\" Por quanto esta he minha ultima vontade do modo que tenho dito \" : Tradicoes discursivas textuais e linguisticas em testamentos

June 5, 2017 | Autor: A. Castilho da Costa | Categoria: Linguistics
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Alessandra Castilho Ferreira da Costa

“Por quanto esta he minha ultima vontade do modo que tenho dito”: Tradições discursivas, textuais e linguísticas em testamentos norte-rio-grandenses dos séculos XVIII a XX

Resumo Segundo a hipótese forte do modelo de TD, a língua varia não somente de acordo com dialetos, socioletos e estilos, mas também de acordo com as diferentes tradições de textos ou tradições discursivas. Em outras palavras, as tradições internas aos textos condicionam a seleção de elementos de diferentes sistemas linguísticos (Kabatek 2008: 9). No presente estudo, essa hipótese é testada por meio da investigação de testamentos norte-riograndenses dos séculos XVIII a XX a partir de critérios textuais, discursivos e linguísticos, com o fim de verificar quais partes do texto tendem ao conservadorismo das formas e quais são menos fixadas e, portanto, mais abertas ao uso do vernáculo. Na análise das tradições internas aos testamentos norte-rio-grandenses dos séculos XVIII a XX, são utilizados os seguintes critérios: a) as unidades de estruturação textual, b) as relações de evocação com outros gêneros textuais, como manuais de bem morrer e tratados jurídicos seculares e c) as tendências de uniformização no uso de técnicas de junção. Os instrumentos teóricos e metodológicos advêm da Diplomática (Spina 1997) e dos estudos em Tradições Discursivas (Koch / Oesterreicher 1990; Koch 1997; Raible 1992; Kabatek 2006; 2008). Os resultados demonstram a influência de duas filiações históricas: de um lado, da ars moriendi católica; de outro, da iluminista. As duas tradições diferenciam-se quanto à expressão de conteúdos (religiosos, por exemplo) e às estratégias de verbalização. O segmento textual menos formulaico nos testamentos pertencentes à tradição da ars moriendi católica é o dispositio, mais influenciado pela imediatez comunicativa. Com relação aos nexos coesivos, nos testamentos da tradição da ars moriendi, os esquemas de junção da causalidade aparecem de modo privilegiado na arenga, que tem função justificativa, ao passo que, nos testamentos de influência iluminista, a arenga não está presente ou, quando presente, pode ser mais concisa. Ambas as tradições são tipicamente marcadas por construções subordinadas e preposições, isto é, por maior integração sintática, o que aponta para a proximidade do gênero testamento ao eixo da distância comunicativa. O trabalho contribui, assim, com a comprovação do condicionamento de elementos linguísticos segundo TD.

1

Introdução

Dos documentos históricos de que linguistas se utilizam para a descrição diacrônica de uma língua, os testamentos constituem fontes relevantes, já que, de um lado, como documentos jurídicos, são arquivados e conservados

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em diferentes sincronias e, por outro, trazem informações quanto a aspectos culturais, econômicos, religiosos, jurídicos, linguísticos de uma sociedade. Contudo, o exame dessas fontes permite a identificação de diferentes variedades linguísticas e estilos em um só documento, desde o estilo formal, jurídico e religioso até o cotidiano. Em outras palavras, há partes do texto mais ou menos formulaicas, mais ou menos próximas da oralidade e da escrituralidade e, assim, também elementos linguísticos de diferentes sistemas (cf. Kabatek 2008: 9). O objetivo do presente trabalho é a identificação de tradições internas ao testamento, de modo a reconhecer quais partes do texto tendem ao conservadorismo das formas e quais são menos fixadas e, portanto, mais abertas ao uso do vernáculo. A hipótese que seguimos aqui é a de que um dos fatores a influenciar a produção dos testamentos norte-rio-grandenses dos séculos XVIII a XX são os modelos de testamentos disponíveis em textos reguladores, tais como sugeridos pela literatura espiritual da ars moriendi, mais especificamente, dos manuais de bem morrer, e de tratados jurídicos laicos. Com a identificação dessas tradições internas, buscamos fornecer subsídios para o estudo das características linguísticas que começam a estar refletidas na documentação fragmentária que os acidentes da história nos deixaram (cf. Mattos e Silva 2004: 113), já que é na comparação das diferentes tradições que se identificam tais características. Nesse sentido, podemos dizer que nenhum fato linguístico é um “fato bruto” (cf. Koch 1997: 59) – é sempre um fato linguístico que se apresenta em distorção discursivo-tradicional, que não ocorre sem motivação textual. A presente análise será desenvolvida sob os seguintes aspectos: a) sob o aspecto da tradicionalidade tipológica desses dados, isto é, das características macroestruturais do gênero; b) sob o aspecto da tradicionalidade discursiva, isto é, das relações que se estabelecem entre esses testamentos e outros textos e discursos reguladores, a exemplo dos manuais de bem morrer, que desempenham um papel relevante nas normatizações textuais e linguísticas; c) sob o aspecto da tradicionalidade linguística, centrada nas técnicas de junção (Raible 1992), como estratégias de verbalização previstas pelo contínuo de imediatez e distância comunicativa (Koch / Oesterreicher 2007 [1990]). Os dados analisados compreendem 16 testamentos provenientes do Rio Grande do Norte, como a tabela 1 abaixo ilustra. Este estudo está organizado em três etapas principais: a) identificação das unidades de estruturação textual da macroestrutura dos testamentos analisados (organização textual); b) identificação de relações de evocação que se estabelecem entre diferentes textos reguladores e os testamentos do corpus; c) identificação de normatizações e uniformizações no uso de técnicas de junção por influência de um determinado padrão textual.

Tradições discursivas, textuais e linguísticas

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Tabela 1: Testamentos do corpus Proveniência

2

Período Século XVIII

Século XIX

Século XX

Instituto Histórico e Geográfico de Natal

Pedro Tavares Romeyro, 17671 Joana da Rocha, 1768 Manoel Gonçalves Durão, 1796 Manoel Morais, 1798 Victoriano Rodrigues, 1717

Anna Araujo Pereira, 1871 José Rodrigues Cherem, 1870 Felipa Vasconcellos, 1870 Joaquim Ribeiro Dantas, 1882 Ruperto Sá, 1816 Miguel Ferreira da Rocha, 1862

Antonio Ribeiro de Morais, 1941 Francisca Amelia da Silva, 1941 Joaquim Avelino Nascimento, 1937 Maria Roza Medeiros, 1939 Teófilo Alves Moraes, 1940

Total de exemplares

5

6

5

Número de palavras

8.179 palavras

7.407 palavras

4.944 palavras

Da macroestrutura dos testamentos

Nossa consideração do nível textual leva em conta subsídios fornecidos pela Diplomática a respeito da organização textual de documentos públicos e privados de caráter histórico. O testamento é identificado como documento particular, quer dizer, como registro que tem o fim de conservar um direito individual, tratando-se, portanto, de um texto pertencente à esfera jurídica (cf. Spina 1997: 18s.). Como documento jurídico, esse gênero textual atende à definição proposta por Theodor Sickel (apud Spina 1997: 19) de documento diplomático: “um testemunho escrito de um fato de natureza jurídica, coligido com a observância de certas formas determinadas, destinadas a conferir-lhe fé e dar-lhe força de prova”. Na terminologia diplomática, os documentos podem também ser denominados “instrumentos”. Na partição analítica de documentos, a Diplomática (Spina 1997: 53–56) propõe os seguintes componentes macroestruturais: o texto (que constitui o corpo do documento e contém o fato registrado), o protocolo (serve de moldura do documento, e contém as fórmulas que conferem a ele perfeição legal), subdividido em protocolo inicial (constituído de exórdio / abertura) e 1

Transcrição de Alessandra Castilho Ferreira da Costa: testamentos de Pedro Tavares Romeyro e de Joana da Rocha. Transcrição de Maria da Conceição Barros: testamentos de Anna Araujo Pereira, José Rodrigues Cherem, Antonio Ribeiro de Morais e Francisca Amelia da Silva. Os demais testamentos foram transcritos por Bibiana Jost Perinazzo.

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em escatocolo ou protocolo final (constituído de uma peroração / conclusão). O protocolo inicial é composto de invocação divina, intitulação, endereço e saudação. Por outro lado, o texto compreende preâmbulo, notificação, narrativa ou exposição, dispositivo e cláusulas cominatórias (penais, espirituais), de garantia, de renúncia, de corroboração. Já o escatocolo engloba data (elemento topográfico e elemento cronológico) e validação (subscrição, assinaturas, selos, sinais). Elementos dessa constituição formal de documentos podem ser verificados em nossos dados. Os testamentos analisados seguem a organização macroestrutural identificada na Diplomática (protocolo inicial-textoescatocolo). A estrutura básica comum é a mesma dos documentos dispositivos. Contudo, as unidades de estruturação textual menores que compõem tais partes no testamento apresentam organização interior diferente daquela identificada em outros documentos diplomáticos. Exemplo disso é a estrutura do protocolo inicial nos testamentos em questão. Como apontado, na Diplomática, o protocolo inicial de qualquer documento jurídico é constituído por invocação divina, intitulação, endereço e saudação (cf. Spina 1997: 56). Contudo, nos testamentos, observa-se uma organização textual em que a saudação não parece ser um elemento obrigatório, já que não ocorre em nenhum dos dados coletados. Da partição analítica do protocolo inicial conclui-se que variações de combinação das unidades de estruturação textual podem se constituir em novo formulário textual, embora a macroestrutura protocolo-texto-escatocolo mantenha-se constante na diacronia. Como se verifica no corpus, outras unidades de estruturação textual podem compor o protocolo inicial, o texto e o escatocolo. A tabela abaixo ilustra os elementos típicos da macroestrutura dos testamentos dos séculos XVIII e XIX analisados, distinta daquela identificada nos testamentos do século XX: Tabela 2: Macroestrutura dos testamentos norte-rio-grandenses dos séculos XVIII e XIX Unidade Retórica Invocatio Notificatio Datatio Intitulatio

Protocolo inicial

Inscriptio Arenga

Sana-Mente Narratio Continuação do notificatio

Tradições discursivas, textuais e linguísticas

289 Encomendar a alma Fazer pedidos pios Nomear testamenteiros

Dispositio Texto

Ordenar local de sepultamento Encomendar missas Declarar filiação, estado civil Nomear herdeiros Estabelecer o legado

Corroboratio

Escatocolo

Atestar a (última) vontade livre; Pedir execução do testamento; etc. (cláusulas finais) Datatio Subscriptio Apprecatio

Nos dados dos séculos XVIII e XIX analisados, o testamento é iniciado com uma invocação, que pode ser à Trindade, à Sagrada Família ou a Deus. Segue, então, o notificatio, em que se anuncia o teor do documento que se está a apresentar. Esta unidade retórica aparece frequentemente interpolada pelas unidades datatio, intitulatio, inscriptio e arenga, como o exemplo abaixo mostra. A finalização do notificatio é feita por meio de uma fórmula introdutória do dispositio (“na forma seguinte”). O inscriptio, como se verifica no mesmo exemplo, não ocorre em todos os testamentos analisados. Em nossos dados, a arenga, em que o enunciador apresenta suas motivações (muitas vezes, religiosas) para a produção do documento, pode ser combinada ao próprio narratio, como, por exemplo, a indicação da situação do enunciador quanto à existência de problemas de saúde (ou não), frequentemente por meio da fórmula Sana-Mente. Essa última fórmula tem também por função assegurar a validade do testamento e comprovar a capacidade mental do testador.

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Tabela 3: Macroestrutura do protocolo inicial dos testamentos dos séculos XVIII e XIX, a exemplo do testamento de Pedro Tavares Romeyro (1767)

Invocatio Notificatio Datatio

Intitulatio Inscriptio Arenga Sana Mente Narratio

Continuação do notificatio

Em nome da Santissima Trindade Padre Filho e Espirito san-|to trez pessoas distintas eum Só Deos verdadeyro: Saybaõ quan-|tos este instrumento virem que sendo no anno do Nascimento |de nosso Senhor JESUS christo, de mil setecentos Setenta e sete|aos dezesete dias do mês de Janeyro do dito anno eu Pedro Tava-|res Romeyro --estando em meo perfeyto juízo, entendimento | que nosso Senhor medeo, depe e com saúde porem temendo-|do me da morte como vivente , e dezejando por minha alma | no caminho da Salvação por não saber quando Deos será | servido levarme para Si fasso este testamento na forma se-|guinte.

O dispositio é iniciado com a encomendação da alma a Deus e com uma série de pedidos pios, que tem por fim assegurar a salvação da alma do enunciador. Isso quer dizer que, no período do século XVIII a XIX, o testamento é usado como um documento (religioso) que tem influência suficiente para beneficiar a alma do testador. Segue-se, então, a nomeação dos testamenteiros (que devem aceitar o pedido “por serviço a Deus”), a ordenação do local de sepultamento e os pedidos de missa. Todos esses atos de fala representam legados espirituais e precedem os legados materiais, de cunho patrimonial, de modo que há uma hierarquia entre os interesses da alma e os da matéria. Os legados materiais só podem ser atribuídos a partir da identificação de herdeiros necessários ou não. Por isso, a parte “material” do dispositio apresenta uma sequência de declaração de filiação e estado civil, de instituição dos herdeiros e estabelecimento dos legados materiais. Um dos requisitos de validade do testamento é a manifestação da vontade livre e soberana do testador em suas disposições, garantindo que não tenha sido induzido ou coagido a legar seus bens. Por isso, as disposições são finalizadas com a afirmação de última vontade do testador e de desejo de que o documento valha como testamento ou como codicílio. Essa afirmação de última vontade faz parte das cláusulas finais de garantia, de renúncia e de corroboração. Além de atestar sua livre vontade, outros atos de fala como pedir o cumprimento do testamento segundo as leis do país e indicar escrita de próprio punho (ou não) têm o papel de garantir o cumprimento de determinações legais para que o documento tenha validade, compondo, portanto, o corroboratio.

Tradições discursivas, textuais e linguísticas

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Tabela 4: Macroestrutura do texto dos testamentos dos séculos XVIII e XIX, a exemplo do testamento de Pedro Tavares Romeyro (1767) Encomendar a alma Fazer pedidos pios

Nomear testamenteiros

Dispositio

Texto

Ordenar local de sepultamento

Encomendar missas

Declarar filiação, estado civil

2

3

Premeyramente encómendo minha alma a San-|tissima Trindade que acreou, erogo ao Padre Eterno pela mor-|te epayxaõ deseo unigenito Filho a queyra receber como re-|cebeu aSua estando para morrer na arvore da vera Cruz|e a meu Senhor JESUS christo pesso por Suas devinas cha-|gas que ja que nesta vida meder mercê de dar Seu precio-|so sangue, e merecimento de seos trabalhos, me fassa tam-|bem merce na vida que esperamos dar opremio Delles, que |e a gloria. Pesso e rogo a glorioza virgem Maria e Senhóra | nossa da Aprezentação e do Rozario e a todos os Santos da | Corte Celestial especialmente ao domeo nome , e Anjo da | minha guarda: queyraõ por mim interceder, e rogar a meu | Senhor JESUS christo agora, equando minha [deste cor-]|po sair, porque como verdadeyro christaõ prostesto de mor-|rer e viver em afé catolica, e crer oque tem, e cre a San-|ta Madre Igreja Catolica de Roma, e e nessa fé espero sal-|var minha alma não por meos merecimentos mas peloz | da Santissima Payxaõ do unigenito filho de Deos. Rogo a minha mulher Donna Anna Ferreyra da Sylva, e a meu | Sobrinho o cabo de esquadra Felipe Barboza Romey-|ro e ao Capitaõ Joze Pedro de vasconcelos, por Serviço de |nosso Senhor, e por me fazerem merce, queyraõ ser meos | testamenteyros. Meu corpo Será Sepultado na Igreja Ma-|triz de Nossa Senhora da Apresentação desta cidade em o habito doSerafico Padre Sam Francisco, e me acompa-|nharaõ as companias de que sou Irmaõ, e as mais quehouverem, como sabem o Reverendo vigário e todos os ma-|is clerigos que Se acharem prezentes, fazendoce me officio| de corpo prezente alem do da obrigaçao, e mediraõ [corroído2] | corpo prezente todos os Reverendos sacerdotes [corroído3] |–rem no dia do meu falecimento pela [esmola] [corroído] minha alma deyxo que meu Reverendo [corroído]. [mediga] duas capelas de missas pela esmola consumada Deyxo | mais que se me digaõ por minha alma duas missas a Nos-|as Senhora da Apresentação e outras duas à Nossa Senhora | do Rozario, e duas ao Anjo daminha guarda duas ao San-|to domeu nome duas ao glorioso Padre [ilegível] Antonnio | e quatro missas pela almas de meu [Pay] e de minha May| a virgem Nossa Senhora da Aprezentação. Declaro que | sou natural dacidade de Olinda filho legitimo de | Antonio [Goncalvez] Romeyro e de sua mulher Donna | Antonia Thereza Tavarez ambos falecidos. Sou cazado | com Donna Anna Ferreyra da Sylva, e naõ tendo filhos | vivos della, ou descendentes legítimos que sejaõ meos herdey-|ros necessários, como taobem naõ tendo querentes que | o sejaõ,

Provavelmente, as palavras que faltam são “missa de” (“medirão missa de corpo prezente”). Provavelmente, a palavra que não aparece é “estiverem”.

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292 Nomear herdeiros Estabelecer o legado

cláusulas finais espirituais, de garantia, de renúncia, de corroboração

Corroboratio

e por isso nomeyo einstituo por minha universal | herdeyra a mesma minha mulher Donna Anna Ferrey-|ra da Sylva Declaro que em todo em onze ha os credores | seguintes: […]Declaro que a | conta de meos Saldoz decapitaõ de Infantaria [inint.] | te prezidio recebi Sic[o]enta mil reiz que Se descon- | tarão do Almoxarife na premeyra mostra entr[e]gando | este recibo que tem meo em Seo poder Declaro que | quero valha esta Sedula na melhor forma quece for pos-|sa quando naõ valha como testamento valha como | codeçilio, ou qualquer doaçaõ causa mortiz e como [dispo]|sição ao causaz piaz e para satisfazer meos legados ao | [causas] pias e dar expediente ao maiz que neste meu tes|tamento [inint.] torno a pedir a minha mulher Donna An | na MorreyradaSilva ea meo Sobrinho (Felippe Barboza | Romeyro e ao Capitaõ Jose Pedro de Vasconcelos por Servi | ço de Deos, e [por] me fazerem merce, queiraõ [attestar] Serem me-|os testamenteyros, como no prencipio deste meo testamento.| Pesso aos quaiz e a cada hum in [Solidum] dou todos os meoz | poderes e fasso meos administradorez, feitorez e procuradorez | como necessario for para tomarem posse e desporem de | meos bens como for precizo para meo enterramento pa-|go de minhaz dividaz e mais dispoziçoens oque declaradaz, | e por quanto esta hé minha ultima vontade do modo | que tenho dito, pesso as justiçaz de Sua Magestade fideli-|sima, Secularez e Eclesiazticaz, cumpraõ e fassaõ intey|ramente cumprir, dentro de dous annoz, os quaiz [consedo] | aos ditoz meoz testamenteyroz, para darem Suaz Contaz| e por estas conforme este testamento ao que direy| me [inint.], tendo pedido ao tenente Jose Baptizta Freyre, que| este por mim escrevesse, que tao bem Se[inint.]

Convém fazer uma observação sobre a parte do dispositio em que se estabelecem os legados materiais: é nessa parte do texto que os dados apresentam as maiores variações de formulação. Se considerarmos a tensão entre formulário textual e liberdade individual (cf. Reiffenstein 2009: 48), o estabelecimento de legados materiais é a parte desse formulário em que as formas linguísticas são menos reguladas e normatizadas por modelos anteriores e mais propícia ao aparecimento de inovações linguísticas, embora sejam identificadas algumas estruturas formulaicas como “declaro que” e “mando”. Cabe também distinguir o escatocolo da aprovação de testamento, que segue o escatocolo, no caso de testamentos cerrados. A aprovação é o documento em que o tabelião afirma ter recebido o testamento, fechado (“cosido”), por parte do testador, na presença de testemunhas, “limpo e sem vício”. Trata-se, pois, de outro gênero textual. O escatocolo nos dados analisados é composto apenas de local e data (datatio), assinatura do testador (subscriptio) e assinatura das testemunhas (apprecatio), além dos selos e sinais, que asseguram a validade do documento (tabela 5):

Tradições discursivas, textuais e linguísticas

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Tabela 5: Macroestrutura do escatocolo dos testamentos dos séculos XVII a XIX, a exemplo do testamento de Pedro Tavares Romeyro (1767) Escatocolo

Datatio

Subscriptio Apprecatio (assinatura das testemunhas, selos sinais)

nesta Ci-|dade do Natal aos dezenove de Janeyro de mil setecen-|tos e Secenta eSete.. Pedro Tavarez Romeyro Como testimunha que escrevi Jose Bap-|tista Freyre.

A macroestrutura dos testamentos do século XX do nosso corpus apresenta algumas rupturas com relação a esse modelo textual. Muitos dos elementos de cunho religioso / soteriológico (não todos) deixam de ocorrer (como, por exemplo, o invocatio); outros sofrem alterações. Uma alteração relevante é a introdução de partes do corroboratio já no protocolo inicial4, de modo a assegurar a validade do documento desde seu princípio, com a indicação de que determinadas solenidades externas ao testamento foram obedecidas e de que determinações legais foram cumpridas: Tabela 6: Macroestrutura do protocolo inicial dos testamentos do século XX, a exemplo do testamento de Antonio Ribeiro de Moraes (1941)

Protocolo inicial

Notificatio

Saibam quantos esta virem, que

Datatio

Inscriptio

aos trinta| (30) dias do mês de Agosto, do ano de mil novecentos e qua-|renta e um (1941), - nesta cidade de Natal, Capital do Estado| do Rio Grande do Norte, Republica dos Estados Unidos do| Brasil, perante mim, tabelião

Início do Intitulatio

Compareceu

Corroboratio

Cláusulas (presença de testemunhas)

Cont. do intitulatio Arenga

4

em a Avenida| Deodoro, nº 300(trezentos), onde a chamado fui vindo e| tambem perante as cinco testemunhas idôneas abaixo qua-|lificadas e assinadas, e a tôdo êste ato presentes,-o senhor|Antônio Ribeiro de Morais,

Narratio

doente,deitado em uma ca-|ma, brasileiro, viuvo, com sessenta e quatro anos de idade,| militar (reformado),

Tal modificação pode ter sido influenciada por outra tradição discursiva, a exemplo dos depoimentos de testemunhas oculares, que tipicamente ocorrem no início do texto, do ponto de vista diacrônico.

Alessandra Castilho Ferreira da Costa

294 Inscriptio Corroboratio

Cláusulas (presença de Testemunhas

Cláusulas (Sana-Mente5; Livre Vontade)

Início do notificatio Cont. do corroboratio

Cont. do notificatio

domiciliado e residente nesta capital,| em a referida casa, meu conhecido e das cinco testemunhas| aludidas, estas tambem minhas conhecidas, o qual o senhor| Antonio Ribeiro de Morais, ditas testemunhas e eu, tabelião| interino, reconhecemos ser o próprio e achar-se, pelo acêrto| Acerto com que ditou suas declarações, e respondeu ás per-|guntas que lhe fizemos, em perfeita capacidade mental,| livre de qualquer coação e induzimento, do que, de tu-|do acima, dou fé. E pelo mesmo senhor Antonio Ribei|ro de Morais, em seguida,

Cláusulas (presença de testemunhas)

sempre presentes as teste-|munhas,

Cláusulas (língua Portuguesa)

foi-me dito, em lingua nacional6,

que deseja-|va fazer, como por este instrumento efetivamente faz|, o seu testamento, com as seguintes declarações e dis-|posições:

Não somente o protocolo inicial sofre rupturas, mas a estrutura do texto apresenta modificações em relação à macroestrutura dos testamentos dos séculos XVIII e XIX. Na dispositio, os atos de fala “encomendar a alma” e “fazer pedidos pios”, “encomendar missas” e “ordenar a forma de sepultamento”, cristalizados na tradição romana jurídico-religiosa e normatizados 5

6

Observa-se na tabela 6 que a fórmula sana mente ocorre no interior da arenga nos testamentos dos séculos XVIII e XIX, ao passo que ocorre no interior do corroboratio nos testamentos do século XX. Tal tipo de elemento fixo pode aparecer em diferentes unidades de estruturação textual em função de sua tradicionalidade discursiva e, consequentemente, de sua composicionalidade. A cláusula a respeito da Língua Portuguesa ocorre particularmente em alguns dos testamentos do século XX analisados. No testamento de Antonio Ribeiro de Morais (30/08/1941), indica-se que “foi-me dito, em lingua nacional”; no de Teófilo Alves de Moraes (03/08/1940), salienta-se o fato de que o testador estava “falando em língua nacional”. Também no testamento de Francisca Amélia da Silva (26/07/1941), afirmase que “todas as declarações da testadora foram feitas no idioma nacional”. Dado o parco tamanho de nosso corpus, não é possível dizer se se trata de um elemento totalmente fixo ou se pode ser alternado com formulações como “em língua portuguesa” ou “na nossa língua”, entre outros.

Tradições discursivas, textuais e linguísticas

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pelos manuais de bem morrer, deixam de ocorrer – com uma única exceção. Embora os legados espirituais percam sua precedência na linearidade textual, verifica-se, entre as disposições em ambos exemplares analisados, um ato de fala pertencente à tradição discursiva do legado espiritual nos testamentos: a afirmação da fé católica como terceira disposição. Apesar dessa ruptura, a declaração de filiação e de estado civil e herdeiros necessários, o estabelecimento do legado patrimonial e as cláusulas finais garantem a identidade diacrônica entre os testamentos do século XX e os dos séculos anteriores: Tabela 7: Macroestrutura do texto dos testamentos dos século XX, a exemplo do testamento de Antonio Ribeiro de Moraes (1941) Declarar filiação

Declarar estado civil e herdeiros necessários

Nomear herdeiros

Dispositio

Texto

Confessar a fé Estabele-cer o legado

Primeira: - Nasceu nesta cidade e tem sessen-|ta e quatro anos de idade, é filho legitimo de Manoel| Ribeiro de Morais e de Joaquina Ribeiro de Morais, am-|bos já falecidos Segunda: - Casou-se com dona Ana| Barbosa de Morais, que faleceu ha muitos anos e cu-|já data não recorda, deste consórcio não tendo havido| filhos, tendo ele testador havido com dona Maria Soa-|res Dantas, maior, solteira, sem nenhum impedimen-|to para casar-se e com quem vive maritalmente, qua-|tro filhos, os quais deu os nomes e prenomes de Jo-|sé Ribeiro de Morais, Izabel Ribeiro de Morais, Elza| Ribeiro de Morais e Terezinha Ribeiro de Morais, | nascidos nesta capital, respectivamente a 8 de novembro| de 1924, 12 de dezembro de 1927, 13 de maio de 1935 e | 15 de fevereiro de 1940, registrados este ultimo no 4º| cartorio, a fls. 150 v. , do livro 59, e os demais no 1º car-| tório, nos livros numeros 22, fls. 66, 25, fls. 241 e 48, fls.| 19 r., em ordem sucessiva, conforme os documentos com-| prabatorios em poder dele testados os quais deseja| beneficiar por sua morte; Terceira: - É católico, após-|tólico, romano, em cuja religião deseja morrer; Prevalecendo-se, portanto, deste testamento, começa| por determinar, como determina, que todos os seus| bens móveis, imóveis e valores, estes representados por|notas promissórias e duplicatas, sejam partilhadas em | em igualdade de condições com os seus referidos filhos José, |Izabel, Elza e Terezinha Ribeiro de Morais, pois não tendo| outros herdeiros necessários, instituindo seus ditos filhos| naturais seus únicos e

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Nomear testamenteiros

Declarar filiação, estado civil

Nomear herdeiros Estabele-cer o legado

cláusulas finais

Corroboratio

universais herdeiros; Quinta: – Que| é possuidor de uma casa situada à Avenida Deodoro, nu-|mero 300, bairro da Cidade Nova, desta capital, com uma |porta e uma janela de frente e mais três janelas de lado,| construída de tijolo e taipa, coberta de telha comum, encra-|vada em terreno foreiro do Patrimônio Municipal, o qual| mede 388, m2 80 (quadrados) de superfície e se limita ao|Norte, por Amilio Avila, com 84, m 00; ao Sul, por Pio Barre-|to, com idêntica deminsão; a Leste pela mencionada Ave-|nida Deodoro, com 7, m20 e ao Oeste, pôr Francisco Apolô|nio, com 7, m 60, conforme se vê com a carta de aforamento|nº 749, de 20 de novembro de 1922, casa e terreno acima| descritos deseja, como disse acima, que fique pertencendo|, por sua morte, aos seus ditos filhos. Nomeia e institue| seu testamenteiro o senhor Leonilo do Bonifacio Nascimen-|to, brasileiro, casado, funcionário publico federal aposentado,|domiciliado e residente nesta capital, para o que dá por|abonado em juízo e fóra dêle, a quem pede tudo faça| no sentido de que ao seus legatários não seja creada a| menor dificuldade em receber o seu legado Declaro que | sou natural dacidade de Olinda filho legitimo de | Antonio [Goncalvez] Romeyro e de sua mulher Donna | Antonia Thereza Tavarez ambos falecidos. Sou cazado | com Donna Anna Ferreyra da Sylva, e naõ tendo filhos | vivos della, ou descendentes legítimos que sejaõ meos herdey-|ros necessários, como taobem naõ tendo querentes que | o sejaõ, e por isso nomeyo einstituo por minha universal | herdeyra a mesma minha mulher Donna Anna Ferrey|ra da Sylva Declaro que em todo em onze ha os credores | seguintes: […] Declaro que a | conta de meos Saldoz decapitaõ de Infantaria [inint.] | te prezidio recebi Sic[o]enta mil reiz que Se descon- | tarão do Almoxarife na premeyra mostra entr[e]gando | este recibo que tem meo em Seo poder E pôr esse mo-| do disse ele testador que havia por feitas suas declarações|testamentárias, manifestando sua última vontade. Assim| o disse, diante de mim, tabelião, e das cinco testemunhas| referidas, sempre presentes, as quais assinam comigo es-|ta disposição, depois de escrita e lida por mim, tabelião, em | voz alta, na presença do mêsmo testador, digo, na presen|ça das mêsmas testemunhas,

Tradições discursivas, textuais e linguísticas

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A macroestrutura do escatocolo modifica-se pouco. Permanecem nos testamentos do século XX as unidades de estruturação textual subscriptio e apprecatio. O datatio, que nos exemplares dos oitocentos e novecentos, ocorria antes do subscriptio, não foi identificado nos exemplares do século XX, aparecendo apenas no protocolo inicial e na aprovação do testamento, assinada pelo tabelião: Tabela 8: Macroestrutura do escatocolo dos testamentos do século XX, a exemplo do testamento de Antonio Ribeiro de Moraes (1941) Subscriptio

Escatocolo

Apprecatio (assinatura das testemunhas, selos sinais)

e a rogo do mesmo testador,| que por seu estado de doença, não pode escrever, assina a| primeira testemunha Antonio Felismino de Brito, brasi-|leiro, solteiro, funcionário publico federal; Lucio Bonifacio|Bonifacio do Nascimento, brasileiro, casado, funcionário pu-|blico federal; Teofilo Alexandrino dos Anjos, brasileiro, ca-|sado, funcionário publico federal; Geraldo dos Santos, brasileiro, casado, comerciário, e José Lucas do Nascimento,| brasileiro, casado, funcionário publico estadual, todos re-|sidentes nesta capital.

No próximo item, os aspectos macroestruturais aqui abordados serão investigados do ponto de vista de sua ligação com textos anteriores. Partindo do pressuposto de que tradições nunca surgem ex nihilo, mas têm de se ligar sempre a algo já dado (Koch 1997), apresentarei convergências entre nossos dados e textos anteriores.

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Os testamentos e o nível discursivo: os manuais de bem morrer e outros textos reguladores

Koch (1997: 64) defende que se deve contar com certo conservadorismo das tradições discursivas, isto é, nelas permanecem elementos constituintes de tradições subjacentes. No presente item, buscamos investigar as relações de evocação que se estabelecem entre diferentes textos reguladores e os testamentos analisados. Por isso, faremos por uma breve revisão histórica, começando pelo surgimento da ars moriendi. Do final do século XII ao longo de todo o século XIII, a Igreja Católica elaboraria a doutrina do Purgatório, que passaria a ser definida como dogma no Segundo Concílio de Lyon (1274) e se estabeleceria no sistema de crenças do catolicismo. Como efeito dos ensinos a respeito do Purgatório e da epidemia de peste negra na Baixa Idade Média (1348), havia-se instalado um sentimento de medo e ansiedade sobre a morte na sociedade europeia. Seja

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porque muitos clérigos temiam dar assistência aos doentes, seja porque muitos morreram em virtude dessa atividade, a Igreja passou a oferecer manuais de auto-ajuda para os moribundos. Em tempos de praga, não se podia sempre contar com a visita do padre, de modo que essas instruções deveriam ser lidas (e provavelmente memorizadas), enquanto ainda se tinha saúde, para serem usadas nos dias e nas horas da morte (cf. Verhey 2011: 81). Logo após o Concílio de Constança (1414–1418), esses tratados de bem morrer começaram a aparecer sob os títulos de Speculum Artis Bene Moriendi ou Tractatis Artis Bene Moriendi (cf. Verhey 2011: 86). Durante o Concílio de Trento (1545–1563) e no período a ele posterior, a doutrina do Purgatório foi reforçada como reação às doutrinas protestantes. Nesse período de Contra-Reforma e sob a influência dessa doutrina, elaboram-se normatizações no âmbito do Concílio de Trento, que influenciaram, por sua vez, as determinações das Ordenações Filipinas (1595). Embora tais textos apresentassem regulamentações para os testamentos, entre outros diplomas, não continham um modelo ou formulário para sua redação. Por outro lado, havia uma grande necessidade comunicativa de instruir os fiéis católicos na preparação para a morte e fornecer modelos de testamento, já que os fiéis católicos tinham nos testamentos um meio de assegurar sua salvação do Purgatório, encomendando missas por suas almas e doando bens à Igreja. Como resultado dessa necessidade comunicativa de redigir testamentos, há uma proliferação de manuais manuais de bem morrer, a exemplo do Breve aparelho e modo fácil para ensinar a bem morrer um cristão, do jesuíta Estevam de Castro, publicado em 1621 em Portugal, do Mestre da vida que ensina a viver e morrer santamente, escrito por João Franco e publicado entre 1731 e 1882, e do Devoto instruído na vida e na morte (1828), do padre Frei Manoel de Maria Santíssima, publicado em 1784 (apud Rodrigues / Dilmann 2013: 2–4), da Escola de Bem Morrer aberta a todos os christãos, & particularmente aos moradores da Bahia nos exercícios de piedade, que se praticaõ nas tardes de todos os Domingos pelos Irmãos da Confraria da Boa Morte (1701), do padre Antonio Maria Bonucci, e da A morte suave, e santa: ou preparação para a morte, obra recopilada dos santos padres e de gravissimos authores em piedade, e letras, I e II parte, dedicada ao glorioso patriarca S. José por hum seu indigno servo (1781, anônimo). Dentre todos esses manuais em português, o Breve Aparelho e modo fácil para ensinar a bem morrer um cristão, de Estevam de Castro, teve o maior êxito editorial, com dez edições. É certo que as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), primeiro código de leis eclesiásticas criado na colônia brasileira, regulavam a prática testamentária, a partir dos preceitos do Concílio de Trento, servindo de orientação para todo o território da colônia. Contudo, as Constituições Primeiras também não apresentavam uma fórmula de redação dos testamentos. Ora, entre os séculos XVII e XIX no Brasil, a facção de testamentos era

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prática discursiva comum entre católicos de diferentes estratos sociais na colônia, que também tinham, como os europeus, necessidade de garantir a salvação de suas almas. Por isso, também no Brasil, os manuais de bem morrer como o Breve Aparelho circularam entre católicos ao longo do século XVIII. Os achados de Rodrigues / Dilmann (2013) dão-nos algumas pistas a respeito do papel desses manuais de prática testamentária na formação dos testamentos brasileiros. Segundo esses historiadores, o manual de Estevam de Castro parece ter influenciado fortemente a elaboração de testamentos brasileiros. 7 Esses autores afirmam ainda que, entre os séculos XVII e XIX, a facção de testamentos era prática discursiva comum entre católicos de diferentes estratos sociais e que “a redação dos testamentos era feita ou pelo próprio sujeito que testava ou, a seu rogo, por um indivíduo de sua confiança, podendo ser um sacerdote (em geral o confessor), pessoa leiga de confiança (que podia ser um membro de irmandades ou amigo) ou notário”. Nesse sentido, os manuais de bem morrer cumpriam um papel facilitador da produção textual, já que apresentavam modelos que tornavam a produção do testamento mais simples. Além desse caráter modelar e simplificador, tais manuais desempenhavam também um papel selecionador, pois todo modelo restringe as possibilidades de produção de sentido, bem como de formulação linguística. Ora, é esse caráter modelar, simplificador e restritivo que dá suporte ao conservadorismo de formas textuais e linguísticas, ao passo que a inovação representa sempre uma ruptura com modelos anteriores (sejam textuais ou linguísticos). Essas relações conservadoras que se estabelecem entre os manuais de bem morrer e os testamentos brasileiros dos séculos XVIII e XIX, culminando com escolha de determinadas formas linguísticas, são objeto de consideração de historiadores: A leitura de testamentos dos séculos XVII a meados do XIX nos permite verificar que estes documentos seguiam muitas vezes um padrão e que, dependendo do recorte temporal e espacial, poderiam existir expressões, frases ou

7

Seria ingênuo supor que o modelo proposto no Breve Aparelho tenha sido elaborado por Castro ex nihilo. Antes, sua origem parece remontar a modelos anteriores, dadas as semelhanças detectáveis entre as formulações contidas nesse manual e determinadas fórmulas latinas. Tal é o caso da fórmula “condo testamentum meum in hunc modum” que origina a formulação portuguesa “faço este testamento na forma seguinte”, adotada e difundida pelo manual de Castro. A hipótese de que o manual de Castro tenha sido a fonte a partir da qual testadores, notários e religiosos tiveram acesso ao modelo de testamento ali proposto fundamenta-se em duas evidências: a) em primeiro lugar, o sucesso editorial obtido pelo Breve Aparelho implica necessariamente uma grande variedade de cópias desse modelo circulando na sociedade portuguesa e brasileira por pelo menos 100 anos; b) em segundo lugar, observa-se nos dados não somente algumas semelhanças, mas com frequência cópias exatas do modelo ali proposto.

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parágrafos que se repetiam idêntica ou semelhantemente em vários deles,8 em que pesem as especificidades que possam ter, as quais quase sempre estavam vinculadas aos testamentos escritos de próprio punho pelo testador. Não é novidade para os estudiosos que este padrão era resultante da existência de uma literatura espiritual que, no mundo português, foi editada principalmente nos séculos XVII e XVIII, destinada a instruir os fiéis nas matérias da fé e na preparação para a morte. (Rodrigues / Dimann 2003: 2)

Entre os testamentos norte-rio-grandenses dos séculos XVIII e XIX em nosso corpus e os manuais de bem morrer verificam-se evocações, relações intertextuais e interdiscursivas9 que se cristalizam, tornam-se tradicionais e funcionam como fios do tecido textual. A tabela abaixo comprova algumas dessas convergências: Tabela 9: Exemplos de formulações convergentes entre o Breve Aparelho e os testamentos analisados

Invocatio

Notificatio

9

10

Testamentos norte-rio-grandenses (1) Em nome da Santissima Trindade Padre Filho e Espirito san-|to trez pessoas distintas eum Só Deos verdadeyro (1768) (2) Saybaõ quan-|tos este instrumento virem que […] fasso este testamento na forma se-|guinte (1768)

Datatio

como no anno do Nascimento de nosso Senhor Jessu Christo, de mil, & c. a tantos de tal mês

(3) em como no ano do nac mento| de Nosso Senhor JESUS christo de mil setecentoz e | Sincoenta e [corroído] aoz vinteeSete [dias] domez de Fevereiro [corroído] | ano (176810)

Intitulatio

eu N

(4) Eu Joana da Rocha Tavares (1768)

Arenga (SanaMente)

estando em meu perfeito juízo, & entendimẽto que nosso Senhor me deu; ou doẽte em cama (se estiver doente) & c. Temendome da morte,

(5) estan-|do em meu perfeito juízo eEntendimento que Nosso Senhor medeo, (1768)

Arenga

8

Breve aparelho (1621) (p. 100 a 105) Em nome da Santissima Trindade, Padre, Filho, Spirito Sancto, três pessoas, & hum sò Deos verdadeiro (p. 100) Saybaõ quantos este instromento virem […] faço este testamento na forma seguinte.

(6) temendo-me da morte, (1768)

Grifo nosso. Koch (1997) estabelece diferença entre o conceito de intertextualidade e o de interdiscursividade. O testamento de Joana da Rocha contém o título “Testamento com que faleceo aViúva Joana| da Rocha, em des de Julho de mil setecentoz | eSecentaEoito”. Contudo, no protocolo inicial, a indicação de data não confere com esse título, como se verifica acima.

Tradições discursivas, textuais e linguísticas

301

Arenga

& desejando por minha alma no caminho da salvação,

(7) e dezejando por minha alma no Caminho da | Salvasaõ (1768)

Arenga

por não saber o que Deos nosso Senhor de mim quer fazer, & quando será servido de me levar para Si, Primeiramente encomendo minha alma à Sanctíssima Trindade, que a criou, & rogo ao Padre Eterno pella morte & payxaõ de seu unigenito Filho a queira receber, como recebeo a Sua, estando pera morrer na arvore da Vera Cruz; & a meu Senhor Jessu Christo peço por suas divinas chagas, que já que nesta vida me fez merce de dar seu precioso sangue, & merecimentos de seus trabalhos, me faça tãbem mercê na vida que esperamos dar o premio delles, que he a gloria; & peço, & rogo à gloriosa Vorgem Maria nossa Senhora Madre de Deos & a todos os Santos da Corte Celestial, particularmente ao meu Anjo da guarda, & ao santo do meu nome. N. & a tal santo N. N. a quem tenho devoçaõ queiraõ por mim interceder, & rogar a meu Senhor Jessu Christo, agora, & quando minha alma deste corpo sair;

(8) por naõ Saber oque Nosso Senhor de mim quer fazer, equando Serâ | Servido Levar-me para Si (1768)

porq como verdadeiro christaõ protesto de viver, & morrer em a santa fee catholica, & crer o que tem & cree a Sancta Madre Igreja de Roma; & em esta fe espero de salvar minha alma, não por meus merecimentos, mas pellos da Santissina Payxão do unigenito Filho de Deos. Rogo a tal, ou taes pessoas, por serviço de N. Senhor, & por me fazer ẽ merce, queirã ser meus testamẽteiros.

(14) porque como verdadeyro christaõ prostesto de mor-|rer e viver em afé catolica, e crer oque tem, e cre a San-|ta Madre Igreja Catolica de Roma, e e nessa fé espero sal-|var minha alma não por meos merecimentos mas peloz | da Santissima Payxaõ do unigenito filho de Deos. (1767)

Dispositio

Dispositio

Dispositio

Dispositio

Dispositio

Dispositio

Dispositio

(9) Premeyramente encómendo minha alma a San-|tissima Trindade que acreou, (1767) (10) eRogo ao Eterno Pai, que pela morte de Seu | Unigenito Filho a-queira Receber, (1768)

(11) e a meu Senhor JESUS christo pesso por Suas devinas cha-|gas que ja que nesta vida meder mercê de dar Seu precio-|so sangue, e merecimento de seos trabalhos, me fassa tam-|bem merce na vida que esperamos dar opremio Delles, que |e a gloria. (1767) (12) Pesso e rogo a glorioza virgem Maria e Senhóra | nossa da Aprezentação e do Rozario e a todos os Santos da | Corte Celestial especialmente ao domeo nome , e Anjo da | minha guarda: queyraõ por mim interceder, (1767) (13) e rogar a meu | Senhor JESUS christo agora, equando minha [deste cor]|po sair, (1767)

(15) Rogo ameu Primo oCapitam Mor Joaõ | de Oliveira e Freitas, e meu Compadre Teodozio Ferreira, eo Sar=|gento Mor Manuel Fernandes de Oliveira que por Servisso de Deos quei=|raõ Ser meus Testamenteiroz. (1768)

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302 Dispositio

Dispositio

Dispositio

Dispositio

Dispositio

Meu corpo serà sepultado em tal Igreja, ou Mosteiro, & em o habito de tal Religiaõ, & levado com tal, ou tal acompanhamento, & tais, ou tais cõfrarias; & peço (se for Irmaõ da Misericordia) ao senhor Provedor, & Irmaõs da Mesa da santa Misericordia acompanhem meu corpo na sua tumba, & toda a irmandade, & com a bandeira da santa casa; e se naõ for irmã peça o que se custuma fazer a todos deixando algũa esmola a dita confraria da Misericordia. Porminha alma deixo tais, ou tais suffragios, Missas, officios, &c. E se arrecea, que a fazenda naõ abrangerà, diga deixos tantos mil reis, ou cruzados, pera que se dem de esmola a quẽ me diga tantas Missas, ou faça tais suffragios por minha alma. Declaro, q sou natural de tal parte, filho de fulano, & fulana, legitimo, ou não legitimo; declaro que naõ sou casado, ou sou casado em tal parte, cõ fulana, & que tenho, ou naõ tenho tais herdeiros necessarios, filhos, ou descendentes, ou ascendentes, &c.

Declaro, que tenho tais, & tais dividas (se as tiver) que se haõ de pagar do monte, por serem contrahidas pera administràçaõ minha, & da família: & tais se pagaraõ, da minha ametade (se a tiver) & tais, quero que fiquẽ Declaro, nomeo, & instituo por meu herdeiro universal de tudo o que depois de pagas minhas dividas, & compridos meus legados restar de minha fazenda, a tal pessoa, Igreja, Mosteiro, Hospital, Cõfraria, ou qualquer outra obra pia:

(16) Meu corpo Será Sepultado na Igreja Ma-|triz de Nossa Senhora da Apresentação desta cidade em o habito doSerafico Padre Sam Francisco, e me acompa-|nharaõ as companias de que sou Irmaõ, e as mais quehouverem, como sabem o Reverendo vigário e todos os ma-|is clerigos que Se acharem prezentes, fazendoce me officio| de corpo prezente alem do da obrigaçao, (1767)

(17) Deyxo | mais que se me digaõ por minha alma duas missas a Nos-|as Senhora da Apresentação e outras duas à Nossa Senhora | do Rozario, e duas ao Anjo daminha guarda duas ao San-|to domeu nome duas ao glorioso Padre [ilegível] Antonnio. (1767) (18) Declaro que | sou natural dacidade de Olinda filho legitimo de | Antonio [Goncalvez] Romeyro e de sua mulher Donna | Antonia Thereza Tavarez ambos falecidos. Sou cazado | com Donna Anna Ferreyra da Sylva, e naõ tendo filhos | vivos della, ou descendentes legítimos que sejaõ meos herdey-|ros necessários, como taobem naõ tendo querentes que | o sejaõ […]. (1767) (19) Declaro que devo defa-|zenda ao Sargento mor Francisco Machado de [O]liveyra] | [Barroz] oque constar deSeu livro (1767)

(20) Declaro que nomeio, e instituo | por minha erdeira universal aminha alma de tudo oque | depois de cumpridoz meus Legadoz restar deminha fazen-|da [[fazenda]], (1768)

Tradições discursivas, textuais e linguísticas Corroboratio

Corroboratio

E aqui declare, que quer que esta mesma cedula, se por algum caso naõ valer como testamento valha como codicillo, & qualquer doaçaõ casa mortis, & como disposiçaõ ad causas pias, & pello melhor modo que em direito poder ser. Pera comprir meus legados ad causas pias aqui declarados, & dar expediência ao mais que neste meu testameto ordeno, torno a pedir ao senhor fulano, ou fulanos, por serviço de Deos nosso Senhor, & por me fazerem merce, queiraõ aceitar serem meus testamenteiros como no princípios deste testamẽto peço, aos quais, & a cada hum in solido dou todo os poder que em direito posso, & for necessário pera de meus bẽs tomarem, & venderem o que necessario for pera meu enterramento, & comprimento de meus legados, & paga de minhas dividas.

Corroboratio

E por quanto esta He a minha ultima vontade, do modo que tenho dito me assino aqui, ou rogo ao escrivã assine por mim, por eu não saber, ou naõ poder assinar.

Escatocolo

Em tal lugar, Villa, ou Cidade, ou quinta, ou navio, &c. A tantos de tal mes & era, assinarseà por elle, & depois da aprovaçaõ (que vai adiante) se assinarà com as testemunhas o mesmo testador, & naõ sabendo, como digo, ou naõ podendo assinar: hũa das testemunhas assine por elle: dizendo; que assina a rogo do testador, por naõ saber, ou naõ poder escrever.

303 (21) Declaro que | quero valha esta Sedula na melhor forma quece for pos|sa quando naõ valha como testamento valha como | codeçilio, ou qualquer doaçaõ causa mortiz e como [dispo]|sição ao causaz piaz [inint.] (1767) (22) e para satisfazer meos legados ao | [causas] pias e dar expediente ao maiz que neste meu tes- |tamento torno a pedir a minha mulher Donna An | na MorreyradaSilva ea meo Sobrinho (Felippe Barboza | Romeyro e ao Capitaõ Jose Pedro de Vasconcelos por Servi | ço de Deos, e [por] me fazerem merce, queiraõ [attestar] Serem me-|os testamenteyros, como no prencipio deste meo testamento.| Pesso aos quaiz e a cada hum in [Solidum] dou todos os meoz | poderes e fasso meos administradorez, feitorez e procuradorez | como necessario for para tomarem posse e desporem de | meos bens como for precizo para meo enterramento pa-|go de minhaz dividaz e mais dispoziçoens oque declaradaz, (1767) (23) Eporquanto esta | é aminha ultima vontade do modo que tenho dito […] epor eu naõ Saber Ler nem escrever pedê á Paulo Coelho, que este por mim escrevesse, eameu| rogo assinasse (1768) (24) nesta mesma Povoassaõ de Mopebú em | o dito dia mez, eano atraz declarado. = Assino a rogo de | Joana da Rocha, e como testemunha que o escrevi = | Paulo Coelho. = (1768)

Recorde-se que os testamentos católicos representavam uma fonte de valores para os cofres de sacerdotes, paróquias, irmandades e conventos, deixando, por vezes, os herdeiros consanguíneos com poucos recursos financeiros. Segundo Rodrigues (2008: 4), nesse contexto, o governo do Marquês de Pombal implementou, novas leis regulamentando o ato de testar, entre 1766 e 1769. Com a Lei da Boa Razão (1769), Pombal tinha por objetivo promover

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a transferência dos valores gastos com a Igreja para os herdeiros consangüíneos dos testadores. A autora afirma que o impacto destas medidas sobre a prática testamentária tanto na Colônia como no Reino foi significativo, dando início a um processo de transformação dos testamentos num exclusivo mecanismo de transmissão de heranças, que se concretizaria somente na segunda metade do século seguinte. São os tratados seculares de testamentos e sucessões que passam a oferecer modelos para a produção textual de testamentos que atendessem às regulações da Lei da Boa Razão, a exemplo do Tratado regular e pratico de testamentos, e successões ou compendio methodico das principaes regras e principios que se podem deduzir das leis testamentarias, de Antonio Joaquim Gouvêa Pinto, publicado em 1844. Os modelos de testamento propostos pelo Breve Aparelho e pelo Tratado regular podem ser reconhecidos em parte dos dados aqui analisados por meio das diferentes técnicas de junção que adotam preferencialmente. No próximo item, apontaremos alguns indícios de como tradições anteriores podem influenciar a escolha de determinados fenômenos linguísticos, a exemplo dos juntores.

4

Os testamentos e o nível microestrutural

Quem assina um contrato com outra pessoa ou faz um testamento tem todo interesse de que o contrato ou o testamento sejam absolutamente compreensíveis. Como conseqüência (cf. Raible 1992: 197), os textos do universo discursivo do Direito exigem um alto grau de planejamento e de coerência, o que Raible entende ser típico da escrituralidade (ou na terminologia de Bühler, típico do Sprachwerk, a “obra linguística”, isto é, a reflexão sobre o próprio enunciado). Raible entende que o grau de planejamento de um texto traz consequências para a escolha das técnicas de junção, isto é, para a escolha das formas linguísticas que são usadas para expressar uma relação semântica. Dessa perspectiva teórica, assume-se, portanto, a hipótese de correlação entre determinados padrões textuais (mais ou menos planejados) e a preferência por determinadas técnicas de junção (advérbios juntivos, conjunções coordenativas, conjunções subordinativas, construções participiais e gerundiais, grupos preposicionais e preposições simples). Neste item, pretendo verificar se, no nível microestrutural, especificamente, nas técnicas de junção, podemos observar a presença de tendências de regulação, normatização e uniformização, decorrentes dos padrões textuais, ou se há espaço para as possibilidades de variação. Pergunta-se, assim: há maiores ou menores variações de formulação nesses dados e se, sim, em que partes do texto?

Tradições discursivas, textuais e linguísticas

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Observemos, primeiramente, as tendências de uniformização de relações semânticas e técnicas de junção no invocatio nos testamentos, apenas dos séculos XVIII e XIX, já que não há ocorrência de invocatio nos dados do século XX. Essa TD é constituída, do ponto de vista diacrônico, por uma constância na expressão da relação semântica de motivo (na terminologia de Raible, Veranlassung11) e no uso de grupos preposicionais, especificamente do grupo preposicional “em nome de”, como técnica de integração sintática: Invocatio (1)

Em nome da Santissima Trindade Padre Filho e Espirito san-|to trez pessoas distintas eum Só Deos verdadeyro (1767)

(2)

Jezus, Maria e Jozé = Em Nome da| Santissima Trindade, Padre, Filho, Espi-|rito Santo (1871)

No notificatio, verifica-se a ocorrência da relação de correspondência (na terminologia de Raible, Zuordnung). As formas linguísticas são as locuções adverbiais juntivas “na maneira seguinte” e “na forma seguinte”. Dos testamentos do século XVIII, um deles apresenta também a expressão de correspondência com a utilização de grupo preposicional (“na forma de”). Dos testamentos do século XX, um apresenta a expressão de correspondência por meio de locução adverbial juntiva “pela maneira seguinte”, ao passo que outros apresentam a expressão de inclusão (Einschluss) por meio de preposição simples “com” (“com as seguintes declarações e disposições”). Em suma, há uma tendência de expressão de correspondência por meio da junção por correferência (advérbios juntivos) no notificatio. Notificatio (3)

Saybaõ quan-|tos este instrumento virem que […] fasso este testamento na forma se-|guinte (1767)

(4)

vou proceder a este meo Testa-|mento, e ultima vontade, a | fim de dispor de meos bens, na| forma da Constituição, e mais Leis| do Imperio, para depois de mi-|nha morte (1871)

(5)

Saibam quantos esta virem […] E pelo mesmo senhor Antonio Ribei-|ro de Morais […] foi-me dito, em lingua nacional, que deseja-|va fazer, como por este instrumento efetivamente faz|, o seu testamento, com as seguintes declarações e dis-|posições (1941)

No datatio, não há dúvida que se observa a expressão da relação de tempo, por exemplo, na especificação do ano de facção do testamento. Nos testamentos dos séculos XVIII a XX, essa parte do texto conta com a expressão de tempo por meio de locução preposicional: “no anno do” (1654, 1653, 1767), “no ano do” (1768), “no ano de” (1941, 1941). 11

“Veranlassung meint solche Gruppen wie im Namen von“ (Raible 1992: 13).

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306 Datatio no protocolo inicial (6)

sendo no anno do Nascimento |de nosso Senhor JESUS christo, de mil setecentos Setenta e sete|aos dezesete dias do mês de Janeyro do dito anno (1767)

(7)

em como no ano do nacimento| de Nosso Senhor JESUS christo de mil setecentoz e | Sincoenta e [corroído] aoz vinteeSete [dias] domez de Fevereiro [corroído] | ano (1768)

(8)

que aos trinta| (30) dias do mês de Agosto, do ano de mil novecentos e qua-|renta e um (1941)

(9)

que aos vinte e seis dias do mês de julho do ano de mil |novecentos e quarenta e um, da era Cristã (1941)

Como apontado acima, a arenga tem caráter justificativo e descritivo, apresentando as motivações do enunciador para a elaboração do testamento e sua situação de saúde. Uma tendência uniformizante nesse movimento de justificação e descrição de situação é a expressão das relações de causalidade e / ou modo: Arenga (10)

estan-|do em meu perfeito juízo eEntendimento que Nosso Senhor medeo, (1768)

(11)

Achan-|do- me em meo perfeito juízo, senhor de|mim, e de todas as potencias e | faculdades mentais, e com perfeito|conhecimento do que fazer (1870)

(12)

doente, deitado em uma ca-|ma, […] pelo12 acêrto| com que ditou suas declarações, e respondeu ás per-|guntas que lhe fizemos, em perfeita capacidade mental,| (1941)

(13)

temendo-me da morte, (1768)

(14)

porem temendo-|do me da morte como vivente (1767)

(15)

dezejando por minha alma | no caminho da Salvação (1767)

(16)

dezejando por minha alma no Caminho da | Salvasaõ (1768)

(17)

por não saber quando Deos será | servido levarme para Si (1767)

(18)

por naõ Saber oque Nosso Senhor de mim quer fazer, equando Serâ | Servido Levar-me para Si (1768)

12

No trecho “pelo acêrto| com que ditou suas declarações, e respondeu ás per-|guntas que lhe fizemos, em perfeita capacidade mental”, observa-se a expressão de conteúdo evidencial, dado que a observação de que o testador tem “perfeita capacidade mental” é fundamentada por meio da observação direta de fatos ditar declarações acertadamente e responder a perguntas).

Tradições discursivas, textuais e linguísticas

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Em nossos dados, observa-se que a expressão de causalidade e de modo, na arenga, ocorre predominantemente por meio de construções gerundiais (exemplos (34), (35), (38), (39), (40) e (41) acima). A fórmula “timens diem mortis meæ”, usada na arenga de testamentos latinos, por exemplo, contém o particípio presente do latim (“timens”) com caráter adjetival. No português arcaico, essa forma foi substituída por “tem̃ete”. As duas formas, particípio presente latino e gerúndio, compartilhavam alguns traços semânticos (concomitância temporal, modo, causa), contudo, o gerúndio suplantou o particípio presente, porque não desempenha somente uma função adjetiva, mas sempre adverbial (cf. Simões, 2007: 38). Na arenga dos testamentos analisados, a fórmula “temendo-me da morte” é uma resposta à tradição de justificar a facção do testamento e de narrar a situação do enunciador, em que, portanto, a expressão de circunstâncias desempenha um papel relevante. Nesse sentido, há na arenga, como unidade retórica justificativa, a preferência pela expressão de circunstância por meio de construções gerundiais, tais como “estando”, “achando”, “temendo” e “desejando”. No dispositio, que é o centro pragmático do testamento, encontramos diferentes tipos de convergências entre os grupos de testamentos, mais frequentemente entre os testamentos dos séculos XVIII e XIX. Como a parte mais autoral do formulário textual, é a menos formulaica e que mais está sujeita à variação. Nessa zona textual, observa-se a presença de fenômenos típicos da oralidade, tais como anáforas discursivas, mecanismos de reformulação, redobro sintático, falta de concordância, entre outros. Observem-se os seguintes exemplos: Anáfora discursiva (19)

Declaro que naõ devo | nada apessoa algũa, Salvo Se a contrair depois deste testa=|mento, aqual Se pagarâ. (Joana da Rocha 1768, Natal)

O exemplo (44) traz uma sintaxe incompleta, já que as formas “a” e “a qual” não retomam um antecedente explícito na superfície textual, mas um elemento linguístico que é resultado de uma inferência (“Não possuo dívida”). Mecanismos de reformulação (20)

Primeiramente en-|comendo a minha a Deos,| digo a minha Alma a Deos| que a criou […] (Felipa Rodrigues de Vasconcellos, 1865, Mipibu)

Nas dificuldades de produção retrospectivas, o emissor recorre a determinados procedimentos de correção ou reformulação, típicos das condições de produção da imediatez comunicativa (cf. Koch / Oesterreicher 2007 [1990]: 88). Essa reformulação retrospectiva é explicitada pelo item “digo” em (45), que introduz uma nova formulação da sentença anterior “encomendo a minha a Deos”, em que o item “alma” havia sido esquecido.

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Redobro13 (21)

[…] todos estes filhos e filhas casamos em sua vida della dita mulher. (Capitão Domingos Fernandes, 1652, São Paulo)

(22)

[…] naõ tendo filhos | vivos della, ou descendentes legítimos que sejaõ meos herdey-|ros necessários, como taobem naõ tendo querentes que | o sejaõ, e por isso nomeyo einstituo por minha universal | herdeyra a mesma minha mulher Donna Anna Ferrey-|ra da Sylva. (Pedro Tavares Romeyro, 1767, Natal)

(23)

[…] e posto que eu atrás digo que quando casaram lhes não dei nada comtudo faço declaração que Thomé Fernandes levou uma duzia de peças […] (Capitão Domingos Fernandes, 1652, São Paulo)

Por redobro entende-se que um sintagma X é retomado por um sintagma Y, correferencial ou cofuncional (cf. Castilho 2012: 271). Segundo Moraes de Castilho (2004: 56), o redobro ocorre quando uma dada função é preenchida mais de uma vez. Em (46), há o redobro dos pronomes possessivos “sua” / “della”, que tem por objetivo uma precisão semântica por meio de repetição da mesma classe. Já em (47), a expressão de causalidade é concretizada por meio da forma gerundial “tendo” bem como pela locução adverbial “por isso”. Algo análogo ocorre em (48), em que a expressão de oposição ocorre tanto por meio de “posto” quanto por meio de “comtudo”. Falta de concordância (24)

Declaro que a escrava| Maria, de idade de vinte e oito| annos, os escravos Diogo, de ida-|de de sete annos,Salustiano, de| idade de três, e Maria de ida-|de de dous annos, filhos daquel-|la escrava Maria, Alexandri|na, de idade de nove annos,Tho-|mazia, de idade de quarenta| e tres annos,criada, depois de| minha morte ficarão todos| libertos, como de livre nascessem,|gozando de sua liberdade, e o| meo testamenteiro lhe passa-|rá as suas cartas de liberdade (Felipa Rodrigues de Vasconcellos, 1865, Mipibu).

Koch / Oesterreicher (2007 [1990]: 121) afirmam que as condições de imediatez comunicativa ou oralidade, tais como privacidade, familiariedade, implicação emocional, espontaneidade, referência o aqui e agora, etc., possibilitam e favorecem uma formulação menos cuidada e, em consequência, mais tolerante com relação à concordância sintática. Dado que a testadora, D. Fellipa Vasconcellos, não sabia ler nem escrever (como consta em seu testamento), podemos supor que esse trecho do estabelecimento de seus legados 13

O redobro ocorre tanto em textos literários quanto não-literários do português medieval (cf. Moraes de Castilho 2005). Também no espanhol, até o século 18, esse fenômeno pode ser encontrado em textos da escrituralidade (cf. Saralegui 1992).

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foi por ela ditado ao Sr. Manoel Rolim – uma situação de produção que oferece restrições de planejamento do texto e favorece a ocorrência de faltas de concordância. Em (49), há falta de concordância de número da forma “lhe” (singular), que retoma “todos” (plural). Apesar de ser a zona textual menos formulaica, o dispositio contém, entre outras tradições, a distribuição dos legados a indivíduos, instituições ou grupos. Nesses legados, observa-se a recorrência de fórmulas como “declaro que deixo” ou “deiyxo que”. (25)

Deyxo | mais que se me digaõ por minha alma duas missas (1767)

(26)

Declaro que | sou natural dacidade de Olinda filho legitimo de | Antonio [Goncalvez] Romeyro e de sua mulher Donna | Antonia Thereza Tavarez ambos falecidos. (1767)

(27)

Declaro que deixo Se me-digaõ aoz Santoz assima | referidoz de minha devossaõ á cada um uma Missa com aesmo=|La de trezentos e vinte, que Se diraõ com brevidade. (1768)

Segundo Raible (1992: 22), a forma mais extrema de integração sintática reside no fato de que certas relações, especialmente importantes em uma língua, recebam o papel sintático de 1º, 2º e 3º actantes. A fórmula “declaro que” corresponde ao que Raible identifica como “orações objetivas” (“Objektsätze”, p. 104): trata-se de um estado de coisas encaixado em outro estado de coisas em que normalmente há um verbo de percepção sensorial,14 como é o caso dos verba dicendi. Em “declaro que”, teríamos, portanto, o verbo “declaro” como núcleo de um estado de coisas e a oração iniciada pelo transpositor “que” como o estado de coisas encaixado, isto é, como o segundo actante do estado de coisas superordenado “declaro”, em que o primeiro actante é o sujeito nulo. As relações semânticas expressas por meio dos papéis sintáticos de 1º e 2º actantes são as de causador (Verursacher), isto é, “sujeito de”, e causado (Verursachtes), isto é, “objeto de”. A representação de um estado de coisas com dois participantes é a estrutura mínima de junção (e a mais integrativa), a partir da qual todas as outras relações semânticas se organizam (cf. Raible 1992: 143). No corroboratio, identificam-se convergências do século XVIII ao XX, em função do caráter obrigatório das cláusulas finais, que garantem a validade do documento. O desejo do enunciador de que o testamento se cumpra é justificado predominantemente por meio da expressão de causalidade, como se verifica a seguir: (28)

14

e por quanto esta he minha ultima vontade do modo | que tenho dito, pesso as justiçaz de Sua Magestade fideli-|sima, Secularez e Eclesiazticaz, cumpraõ e fassaõ intey-|ramente cumprir, dentro de dous annoz, os

“[…] verba dicendi, sentiendi, sciendi, Verben der Sinneswarnehmung” (Raible 1992: 105).

310

Alessandra Castilho Ferreira da Costa quaiz [consedo] | aos ditoz meoz testamenteyroz, para darem Suaz Contaz| e por estas conforme este testamento (1767)

(29)

Eporquanto esta | é aminha ultima vontade do modo que tenho dito […] epor eu naõ Saber Ler nem escrever pedê á Paulo Coelho, que este por mim escrevesse, eameu| rogo assinasse (1768)

(30)

e depois de escripto e lido pelo|mesmo escriptor, por o achar con-|forme havia ditado, por não sa-|ber ler nem escrever, pedi a Ig-|nacio Garcia da Trindade, este por a meo rogo assignasse por ser es-|ta a minha unica e ultima vontade (1870)

(31)

E pôr esse mo-| do disse ele testador que havia por feitas suas declarações|testamentárias, manifestando sua última vontade. […] e a rogo do mesmo testador,| que por seu estado de doença, não pode escrever, (1941)

Observa-se acima que a expressão de causalidade é atualizada por meio de diferentes técnicas de integração sintática, tais como subordinação com “porquanto” e anteposição da subordinada e preposição simples “por” seguida de construção infinitiva. No caso da construção gerundial “manifestando”, há a expressão de consequência, dado que a manifestação de última vontade é efeito da causa (ter feito as disposições testamentárias). Essas técnicas correspondem aos níveis IV (subordinação), V (construções gerundiais e participiais) e VII (preposições simples) do contínuo de integração sintática proposto por Raible. Isso significa que são técnicas mais próximas do polo da integração sintática e que indicam maior sintonia do texto com a escrituralidade. Por fim, típico do escatocolo nos testamentos dos séculos XVIII a XIX é a expressão de motivo (Veranlassung) por meio do grupo preposicional “a rogo de”, quando o testador não pode ele mesmo assinar. Nesse caso, para que o documento não perca sua validade, é necessário que uma das testemunhas assine em lugar do testador e que o documento indique ser essa assinatura autorizada pelo próprio: (32)

nesta mesma Povoassaõ de Mopebú em | o dito dia mez, eano atraz declarado. = Assino a rogo de | Joana da Rocha, e como testemunha que o escrevi = | Paulo Coelho. = (1768)

(33)

Villa de Coité doze de | Novembro de mil oitocentos e set-|tenta= Arrogo da Testadora Anna| de Araujo Pereira = Francisco da Costa Cirne (1871)

(34)

Povoação de Santa Cruz dezesette de| Julho de mil oitocentos settenta=| Arogo do Testador Ignacio Jozé Rodrigues Cherein= Manoel | Timotheo Ferreira Lustoza= Como Tes-|temunha (1870)

As tendências de uniformização na utilização de técnicas de junção em diferentes zonas textuais dos testamentos (invocatio, notificatio, datatio, arenga,

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dispositio, corroboratio, escatocolo) permitem reconhecer pelo menos dois modelos textuais: o modelo Breve Aparelho e o modelo Tratado regular e prático. Os itens linguísticos, bem como as relações semânticas e as técnicas de integração sintática que constituem ambos os modelos são apresentados nas tabelas abaixo: Tabela 10: Itens linguísticos do modelo textual Breve Aparelho Modelo Breve Aparelho Unidade Retórica Invocatio

Notificatio Datatio

Arenga

Técnicas de Integração Sintática Grupo preposicional (VI) Advérbio Juntivo (II) Grupo preposicional (VI) Construção gerundial (V) Preposição simples + Inf.

Dispositio

Corroboratio

Escatocolo

Papel actancial (VIII) Preposição Simples + Inf. Subordinação (IV) Grupo preposicional (VI)

Relações Semânticas

Itens Linguísticos

Motivo

“em nome da”

Correspondência

“na forma seguinte”

Tempo

“no ano de”; “no anno do”; “no ano do”

Modo / Causa

“estando”, “temendo”; “desejando”; “dezejando”; “achando”

Causa Causadorcausado

“por” “declaro que”, “declara que”, “declarou que”

Causa

“por”

Causa

“por quanto”; “porquanto”

Motivo

“a rogo do”; “arogo do”; “arrogo da”; “a rogo de”

Alessandra Castilho Ferreira da Costa

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Tabela 11: Itens linguísticos do modelo textual Tratado regular e prático Modelo Tratado regular e prático Unidade Retórica Invocatio Notificatio Arenga Dispositio Corroboratio Escatocolo

Técnicas de Integração Sintática Grupo preposicional (VI) Grupo preposicional (VI) Subordinação Construção gerundial Preposição Simples + SN Grupo preposicional (VI)

Relações Semânticas Motivo

Itens Linguísticos

Temporal

“para depois de (minha morte)” “em cuja fé / religião protesto viver e morrer” “falecendo …, desejo ser sepultado” “por este testamento revogo …” “a rogo do”; “arogo do”; “arrogo da”; “a rogo de”

Campo de Influência Condicionalidade Instrumento Motivo

“em nome da”

O gráfico 1 a seguir mostra como os juntores típicos dos modelos BA e T se dividem entre os grupos de testamentos do nosso corpus: Percebemos três diferentes tendências entre as populações com relação ao uso dos juntores típicos de cada modelo. Nos testamentos do século XVIII, predominam os itens linguísticos do modelo Breve Aparelho, ao passo que nos testamentos do século XIX, os dois modelos, Breve Aparelho e Tratado regular e prático coexistem. Nos dados do século XX, há clara preferência pelos itens linguísticos do modelo Tratado regular e prático.

Gráfico 1: Distribuição dos juntores típicos dos modelos BA e T por século

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No gráfico 2 a seguir, verificamos como as relações semânticas de motivo, correspondência, tempo, causa, condicionalidade, instrumento e campo de influência (na terminologia de Raible, “Veranlassung”, “Zuordnung”, “Zeit”, “Ursache”, “Bedingung”, “Einflußbereich”) se distribuem nos três cortes diacrônicos:

Gráfico 2: Distribuição das relações semânticas de motivo, correspondência, tempo, causa, condicionalidade, instrumento e campo de influência pelo corpus

Com relação à distribuição das relações semânticas pelos grupos de testamentos, a principal diferença entre os 3 cortes reside na expressão de causalidade. Dado que a causalidade nos testamentos ocorre em grande parte na arenga de cunho religioso / soteriológico, pode-se entender por que sua distribuição é mais alta nos dados do século XVIII e se torna mais baixa nos dados do século XIX e XX: nos cortes posteriores, o modelo laico de testamento acaba por impor-se. Com relação à distribuição dos juntores típicos pelos graus de integração sintática, o seguinte gráfico mostra que a técnica de junção mais frequente em todos os três cortes é a subordinação.

Alessandra Castilho Ferreira da Costa

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Gráfico 3: Distribuição dos níveis de integração sintática dos juntores típicos pelo corpus

Outro aspecto relevante que o gráfico permite observar é que no geral o testamento se mostra como um gênero que dá preferência a técnicas mais integrativas, já que as técnicas mais agregativas como advérbios juntivos e coordenação têm pouca representatividade entre os juntores típicos. Também se pode observar que há uma certa tendência dos dados relativos aos séculos XIX e XX de apresentarem maior frequência no uso de grupos preposicionais e preposições simples, que são as técnicas mais integrativas do eixo sintático proposto por Raible. Nesse sentido, os dados relativos a esse período parecem se aproximar mais da distância comunicativa que os dados relativos ao século XVIII.

5

Considerações finais

Na análise apresentada, a hipótese de que diferentes filiações históricas dão preferência a diferentes técnicas de junção pôde ser comprovada por meio da identificação de duas diferentes filiações históricas em nossos dados: o modelo textual proposto pelo Breve Aparelho e aquele proposto pelo Tratado regular e prático. Com a identificação dos juntores típicos dessas duas tradições discursivas, pudemos reconhecer as famílias de textos internas ao nosso agrupamento de testamentos. Nesse sentido, o presente estudo corrobora a tese de Kabatek (2006) de que as técnicas de junção funcionam como sintomas de tradições discursivas.

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Com relação às variedades linguísticas empregadas nos dados analisados, observa-se nas partes mais formulaicas desses textos o uso de formulações que remetem a sincronias anteriores, como é o caso das convergências entre testamentos norte-rio-grandenses do século XVIII que atualizam o modelo do Breve Aparelho, elaborado no século XVII em português europeu. Ao mesmo tempo, nas partes menos formulaicas observou-se a influência de fenômenos típicos da oralidade e, portanto, do vernáculo da época. Assim, um mesmo texto apresenta aspectos linguísticos de diferentes sistemas e essa heterogeneidade interna deve ser considerada em estudos de mudança linguística. Na tarefa de identificar os entornos dos textos, entendemos que as relações de evocação que se estabelecem entre um determinado texto e outros textos anteriores são fundamentais para a compreensão do sentido desse texto. Uma análise preliminar de textos reguladores que estabelecem relações interdiscursivas com os exemplares de um determinado gênero e influenciam a adoção de determinadas formas linguísticas é, portanto, um procedimento hermenêutico para a pesquisa de textos de sincronias passadas. Buscamos apontar a relevância desse procedimento, destacando a influência de manuais de bem morrer e de tratados jurídicos na produção de testamentos norte-rio-grandenses dos séculos XVIII a XX. Referências Castilho, Ataliba Teixeira (2012). Nova Gramática do Português Brasileiro, São Paulo, Contexto. Castro, Estevam de (1677). Breve aparelho e modo fácil para ajudar a bem morrer um cristão, com a recopilação da matéria de tratamentos, e penitência, várias orações devotas, tiradas da Escritura Sagrada, e do Ritual Romano de N. S. P. Paulo V, acrescentada da devoção de várias missas, Lisboa, Ofcina Miguel Menescal. Kabatek, Johannes (2006). Tradições discursivas e mudança linguística, in: Lobo, Tânia (ed.), Para a Historia do Português Brasileiro VI, Salvador, EDUFBA, 505-527. Kabatek, Johannes (2008). Introducción, in: Kabatek, Johannes (ed.), Sintaxis histórica del español y cambio lingüístico. Nuevas perspectivas desde las Tradiciones Discursivas, Madrid, Iberoamericana / Vervuert, 7–16. Kabatek, Johannes (ed.) (2008). Sintaxis histórica del español y cambio lingüístico. Nuevas perspectivas desde las Tradiciones Discursivas, Madrid, Iberoamericana / Vervuert. Koch, Peter (1997). Diskurstraditionen: zu ihrem sprachtheoretischen Status und ihrer Dynamik, in: Frank, Barbara / Haye, Thomas / Tophinke, Doris (eds.), Gattungen mittelalterlicher Schriftlichkeit, Tübingen, Narr, 43–79. Koch, Peter / Oesterreicher, Wulf (1990). Gesprochene Sprache in der Romania: Französisch, Italienisch, Spanisch, Tübingen, Niemeyer. Koch, Peter / Oesterreicher, Wulf (2007 [1990]). Lengua hablada en la Romania: español, francés, italiano, versão espanhola de Araceli López Serena, Madrid, Gredos [Gesprochene Sprache in der Romania: Französisch, Italienisch, Spanisch, Tübingen, Niemeyer].

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