motivo de conflito no local.

Figura 15 - Box e rampa, desenho do autor. A princípio, os Boxes foram construídos para cada pescador no local. Havia 44 pescadores e marisqueiros e, portanto, 44 Boxes. Com o passar do tempo, alguns trabalhadores do local morreram ou deixaram aquele espaço, vendendo os Boxes para outros pescadores. Um deles chegou a comentar comigo que já teve até oito Boxes. Hoje, alguns pescadores têm vários Boxes, e outros não. Essa situação gera conflitos no local na hora de trazer a discussão sobre a relocação do lugar de atividade para outro canto. Embora, a primeira vez foi-me dito que havia tantos boxes quantos eram os pescadores no local. Com o avanço da pesquisa, de 44 caiu para 35 o número de pescadores. Na verdade, essa questão é bem mais complexa do que se pode imaginar. Efetivamente, existem 35 pescadores, mas nem todos são donos de um box no local. Ao construir junto com o Bay Market os Boxes para os pescadores, a Prefeitura, não deve ter imaginado que aqueles ingressariam em um mercado imobiliário local e informal. Como as sociedades nunca são estáticas, pessoas foram e outras vieram, propiciando de alguma forma uma oferta e uma demanda dos Boxes, o que foi utilizada como fonte de renda. Pescadores compraram os Boxes para vender para 74

outras pessoas que se incorporariam no local. Assim, os Boxes passaram a ser fonte de rendas e a ser patrimônio dos pescadores que têm mais importância na hierarquia local.

Foto 16 Os boxes e um dos pescadores, foto do autor. Quando assisti à reunião organizada pelos membros da Prefeitura de Niterói e pelos membros da Associação de Pescadores e Amigos de São Pedro, percebi como um local que aparentemente parecia ser homogêneo desmembrava-se em grupos distintos, com argumentos fortes. A Prefeitura, ou pelo menos os membros que acompanharam a reunião, não conseguia ver as fraturas internas. No entanto, para mim, ficou muito claro. Um dos temas que gera mais conflitos é o de saber quem é pescador, ou seja, quem merece ficar no local, ter direito a um Box e a um espaço que lhe permita reproduzir a atividade que o sustenta. Na frente de quase todos os Box tem um espaço de apenas um metro reservado à circulação, e logo começa a rampa, onde estão “estacionadas” pequenas embarcações de pesca. A rampa tem como função guardar os Caicos, para poder sair até as embarcações que estão na água, e embarcações pouco utilizadas ou em processo de reparo. Geralmente, cada Box tem seu próprio espaço para as embarcações, sendo as fronteiras desses espaços muito bem vigiadas. Além disso, existe um acordo entre todos os membros da APASP, que têm embarcações ou são autorizados a guardar embarcações no local, de utilização da rampa para consertos no 75

período de um mês, com possibilidade de ficar mais tempo se precisar. Mas se a coletividade percebe que o dono da embarcação não está no local para trabalhar, consertando o barco, pagará uma multa ou o barco será retirado da rampa – no tempo que lá estive, nunca presenciei a aplicação de tal sanção.

Foto 17 A rampa, foto do autor. Entre os barcos e os Boxes há o que chamei de “espaço de circulação”; na verdade, este “corredor” é utilizado além desta única utilização. Ao observar como está construído o espaço físico da APASP, podemos notar que existem poucos espaços reservados para uma socialização coletiva, deixando claro que a socialização está em torno da atividade e do trabalho. Os poucos espaços que permitem juntar mais pessoas ao mesmo tempo são o cais, a cozinha que está situada no canto à esquerda dos boxes e o espaço do Del – é claro que quando esses espaços não estejam sendo ocupados pelo processamento do mexilhão. 76

Relações Sociais: Vínculos, Socialização e Hierarquia. Chamarei de relação social os relacionamentos entre os indivíduos ou dentro de um grupo social definido, nesse caso, o grupo de pescadores da APASP, formando assim a estrutura social do grupo. Para entender melhor a configuração das relações sociais nesse âmbito da pesca, precisa-se, em um primeiro momento, compreender as divisões entre os espaços do mar e os espaços da beira. Existindo essa dupla territorialidade, podemos identificar duas formas de se relacionar. A primeira, que diz respeito ao mar, está baseada na relação dentro da embarcação. Esta relação depende do tipo de embarcação, devido à tripulação à bordo. A maioria das embarcações que saem para catar mexilhões compõe-se de dois membros: o mergulhador e o ajudante cuja atividade foi definida mais acima.13Às vezes, quando a embarcação permite que se tenha uma estratégia singular em relação ao descascamento, embarca-se junto com os descascadores. Logo, na medida em que o mexilhão é catado, ele é preparado, elaborando todo o processo da cadeia produtiva no barco, como diria o Pardal: “Eles [aqueles que adotam esta estratégia] já vem com o mexilhão já tudo pronto”. Nessa espacialidade particular, “no mar” existe uma relação importante de confiança. A bibliografia estudada no que diz respeito à pesca no litoral fluminense (KANT DE LIMA DE LIMA e PERREIRA 1997; LOBÃO 2010; MELLO e VOGEL 2004; DIAS-NETO 2012) descreve a confiança a partir de uma relação chamada de “companha” no local, isto é, uma parceria no barco. Sendo o mar um lugar demasiado perigoso e, por isso, respeitado, as parcerias não se constituem com “qualquer pessoa”; precisa-se ter um “vínculo” com o “companheiro”. Este vínculo tem base na confiança que o dono da embarcação, geralmente o mergulhador, vai ter no acompanhante. Acompanhando Del, a partir da Beira, observei uma troca de três acompanhantes no tempo que estive no local. Primeiramente, o acompanhante oficial era o Macarrão; depois, foi a Mayara; e, por fim, para substituir a Mayara, o Gato. 13

Em Maricá, por exemplo, a companha de pesca se reduz a dois membros – o corticeiro e o chumbereiro. MELLO & VOGEL: 2004, 312

77

Macarrão aparentemente conhece muito de pesca: foi pescador embarcado durante muito tempo e marinheiro em vários tipos de embarcações. Conhece o Del “há muitos anos” e já viveram “muitas coisas”. Não sei exatamente sobre as histórias que ligam essas duas pessoas, mas um fato é evidente: eles se conhecem, o que revela a confiança que eles sentem um pelo outro. Um dia cheguei de manhã no local, os marisqueiros ainda não voltavam da pesca, e me encontrei com Macarrão. Ele estava exaltado e feliz em me ver. Nunca teve uma atitude semelhante comigo antes. Ele me chamava de “meu grande amigo”, “que prazer em vê-lo”. Depois, fui descobrir que ele tinha brigado com Del, e que essa noite ele bebeu e ainda estava nos vapores do álcool, o que explicava tanta “simpatia” comigo. Explorando mais essa pista, descobri outras complexidades que compõem as relações do local. Macarrão me contou que pediu um leve aumento nas diárias, porque ele não achava justo receber a mesma coisa que a Mayara, que trabalhava menos e não acordava às 4h da manhã para ir de barco com Del. O Del teria negado o aumento, o que teria levado os companheiros a se separarem. E foi a Mayara que começou a ir de barco às 4h da manhã com o Del. Quando comecei a perguntar sobre o porquê de tal “desacordo” entre parceiros de longa data, fui descobrir que o Macarrão estava bebendo demais e que o Del não se arriscaria a sair com “ele bêbado”. A posição do Macarrão no local estava se fragilizando mais a cada dia; menos ele trabalhava, mais ele bebia e tentava negociar a sua própria presença no local através dos outros atores. Nesse dia, encontrei-me com Pardal, com quem falei um bom tempo, e ele comentou comigo que ia sair no outro dia no mar; não porque precisava, mas para que o Macarrão voltasse a trabalhar: “Mas se ele está bêbado, vou sair não”, comentou comigo, repetindo para o Macarrão alguns minutos depois. Essa anedota revela alguns fatos muito interessantes a respeito das relações sociais no local. Primeiro, que a confiança é um elemento muito importante no âmbito do trabalho e que esta confiança se adquire pelos atos. Segundo, que existe uma solidariedade muito grande entre as pessoas que compõem a paisagem dessa atividade. E em terceiro lugar, que se tem uma organização hierárquica nas interações sociais baseada numa categorização local, o que revela claramente relações de patronagem entre esses parceiros. 78

Quando a amizade instrumental atinge um ponto máximo de desequilíbrio, de sorte que um dos parceiros está claramente em uma posição superior quanto a sua capacidade de conceber bens e serviços, aproximando-nos do ponto em que a amizade cede lugar à relação patrono-cliente. (...) é mínima a carga de afetividade envolvida na relação entre patrono-cliente na formação daquela confiança que subscreve a promessa de futuro apoio mútuo. (WOLF, 2003). Assim, observei que há relações complexas no local, por um lado, muito solidárias; por outro, muito paternalistas. Nesse âmbito, as relações hierárquicas estruturam a relação ao redor da atividade que dá importância ao mergulhador e ao dono da embarcação. Por ser a pessoa que “arranca o mexilhão”, o mergulhador é aquele que está na base da cadeia produtiva e, na lógica local, é quem mais lucra com essa atividade, assumindo os riscos e investindo nela. Por outro lado, podemos dizer que as observações sobre as relações sociais relatam um sistema de patronagem que se sustenta porque o acesso direto ao recurso sofre limitações que são, nesse caso, o conhecimento da técnica de mergulho e a “condição (física)”, os apetrechos e a documentação que permite ao marisqueiro produzir a matéria-prima: O confinamento da patronagem em determinadas esferas, nas quais aparentemente se instituíram relações dificilmente regidas por outro princípio, dada a escassez intrínseca de determinados recursos (LOIZOS, 1977). Essa experiência social desse grupo de pescadores é significativa quando procuramos entender como ela se sustenta no local: De fato e parte trivial da experiência brasileira desconfiar incondicionalmente do “governo” ou do “Estado” e, de maneira inversa e significativa, do ponto de vista sociológico apresentado aqui, confiar em instituições como a família, o lar, a rede de parentes, etc (DAMATTA, 1985). Essas instituições, como podem ser a família e as redes interpessoais, mantêm uma relação de patronagem através do conhecimento da arte de pesca, o que sustenta 79

as relações e o grupo frente às relações formais e individuais da sociedade envolvente. Assim: No Brasil existe uma guerra como Gilberto Freyre (1936) percebeu entre a “casa” e a “rua”. Uma guerra que corresponde nitidamente às entidades sociais que cada um desses “espaços” designa na cultura brasileira: a nação, com seu individualismo e suas leis universais, e a sociedade, com suas tendências complementares e personalistas (DAMATTA, 1988). As relações sociais entre os membros da APASP são complexas de se entender por estarem baseadas em relações interpessoais interdependentes e diádicas. Mas podemos de fato observar que se conserva uma forma tradicional de se socializar. Quando o mergulhador/catador dispõe do poder e da responsabilidade de produzir, os descascadores dependem dessa produção para poder trabalhar e receber suas diárias. Além disso, cria-se uma relação de apadrinhamento em que o mergulhador responsabiliza-se, e é responsabilizado, pelos seus descascadores. Nesse local são mantidas relações de patronagem que sustentam a atividade econômica no local e oferecem segurança nos momentos de crise.

Os Desafios: “Nós temos que estar preparados” (Airton). Esse grupo de pescadores tem como atividade principal a cata de mexilhão. Atividade que com os novos ordenamentos jurídicos encontra-se em tensão constante. Mas a capacidade de continuar a cata, bem como toda a cadeia produtiva até o mercado, representa uma capacidade de resistência. O grupo de marisqueiros consegue se manter no local e oferecer oportunidades de trabalho a pessoas que fazem parte de uma rede social forte. Essa adaptação sofisticada revela a capacidade de resiliência e de ressignificação que o grupo tem na tensão entre o que representa a identidade do local e a modernidade em ação. Como local de atividade dentro de um espaço em constante transformação, este espaço de reprodução sociocultural, pela APASP e, sobretudo pelas pessoas que a compõem, se reconfigura e se transforma dentro das projeções tanto por parte dos atores como por parte das políticas públicas e de outros atores envolvidos em 80

projetos no local. Essa dialógica, duas logicas, de projeções entre os pescadores e a sociedade envolvente traz pela relação diádica uma hierarquia “natural” dos órgãos públicos, como a Prefeitura, sobre a pequena APASP, constituída por pescadores artesanais que exercem uma atividade que, hoje, torna-se ilegal pelos novos ordenamentos espaciais, ambientais e de higiene. Isso traz novos desafios a serem identificados. Assim, o projeto de “requalificação do centro” leva os membros da APASP a mais uma incerteza no que se refere à continuidade de suas atividades. Essas questões foram compartilhadas comigo através da relação que estabeleci em um momento chave de discussões com a Prefeitura sobre o projeto acima citado. Cada vez que ia a campo, surgia uma pergunta: “Você sabe para onde eles [a Prefeitura] vão nos levar?”. Outro desafio importante em relação à atividade são os lugares de cata que, como vimos anteriormente, estão sujeitos a leis que proíbem a pesca e particularmente a cata de mexilhão em banco natural. Fica claro que sem acesso ao recurso, a atividade desaparece e, juntamente com ela, a identidade de um grupo de pessoas. Podemos também refletir sobre uma classe de atores extremamente importantes na cadeia produtiva do local, quais sejam, os “descascadores”. Estes participam do processamento do mexilhão. Para alguns, essa atividade é a maior fonte de renda das famílias, embora não seja reconhecida, devido à ausência da carteira de pescador profissional. Esses “novos desafios” encaminham uma reflexão sobre a resiliência de uma identidade de catador de mexilhão em uma situação delicada e marginalizada pelo ordenamento social, espacial e jurídico.

Requalificação do centro O projeto de “Requalificação do centro” diz14 que: O Centro da cidade de Niterói precisa resgatar o prestígio perdido ao longo das 14

http://centro.niteroi.rj.gov.br/oprojeto/ocentroquequeremos.php

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últimas décadas. Para melhorar a qualidade de vida de moradores, comerciantes e frequentadores da área, a Prefeitura de Niterói elaborou o projeto de Revitalização da Área Central (Ver figura 19). Partindo da constatação de que o Centro de Niterói perdeu o seu esplendor e, é claro, na continuidade do projeto formulado e assinado em 1940 por Getúlio Vargas sobre o aterro da Praia Grande. Abrangendo sete bairros (Centro, São Lourenço, Ponta D’Areia, São Domingos, Gragoatá, Boa Viagem e Bairro de Fátima), incluindo, ainda, as comunidades do Morro do Estado e Favela do Sabão, o projeto totaliza 3,8 milhões de metros quadrados que vão receber melhorias e intervenções físicas e urbanísticas. Reformulando o espaço público para atender as demandas e projeções de um espaço moderno oferecendo: Serviços essenciais como drenagem, esgotamento sanitário e iluminação. A infraestrutura, incluindo a fiação elétrica, será subterrânea em toda a região. Além disso, estão previstas nova pavimentação e sinalização nas ruas e calçadas, assim como a renovação do mobiliário urbano.15 Para atender a esta demanda, o transporte é uma das prioridades. Está sendo prevista a criação de uma estação intermodal que irá integrar barcas, ônibus, bicicletas, o futuro bonde moderno (VLT - Veículos Leves sobre Trilhos) e a Linha 3 do metrô – um projeto do Governo do Estado. O uso de bicicletas será estimulado com a construção de 20 quilômetros de ciclovia. Outra preocupação do projeto se refere aos atuais usuários dos espaços da cidade, como moradores de rua, que receberão acolhimento em um novo abrigo. Já os vendedores ambulantes serão remanejados para um novo local. Outros grupos também

ganharão

espaços

apropriados

para

suas

atividades:

pescadores,

marisqueiros e catadores de papel, por exemplo.16

15 16

Idem Idem

82

Como citado no site oficial do Projeto, essa iniciativa visa a melhoria de condições e serviços na área do Centro de Niterói, remodelando a estrutura atual e melhorando a rede de esgotos, a fiação elétrica etc.. Oferecendo maior “harmonia” com a nova “estação intermodal de transportes”, com a incorporação de um “bonde moderno” chamado de VLT e a “nova” linha de metrô (linha 3), estação de transportes que estaria situada no exato lugar de reprodução da APASP. Mas a prefeitura anuncia que dentro das preocupações estão os “atuais usuários”, dentre os quais estão citados os “moradores de rua”, “vendedores ambulantes” e “outros grupos” como os pescadores e marisqueiros que “ganharão espaços apropriados para suas atividades”.

Figura 18 Área inicialmente prevista a ser "requalificada" ou "revitalizada", e situação da APASP, feito pelo autor)

83

Ao fazer referência aos pescadores e marisqueiros, fala-se do grupo de pescadores da Praia Grande que é composto pelo grupo de pescadores da Rua da Lama e da APASP. Quando foi apresentado o projeto, falou-se da criação de um espaço de revalorização turística para “incorporar” os pescadores e marisqueiros dentro do processo de requalificação do Centro, construindo, assim, um “polo gastronômico e turístico” no entorno do “tradicional” Mercado de Peixe de Niterói, além de áreas de lazer, pousadas e restaurantes com foco em produtos marinhos. O fato de os pescadores da APASP estarem situados no lugar de uma das mais importantes transformações para o projeto, que é a nova estação intermodal de transportes, obriga a Prefeitura de Niterói a negociar uma realocação da APASP. No lugar proposto e, em parte aceito pelos membros da APASP, seria colada a nova vila de pescadores. Na próxima figura, está detalhada nesse espaço restrito que envolve a APASP a projeção feita para ordenar esse novo espaço.

Figura 19 Os grandes empreendimentos que envolvem a APASP, feito pelo autor. 84

Neste mapa podemos observar a situação da APASP, no meio da área onde se pretende construir a estação intermodal de transportes (roxo). Ao lado há dois espaços (amarelos) que estariam destinados a grandes prédios; ao sul (laranja) seria construída uma marina para “valorizar a orla” de Niterói. Em azul está situado o Teatro Popular que valorizara ainda mais este espaço, e, enfim, em verde estará a “nova vila de pescadores” onde pescadores da Rua da Lama receberão casas para suas respectivas famílias. Dessa forma, de acordo com o projeto, a área será revalorizada turisticamente e a APASP terá um lugar “apropriado”. (...) com um polo gastronômico na área próxima ao Mercado São Pedro. Vamos fazer um complexo pesqueiro ali, com vários restaurantes, atracadouro novo, local para os marisqueiros trabalharem e casas para a comunidade que já mora na área (Verena Andreatta entrevistada por Karine Tavares 29/03/2014, O GLOBO).17 Dentro dos novos desafios, é preciso pensar no que se entende por “apropriado”. Podemos já associar alguns itens a serem pensados dentro dessa atividade como, por exemplo, o que chamo de “espaço de reprodução”, isto é, o espaço onde se processa o mexilhão. Seria necessário, portanto, repensar toda a cadeia produtiva, a fim de fornecer um produto com melhor qualidade e que esteja dentro das legislações sanitárias e de alimentação. Durante um tempo falou-se muito da possibilidade de criar um centro de beneficiamento para o mexilhão, tanto para processá-lo como para poder guardá-lo em frigoríficos. Os marisqueiros da APASP estão conscientes de que é preciso “modernizar” para responder às demandas de segurança alimentar, de higiene e de segurança. Outro espaço importantíssimo no local que precisa ser estudado com mais profundidade seria as áreas dos Boxes e da rampa, uma vez que fica claro que, apesar de ter se adaptado a uma espacialidade restrita e claramente funcional, há nas falas queixas constantes sobre o espaço limitado. Os Boxes são multifuncionais, de modo que alguns utilizam-nos exclusivamente para guardar os apetrechos de pesca e outros materiais, enquanto outros o usam para descansar ou até dormir no local. O maior desafio que se apresenta com esse projeto é a resistência a uma 17

http://oglobo.globo.com/economia/imoveis/a-sociedade-se-fechou-nesse-bunker-que-sao-os-predios12030434

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gentificação que tal “requalificação” ou “revitalização” traz como efeito quase inevitável. Ao analisar a palavra “revitalização”, podemos desde já dizer que revitalizar significa dar vida ao que perdeu vida. Chama-se “gentrificação”, uma tradução literal do inglês gentrification, que não consta nos dicionários de língua português, o fenômeno que afeta uma região ou bairro pela alteração das dinâmicas da composição do local, tal como novos pontos comerciais ou construção de novos edifícios, valorizando a região e afetando a população de baixa renda local. Tal valorização é seguida de um aumento de custos de bens e serviços, dificultando a permanência de antigos moradores de renda insuficiente para sua manutenção no local cuja realidade foi alterada. Assim, alguns autores preferem conservar o nome original em inglês, gentrification, e traduzir o termo por “enobrecimento” (PROENÇA LEITE, 2002): O termo gentrification (enobrecimento) é aqui usado no mesmo sentido dado pelos autores Harvey (1992), Featherstone (1995), Zukin (1995) e Smith (1996), que o utilizam para designar intervenções urbanas como empreendimentos que elegem certos espaços da cidade considerados centralidades e os transformam em áreas de investimentos públicos e privados, cujas mudanças nos significados de uma localidade histórica faz do patrimônio um segmento do mercado. A expressão começou a ser usada em 1960, nos Estados Unidos, para designar um modelo de intervenção urbana que se expandia em larga escala em muitas cidades americanas, cuja principal característica era a reabilitação residencial de certos bairros centrais das cidades (Smith, 1996). Empreendimentos semelhantes, embora esporádicos, já aconteciam nas décadas de 1930 e 1940 nos Estados Unidos, seguindo um modelo que Neil Smith chama de embourgeoisement , voltado para os novos empresários e comerciantes (white collars). O deslocamento da população negra e operária dos seus bairros tradicionais, como ocorreu em Georgetown, bairro operário da cidade de Washington (Smith, 1996, p. 37), exemplifica essa tendência que surgiu e se alastrou pelos Estados Unidos e pela Europa no pós-guerra (PROENÇA LEITE, 2002). Ao remodelar espaços urbanos com a intenção de “modernizar”, na verdade, corre-se o grande risco de gentrificar e destruir socializações imbricadas no local, bem como suas atividades. O processo pelo qual esse espaço virá a ser “revitalizado” 86

traz uma série de intervenções de “higiene” e de estética que marginalizam atores que não entrariam em uma nova estética espacial e social. O projeto de “revitalização e/ou requalificação” visa à transformação estética do espaço, ou seja, dos atores que o compõem, a fim de estabelecer um mercado para investimentos imobiliários que financiarão órgãos e suas políticas através da valorização desse espaço. Valorizando o espaço e, consequentemente, o mercado imobiliário, através da estetização escolhese um perfil novo de ocupação, que poucos poderão sustentar. Nesse caso, mesmo que a Prefeitura tenha a intenção de não desalojar ninguém, de fato, a estetização aumentará os custos de moradia e o processo de gentrificação. Por enquanto, os pescadores da APASP estão esperando o posicionamento da Prefeitura para poder se posicionar em relação ao projeto. Ao conversar sobre o tema, as posições são múltiplas: “Pra onde vão levar a gente”, me perguntava Paraíba; “estava pensando”, diz o João Grandão, “eles não vão poder fazer esse projeto, como vão tirar as barcas se está tudo sendo renovado?”. No entanto, Del e Pardal são um pouco mais pessimistas: “Nós temos medo de ser obrigados a sair daqui”. O certo é que essa incerteza traz uma série de questões sobre o devir dessa atividade. Assim, na reunião feita na Prefeitura no dia 26/08 de 2013, quando se perguntou como, quando e qual seria o lugar de realocação, a secretária municipal de Urbanismo e Mobilidade, Verena Andreatta, expôs uma proposta de um espaço entre o atual Teatro Popular e a Rua da Lama, alegando que, em um primeiro momento, seriam deslocados para um lugar provisório, para, depois, serem realocados nesse lugar definitivo. Foi clara, contudo, ao destacar que “ninguém será realocado sem saber qual é o funcionamento” e que se pensaria em “integrar num projeto comum”. Desde então, a parceria entre a Prefeitura não teve sucesso; e a Prefeitura não tem falado nada com os membros da APASP. Há pouco tempo atrás descobri que o Projeto de requalificação do centro teve que responder a um inquérito em uma Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público. Ação que foi extinta pelo juiz Alexandre Scisínio, da 8ª Vara Cível de Niterói do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, como foi noticiado pelo próprio site da Prefeitura de Niterói.

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Resiliência18 e ressignificação Ao voltar para a descrição dessa atividade e tendo em vista as transformações ocorridas nos espaços de reprodução cultural tanto na beira como no mar, observo a resiliência desse grupo de pescadores através da adaptação espacial, jurídica e cultural no local após as transformações mencionadas. Apesar das transformações ocorridas nos últimos quarenta anos no que se chamava de Praia Grande, há ainda um grupo de pescadores artesanais que se autodefinem como pescadores da antiga Praia grande: os pescadores e marisqueiros da APASP e os pescadores da Rua da Lama. As transformações urbanísticas que “destruíram a Praia Grande” tiveram um impacto muito grande sobre as socializações que ali aconteciam. Elas mudaram a cara do centro de Niterói, transformando uma “linda e grande praia” em um projeto de aterro que nunca viu seu fim e ainda está em mudança. Ali, numerosos projetos nasceram e morreram antes de sequer começarem as obras, em razão da reconfiguração política do Brasil que remodela as prioridades de investimentos. A Prefeitura intenta resgatar esse projeto concebido e assinado pelo presidente Vargas em 1940, iniciado em 1969, transformando-o em um novo projeto que visa “revitalizar” a área do centro de Niterói. Isso com a finalidade de agregar valor urbanístico a um espaço abandonado há anos por camadas mais favorecidas e abandonadas a projetos e empreendimentos de grande espacialidade, o que explicaria a impressão de que esse cais é “invisível”. Os pescadores se ressignificaram dentro de um novo espaço e de uma nova atividade após os empreendimentos do aterro da Praia Grande e da Ponte RioNiterói, iniciados no período da ditadura militar no Brasil (1964-1985). Porque pouco se interessaram nas populações ribeirinhas que eram os pescadores da Praia Grande, dando prioridade às políticas de desenvolvimento da pesca de maior escala, considerando a pesca artesanal como “primitiva” nesses anos de “progresso”. 18

O conceito de resiliência tem sua origem na Ecologia, aparecendo pela primeira vez no artigo seminal de Holling em 1973. Inicialmente aplicado a sistemas ecológicos, posteriormente foi empregado para explicar a dinâmica de sistemas socioeconômicos e vem recebendo contribuições importantes das ciências sociais e políticas, explicitadas na emergência do conceito de capacidade adaptativa. Este conceito traz em seu bojo a questão da governança, focando na dimensão institucional e nos limites sociais, econômicos, políticos e culturais à adaptação humana às alterações ecossistêmicas.

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A atividade artesanal continua adaptando-se às novas configurações espaciais, sociais e econômicas. Primeiramente, adaptando-se em uma nova faixa na beira, ao invés de uma praia (Grande), após o aterro, que modificou suas socializações nesse espaço. Apesar dessas modificações, conservou um “saber” naturalístico do local e de seus arredores, o que permitiu criar uma nova atividade através da ponte. Esta passou a ser um ótimo substrato duro para mexilhões Perna perna. Essa capacidade de resiliência cultural, relatada através da adaptação às transformações, diz respeito à importância das imbricações sociais desse grupo com o centro de Niterói. Esse grupo de pessoas tem se constituído como pessoa jurídica, através da Associação de Pescadores e Amigos de São Pedro, para ter um peso jurídico no momento em que foram realocados para o atual lugar. Mas essa forma de organização jurídica não corresponde às formas de gestão e organização de um fazer local. No local, o que vale é ser conhecido e reconhecido como fazendo parte dessa socialização. Esta constitui-se em volta da atividade da pesca e obedece às regras internas nas relações sociais. Podemos dizer que o espaço está sendo ocupado por um grupo de pessoas que o utilizam em conjunto. Esse grupo social continua estruturado socialmente com a atividade da pesca, embora vários atores não necessariamente sejam pescadores, mas participam, de alguma forma, da socialização no local, bem como das tarefas que acompanham essa atividade. Essa relação com o lugar é importante de ser lembrada na hora de se falar das transformações que estão previstas e que necessariamente levam a um questionamento sobre as ressignificações da atividade no seu sentido mais amplo. Ao se tratar da realocação, é preciso levar em consideração as percepções diferenciadas acerca de um espaço aparentemente precário. Nesse sentido: Alguém que não está familiarizado com um espaço pessoalizado, pode considera-lo como em desordem, espaço que se devera “arrumar”. Arrumar (ranger) quer dizer preparar outra relação ao mundo que a relação familiarizada (THEVENNOT, tradução do autor de uma entrevista realizada em 2011 por REIS MOTTA e SILVEIRA SIMÕES).

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Fortalecendo, assim, o sentimento de pertencimento a um espaço que tenha sentidos. Pergunto, então, o que tem mais sentido do que o uso cotidiano do espaço? Sabendo que: Hoje vê-se claramente a impossibilidade de prever o desdobramento da dinâmica

espaço-tempo

em

suas

múltiplas

escalas,

onde

autonomia

e

heteronímia/subordinação encontram-se em disputa permanente, de direção as vezes imprevisíveis” (HAESBAERT, 2002). Agora, quando a Prefeitura constrói um projeto urbanístico, neste existe uma dimensão estética, a qual prevê inúmeras transformações no espaço de reprodução, na atividade e que terão influências importantes sobre a forma em que os atores significam o mundo no qual estão inseridos. Transformando socializações e laços construídos na experiência do dia a dia para uma nova ocupação do espaço, em uma visão que estetiza o que se acha desvitalizado. Devemos nos perguntar como membros que ocupam um espaço podem manter laços fortes dentro de uma socialização particular, a qual, na melhor das hipóteses, foi “ressignificada”. Podemos nos perguntar, ademais, o que seria desse grupo social e dessa capacidade de resiliência/resistência cultural sem o mercado? Mercado que, até agora, “justifica” essa atividade, para ela continuar. Porque, apesar de ser uma atividade dura, tanto pelo labor que ela demanda, como pelas condições de trabalho, da ilegalidade e de pressões externas, o mexilhão “é ouro preto” para esses marisqueiros, e eles gostam de “catar mexilhão, nasceram para isso” e o mercado consome a produção deles e justifica os riscos tomados no dia a dia para continuarem a catar. Contando com uma circulação de rendas entre famílias que se conhecem e se reconhecem, essa atividade tem muito mais existência real e bases que um projeto baseado em uma concepção puramente estética que tenta seduzir os empresários através de desenhos concebidos em uma oficina de arquitetos, com outra relação com o mundo, e que, uma vez terminado o projeto, não terá que viver nele. Ao salientar isso, quero deixar claro que intervenções em espaços onde pessoas mantêm relações específicas há anos devem ser feitas com cautela e em colaboração com quem vive nesses locais. 90

Ao descrever essa atividade pouco conhecida de pesquisadores e órgãos públicos, estamos dando visibilidade fora do âmbito no qual essa atividade existe, ou seja, o mundo da pesca e da cata de mexilhões nos arredores do Rio de Janeiro. Se pudermos categorizar essa atividade nesse local, temos que falar de alguns pontos importantes que hoje não podem estar dissociados; pelo menos quanto a esse grupo particular dos marisqueiros da APASP. Primeiramente, essa atividade está bastante cercada pelos ordenamentos espaciais, o que faz dela, e de várias outras atividades ligadas à pesca dentro da Baía de Guanabara, uma atividade ilegal através de um enquadramento jurídico de múltiplas esferas, como do ambiental e da segurança. A Baía de Guanabara sempre foi um lugar privilegiado para a pesca. Antigos pescadores chamavam de “mar de Rosas”, disse-me Del. Os numerosos cais e pescadores artesanais estão ali para confirmar. Mas as inúmeras transformações dentro da Baía de Guanabara, como a ponte e os crescentes aterros, têm transformado lugares com tradição de pesca. Assim, o aterro da Praia Grande de Niterói transformou um espaço de praia em aterros, de modo que antigos pescadores locais, assim como novos pescadores, tiveram que se adaptar a novas condições de pesca e de reprodução cultural nesse espaço. A construção da ponte trouxe também uma modificação nessa atividade, e a emergência de um local duplo, de marisqueiros e de pescadores. A cata de mexilhão sempre foi considerada uma atividade secundaria para os pescadores, os quais catavam nos períodos de faltura de peixe, para fornecer alimentação e/ou uma pequena fonte de rendas. Cata que existia essencialmente na beira do mar na Boa Viagem, lugar ainda considerado como o berçário dos mexilhões da Baía de Guanabara. Com a aparição de técnicas de mergulho, assim como equipamentos para maior segurança dos mergulhadores, desenvolveu-se uma atividade que consistia em mergulhar para extrair o mexilhão Perna perna a profundidade de até 8 metros. A atividade de marisqueiro foi se desenvolvendo no local até ser a mais importante na APASP, englobando mais de 30 pessoas diretamente e muito mais se pensarmos em todos os beneficiados.

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Essa atividade, que nasceu de transformações importantes, está cada vez mais cercada por grandes empreendimentos urbanísticos. Situada no meio do lugar que teria sido escolhido para fazer a famosa plataforma intermodal de transportes urbanos de Niterói. A Prefeitura de Niterói pretende empreender a realocação desse grupo dentro do sub-projeto “nova vila de pescadores”, para valorizar a atividade dentro do turismo niteroiense. Mantendo o tradicional “mercado de peixes” e a construção de restaurantes e pousadas e construindo um novo espaço que se encaixe na estética procurada. Essa questão não pode ser desatrelada de elementos essências à reprodução cultural desse grupo social como a espacialidade na beira e no mar. Como manter uma atividade no local se os lugares de cata são restritos pela lei? O grupo planeja há algum tempo construir uma “fazenda de mexilhão” para poder continuar a atividade, procurando, assim, uma ressignificação desta. Essa dissertação, na qual tive a oportunidade de compartilhar momentos, dúvidas, medos e projeções com os membros da APASP, resume uma pequena trajetória da atividade deles. Talvez seja um momento importante para se pensar em construir pra frente o que será dessa atividade no local, de observar suas transformações e dos agentes envolvidos, e, talvez, de monitorar as ações da Prefeitura, negociando uma realocação com cara de “gentrificação programada” para populações às margens da estética supramencionada. As grandes transformações que acontecem hoje na Baía de Guanabara e nos arredores dela trazem à luz o debate sobre o reconhecimento dos pescadores artesanais. Nesse caso, o debate da identidade de pescador artesanal. Os pescadores artesanais desconsiderados geralmente das políticas relativas à pesca são um grupo de pessoas que vivem da arte da pesca. A arte de saber trazer o peixe, um conhecimento milenar, transmitido por gerações, adaptando-se às condições locais, e às transformações ocorridas. Cada pescador está ligado a uma ou mais espacialidades e a uma ou mais artes de pesca, o que representa muito mais que uma atividade econômica, mas toda uma identidade.

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Conclusões Ao relatar uma atividade exercida por um grupo de pescadores que se diz da Praia Grande e que, ao mesmo tempo, são membros da APASP,com a particularidade de catar mexilhão de forma artesanal em bancos naturais, observamos a incrível improbabilidade de tal atividade no meio de grandes empreendimentos. Vimos o quanto a configuração dessa atividade, na sua complexa “simplicidade”, se sustenta através das relações sociais imbricadas no local. Através de laços interpessoais fortes, que estão além de uma simples relação contratualista, esse grupo continua gerando rendas para muitas pessoas que continua a atividade de forma similar aos seus primeiros tempos. Os novos projetos urbanos, assim como os novos ordenamentos jurídicos dos espaços utilizados por esse grupo, ameaçam a atividade e, através dela, as pessoas que estão ligadas a ela. Atualmente, os lugares de cata estão sendo proibidos e a Prefeitura de Niterói projeta construir uma plataforma intermodal de transportes nesse local para responder as carências em transportes públicos no entorno da Baía de Guanabara e ao projeto de Requalificação do Centro. Trazendo ao debate uma realocação em um novo espaço, depreendem-se questões essenciais à continuidade dessa atividade e com ela de todo um grupo. Essa identidade está em jogo no que diz respeito à possibilidade de continuar a ser exercida. Por parte desse grupo social, pode-se destacar uma resiliência na identidade de “pescador da Praia Grande”, que continua adaptando-se às transformações e pressões, como vimos, e continua a resistir através de sua capacidade de manter laços fortes para obter objetivos comuns. No entanto, cabe ressaltar que essa atividade soube se manter através da capacidade de produção para um mercado demandante. Além disso, a tensão constante entre uma atividade artesanal e os ordenamentos da sociedade são uma ameaça para a reprodução cultural desse grupo. Mas a capacidade desse grupo de se adaptar, se ressignificar, se manter e se projetar expressa a resiliência da identidade de pescador no antigo local da Praia Grande. Assim, “o mexilhão é ouro preto” é uma expressão que valoriza o recurso para dizer que é toda essa atividade, com suas relações socioeconômicas, seu conhecimento que é “ouro preto” e não unicamente o produto em si, mas tudo o que ele representa para quem está envolvido com essa atividade. 93

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