\" Para tão longo amor, tão curta a vida \" : Fernanda Dias e Macau

May 31, 2017 | Autor: Vera Borges | Categoria: History of the Portuguese Empire, Poetry and Post-Colonialism
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“Para tão longo amor, tão curta a vida”: Fernanda Dias e Macau Vera Borges

A estreita ligação de Fernanda Dias a Macau, que elegeu como centro – na acepção de Eliade, de centro sagrado – da sua obra, tem vindo a fazer com que seja identificada com essa última fronteira do Império colonial português. Essa identificação com Macau, justíssima, se pensarmos que foi esse vínculo que deu à sua voz a configuração que domina a sua expressão poética, não deve no entanto fazer esquecer dois aspectos. Em primeiro lugar, estamos perante uma voz maior, não da poesia relacionada com Macau, mas da poesia portuguesa tout court. Em segundo lugar, trata-se de um caso singularíssimo de adentramento numa cultura outra, a ponto de nos conseguir devolver nos seus versos como que a sua essência. Falo da sua leitura do Yi Jing, O sol, a lua e a via do fio de seda, que incorpora na sua dicção os ritmos imemoriais do Livro das Mutações. Neste Mapa Esquivo que agora nos convoca, regressa-se a Macau, ou melhor, revisita-se a memória de Macau. Regressa-se a uma cidade delapidada, em erosão, rasgada por obras constantes que lhe dão uma vibração infernal: Eis que vibram os operários acossados e o fragor infernal do bate-estacas não há tempo a perder, a cidade vibra homens das obras e pássaros urbanos esperam que o sol lhe seque as asas. Mas nesse mesmo espaço “bendito” reconhece-se o movimento hierogâmico, sagrado, em que o céu e a terra mutuamente se atraem e se repelem, numa eterna repetição da disputa original que o Y Jing evoca: A chuva ama o delta inchado e lamacento cordas de água vibram em uníssono com o cio do céu, bendito céu fecundo (...) Picos de arranha-céus na bruma diluídos dão uma trégua plúmbea ao céu da tarde o Sol oculto cede mais breu à noite A poesia de Fernanda Dias tudo recolhe: “os largos que ficaram”, “as donzelas de rosto de faiança” que “são de entre todas na cidade/ as mais baratas ninfas de aluguer”; os “templos diurnos/ e novas catedrais sinistras”, “o néon insano” a multidão onde “ninguém tem face”, numa revisão da história do lugar, a que se põe termo com uma conclusão que tem tanto de filosófica como de acerba: “Por aqui já vivi eternidades/ e nada vi mudar”. Poderíamos colecionar exemplos duma isotopia ecológica, sustentada também por uma finíssima análise sociológica. Estes poemas que se querem “crónicas” aparecem como uma série de gravuras com cenas da vida quotidiana de Macau, coincidindo a incisiva análise sociológica com a punch line de versos lapidares: Um pescador no paredão ao lado do tumulto do casino busca no rumor da noite o exausto coração do rio

Delicado, antigo esquisso mas cana de pesca muito cara não atrai peixe extinto   Nesta cidade feérica, que marcou a modernidade poética no séc. XIX, pela mão de Baudelaire e, entre nós, pelo passo de Cesário, agora, aqui, “tristíssima e soberba/ prenhe de memórias desprezadas” (7), Fernanda Dias regista agonias várias. Das pessoas, da cidade, de um modo de vida, da natureza. O canto da tortura e agonia da natureza, em Macau, converte-se em hino à resistência ou persistência da vida vegetal, como se tudo estivesse em permanente luto e permanente êxtase, sendo o luto e o êxtase faces da mesma moeda. Assim a primeira parte do livro, “Crónicas de um diminuto pedaço de chão”, antecipa nalguns momentos o canto do final “Caderno de flora urbana”, pelo entretecimento da celebração da vida vegetal em variados espécimes, com o registo da degradação da cidade que com ela se confunde: Ainda resta um painel de selva com unhas e dentes agarrado à antiga muralha. Estertor de flora agrilhoada sob a malha urbana três palmos de tenaz volúpia sugando vertical pedra e o cimento “Para tão longo amor, tão curta a vida”... Os versos de Camões dão bem a dimensão do envolvimento amoroso e da fidelidade desta voz poética a Macau, celebrado como paroxístico “Diminuto pedaço de chão”. Sob a pedra e o cimento, pulsa uma vida mais antiga, insidiosa e irresistível. A identificação do sujeito com essa existência é uma das vias para a redenção da dominante elegíaca, aliás na raiz de toda a poesia, que nos são oferecidas neste livro: Meu pacto de fêmea é com as ervas (...) e pelo verde manto da terra é que juro meu alter-ego é uma erva-daninha Esse habitar a terra é também habitar um tempo outro, a que o fio de linho da poesia permite regressar. Um tempo perdido para sempre, resgatado pelo amor que se lhe tem e pela palavra que o evoca, permanecendo assim como um eterno e imutável presente. Para dizer esse tempo suspenso inalterável, que em si abriga a erosão e simultaneamente a transcende, regressemos ao título do volume, O Mapa Esquivo, oximórico nos seus termos: registo móvel, fugidio, de uma realidade de que é espelho, portanto intangível; fixa, na medida em que é uma realidade per se suspensa no tempo. Para sempre recordarei o mosteiro Kong Tac-Lam A monja varria no pátio as flores de frangipania Com vagar e rigor movia a vassoura de juncos Como se nada houvesse fora e dentro dos muros (...) o semblante tão perto do chão que varria atento a um rumor, ou a uma escrita triunfo palpável da quietude no seio tumultuoso da cidade

(...) o rosto atento como se escutasse debaixo do lajedo o triunfo da quietude no seio do mundo Na epígrafe de Yuen Huá, Fernanda Dias evoca o instante mágico em que se instala “o vazio do coração”, absoluta disponibilidade a permitir a iluminação. Aqui, essa iluminação coincide com a percepção poética da realidade. A epifania é devolvida ou traduzida, na poesia, como lugar. As qualidades do coração, tais como as qualidades do olhar – porque o que define um poeta, de acordo com esta escrita, será sobretudo o olhar – estão ligadas às qualidades do espaço. Percebese então que esse mesmo espaço seja cultuado, como o faz Fernanda Dias no rosário dos seus poemas a Macau. Como é verde a luz filtrada nas acácias Como é feliz aqui meu coração pagão Um poema traduz de uma forma particularmente enfática a pura felicidade que deriva da existência da tenaz volúpia desse verde que também na emergência da luz se manifesta. Celebra-se em risonha ação de graças a fruição carnal e partilhada do fruto que é o fruto e é o outro, dos nomes que são gesto e sabor. pelo perfume da polpa fresca (...) pelos teus dentes quando mordem a pele e o suco escorre pelos teus ouvidos quando digo o nome redondo e to estendo, e o recebes e o levas aos lábios cujo sabor conheço (...) A cada fruto seu mito, sua semente A cada boca seu riso, seu suco doce É com esta força vital que o sujeito se identifica. Há um trânsito permanente entre o subterrâneo, a terra e o céu: o resgate poderá ser assegurado por esse movimento circular? Há uma profunda coerência neste universo e entre os vários livros de Fernanda Dias. Também neste ecoa a sabedoria a que deu voz no já referido O sol, a lua e a via do fio de seda. Uma leitura do Yi Jing. “Crónicas de um diminuto pedaço de chão” encerra com um voto que reverterá porventura em benefício da cidade, dito que foi o mal que os poemas esconjuram: o céu sempre cura as chagas do caos Em “Ofícios”, celebra-se o momento da criação, em que a energia se faz matéria, forma, dando corpo ou voz ao “que não permanece e não pode ser tocado”. A ligação entre os elementos, o cosmos, por um lado, e os artífices, entre os quais se contam pintores e poetas, por outro, sugere entre uns e outros uma rivalidade que os aproxima e os envolve no mesmo desígnio supremo, isto é, cosmogónico. Cada poema constitui um momento de um tratado de poética espelhando a filosofia do I Jing. The violet hour, a hora mágica da poesia na formulação de T.S.Eliot, transforma-se aqui em celebração festiva de uma aliança muito antiga: a luz violeta esmaecida, um lírio vai fechando o círculo do dia algo cresce surdamente em mim maior do que eu. (...)

o segredo da cigarra fecha o dia. Misturam-se os tempos, o do presente em que “o sapal deu em casino” e o de suspensos gestos hieráticos; mas afinal entre o ensinamento insistente de que “a eternidade é breve” e a injunção “ouve a impermanência”, é o ofício do poeta que se sonda, a sua convivência com oráculos, deuses, a sua entrega “ao dia que escorre”. “Ofícios” encerra significativamente com um poema a dessacralizar pelo tom e teor o percurso anterior, num movimento que é comum no lirismo de Fernanda Dias: Devolve-me os meus erros pronto. Já sei, os poemas são uma treta mas não os quero certinhos dobrados na gaveta imaculados como lenços de linho A secção “Ao canto da lua lesta” coloca-se sob a evocação de um humano encontro e de um mal entendido que poderíamos talvez considerar ironicamente emblemático. Em jogo, ainda, o entendimento do ofício do poeta. Mas agora levase mais longe – e mais “lestamente” – o desafio lançado nas secções anteriores. A “estrada de seis faixas/ cortará ao meio o teu mosteiro” (não é ameaça, é realidade; e mudança de paradigma); o tempo, o cosmos, o real suplantam qualquer verso: “qualquer fio de incenso escreve versos/ o rumor da chuva canta um poema eterno”. E como a tendência é para a radicalização e a moldura narrativa a do humano encontro, não se estranhará a alusão à perda amorosa: Por vezes sonho com o teu belo rosto tão perfeito que acreditamos vivos os guerreiros de terracota Ela é dita tão serena quanto intensamente. No círculo de frutos sobre a mesa ficou o toque das tuas mãos serenas Da última secção, “Caderno de flora urbana”, permito-me destacar o verso “cegante de alvura o céu de verão”, como súmula do excesso e intensidade da realidade evocada e da percepção que ela reclama. Já noutro âmbito aproximei a poesia de Fernanda Dias da dicção contida, luminosa de Sophia de Mello Breyner. Atravessa-as o mesmo estio, nelas arde o mesmo fogo da paixão pelo real. Ambas são tumultuadas pela assombrosa beleza masculina (do efebo, em Sophia; em Fernanda Dias, do tocador de erhu, prudentemente visto, tocado, nomeado através da mediação metonímica de similes como jade, alabastro, seda, erhu...). Em ambas o tempo convulso do amor é resgatado pela poesia, a que ambas reconhecem capacidade oracular. A poesia não envolve uma retórica; ela é poder. Em O Mapa Esquivo, talvez pela natureza mesma que o título atribui ao gesto poético, a menção do amor cede terreno à memória da cidade (já não a “cidade estranha” de Horas de Papel), e à experiência que ela ainda constitui, a exigir a percepção de um olhar branco ou cego. A tonalidade elegíaca de muitos destes textos consigna como verdadeiro o “every poem an epitaph” de Eliot; , mas eles são a evidência de que a poesia pode ser um salvo-conduto que nos permite despreocupadamente visitar outros reinos, ou conhecer na amorosa entrega ao espaço o que seria habitar o vórtice do tempo... O tempo que habitamos na cidade revisitada por Fernanda Dias pode também ser o tempo de uma outra poesia, a que ela recua. Intercalados com outros, surgem versos ou mesmo poemas que nos colocam surpreendentemente

ante a paisagem que os poetas (sempre vivendo alguma forma de exílio) avistam da sua cela nas montanhas, na tradição da poesia clássica chinesa (aqui; noutros, da japonesa). Os elementos, os gestos e a perspectiva são os mesmos, e no entanto é Macau que vemos, e as imagens de uma outra poesia que no-la oferecem. Chuva brava semeia sapos no mangal Sapos grandes que zurram como burros Não há aqui caderno nem caneta À cabeceira da esteira, um livro velho (...) De mansinho afasto o mosquiteiro Teia eterna de cassa húmida Saúdo a lua lesta que apedreja Com bagos líquidos e duros o dorso estriado a negro da baía Na poesia de Sophia, Lord Byron contempla na vastidão do palácio Mocenigo e na luz de Veneza o mistério da escrita. Fernanda Dias transporta-nos também para um vasto espaço fantasmagórico em que os “esquivos vestígios” de palácios que já não são se convertem por obra e graça do seu olhar em ambíguas inscrições num mapa antigo. Vivo aqui nesta luz de assombro vendo na curva plácida do delta a miragem dos palácios demolidos águas ocres que se entregam ao mar levando com suas lamas gotas rubras acesas, outras lágrimas vejo da janela esquivos vestígios rasuras, riscos ilegíveis sinais num mapa antigo Este livro quer-se, à imagem da realidade percebida, “mapa esquivo”. Tudo é impermanente, movente, fluido; as águas, o reflexo das coisas nelas, os tempos que se descobrem e entre os quais se navega. Como em Sophia, estamos diante de uma “navegação antiquíssima e solene”1: a da escrita da poesia. Podemos tomar este belíssimo texto como um eixo que enraíza a poesia num lugar e a define como exultação e deslumbramento – e perseguição da luz. Inevitavelmente a revisitação poética de Macau implicaria para Fernanda Dias a confrontação com a memória do Império a que a aventura marítima portuguesa das Descobertas conduziu, com os resquícios do passado colonial que o espaço e as suas vivências transportam consigo. Também na sua “aventura colonial” ela se destaca, pela inteireza da sua entrega e fidelidade à sua musa. A integridade da sua demanda poética só podia desdobrar-se na integridade complexa do seu culto/canto à Macau que revisita; por sua vez, esta implica, por um lado, o que designei como adentramento invulgar na cultura e civilização eleitas, e, por outro lado, o confronto com o Império português, com os seus mitos, os seus resíduos tangíveis e intangíveis. Não é, no entanto, o confronto com o tempo histórico do passado português de Macau que está em questão neste livro. Aqui, Macau está “solta” desse pendor particularmente português da sua história, e a braços com outras vicissitudes da sua

                                                                                                                1  Sophia,    Geografia.  

evolução. Mas, e talvez apenas porque não conseguimos ler sem a memória das nossas leituras e da nossa inscrição na história, no “desejo de um lugar nunca visto” que no poema se atribui à luz, intensificando-o, estendendo-o ad infinitum - no tempo e espaço-, nesse “desejo de um lugar nunca visto”, dizíamos, seria possível fazer coincidir o poeta e os aventureiros das Descobertas? O desejo de um lugar nunca visto exasperava a luz eternizando-a Para Fernanda Dias, eleger ou descobrir Macau como a confirmação do sentido da aventura poética2 implica a noção da passagem por paragens desconhecidas a que inevitavelmente se associará a escrita da poesia. Na interpelação de um verso magnífico, ela coloca-nos perante o cerne de todo o ato poético: Que olhos trazia quem por aqui passou “Aqui” é a fronteira mais distante, o lugar mais remoto - mais esquivo também, do ponto de vista da significação- , dos mapas que nos darão a configuração dos dois Impérios de que Macau foi sempre parte (de uma maneira ou de outra). Por isso a interrogação pode recair sobre o poeta e sobre os que em busca do lugar nunca visto aportaram a Macau o tempo suficiente para que ele se tornasse ilegível sinal num mapa... Com a consciência de que continuamos o mesmo movimento de extrapolação atrás iniciado: poderemos ver neste espantoso poema uma súmula do dilema em que se colocaram aqueles que o coração suspendeu num limbo – “tarde para partir e tarde para ficar”-, subtraído que foi o tempo que lhes permitiria habitar o “pedaço de chão” amado? Que olhos trazia quem por aqui passou e partiu antes que um sobressalto do coração lhe dissesse que era já tarde Tarde para partir e tarde para ficar o tempo de um verso, de um aceno cada lembrança como um rochedo esculpido, resíduos do olhar petrificados O resgate é oferecido ao lugar amado e ao leitor dos versos. Volvido peregrino, este participa portanto do duplo drama que é passar/partir e amar; mas viverá também, através do sobressalto do coração, o milagre da participação sacral na revisitação/recriação de Macau: porém cada lugar se desmorona e se refaz a cada bater de pálpebra um peregrino com seu bornal se faz ao caminho

                                                                                                                2  O  Alentejo  já  a  despertara  para  o  essencial  da  vivência  poética,  como  o  poderão  atestar  as   sinestesias  em  que  o  evoca  nalguns  dos  seus  poemas.  

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