\" Saturno devorando seu filho \" por Francisco de Goya
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Universidade Federal de Goiás Faculdade de Artes Visuais Artes Visuais 4º Período
Estética na Arte: “Saturno devorando seu filho” por Francisco de Goya Samuel de Jesus Manuela Thayse Costa Silva Goiânia 2016/1
Este trabalho aborda de forma analítica e crítica a obra de Francisco de Goya “Saturno devorando seu filho”. A pintura que está localizada no Museu do Prado na Espanha, foi concebida entre 1819 e 1823, suas dimensões são de 143,5 cm x 81,4 cm, foram utilizadas técnicas mistas sobre reboco transferido à lona originalmente a obra foi feita sobre uma das paredes da casa de Goya em Quinta del Sordo, e posteriormente foi transferida para o Museu do Prado. A pintura retrata uma passagem da mitologia grecoromana na qual Saturno, o deus do tempo e do universo também conhecido como Chronos devora um de seus filhos, uma vez que fora avisado por um oráculo que sua destruição viria através de um dos seus descendentes. Este trabalho aborda de forma analítica a obra “Saturno devorando seu filho” de Francisco de Goya, levantando influências na vida do autor que levaram ele a produzir uma obra tão diferente das convenções de seu tempo. Partindo de uma análise descritiva e interpretativa, individual em um primeiro momento, e também por meio de uma comparação visual com uma obra homônima, onde veremos as diferenças de suas propostas estéticas e conceituais. Uma reflexão abordará ainda como as ideias de Hegel em relação ao fim da arte podem ser vistas, partindo da produção artística de Goya. Analisaríamos com dificuldade qualquer obra de Goya sem antes nos ater ao contexto da época em ele que viveu e certos aspectos que ocorreram em sua vida. Nos encontramos em um cenário onde o pensamento iluminista já havia se espalhado pela Europa e o uso da razão começava a fazer seus primeiros feitos. Contudo tendo nascido em uma família modesta, em 1746 na cidade de Fuendetodos, na Espanha, Francisco de Goya y Lucientes, provavelmente não teria abraçado o iluminismo se não tivesse conquistado o cargo pintor da corte espanhola, onde integrouse à elite dos “esclarecidos”, sofrendo a influência dos membros adeptos às ideias iluministas. O uso da razão na construção lógica dos argumentos, pautadas na observação da realidade concreta, permitiu desde então a expressão dos pensamentos e opiniões individuais fora de uma influência clerical. Neste caso em particular o iluminismo proporcionou à Goya o desenvolvimento artístico próprio em paralelo às obrigações de pintor da corte e acadêmico:
“A revolução pictórica que se manifesta através da obra de Goya faz parte de um movimento que inclui o fortalecimento do espírito iluminista, a progressiva secularização dos países europeus, a Revolução Francesa e a crescente popularidade dos valores democráticos e liberais o pensamento iluminista influenciou ele a cultivar um modo de pensar próprio, em paralelo as exigências da vida cortesã” (TODOROV, 2014, p.13)
É substancial assinalarmos também a influência de uma passagem na vida de Goya que corroborou na formação de sua própria personalidade artística vanguardista, que anos antes Goya já desejava poder exprimir (e por vezes exprimia) em paralelo as obrigações da corte. Em 1792, Goya foi acometido por uma grave enfermidade durante uma viagem à Sevilha, que o deixou acamado por vários meses e permanentemente surdo. A surdez teve efeitos notáveis na vida de Goya, a perda da audição e os acontecimentos da Revolução Francesa o fez sofrer uma transformação mental: vendose isolado em um novo mundo silencioso, Goya se viu impelido a compenetrarse em seu interior, explorando a própria imaginação. “Sua maneira de pintar, mas também de se conduzir, tornase diferente” (TODOROV, 2014, p.38). Goya gradativamente se afasta da vida pública, deixa de atender encomendas, e começa a pintar a seu próprio gosto, “impelido unicamente pela necessidade interior, pela carência de expressão” (TODOROV, 2014, p.40). Entre 1797 e 1798 Goya faz uma série de 80 gravuras chamadas “Caprichos”, nelas estão impressos o florescimento da liberdade e da fantasia que ele ansiava expressar. A ruína das ideias iluministas com o ressurgimento de um poder centralizado na França na mão de Napoleão Bonaparte, e os conseguintes eventos truculentos na Espanha devidos à invasão francesa, despertou uma imensa desilusão em Goya em relação ao ser humano, entre 1810 e 1815 ele produz uma série de 80 gravuras retratando os horrores da guerra chamada “Os desastres da guerra”. Estes fatores contribuíram para a forma como Goya passou a se portar diante ao mundo, sua visão pessimista em relação a vida e as pessoas cooperaram para ele se reservar cada vez mais, e consequentemente, que se permitisse produzir artisticamente obras fora do convencionalismo acadêmico. Anos depois em 1819 Goya passa a viver em uma casa em Quinta del Sordo, onde até 1823 concebe “Saturno devorando seu filho” e mais quatorze obras que constituem uma série chamada “As pinturas Negras”. Estas pinturas foram feitas a partir de mescla de diversos
pigmentos com óleo, sobre o reboco da parede, evidências radiográficas sinalizam que Goya pintou sobre outras pinturas campestres que já estavam nas paredes. As pinturas foram assim batizadas devido ao forte carácter sombrio das cores bem como das temáticas trazidas por elas. Existem muitas especulações acerca das razões que levaram Goya ter realizado tais pinturas; aos 73 anos, a soma das enfermidades, a descrença no ser humano, e/ou simplesmente pela liberdade de criação artística que ele havia proporcionado a si mesmo são as justificativas mais coerentes. No caso de “Saturno devorando seu filho” veremos mais a frente uma analise mais minuciosa a cerca da temática escolhida por Goya e a visualidade tão brutal elegida por ele para retratar uma passagem mitológica. Em 1823, Goya se muda para França onde veio a falecer e deixa sua casa para seu neto Mariano Goya. As pinturas foram catalogadas em 1828 por Antônio Brugada, uma vez que o próprio Goya não havia intituladoas e nem havia dado um preparo e acabamento para virem a se tornar públicas. Somente em 1873 Frédéric Émile d'Erlanger, um banqueiro alemão custeou o resgate das obras comprando a propriedade de Goya permitindo que entre 1874 e 1878 as pinturas fossem transferidas para tela, por Salvador Martínez Cubell (restaurador) e posteriormente doadas para o Museu do Prado em 1881, onde se conservam até hoje.
“Saturno
devorando
seu
filho”
foi
originalmente pintada em uma das paredes do piso inferior da casa de Goya em Quinta del Sordo, medindo 143,5 cm x 81,4 cm, tratase de uma obra retangular, e relativamente grande. Como já foi citado anteriormente, foi feita com uma tinta a base óleo, tendo como suporte o reboco de uma parede. As cores predominantes nesta pintura, são de tons sombrios, o preto, o marrom, e os tons mais fechados de ocre e vermelho são notados. Cores mais claras, porém ainda sóbrias, são usadas para contrapor
a escuridão que o preto alude, elas são observadas nas partes mais protuberantes e no rosto de Saturno, e no corpo que ele segura. O tema da obra é uma passagem mitológica referente a Saturno, o deus do tempo e do universo ou Chronos para os gregos devorando um de seus filhos, uma vez que fora alertado por um oráculo que um de seus descendentes tentaria destituílo, o que por fim acontece com o nascimento de Júpiter. A obra retrata uma cena com dois personagens em uma composição mais vertical, tem um preenchimento que ocupa mais o plano esquerdo da composição. O uso das cores e da iluminação empregados na obra é semelhante à dramaticidade do claroescuro no barroco. A percepção dos planos se dá de duas maneiras: na primeira, a parte superior do quadro é bem definida, a figura pesada de Saturno surge bruscamente da escuridão evidenciando o fundo e o personagem; já na segunda, a parte inferior do quadro já é percebido uma transição bem gradual apesar do tratamento mais rústico que as pinceladas fortes conferiram de um fundo escuro para um plano posterior onde podemos ver que Saturno está ajoelhado em um chão, também não muito definido. Cronologicamente a obra foi produzida no período Romântico, neste período a arte começa traçar o início de uma ruptura a cerca da expressão artística e de liberdade de criação, dando voz aos artistas através da defesa e da busca do sublime na arte, contudo os cânones estéticos ainda eram respeitosamente cumpridos e que foram rompidos apenas anos mais tarde com os Impressionistas. Mesmo que o Romantismo estivesse marcando na modernidade uma busca por “novos ares” na arte, a vida e a produção artística de Goya é praticamente uma exceção para a época em que ele viveu, e por esta razão que esta obra e as outras que compõe seu acervo artístico pediram uma contextualização própria. O visionarismo de Goya, a desilusão com o ser humano, o horror com a guerra e principalmente a paralela liberdade criativa na produção artística, onde pôde expressar sua imaginação e suas avaliações a cerca dos acontecimentos que testemunhou na Espanha, fazem de Goya um homem a frente de seu tempo, uma vez que este tipo de expressão artística só começou a ser conferido décadas mais tarde com os modernistas. Goya foi não só um dos primeiros artistas a usarem a arte como linguagem para exprimir sua individualidade e suas visões do mundo, como também passou a buscar os próprios meios estilísticos para se expressar. Partindo deste ponto, é possível fazer uma avaliação estilística e icnográfica mais adequada de “Saturno devorando seu filho”.
A obra que é composta por cores escuras, recebeu um tratamento de pincelas fortes e bruscas, a figura retratada de Saturno não sofreu preocupações quanto adequações anatômicas e fisionômicas, menos ainda de se representar o “belo” renascentista, pelo contrário, o próprio tratamento rústico dado a obra contribuem para a figura grotesca de Saturno. Seus olhos esbugalhados, a postura corporal, a ferocidade canibalesca refletem um ser mergulhado na loucura e no desespero. Apesar de retratar uma passagem mitológica, Goya não buscou uma representação concreta, assim como, anos antes Peter Paul Rubens havia feito, e que inclusive inspirou Goya fazer a sua própria versão a dele é sobre a loucura, o valor do mito e do deus em si se perdem em meio a uma forte representatividade do terror e da violência que Goya testemunhou nas atrocidades humanas. O Saturno de Goya é pesado pois ali vemos o peso da loucura na violência pelo próprio ato de comer: mordendo, cravando os dentes, mastigando, degustando e digerindo a carne de seu filho, que a esta altura não passa de um cadáver indefeso, preso fortemente entre as mãos do pai. Apesar de tudo, os olhos arregalados trazem vagamente uma sensação de lucidez e culpa latentes em Saturno. A versão de Rubens de Saturno, feita em 1636, traz uma representação ilustrativa e descritiva do mito, assegurados de um personagem anatomicamente correto, onde uma composição, com suas devidas proporções, cores, e fisionomias foram minunciosamente projetadas e aplicadas tendo com base a estética clássica. Ainda que tenha uma carga de dramaticidade, reafirmada pelas expressões de domínio e sofrimento dos personagens, a pintura de Rubens, está muito aquém da brutalidade física e mental, que o Saturno de Goya transmite.
“A versão de Goya do mito, se é que tem qualquer relação com Saturno, não faz nenhuma provisão para nada, mas a loucura e a ferocidade. Embora as figuras de Rubens agem de forma dramaticamente convincente, em última análise racional, não há nada além do silêncio em Goya” (LITCH, 2001, p.220)
Não há evidencias que apontem um motivo concreto para que “Saturno devorando seu filho” fosse feito, uma vez que não fora encomendado por terceiros, e que não tivesse recebido tratamento para se tornar pública. Certamente Goya pintou este quadro e as outras Pinturas Negras seguindo a própria vontade e gosto; através de uma reflexão e expressão artística, assim como já havia começado a trabalhar desde que decidiu tomar uma vida mais reservada e se dedicar a própria arte. Quanto a escolha do tema há várias interpretações, é provável que ele não queria simplesmente ilustrar o mito em si, pois retratando com tanta ferocidade uma loucura canibal Goya poderia estar refletindo sobre o poder do estado espanhol sobre os próprios cidadãos, a violência e ambição humana que destrói a si mesma, e até mesmo retratando a impotência do ser humano a uma loucura latente. "Os seus demônios sãolhes familiares, como os monstros domesticados o são aos ilusionistas que o comandam; mas Goya sabe que só a ele o são e que podem, no entanto, fascinar qualquer pessoa..." (CHABRUN,1974,p.205). Entre 1873, o banqueiro alemão Frédéric Émile d'Erlanger, comprou a propriedade de Goya onde as “Pinturas Negras” estavam até então. Entre 1874 e 1878, as pinturas foram transferidas para lona, e em 1881 foram doadas ao Estado e entregues ao Museu do Prado, onde estão até hoje. O pioneirismo de Goya em relação a arte se deve a sua postura diante da mesma, em uma época em que não só havia um engessamento na criação artística, como também na variedade estética da representação, Goya conseguiu pensar a arte além de critérios acadêmicos, mais ainda, ele conseguiu ver na arte um meio de expressão, não só dos sentimentos, mais também de ideias, e de entendimento do mundo, que são observados pelos temas abordados em suas obras, e em como esteticamente ele traduzia isto. Em “Estética” de 1835, o filósofo George Willhelm Friedrich Hegel, defende a ideia de que a arte já não satisfaz mais as necessidades espirituais, uma vez que através do domínio do racíocinio pelo pensamentos e reflexões a cerca da arte que em partes constituí os estudos de estética ela já se esgotaria no que teria para oferecer: “Nós respeitamos a arte, nós a admiramos, apenas, nos não vemos mais nela alguma coisa que não poderia ser ultrapassada.”
(HEGEL, 2000, p.116). Hegel, condena a arte que até então ele conhecia, a arte clássica à “morte”. Isto sinaliza os ciclos de entendimento de estética que a arte sofreu, e que geralmente isso acontece por a ver um mal entendido quanto ao que é arte, ao que é estética e estilo. Goya anos antes já havia reinventado a arte, prenunciando que não tardaria muito a chegada da época em que a liberdade artística de criação, anunciada pelo Romantismo faria cair por terra o imbatível clacissismo. O fim que Hegel anuncia seria justamente o fim da Estética de uma arte embasada em um protocolo de regras acadêmicas, que já havia tornado as obras enfadonhas e completamente decifradas. A obra em si de Goya é excepcionalmente difícil de criar uma reflexão estética, pois estando a frente do seu tempo, elas não encaixam nas reflexões e preceitos de sua época e nem exatamente nas posteriores, uma vez que ao meu ver, escolhendo fazer o que “gostava” artisticamente Goya não foi apenas o primeiro expressionista, como visto por muitos, mas também foi o primeiro artista contemporâneo, que fazia a arte dele por livre escolha, e carregada de poética.
BIBLIOGRAFIA : CHABRUN, Jean Francois, Goya . (1974) LITCH, Fred. Goya ; (2001) Museo del Prado , disponível em: https://www.museodelprado.es/ MORGAN, Jay. The mystery of Goya’s Saturn . Disponível em: http://cat.middlebury.edu/~nereview/223/morgan.html SIMÃO, Mosi. Saturno devorando um filho . Disponível em: https://www.academia.edu/12844244/Saturno_Devorando_um_Filho__Goya TODOROV, Tzvetan. As sombras da luzes ; (2014) WEEMS, Eric, The Black Paintings Saturn, devouring his son . Disponivel em: http://eeweems.com/goya/saturn.html
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