\" PERDOAI-LHES, ELES NÃO SABEM O QUE FAZEM \" : ENSAIO SOBRE VIOLÊNCIAS ESCOLARES, TENDENCIAS PEDAGÒGICAS E EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

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“PERDOAI-LHES, ELES NÃO SABEM O QUE FAZEM”: ENSAIO SOBRE VIOLÊNCIAS ESCOLARES, TENDENCIAS PEDAGÒGICAS E EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA. Ygor Olinto Rocha Cavalcante

A memória amplamente difundida em discursos laudatórios e cultivada oficialmente sobre a trajetória do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas, o IFAM, recupera suas origens no oitocentista Colégio de Fábricas, criação do futuro D. João VI, então príncipe regente do Império Ultramarino Português, passando pela Escola de Educandos Artífices, invenção ainda do século XIX, mas elenca como ponto preferencial de partida e de identidade– isto é, sedimenta enquanto linha de continuidade que a enlaça ao presente - a Escola de Aprendizes Artífices, criada no início do século XX (Mello, 2009). Essa construção narrativa que delineia uma autoimagem específica dentro do quadro mais amplo da história da educação profissionalizante no Brasil revela bem mais do que a busca por uma legitimidade histórica, que afirme sua importância social e cultural, bem como certa notoriedade no âmbito midiático, pela longevidade da Instituição; mais do que isso, revela uma contradição estrutural presente na dinâmica educacional do IFAM, tema delicado e ainda pouco discutido no âmbito acadêmico. O objetivo deste texto é abordar múltiplos aspectos dessa contradição a partir de uma dupla reflexão que articule a vivência enquanto ex-aluno e agora professor efetivo do IFAM – Campus Coari, ao mesmo passo que estabeleça uma contraposição entre essas experiências e as reflexões teóricas sobre a educação, a escolarização e o fazer ciência nessas instituições. Obviamente, esse diálogo será possível apenas se se considerar os contextos históricos mais amplos que atravessam o que considero dois núcleos estruturantes opostos no cotidiano educacional do IFAM. Assim, pretende-se elaborar uma reflexão e um diálogo crítico entre prática/experiência escolar e teoria/história social e/ou sociologia da educação. A documentação analisada é variada e passa pela Legislação pertinente e pelos atos normativos internos que regimentam a vida escolar no espaço em questão. Ademais, pretende-se abordar 

Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas – Campus Coari. Mestre em História Social da Amazônia (UFAM), pesquisador dos Grupos de Pesquisa “Migrações e Africanidades Latino Americanas na Amazônia” (PPGH/UFAM) e “Sociedades Amazônicas” (IFAM).

problemas vivenciados e evidentemente apontar possíveis soluções seguindo os percursosque passo a elencar a seguir. Primeiro, é necessário caracterizar as estruturas em contradição. Nesse momento, o texto argumenta que o IFAM reproduz uma estrutura educacional falida responsável pela explosão de problemas graves de ensino-aprendizagem assim como essa estrutura também é causa motriz de um processo de desumanização do corpo discente que se expressa de múltiplas formas, isto é, arranjos variados de uma violência reativa, do que são percebidos como problemas comportamentais. O texto aborda ainda algumas soluções levadas a efeito parcialmente no Instituto agudizando a contradição, contudo, sem transformar radicalmente o núcleo irradiador de problemas graves de ensino-aprendizagem.

SOBRE A ESTRUTURA ANACRÔNICA E O COTIDIANO ESCOLAR

Uma sirene ensurdecedora alerta a todos no Campus que as atividades escolares irão começar. Qualquer semelhança com o ambiente fabril não é mera coincidência e esse aspecto presente em várias escolas do país certamente já foi abordado por diversos pensadores do espaço escolar em várias oportunidades e mesmo nas emblemáticas cenas do clássico filme de Charlie Chaplin Tempos Modernos, quando o personagem principal sai da fabrica parafusando tudo o mais além do espaço fabril, demonstrando, de forma singela, a continuidade simbólica entre o trabalho industrial e a vida cotidiana. Ao longo do dia, isso ocorrerá ainda mais dezoito vezes para demarcar os cinquenta minutos disponíveis aos professores para ministrarem as aulas cuja organização temporal foi predeterminada pelas coordenações de curso em um mapa de aula ou horários semanais. Todos os alunos, devidamente uniformizados, deverão, conforme o Manual do Aluno, “permanecer em sala de aula durante o horário das aulas e na mudança de docente”, isto é, durante as cinco horas seguintes, a saída dos discentes só é permitida esporadicamente para a ida ao banheiro e para o intervalo de quinze minutos em que todos devem alimentar-se para a continuidade das atividades. A média de quarenta alunos, divididos em séries anuais e turmas, é suficiente para preencher os espaços e ocupar as fileiras de carteiras rigidamente organizadas. Dentre as proibições estipuladas pelo regimento que organiza a vida discente encontram-se definições nebulosas sobre disciplina, respeito e ordem. Cumpre enfatizar que as proibições superam em quantidade os direitos dos discentes e que em nenhum dos códigos de conduta houve a participação dos alunos na construção da norma. No parágrafo III do

capítulo 7 do Manual do Aluno, elaborado no ano de 2012, está, por exemplo, a proibição de “perturbar a ordem e o silêncio nas dependências do Campus”. Outra proibição de definição pouco clara encontra-se no parágrafo seguinte quando proíbe o uso de “códigos e linguagem impróprios e praticar atos indecorosos, inadequados ao convívio social”. Os parágrafos V, VI e XXI servem de fechamento ao argumento que se pretende expor: Utilizar processo fraudulento ou práticas ilícitas nas atividades acadêmicas [leia-se: fazer uso de colas para avaliações]; ausentar-se da sala de aula ou do local de atividade acadêmica sem autorização do docente; ocupar-se com atividades alheias à rotina da Instituição, desde que não sejam tarefas devidamente autorizadas; utilizar de forma inadequada os uniformes institucionais dentro e fora da Instituição (Manual do Aluno – IFAM, 2012, p. 10-13).

Não é de todo fantasioso supor que durante o cotidiano das atividades escolares tais imprecisões no ato normativo resultem em um alargamento do conceito repressor para abrigar a subjetividade daquele que efetivamente dispõe de autoridade na Instituição. Para todos os parágrafos citados, há que se perguntar: quem, ao final das contas, decide/delibera sobre o que é realmente proibido. Assim, quando no quadro de direitos fala-se em permissão para a “organização de associações para a representação e intermediação de questões de interesse coletivo do segmento discente e apresentar sugestões aos setores competentes” conforme as disposições do Manual do Aluno, tornam-se patentes os limites da atuação do corpo discente e a fragmentação de sua força política. Ademais, alijados das esferas decisórias que conferem consistência à sua participação nos espaços de poder, é evidente que a cobrança pelo cumprimento dos atos normativos torna-se verdadeira quimera institucional. É nesse contexto que os alunos são convidados – melhor seria dizer obrigados? – a estar em sala para assistir às aulas. Nesse sentido, o docente se vê constrangido ao “efetivo trabalho em sala de aula”, leia-se: estar em sala durante um determinado período de tempo ministrando um pré-determinado assunto/tema aos mais ou menos quarenta discentes por suposto atentos ao professor e ávidos por adquirir aquele conhecimento abordado e selecionado previamente. E aqui reside o primeiro núcleo estrutural problemático: o professor é o centro irradiador das atividades didáticas e do ensino-aprendizagem. Dele emanam os princípios norteadores da dinâmica que se realizará em sala a despeito da individualidade e expectativa dos demais presentes em sala. É ele que possui o papel primal e decisivo sobre o modo pelo

qual a mensagem – monitorada, planejada, pré-selecionada e previamente combinada – é transmitida. Ao transmitir igualmente a todos os alunos como se possuíssem os mesmos instrumentos de compreensão, de assimilação e de codificação, o professor dissimula a arbitrariedade que fundamenta o sistema de ensino. Uma vez finalizado o tempo previamente estipulado, segue outro professor e outra dinâmica se instaura em sala. Obviamente, o leitor poderia objetar as afirmações anteriores lembrando a emergência de diversas tendências pedagógicas, muitas das quais libertárias e progressistas, que nos levam teoricamente a considerar a experiência do aluno e a fomentar a capacidade de construção crítica de seu raciocínio– sonho de quase todo projeto político pedagógico contemporâneo (Libâneo, 1994). Entretanto, há que se considerar a existência de certo grau de intransigência sob o qual ocorre a divisão de papéis nesse processo, que é muito clara na perspectiva do professor e do corpo pedagógico, mas é bem provável que o aluno não reconheça no professor o papel de formador de determinadas habilidades e competências profissionais e morais. Ao fim e ao cabo, quem decide qual o conhecimento precisa ser passado adiante e merece ser incorporado – inclusive nos planos de curso que orientam a “grade”/matriz curricular – é o corpo docente, articulados politicamente ao setor pedagógico, engendrando um conjunto de estruturas rígidas e ineficazes. Assim, professores e pedagogos, bem como os demais funcionários, assumem o papel nada honroso de supervisores atentos e arrogando para si toda a iniciativa do processo educacional. Com efeito, uma vez que o ritmo de transmissão, incorporação e superação de conteúdos é cadenciado pelos professores, o que ocorre é um progressivo processo de massificação escolar – isto é, generalização na abordagem para atender a um público amplo e irregular de discentes – e um aprofundamento de uma situação em que os processos de ensino-aprendizagem estão separados do resto dos compromissos e relações de vida tanto dos professores quanto dos alunos. Dito de outro modo: cabe ao professor, por direito consuetudinário e prerrogativas construídas ao longo do tempo, a definição da sequência e o ritmo em que vários pedaços e peças do conhecimento podem e precisam ser ingeridos e digeridos pelos discentes. Para cumprir o programa de conteúdos e a carga horária de trabalho, os professores centram esforços monumentais na transmissão de informações, cujos conteúdos, pela sua especificidade e massificação, acabam por aparecer aos alunos de forma excessivamente fragmentados e desarticulados. Na medida em que a massa de alunos sofre a intervenção de diferentes centros estruturantes da dinâmica de transmissão, incorporação e

superação de conteúdos, isto é, de diferentes professores e suas especificidades de formação teórica e atuação didática em sala de aula, cruzando-se e sobrepondo-se, como estratégias mutuamente independentes e não coordenadas, tem-se, como resultado, o fato de que ninguém está na prática encarregado pelo processo de ensino-aprendizagem. É evidente que esta estrutura, centrada no professor, conteudista, excessivamente fragmentada e deslocada da realidade prática dos alunos e professores, reproduz um tipo de mentalidade que entende o discente enquanto tábula rasa sobre a qual valores e informações serão depositados. Mais do que isso, reproduz uma mentalidade de finais do século XIX, já presente nas Escolas de Aprendizes Artífices, que buscava o controle social rígido sobre os elementos potenciais de desordem social, por suposto docilizando-os, e entendendo o papel do instituto como disciplinador e definidor da identidade do individuo pertencente ao segmento discente (Queluz, 2000). Quando a escola passa a se propor o papel de regulador e de disciplinador dos discentes para as relações sociais, isto é, ao considerar-se responsável pela direção do percurso intelectual e político do aluno, a instituição atua a partir do pressuposto de que suas ações e estratégias pedagógicas estão fundamentadas em um conhecimento intrinsecamente superior, que avalia os alunos a partir de critérios universais, objetivos, neutros e impessoais, buscando, assim, legitimar-se enquanto autoridade pedagógica. Entretanto, esse processo - no qual se constrói um discurso imparcial e socialmente neutro – oculta a arbitrariedade cultural que articula a reprodução e a legitimação das desigualdades sociais existentes não apenas no espaço escolar, mas também, e num nível mais amplo, na própria sociedade (Bourdieu, 1998). Ao passo que este processo massifica o conhecimento, ele, por outro lado, desumaniza o aluno. Ora, como se dá esse processo de desumanização do aluno? Basta avaliar os protagonistas de alguns procedimentos do cotidiano escolar. Por exemplo: quem define o planejamento da dinâmica da aula é o professor, quem determina a maneira de aprender é o professor, quem determina na prática – e muitas vezes à revelia da legislação vigente – a estrutura e o sentido da avaliação é o professor, em síntese, as regras são sempre (ou quase sempre) definidas de cima para baixo, configurando uma estrutura desigual. Nesse contexto, as avaliações (provas, testes e trabalhos) de aprendizagem, geralmente com aplicações padronizadas, funcionam como um tipo de julgamento cultural e moral dos alunos. Por acreditar na existência de um papel neutro e imparcial de formação cultural e política, a escola

acaba por desconsiderar a herança cultural familiar dos alunos e apresenta a eles um universo estranho, às vezes ameaçador, àquele vivenciado na experiência familiar. Cumpre enfatizar um aspecto já salientado anteriormente, a saber, o fato de que a igualdade formal estabelecida pela escola entre todos os alunos – através da obrigatoriedade do fardamento, da aplicação de provas padronizadas, critérios de avaliação padronizados, imposição de deveres e direitos padronizados, entre outros – oculta as desigualdades sociais mais amplas e dissimula os privilégios daqueles que, para além dos muros da escola, possuem uma herança familiar simbólica, econômica, social e cultural cuja formação reside na distribuição desigual de riquezas através de processos sociais mais amplos (Bourdieu, 1998). É muito comum no vocabulário pedagógico o uso de palavras tais como comportado, interessado, curioso, disciplinado, esforçado, entre outros, para identificar aquilo que determinado segmento compreende – arbitrariamente – como regras de boa conduta ou como critérios objetivos e universais que personificam um bom aluno. É evidente que essas exigências só podem ser plenamente cumpridas por aqueles que passaram anteriormente por esses processos de socialização. Na medida em que professores, pedagogos, inspetores e assistentes de aluno tomam para si a responsabilidade de exigir o cumprimento desse conjunto de condutas, percebe-se a emergência de uma contradição entre a necessária socialização que deveria ter ocorrido no ambiente familiar e aquela oferecida pela escola. Essa contradição torna-se mais aguda e hostil aos alunos quando percebemos que as estratégias didáticas e os conteúdos ministrados constituem um código cultural complexo de referências intelectuais e habilidades linguísticas que exigem, por sua vez, um público previamente capacitado para compreender, assimilar e decifrar esse código (Bourdieu, 1964). A despeito de sua boa vontade, essa estrutura é excessivamente hierárquica, autoritária e efetivamente hostil ao educando e a qualquer noção que ele possua de autonomia e de liberdade – valores preconizados, cumpre enfatizar, pela legislação de diretrizes e bases da educação. Em um contexto mais amplo, tais práticas se inserem de forma anacrônica naquilo que se tem chamado de “sociedade da informação”, isto é, as instituições educacionais e suas velhas práticas estão hoje circunscritas a um contexto histórico em que estudantes, pais, professores e responsáveis possuem acesso a computadores, tabletes e celulares conectados à internet com acesso aos materiais acadêmicos, livros digitalizados, artigos científicos, jogos educacionais, vídeos instrucionais, cursos de capacitação e vídeo-aulas; enfim, existe uma variedade enorme de materiais educativos disponíveis na internet. Para alguns estudiosos é

um dos mais democráticos meios de acesso ao saber e à pesquisa, apesar de seu conteúdo fragmentado, desordenado e descartável (Werthein, 2010). Ademais, a profusão de canais televisivos pagos oferece uma programação diversificada em termos de conteúdos acadêmicos e profissionalizantes, que rivalizam com aquilo que é oferecido na sala de aula. Consequentemente, o progressivo acesso aos materiais educativosna internet causa um duplo impacto no cotidiano escolar. O primeiro refere-se à destruição da pretensão secular de ser o professor aquele que possui o direito de instruir e guiar o ignorante, por suposto o aluno, na construção do percurso educacional. De um ponto de vista mais amplo, a própria autoridade da Instituição enquanto lugar de formação e capacitação profissional tende a se fragilizar tendo em vista a pulverização de lugares de acesso aos currículos e conteúdos programáticos. O segundo diz respeito à destruição da autoridade simbólica do professor na medida em que ele já não pode mais assegurar seu controle exclusivo sobre as fontes de conhecimento tampouco policiar a busca pelos tais materiais educativos. Nessa direção, a tendência avassaladora que se verifica com o consumo crescente de informações e conteúdos educacionais no ambiente virtual solapa a legitimidade histórica da Escola e do atual papel desempenhado pelo professor, exigindo a emergência de uma nova postura e de uma nova concepção para os profissionais da educação. Sob estes dois aspectos, e sem uma reformulação radical, a centralidade do papel do professor tal como foi delineado alhures tende a desaparecer ou, na pior das hipóteses, ser expurgado do cenário educacional. O efeito combinado de uma educação autoritária e desumanizadora ao cenário de acesso progressivo ao conteúdo fragmentário e descartável disponível na internet pode ser socialmente devastador. Nesse sentido, a tendência que se verifica é a seguinte: por mais habilidoso e progressista em suas tendências pedagógicas, o professor e aquilo que ele pretensamente ensina em sala de aula, nos termos aqui criticados, soa cada vez mais oco aos ouvidos de seus alunos, exceto para os próprios professores, quiçá para os pedagogose técnicos em assuntos educacionais (Bauman, 2008, p. 167). Para a visualização de um quadro mais aterrorizador, é preciso lembrar que a incessante transformação tecnológica e científica torna obsoletos os conhecimentos e técnicas adquiridas em sala de aula, ou seja, antes em desvantagens do que em bens, além de encurtar a valorização dos capitais simbólicos que um diploma pode oferecer. Noutras palavras, o conhecimento e as habilidades adquiridas perdem rapidamente sua utilidade no mercado de trabalho devido à continuada e permanente transformação dos meios de produção. Com

efeito, a própria imagem institucional tende a ser desprestigiada e a lógica pela qual opera a escola, ineficaz. Levando o argumento ao limite, os tipos crescentes de empregos pautados pela flexibilidade e que demandam sujeitos proativos não exigem um aprendizado longo e sistemático. Pelo contrário, incentivam a explosão de cursos rápidos de capacitação e estimulam a orientação no sentido de habilitar emergencialmente candidatos para a disputa de determinados empregos em um contexto de profunda vulnerabilidade social como é o caso da maioria da população em situação ativa para o mercado de trabalho no Brasil. Tais cursos de curta duração e flexíveis no seu processo de ensino-aprendizagem são efetivamente muito mais atrativos ao grande público. Em contexto de desemprego estrutural vivenciado pelos cidadãos de Coari, por exemplo, e apesar de sua condição privilegiada pelos benefícios milionários com os royalties da extração de petróleo e gás do Urucu, pode-se argumentar, sem incorrer em exagero, que, se ingresso no IFAM já não está caindo de maneira acentuada isso se deve muito ao seu papel de abrigo temporário no qual se pode encontrar, inclusive, uma política de distribuição de bolsas de estudos e benefícios de auxilio financeiro aos estudantes, permitindo adiar por alguns anos o enfrentamento inevitável com a dura realidade precária do mercado de trabalho e, de alguma maneira, com a situação traumática de sobreviver em uma cidade desestruturada em vários aspectos: urbanístico, econômico, político e cultural. Infelizmente, não se faz uma análise crítica desse processo no interior das discussões pedagógicas, embora seja necessário – e urgente – dimensionar corretamente os níveis de investimento empregados pelos alunos na carreira escolar, não em termos de notas de provas e trabalhos escolares, mas sim tendo em vista o aspecto crucial de que essa variação do empenho será proporcional à avaliação dos ganhos possíveis que a formação acadêmica proporcionará não apenas no mercado de trabalho, mas também nos diferentes mercados simbólicos: nas disputas por eventuais parceiros matrimoniais, na construção de redes de solidariedade entre colegas de trabalho e mesmo nas relações de amizade. Nesse quadro avaliativo, elaborado pelos alunos quanto à disposição de um determinado grau de empenho nos afazeres escolares, pode-se encontrar a seguinte equação: dedicação escolar é proporcional ao sucesso ou fracasso vivido pelos membros dos círculos sociais afetivosdos alunos (Bourdieu, 1988). Em uma perspectiva de longo prazo, talvez seja possível afirmar que a consequência desse processo de flexibilização e precarização do trabalho seja a desvalorização dos diplomas e da própria instituição escolar. No curto prazo, a deslegitimação

dos professores, da prática pedagógica e do sistema educacional vigente (Bauman, 2008, p. 169).

SOBRE ILEGALIDADES NEGLIGENCIADAS

Porém, o que parece ser mais grave nessa estrutura é a sua ilegalidade. Para ser mais brando, ela atua nos limites da legalidade. Entretanto, esse aspecto não é percebido enquanto tal pelos seus personagens principais e, assim, torna-se opaca a crise educacional e dissimulam-se as alternativas para a falência do modelo reproduzido, tornando extenuante qualquer processo de discussão que busque a transformação radical da estrutura escolar. Onde reside a ilegalidade? E aqui uma pergunta propriamente hegeliana: quais são as condições que inviabilizam a percepção crítica da estrutura escolar tal como está estabelecida em termos da mais duradoura e violenta ilegalidade? Vários aspectos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a LDB, lei n. 9394/96, não são colocados em prática. Ademais, as resoluções do Conselho Nacional de Educação/Conselho da Educação Básica, especialmente a n. 04/99 não são respeitadas na sua integralidade. Na mesma direção, os Planos Curriculares Nacionais não são alvo de politicas concretas para sua interiorização no cotidiano escolar. Tampouco se vislumbra qualquer estratégia de ação norteada pelos PCN’s nos planos políticos pedagógicos do IFAM (PPP/IFAM/CCO, 2014). Assim, à revelia da lei, a estrutura de ensino-aprendizagem que destitui o aluno da oportunidade de construir ele próprio seu percurso acadêmico e sujeita o ritmo e a individualidade dos mesmos aos conteúdos e programas preestabelecidos pelo professor, centro irradiador das dinâmicas e definidor da lógica do aprendizado, não cria condições e tampouco oportuniza uma educação “inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana”; nem ao menos cria as condições adequadas para que os discentes aprendam na cidadania, preocupando-se muito mais em explanar o que é a cidadania. Outro aspecto que esta estrutura sabidamente falida, mas insistentemente reproduzida, não oportuniza, ao passo que inviabiliza, é o que dispõe o artigo 3º da LDB, quando afirma nos parágrafos II a IV, que o ensino baseia-se na “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; respeito à liberdade e apreço à tolerância.” (LDB, 1996). No artigo 4º, parágrafo V, uma sutil e importantíssima determinação que deve ser lida às avessas: “acesso aos níveis

mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística segundo a capacidade de cada um”. No processo estimulado pela estrutura hierárquica e autoritária de massificação e centralização do direito não compartilhado de moldar a lógica do aprendizado exercido pelo professor, a “capacidade de cada um” é comprimida e constrangida, por mais libertário e progressista que busque ser-estar-na-sala o profissional da educação. Nesse mesmo condão, o disposto nos artigos 35 e 36 não são viabilizados posto que a “autonomia intelectual e do pensamento crítico”, bem como a adoção de “metodologias de ensino e de avaliação que estimulem a iniciativa dos estudantes” esbarram no rígido monopólio exercido pelos professores, obrigados ao regular exercício da sala de aula. Os princípios norteadores da educação profissional e tecnológica sofrem do mesmo fator inibidor, uma vez que “flexibilidade, interdisciplinaridade e contextualização”, constantes no art. 3º das disposições do Conselho Nacional de Educação, são alijados do processo de ensino-aprendizagem quando a estrutura exige o cumprimento da carga horária e do conteúdo programático e, por conseguinte, cria as condições estruturantes da massificação do conteúdo e da desconsideração do ritmo de cada aluno e de sua especificidade no processo de aprendizado. Com efeito, os limites da sala de aula, ainda que muito bem estruturada fisicamente, estrutura as condições de reprodução de uma aprendizagem receptiva, automática, inibindo o desenvolvimento da experiência própria do educando nas atividades de pesquisa e de investigação (Libâneo, 1994, p. 66). Apesar dos Parâmetros Curriculares Nacionais servirem como uma espécie de tratado contra a operacionalização da abordagem tradicional – compartimentalizada, conteudista, centrada no professor e na transmissão de informações –, o que se vê é um avanço muito tímido no que diz respeito aos princípios básicos apresentados pelo referido documento quanto ao desenvolvimento no ambiente escolar de conteúdos conceituais, habilidades cognitivas e procedimentais articuladas ao fundamental desenvolvimento de posturas e valores característicos da produção do conhecimento científico. Noutras palavras: a experiência de escolarização, de acordo com os PCN, deve desenvolver no educando posturas, valores e atitudes pertinentes ao fazer Ciência. Em suma, é obrigação dos sujeitos envolvidos no processo de ensino a criação de condições estruturais que oportunizem e estimulem o desenvolvimento de habilidades próprias ao trabalho científico, a saber, autonomia na construção de seu percurso de investigação e formação acadêmica, responsabilidade com o processo de produção de

conhecimento, independência para levantar e testar hipóteses, crítica dos resultados obtidos na investigação, liberdade de expressão e de discordância, todos esses valores não são prioridade nos planejamentos sistêmicos e nas avaliações do processo de ensino e aprendizagem realizados no Instituto e, em geral, na maioria das escolas do Amazonas. Se considerarmos as condições objetivas características da posição social a qual pertence a maioria dos alunos, bem como as experiências acumuladas historicamente pelos grupos sociais que o constituem, ou seja, as classes populares, é forçoso admitir que os discentes adquiriram previamente um conhecimento prático sobre a realidade social bem como referenciais culturais sobremaneira estranhos àquela realidade instituída na educação escolar pretensamente mais elegante, culturalmente mais complexa e intelectualmente mais desenvolvida; e isto, cumpre enfatizar, em uma Instituição de Educação, Ciência e Tecnologia. É bem verdade que existem uns poucos alunos privilegiados nesse processo, atendidos pelos programas institucionais de iniciação científica. A despeito dessa distribuição desigual de oportunidades de formação científica para uma casta de iniciantes, é importante ressaltar o papel fundamental, produtivo e estratégico que as bolsas de iniciação científica possuem no âmbito do IFAM. O aluno de Iniciação Científica pode contar efetivamente com uma estrutura que oferece as condições precípuas para o desenvolvimento autônomo do percurso intelectual e oportuniza o desenvolvimento pleno da reflexão crítica. O mais importante aqui é a percepção de que os programas institucionais de iniciação científica oferecem as condições de possibilidade para a emergência de valores e atitudes científicos, fundamentais para o desenvolvimento da tecnologia e da inovação; e, o mais importante, totalmente adequados às exigências da legislação educacional brasileira. Entretanto, se generalizados, tornarão evidentes a incompatibilidade entre os dois modelos de educação até então vigentes. Contudo, o aluno acaba por sobrecarregar-se na medida em que vivencia a contradição estrutural entre uma educação hierárquica, autoritária, conteudista, descontextualizada, arcaica, que impõe a desumanização e a precarização sistemática da autonomia e da liberdade do educando, ao mesmo tempo em que vivencia a experiência de uma educação científica, que cultiva a liberdade de aprender; a autonomia na construção do objeto e do problema de pesquisa; a responsabilidade de cumprir os objetivos aceitos por ele próprio quando do desenvolvimento do projeto de IC, bem como estimula a produção de conhecimento, isto é, oferece as condições estruturais para a emergência da inovação científica e tecnológica. Ao

cumprir as obrigações impostas e aquelas autonomamente adquiridas, a casta de alunos envolvidos nos projetos de IC tende a acumular tarefas e sucumbir ao exaurimento físico e mental – talvez uma das mais aparentes violências cultivadas no ambiente escolar.

SOBRE VIOLÊNCIAS ESCOLARES

O funcionamento dessa estrutura arcaica coloca em movimento um sistema de disposições que são incorporados pelos indivíduos durante o tempo de suas vivências no espaço escolar, orientando diferentes microestruturas e instituições estruturantes, tais como: a periodicidade da sirene, a fiscalização empreendida por assistente e inspetor de alunos, as provas e as avaliações, a rigidez costumeira que reproduz a disposição enfileirada dos alunos em sala de aula, os pedagogos que frequentemente atuam nos limites da lógica aqui problematizada – isto é, a estrutura estruturada -; além dos diretores e dos coordenadores que encarnam o papel de policiar o cumprimento das normativas perpetuando a lógica e atualizando-a quando necessário, até, finalmente, o professor. O modus operandi dessa estrutura coloca em movimento, portanto, diferentes jogos simbólicos e de poder, em uma relação complexa que se constitui enquanto causa incontornável de determinados modus vivendi no cotidiano escolar (Bourdieu, 1987; 1996). Dessa relação combinada surgem múltiplos conflitos, cadenciados por um conjunto de violências interiorizadas pelos diferentes sujeitos do espaço escolar como normalidade. Nessa direção, as ações pedagógicas fracassam na tentativa de compreender as causas dos vários enfrentamentos entre alunos, professores e demais profissionais, e para muitos dos quais a estrutura escolar se vê impotente em propor soluções profundas. Com efeito, a escola gera muito mais violências do que é capaz de controlar. Os estudos de Slavoj Zizek, filósofo e psicanalista esloveno, que articulam psicanálise lacaniana e critica marxista, ao abordar a cultura e a ideologia contemporânea permitem uma reformulação do conceito de violência. Neste momento, para avançar nessa reflexão sobre as violências escolares, faz-se necessário revestir de significados mais profundos aquilo que se tem chamado aqui de estrutura arcaica falida. Decerto, das relações estabelecidas pela escola com o alunado – percebido formalmente como um corpo de iguais, com deveres e direitos padronizados, submetido às regras padronizadas de avaliação e de conduta, bem como a consequente dificuldade de criar condições de possibilidade para a emergência e consolidação

de sua autonomia intelectual e liberdade de aprender, uma vez que o processo de ensinoaprendizagem está atado às amarras do sistema de aulas ministradas pelo professor, aspecto esse já discutido nos tópicos anteriores – surge daí um vácuo traumático sem densidade sólida, isto é, uma lacuna instransponível entre a escola – e suas microestruturas e instituições estruturantes – e o conjunto multifacetado e diverso de trajetórias e heranças culturais específicas que é o alunado. Esse vácuo anamorficamente incontornável e instransponível é precisamente o nível mais radical de interpretação daquilo que foi conceituado por Jacques Lacan como o Real, que não deve ser confundido com a realidade, posto que a realidade social é construída simbolicamente e pelo fato de que esta lacuna resiste à simbolização e não se identifica com uma espécie de pano de fundo da realidade, mas constitui-se enquanto o núcleo oculto que de forma incessante deixa suas marcas nos furos e distorções da realidade simbolizada. Não causa surpresa que esse antagonismo entre a vontade-de-ser-estar-da-escola e a vontade-deser-estar-do-aluno seja desmentido e repudiado pelos profissionais da educação, levando-nos, com efeito, à percepção de que não há intepretação consistente sobre os problemas e fracassos escolares sem que seja considerada uma mudança radical de perspectiva na qual se avalie os deslocamentos dos universos de simbolização possíveis e se supere o recalque primário que nega o antagonismo (Zizek, 2008). Como esse vácuo/lacuna pode ser confrontado e analisado? Na medida em que ele é na verdade inexistente, isto é, puramente virtual, o Real só pode ser compreendido através de uma reconstrução retroativa a partir das múltiplas aparências da experiência escolar, noutras palavras, a partir de uma interpretação que articule os vínculos existentes na miríade de formações simbólicas que é, efetivamente, o que existe de mediação concreta entre a experiência objetiva e subjetiva dos sujeitos (Zizek, 2008, p. 40-45). Nesse sentido, o Real da estrutura escolar é apreensível, apenas, por meio da anamorfose de suas disposições e instâncias e é o núcleo oculto rígido dos conflitos, o núcleo traumático que pulveriza as padronizações/generalizações/objetividade presumidas do sistema escolar em uma miríade de conflitos aparentemente desarticulados e desconexos. Quando as práticas educacionais vigentes reproduzem a distinção de dois modos de se relacionar com a cultura – o primeiro, desvalorizado, que distingue o aluno esforçado, interessado, comportado, que busca compensar o déficit cultural que ele traz como herança social e familiar; e o segundo, valorizado, que eleva o aluno que domina os códigos cultos de comunicação, tido como

naturalmente talentoso, brilhante, que atende às exigências da escola sem demonstrar demasiado empenho -, o sistema escolar acabar por legitimar e reproduzir as desigualdades e injustiças sociais mais amplas, que atravessam a vida de todos os sujeitos da educação, ao dissimular os processos sociais de distribuição de determinadas qualidades culturais entre as classes (Bourdieu, 1992; 1998). Em suma, o Real é o núcleo duro e oculto do antagonismo social que, ao mesmo tempo, distorce a percepção das pessoas sobre as contradições e conflitos; e é o próprio princípio de distorção da realidade e de mistificação de suas violentas consequências no ambiente educacional. O que se pretende aqui é chamar atenção para a violência fundamental que atua de forma permanente para o funcionamento “normal” do ambiente educacional cuja realidade intrinsecamente constituída de inúmeras simbolizações - compõe-se de uma rede elusiva de pressupostos e atitudes implícitos, manifestando-se como objetivos neutros, espontâneos, legais, corretos, que materializam crenças e reproduzem práticas coercitivas. Essas crenças e práticas, isto é, o feixe de representações e simbolizações que mediam as relações sociais no ambiente educacional fundamenta-se na própria irrepresentabilidade das anamorfoses do antagonismo nuclear entre a vontade-de-ser-estar-da-escola e a vontade-de-ser-estar-do-aluno. Percebe-se, portanto, que esse antagonismo não é o efeito de um mero processo educacional ineficaz, mas é ele próprio o cerne desse processo. Ou seja, problemas do cotidiano pedagógico que são combatidos pela comunidade como, por exemplo, desordens, indisciplina, apatia, desestimulo, agressões mútuas, descompromisso, evasão, discriminação, furtos, não são resultados de uma educação que precisa ser melhorada, corrigida em seus próprios termos, mas são efeitos inerentes à essência dos próprios termos dessa estrutura educacional que desumaniza o aluno, é a sua própria essência intrínseca, de modo que não é possível isolar nenhuma dinâmica social objetiva que não implique a presença subjetiva da reificação daqueles que passam pelo processo educativo. E mesmo quando ocorre a “paz escolar”, isto é, todos os alunos estão comportados e interessados, adequados às normas vigentes,sob uma aparente ausência de conflitos, bem se vê, aqui, uma forma de expressão do antagonismo estrutural, pois significa a hegemonia (em curto prazo) de um dos lados do embate. Nesse sentido, a própria simbolização dos conflitos, expressa em diferentes nomenclaturas, noutras palavras, a invenção de uma verdadeira taxonomia dos problemas de ensino-aprendizagem (bullying, cyberbullyng, trotes, transtornos de atenção, déficit de

atenção, hiperatividade e todo um palavreado típico das teorias comportamentalistas da psicologia behaviorista) funciona como um engodo que impede a reflexão crítica sobre as causas estruturais dos problemas, ou seja, funcionam como distorções da representação dos traumas em torno dos quais se estrutura a lógica profunda do sistema educacional. É lícito argumentar, dessa maneira, que esta simbolização da realidade social objetiva implica a negação do antagonismo, isto é, uma ficção simbólica que oculta o antagonismo. Nessa direção, todas as tendências pedagógicas – das mais tradicionais às mais progressistas e libertárias – são externamente articuladas de forma absoluta e antecipada pelo Real da estrutura educacional anacrônica e falida. A efetividade social do sistema de ensino arcaico, hierárquico e ilegal só é possível a partir de um paradoxo crucial, a saber, o não conhecimento da realidade simbolizada como parte intrínseca desse processo de simbolização – arbitrário e parcial. A existência da realidade social em sua dimensão específica no ambiente escolar implica o não conhecimento dos participantes sobre o processo traumático de desumanização do aluno que é a condição sine qua non do processo de ensino-aprendizagem. O que os envolvidos nesse processo desconhecem é o fato de que em sua própria realidade social, em sua atividade educacional, estão sendo guiados pela ilusão de humanizar e formar profissionais cidadãos. Cumpre ressaltar que aqui reside também a limitação das Comissões Disciplinares que pretendem resolver os conflitos e resistências à ordem estabelecida, apesar de todas as suas boas intenções, considerações morais, punições socioeducativas, e entre outros, mas ignoram a violência sistêmica, muito mais fundamental para a compreensão das contradições. Levando o argumento ao limite, os professores, pedagogos, coordenadores, assistentes e inspetores de alunos e os próprios alunos, apesar de suas respectivas boas vontades, “não sabem o que fazem”. Para empreendermos aquilo que Paulo Freire chamou de pedagogia da desocultação da verdade e desvelar as possibilidades para a emergência da esperança enquanto horizonte ontológico das políticas de educação (Freire, 1997), faz-se necessário, com urgência, analisar a interação complexa entre os três modos de violência, elencados por Slavoj Zizek: subjetiva, objetiva e simbólica. A violência objetiva reside no fato de que as consequências traumáticas do processo de prévia articulação externa das estratégias didático-pedagógicas a serem utilizadas em sala de aula e, consequentemente, do processo de reificação dos alunos, coadunadas pela abstração realizada de antemão e externamente articulada pelos

planejamentos de aula e outras formas de imposição subjacentes a uma ordem simbólica que constrange a forma das atividades intelectuais em sala de aula, não podem ser atribuídas a indivíduos concretos e às suas “más” intenções, mas é puramente objetiva, sistêmica, anônima. Essa irradiação sistêmica da lógica de reificação do aluno – a universalidade abstrata hegeliana – impõe seu funcionamento autômato e possui um suplemento importante que é, exatamente, um excesso subjetivo (Zizek, 2014) através do qual ocorre o exercício arbitrário e irregular de caprichos dos profissionais da educação e, não é de causar surpresa, dos próprios alunos. As consequências catastróficas do funcionamento e da dinâmica estrutural dessa lógica

expressam-se

em

diferentes

situações,

por

exemplo,

nas

discriminações

interindividuais e/ou intergrupais, sectarismos em sala, exclusões de sujeitos com idiossincrasias culturais, roubos e furtos entre colegas, ofensas físicas e verbais, destruição do patrimônio. Nesses exemplos, o que se percebe é a incapacidade que os sujeitos têm de lidar com a alteridade, com o Outro. Reflexo invertido de seu próprio processo de desumanização. Não obstante, na medida em que a estrutura física da Instituição Escolar é resultado do trabalho da outridade, a depredação ou mesmo a falta de zelo com a Coisa-escola reflete, também, essa negação da dimensão do diferente, isto é, a anulação da dimensão do trabalho humano enquanto pressuposto da interdependência e interação substantiva entre os homens em sociedade (Todorov, 2003). Na medida em que a escola admite ser autoridade objetiva e universal na direção do percurso de formação do aluno, a compreensão das diferenças de capacidade e de adequação cultural de sujeitos, sabidamente únicos e irrepetíveis, em seus aspectos comportamentais e intelectuais, passam a ser entendidos e interiorizados como problemas dos/nos alunos. Assim, noções como disciplina, respeito e ordem estão distorcidas e servem ao autoritarismo – situação que faz emergir uma contradição existencial nos profissionais que, na maioria dos casos, não querendo ser autoritários pretendem ser autoridade. A estrutura anacrônica e falida impõe certo universo de sentido, a violência simbólica, a saber, a idéia de que o aluno é – e deve ser - passivo, receptáculo, formatável e alvo de mecanismos de controle e de dominação. Ao desconhecer a experiência do aluno, sua história e sua herança sociocultural, isto é, ao desvalorizar o saber e as expectativas de sua própria individualidade, a escola nega, de modo mais profundo e brutal, a própria historicidade do discente. Noutras palavras, sedimenta-se a lógica de que o saber só é legítimo se transmitido pela Escola, valoriza-se dissimuladamente

qualidades que são desigualmente distribuídas entre as classes sociais, e não é demais repetir, os mecanismos de consumo de capital cultural e de uma determinada maneira de lidar com a cultura, inerentes às formas de socialização de uma determinada classe, são legitimados nesse processo; e, assim, essa violência simbólica manifesta-se como a espontaneidade do ar que respiramos e aprofunda o processo de desumanização do educando. Finalmente, a violência subjetiva, facilmente percebida, acusa os furos que não cessam de se reinscrever na realidade, tentando, dessa maneira, integrar ou domesticar os antagonismos que resultam da impossibilidade de humanizar desumanizando. Desse modo, desinteresse, apatia, descompromisso com as normas, analfabetismo funcional, evasão são respostas ao sistemático esforço de desconsiderar as expectativas e a historicidade dos educandos, e efeito corrosivo da lógica de desumanização existente no ambiente escolar. Ora, se o empenho e o investimento nos estudos realizado pelos estudantes são diretamente proporcionais à avaliação, consciente ou inconsciente, sobre o sucesso ou insucesso no sistema escolar vivido por seus membros, ocorre que a dissimulada valorização daqueles que supostamente possuem um dom ou mérito pessoal no sucesso escolar, promovida pelos profissionais da educação, em detrimento dos demais fracassados, irradia um efeito em cadeia de desestimulação nos alunos e, num ciclo vicioso, de desmotivação do professor, e assim sucessivamente. Há ainda um aspecto importante que não pode ser negligenciado, qual seja: a dificuldade de conferir sentido concreto aos conhecimentos oferecidos em sala de aula num contexto em que a maioria dos alunos passa por mudanças bruscas do ponto de vista psicológico e hormonal, quando irrompe a força da sexualidade, a libido sexual, e, assim, fazse premente a necessidade de desviar a energia intelectual que é investida pelos educandos para a atividade sexual afim de que os discentes possam realizar as tarefas educativas. Nesse contexto, a escola se investe de autoridade para domar, restringir, submeter, privar o investimento libidinal a uma vontade individual que coincida com a vontade social anônima e supostamente objetiva representada pela escola e seus agentes, fracassando em seu intuito ingênuo de condensar, deslocar ou mesmo sublimar os desejos avassaladores de seus alunos, antes os reprimindo (Freud, 2014, p.413). Com efeito, o papel de autoridade desempenhado pela escola, isto é, a relação vertical de poder que é um espectro possível do antagonismo desvelado até aqui, confunde-se com a autoridade anônima, sem rosto definido, da cena fantasmática fundamental teorizada por

Sigmund Freud em O Mal-Estar na Civilização, o fantasma do Bate-se numa criança, onde os pacientes relatam a contemplação prazerosa de ver alguém investido de autoridade flagelar as nádegas de uma criança. Por suposto, a versão recalcada – e obscena – revela as identidades dos personagens, na qual o pai espanca um irmão ou rival odiado. Nessa direção, o subtexto traumático revela-se num prazer culpado e reprimido: o pai bate em outras crianças porque ele ama só a mim – acredita-se. Entretanto, um subtexto alternativo é deslindado de forma radical e localizado no inconsciente, qual seja, a versão onde o sujeito se vê espancado pelo pai, sente prazer com isso, e assimila o espancamento sofrido como a expressão do amor paternal (Freud, 2010, p. 13-123). Assim, essa cena - e suas dimensões psicológicas – dá consistência à percepção de que a autoridade – o pai – é um sujeito omnipotente, faz a Lei com seu capricho, está acima dela, e, dessa forma, possibilita a identificação do sujeito subjugado e espancado, privado de suas vontades, com a autoridade do sujeito omnipotente e cruel. Essa cumplicidade inconsciente pode levar o sujeito – no caso em questão os próprios alunos – a exigir, provocar contra si mesmo e satisfazer-se, sem o saber, com os mesmos abusos, humilhações e opressões contra os quais se rebela (Crespo, 2007). A sala de aula, como um modelo de espaço de socialização semelhante aos campos de concentração perpetrados na época do Nazismo e ainda hoje existentes devido à incapacidade de transformação radical da estrutura, é a paisagem perfeita para a emergência de diversas patologias e neuroses cujo maior exemplo pode-se depreender das disputas, das contestações, do desrespeito mútuo, das agressões físicas e verbais, dos conflitos entre os próprios alunos, revelando que a escola cumpre o papel do pai omnipotente e cruel da cena fantasmática analisa por Freud, na qual os irmãos, isto é, o bom e/ou mau aluno, disputam entre si o amor paternal que sevicia e humilha as potenciais inteligências. Consequentemente, a aguda competição entre os alunos/irmãos solapa as tentativas de construção de laços de solidariedade entre os discentes e torna precária a interiorização dos valores de cidadania e democracia tão preconizados nos discursos laudatórios e projetos políticos pedagógicos da Instituição. Em suma, a desmotivação, o descompromisso, o desinteresse são as respostas que os profissionais da educação recebem para o que eles próprios enviaram aos alunos de forma invertida: não, não são os alunos que se desinteressaram e perderam o compromisso pessoal com a formação profissional e cidadã deles próprios! Este é o verdadeiro resultado da lógica social da educação que se perpetua há séculos. Nesse sentido, o conjunto complexo de problemas comportamentais percebidos como

dos/nos alunos, da apatia à rebeldia, são, portanto, sintomas mediante os quais emerge, numa espécie de histeria de conversão (Freud, 2014), a verdade recalcada sobre as relações intersubjetivas de dominação no sistema educacional e devem ser entendidas como formulações desesperadas de uma pergunta carregada de dramaticidade: nós existimos; vocês estão nos ouvindo?

É POSSÍVEL DESPERTAR DO SONO? OU CONSIDERAÇÕES FINAIS

O filme Don Juan de Marco, de Francis Ford Coppola, conta a história de um jovem chamado Johnny Arnold de Marco (personagem interpretado por Johnny Depp), de 21 anos, que, após uma desilusão amorosa, decide cometer suicídio. Convencido a não acabar com a própria vida, e desistir de se jogar do alto de um prédio, o jovem foi resgatado pelo psiquiatra Dr. Jack Mickler (interpretado por Marlon Brando) e internado no Hospital Estadual de Woodhaven para tratamento. Considerando que o jovem Johnny dizia ser o famoso personagem literário do século XVII, o Don Juan, conquistador de mais de mil e quinhentas mulheres, o maior amante de todos os tempos, a equipe médica começou a interpretar o conjunto articulado de imagens simbólicas estruturadas pelo jovem como delírios desorganizadores de sua vida psíquica. No processo de análise terapêutica, ocorre uma progressiva transferência entre paciente e analista, quando o romantismo e as fantasias eróticas do jovem passam a animar o ocaso profissional e a vida conjugal patética do velho psiquiatra. Com o tempo, o Dr. Jack Mickler passa de terapeuta à condição de paciente, e acaba por assumir a identidade do fazendeiro Don Octávio Del Flores, através da qual consegue mediar a relação intersubjetiva estabelecida pela análise do jovem Don Juan, e, assim, perceber que o universo simbólico do paciente possuía a função de organizar sua energia psíquica de forma criativa e poética. Assim, a presença de Don Juan no hospital altera toda a dinâmica: enfermeiras disputam a atenção do fantasioso paciente, risos e gargalhadas tomam conta da equipe médica, e, dessa forma, todos passam a aderir ao universo simbólico criado por Don Juan e Don Octavio Del Flores – não só passam a ser chamados pelos nomes fantasiosos como também os gestos e comportamentos de toda a equipe se adequam à ficção simbólica, sendo o melhor exemplo o fato de que o Hospital passa a ser chamado de Villa Del Flores, isto é, uma fazenda pertencente ao patriarca Don Octavio Del Flores.

E aqui reside o aspecto mais interessante do filme para a discussão feita até o momento nesse texto. Essa inversão de papeis entre analista e paciente, bem como a passagem de um ponto de vista ao outro – o primeiro percebido inicialmente como realidade objetiva, neutra, saudável; e o segundo, como fantasioso, alucinação, delírios, romântico, louco – revela, de forma paraláctica, que as imagens simbólicas estruturadas por D. Juan não diferem ontologicamente das imagens simbólicas experimentadas/vivenciadas como realidade objetiva pelo grupo de médicos e enfermeiros. Nesse sentido, a fantasia de D. Juan não pode ser compreendida como uma distorção da realidade pré-simbólica diretamente acessível aos médicos, mas sim enquanto uma simbolização possível dentre outras, uma versão para o encontro impossível e inassimilável com o Real, tal como a própria linguagem compartilhada – mascaras, na metáfora do filme – pelos médicos e enfermeiros nas suas relações sociais dentro do ambiente que acreditavam/sonhavam ser um Hospital. Com efeito, raciocínio semelhante pode ser projetado no problema desenvolvido nesse texto para analisar a situação do ambiente escolar. Afinal, aquilo que é vivenciado como realidade objetiva, neutra, imparcial, incontornável não é nada mais nada menos do que a reprodução sistemática e, infelizmente, automática, de uma determinada fantasia, dentre outras, contudo, tornada concreta por todos os envolvidos no processo de fazer educação – ainda que carregada de antagonismos e problemas estruturais. Noutras palavras, a escola que reproduzimos – arcaica, desigual, hierárquica e ilegal - também é resultado de um sonho. E qual seria a função do sonho? Na perspectiva freudiana, o sonho tem a função primordial de manter o sonhador em um estágio de sono profundo e, por conseguinte, o sonhador é aquele que está permanentemente fugindo do encontro com a realidade traumática, na expectativa sincera de que as coisas possam continuar indefinidamente da mesma maneira. Em tempos cada vez mais chocantes e nervosos, nos quais as relações sociais mais amplas mudaram, as pessoas mudaram, o mercado de trabalho mudou; nos quais os pontos de orientação que faziam o mundo parecer sólido, previsível, parecem estar em fluxo; tempos nos quais ocorre uma progressiva dissolução universal das identidades, sempre fugidias, com a dispersão das autoridades mediadoras da simbolização, a polifonia das mensagens valorativas e a consequente fragmentação da vida, o estado de anestesia dos profissionais da educação e seu antiquado sonho de racionalizar o mundo e o de treinar sujeitos racionais para habitá-lo é, em suma, anacrônico, pois não oferece as condições necessárias para fortalecer as faculdade críticas e autocríticas para que os sujeitos racionais possam lidar com um mundo

sem referências sólidas, sem os mediadores de simbolização em uma sociedade de risco (Bauman, 2008). Em suma, o papel de uma Instituição dedicada ao desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia deve assumir o sonho radical de transferir ao aluno a responsabilidade e a liberdade de construção do seu próprio percurso intelectual e acadêmico. Deve assumir, verdadeiramente, o fato de que cada ser humano é único e irrepetível, e isto exige a postura política de admitir que a construção singular do percurso educativo pressupõe a apropriação individual do currículo proposto pela Instituição, ainda que orientada e apoiada pelos profissionais da educação envolvidos no processo. Com essa mudança epistemológica radical, a escola oferecerá as condições materiais e simbólicas para o cultivo da capacidade de conviver de forma mais tranquila com a incerteza e a ambivalência, com uma variedade de pontos de vista e lidar com a impossibilidade de haver uma autoridade infalível. Ademais, estimulará a construção corajosa da autonomia e da responsabilidade pelas escolhas e objetivos de vida, posto que esta mudança radical das coordenadas da educação significa, também, o preparo para a construção de um sujeito capaz de rearticular as consequências dos atos que resultam em situações absolutamente virginais e que evidenciam a não adequação plena a seus papéis e identificações sociais, isto é, “treinar a capacidade de resistir à tentação de fugir da liberdade, pois com a ansiedade da indecisão ela traz também as alegrias do novo e do inexplorado” – individualmente e coletivamente (Bauman, 2008, p. 177). Enquanto essas condições políticas e pedagógicas de liberdade e de superação das cristalizadas formas de desumanização e reificação do aluno, alienado subjetiva e intersubjetivamente, não forem sonhadas e praticadas coletivamente, os educandos continuarão a enviar suas mensagens dramáticas: “nós existimos, vocês estão escutando?”. Não, não estão... “Perdoai-lhes, eles não sabem o que fazem”.

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