\" Pronto e imediato castigo \" : a propósito da correspondência administrativa relacionada à Conjuração Baiana de 1798

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"Pronto e imediato castigo": a propósito da correspondência administrativa relacionada à Conjuração Baiana de 1798
Gabriel de Abreu Machado Gaspar
Em meados de agosto de 1798, papéis manuscritos foram encontrados afixados em alguns pontos da cidade de Salvador. Continham palavras como povo, liberdade, deputados, republicano, e ordenavam ao "povo baiense" que realizasse uma "memorável revolução". Menos de dez anos depois da Revolução Francesa, tais ideias não podiam deixar de ser consideradas sediciosas e exigiam providências. A partir de ofícios trocados entre o governador da Bahia e o secretário de estado da marinha e do ultramar, este trabalho examinará as insinuações e tensões entre os dois, embora ambos insistissem em "pronto e imediato castigo" aos envolvidos no movimento.
Um dos boletins sediciosos encontrados em Salvador na manhã de 12 de agosto de 1798 afirmava "que está para chegar o tempo feliz da nossa liberdade, o tempo em que todos seremos irmãos, o tempo em que todos seremos iguais". Certo do caráter sedicioso de tais palavras, Fernando José de Portugal, o governador, mandou investigar a autoria dos papéis. Apesar disso, ele próprio decidiu comparar as letras dos pasquins com a de petições disponíveis na secretaria do governo. Foram encontradas semelhanças em duas petições do mulato Domingo da Silva Lisboa, que foi preso em 16 de agosto.
Não obstante, dias depois, 22 de agosto, dois outros boletins apareceram na Igreja do Convento do Carmo e se dirigiam ao governador e ao prior do Carmo. Um novo exame de verificação de letras foi feito e, em 23 de agosto, efetuou-se a prisão de Luiz Gonzaga das Virgens, homem pardo e soldado. Esta prisão gerou a organização de reunião no Campo do Dique do Desterro, em 25 de agosto. Convites foram feitos às mais diversas pessoas, e algumas delas delataram. No dia seguinte, d. Fernando designou o desembargador Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto a devassar tal matéria. Seguiram-se prisões, fugas, testemunhos e acareações.
Os acontecimentos acima só foram relatados a Lisboa em extensa carta do governador ao secretário Rodrigo de Sousa Coutinho, datada de 20 de outubro de 1798. Contudo, por outras vias, d. Rodrigo já havia sido informado sobre a situação na Bahia, onde "as pessoas principais desta cidade [...] se acham infectadas dos abomináveis princípios franceses e com grande afeição à [...] Constituição francesa". Pior, afirmava que a razão disso era a "frouxidão do governo e a corrupção da Relação". Em 28 de setembro, d. Rodrigo expôs novamente suas preocupações, pedindo que d. Fernando mantivesse sempre "os olhos abertos para impedir que de modo algum se espalhem e tome consciência opiniões contrárias à Religião e ao Estado". O ministro prosseguia afirmando ser necessário que o governador se mostrasse "disposto para usar da maior severidade contra toda e qualquer pessoa que se mostrar infecta de tais princípios, muito particularmente se for magistrado, militar ou comerciante". Além disso, complementava que era desejável que d. Fernando estivesse mais propenso a corrigir os erros que, "por benignidade de coração", perdoava em demasia, pois a "bondade de seu coração lhe encobre o vício dos outros". Ora, d. Rodrigo insinuava claramente a frouxidão com que o governador conduzia a administração régia na Bahia e responsabilizava, em alguma medida, esta falta de rigor pela tentativa de sedição de 1798.
Na extensa carta de 20 de outubro dirigida a d. Rodrigo, o governador narrava, pela primeira vez, suas decisões e atitudes diante dos episódios da Conjuração Baiana: as ordens para abertura de devassas, os exames para verificação de letras e as prisões dos suspeitos de sedição. No início de suas reflexões sobre a "projetada revolução", considerava que os papéis sediciosos eram "mal organizados, [...] atrevidos e descarados" e que, a partir da condição social dos presos, "homens pardos, de péssima conduta e faltos de religião", capacitava-se que não tinham participado nem "pessoas de consideração, nem de entendimento, ou que tivessem conhecimento e luzes". Além disso, afirmava que este "horroroso atentado", mesmo destituído "de meios, forças, armamentos e até de gente", podia causar uma desordem em toda a cidade. Contudo, muito mais do que a desordem momentânea, o que se devia recear, "num pais de conquista, de tanta escravatura e em tal época", era a ascensão da voz da liberdade.
Quanto à punição reservada aos envolvidos na Conjuração, d. Rodrigo e d. Fernando concordavam. Ao tratar mais amplamente dos "abomináveis princípios franceses", d. Rodrigo, como foi dito anteriormente, defendia o uso da "maior severidade" contra todos que se mostrassem infectados por tais princípios e enfatizava que o "castigo de todos os réus seja verdadeiramente exemplar e contenha semelhantes criminosos". Era opinião de d. Fernando que o delito de sedição pedia "pronto e imediato castigo", mas que era acertado aguardar a resolução de Sua Majestade. Entretanto, era necessário considerar que constavam no processo várias classes de réus, as quais ele dividia em: os cabeças da sedição; os que concordaram e convidaram outras pessoas; os que aceitaram tais convites e presenciaram as conversas sediciosas; os que não denunciaram após receberem convites; e aqueles que, cientes da sedição, não denunciaram, pois faltaram à "primeira e mais essencial obrigação de um vassalo". As penas impostas aos réus deviam respeitar tais "classes": uns mereciam a pena ordinária e capital; outros, degredo, por um número maior ou menor de anos, conforme sua participação; e outros, graus menores de castigo.
As cartas aqui analisadas trouxeram à luz a existência de certa tensão entre o ministro português, Rodrigo de Sousa Coutinho, e o governador da Bahia, Fernando José de Portugal, que foi caracterizado pela "frouxidão" de seu governo e pela sua enorme "bondade de coração", que fazia com que perdoasse facilmente os erros de seus subordinados. A despeito dessa caracterização, cabe destacar a percepção de d. Fernando sobre a "ascensão da voz da liberdade" num país de conquista, cuja população majoritária era escrava. Ele não deixava de ter razão, visto que, no início do século seguinte, a Bahia foi cenário de diversas rebeliões escravas.
Finalmente, a partir do estudo da documentação mencionada e da bibliografia consultada sobre a Conjuração Baiana, foi possível concluir que, apesar de ilustrados, d. Rodrigo e d. Fernando concordavam que os envolvidos na sedição deviam receber um "pronto e imediato castigo", que se fizesse, também, exemplar, para que fossem contidos os dotados de ideias semelhantes. Afinal, segundo o secretário, "prêmio e castigo são os dois polos sobre o que estriba toda a máquina política" e, naquele momento, "toda a vigilância contra os maus [era] indispensável e absolutamente necessária".
Foram os quatro homens pardos executados em 8 de novembro de 1799 que sentiram, verdadeiramente, na carne o que significavam tais palavras.



Graduando em História da Universidade Federal Fluminense. Desenvolve pesquisa sob orientação do Prof. Dr. Guilherme Pereira das Neves. Bolsista de iniciação científica (CNPq/PIBIC/UFF) vinculado a projeto coordenado pelo Prof. Dr. Luciano Raposo de Almeida Figueiredo. E-mail de contato: [email protected].


Os pasquins se encontram na seção história do Arquivo Público da Bahia e foram transcritos em: MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Presença francesa no Movimento Democrático Baiano de 1798. Salvador, Itapuã, 1969, p. 144-159 E em TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Sedição Intentada na Bahia em 1798. São Paulo, Pioneira; Brasília, INL, 1975, p. 22-32.
Os Ofícios estão transcritos nas Anotações de Braz do Amaral em SILVA, Ignacio Accioli de Cerqueira e. Memórias históricas e políticas da província da Bahia. Bahia, Imprensa Official do Estado, 1932, v. 3. Ofício de 28/09/1898, p. 134-135. Ofício de 04/10/1798, p. 95. Ofício de 20/10/1798, p. 121-125.
Boletim nº. 1. Transcrito em: MATTOSO, Presença..., p. 148.
A narração dos fatos que segue foi elaborada com base em TAVARES, História…, Caps. 2 e 3.
"Ofício de Rodrigo de Sousa Coutinho a Fernando José de Portugal e Castro de 4 de Outubro de 1798". Transcrito em ACCIOLI, Memórias..., p. 95.
Ibidem, p. 95.
"Ofício de Rodrigo de Sousa Coutinho a Fernando José de Portugal e Castro de 28 de Outubro de 1798". Transcrito em ACCIOLI, Memórias..., p. 135.
Ibidem, p. 135.
Ibidem, p. 135.
"Ofício de Fernando José de Portugal e Castro a Rodrigo de Sousa Coutinho de 20 de Outubro de 1798". Transcrito em ACCIOLI, Memórias..., p. 120-125.
Ibidem, p. 123.
Ibidem, p. 124.
Ibidem, p. 124
"Ofício de Rodrigo de Sousa Coutinho a Fernando José de Portugal e Castro de 4 de Outubro de 1798". Transcrito em ACCIOLI, Memórias..., p. 95.
Ibidem, p. 95.


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