“(...) se o tempo (...) não permittir toda esta disciplina satisfaça-se ao menos em se habilitar a Tropa o melhor que for possivel”: O TRACTADO de TACTICA de Manoel de Sampaio Coelho e Souza (1801)

August 17, 2017 | Autor: Joao Figueiroa-Rego | Categoria: Historia Militar
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João de Figueirôa-Rêgo Mestre em História Moderna Investigador integrado do CHAM. F.C.S.H. Univ. Nova de Lisboa

“(...) se o tempo (...) não permittir toda esta disciplina satisfaça-se ao menos em se habilitar a Tropa o melhor que for possivel”: O TRACTADO de TACTICA de Manoel de Sampaio Coelho e Souza (1801)

2005

Nota Prévia O relativismo de tratamento, em termos de discurso historiográfico, da “escrita da Guerra” em Portugal - enquanto nicho específico de Saber-, pouco terá contribuído para a percepção nítida do papel efectivamente desempenhado por diversos autores e tratadistas, ao longo de toda a idade moderna e contemporânea, na formação de uma consciência do fenómeno belicista em sí mesmo e da sua incidência no quotidiano civil e militar, quer a nível do pensamento quer do ponto de vista das práticas sociais. Em termos científico-académicos a ponte entre literatura militar e disciplina histórica só foi estabelecida, de modo claro, com o trabalho de síntese, em sede de doutoramento, recentemente (2000) dado à estampa por Rui Bebiano. Na introdução a essa sua obra, A Pena de Marte: Escrita da Guerra em Portugal e na Europa (sécs. XVI-XVIII), alude o autor à existência de «uma impressiva massa de documentação manuscrita, distribuída por peças de toda a qualidade, extensão e alcance» lembrando, a este propósito, os fundos minuciosamente inventariados pelo coronel Belisário Pimenta e reunidos no “Catalogo e sumário dos documentos de carácter militar existentes nos manuscritos da biblioteca da Universidade de Coimbra”. É, precisamente, com origem no referido fundo documental coimbrão que ora se traz a público um conjunto de reflexões com base num Tractado de Tactica, da autoria de Manoel de Sampaio Coelho e Sousa, por este dedicado ao marquês de Alorna. O manuscrito original, datado de 1801 e ainda inédito, suscitou a Belisário Pimenta o comentário de que «merece atenção este tratado pela clareza da exposição e pelo valor das opiniões apresentadas em quadra de tanta confusão de ideias». Efectivamente, muitos dos considerados estabelecidos por Manoel de Sampaio, antigo oficial de ordenanças, ao longo das 118 páginas que compôs, assumem um perfil de certa modernidade, tanto pela percepção que este autor teve do impacto psicológico da normativa disciplinadora na atitude marcial – enquanto crítico assumido da violência punitiva –, como pelas reflexões, até de pendor social e ideológico, que estabeleceu em torno da ciência e da arte militar. Esta, e a sua prática, constituíam no dizer daquele tratadista: -«hum dos primeiros ramos da felicidade dos Povos; ela sustenta a justiça, franqueia o uzo dos Direitos do Cidadão e conserva o equilibrio do Direito das Gentes».

PARTE I O AUTOR E A OBRA

1. O AUTOR: origem social e familiar Manuel de Sampaio Coelho e Sousa, de cujas circunstâncias pessoais pouco se conhece, terá nascido cerca de 1759 na cidade da Guarda, terra de onde os seus eram naturais e com geração conhecida desde o início do século XVII; dedução feita com base nos registos paroquiais porquanto não existem outras certezas. Na verdade, partindo do princípio de que um seu irmão e homónimo, cujo parto tivera lugar a 24 de Fevereiro de 1755, 1 tenha morrido de tenra idade, então, este outro Manuel, nascido a 5 de Outubro de 1759 e baptizado a 30 do mesmo mês e ano,2 tendo por padrinho Manuel Velho da Costa de Mesquita Castello Branco,3 será aquele que até nós chegou como autor do Tractado de Táctica. Ascendencia paterna Oitavo filho dos quinze havidos do casamento de Miguel António de Sampaio, capitão de infantaria auxiliar do terço da comarca da Guarda, e D. Mariana Joaquina de Sousa4 justificar-se-á, dada até a falta de outros elementos, percorrer-lhe a genealogia com vista a uma correcta aferição do estatuto social familiar e sua inserçã no contexto ecónomico e político da época, tentando entender as motivações de índole cultural, e outras, que terão animado a sua trajectória pessoal. Seu pai, que era filho do legítimo casamento de José Antunes de Sampaio, da Ramalhosa – termo da Guarda1

e de Isabel Gonçalves, esta «das familias mais

T.T. Registos Paroquiais/ concelho da Guarda, freguesia de Nª Sª do Mercado, Livro de Baptismos nº 1,

fl. 41v 2 3

idem, ibidem, fl. 80v. Filho do desembargador António Velho da Costa, familiar do S.O. e de D. Maria Josefa Bernarda

Borges de Mesquita Castello Branco e irmão do desembargador, alcaide-mor de Torres Novas e Sousel, do conselho real, deputado, chanceler e juiz dos feitos da Fazenda da Casa de Bragança, Francisco Feliciano Velho da Costa Borges de Mesquita Castello Branco, com. da o. de Cristo e moço-fid. da c.r.; cf. Manuel Inácio Pestana, “Processos de Padrões de Juros Reais (1704-1831)” in Genealogia & Heráldica, nºs 9/10, Jan-Dez. 2003, p. 271 4

Os respectivos assentos de baptismo de toda esta irmandade, alguns dos quais falecidos

precocemente, figura em idem, ibidem Fls. 11v, 30v, 41v, 54, 67,73, 80v, 91, 97v, 103, 116v, 125, 137v e 189 e Livro de Mistos nº 4, fl. 176 e 189. O casamento dos pais, que foi a 18 de Novembro de 1744 na Igreja de Nª Sª do Mercado, encontra-se registado em idem, ibidem fl. 104

bem reputadas desta freguezia sem que conste fossem plebeas»5, havia sido solenemente baptizado aos 8 de Dezembro de 1709 tendo por padrinho o cónego da Sé, Miguel Borges de Cerqueira6. O teor de um processo de habilitação para a ordem de Cristo, traça de Miguel António de Sampaio um perfil meramente assente em

pressupostos

“teórico-sociológicos”

inerentes

a

qualquer

provança

bem

sucedida: «homem nobre, cidadam desta cidade, [Guarda] capitam de infantaria auxiliar que se trata conforme as leys da nobreza com seos creados graves e de libré, cavallos e mais estado correspondente ao seu tratamento (...)», sendo os progenitores «as pessoas mais principaes daquelles logares, que vivem de suas fazendas e tem exercido os cargos honorificos dos cidadoens» 7. Para lá do linguarejar formal, quase burocrático, cujo alcance foi já tipificado por autores como Nuno Daupias d’Alcochete e, recentemente, Fernanda Olival, pouco mais nos precisa além da obtenção, em si mesma, da mercê do hábito. Detenhamo-nos, todavia, numa das ilações extraída por esta investigadora: «muito acentuada era também a diferença que se estabelecia entre os hábitos de Avis e Santiago, por um lado, e a Ordem de Cristo, por outro (...), os primeiros destinavam-se a gente não fidalga:”a soldados ordinarios que tenhão servido alguns annos cõ aSistencia e valor E que se poça esperar delles que Vão continuado o serviço ate que se poça esperar delles que Seião melhorados ao de Christo». Isto de acordo com o teor de umas “Advertencias pera se aver de votar no despacho de merces”, provavelmente redigidas no terceiro quartel do século XVII e que terão sido senão oficial, pelo menos, oficiosamente respeitadas até á introdução da reforma mariana das Três Ordens Militares, em 17898. Mas, mesmo esta não modificou alguns aspectos formais pois, segundo a mesma fonte, com base num alvará de 16 de Dezembro de 1790, era ainda o hábito de Aviz que, por norma, se atribuía a «todos os 5 6

T.T. Ordem de Cristo, Habilitações, maço 22, nº 1 – Francisco Coelho de Sousa de Sampaio T.T. Registos Paroquiais/ concelho da Guarda, freguesia da Faía, Livro de Mistos nº 4, fl. 27v. O

cónego, cuja genealogia se pode ver em Manuel José da Costa Felgueiras Gayo, Nobiliário das Famílias de Portugal, (2ª ed.) Braga, Carvalhos de Basto, 1989, IV vol. tomo XI, Cerqueiras, p. [366], era tio por afinidade do mestre-de-campo Agostinho José Velho de Mesquita, cav. da o. Cristo e fid. da casa real (alvará de 7 de Abril de 1755- cf. João Carlos Feo Cardoso Castello Branco, Diccionario Aristocratico, tomo I [e único] Lisboa, Imprensa Nacional, 1840, pp. 13/4, que juntamente com seus pais, o desembargador António Velho da Costa, fid. c.r. e cav. o.Cristo e D. Maria Josefa Bernarda Borges de Mesquita Castello Branco surge entre os padrinhos dos filhos do capitão Miguel António de Sampaio. Sobre estes membros da família Velho da Costa Mesquita Castello Branco veja-se, Manuel Inácio Pestana, “Processos de Padrões de Juros Reais (...)” ob. cit, p. 272 7 8

T.T. Ordem de Cristo, Habilitações, maço 22, nº 1 – Francisco Coelho de Sousa de Sampaio Fernanda Olival, As Ordens Militares e o Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal

(1641-1789), Lisboa, Estar, 2001, p.141

Capitães, que contarem vinte annos de serviços effectivo nas Minhas Tropas, com boas informações dos seus Chefes»9. Elucidativo e concludente, pelo menos quanto à relação directa que estabelece com a afirmação de Fernanda Olival e com o teor das Advertencias, é o documento que fixa a concessão do referido hábito no qual se diz textualmente: «Sua Magestade tendo atenção aos serviços obrados do d[it]o Miguel Antonio de Sampayo obrados no posto de capp[it]am de inf[antari]a auxiliar do terço da com[ar]ca da d[it]a cidade da Guarda, por mais de 24 a[nnos] contados de 7 de Jan[ei]ro de 1754 athé 23 de Junho do prez[en]te anno, sempre com bom procedimento servindo em todas as occaziões q[ue] se lhe offereceraõ durante a guerra proxima passada com promptidaõ, zello e prestimo: em satisfação de tudo houve por bem fazerlhe a m[er]cê do habito da Ordem de Christo e 40$[ooo] res de tença effectiva(..)»10. Que esta geração dos Sampaio, e reportando-nos ao referido processo de habilitação, detinha já certa proeminência e consideração social parece evidente, até por um pormenor com a sua importância: a qualidade de parte das testemunhas que vieram depor em abono da família do habilitado. No caso, dois fidalgos da casa real, um dos quais coudel e superintendente da criação de cavalos da comarca,11 um cavaleiro da ordem de Cristo também ele filho e neto de fidalgos da casa e futuro fidalgo com honras de exercício no paço 12, um sargento-mor e um capitão-mor, ambos de ordenanças, dois cónegos da Sé de Viseu, um licenciado e dois priores, além de vários outros de menor representação, todavia, não menos concordantes na resposta dada aos quesitos processuais sobre as qualidades e boa reputação dos investigados. Do mesmo modo, o círculo de sociabilidade em que estes se movimentavam e que incluia, por exemplo, a família Velho da Costa de Mequita Castello Branco, estirpe de fidalgos, desembargadores e conselheiros de Estado e do Ultramar, com quem mantiveram, ao longo de três gerações, próximidade visível - patente, até, a nível de certas coincidências senão mesmo cumplicidades- parece confirmar esta 9

T.T. Miscelanea de Nossa Senhora da Graça de Lisboa, tomo 7D, Cx. 1, p. 300, citado in idem, ibidem,

p.142 10

Este hábito viria a efectivar-se, por indicação do agraciado, na pessoa de um seu filho, o doutor

Francisco Coelho de Sousa e Sampaio, cf. T.T., Mercês de D. Maria I, Livro 5, fl. 135 e Chancelaria de D. Maria I, Livro 12, fl. 154 11

respectivamente Jerónimo Bernardo de Vasconcellos Ozório e Castro e António Manoel das Povoas de

Brito

e

Marecos,

veja-se

para

este,

João

Carlos

Feo

Cardoso

Castello

Branco,

Diccionario

Aristocratico....p. 190. 12

Balthazar Freire Cortez da Fonseca Ozório, para os alvarás respectivos veja-se idem, ibidem, p. 290

dedução.

O á-vontade financeiro com que terão vivido já que, na sua maioria,

morreram deixando testamento,

com bens patrimoniais, legados pios, etc.

permitiram, ainda, custear estudos superiores a vários dos seus membros. Esse desafogo, que radicaria numa posse de terra já ancestral, e a possível vontade de fixação social num patamar de maior visibilidade, haviam levado, na primeira metade do século anterior, a que António Antunes da Fonseca, da Ramalhosa, fosse estudar a terras andaluzas tendo morrido, ainda estudante, em Sevilha, no hospital del Amor de Díos a 29 de Março de 1631, com testamento feito no qual mandava que se rezassem vários ofícios «por seus pais nos altares perveligiados» 13. Não seria, porém, o único da família a pretender trocar o grangeio das terras, destino anónimo ainda que de alguma eficácia nos resultados, pelo manuseio dos livros ao abrigo de uma escolaridade universitária propiciadora de maiores ambições.

Esta

trajectória ascencional, afinal semelhante a muitas do setecentismo português, assente em bases fundiárias e refundida pelo serviço das armas e pelo exercicio da alta magistratrura projecta-los-ia, em três gerações, de proprietários fundiários, com limpeza de sangue, cidadania reconhecida e inserção nos meios de governança local, a cavaleiros da ordem de Cristo, fidalgos da Casa Real e por fim moçosfidalgos com exercício no Paço14, além do sonoro estatuto de ministros da Relação detentores de carta de Conselho. Ascendencia materna Sobre a linha genealógica materna poderemos acrescentar que D. Maria Joaquina de Sousa, - o dona, que não figura nos registos paroquiais de baptismo de seus filhos, é-lhe atribuído em vários documentos oficiais- surge-nos como oriunda «de bom tronco, sem infamia de qualidade alguma, bem reputados que nam consta que por modo algum vivessem abatidos os seus assendentes ou desendentes, nem de tal ha rumor algum»15, por filha de António Coelho de Sousa, natural de Viseu, «homem de bem, rico e abonado que vivia de suas fazendas e negocio de sobrado» e de Catarina de Sousa. Aliás os nomes dos procuradores dos padrinhos, que no

13 14

cf. T.T. Registos Paroquiais, Concelho da Guarda, freguesia da Faia, Livro de Mistos nº 2, fl. 173 Ainda que este grau fosse tecnicamente inferior ao de fidalgo-cavaleiro era o mais cobiçado, como

decorrencia do referido exercício no paço. Por outro lado sendo, vulgarmente, de sucessão induzia a ideia de nobreza antiga e reputada; veja-se a este propósito o que diz Luís da Silva Pereira e Oliveira, Privilégios da Nobreza e Fidalguia de Portugal, 1ª ed. Lisboa, officina de João Rodrigues Neves, 1806, p. 230, nº VIII, depois confirmado por Manuel José da Costa Felgueiras Gayo, Nobiliário das Famílias de Portugal, (2ª ed.) Braga, Carvalhos de Basto, vol. I, tomo I, p. 14. 15

T.T. Ordem de Cristo, Habilitações, maço 22, nº 1 – Francisco Coelho de Sousa de Sampaio

acto de baptismo do segundo filho do capitão Miguel António de Sampaio assim se fizeram representar, deixam adivinhar parentesco próximo com a mulher deste último, tal o caso do reverendo padre José Coelho de Sousa e do doutor Miguel Coelho de Sousa16, Seria, portanto, de acordo com a ambígua terminologia e á luz da prática tratadistica, tanto nobiliárquica como jurídica17, gente no limiar de uma nobreza, senão de sangue, pelo menos civil, letrada e sem exercício mecânico conhecido. A tribo .... Da irmandade resultante do casamento do capitão Miguel de Sampaio, havida entre os anos de 1746 e 1772 e na qual a maioria eram senhoras, não iremos seguir todos os percursos, tanto, por manifesta dificuldade prática, como por que que isso fugiria ao âmbito do presente estudo. Interessará, tão somente, enquadrar o autor do Tractado de Táctica no contexto das carreiras seguidas pelos restantes filhos varões sondando eventuais influências. Se, como é sabido, á época as opções de vida não divergiam muito, variando entre a gestão e sucessão nos bens patrimoniais –para o primeiro varão- e as carreiras eclesiástica, das armas, ou das letras para os restantes, também aqui o panorama não se prefigurava de outro modo. Assim, sabemos que dos varões sobrevivos: a) Francisco José Coelho de Sousa e Sampaio, fidalgo-cavaleiro da casa real18, enveredou pelo ensino universitário, como lente de direito em Coimbra, responsável pela cadeira de História do Direito Civil Romano e Pátrio 19, exercendo em paridade a alta magistratura nos lugares de desembargador da casa da Suplicação20, dos Agravos21, juiz dos Feitos da Coroa e Fazenda 22 e desembargador do Paço23, com carta de Conselho24, depois reformado com honras de ministro de Estado; 16

cf. T.T.Registos Paroquiais, Concelho da Guarda, freguesia de Nª Sª do Mercado, Livro dos baptismos

nº 1, fl. 11v. 17

Veja-se Luís da Silva Pereira e Oliveira, Privilégios da Nobreza e Fidalguia de Portugal......primeira

parte, capítulos V, VII, VIII, IX, X e XII 18 19

Alvará de 29 de Agosto de 1821, T.T. Mordomia-Mor da Casa Real, Livro 25, fl. 34, nº 197 nomeado por carta régia de 24 de Julho de 1804

20

por carta régia de 3 de Dezembro de 1801, cf. T.T. Chancelaria de D. Maria I, Livro 65, fl. 252

21

por carta régia de 4 de Agosto de 1803, cf. T.T. Chancelaria de D. João VI, Livro 8, fl. 221v

22

por carta régia de 29 de Dezembro de 1815, cf. T.T. Chancelaria de D. João VI, Livro 22, fl. 67

23

por carta régia de 30 de Julho de 1821, cf. TT. Chancelaria de D. João VI, Livro 35, fl. 209

24

por carta régia de 20 de Novembro de 1821, cf. T.T. Chancelaria de D. João VI, Livro 34, fl. 269v

b) Agostinho António de Sampaio Coelho e Sousa, «que havia servido no posto de alferes de infantaria auxiliar da com[ar]ca da d[it]a cid[ad]e [Guarda]», reformarse-á em 1793 como capitão do terço auxiliar da mesma comarca «com suas honras e privelegios»25, «tendo S[ua] Mag[estad]e consideração e em remuneração do serv[iss]o obrado nos d[it]os postos» feito a mercê «de o tomar por escudeiro fidalgo de sua Caza (...) e juntamente o acrescenta logo a cavall[ei]ro fidalgo della»26; c) José de Sampaio Coelho e Sousa, que no baptismo recebera por padrinhos o tenente-general José Joaquim de Miranda Henriques Leitão de Pina e Melo e sua mulher a condessa da Ponte, D. Ana Joaquina de Lencastre27, era em 1794 quartanista de direito canónico, na Universidade de Coimbra 28, tendo ascendido, depois, a cónego prebendado e doutoral da Sé da Guarda29; d) António José de Sampaio, que igualmente seguiu a carreira eclesiástica figurando com a designação de «reverendo arcediago» no assento de baptismo de um sobrinho, Miguel de Sampaio30, filho precisamente do nosso tratadista, e, por fim: e) Manuel de Sampaio Coelho e Sousa, o qual «por hum natural amor à tropa miliciana»31, segundo ele mesmo confessa, nela se alistou exercendo, então, as funções de major do regimento em que tinha «a honra e a glória de servir a Sua alteza»32. A geração sucedânea, embora confirmando a dicotomia entre as armas e as letras que em certa altura parece ter sido apanágio da família, virá a acentuar uma cada vez mais notória tendência pelo exercício da magistratura. Assim, dois dos filhos do lente Francisco de Sousa e Sampaio, João Henriques Coelho de Sousa e Sampaio –

25

Catálogo dos Decretos do Extinto Conselho de Guerra, dec.nº 96, de 1 de Julho de 1793

26

Alvará de 23 de Abril de 1793, cf. T.T. Mordomia-Mor da Casa Real, Livro 24, fl. 91, nº 62

27

T.T. Registos Paroquiais, Concelho da Guarda, Freguesia de Nª Sª do Mercado, Livro dos Baptismos nº

1, fl.137v. 28

cf. Actas do Conselho de Decanos (1772- 1820), Coimbra, Arquivo da Universidade, 1984, vol. I, p.

255 29

É nessa qualidade que apadrinha o baptismo de dois sobrinhos netos, Francisco Coelho de Sampaio,

em 1827 e José Freire de Brito, em 1830, cf. respectivamente T.T. Registos Paroquiais, Concelho de Castelo Branco, freguesia de S. Vicente da Beira, Livro de Baptismos nº 11 (anos de 1822-1841), fl. 89v, e idem, Concelho da Guarda, Freguesia de Nª Sª do Mercado, Livro dos Baptismos nº 2, fl. 57v. 30

T.T. Registos Paroquiais, Concelho da Guarda, freguesia de Nª Sª do Mercado, Livro de Baptismos nº

2, fl. 4 31

B.G.U.C., Reservados, Ms. 1221 (Tractado de Tactica), fl. [IV]

32

Idem, ibidem, fl. 8

D.Pedro José Vito de Menezes Coutinho, 6º marquês de Marialva,8º conde de Cantanhede afilhado de baptismo do 6º marquês de Marialva, D.Pedro José de Menezes Coutinho, 8º conde de Cantanhede- e Francisco Coelho de Sousa e Sampaio, ambos moços-fidalgos da casa real33, seguiram essa carreira. O primeiro, como corregedor da comarca de Arganil34 e desembargador da Relação do Porto35, o segundo como juíz de direito em várias comarcas

36

razão, pela qual, veio a receber o hábito de

Cristo em reconhecimento dos serviços prestados à Coroa. Já Joaquim de Sampaio Coelho e Sousa, cavaleiro-fidalgo por sucessão a seu pai37, o capitão Agostinho de Sampaio, foi tenente do regimento de infantaria nº 6 e nesse posto servia quando, em 15 de Abril de 1829, «veio preso de Cabeceiras de Basto – em 23 de Setembro de 1829 foi-lhe negado o Indulto de 18 de Junho de 1828- Em 19 de Outubro de 1831 foi removido para as cadeas de Almeida por ordem da Alçada»38, conforme consta na Collecção de Listas que contém os nomes 33

Alvarás de 14 de Novembro de 1821, cf. T.T. Mordomia-Mor da Casa Real, Livro 25, fls. 95, nºs 28 e

83 34

veja-se T.T. Chancelaria de D. Pedro IV, Livro 16, fl. 201v

35

carta régia (D. Isabel, infanta regente), de 17 de Janeiro de 1828, cf. T.T. Chancelaria de D. Pedro IV,

Livro 5, fl. 337v 36

Havia-se habilitado para ler no Desembargo do Paço, com 22 anos de idade, sendo as provanças

vistas e aprovadas em 18 de Setembro de 1824; cf. T.T. Leitura de Bacharéis, maço 25, nº 18; juiz de fora de S. Vicente da Beira, por carta régia de 12 de Setembro de 1825, cf. T.T. Chancelaria de D. João VI, Livro 43, fl. 265; juíz de fora de Algozo, idem de 8 de Maio de 1833, cf. T.T. Chancelaria de D. Pedro IV, Livro 21, fl. 238; delegado do procurador régio em Estremoz; cf. Diário do Governo , Anno 1841, numero 21, segunda-feira 25 de Janeiro (Secretaria de Estado dos Negocios Eclesiasticos e de Justiça); etc, etc. 37

Alvará de 7 de Maio de 1798, cf. T.T. Mordomia-Mor da Casa Real, Livro 24, fl 120v, nº 271

38

Segundo consta de um «Livro de Assentos referente aos presos que entraram nas prisões militares do

Governo da Praça de Almeida entre 27 de Agosto de 1828 e 31 de Outubro de 1833», o «ex-tenente

das pessoas, que ficarão pronunciadas nas devassas, e summarios a que mandou proceder o Governo Usurpador depois da heroica contra-revolução, que arrebentou na mui nobre, e leal Cidade do Porto em 16 de Maio de 1828, nas quaes se faz menção do destino, que a Alçada, creada pelo mesmo Governo para as julgar, deu a cada uma dellas» tal o prolixo título conferido, pelo bacharel Pedro da Fonseca Serrão Velozo, a esta relação «offerecida e dedicada a S.M.I. o grande e immortal Duque de Bragança, regente em nome de S.M.F. a Senhora D. Maria II, Rainha Reinante (...)»39. Igualmente juíz de direito viria a ser Francisco Coelho de Sousa e Sampaio Telles de Menezes, cavaleiro da ordem de Cristo40, filho do doutor Francisco Nunes Telles de Menezes, juíz de fora da «Serenissima Caza do Infantado» 41, cunhado do tratadista, como marido que foi de D. Ana Joaquina de Sampaio Coelho e Sousa. Os casamentos efectuados por toda esta prole confirmaram a trajectória social iniciada um século antes e a plena inserção, primeiro, na nobreza dita de toga42 e, depois, numa fidalguia provincial, próxima de meios cortesãos. É através do assento de baptismo de um filho do pouco conhecido tratadista militar que ficamos a saber que este terá sido casado com D. Antónia Peregrina da Costa, filha de José Bernardo da Costa, da praça de Almeida e ai secretário do governo das Armas da provincia43, e de D. Maria Vitória da Fonseca; pormenor

Joaquim de Sampaio Coelho, natural da Guarda» terá dado entrada no presídio a 29-10-1831 - mandado assinado pelo presidente da Alçada do Porto - por culpa de rebelião; apud José Vilhena de Carvalho, Almeida: Subsidios para a sua história, Viseu, 1973, vol. II, pp. 108/9 39

Porto, typographia de viuva Alvares Ribeiro & filhos, 1833

40

T.T. Leitura de Bacharéis, maço 26, nº 28 (Francisco Coelho de Sousa de Sampaio Telles e Menezes),

e T.T. Chancelaria de D. Pedro IV, Livro 14, fl. 163v. 41

Almanach para o anno de MDCCLXXXV, Lisboa, na officina da Acad. Real das Sciencias, p. 197( juizes

de fóra na Serenissima Caza do Infantado- Ovar: Francisco Nunes Tello de Menezes- 17 de janeiro de 1781). «Os juízes de Fora foram criados aqui [Ovar] por Alvará de 10 de Abril de 1780, sendo o primeiro o Bacharel Francisco Nunes Telles de Meneses, juíz de segunda entrança, segundo o costume (...) O juíz de Fora era Presidente nato da Câmara, Juiz dos Orfãos e dos Direitos Reais, a quem substituía o Vereador mais velho, Juíz pela Ordenação (...) Tendo o Juíz de Fora, que criou o lugar, obtido uma Provisão para ele e seus sucessores de 40$000 réis para aposentadoria havida pelos rendimentos do Concelho (...)». Cf. João Frederico Teixeira de Pinho, Memórias e Datas para a história da Vila de Ovar, prefácio, revisão e notas de Mons. Miguel de Oliveira, Ovar, Câmara Municipal, 1959, pp. 48/9 42

Veja-se a árvore genealógica no termo desta parte I

43

A.H.M.-Catálogo dos Decretos do extinto Conselho de Guerra- Reinado de D.José (Agosto de 1750 a

24 de Fevereiro de 1777) – Ano 1764-Maço 123- Dezembro, nº 192-dia 6-«Nomeando secretário do governo das armas da provincia da Beira, o oficial, que tinha pertencido à Vedoria da mesma província Joseph Bernardo da Costa»

curioso: para padrinho do neófito44 foi escolhido o sogro de seu irmão o desembargador Francisco Coelho de Sampaio, João Henriques de Castro, riquissímo capitão-mor de Cantanhede, cavaleiro da ordem de Cristo45, superintendente das coudelarias de Coimbra e ferrenho seguidor de D. Miguel46, em cujo palácio, daquela vila, se aquartelou em 1809 o general Wellington, com todo o seu estadomaior, no decurso das invasões francesas47.

Sir Arthur Wellesley, Duque de Wellington João Henriques de Castro que era, como se disse, capitão-mor de Cantanhede, desde 1792, cabendo-lhe a patente de coronel e o foro de cavaleiro-fidalgo - sendo depois, por inerência, graduado no posto de brigadeiro na sequência do decreto real de 11 de Dezembro de 1808- comandava a brigada composta pelas capitaniasmores de ordenanças de Ançã, Tentugal e Recardães e um efectivo superior a 1.700 homens48. Anos antes, desempenhara as funções de capitão-mor desta

44

T.T. Registos Paroquiais, Concelho da Guarda, freguesia de Nª Sª do Mercado, Livro de Baptismos nº

2, fl. 4 45

com 12$ooo rs. de tença, cf. T.T. Habilitações da O. Cristo, maço 55, nº7, letra J

46

Pinho Leal chega até a referi-lo como “mártir” da causa alegando, sem razão, que o capitão « morreu

preso em 1822, pelo crime de não querer jurar a Constituição», cf. Portugal Antigo e Moderno, 1ª ed., 1876, vol. VII, pp. 171/2 47

Conforme se lê numa lápide aposta numa das fachadas laterais «da mais importante casa nobre» de

Cantanhede, cf. Pedro Pereira e J.V. da Silva Dias, Cantanhede, a terra e suas gentes, 1983, p. 53, hoje pertença do munícipio local aí se encontrando actualmente instalados os serviços culturais da autarquia, bem como o Museu da Pedra. Wellington ali deverá ter permanecido entre 2 de Maio, altura em que fora recebido com festas e luminárias na cidade de Coimbra, e o dia 9 desse mês, ocasião em que, em Águeda, se separou do general Beresford – que se dirigia a Amarante- rumando à cidade do Porto para pôr cobro ao domínio de Soult sobre a Invicta; cf. Carlos Selvagem, Portugal Militar, ed. 1931, p. 510 48

Viriato de Sá Fragozo, Cantanhede:Subsídios para a sua história, Coimbra, Coimbra Editora, 1960, p.

69

última companhia, e suas anexas,49 da qual seu pai Miguel Henriques de Castro, familiar do Sto. Ofício,50 havia sido sargento-mor.51

Cantanhede, Palácio do Capitão-Môr (Século XVIII) Mandado levantar por João Henriques de Castro

Para além do óbvio contra-parentesco existente, terá sido este um dos aspectos que reforçou a intenção de Manuel de Sampaio de escolher Henriques de Castro para padrinho de seu filho, ou seja, a inserção numa rede de solidariedade e sociabilidade inerente ao serviço de milícias por eles praticado? Ou ter-se-á tratado, simplesmente, de escolha ditada por razões de carácter financeiro tendo em conta a enorme fortuna do capitão-môr e o grande prestígio de que gozava?

49

T.T.Conselho de Guerra, Decretos, maço 137, nº 100

50

T.T. Santo Ofício, habilitações de genere, maço 9, diligência nº 157

51

Conforme se lê na sua petição de renúncia, deferida por carta régia de 6 de Outubro de 1776, idem,

ibidem, maço 136, nº 145 e na carta régia de nomeação do filho, cf. idem, ibidem, maço 136, nº 176. De João Henriques era irmão o desembargador dos Agravos, José de Castro Henriques, (Almanach para o anno de MDCCLXXXV, Lisboa, na officina da Acad. Real das Sciencias, p. 133) e sobrinho o igualmente desembargador Francisco de Castro Henriques.

GENEALOGIA simplificada, da Família S.PAYO, da Guarda depois COELHO DE SAMPAYO, de Cantanhede Manuel de S.Payo c. em 1624 com Isabel Antunes  António Antunes de S.Payo, m. 1700, c.c. Maria Gonçalves, m. 1716  Manuel Coelho de Sousa, de Viseu  José Antunes de S.Payo, c. em 1702 c. Isabel Gonçalves António Coelho de Sousa, n. Viseu   «homem de bem, rico e abonado» Miguel Antunes de S.Payo, c. em 1744 c. D.Mariana Joaquina de Sousa (capitão, cav. O.Cristo)

__________________________________________________________________________       Francisco D. Ana de S.Payo Coelho c.c. de Souza Francisco Nunes e S.Payo Telles de Menezes desemb.  (juíz de fora) fid.c.r. Francisco Coelho cons.Estado de Sousa e S.Payo c.c. Telles de Menezes D.Gertrudes Juíz, cav.O. Cristo Henriques de Castro (filha do capitão-mor de Cantanhede, brigadeiro João Henriques de Castro,  cav. ordem de Cristo)

Agostinho António de S.Payo de S.Payo C. e Souza C.e Souza capitão arcediago cav.fid.c.r. c.c. D.Ana Teodora Freire de Brito Leitão e Souza

Manuel de S.Payo C.e Souza major de milicias c.c. D.Antónia Peregrina da Costa  filha de José Bernardo da Costa, oficial e secretário do governo das Armas da Beira



1) Joaquim de S.Payo Coelho e Souza tenente de infantaria, cav.fid. c.r. 2) Agostinho de S.Payo Coelho e Sousa cav.fidalgo c.r. 3) D.Maria do Carmo de S.Payo e Sousa c.c. seu primo direito Simão Freire de Brito, c.g.

_______________________________________________  João Henriques Coelho de Souza e S.Payo moço-fidalgo, desembargador

c.c.

D.Maria do Carmo de Sousa Freire Palyart Serrão Diniz (açafata da rainha)



José S.Payo Coelho e Souza cónego doutoral da Sé da Guarda



Francisco Coelho de Souza e S.Payo moço-fidalgo, juíz de direito, cav.O.Cristo casou 3 vezes: 1º c.c. D.Maria Caetana de Sousa Freire Palyart Serrão Diniz (açafata da Rainha) c.g. Pereira Forjaz de Sampayo (depois entroncada na ger. do 3º c.) 2º c.c. D.Maria da Soledad Pessoa y Saenz de Vidaoure c.g. s.m.n.

1) António Serrão Diniz Coelho de Sampayo desembargador/ cons. de Estado/ moço-fidalgo 2) D. Maria da Conceição de Sousa e Sampayo c.c. João Maria Infante de La Cerda de Magalhães Coutinho (filho de Alexandre de Magalhães Coutinho, moço-fidalgo, D.Maria Carlota Infante de La Cerda de Souza Tavares  (açafata da rainha), filhos: 1)D.Maria Carlota Serrão de Sampayo Infante de Magalhães 2)Nuno de Magalhães Coutinho (coronel) 3)Alexandre de Magalhães Coutinho

3º c.c. D. Maria Madalena Pinheiro Forte de Oliveira, (irmã d baronesa do Tojal) c.g.: Coelho de Sampayo Macedo Pinto Vasconcellos Sousa Castro e Mello Vasconcellos de Brito e Cunha Themudo Magalhães e Vasconcellos Sottomayor e Vasconcellos Vasconcellos Bessa Castro de Sampayo Corte-Real Sampayo Corte-Real d’Athayde Coelho de Sampayo Pereira Forjaz de Sampayo Juzarte Sardinha Coelho d Sampayo Nunes de Vellez Coelho de Sampayo Sampayo e Serpa Coelho de Sampayo Teixeira Ribeiro Cabral Moncada Coelho de Sampayo Sampayo Tavares de Andrade Sampayo Toscano d Albuquerque Toscano d Albuquerq. Pinto d Souto Toscano Homem de Sá Navarro Homem de Sá Coelho de Sampayo Motta N.Elyseu Sampayo Elyseu Cinatti Silva Elyseu de Faria Nunes Sampayo Elyseu de Miranda Calás Sampayo Elyseu de Figueirôa-Rêgo Vaz Monteiro de Figueirôa-Rêgo Serpa e Sousa P. de Figueirôa-Rêgo

2. A OBRA: ASPECTOS DE CRITÍCA EXTERNA E INTERNA

O Tractado de Tactica,

52

tal como até nós chegou, consta de um volume manuscrito,

in-8º, de [VII]-118 pp. com encadernação inteira de carneira, bem conservado e de acessível e regular lição caligráfica, apresentando esta um traçado gráfico com ligeiro descaimento para a dextra, sem rasuras ou entrelinhados, e recurso frequente a abreviaturas. O estilo literário e a estrutura gramatical revelam algumas fraquezas, ainda que no primeiro caso aceitáveis, devidas em parte ao perfil da obra que o autor pretendia fosse de divulgação. Aliás, ciente da fragilidade, ele mesmo se apressa na justificação com que fecha o Prologo: «o seu Auctor – escreve- hé desculpavel nos erros, pois q[ue] sem os prelamines necessarios, sem eschola, e sem ensino, por huma natural força se conduzio; elle procurou a linguagem e expressaõ mais clara, e adequada áquelles para q[ue]m escrevia»53. Em torno da dedicatória A carta-dedicatória que antecede o corpus tratadistico, é dirigida ao «Illustrissimo e Excelentissimo Senhor D. Pedro de Almeida Portugal». Trata-se, naturalmente, do 3º marquês de Alorna título de que

o mesmo,

alegadamente, só teria feito uso apenas no ano seguinte, 1802, dai o não ser ainda designado como tal. Esta é, pelo menos, a razão invocada pelo coronel Belisário Pimenta,54 mas que não estará correcta, porque em carta patente, «dada no Quartel General dos Exercitos da Beira, em Castelobranco, aos déz dias do méz de Março: Anno (...) de mil oitocentos e hum», D.Pedro, faz uso dos seus títulos e qualidades: «Marquêz d’Alorna, Conde d’ Assumar, Vedor da Caza Real, Marechal de Campo dos Exercitos do Principe Meu Senhor, Chefe da Legião de Tropas Ligeiras, General da Provincia, e Exercito da Beira &»,55 aliás, desse mesmo ano e mês existe um fundo epistolográfico, referente ao plano para defesa da fronteira entre o Tejo e o Douro, em que também assim se faz chamar56. Nem de outro modo podia ser, a existência de documentos muito anteriores comprova que fazia uso do título desde, pelo menos, 1796, altura em que subscreve um Projecto de formação da Legião de Tropas Ligeiras assinando desse modo. Recorde-se que a carta-dedicatória está datada da Guarda, aos 3 de Setembro de 1801, pelo que o motivo da omissão do título terá de ser justificado por outra razão que não essa.

52

B.G.U.C., Reservados, Ms. 1221, doravante citado como Tractado (...)

53

idem, ibidem, fl.[VI]

54

cf. “Catálogo e Sumário dos documentos de carácter militar existentes nos Mss. da Biblioteca da

Universidade de Coimbra”, in Boletim Arquivo Histórico Militar.......p. 205 55

Cf.

56

Cf. “Plano e disposições para a deffesa da fronteira entre o Tejo e o Douro, des Villa Velha até ao Escalhão,

pelo Marechal de Campo Marquez de Alorna – datado de 26 de Março de 1801” in Boletim do Arquivo Histórico Militar, 18º vol. Vila Nova de Famalicão, 1948, p 79 e ss.

D.Pedro de Almeida Portugal 3º marquês de Alorna 6º conde de Assumar A dedicatória a Alorna, radicará em dois pressupostos de natureza complementar: primeiro, o facto do marechal ser General da Provincia e Exercito da Beira, logo superior hierárquico de Manuel de Sampaio, cujas funções na tropa de milícias da cidade da Guarda o colocavam sob sua alçada directa, aliás, abra-se um parentesis para registar que no plano de defesa atrás citado e correspondência inclusa aparecem registados com algum detalhe aspectos militares respeitantes à cidade da Guarda; segu(i)ndo, um indesmentível interesse por parte do marquês em obras de teor militar 57

de que ele próprio era, também, autor. Na verdade, as suas Reflecçoens sobre o

Systema Economico do Exercito, datadas de 1799, não só revelavam uma faceta mais original da escrita da guerra, como visavam «uma redefinição do sentido organizativo e das práticas do exercito português».

58

Quanto à data, em que Sampaio deu por findo o trabalho e o dedicou, importará referir um ou dois aspectos mais salientes. Em primeiro lugar, e recorrendo a uma terminologia em voga, foi uma espécie de ano horribilis do exército português – o general Ferreira Martins referir-se-lhe-ía mesmo como «a derrocada de 1801»

– já

59

que, a 27 de Fevereiro, se dera a declaração formal de guerra contra Portugal, por inspiração francesa e cumplicidade espanhola, na sequência da não aceitação, pelo governo português, das condições impostas pelo ultimato de 29 de Janeiro anterior que impunha o nosso rompimento com a tradicional aliança inglesa. Situação para a qual não estavamos devidamente preparados, sobretudo, tendo em conta a exiguidade das forças militares disponíveis e a realidade dos efectivos espanhóis que se cifrariam em mais de 67.000 homens dispersos em diferentes núcleos fronteiriços. O resultado da 57

Refira-se, a propósito, que a livraria de seu avô, o 1º marquês de Alorna, que como sucessor da casa

deverá ter herdado, regista no seu inventário mais de setenta e cinco volumes dedicados à arte da guerra que, provavelmente, contribuiram para a formação de D. Pedro de Almeida; cf. Manuel Artur Norton, D. Pedro Miguel de Almeida Portugal, Lisboa, Agência-geral do Ultramar, 1967, p. 204 58

cf. Rui Bebiano, A Pena de Marte: Escrita da guerra em Portugal e na Europa (sécs. XVI-XVIII), Coimbra,

Minerva, 2000, p. 438 59

História do Exército Português, Lisboa, Inquérito, 1945, p. 207

desastrosa campanha subsequente determinaria, entre outras coisas, a perda de Olivença. Curiosamente, por decreto de 1 de Julho de 1800, procedera-se à contratação de um general da escola de Federico, o conde de Goltz, que recebera a patente de marechal do exército português. Todavia, tendo ficado sob as ordens do duque de Lafões este terá recusado a transmissão de certos poderes e competências ao oficial prussiano, pelo que se gorou a expectativa da sua participação na campanha de 1801. Goltz, porém, viria a proceder a uma inspecção militar de âmbito geral de que elaboraria extenso e pouco abonatório relato oficial –misericordiosamente desaparecido do arquivo onde esteve guardado – ordenando, ainda, que se restabelecessem os regulamentos do conde de Lippe, enquanto se não promulgassem novos decretos. Segundo Ferreira Martins, que neste passo acompanhamos, tal facto valeu a Goltz incompatibilidades e inimizades originando o seu voluntário abandono do exército, e do país, em Junho de 1802

.

60

É, pois, num contexto que tem como pano de fundo a intriga e inaptidão, no meio castrense, que surge a obra de Sampaio. Das possiveis fontes....ás fontes possíveis As fontes usadas por um autor revelam muito da preocupação que este possa ter tido na preparação do seu texto; sobretudo quando o mesmo pressuponha imperativos de ordem doutrinária, ou pretenda “fazer escola” enquanto manual de uso corrente. Tal o caso deste Tractado Militar em cuja fábrica se terão gasto muitas horas de trabalho e que constituiu um verdadeiro desafio para o autor que nele queria ver «a ambição de uma vida». A busca de critérios de cientificidade é patente quer no uso de notas de rodapé, com que se procura subsidiar o edifício teórico, quer na alusão explicíta á quantidade de estudos exigidos pela Arte Militar

61

e, consequentemente, a

quem sobre ela pretendesse reflectir. Em tom incisivo, Manuel de Sampaio, explicita: «E depois de hum official ter estudado tantos, e taõ sublimes Auctores quantos saõ aquelles q[ue] fazem hum completo curso de estudos militares em Tactica, merecerá elle por ventura já o nome de official benemerito? Certamente naõ; ainda lhe restaõ aquelles conhecimentos q[ue] completamente o devem caracterizar (..)».62 E, mais adiante, fazendo a apologia da leitura, reforça o tom:« Para partes sublimes da arte militar e para os seus grandes detalhes hé preciza e necessaria a theoria pois hum official só pela pratica pode de alguma sorte conduzir–se em tudo o q[ue] diz respeito ao pequeno detalhe, mas em o sublime da guerra elle deve ver-se reduzido á impossibilidade de dar hum só passo: assim a theoria hé quem deve dar a maõ á pratica, sem aqual esta naõ hé mais q[ue] hum caminho escuro e cheio de precipicios».63 Porém, convicto de que nem todos teriam a mesma capacidade de digerir uma quantidade “honesta” de leitura formativa sempre vai, á laía de recomendação, deixando cair:-«Seria bem util aos nossos Officiaes terem ao menos a

60

idem, pp. 210/1

61

Tractado(...), fl. 3

62

idem, ibidem, fl. 6

63

idem, ibidem, fl. 7

instrucçaõ dirigida aos Officiaes de infantaria por Fr.de Gaudi traduzida no nosso idioma por Luis Carlos de Clavier»64. Essa

preocupação

com

os

saberes

teóricos,

veiculados

por

uma

literatura

especializada, não é ideia original. Muitos outros autores, haviam expressado o mesmo ponto de vista e idêntica preocupação65. Entre esses o conde de Schaumbourg-Lippe, que em 1773 havia composto umas Memoires sur les Exercices de Meditation Militaire, vertida e impressa em língua portuguesa alguns anos depois.66 Nesse texto, o reorganizador do exército português, tece algumas considerações a propósito: «a leitura- escreve Lippe- serve para formar-se o espírito militar e prover-se de

ideias:

por

ela

se

enriquece

com

as

luzes,

e

com

a

experiência

dos

outros».67Animado pela justeza dessa convicção, o conde enumera as principais obras que, em seu entender, melhor poderiam servir o processo formativo dos militares, mas, entre essas não refere a obra de Gaudi, muito menos a versão traduzida por Claviére, datada de 1781.

64

idem, ibidem, fl. 15. O título da obra era: Instrucção dirigida aos officiaes de infanteria, para saberem

delinear e construir toda a qualidade de obras de campanha, e para saberem pôr em estado de defensa diversos pequenos Postos, como são os Cemiterios, Igrejas, Palacios, Cidades, Vilas e Aldeias Por F. de Gaudi, Tenente-coronel no serviço de Sua Magestade Prussiana, que traduziu agora na língua Portugueza e dedica a Sua Alteza Real o Serenissimo Principe do Brazil, Luiz Carlos de Claviere, Sargento Mor da Praça de Almeida (...), Lisboa, off. de Francisco Luis Ameno, MDCCLXXXI 65

Veja-se, por exemplo, os conselhos dados pelo marquês de Santa Cruz de Marcenedo:«nada te instruye

tanto como leer libros (...) es el consejo de los libros más agradable que los hombres». Este autor ía ao ponto de sugerir a aprendizagem de várias línguas, pois, além de outras vantagens práticas traziam «con ellas la comodidad de leer libros originales

(...) que traducidos, pierden siempre de su fuerza, y a veces de su

verdad».(Reflexiones Militares, libro 1º, Capítulo IX, X, XII, apud Margarita Gil Muñoz, Perfil Humano de la Oficialidad en el contexto de la Ilustracion, Madrid, Ministerio de Defensa, 1995, p. 109. De acordo com esta fonte a preocupação com a leitura encontrava-se bem patente quer na obra de vários tratadistas (cita, a propósito, Clemente Peñalosa y Zuniga, Vicente Garcia de la Huerta, etc) quer no incremento dado às academias militares para que se dotassem de bibliotecas, (J. de la Llave, La enseñanza militar en España,

e

Mª Dolores Herrero, La enseñanza militar ilustrada) ,apud ibidem. 66

Wilhelm de Schaumburg-Lippe, Memoria sobre os exercicios de Meditação Militar para se remeter aos

Senhores Generaes, e Governadores de provincias, a fim de se distribuir aos Senhores Chefes dos Regimentos dos Exercitos de S. Magestade, Lisboa, off. de João António da Sylva, 1782 67

idem, ibidem, p. 4

Sua Alteza Ilustrissima O conde-reinante Willelm von Sachaumbourg-Lippe Marechal-general do exército de S.M.Fidelissima Poder-se-á, então, estranhar o porquê da opção de Sampaio por Gaudi, em detrimento daquela que, no caso, seria uma mais do que provável escolha, enquanto síntese orientadora, ou seja, o livro de Lippe. Tanto pelo inegável prestígio de que este antigo general gozava ainda no subconsciente castrense, dada a profunda reforma que empreendera no exército, como pela actualidade dos livros por si indicados cuja autoridade

se

garantia

ainda

muitos

anos

depois

nas

academias

militares 68.

Impensável é, por outro lado, que Sampaio ignorasse a produção “Lippeana”, ou, que conhecendo-a a não frequentasse, tanto mais que o nosso tratadista era um indefectível da linha prussiana, escola a que o antigo marechal pertencia. Registe-se, aliás, o tom triunfalista que Sampaio adopta no passo seguinte: «O Rei da Prussia, este sabio Monarca, este Heroe, este a quem todos os Militares tem a gloria de respeitar como seu Mestre tem feito ver e reconhecer o seu Reino pela primeira Potencia Militar, e sua sciencia e talentos Militares tem produzido huma das épocas mais celebres da Tactica»69. Um autêntico arauto....carregando troféus.

68

veja-se o que diz Rui Bebiano, A Pena de Marte....ob.cit. p. 435

69

Tractado (...), fl. 2

Frederico II Rei da Prússia Significativamente, o preferido Gaudi, «tenente-coronel ao serviço de Sua Magestade Prussiana», apresentava-se traduzido por Claviére, ao tempo Sargento-mor de Almeida, praça militar onde o sogro de Sampaio, José Bernardo da Costa, assistira na qualidade de secretario do governo das Armas da Provincia, tendo servido durante o governo do general MacLean, e no exercício de cuja função não só assinara um importante contrato de fornecimento para a guarnição, em Julho de 1768

, como terá conhecido o conde

70

de Lippe que ali se deslocara em Fevereiro desse ano71. Mas, para lá dessas possíveis razões de empatia, talvez a obra de Gaudi, tendo em conta a respectiva Taboa de Materias, fosse mais adequada á tropa de milícias a que Sampaio se dirigia

. Terá sido, crê-se, uma opção mais do tipo pragmático que

72

norteou a postura teórica de Sampaio. Lembremos, a propósito, Fernando de Salas López quando referindo-se à adopção pelos exercitos reais setecentistas de uma nova táctica – cujo modelo fora bebido em Frederico- e que implicava uma preparação e instrucção complexas regista que, face a isso, os entusiastas «ciudadanos- soldados, generalmente con somera instruccíon, no podían asimilar las tácticas prusianas en escaso tiempo (...)»73. Uma vez que o Tractado pretendia ser, como se disse, obra de divulgação, portanto dirigida a um público que ainda que específico era lato, abrangendo pessoas de 70 71

Cf. José Vilhena de Carvalho, Almeida: Subsidios para a sua história, Viseu, 1973, vol. I, p. 333 e ss. Lippe ficou de tal modo bem impressionado com o que viu naquela praça que fez publicar em Ordem do

Dia, «as expressões da sua viva satisfação (...) pelos grandes progressos que fizeram em consequência da aplicação em todos os pontos do serviço e da disciplina militar», etc. Cf. ibidem, p. 331. 72

A taboa das materias tratadas nesta obra indica uma clara especialização orientada para trabalhos de

campo auxiliares da acção militar como por exemplo: construção de trincheiras, defesa de casas isoladas, fortificações de campanha, protecção de aldeias, vilas, cemitérios, etc. 73

Fernando de Salas López, Ordenanzas Militares en España e HispanoAmérica, Madrid, Fundacíon Mapfre,

1992, p. 59

diferente alfabetização, Sampaio evitou correr riscos não sobrecarregando o texto com pesada erudição nem indicações bibliográficas maciças deixando apenas, de onde em onde, uma citação tirada de autor(es) cuja autoridade sanciona, e uma ou outra menção avulsa a obras, porventura, de maior acessibilidade quer quanto á consulta, quer quanto ao conteúdo, ou mesmo por que estivessem mais em voga. É neste último campo que se impõe ainda uma ressalva: apesar do prestígio obtido na esfera governativa, a acção reformadora de Lippe encontrara resistências entre uma oficialidade pesadamente tradicionalista e após o seu desaparecimento o fantasma do permissivismo de épocas anteriores voltara, trazendo consigo alguma regressão, o que, desde logo, poderia implicar desânimo ante a perspectiva de ter de fazer certo tipo de leituras, recorde-se, aliás, o episódio Goltz como sintomático da existência de certas “forças de bloqueio” no meio militar português. O que não impede, como é óbvio, que a lição de Lippe tenha sido aproveitada por Sampaio tanto mais que, segundo parecer de um investigador,«apesar de não haver menção expressa ao tipo de escola disciplinar implantada em Portugal, conhecendo os regulamentos disciplinares Britânico e Prussiano da época, estamos em crer que Lippe em Portugal, aplicou o sistema inglês em detrimento do prussiano»74. Se tal suposição se confirmar virá, decerto, em reforço de um princípio de não incompatibilidade entre a admiração votada por Sampaio ao rei Frederico, e à escola prussiana, em paridade com a doutrina de Lippe e sua indexação a outros critérios e escolas. Mas, para lá de uma subliminar influência de índole “lippeana” em alguns conteúdos do Tractado, tópico que adiante se retomará, nada nos leva a poder fixar com rigor as fontes de que Manuel de Sampaio se terá socorrido para lá, obviamente, daquelas que ele especificamente indica. Todavia, o número crescente de obras de teor militar, se bem que nem todas corressem impressas e com igual capacidade de circulação entre o meio castrense, era, á época, uma realidade insofismável que nos vem facilitar a pesquisa. Ainda que, e segundo Rui Bebiano, pouco inovadoras e «de carácter vincadamente técnico»75, surgiram no último quartel do século XVIII algumas obras que, não obstante certo passadismo na concepção de arte militar, poderão ter servido de referencial dado o carácter mais ou menos didáctico que as caracterizava. De entre essas, cita Bebiano, «o grosso Tractado de Tactica (1787) de Luís de Oliveira Osório, que, apesar de longo, em nada inova»76. Ora se, por um lado, não temos prova consistente de que a maioria desses livros possa ter tido lugar na formação de Manuel de Sampaio, a verdade é que quanto a este título já nos parece justificável a suposição. E isto, porque o teor do assento de baptismo de um dos seus irmãos – os arquivos paroquiais têem destas surpresas- indica como padrinho o desembargador António Velho da Costa «Fidalgo da Casa de Sua Magestade» que não podendo estar presente passou «procuraçam a Luís 74

Duarte Quirino Pacheco de Souza, “Algumas observações à obra do conde de Lippe em Portugal”, in VIII

Colóquio da Comissão de História Militar, “Preparação e Formação Militar em Portugal”, (Actas), Lisboa, C.P.H.M., 1997, p.254 75

A Pena de Marte.....ob.cit., p. 437

76

idem, ibidem

de Oliveira da Costa de Almeida Ozorio»77 para que este o pudesse representar. Tratase, precisamente, do mesmissimo autor da tal obra de 1787 - a que Sampaio parece ter “pedido” parcialmente emprestado o título -78, que além de fidalgo da casa real e cav. da o. de Cristo serviu como brigadeiro dos reais exercitos vindo mais tarde a governar as Armas do Porto, posto em que se encontrava quando, em 1809, acusado de Jacobinismo

sucumbiu

ao

furor

da

populaça,

durante

os

acontecimentos

que

precederam a 2ª invasão francesa. A relação de sociabilidade entre as duas famílias, cuja probabilidade passa ainda por outros indícios79, autoriza a supor que Sampaio tenha, portanto, conhecido e, talvez aproveitado, a obra de Almeida Osório. No Diccionário Bibliographico...de Inocencio, é levantada a hipótese da obra de Osório, ter conhecido uma 2ª edição, já em 1801, o que a confirmar-se traduziria o interesse que despertara no público alvo; porém, nessa mesma entrada, põe-se a questão de ser duvidosa quer a edição quer a data apontada para tal

. Será que, dada

80

a similitude de títulos e a coincidência do ano indicado, o bibliografo não teria sido induzido em erro face ao manuscrito de Manuel de Sampaio de cuja existência poderia ter sido informado por um dos seus correspondentes provinciais? É que ele próprio não sabe explicar o porquê de, em volume prévio, ter inserido essa nota 81. Outro dos autores a que Sampaio terá recorrido na sua, autodidacta, formação e de que deixou breve apontamento foi «Mr. Bottée Militar de huma grande experiencia, e que adquirio a maior e mais consumada reputação»82. Este, que escrevera e publicara em Paris, chez Nuyon, no ano de 1750, um volume de Études Militaires. Contenant l’exercice de l’ infanterie, de que não temos indicação haja sido objecto de qualquer tradução

para

português,

vem

nesse

contexto



importância

e

utilidade

da

contramarcha - acompanhado por uma referência a Mr. de Bombelles:[que] «hé deste mesmo sentimento», acrescentando, sem especificar: «Muitos A[utores] fazem muito cazo» dessa evolução. O conde Henri François de Bombelles, era autor de um, na tradução assim designado, Tratado das Evoluçoens Militares, dado à estampa na oficina de Francisco Luiz Ameno, em 1761, no qual se descrevia com grande minúcia «uma das principais partes de que se compõem a disciplina militar» e as várias particularidades 77

T.T.Registos Paroquiais, Concelho da Guarda, freguesia de Nª Sª do Mercado, Livro de Mistos nº4, fl. 176

78

Luís de Oliveira da Costa de Almeida Ozorio, Tractado de tactica dirigido a instruir os officiaes novos e

cadetes de infanteria e cavallaria.Dividido em tres partes, Lisboa, Off. de Francisco Luis Ameno, 1787 79

A proximidade geográfica de ambas as famílias, por exemplo, afigura-se como reforço desta ideia, veja-se

nesse tocante alguns elementos extraídos de um Alvará de Approvação e Confirmação,: « Eu a Rainha faço saber (...) que tendo respeito ao que me representou Simão de Oliveira da Costa Osorio, Fidalgo da Minha Casa, morador na cidade da Guarda: e sendo-Me presente o beneficio, que tem resultado da Fabrica da Seda, que á sua custa fez erigir, havendo-se determinado com despeza, e fadiga a plantar grande número de Amoreiras em huma sua quinta, chamada da Lâmeda, situada nas margens do rio Mondego, procurando com zelo o bem da mesma cultura (...) Hei por bem, que o sobredito Simão de Oliveira da Costa Osorio possa com preferencia tomar de arrendamento as Coutadas do Lugar da Ramalhosa (....) Dado no Palacio de Nossa Senhora da Ajuda em 8 de Janeiro de 1791 (....)»; cf. Antonio Delgado da Silva, Collecção da Legislação Portugueza, Legislação de 1791 a 1801, Lisboa, na Typographia Maigrense, Anno de 1828, p. 1 80

Diccionário Bibliographico.....1ª ed tomo V, p. 311

81

idem, tomo XVI, p. 55

82

Tractado (...), fl. 72, nota (b)

do chamado «passo militar». Temas igualmente glosados por Sampaio e em que se torna visível a influência tanto de Bombelles como de outros autores de eleição. Mas, diga-se em abono da verdade, o tratadista português evidencia especificidades no seu discurso, por exemplo em termos de preocupação humanista, que transcendem a leitura simples, ou acéfela, dos originais em que se inspira. Vejamos: enquanto Bombelles enfatiza a necessidade da evolução ser entendida como um factor propiciador de disciplina, porque é ela que ensina os soldados «a executarem os seus mandamentos com atenção e obediência»83; Sampaio, ainda que reconhecendo-lhe a importância: «são as evoluções manobras mui necessarias, sem ellas huma Tropa não será mais que huma maça sem movimento», suaviza e vai recomendando que «ellas devem ser reduzidas a hum pequeno numero, e sómente se devem praticar as necessarias por não fatigar o soldado»84. Quanto ao «passo militar», Bombelles precisa com exactidão os movimentos dos pés, a sua cadência e amplitude, tudo em perfeita sincronia com o toque de compasso marcado pelas baquetas no tambor, devendo o soldado, de cabeça erguida, apresentar «os joelhos e pernas bem estendidos, a ponta dos pés baixa, e lançada para a parte de fora».

Sampaio, porém, anota: «Deve ensinar-se o Soldado a postar-se unindo os

85

calcanhares, e deitando as pontas dos pés para fora, os joelhos tezos, o corpo mui direito, o ventre recolhido, e o peito lançado para fóra, os braços pendentes e unidos ao corpo sem affectaçaõ de sorte q[ue] a costa da maõ fique virada para a frente, a cabeça levantada, direita, e firme, os olhos fixos na direita», mas é de opinião que: «Quando se principiaõ a exercitar os soldados na marcha deve ser sem caixa [tambor](...)» e que só «Depois dos Soldados estarem certos, e saberem executar bem os differentes passos regulares por signal, e sem elle, entaõ se lhes deve fazer executar os mesmos ao som da caixa; e nunca já mais antes delles terem ganhado esta destreza»86. Outros exemplos se poderiam convocar abonando a existência de uma postura crítica de Sampaio, na sua relação com as fontes bibliograficas a que recorreu. Essa faceta, que traí nele traços de investigador inteligente, mostra, de igual modo, certa capacidade de observação e avaliação resultantes da prática obtida enquanto oficial de milícias. Não se trata, pois, de mera análise casual ou apriorística, mas do olhar de alguém que conhecia, por dentro, a realidade sobre a qual se permitia regular e teorizar, tendo como pressuposto fundamental «a nobreza do próprio assunto» e «a utilidade que pode rezultar»

.

87

Por último, registe-se que com data de 1799 fora estabelecido um Regulamento ou Ordenança provizoria para o Exercicio, Disciplina e governo interior dos Regimentos de Milicias (...) mandado compor por Ordem de Sua Magestade

, que terá servido ao

88

83

Conde de Bombelles, Tratado das Evoluçoens Militares (...), apud Rui Bebiano, ob.cit...p.456

84

Tractado (...), fl. 61

85

Conde de Bombelles, Tratado das Evoluçoens Militares (...), apud Rui Bebiano, ob.cit...p.456

86

Tractado (...), fl. 13

87

idem, in dedicatória, [p.1]

88

deste interessante Regulamento existe um exemplar manuscrito na Biblioteca Pública Municipal do Porto,

que terá pertencido ao espólio do visconde de Balsemão, e tem a cota: Reservados, Ms.nº 1:083

autor do Tractado como “contraponto legislativo” para o estabelecer de alguns considerandos teóricos. Aspectos de um discurso A existência de preocupações de índole humanista que atravessa o discurso de Sampaio, serve de ponto de referência à necessidade de estabelecimento de uma ponte entre os propósitos de disciplina, que deveriam regular um exército bem-sucedido, e a noção de flexibilidade das chefias, por si defendida. Isso, é particularmente notório no tom ênfático com que sublinha, no capítulo 7º, a quase obrigação moral de estas se fazerem entender, mais do que obedecer cegamente. A Razão e o Conhecimento são duas peças fundamentais que, segundo ele, deveriam tomar «huma importante parte da disciplina desta Tropa»89. Mas, se o tom que adopta é, o de alguém sensível a valores iluministas, talvez bebidos numa cultura de raiz francófona, por outro lado, o seu discurso conserva na génese resquícios do Antigo Regime. Por exemplo, no modo como perpetua o pensamento, ainda recorrente, que fixava os moldes da justiça distributiva com base num certo paternalismo moralizante, em que: «Prémio, & castigo saõ dous polos, em que se resolve, & sustenta a conservaçaõ de qualquer Monarchia»,como lembrara o P. António Vieira, século e meio antes 90. Nesse entendimento, e visando firmes propósitos de equidade, escreve Sampaio: «Obrigar todo o Soldado mais pelos impulsos do brio, e do pundonor, que pelos do castigo, persuadil-os que sempre seraõ amados, e attendidos se elles satisfizerem dignamente aos seus deveres, ao mesmo tempo fazel-os viver na certeza que seraõ castigados segundo merecerem os seus delictos»91. É, o retomar de um conceito que atravessando toda a modernidade ganhara novo impulso durante o absolutismo Joanino que via no Rei (aqui consubstanciado no chefe militar) o Pai que, velando pelo bem estar do filho, premiava e punia, consoante os merecimentos ou as faltas deste. Dai que, seguindo o pensamento pedagógico do autor:«hé interessantissimo que os Officiaes cuidem attentamente em ganhar o animo dos seus soldados inspirando-lhes os verdadeiros sentimentos de fidelidade aos seus Soberanos, e d’amor e respeito aos seus Superiores, fazendo-lhes ver a obrigação, e o interesse que elles tem em servir, e o que deste serviço deve rezultar ao Reino, e alles mesmos em particular». Afinal, também não muito longe daquilo que o Seiscentista António de Sousa de Macedo expressava nestes moldes: «Hum Estado [como também um exército] não he outra cousa, senão huma sociedade de muitos homens debaixo da autoridade de hum Rey (...) esta sociedade está fundada sobre a Uniam: a União, sobre a obediência: a Obediência sobre as Leis: as Leis, sobre a Justiça; pello que tirada a Justiça, caem as Leis, cahidas as Leis, falta a

89

idem, capítulo 7º, fl. 111

90

Sermam, que pregov o P. Antonio Vieira da Companhia de Iesus na Misericordia da Bahia de todos os

Santos em dia da Visitação de Nossa Senhora Orago da Casa. Assistindo o Marques de Montalvão Visorrey daquele estado do Brasil, Et foy o primeiro, que ouvio naquella Provincia, Lisboa, na Off. de Domingos Lopes Rosa, 1646, fl. 245, apud Fernanda Olival, As Ordens Militares e o Estado Moderno: Honra, Mercê e Venalidade em Portugal (1641-1789), Lisboa, Estar, 2001, p. 20 91

Tractado (...), fl.. 110

Obediencia: faltando a Obediencia, se destrue a Uniam: destruida a União, acabasse a sociedade; levantão se inimizades, sedições contendas»92. A obediência esclarecida, por antítese à sujeição completa- repudiada por Sampaio, mas defendida, por exemplo, por Tomás Telles da Silva para quem «deve ser a obediência de um soldado aos seus superiores não só pronta, mas cega»93 - é para o nosso tratadista mais do que simples obrigação auto-imposta, constituindo mesmo um dos alicerçes da ordem. Só ela poderia regular e sancionar o relacionamento saudável entre a mole humana que compunha as milícias, das chefias ao último homem da cadeia de comando, sobretudo para não ferir susceptibilidades entre o corpo efectivo, já que este diferia do vulgo que compunha o exército regular. Na falta de razoável nível de conhecimento técnico a milícia possuia, em contrapartida, outras especificidades uma vez que, no dizer do autor, «estes homens são commummente dos mais ricos, e dos mais honrados das suas terras»94. Havia, pois, que ter em conta pressupostos de carácter sociológico –reproduzidos, afinal, dos modelos sociais da colectividade - no modo como se deveria fazer passar a mensagem: «o respeito, a suavidade, a persuazão, e o castigo serio, e efficaz são – na óptica de Sampaio – as quatro bazes sobre as quaes hum Official deve estabelecer o edificio interminavel da disciplina militar»

. O desejo de eficácia, sem os incómodos decorrentes de um excessivo uso da

95

punição, é pois, notório na preocupação evidenciada pelo tratadista. Não obstante, parece

existir

alguma

incongruência

entre

a

defesa

implícita

de

factores

de

diferenciação social na forma de tratamento e aplicação da disciplina, expressa por Sampaio, e o espírito que, apesar de tudo, ia grassando à época por decorrência da própria Revolução Francesa e a que o nosso tratadista parece, noutros passos, ser sensível. De facto, os ventos ideológicos perspectivavam a construção de carreiras fundadas nas virtudes militares e não no nascimento e nobreza dos apelidos, ou mesmo na riqueza pessoal ou familiar, princípios estes que, curiosamente, perpassavam já nas Ordenanzas de Carlos III de Espanha, aprovadas em 22 de Outubro de 1768 e publicadas em 177196.

92

Armonia Politica dos documentos divinos com as conveniencias d’Estado: exemplar de princípes no governo

dos gloriosissimos reys de Portugal dedicado ao serenissimo princípe Dom Theodosio nosso Senhor, Lisboa, Na Haga do Conde, off. de Samuel Broun impressor, 1651, Parte III, § II, nº 6 93

Cf. Discursos sobre a Disciplina Militar, e Sciencia de hum Soldado de Infantaria, dedicados aos Soldados

Novos, Lisboa, Off. de Joseph Antonio da Sylva, 1737, p. 2 94

Esta generalização seria um pouco abusiva, tendo em conta que nem sempre assim sucederia; tome-se o

exemplo das tropas auxiliares da companhia de Oeiras, descritas por um observador privilegiado e datadas de 1798, que textualmente refere:-«achou-se que alem de 7 ou 8 eraó pella maior pte. Individam.te alistadas por naõ terem bens alguns de raiz, e serem méram.te ou homens ganhoens, ou officiais de officios sem mais propried.e q as suas pessôas; porem por informaçoens particulares (...) ha certeza de haverem homens de cabedal que naõ estaõ alistados, e som.te da sua esquadra[a do informador] me nomeou 8 homens de que fiz assento»; cf. B.P.M.P., Ms: 286, Diário ou deligencia de Inspecção das milicias da Provincia da Extremadura começada em 7 de Maio de 1798, fl. s/n [dia 11]. E este caso não era único, a mesma fonte reportando-se a outras duas companhias, insiste:«achámos que toda a gente nóvamente alistada era pobre (...) pollas indigaçoens que fiz achei que os ricos do destricto naõ se achavaõ alistados (...)», ibidem, [dia 18]. 95 96

Tractado (....), fl. 112 veja-se Fernando de Salas López, Ordenanzas militares......ob.cit. p. 82 e ss

O tópico da disciplina militar glosado por vários comentadores, e em 1710 articulado em letra de regulamento97 - de modo um pouco “musculado” prevendo-se mesmo a aplicabilidade da pena de morte para razoável número de situações-

98

assumirá

posteriormente uma função claramente pedagógica no confronto entre critérios e competências. Pretender-se-á, até, fazer do exemplo a melhor profilaxia, radicando a sua força no efeito de ressonância obtido. Ou seja: «os castigos militares não devem ser muito aflitivos, mas sim públicos, e aparatosos, para causarem uma impressão durável no espírito daqueles que os presenciarem», conforme se lê num Compêndio Militar99 escrito e publicado escassos cinco anos antes do Tractado (...). Por outras palavras, punir sem violência e com recurso a uma encenação de efeito garantido surgia, assim, como método a incrementar. Seria Manuel de Sampaio desta opinião? A resposta provável remete-nos para um outro parágrafo do referido capítulo 7º em que, depois de sintetizar as expectativas régias expressas na legislação em vigor, diz o seguinte: -«Em todo o cazo em que os Officiaes deverem applicar o castigo devem fazel-o prompta, e discretamente. Se o soldado merecer reprehensão deve-se-lhe dar não com colera, nem insultando-o com palavras

discompostas,

ou

injuriozas;

mas

sim

reprehendendo-o

sériamente

estranhando-lhe o seu maó procedimento» - e mesmo assim usando de- «huns termos respeitozos, e persuazivos, de maneira que elle conheça o seu erro, ou castigo de que hé digno»

.

100

Embora no que toca à violência, fisíca ou verbal, as opiniões atrás expressas se afigurem coincidentes, já quanto à metodologia parece não existir plena concordância, porquanto nunca um castigo poderia ser discreto e, simultaneamente, público e, ainda menos,aparatoso. Maior será, estamos em crer, a semelhança com o pensamento de Lippe. Na verdade as instruções e observações, por este expressas, coincidem plenamente com o espiríto das recomendações deixadas por Manuel de Sampaio neste passo. Como sintetiza um autor reportando-se ao texto lippeano:-«Na instrução o soldado não devia ser aterrorizado, nem desgostado. Não devia ser tratado com expressões injuriosas, antes pelo contrário, com toda a docilidade e brandura, para que tome gosto ao serviço» 101. Na verdade, em mais do que um momento da sua correspondência com Pombal, o marechal alemão precisa, em relação às tropas irregulares, que «pelo que vou 97

O primeiro regulamento penal militar foi publicado em 1710 (álvara de D. João V, de 7 de Maio),

sucedendo-lhe um outro, em 1762, decorrente da reforma ensaiada pelo conde de Lippe. 98

O texto do citado álvara joanino encontra-se transcrito nos Regimentos melitares, em que se dá nova

forma á Cavallaria, e Infantaria com augmento de soldos para todos os Cabos, Officiaes, e Soldados, e disposição para o governo dos Exercitos assim na campanha, como nas Praças, lisboa, Off. de Miguel Rodrigues, 1753, tomo I, pp. 15 a 29 99

Matias José Dias Azedo, Compendio Militar, escrito segundo a doutrina dos melhores Autores, para

instrusão dos discipulos d’Academia Real de Fortificasão, Artilheria, e Dezenho, Lisboa, Regia Typographia Silviana, 1796, p. 81 100

Tractado (....), fl. 113

101

Duarte Quirino Pacheco de Souza, “Algumas observações à obra do conde de Lippe em Portugal”, in VIII

Colóquio da Comissão de História Militar, “Preparação e Formação Militar em Portugal”, (Actas), Lisboa, C.P.H.M., 1997, p.255

descobrindo» são «um recurso que se não deve desprezar», e assim sendo «convém animá-los [aos paisanos] não só com o prémio, mas com a lisonja de que as suas acções tiveram valor para chegar ao Trono» 102. Revelando fortes traços de bonomia de carácter, no modo como segue a lição de Lippe, não deixa, contudo, o nosso tratadista de reconhecer que: «a malicia, a rebeldia, e a falta de subordinação pedem hum castigo mais forte (...)»103 - mas, mesmo aí, recomenda:«este deve ser o da prizão, e de nenhum modo o de dar pancadas». Recorde-se que, não obstante, o espancamento com bastão era uma das figuras punitivas prevista no Regulamento de Lippe e, em Espanha, por exemplo, os castigos corporais só viriam a ser proibidos em 1836 (com Isabel II). Coligindo, agora, argumentos em favor da sua preferência pelo regime prisional, em oposição aos castigos corporais, regista:«o castigo da prizão hé o mais efficaz que se pode dar aos nossos soldados, pelo incomodo que padecem nas prizoens, pela perda que tem e pela falta que fazem em suas cazas, e por que deste castigo nenhum se julgará ultrajado»

.

104

A sujeição à perda de liberdade, correntemente praticada na vida civil, era encarada como

muito

natural,

quase

uma

inevitabilidade

para

quem

tergiversava,

não

provocando por isso especial revolta no ânimo daqueles que, em sede militar, a ela se sujeitavam. Mas, o tom paternalista e conciliador de Sampaio não se esgota nestas asserções. «Hé de advertir – escreve – se o soldado erra por ignorancia, o que merece a maior attenção de hum Official para corrigir, e para ensinar com a maior suavidade e paciencia, fazendo-lhe ver quaes sejão as suas obrigaçoens»105. Reportando-se aos casos em que a dureza da oficialidade se deveria mostrar de forma mais incisiva, cita a falta de obediência, o incumprimento de ordens e obrigações, ausência do posto em data e hora interdita, e mais alguns motivos de igual «melindre», como a incomparência às revistas e formaturas, salvo as legitimamente justificavéis e, por fim, a não observância d’ «aquelle silêncio, aquella firmeza, e seriedade que a hum soldado jámais hé permittido violar estando debaixo das armas». Esta questão, da inviolabilidade do silêncio e correspondente entrega total dos sentidos, tipificada como marcial e indispensável a uma execução correcta e atempada das ordens dadas, surge frequentemente realçada na literatura militar dada a sua manifesta importância em termos conceptuais e mesmo estratégicos

.

106

Mas, para lá dos critérios de aplicação de castigos um aspecto houve, referente à administração da justiça distributiva, que preocupou Manuel de Sampaio:do outro lado da cadeia dos deveres, estavam os direitos consignados e esses não deveriam sofrer beliscadura, pois, diz o autor: «He muito importante e mais que tudo concorre para os

102

Schaumbourg-Lippe, conde de, “Cartas [do conde de Lippe] para o marquês de Pombal”, in Boletim do

Arquivo Histórico-Militar, Lisboa, A.H.M., nº4 (1933) pp. 243-84 e nº 5 (1934), pp. 109-29 103

idem, ibidem, fl. 114

104

idem, ibidem

105

idem, ibidem

106

Veja-se a propósito Rui Bebiano, A Pena de Marte (....) ob. cit. P. 454

soldados viverem contentes e satisfazerem gostozamente o serviço, o mostraremse os seus Officiaes interessados em que os seus privilegios sejam bem observados; assim os Commandantes de Companhia, e ainda qualquer official devem sem a menor omissão dar parte ao seu Chefe de qualquer offensa que nesta materia se fizer ao soldado»107. Confirmando o pendor um pouco pedagógico-idealista, que parece caracterizar a componente retórica do seu discurso, não se cansa o autor deste Tractado Militar de enaltecer as virtudes do método prescrito:-«Merece certamente o maior louvor aquella educação militar que tende á criação, á civilidade, e á cultura da Tropa», princípios que a serem devidamente sopesados conduziriam, segundo ele, ao respeito dos subordinados, inculcando-lhes, simultâneamente «sentimentos de brio para haverem de sustentar o decoro, e gravidade militar». Normas que, a serem seguidas, fariam com que se notasse «em breve tempo huma proeminente differença bem capaz de lizongear aquelles Officiaes mais ambiciozos dos progressos da disciplina». Aqui, de novo, o “fantasma” tutelar de Lippe. Como lembrou, muito recentemente, um investigador:«O trabalho do marechal-general é pois um trabalho de aculturação dos Portugueses.(...) A cultura que se quer impor em condições pouco favoráveis é uma cultura militar»108. E, é nesta que Sampaio tinha os olhos postos. Não como chave para a imposição geral de um ambiente militar, ou seja de uma militarização social, mas sim visando a excelência e qualidade que, em seu entender, deveriam pautar o serviço das armas; implicitamente o serviço régio, logo o interesse do País. Finalmente, consciente das dificuldades de pôr em execução, de forma cabal e bem sucedida, todo o preceituado disposto ao longo das 118 páginas do seu Tractado inscreve, no último parágrafo da obra, a rematar o discurso e como que em jeito de consolação: - «que se o tempo do exercicio não permittir toda esta disciplina satisfaça-se ao menos em se habilitar a Tropa o melhor que for possível».

107

Tractado (...), fl. 115. Sobre os privilégios respeitantes às tropa de milicias, em vigor à época, veja-se a

sua regulamentação no Alvará de Confirmação e de Declaração, do Principe-Regente, dado no palácio de Queluz em 1 de Setembro de 1800, publicado integralmente por Antonio Delgado da Silva, Collecção da Legislação Portugueza, Legislação de 1791 a 1801, Lisboa, na Typographia Maigrense, Anno de 1828, p. 643 108

Fernando Dores Costa, “Guerra no tempo de Lippe e de Pombal”, in Nova História Militar de Portugal, dir.

Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira, vol. 2 coordenação: António Manuel Hespanha, Mem Martins, Círculo de Leitores, 2004, p. 348

PARTE II O TRATADO DE TACTICA, de MANUEL DE SAMPAIO COELHO E SOUZA

[Dedicatória]:

Il.mo e Ex.mo Snr. D. Pedro de Almei/da Portugal Offereço a V.Exª estes peq[ue]nos fru/ctos do meu trabalho, nelles me pro/puz demonstrar as relativas obriga/ çoens dos soldados para com o seu/ officio para com a officialidade, e des/ta para com aq[ue]lles. Naõ hé/ Ex.mo Senhor, a vaidade de ter desem/penhado este assumpto q[ue]m céga/mente me faz chegar á prezença de/ V. Exª, por q[ue] só a tenho de conhecer q[uan]to / elle hé superior ao meu limitado ta/lento; hé sim a nobreza do mesmo assumpto, e a utilidade q[ue] póde rezultar/ de hum firme pé daq[ue]lla tropa, e/ mais q[ue] tudo a natural benevolencia/ [fl.(I)] com q[ue] V. Exª costuma attender/ a todos aq[ue]lles subditos q[ue] séria/mente cuidaõ no desempenho das/ obrigaçoens do seu officio, segundo/ as forças q[ue] os conhecimentos de V. Exª cor/rigindo e emendando me tornaraõ/ capazes de satisfazer aos meus deveres. Permitta-me V.Exª a distinçaõ de/ receber benignamente estes primeiros/ e peq[ue]nos effeitos da minha appli/caçaõ, e dos meus puros votos, fieis/ testemunhas da fidelidade com q[ue]/ m’entrego ao serviço de Sua/ Alteza Real, e com q[ue] dezejo desem/ penhar, como obediente subdito, a/ [fl.(II)] a vontade de V. Exª

Nesta acceita/ çaõ teraõ todos os subditos de V. Exª novo motivo de se

assimarem, e pre/encherem as suas obrigaçoens.

Deos facilite a V.Exª dilata/dos tempos De V. Exª Guarda 3 de Setembro de 1801 Subdito o mais obediente

Manoel de Sampaio Coelho e Souza

Prologo Nada há taõ proprio de hum Cida/daõ honrado como servir ao Rei, e á/ Patria: este objecto tem merecido a/ attençaõ da mais santa e sagrada/ Legislaçaõ; e seu desempenho

tem/

feito

Heroes

respeitaveis,

perpetua/do

a

sua

memoria,

distinguido as/ familias das Naçoens; respeitados os/ Imperios, e incitado a posteridade/ ao complemento dos seus deveres. A sciencia militar e a sua pra/ctica hé hum dos primeiros ramos/ da felicidade dos Povos, ella sustenta/ a justiça, franqueia o uzo dos Di/reitos do Cidadaõ, e conserva o equilibrio do Direito das Gentes taõ ne/ [fl.(III)] cessario para o fim da construçaõ/ das cidades. Este respeitavel objecto tem nutrido/ toda a minha ambiçaõ; eu me pro/puz adiantal-o segundo as proprias/ circunstancias, e pequenos talentos:/ em me alistei na Tropa Miliciana/ depois de hum proporcionado cal/culo me decidi dar humas prelimi/nares noçoens áq[ue]lla Tropa: a firmeza as evoluçoens e manobras/ a presteza nos fogos, a sobordinaçaõ,/ e em fim huma boa ordem, eis aqui/ o q[ue] deve merecer os cuidados dos sol/dados Milicianos: a promptidaõ destes deveres proporcionada á in/dole, e diarias occupações daquel/les soldados; a equidade e suavida/de no ensino, a correçaõ compativel/ [fl.(IV)] com o fim da mesma Tropa, e qua/lidades dos soldados, devem formar o primeiro plano dos officios da of/ficialidade. Hum natural amor á Tropa Mili/ciana pela utilidade rezultada ao/ meu Estado, me destinou propôr estas/ pronoçoens naõ para ensinar, mas/ para aprender: o seu Auctor hé des/culpavel nos erros, pois q[ue] sem os pre/...... necessarios, sem eschola, e sem/ ensino, por huma natural força se/ conduzio; elle procurou a linguagem/ e expressaõ mais clara, e adequada/ áquelles para q[ue]m escrevia: todo/ o seu atrevimento poderá ser admis/sivel pelo dezejo d’utilizar a sua/ Patria.

Tractado de Tactica

Entre todas as Artes q[ue] se devem cul/tivar hé das mais uteis a Militar,/ pois della depende naõ só a prosperi/dade, mas ainda a sorte dos Estados; e para nos demonstrar esta verdade/ basta a historia; nella vemos q[ue] os/ maiores Imperios do mundo florecê/raõ á medida q[ue] a disciplina mili/tar se adiantava, assim como tam/bem vemos em outros a sua ruina/ á proporçaõ q[ue] esta disciplina sen/tio sua decadencia. As armas naõ tem só por objecto/ o fazer conquistas, ou evitar este accô/metimento, mas sim ellas tem outro [fl. 1] fim ainda mais interessante, q[ue] hé o de/ proteger o socego e os interesses de hum/ Estado, donde se segue q[ue] constituem/ o primeiro pólo em q[ue] o Estado se sus/tenta, por q[ue] sem as armas naõ po/diam fazer os seus deveres as letras, o comercio, e agricultura, sem estas/ qualquer Estado por mais opulento/ q[ue] pareça, cahirá em breve tempo em/ huma escravidaõ. O Rei da Prussia, este sabio Mo/narca, este Heroe, este a quem todos/ os Militares tem a gloria de respeitar/ como seu Mestre tem feito ver e reco/nhecer o seu Reino pela primeira/ Potencia Militar, e sua sciencia e/ talentos Militares tem produzido/ huma das épocas mais celebres da [fl.2] da Tactica. Elle conhecendo bem o va/lor daquella harmonia q[ue] deve ha/ver entre as armas e a politica tem/ sabido estabelecer este admiravel pa/rallelo verdadeiramente vantajozo/ a hum Estado. Assim como a arte Militar hé a mais util, assim tambem hé a mais de/ficil: q[ue] extensaõ d’estudos naõ compre/hende a Tactica (a)a. A Tactica hé a arte de formar as Tropas, de as mover em ordem, e de fazer com/bater methodicamente. Divide-se a Tactica em duas par/tes; huma elementar ou inferior, outra/ sublime ou superior, a Tactica elementar [fl.3] tar ou inferior hé aquella q[ue] nos expoem/ as constituições e as formaturas dos bata/lhões, dos esquadroens, e dos regimentos,/ a sua educaçaõ e disciplina; a Tactica/ sublime, ou superior, hé a q[ue] ensina a/ formar, a dispor, e a mover os exercitos; estha hé a baze em q[ue] se forma a theoria,/ esta em fim comprehende em si toda a/ parte de guerra (a).b

(a) Este termo de Tactica vem de huma palavra Grega q[ue] significa ordem. (a) Toda a Tactica deve regular-se pelas armas de/ que huma Tropa hé armada: estas saõ quem/ devem estabelecer as proporções da sua dispoziçaõ interior/ estas quem devera determinar os principios funda/mentaes da sua ordem, e das moções. O prim[ei]ro/ fim dos principios da Tactica hé o fazer operar hu/ma tropa com a maior ordem, presteza, e impulso;/ a prim[ei]ra consegue-se pela igual[da]de do passo de todos os inde/vidos (sic);

A Tactica tem principios geraes, e/ e principios particulares, aquelles con/vem a todas as Tropas, a todo o tempo e a [fl.4] e a todo o paiz; os particulares saõ appli/caveis somente a certas Tropas, a certos/ tempos, e a certos paizes. A sciencia dos postos militares, a for/tificaçaõ do campo, a architectura militar,/ a Geografia saõ humas das partes mais/ essenciaes da Tactica, e muito necessa/rias a qualquer Official para saber in/trincheirar-se, e fazer-se forte em qualquer posto. A liçaõ da historia tambem hé m[ui]to / util e necessaria a todo o official lendo/ os melhores Auctores, mas naõ se satis/fazendo de entregar os seus factos uni/camente á memoria como hum Histo/riador; elle deve saber a razaõ / por q[ue] Roma venceo a Malta, indagan/do a natureza de huma e outra forma/tura, e adquirindo hum conhecimento/ dos mais movimentos, e naõ pensando [fl.5] q[ue] só foi por valor dos Romanos, ou do/ acazo, mas proceder de principios certos/ e evidentes q[ue] a Tactica nos estabelece. E depois de hum official ter estudado/ tantos, e taõ sublimes Auctores quantos/ saõ aquelles q[ue] fazem hum completo cur/so de estudos militares em Tactica, me/recerá elle por ventura já o nome de of/ficial benemerito? Certamente naõ;/ ainda

lhe

restaõ

aquelles

conhecimentos/

q[ue]

completamente

o

devem

caracterizar,/ e aquelles dotes d’alma q[ue] fazem as pri/meiras qualidades q[ue] pede esta arte. O valor, a prezença d’espirito, o genio/ especial e feliz para a guerra, a fertili/dade, de expedientes, huns talentos pro/prios saõ os dotes q[ue] pede o sublime da/ guerra, sem os quaes nenhum official por mais applicado q[ue] seja passará/ de mediocre. Para partes sublimes da arte mi/ [fl.6] militar e para os seus grandes detalhes/ hé preciza e necessaria a theoria pois/ hum official só pela pratica pode de/ alguma sorte conduzir –se em tudo o/ q[ue] diz respeito ao pequeno detalhe, mas/ em o sublime da guerra elle deve ver-se / reduzido á impossibilidade de dar hum só passo: assim a theoria hé quem deve/ dar a maõ á pratica, sem aqual esta/ naõ hé mais q[ue] hum caminho escuro e/ cheio de precipicios. Em fim, a pratica e a experiencia/ junta com a theoria saõ quem acabaõ/ de consumar o merecimento de hum/ official, por q[ue] sem esta nehum po/de pôr em praxe o fazer executar as suas ideas, com desembaraço, com a/certo, e delicadeza, nem pode conhecer/ bem os defeitos de muitas evoluções/ e manobras. Certa [fl.7]

pela uniformi[da]de e pelos seus movim[en]tos; a seg[un]da/ consegue-se pela destreza; a 3ª pela celeridade da marcha,/ e pela uniaõ das fileiras, e graduaçaõ das armas. Os exercitos compem-se prezente mente de quatro / armas, estas saõ: Infantaria, Cavalaria, Arte/lharia, e Tropas Ligeiras, formadas em pé de Reg[imen]tos

Certamente seria temeridade bem/ culpavel se eu emprehendesse escrever/ em Tactica; mas logo q[ue] fui encarregado/ de exercer interinamente as funçoens/ de Major do Regimento em q[ue] tendo a/ honra e gloria de servir a Sua Alte/za Real me propuz a estas pequenas/ reflexões, as quaes se dirigem taõ só/mente á disciplina da nossa Tropa Miliciana.

Capitulo 1º Principios da Eschola elementar Sendo as Tropas Milicianas muito/ interessantes e necessarias estando el/las em bom pé, como hoje as vemos/ em o nosso Reino, mas como estas/ Tropas naõ tinhaõ regulamento certo,/ he necessario adoptar-se hum methodo para se disciplinar; e a primeira pro/ [fl.8] providencia q[ue] hum Capitaõ deve dar/ para esta disciplina se pôr em bom pé,/ e em breve tempo, hé instruir e discipli/nar primeiramente m[ui]to bem os officiaes/ inferiores da sua Companhia; se elles/ estiverem taõ ignorantes q[ue] seja preci/zo mettel-os em escholas, deve o Capitaõ/ reprezentar esta necessidade ao seu Che/fe, e pedir-lhe licença para estabelecer/ nos domingos, e dias santos escholas/ naquelles logares mais commodos de/ sorte q[ue] elles possaõ recolher-se no mes/mo dia a suas cazas; nellas se lhes deve/ ensinar todo aquelle serviço q[ue] lhe com/pete de sorte q[ue] elles fiquem capazes/ de reger e disciplinar perfeitamente os/ soldados. Em quanto aos principios com q[ue]/ devem ser educados os Soldados, hé pri/meiramente fazer-lhe tomar hum ár/ militar, hum modo de se mover livre [fl.9], firme, e agradavel, e para o q[ue] hé neces/sario exercitar os Soldados sem armas/ em eschola com a maior frequencia,/ e com todo o desvelo e paciencia. Deve ensinar-se o Soldado a pos/tar-se unindo os calcanhares, e deitan/do as pontas dos pés para fora, os/ joelhos tezos, o corpo mui direito, o ven/tre recolhido, e o peito lançado para/ fóra, os braços pendentes e unidos ao/ corpo sem affectaçaõ de sorte q[ue] a cos/ta da maõ fique virada para a/ frente, a cabeça levantada, direita, e/ firme, os olhos fixos na direita. Depois do Soldado ter o seu/ corpo nesta postura acima determi/nada se devem dar os primeiros prin [fl.10] principios do passo (a) a, ensinando-o/ a marchar com toda a regularidade/ avançando com o pé esquerdo assim/ q[ue] se lhe der a voz de marcha, conser/vando nella a sua primeira postu/ra, e adquirindo hum movimento/ firme, facil, e natural; e para o Sol/dado ser senhor do seu corpo, e (a) A Tactica destingue sete especes de passos regulares/ isto hé, em quanto á sua extençaõ, machanysmo,/ e aceleridade; estes saõ o passo grave, o passo dobrado,/ o passo de correr, o passo pequeno, o passo largo, o passo de/ lado, eo passo para traz: em q[uan]to á sua direcçaõ distin/gue dois que saõ o passo recto, e o passo obliquo.

doseu passo, hé necessario q[ue] aquelle venha/ sempre a cahir em equilibrio sobre/ o pé q[ue] poem em terra. Deve-se ensi/nar a virar á direita, e esquerda, a dar/ meia volta á direita e esquerda com/ tempos e debaixo da voz. Antes de/ se lhe dar a arma hé necessario ensinar [fl.11] nar aos Soldados o modo de se moverem/ circularmente sobre os calcanhares; fa/zendo meias voltas sobre hum e outro lado: todas estas evoluções devem tam/bem ser ensinadas na marcha; e de/vem ser executadas em tres tempos/ a fim de se mover a Tropa sem dif/ficuldade. Dada esta primeira instrucçaõ ao/ Soldado, deve-se-lhe ensinar o modo/ de a ter [a arma] ao hombro; ella deve ficar qua/ze perpendicular unida ao corpo, e/ firme, unindo-se a extremidade do/ seu couce ao corpo por cima do bul/drié, mettendo-se os ultimos dedos da/ maõ esquerda por baixo do couce, e os/ outros pegando na arma por cima/ delle. E aqui os preceitos da postura da/ arma, com a qual deve o sol[da]do executar [fl.12] neste mesmo passo déschola todos os/ antecedentes principios; e deve haver/ o maior cuidado em lhe fazer conservar/ exactamente a sua primeira postura,/ em todos os seus movimentos. Tendo o Soldado recebido os princi/pios da postura do corpo, do passo, e da/ maneira de ter a arma ao hombro, deve / ser instruido em todos os passos regula/res, mettendo-a já em esquadra afim de/ ser exercitado tanto em fileira como em fila. Quando se principiaõ a exercitar os/ soldados na marcha deve ser sem caixa/ por pequenas divizões e em huma só fi/leira, afim de se fazer partir com o m[es]mo/ pé, de lhe fazerem executar os passos com/ toda a regularidade debaixo de qualquer/ signal, ou seja de voz, ou acçaõ p[ar]a se vigia/rem todos os defeitos. Depois dos Soldados/ estarem certos, e saberem executar bem [fl.13] os differentes passos regulares por signal,/ e sem elle, entaõ se lhes deve fazer exe/cutar os mesmos ao som da caixa; e/ nunca já mais antes delles terem ga/nhado esta destreza. Devem tambem os Comandantes de reclutas/ exercital-os a marcharem em fileira, em fi/la, olhando a primeira à direita incessante/m[en]te, ensinando-os em fim a fazer alto com/ toda a perfeiçaõ; e a ficarem firmes depois/ delle, e deve sempre a marcha terminar/ com a pancada do pé direito. Será na verdade muito proveitozo exerci/tar a nossa Tropa nas facturas d’alguns for/tes de campanha como redutos (a) a ou fortes ou [fl.14] cujos arteficios saõ do

(a) O Marechal de Saxe estimava sobre tudo os redutos; elle nos refere aquelle famozo assumpto da batalha de Poltoiva; em que as Tropas suecas até alli sempre victoriozas/ foraõ reconhecidas pelas Tropas Mosquotivas, cuja/ frente se achava guarnecida com sete redutos.

Primeiro interes/se naõ só para as linhas de circunvala/çaõ e contravalaçaõ de intrincheiramen/tos e de ......, mas tambem para pro/teger a frente de hum corpo de Tropa, pa/ra sustar hum exercito em hum terreno/ apertado para embaraçar o perturbar-se/ huma melindroza marcha, para divi/dir hum terreno, para occupar/ hum grande espaço delle com hum/ pequeno numero de Tropa, para/ segurar o lado de hum bosque, de/ hum rio, e para outros fins igual/mente uteis. Seria bem util aos nossos Officiaes te/rem ao menos a instrucçaõ dirigida/ aos Officiaes de infantaria por Fr. de/ Gaudi traduzida no nosso idioma por/ Luis Carlos de Clavier. [fl.15]

Capitulo 2º Da formatura das companhias, como se lhe deve passar revista As companhias sempre se devem for/mar a tres de fundo (a) a, a primeira fi/ leira será composta dos soldados mais/ altos; os que se seguem faraõ a terceira/ fileira; e os mais baixos a segunda/ com os anspeçadas fazem vinte e duas/ filas, o capitaõ fará huma lista da sua/ companhia por fileira, conforme a/ estatura de cada hum, pela qual se iraõ/ chamando os soldados sempre que a Com/panhia se formar, para que cada hum/ saiba bem qual hé o que lhe fica á sua direita.[fl.16] direita e á sua esquerda, ou o seu chefe/ da fila: igualmente cada hum dos cabos/ terá relaçaõ particular da sua competente/ esquadra par por ella responder a todo/ o tempo ao seu capitaõ; a primeira es/quadra constará mais de huma praça as/ mais constaraõ de doze soldados, e hum/ anspeçada, e assim progressivam[ent]e se for/maraõ dos lados para o centro; do mes/mo modo devem tomar as companhias/ os seus lugares no batalhaõ. Os batalhões formaõ-se de tres/ maneiras: a saber com fileiras aber/tas e filas unidas, formatura de para/da, e de todas as acçoens de apparato,/ devendo medir quatro passos de filei/ra a fileira: com fileiras e filas aber/tas que serve para as revistas, e pa/ra o ensaio do manejo das armas,/ devendo as fileiras observar a distan/cia acima, e as filas a de meio passo:[fl.17] e com fileiras e filas unidas; formatura/ do combate e as que as tropas (a) b devem/ sempre tomar em todos aquelles exerci/cios tendentes para a acção. A distancia/ que nesta devem observar as fileiras hé de meio passo. Este/ grande General naõ cessa em todas as suas obras de recomendar o estudo de toda a theoria d’Arte de guerra/ e de desabuzar aquelles que se persuadem da inutilidade desta. (a) A melhor ordem de formar huma Tropa (a) Tropa hé um termo collectivo que exprime determi/nada quantidade de homens reunidos, e se distingue geralm[en]te/ em Infantaria, e Cavallaria; as distinções particulares se destinguem/ entre a Infantaria, a Infantaria de linha, a ligeira, e artelharia;/ entre a Cavallaria; a Cavallaria de linha, a ligeira, eo Dragoens.

Logo que as companhias se houverem/ de formar, o sargento mais antigo cha/mará os soldados pela lista conforme/ as estaturas de cada hum, e na falta deste/ o segundo que ambos seraõ obrigados a ter/ lista da companhia, depois se devem me/ter com os outros officiaes inferiores/ em fileira diante do centro da compa/nhia a tres passos de distancia da pri/meira fileira, tendo as asuas armas/ bem perpendiculares sobre o braço direito,/ o tambor diante dos officiaes com cara para [fl.18] para a companhia, o tenente e alferes/ com as espadas na maõ diante do tambor./ O capitaõ dará a voz= officiaes e offici/aes inferiores a seus postos= metade andan/do á direita, e outra á esquerda, formaraõ/ o tenente na esquerda da companhia/ o alferes no centro a quatro passos de dis/tancia em distancia da fileira da van/guarda: os sargentos o mais antigo for/mará no lado direito da companhia, o se/gundo no esquerdo, eo furriel no cen/tro; os cabos formaraõ o 1º á direita do 2º/ plutaõ (sic); o 2º á direita do 4º plutaõ; o 3º á/ direita da 3ª fileira; o 4º á esquerda da/ 3ª fileira; e o 5º á direita da 2ª fileira, e/ á voz= marcha= todos rapidam[en]te devem/ partir. Depois de formada a companhia se/gue-se a voz= Sentido= que sempre se de/ve dar no prinncipio de qualquer involu/ção estando em descanso a tropa; segue-/se depois a voz= abrir fileiras= a segunda [fl. 19] e terceira fileira marcharaõ rapida/mente sobre a retaguarda, marchando a/ 2ª fileira quatro passos, e a 3ª oito, fican/do a vanguarda firme: tambem seg[un]do/ o terreno se podem mandar abrir so/bre a vanguarda, marchando a 1ª fi/leira oito passos, a 2ª quatro, ficando a/ rectaguarda firme, como tambem se/ pode mandar abrir sobre a vanguar/da e rectaguarda, marchando a 1ª fi/leira quatro passos sobre a sua frente, e/ a 3ª quatro sobre a rectaguarda, fi/cando a fileira do centro firme. Hé/ de advertir que assim como sempre o pé/ esquerdo rompe a marcha, marchando-/se sobre a rectaguarda deve partir o direito. Tendo tomado as fileiras as suas distan/cias, o capitaõ dará voz= em hum só tem/po descansar sobre as armas= este se/ executa levando a maõ direita por cima da [fl.20] da extremidade dos fechos, e passando-se/ rapidamente ao lado direito, ficando lo/go perfilada com a espadua.

Como se devem revistar As armas e munições Dada a voz= meter as varetas nas es/pingardas= tres tempos o 1º hé fazer hum/ oitavo sobre os calcanhares á direita; o 2º hé tirar a vareta; o 3º hé meter a vare/ta dentro da espingarda, o capitão exa/minará se estaõ as armas por dentro/ bem asseadas, depois de revistar se dá/ voz= meter as varetas em seu lugar= tres/ tempos o 1º hé tirar a vareta encostan/do-a ao peito; o 2º metel-a em seu lugar;/o 3º hé volver á sua frente sobre os cal/canhares, e ao mesmo tempo

descendo/ a mão esquerda, voz= baixar as maõs= e logo= a hum tempo armas ao hombro= estas se devem levar rapidamente/ no lado esquerdo, deixando cahir a maõ/ direita, depois se deve dar voz= a [fl.21] abrir a caçuleta= tres tempos o 1º levar/ a maõ direita á caçuleta; o 2º abrir a/ caçuleta; o 3º baixar a maõ= armas/ á frente= dois tempos o 1º ajuntar a maõ/ direita ao delgado d’arma; o 2º a maõ/ direita traz a avena á frente, e maõ es/querda dando-lhe huma pancada na/ altura da gravata, ficando nesta po/ziçaõ segue-se ver se as armas estaõ/ com aquelle asseio devido, eos fechos/ promptos; daqui se dá voz= armas ao hombro= dois tempos o 1º levar a/ avena ao hombro esquerdo; o 2º descer/ a maõ direita com vivacidade, logo/ voz= fechar a caçuleta= tres tempos/ o 1º levar a maõ direita á caçuleta;/ o 2º fechar a caçuleta; o 3º baixar a/ maõ direita. Executado tudo isto se/ examinará se as munições, e todos os/ seus pertences estaõ em bom estado, as/sim como se os soldados estaõ bem/ apeados. Todas [fl.22] todas as vezes que se marchar para ex/ercicios, ou se ajuntar o batalhaõ, o/ capitaõ mandará aprezentar as armas/ e armas ao hombro, isto se praticará/ sempre que a tropa marchar ou fizer/ exercicio. As companhias segundo o plano/ adoptado em todos os regimentos sem/pre se dividiraõ em quatro plutões;/ e se succeder meter-se em columna,/ neste cazo puxará o capitaõ o primei/ro plutaõ a quatro passos de distancia/ da primeira fileira; o tambor marcha/rá á frente do mesmo plutaõ separado/ em igual distancia da fileira, e do ca/pitaõ, o 3º será commandado pelo alfe/res; o 2º e o 4º seraõ commandados pelos/ dois cabos mais antigos que sahiráõ á / frente, e se postaráõ no centro dos seus/ plutões a dois passos de distancia; e lo/go que o commandante der voz= compa [fl.23] companhia por plutões quarto se con/servaõ á direita= a este mesmo man/damento todos os soldados á excepçaó da fila da esquerda de cada plutaõ vol/taraõ com a maior vivacidade a cava ao/ lado esquerdo para se naõ adiantarem/ hum só passo do soldado que descreve/ a porçaõ do circulo. Dada a voz= marcha= immediatam[ent]e se faz a con/versaõ a hum rufo correndo, e o tenente/ passará á rectaguarda do 4ª plutaõ: feito o quarto o commandante dá voz= alto= todos os soldados olharaõ á dir[ei]ta/ ficando muito firmes: o alferes, e os dois/ cabos ficaráõ voltados para os seus plutões athé voz= perfilar= que sahindo/ dos seus lugares faraõ que todos os solda/dos se perfilhem bem pelo soldado do/ lado direito, que foi o que fez o peaõ/ ou eixo da conversaõ. Dis [fl.24] Disposta a companhia na forma ssima/ dita, o comandante marchará á fren/te do primeiro plutaõ, e ahi da m[es]ma sor/te que o alferes, e os dois cabos voltados para a/ comp[anhi]a dará voz= em frente, marchar= logo o alferes e os dois cabos, e o mes/mo capitaõ daraõ meia volta á direita,/ o que serve de notar aos soldados qual hé/ a frente sobre que se manda marchar.

Immediatamente que se daõ estas vo/zes todos os soldados romperaõ a mar/cha levantando a sua perna esquerda/ (a) a inclinando-se sobre a frente, con/servandose sempre fixa a vista do/ lado direito para se naõ adiantarem/ ou atrazarem, conservando da mes/ma forma as avenas ao hombro per [fl.25] perpendiculares, e sem balancearem, e/ a maõ direita bem estendida no lado/ já indicado. Assim se marchará athé o lugar que no batalhaõ lhe hé dado, e marchando pela recta/gguarda athé o dito lugar, ahi mandará fazer= alto= e logo tornando a meter a/ companhia em batalha por quartos se/ conservaõ á esquerda, os soldados obser/varaõ a mesma regularidade olhando no lado direito, como está estabelecido nos/ predictos quartos de conversaõ, o tenente, alferes e os cabos tomaraõ os seus luga/res no centro á esquerda da primeira/ fileira, e ao mandamento= abrir fileiras, marcha= o tenente e alferes/ sahiraõ quatro passos sobre a frente;/ e a 2ª e 3ª fileira se lançaráõ vivam[men]te/ sobre a rectaguarda, ficando logo fir/mes athé voz= perfilar= logo se per/filaraõ pelo resto do batalhaõ; dispostas/ assim o capitaõ mandará= aprezentar as [fl.26] as armas= tomará ou .....seu su/perior mais antigo que alli se achar, en/taõ voz= armas ao hombro= finalm[en]te olhando ao resto do batalhaõ postará/ a sua companhia da mesma forma/ que as mais que ficarem á sua direita/ hé de advertir que nunca a companhia, batalhaõ, ou qualquer corpo de tropa/ aprezenta as armas para pedir venia/ sem que todos os officiaes que estiverem na/ sua frente, manobrando com este cor/po de tropa deixem de abater as espa/das na forma seguinte, ao movimento= armas á frente= elles levantarão/ a espada perpendicular ficando-lhe a/ maõ direita na altura da gravata,/ e a esquerda firme no lado esquerdo, e ao/ movimento= aprezentar as armas= elles a inclinaraõ vivamente ao chão/ ficando a ponta da espada bem na/ frente da ponta do pé direito, ou ainda ma [fl.27] mais no lado direito, e da mesma/ forma ao movimento= pôr armas ao hombro= se tornaõ a levan/tar as espadas á mesma altura,/ e o movimento de largar a maõ/ direita ella se traça outra vez, e/ conservando-a nessa postura/ sempre que o corpo de tropa trabalha./ Sempre que o coronel, ou com/mandante do corpo mande mano/brar por companhias sómente os ca/pitães deveraõ ensinar aos seus sol/dados o manejo das armas, e os fogos/ da ordem da mesma forma que os ex/plica o regulamento militar, por que/ ao mesmo coronel, ou comandante/ do corpo pertence instruir os solda/dos no resto da manobra.[fl.28]

(a) O preceito de principiar a marcha a pé esquerdo/ naõ tem outro fundamento mais que fazer que hu/ma tropa parta com o m[es]mo pé, se hum soldado/ partisse com pé direito, e outro com o pé esquer/do o seu balanço se faria em sentido contrario/ e a marcha seria sem impulso algum.

Capitulo 3º Das explicações preliminares do manejo das armas, e das regras mais essenciaes do m[es]mo manejo O manejo das armas consiste em a des-/tra execuçaõ dos movimentos q[ue] deve fa-/zer o soldado para se servir da sua ar-/ma em todas as occazioens com pres/teza e perfeiçaõ. O melhor manejo das armas hé sem-/pre aquelle, cujos movimentos são/ mais naturaes, e q[ue] mais facilitaõ às/ funções serias de huma Tropa; se hum/ movimento principal, e inteiro pode/ executar-se debaixo de hum só mandamento, não se devem nelle empregar/ dois, assim tambem naó se devem/ meter dois tempos naquelle movim[en]to/ q[ue] se póde executar em hum só.[fl.29]

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