\" PELO AMOR DE TODO MAL \" – O DINAMISMO SIMBÓLICO DO MAL EM DUAS INTERPRETAÇÕES DE A OUTRA VOLTA DO PARAFUSO

June 8, 2017 | Autor: Davi Tomm | Categoria: Paul Ricoeur, Literature and Philosophy, Problem of Evil, Henry James, SIMBOLISMO
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“PELO AMOR DE TODO MAL” – O DINAMISMO SIMBÓLICO DO MAL EM DUAS INTERPRETAÇÕES DE A OUTRA VOLTA DO PARAFUSO     

Davi Alexandre Tomm*    Profa. Dra. Rita Lenira de Freitas Bittencourt        RESUMO: A narrativa A Outra Volta do Parafuso produziu uma extensa bibliografia crítica que tenta desvendar os mistérios que se embrenham no intricado texto de Henry James. Um dos principais méritos dessa história é deixar em aberto a questão central: os fantasmas existiam ou não? A resposta a essa pergunta é fundamental para o estudo de um dos temas mais debatidos pela crítica: a natureza do mal como é apresentada no texto. Dependendo da interpretação dada à existência ou não dos fantasmas, teremos uma visão diferente sobre o mal. O presente artigo não pretende fechar essa discussão, mas mantê-la aberta, assim como a história também o faz. Nesse artigo pretendo apresentar uma rápida revisão da crítica já produzida sobre o mal em A Outra Volta do Parafuso, mostrando as principais interpretações já dadas sobre o assunto, e apresentar uma possibilidade de leitura do tema a partir dos estudos de Paul Ricoeur sobre o simbolismo do mal, mostrando que, dependendo da posição assumida na interpretação da história, podemos ter duas visões diferentes da temática, ambas refletindo o complexo simbolismo que Ricoeur apresenta em seus estudos.  PALAVRAS-CHAVES: Mal, Simbolismo, Henry James. 

  ABSTRACT: The narrative of The Turn of The Screw produces a large list of critic bibliography which tries to understand the mysteries tied in the complexity of Henry James text. The great value of this story is keeping open its fundamental question: do the ghosts exist or not? The answer to it is of great importance to the study of a central theme in the critical analysis: the nature of the evil as it is presented in the text. Depending on the interpretation to the existence of the ghosts, we have different views about the nature of evil. This article does not intent to close this discussion, but keep it open, as it happens in the story. In this article, I pretend to do a little review of the critic about the evil in The Turn of The Screw, by showing the main interpretations already made about the subject and presenting a possibility of read the theme using the studies of Paul Ricouer about the symbolism of evil. I want to show that, depending on the interpretation about the story, we can have two different views about the theme, both of them reflecting the complex symbolism Ricoeur present in his studies.  KEY-WORDS: Evil, Symbolism, Henry James. 

   

1 Introdução   

Ao se abordar a temática do mal em qualquer obra literária, a primeira coisa a se fazer seria trazer uma definição de mal; apontar um teórico cuja definição será usada na interpretação do texto. Porém, a narrativa aqui estudada é A Outra Volta do Parafuso, de Henry James, uma obra complexa, rica em material crítico e que até hoje permaneceu                                                              *∗  

Aluno de graduação da UFRGS, bolsista CNPq do projeto de pesquisa O Imaginário das Ilhas Britânicas. Email: [email protected] 

aberta para diversas possibilidades de interpretações, inclusive sobre a questão do mal. Segundo J. A. Ward (1961, p. 5), “Critics frequently describe James as having a “sense of evil” (rather than an “idea of evil” or a “concept of evil”)”, e isso porque para James o mal é obscuro e indefinido (Ward, 1961). Sendo assim, usar um autor que tente definir o mal conceitualmente talvez não fosse a melhor escolha. Resolvi, então, trabalhar com um filósofo que trata do simbolismo do mal e que, para além de defini-lo, desvenda toda a riqueza do simbolismo do mal através de diferentes fases e conceituações. Esse autor é Paul Ricoeur, que mostra, através da análise desse simbolismo, como a filosofia pode analisar e pensar a linguagem dos símbolos sem, com isso, matar toda sua riqueza. Para Ricoeur (1978), não há linguagem direta da experiência do mal, seja sofrido ou cometido, que não seja simbólica. Acredito, assim, que a teoria de Ricoeur se aproxima da forma como, segundo muitos críticos, Henry James apresenta o tema em sua obra: através de uma linguagem simbólica. Portanto, através da investigação de Ricoeur sobre o simbolismo do mal, e do resgate da algumas críticas já produzidas sobre A Outra Volta do Parafuso e da análise da própria obra, o presente artigo pretende mostrar como as duas principais correntes interpretativas do livro acabam trazendo duas diferentes visões sobre o mal; visões essas que estão relacionadas com o percurso que a o simbolismo do mal faz na sua linguagem dinâmica.    

2 Ricoeur e o Simbolismo do Mal   

A teoria de Ricoeur se coloca no âmbito da filosofia, mais especificamente da hermenêutica, e tenta resolver a questão de como o pensamento filosófico, que trabalha com conceitos e busca uma sistematização do pensamento, pode, através da hermenêutica, interpretar os símbolos sem perder a riqueza que constitui essa linguagem. É uma questão de retorno ao arcaico, noturno e onírico do símbolo e do mito, mas também ao ponto de nascimento da linguagem, ao mesmo tempo em que essa meditação se coloca no pleno da linguagem e do sentido sempre já aí, partindo do meio da linguagem que já aconteceu e onde tudo, de certo modo, já foi dito. Ou seja, a tarefa não é começar, mas relembrar. O problema está na questão mesmo do começo, já que, de um lado, tudo já foi dito antes da filosofia, por enigma e por signo, mas, de outra parte, a filosofia começa a partir de si mesma, ela é começo do falar claramente:   

Assim, o discurso contínuo das filosofias é, ao mesmo tempo, retomada hermenêutica dos enigmas que o precedem, o envolvem e o alimentam, e procura do começo, busca da ordem, apetite do sistema. (RICOEUR, 1978, p. 250) 

 

O discurso filosófico não pode colocar-se como senhor absoluto da origem do pensar, mas como aquele que resgata o que já foi pensado e significado por vias obscuras e sonhadoras e que esclarecerá essas vias pela interpretação do próprio símbolo, pois o símbolo suscita compreensão mediante a interpretação. “O símbolo dá a pensar” (RICOEUR, 1978, p. 243), ou seja, ele coloca duas situações: a posição: ele dá o sentido e não eu que ponho o sentido nele; e a doação: ele dá o “que pensar”. Por causa disso, tudo já foi dito em enigma e precisa recomeçar na dimensão do pensar claramente, justamente onde se coloca a filosofia; mais precisamente onde se coloca a tarefa da hermenêutica.  O símbolo é, para Ricoeur (1978), um signo (nem todo signo é símbolo, mas todo símbolo é signo), pois visa além de alguma coisa e vale por essa coisa. O símbolo, porém, é um signo com dupla intencionalidade: a primeira é literal e supõe o triunfo do signo convencional sobre o natural; a segunda é construída sobre a primeira e visa além do simples significado da palavra. Para demonstrar essa dupla intencionalidade, Ricoeur (1978, p. 244) recorre ao o que chama de “símbolos primários”, que são a linguagem elementar, ligadas ainda à experiência da “confissão”, na qual o homem, através de uma simbólica, diz-se responsável ou presa de um mal que o investe. Esses símbolos são a imagem da mancha, na visão mágica do mal como mácula; a imagem do desvio, curva, transgressão ou errância, na concepção mais ética do pecado; e a imagem do peso, do fardo, na experiência interiorizada da culpabilidade. Assim, na primeira intencionalidade, as palavras mancha, desvio e peso não se assemelham à coisa significada, mas a segunda intencionalidade visa certa situação do homem no Sagrado, que é a mancha material, o desvio no espaço e a experiência da carga:     O sentido literal e manifesto visa, portanto, além de si mesmo alguma coisa que é como uma mancha, como um desvio, como um fardo. (RICOEUR, 1978, p. 244 – grifos do autor). 

 

Os significados colocados pelos signos simbólicos são, assim, opacos, e estão ali colocados de forma representativa. Porém, Ricoeur (1978) destaca que essa relação não é uma mera analogia, pois não fazemos uma comparação de uma coisa à outra, mas é somente vivendo no sentido primeiro que o próprio símbolo nos arrasta além de si mesmo; não é uma comparação de fora, mas o símbolo é o próprio movimento do primeiro sentido que nos faz participar do segundo. Por isso, como dito anteriormente, o símbolo é doador:

“É doador porque ele é uma intencionalidade primária que dá o sentido segundo.” (RICOEUR, 1978, p. 245).  Temos, então, o segundo ponto de importância do simbolismo do mal, pois ele também mostra a dinâmica dos símbolos, ou uma vida dos símbolos. Essa dinâmica nos símbolos primários é balizada pelas constelações da mancha, pecado e culpabilidade, que envolvem o simbolismo do pecado. A mancha, relacionada às imagens da nódoa, mácula, sujeira, é o símbolo mais arcaico e aponta para uma afecção da pessoa no seu conjunto, ou seja, enquanto situados em relação ao Sagrado, todos nós estamos manchados, somos afetados por algo que não pode ser tirado por nenhuma lavagem física. Daí a importância dos ritos de purificação, em que os gestos substituíveis de enterrar, cuspir, jogar para longe etc. visam uma integridade indizível em qualquer linguagem que não a simbólica; tais ritos tentam “borrar” os estragos da mancha (Ricoeur, 1982). A mancha assume uma concepção mágica que transmite a simbólica do puro e impuro, e no centro dessa simbólica situa-se o esquema da “exterioridade”, do investimento do mal: o mal é mal enquanto eu o ponho, mas a simbólica da mácula aponta para uma sedução pelo “mal que já estava aí” (RICOEUR, 1978, p.245), e o puro torna-se impuro por conta do contato com essa mancha que o atinge na sua experiência coletiva com o Sagrado; o mal só é mal enquanto eu o continuo.   No entanto, como bem afirma Ricoeur (1978), um símbolo só sobrevive através das revoluções da experiência da linguagem que o submergem, e uma nova experiência religiosa, aquela do “diante de Deus”, testemunhada pela Aliança judaica, faz a simbólica do pecado se organizar em torno das imagens inversas a da mancha: é agora o desvio (em relação ao alvo, à via reta, ao limite etc.) que passa a servir de esquema diretor. Há uma exigência de perfeição que remodela os mandamentos limitados e precisos dos velhos códigos, e junta a eles uma ameaça infinita: o encontro com Deus e sua cólera divina. Nesse novo esquema, duas coisas acontecem ao símbolo inicial: primeiro, o mal já não é uma coisa qualquer, mas sim uma relação rompida, ou seja, um nada representado pelas imagens do sopro, do vão, do vapor úmido, da futilidade do ídolo; depois, surge uma nova positividade do mal, na qual ele já não é algo de exterior que investe sobre o penitente, mas um poder real que subjulga, escraviza o homem, fazendo surgir o símbolo do cativeiro, o qual transforma um acontecimento histórico (o cativeiro no Egito e na Babilônia) em um esquema de existência. É essa nova positividade do mal que resgata o primeiro

simbolismo, da mácula, mas o esquema da exterioridade se encontra não mais a um nível mágico, e sim ético.   Essa dinâmica exemplifica o duplo sentido do movimento de um símbolo a outro, em que há, de um lado, uma interiorização e, por outro, um empobrecimento da riqueza simbólica. Por isso, não podemos pensar em uma interpretação “historicista” e “progressista” de evolução da consciência dentro dos símbolos, pois, segundo Ricoeur (1978, p. 245), o que “é ganho de um ponto de vista, é perda do outro”. A passagem do nível mágico ao ético no esquema de exterioridade faz perder a riqueza simbólica da mancha. É o que Ricoeur (1978) chama de movimento de ruptura e retomada.  O mesmo movimento é visto na passagem dos símbolos do pecado para o símbolo da culpabilidade. A afirmação realista do pecado – o pecado é real mesmo quando não conhecido, ou seja, pecamos mesmo quando não sabemos que pecamos, pois essa é uma dimensão coletiva em que toda a humanidade está envolvida – é substituída pela experiência subjetiva da falta – a falta é medida pela consciência de quem a comete –, e temos, então, a substituição da imagem do desvio, da errância, pela imagem do peso e do fardo. No mais íntimo da consciência do homem, a experiência de “diante de Deus” do simbolismo do pecado começa a ceder lugar ao “diante de mim”. “O homem é culpado como se sente culpado” (RICOEUR, 1978, p. 246). A responsabilidade passa a ter um sentido mais fino e comedido, pois passa de coletiva para individual e de total para gradual. Se antes toda humanidade era envolta totalmente pela mancha ou estava cativa pelo poder do mal, agora cada um decide sua culpa e mede-a conforme sua consciência. Mesmo assim, o simbolismo da mácula, mais antigo e já quase apagado nesse terceiro movimento, ainda permanece vivo, pois o inferno exterior tornou-se interior. A consciência torna-se cativa da injustiça perante a lei que sabe jamais poder obedecer e perante a mentira de sua pretensão de justiça. Ou seja, nossa liberdade ainda está maculada por conta das leis que ela acha poder obedecer, mas é incapaz de fazê-lo.  Os símbolos primários, no entanto, são constituintes dos mitos, que Ricoeur (1978, p. 244) chama de “símbolos míticos”. Ele, então, passa a demonstrar como essa mesma dinâmica nos símbolos primários se repete dentro dos mitos. A estrutura mítica sobrecarrega os símbolos primários, que são a declaração da experiência a qual os “símbolos míticos” contam o começo e o fim, de modo mais articulado, comportando narração, personagens, lugares e tempos fabulosos. A dinâmica desses mitos está na mesma oposição vista até aqui. Primeiro temos o grupo de mitos que participa do esquema

da exterioridade, atribuindo a origem do mal a uma catástrofe ou conflito anterior ao homem. A esse grupo pertence o drama da criação, no qual se narra o nascimento dos deuses recentes, a fundação do cosmo e a criação do homem (o poema babilônico Enuma Elish ilustra isso); o mito trágico do herói que é exposto a um destino fatal e um deus que representa a indistinção primordial do bem e do mal (o Zeus de O Prometeu acorrentado é um exemplo); e ainda o mito órfico da alma exilada em um corpo mal, um exílio anterior ao mal posto por um homem responsável. O segundo grupo é dos mitos que atribuem a origem do mal ao homem, e se concentra em um único mito, o mito Adâmico, que é o único mito antropológico. Esse mito, para Ricoeur (1978), contém, em seu interior, o conflito dos dois grupos, que repete a dinâmica dos símbolos primários. O mito Adâmico tem duas faces: ao mesmo tempo em que trata do relato do instante da queda, em nisso o momento em que o homem inaugura o mal, também é uma narrativa da tentação com uma duração de tempo e que envolve diversos personagens:    O mesmo mito que concentra num homem, num ato, num instante, a ocorrência da queda, dispersa-o por outro lado sobre vários personagens e vários episódios. (RICOEUR, 1978, p. 248) 

 

Entre esses personagens está, no âmago do mito Adâmico, a figura altamente mítica da serpente, que não permite a “desmitologização” dos outros mitos: ela é a outra face do mal, relatada nos mitos do primeiro grupo, o mal que já está aí, o mal anterior, que atrai e seduz o homem. Assim, ela significa que o homem não começa o mal, mas o encontra e o continua. Ela não significa apenas a nossa cobiça, mas a figura da tradição de um mal mais antigo, e faz permanecer no seio do mito Adâmico o esquema da exterioridade dos outros mitos.  Desse modo, essa dinâmica do simbolismo do mal, presente nos símbolos primários e repetidos de certa maneira nos símbolos míticos demonstra a riqueza da linguagem simbólica. Esse dinamismo e essa riqueza estão presentes também nas duas principais interpretações da narrativa A Outra Volta do Parafuso. É importante lembrar, no entanto, que essas duas linhas interpretativas não são as únicas interpretações possíveis dessa história.   

II – O Mal Externo x O Mal Interno   

Em seu prefácio para o Volume 12 das New York Editions, volume onde está A Outra Volta do Parafuso, Henry James (1934) escreve que essa obra é uma peça de ingenuidade, e que fora escrita com frio cálculo artístico para capturar aqueles que não são facilmente capturados. Ora, ele não só conseguiu isso, como muito mais. Ao longo dos anos, essa se tornou uma de suas obras mais estudadas e que gerou mais material crítico a respeito. Edward J. Parkinson (2010) divide a trajetória dessa crítica em cinco períodos, o segundo deles, que vai de 1934 a 1948, é aquele dominado por duas vertentes que serão fundamentais para a continuação do debate em torno da história; essas duas visões são chamadas de aparicionista e não-aparicionista, a primeira interpretando que temos mesmo uma história de fantasmas, que são “reais” e inocentando a preceptora/narradora; a segunda apontando o fato dos fantasmas serem ilusões de uma moça jovem, mentalmente desequilibrada e sentindo-se culpada. Pretendo mostrar aqui como essas duas interpretações, quando tomando como centro a questão da temática do mal, demonstram justamente a mesma dinâmica vista anteriormente dentro dos símbolos primários e repetida no mito adâmico, ou seja, a interpretação de que os fantasmas existem, toma como noção de mal o esquema de exterioridade do simbolismo da mancha e do desvio, enquanto que a interpretação da não existência dos fantasmas tem por trás de si o esquema da interioridade e o símbolo da culpabilidade.   Partiremos da interpretação aparicionista. Se os fantasmas “realmente” existem, como uma realidade sobrenatural que cerca e oprime aquela casa, eles podem ser visto – e de fato assim o são pela preceptora/narradora e pelo leitor que acredita na sua interpretação dos fatos – como uma representação daquele mal exterior do qual nos fala o simbolismo da macha: uma coisa qualquer e maligna, “já ali” – veja que eles são anteriores à narradora e ao início da história – que querem manter seu domínio sobre duas crianças inocentes; são como uma mancha, uma mácula que está naquela casa, já presente e tende a manchar, sujar aquelas crianças. Na própria descrição que a preceptora/narradora dá a Mrs. Grose do homem que ela vê na janela nos remete a essa “alguma coisa” que não nos é bem quista: primeiro ele é “Um horror” (JAMES, 1980, p. 163); depois ele se torna indescritível: “Estou morrendo de vontade de descrevê-lo; mas não se pa rece com ninguém.” (p. 164); para em seguida ter olhos “penetrantes, estranhos... terríveis!” (p. 164, 165). E também na primeira descrição do fantasma de Miss Jessel temos a ideia de seres malignos:    

Uma outra pessoa... esta vez. Mas uma figura em que transpa reciam, inequivocamente, o horror e o mal: uma mulher de preto, pálida e terrível... Com um ar também terrível... (JAMES, 1980, p. 178) 

 

Assim, temos na figura desses dois fantasmas um mal anterior, algo que nem mesmo sabemos o que é, pois essa é mesmo a qualidade desse mal simbolizado pela mancha: estamos todos envolvidos nele, sem que saibamos exatamente o que é esse mal, apenas sabemos que ele existe, está aqui desde sempre e nos cerca, nos contamina impiedosamente. Não há uma ação desse mal, mas um estado, e isso se mostra muito bem pelo fato dos fantasmas não agirem na história, mas apenas aparecerem como se estivessem sempre ali.   Ora, um exemplo ainda mais interessante está na cena final do livro, no seu confronto com Quint, e na semelhança dela com os rituais de purificação aos quais Ricoeur se refere como significativos do simbolismo da mancha. Assim como nesses ritos, a preceptora/narradora tenta de todas as formas fazer Miles confessar seus crimes, “cuspir” ou “jogar para fora” a infração que ele cometeu na escola. É notável que, no momento seguinte a ela perguntar se ele pegou a carta dela, no final do capítulo XXIII, ela vê a figura de Peter Quint aparecer na janela, como que simbolizando o início do combate. E não é a toa que, logo em seguida, ela mesma diz que aquilo “Era como lutar com um demônio para salvar a alma humana” (JAMES, 1980, p. 279), para, em seguida, comparar o movimento do fantasma ao “de uma fera que se visse privada de sua presa.” (JAMES, 1980, p. 280). Robert N. Heilman (1948, p. 185, citado por PARKINSON, 2010), o principal crítico aparicionista, que compara muitos trechos do livro com questões teológicas, principalmente ao nível da linguagem, relaciona essa cena final com o ritual de confissão:     ... the long final scene really takes place in the confessional, with the priest endeavoring, by both word and gesture, to protect her charge against the evil force whose invasion has, with consummate irony, carried even there.  

 

Demonstrando a forte ideia que a preceptora/narradora faz da sua posição como uma espécie de salvadora daquelas crianças, alguém que pode e deve purificá-las daquele mal que as envolve, daquela “maligna influência” (JAMES, 1980, p. 280) como ela mesma define. Importante ainda é notar como no início, no capitulo II, quando a preceptora/narradora recebe a carta da escola e perscruta com Mrs. Grose a natureza de Miles, pergunta se essa já o viu agindo mal, ao que a outra responde que sim, “graças a Deus” (JAMES, 1980, p. 142), e percebe-se que Mrs. Grose considera a ideia de mal,

apenas no nível da peraltice de uma criança, mas é a outra que pergunta se essa maldade não acontece a ponto de “contaminar” (JAMES, 1980, p. 142), evocando, aqui, novamente a ideia da mácula, da sujeira que nos contamina uns aos outros.  Ainda para finalizar o simbolismo da mancha, há de se referir, como bem destaca Ricoeur 1978), à simbólica que ela sempre nos transmite do puro e impuro. Vemos claramente na visão da preceptora/narradora, de que os fantasmas são figuras malignas, o medo de que as duas crianças inocentes, ainda envoltas na pureza, com uma “doce serenidade de um anjo de Rafael” (JAMES, 1980, p. 135), pudessem sem contaminadas e, assim, tornar-se impuras. Isso fica claro na forma como ela descreve, primeiro Flora, com sua beleza angelical, que já remete à pureza, e, após passada a suspeita sobre a expulsão, descreve também Miles como um menino que não havia tido história e que renascia todos os dias, ou seja, sua pureza era daquela criatura, assim como a irmã, angelical. A comparação deles com anjos vai além, no mesmo trecho referido acima:    Tanto Miles como Flora possuíam uma doçura (era o seu único de feito, mas isso jamais tornou Miles apoucado) que os tornava — como poderei dizê-lo? — quase impessoais e, certamente, criaturas que a gente não podia castigar. Eram como os querubins da anedota, que não tinham — pelo menos moralmente — lugar algum em que pudessem receber umas palmadas! (JAMES, 1980, 156). 

 

A imagem dos dois, constantemente descritos com extrema beleza, inocência, pureza, torna-os próximos da figura angelical, mas também da figura do homem ainda não corrompido, não atingido pela mancha, o homem ainda não passível de castigo. Ou seja, tal visão corrobora com a visão de Heilman (1948, citado em PARKINSON, 2010) de que, na história, o incorruptível acaba sendo corrompido.   É nesse ponto que vemos o simbolismo da mancha disputar espaço com o do desvio e do cativeiro. Assim como nos símbolos primários, aqui vemos uma mudança na visão da narradora/preceptora que balizará a sua grande angústia através da história. Lembremos que o símbolo do desvio vem com uma nova experiência religiosa, se antes a mancha unia a toda humanidade perante um mal que era qualquer coisa, ou mesmo algo desconhecido que manchava a todos nós, um estado, o desvio passa a ser desvio de alguma coisa, ou seja, há um parâmetro, uma linha reta a qual serve de baliza para nossa conduta, e cujo desvio é o pecado. O mal já não é uma coisa qualquer, mas uma relação rompida com a Aliança de Deus, um nada, de onde surgem as imagens do sopro e do vão. Ora, é justamente a imagem do vão, aqui como abismo, que aparece no capítulo VII, quando a preceptora/narradora diz ter descoberto que seus inocentes pupilos já foram corrompidos. Logo após a cena do lago,

onde acontece a primeira aparição de Miss Jessel, ela explica para Mrs. Grose que os dois sabem da existência dos fantasmas e estão fingindo não os ver, e, assim, eles estariam já impuros e desviados. Nesse capítulo, ela afirma haver “abismos” (JAMES, 1980, p. 179), nos quais, quanto mais se debruça, mas vê, e quanto mais vê, mais se atemoriza, e, depois, no início do capitulo seguinte volta a afirmar: “havia, no assunto que lhe expusera, possibilidades e abismos que eu não tinha coragem de sondar.” (JAMES, 1980, p. 183). A imagem do abismo, aqui, que lembra o vão, está diretamente relacionada com o desvio, agora, o mal é um poder real que subjulga e as crianças estão subjulgadas a esse mal, estão sobre sua influência; como ela afirma na página 171, as vidas inocentes estavam sobre a influência daquele mal.   Não só uma relação rompida, o mal no simbolismo do desvio é uma força real, e assim, passamos do estado para a ação. Nesse sentido, a história também nos fornece mudanças, pois se as aparições permanecem imóveis, apenas a olhar, começamos a desvendar a relação delas com as crianças, na qual vemos suas ações passadas que as desviaram do caminho.  Além da imagem do vão, há também a do sopro, e essa aparece claramente no capítulo XVII, quando ela vai ao quarto de Miles e eles travam uma conversa extremamente dúbia já que há momentos de pura tensão sexual entre eles. Aqui, a imagem de Miles oscila entre a criança inocente e pura, mas que está doente – sendo ela a enfermeira que quer curá-lo (retornando ao ritual de purificação e do simbolismo da mancha) – e a imagem de alguém impuro que tenta interpretar (fingir) inocência:     seus pequenos recursos obrigados a representar, debaixo do enfeitiçamento que pesava sobre ele, um papel inocente e lógico. (JAMES, 1980, p. 237). 

 

Esse “enfeitiçamento” que pesa sobre Miles é como o poder do mal que subjulga o homem. Mas é no final do capítulo que vemos a imagem do sopro, quando ela afirma querer apenas salvá-lo e, imediatamente uma “rajada de vento, uma golfada de ar gelado” (JAMES, 1980, p. 240) invade o quarto e apaga a vela. Ela percebe que a janela permanece fechada e as cortinas imóveis, e Miles diz que foi ele quem “soprou” a vela. Há aqui a imagem não só do sopro, como também do escuro, que segundo Cirlot (2001) está relacionado com o nada místico, ou seja, o nada da escuridão primordial, e, nesse caso, o nada da relação rompida da qual fala Ricoeur (1978). Além de vermos novamente a ação desse mal, mesmo que seja pela figura de Miles. A ideia de nada, de ausência também aparece no capítulo XII, quando a narradora/preceptora explica para Mrs. Grose que as

crianças tem fingindo toda aquela doçura que a encantara, pois na verdade já estão sob a influência dos fantasmas: “Eles não têm sido bons; têm, apenas, vivido ausentes.” (JAMES, 1980, p. 210). A ausência das crianças no mundo dela, preceptora/naradora, se dá justamente pela relação rompida com ela e do desvio para o mundo dos fantasmas.   Para finalizar essa análise da simbólica do desvio, há ainda o símbolo do cativeiro e da errância, que surge aqui por causa da nova positividade do mal. Se antes o mal era qualquer coisa exterior que nos manchava, ou seja, desde o nascimento nos estávamos envolvidos nessa nódoa, agora ele é um poder real que subjulga, é uma força que nos prende. Ora, esse simbolismo do cativeiro e da errância está presente em A Outra Volta do Parafuso, de diversas formas. Primeiro é a própria aparência de Bly que, segundo Sigrid Renaux (1992), é labiríntica, com seus múltiplos e longos corredores, várias portas e escadas, bem como seus jardins. O labirinto, para além de ser uma figura altamente simbólica, também remete ao cativeiro e a errância, ao fato de andarmos sem rumo e estarmos presos nele. Além disso, ao longo da história temos bem presente essa ideia de que os personagens estão presos ali; em vários momentos Miles diz querer ir embora, pede para voltar à escola, mas não consegue se livrar de Bly. Também a narradora/preceptora em determinado momento decide ir embora, mas acaba desistindo. Assim, os personagens não conseguem escapar daquele lugar que os prende, que os domina com sua atmosfera opressora, ao mesmo tempo em que é idílica no início. Mas essa sensação de estar cativo naquela mansão é muito mais vivenciada pela preceptora/narradora, que já se coloca, desde o início, na posição de escrava da vontade do tio que exige que ela não o incomode de modo algum, deixando-a, assim, a mercê de si mesma e dos estranhos acontecimentos de Bly. Não é a toa que, já no final do primeiro capítulo, ao descrever brevemente a casa, ela complementa:    na qual eu tinha a impressão de que estávamos quase tão perdidos como um punhado de passageiros num grande navio navegando à deriva. Um navio em que eu estivesse, estranhamente, manejando o leme! (JAMES, 1980, p. 138) 

 

Vemos, aqui, o simbolismo não só do cativeiro, mas principalmente da errância ser enriquecido pela imagem do navio à deriva, diante da qual ela já se coloca como a responsável por guiar aqueles perdidos, apesar de ela também, muitas vezes, se encontrar perdida. Após seu primeiro encontro com o fantasma de Quint, a errância física, representada pelo fato de ela ter dado “voltas pelo parque” (JAMES, 1980, 153), torna-se errância psíquica quando os mistérios e as aparições fazem-na assumir a posição de

salvadora das crianças. Suas angústias, sua busca pela verdade dos fatos, são representados por suas perambulações pela casa, já que ela se coloca como alguém “iniciada” (JAMES, 1980, p. 241) que precisava descobrir porque Miles havia sido expulso da escola. Para Renaux (1992), ela seria iniciada nos mistérios das aparições, e precisava descobrir se Miles também era um iniciado, e, no caso dele, iniciado na     imaginação de todo mal, tanto no sentido imediato, de poder conhecer potencialmente o mal, como no sentido mais remoto, de poder “imitar” o mal (RENAUX, 1992, p. 71). 

 

Sua busca é por descobrir se as crianças já haviam se desviado ou não, e se ela ainda poderia salvá-los, pois, como afirma Heilman (1948, citado por PARKINSON, 2010), James teria dado a preceptora/narradora certas qualidades de salvadora, não apenas de modo geral, mas também com certas associações cristãs. É ela quem tenta impedir as crianças de serem contaminadas pela mancha e também de limpá-las da mácula do mal, ou colocá-las de volta no caminho certo, no caminho da salvação, tendo que, para isso, encontra-se no mesmo cativeiro que elas. A visão de mal que James apresenta, segundo o simbolismo mais ético do desvio em que o mal é um poder real, seria aquele mal tanto como agente (na figura dos demônios – os fantasmas), quanto como efeito (na transformação dos inocentes em culpados), mas também, no simbolismo mais mágico da mancha, aquele apresentado por Miall (1984, p. 316), “the evil is that of a state, not any given act”.  A outra possibilidade de interpretação da obra A Outra Volta do Parafuso é a que aponta a preceptora/narradora como uma jovem com problemas psicológicos que alucina os fantasmas. Segundo essa visão, que tradicionalmente – inaugurada por Edmund Wilson, o primeiro a usar termos freudianos na análise da narradora/preceptora, o que o tornou um dos mais importantes críticos não aparicionista (PARKINSON, 2010) – segue a linha psicanalítica, a personagem, claramente apaixonada pelo patrão, como evidenciado no prólogo, sente-se culpada por isso e começa a ver os fantasmas que são carregados de significados analisados psicanaliticamente. Quint é claramente uma figura masculina ligada ao tio das crianças, e o fato da preceptora/narradora estar pensando no patrão quando vê Quint pela primeira vez, estando ele numa torre – símbolo fálico e do poder masculino –, é argumento muito forte para essa interpretação. Além disso, a relação dos dois empregados, que não é tão esclarecida, mas torna-se para ela claramente uma questão de relações sexuais, reflete sua própria relação com o patrão, mas de modo inverso, já que

Quint é a figura de classe inferior. A situação da preceptora/narradora é também motivo de análise das principais críticas: sua juventude e inexperiência, o fato de vir de uma cidade pequena, de uma classe baixa e suas assumidas mudanças de humor (PARKINSON, 2010). Essa jovem acaba sendo posta em uma posição de poder em um mundo onde falta a figura masculina da ordem, um argumento forte de Wilson (1934, p. 390, citado por PARKINSON, 2010):    the poor country parson's daughter, with her English middle-class consciousness ... and the relentless English `authority' which enables her to put over on inferiors even purposes which are totally mistaken and not at all to the other people's best interests. 

 

Assim, a culpabilidade dela, alia-se ao fato da sua “autoridade” sobre os outros, permitindo-a impor sua interpretação dos fatos. Essa autoridade, inclusive, é ressaltada por James (1934), no prefácio em que fala da história, como sendo característica suficiente para descrevê-la. Apesar dessa autoridade, tanto como narradora, como quem interpreta os fatos, Renaux (1992) destaca as oscilações e hesitações em acreditar na inocência ou culpa das crianças, aliada a sua pressão, e nesse caso por causa da autoridade, em encontrar a verdade. Tais características enfatizam o fato de ela não ser a mais confiável das narradoras e de estarmos diante de um relato feito por alguém que relembra, depois de anos, fatos ainda “obscuros”. É exatamente em alguns de seus comentários sobre essa questão revisionista que encontramos a dúvida sobre sua culpa:    Vejo que me sinto, realmente, vacilante; mas é preciso que eu dê o meu mergulho. Ao prosseguir em meu relato do que havia de odioso em Bly, não só ponho à prova a confiança mais generosa — o que pouco me importa — mas, também — e esta é outra questão — revivo o meu antigo sofrimento, empreendendo de novo o meu caminho até o seu tér mino. Chegou subitamente um momento após o qual, ao recordar o que ocorreu, a história toda me parece não ser outra coisa senão sofrimento puro, mas já cheguei, afinal, ao âmago do assunto, o caminho mais curto é, sem dúvida, seguir diretamente até o fim. (JAMES, 1980, p. 194) 

 

Veja que ela põe em dúvida sua confiança e junto a isso coloca o sofrimento mais puro, como se seu sentimento de culpa não fosse o mais importante (“o que pouco importa”), mas sim seu sofrimento vivido lá. Além disso, há as referências a sua “obsessão”: “Como descrever, hoje, as estranhas fases da minha obsessão?” (JAMES, 1998, p. 218), como algo que ela parece só perceber anos depois, quando está escrevendo, e não naquela época, quando tudo aconteceu. Ora, narrar é, segundo Renaux (1992, p. 63), uma necessidade arquetípica do homem “para aliviar-se de seu sentido de culpa”. Não por

acaso que ela vê a necessidade não só de narrar para Douglas, como depois escrever sua história em Bly. A narradora/preceptora, depois de anos de reflexão, teria percebido que os acontecimentos em Bly não passaram de alucinações sua, pela culpa que sentia por apaixonar-se pelo patrão, e mais ainda por, talvez, projetar essa paixão no pequeno Miles, e precisaria narrar esses fatos não só para tentar esclarecê-los a si mesmo, mas como forma de aliviar sua culpa.  É interessante notar que essa necessidade de narrar para entender os fatos ocorridos está ligada ao sentimento em que ela está quando da sua ida para Bly. Já no primeiro capítulo, ela coloca sua hesitação quanto a sua decisão: “senti-me de novo hesitante, certa de que cometera um erro” (JAMES, 1980, p. 133), pois sua certeza quanto à particular situação em que ela estaria mantinha-se abalada. Mais exemplar ainda é o modo como esse capítulo e a narrativa dela começa: “Lembro-me de todo esse princípio como uma sucessão de altos e baixos, uma gangorra de emoções diversas” (JAMES, 1980, p. 133). O simbolismo da gangorra (em inglês “see-saw”), o ver-não ver, o mostrado-escondido permeia toda a narrativa, nas hesitações da narradora/preceptora e nas suas referências a olhos vendados:    quer as crian ças houvessem visto ou não — já que nada estava definitivamente prova do — eu preferia para a sua salvaguarda, correr sozinha tal risco. Estava disposta a arrostar os piores perigos. Horrorizava-me pensar que os meus olhos pudessem permanecer cegos, enquanto os deles se mantivessem bem abertos. Bem, no momento, ao que parecia, os meus olhos estavam selados — pelo que pareceria uma blasfêmia não dar graças a Deus. (JAMES, 1980, p. 217). 

 

A dúvida quanto à culpa das crianças é também a dúvida quanto a sua culpa, e o jogo do ver-não ver está ligado a nossas angústias em aceitar ou não nossas culpas. No simbolismo da culpabilidade, não há mais um mal, um pecado que nos une, e no qual estamos todos presos, mesmo sem o saber, mas há uma consciência que se diz culpada quando, individualmente, se sente culpada. A narradora/preceptora, no jogo de ver-não ver, está lutando contra essa sua culpa, está tentando não ver aquilo que talvez já tenha visto: a consciência de seu erro. Na interiorização do símbolo da mancha, ela luta consigo mesma e não mais com um mal exterior. Assim, as hesitações da personagem são exemplares dessa sua luta interior: “Hesitante, preocupada, dei uma volta ao redor da igreja. Refleti que, junto a ele, eu já havia cometido uma falta irreparável” (JAMES, 1980, p. 228). Tal pensamento se dá na cena em que ela e Miles conversam no caminho para a igreja sobre a necessidade de deixar o menino voltar à escola. Miles quer voltar, quer sair da companhia

de sua preceptora, mas parece que ela hesita quanto a isso. Sua hesitação liga-se a noção de falta irreparável, a falta é justamente não querer deixar que o menino vá, fique longe dela, o que remete a sua paixão pelo tio e a ligação deste com o próprio pupilo.   Essa experiência de hesitar está ligada a experiência subjetiva da culpabilidade; experiência essa que faz surgir, segundo Ricoeur (1978), as imagens do peso e da carga. Essas imagens permeiam a narrativa de nossa angustiada narradora, como no trecho seguinte à cena da igreja, quando já em casa, ela diz estar “[a]tormentada (...) diante de tantas dificuldades e obstáculos” (JAMES, 1980, p. 229), deixando-se “cair” sobre o degrau da escada. Porém, ela lembra que um mês antes, naquele lugar, “igualmente dobrada sobre o peso de maus pressentimentos” (JAMES, 1980, p. 229, grifo meu), ela vira o espectro de Miss Jessel. Ora, o “peso” de maus pressentimentos de um mês antes é, agora, o “peso” da dúvida de sua culpa ou não. Lembremos que nesse momento, ela está em dúvida se deve ou não partir e livrar as crianças de sua presença, que parece ser já tão nociva quanto a dos fantasmas. Ela começa a se sentir uma intrusa naquele mundo, algo que está presente na argumentação de Wilson (1938, p. 127, citado por PARKINSON, 2010): ao levar adiante sua ideia de que o fantasma de Miss Jessel é parte da própria personalidade dividida da narradora/preceptora, ele analisa a cena do encontro das duas na sala de aula da seguinte forma:    the morbid half of her split personality is getting the upper hand of the other . . . it is she who is intruding upon the spirit instead of the spirit who is intruding upon her. 

 

O fantasma de Miss Jessel, como representação desta sua personalidade dividida pela culpa, mostra-lhe que ela é uma intrusa e está fazendo mal ao continuar ali. As aparições não são apenas alucinações gratuitas, mas projeções de seus desejos e, por conseguinte, culpas. Depois da segunda aparição de Quint, quando Mrs. Grose lhe diz que Peter Quint já morreu, ela diz que tal revelação a deixou “inteiramente prostrada” (JAMES, 1980, p. 167), afinal, o fato de ela estar vendo um espírito não é só algo terrível quanto ao fato sobrenatural, mas é obviamente terrível quanto ao fato de colocar sua sanidade em dúvida, e também a evidência de desejos obscuros. Para combater essa possibilidade, ela conta apenas com a sua certeza e a aceitação da “ verdade de minhas afirmações” (JAMES, 1980, p. 167) por parte de Mrs. Grose. Logo depois, nesse mesmo capítulo, as duas mulheres aceitam que poderiam suportar juntas os acontecimentos, mas ela arremata dizendo que não estava segura de que Mrs. Grose iria suportar o “fardo”

(JAMES, 1980, p. 168) mais leve. Talvez porque o fardo mais pesado, o seu, fosse exatamente aquele do sentimento de culpa individual.  Desse modo, a interpretação que vê na narradora/preceptora uma mente atormentada por desejos reprimidos que se projetam nas crianças e através dos fantasmas, atrai o simbolismo da culpabilidade, com imagens de angústia, hesitação, peso, fardo. Não é mais um mal externo, sendo uma mancha que nos macula indistintamente, sendo um poder que nos mantém cativos, mas é, agora, um mal interno, individual, balizado pela própria consciência da preceptora/narradora. Será ela a causadora do mal naquelas crianças? Ou será ela uma salvadora? Dúvida que ela mesma se coloca, já no capítulo final: “se ele era inocente, que era eu, então?” (JAMES, 1980, p. 282). Se ele era inocente, ela era culpada, não há outra resposta para essa pergunta que, como ela mesma afirma, deixa-a “[p]aralisada”. Nessa pergunta há a essência daquilo que Ricoeur diz ser um novo e mais fino sentido de responsabilidade no simbolismo da culpabilidade, ou seja, ela é individual e gradual: ou eu, ou o outro é culpado, ou Miles é inocente e ela culpada, ou ele culpado e ela inocente.  Para finalizar, assim como Parkinson (2010) demonstra que após a querela aparicionista x não aparicionista houve um movimento de síntese: críticos que, a partir de Heilman e Wilson, tentaram mostrar as possibilidades de leitura da obra e não apenas afirmar categoricamente uma única leitura, eu também gostaria de fazer esse movimento, afirmando que as duas possibilidades aqui apresentadas são genuínas e possíveis. Além disso, uma interpretação pode acarretar na outra e, ainda assim, manter a dinâmica do simbolismo do mal que aqui foi apresentada. Se assumirmos que a narradora é realmente uma mulher de mente perturbada, que sente atração pelo patrão, que se coloca em uma posição de salvadora das crianças justamente para agradar a quem ama, isso não impede de aceitarmos que o mal que ela encontra na casa ainda é um mal externo e presente. Sua luta para salvar as crianças da influência maligna de Quint e Jessel pode ser uma forma de alucinação, mas também uma ação legítima diante de um cenário que não é saudável, mas que é tão doentio quanto ela própria. Para isso, lembremos que no mito adâmico, como explica Ricoeur, o esquema da interioridade, do homem como iniciador do mal, disputa espaço com o esquema da exterioridade, do mal já aí, que aparece na figura da serpente. Ora, bem como afirma Heilman (1948, p. 181, citado por PARKINSON, 2010), a linguagem usada para descrever Quint faz com que ele tenha "unmistakably the characteristics of a snake". Sendo assim, a preceptora/narradora, por mais que possa ter

culpa no seu amor pelo patrão, na sua exagerada atração pelas crianças, já tendo em si um mal interior (um mal medido por ela mesma), encontra em Bly – assim como Adão encontra no Éden – um mal já aí, representado pela serpente Quint. As figuras de Quint, Miles e do tio se ligam como figuras masculinas que representam o desejo “errado” da protagonista; ligação essa que se dá de modo claro pela peça de vestiário “colete”, que Miles usa na sua “roupa domingueira” (JAMES, 1980, p. 221), que é a única peça de vestuário descrita em Quint e que pertenciam ao patrão. Ou seja, o erro de nossa jovem protagonista – o desejo pelo patrão – que a faz alucinar os fantasmas é, ao mesmo tempo, seu, interior, mas também é exterior e encontra sua tentação nessa figura masculina tripla, ligada, através de Quint, à serpente, de um mal que já está aí, antes mesmo dela.   Assim, a dinâmica dos símbolos, que sobrevive no mito adâmico, está presente também em A Outra Volta do Parafuso, construído de modo magistral por Henry James, e permanece vivo por anos e anos para todos os leitores que se aventuram nessa belíssima e angustiante história. Demonstrando que o dinamismo dos símbolos e dos mitos do mal permanece vivo na nossa cultura para tentar nos ajudar a entender uma experiência que não é passível de conceituação, e a literatura no ajuda a refletir e, mais importante ainda, viver esses símbolos e mitos, através dos tempos. Por isso, acredito que essas duas interpretações não são visões excludentes, apesar de opostas em certo nível, mas evidenciadoras desse dinamismo.     

REFERÊNCIAS:   

CIRLOT, J. E. A Dictionary of Symbols. Trad. do espanhol por Jack Sage. London: Routledge, 1971. HEILMAN, R. B. The Turn of the Screw as Poem. The University of Kansas City Review, 14, p. 277-89, 1948. JAMES, Henry. A Outra Volta do Parafuso. Trad. Brenno Silveira. São Paulo: Abril Cultural, 1980. JAMES, Henry. The Art of The Novel: Critical Prefaces, with an introduction by R. P. Blackmur. New York: Charles Scribner’s Sons, 1934. JAMES, Henry. The Turn of The Screw. London: Penguin, 1994. MIALL, David S. Designed Horror: James’s Vision of Evil in The Turn of the Screw. In: Nineteenth-Century Fiction, Vol. 39, No. 3 (Dec., 1984), pp. 305 – 327. University of California Press.

PARKINSON, E. J. The Turn of The Screw – A History of Its Critical Interpretations 1898 – 1979. PhD Dissertation. Saint Louis University, 1991. Disponível em http://www.turnofthescrew.com/. Acesso em: 05 de jan. 2012. RENAUX, Sigrid. A Volta do Parafuso: Uma Leitura Semiótica do Conto de Henry James. Curitiba: Ed. da UFPR, 1992. RICOEUR, Paul. O Conflito das Interpretações: Ensaios de Hermenêutica. Trad. Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1978. RICOEUR, Paul. Finitud y Culpabilidad, II. La Simbolica Del Mal. Madrid: Taurus, 1982, 167 – 498. WARD, J. A. The Imagination of Disaster: Evil in the Fiction of Henry James. Lincoln: University of Nebraska Press, 1961. WILSON, E. The Ambiguity of Henry James. Hound and Horn, p. 385-406, Apr./May. 1934. WILSON, E. The Ambiguity of Henry James. Revised. The Triple Thinkers, New York: Harcourt, Brace, and Co., p. 122-164, 1938.

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