SERVIÇO SOCIAL E TERAPIA OCUPACIONAL: trabalho multidisciplinar em adequação de próteses oculares no serviço de reabilitação visual do estado do rio de janeiro

July 13, 2017 | Autor: F. De Souza Dias | Categoria: Reabilitação, Questão Social, Cegueira
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I CONGRESSO DE ASSISTENTES SOCIAIS DO RIO DE JANEIRO - 20131 SERVIÇO SOCIAL E TERAPIA OCUPACIONAL: trabalho multidisciplinar em adequação de próteses oculares no serviço de reabilitação visual do estado do rio de janeiro Francine Dias2 Gledson Silva3 Jaqueline Freitas Tatiana Fonseca

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar as expressões da questão social ligadas à deficiência visual, sobre as pessoas que tem indicação de uso de Prótese Ocular ou Lente Escleral, bem como situar estes recursos como instrumentos fundamentais para o fortalecimento dos vínculos comunitários e para valorização da autoestima, por isso da saúde e da vida da pessoa com deficiência visual, dentre outros benefícios a serem analisados ao longo do estudo, e defender sua oferta pelo Sistema Único de Saúde – SUS a partir da experiência de profissionais em exercício no único Centro de Reabilitação Visual do Estado do Rio de Janeiro, até a presente data.

Palavras-chave: Prótese Ocular, Lente Escleral, Reabilitação Visual, Relações Sociais, Questão social.

Abstract: This study aims to analyze the expressions of social issues related to visual impairment, about people who have indication for use of Scleral Lens Prosthetic Eye or as well as locate these resources as key tools for strengthening community ties and appreciation of self-esteem therefore the health and life of people with visual impairment, among other benefits to be analyzed throughout the study, and defend its offer by the Unified Health System - SUS from the experience of practitioners in single Visual Rehabilitation Center State of Rio de Janeiro, to date. 1

Trabalho apresentado no I Congresso de Assistentes Sociais do Rio de Janeiro, em 2013.

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Francine de Souza Dias – Assistente Social na Associação Fluminense de Amparo aos Cegos e na Associação de

Pais e Amigos dos Deficientes da Audição – [email protected] 3

Gledson Nunes da Silva – Terapeuta Ocupacional na Associação Fluminense de Amparo aos Cegos e no

Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia – INTO - [email protected]

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Keywords: Prosthetic Eye, Scleral Lens, Visual Rehabilitation, Social Relationships, Social Issues.

I Introdução

O Serviço de Reabilitação vem sofrendo diversas modificações a partir da reformulação desta política pública, com o “Plano Viver Sem Limites”. Estas modificações estão acontecendo de forma individual, no sentido de que as diretrizes estão sendo traçadas para cada tipo de deficiência. Os principais documentos que norteiam o serviço de reabilitação nas suas novas configurações são as Portarias: GM 793 de 24 de abril de 2012 e Portaria GM 835 de 25 de abril de 2012, além dos instrutivos por tipo de deficiência que estabelecem as diretrizes para a formação da rede de cuidados às pessoas com deficiência e a estrutura dos centros especializados de reabilitação – CER. Neste caso, tratar-se-á especificamente da reabilitação visual. O fornecimento de Prótese Ocular e de Lente Escleral são procedimentos relativamente recentes no Brasil, sobretudo no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS, pois não são todos os Estados que o oferecem nesta modalidade. No Rio de Janeiro, Estado sede desta Pesquisa e Experiência Profissional, somente um Centro de Reabilitação oferece este serviço no âmbito do SUS: a Associação Fluminense de Amparo aos Cegos – AFAC, portanto, este estudo tem como base a estrutura existente neste Estado e a defesa da necessidade de se produzir conhecimento à partir da prática profissional dos setores de Serviço Social e Terapia Ocupacional da instituição. Nesta pesquisa, objetiva-se demonstrar os benefícios que a prótese ocular e\ou a lente escleral oferecem à pessoa com deficiência visual, ainda que esta não seja capaz de resgatar a visão, e reforçar a necessidade de sua oferta no âmbito do SUS, em todo o país. Defende-se neste trabalho, a ideia de que as órteses e próteses, independente do tipo de deficiência que a pessoa possui, sejam vistas como instrumentos facilitadores das relações sociais, da autonomia, funcionalidade e da autoestima de quem a utiliza. Esta afirmativa está pautada, dentre outras referências, nas condições funcionais da pessoa e das particularidades do seu cotidiano, as dificuldades, limitações e

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sofrimentos impostos pela deficiência, e a forma como cada indivíduo enfrenta – ou nega essas implicações na sua vida pessoal e nas suas relações sócio-comunitárias. Esta análise e investigação surgem do contato com pacientes lesionados, que buscam o serviço, inicialmente, para atender uma demanda do ponto de vista estético, sem ao menos se dar conta de como isso influencia nos seus relacionamentos e na sua forma de enfrentar o sofrimento e baixa autoestima ocasionados pela perda da visão. É no atendimento multidisciplinar – que se inicia na maioria das vezes com o Assistente Social ou com o Terapeuta Ocupacional especialista em Prótese Ocular, – que essas demandas começam a ser trabalhadas e ganham conteúdo crítico, objetivando antes mesmo da correção estética, a reflexão sobre as implicações da deficiência no cotidiano da pessoa que busca o atendimento. “Importa ressaltar que o assistente social não realiza seu trabalho isoladamente, mas como parte de um trabalho combinado ou de um trabalhador coletivo que forma uma grande equipe de trabalho.“ (Iamamoto, 2007: 63) No Estado do Rio de Janeiro é comum alguns municípios encaminharem pacientes para o procedimento sem ao menos este sujeito ter sido atendido por um oftalmologista que tenha indicado o recurso, o que aumenta a responsabilidade do prestador de serviço e a expectativa da pessoa, que muitas vezes chega ao centro de reabilitação sem saber o que é uma prótese ocular. Essas expectativas são acompanhadas e direcionadas de acordo com suas particularidades, sendo traçada a partir da análise individual de cada caso, uma forma de atendimento que visa à ampliação deste serviço para além do recebimento de um recurso, mas como uma possibilidade de renovação e motivação pessoal, como um instrumento de resgate da autoestima, de novas possibilidades do relacionamento do sujeito consigo mesmo e, a partir disso, do seu relacionamento com a família e com a comunidade. A seguir, será possível compreender com maior clareza o que é uma prótese ocular e uma lente escleral, como estes recursos funcionam, seus benefícios para quem o utiliza e a necessidade de provê-lo no âmbito do SUS, pois assim como qualquer outro tipo de órtese ou prótese, trata-se de um equipamento que visa a ampliação da qualidade de vida da pessoa, a correção e o tratamento de uma lesão que deve ser considerada tão séria como qualquer outra de natureza física, embora culturalmente, exista a tendência de minimizar as discussões sobre as deficiências sensoriais, considerando apenas aquelas de lesão físico-motora, sobretudo quando associadas à cadeira de rodas; e o mais importante de tudo, fortalecer a autoestima, a autonomia e as relações sociais das pessoas com deficiência visual, para que de fato, ela possa participar da sociedade como um cidadão.

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II Prótese ocular: enfrentando o modelo biológico de reabilitação

II.I Conceitos

Muitas pessoas não conhecem a prótese ocular e a lente escleral, pois estas ainda são tecnologias pouco divulgadas no país, conforme assinalado anteriormente. Ainda assim, o poder público já reconhece a importância destas no processo de reabilitação visual, e vem buscando garantir, ainda que timidamente, este procedimento no âmbito do SUS. Se o desconhecimento sobre este recurso por parte da população e a escassez de centros de adaptação de prótese ocular são uma realidade no país, a produção científica dos poucos profissionais que atuam diretamente com este serviço também o é. E este trabalho justifica-se na necessidade de produzir conhecimento a respeito deste tema ainda não explorado pelos profissionais e acadêmicos das diferentes áreas de formação. “Sujeitos que acumulam saberes, efetuam sistematizações de sua “prática” e contribuem na criação de uma cultura profissional, historicamente circunscrita. Logo, analisar a profissão supõe abordar, simultaneamente, os modos de atuar e de pensar que foram por seus agentes incorporados, atribuindo visibilidade às bases teóricas assumidas pelo Serviço Social na leitura da sociedade e na construção de respostas à questão social.” (IAMAMOTO, 2007: 58)

A produção de conhecimento a cerca do Serviço Social e da Terapia Ocupacional na adaptação de próteses oculares é uma proposta inovadora no âmbito da pesquisa científica, tendo como objetivos aqui representados o fortalecimento do trabalho transdisciplinar e a legitimação deste serviço na política de reabilitação visual. Quanto à prótese ocular, esta não é uma tecnologia tão recente, considerando a primeira tentativa de criação de um produto que pudesse corrigir lesões oculares graves. Botelho (2003) relata que “Ambroise-Paré (1510-1590) idealizou um aro metálico que contornava a cabeça terminando em uma peça oval convexa que se adaptava à região orbital e pintada, simulava a região óculopalpebral”. Esta invenção, apesar de bem intencionada, causava uma série de reações colaterais que inviabilizavam seu uso, por prejudicar ainda mais a lesão da pessoa que o utilizava. (BOTELHO, 2003: in mimeo) A autora ressalta ainda que o interesse em reproduzir com maior detalhe e beleza a região ocular, surgiu momentos antes, quando o homem iniciava sua experiência com o desenvolvimento das artes plásticas. De acordo com a mesma, “em 1579, o vidro foi utilizado pela primeira vez para confeccionar próteses, proporcionando boa tolerância a este material”, sendo a Alemanha, desde 1835, a principal produtora de próteses oculares.

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Nesta época, a pedido de um médico, Ludwig Müller-Uri fabricou o primeiro olho artificial para uma pessoa, devido seu talento e habilidade para confeccionar olhos de boneca e animais de brinquedo, o resultado foi maravilhoso, tornando-se matéria especializada e tradição de sua família, que hoje possui mais de 30 “fábricas de olhos”. Ludwig também recebeu diversos prêmios pela qualidade e pioneirismo do seu trabalho. Somente após a II Guerra mundial, que a resina acrílica, matéria utilizada atualmente na confecção das próteses oculares, começou a ser testada para este fim. Cumpre ressaltar que é no mesmo período que surgem as primeiras iniciativas para reabilitação de pessoas com deficiência, justamente em virtude dos soldados que retornavam dos combates com os mais diversos tipos de lesão. Hoje, a prótese ocular e a lente escleral são peças clínicas de resina acrílica, e geralmente confeccionadas à mão, que têm como objetivo a restituição do aspecto natural do olho, do ponto de vista estético, preservando os movimentos e a forma de um olho normal, além de funcionar também como proteção, uma vez que impede que corpos estranhos atinjam o local. Porém, as mesmas não recuperam o movimento palpebral, se elas estiverem danificadas ou inadequadas. Estes equipamentos são indicados após a evisceração (remoção completa do globo ocular, onde mantém-se a integridade de outras estruturas orbitárias) e enucleação (remoção total do globo ocular). Isto pode ocorrer tanto por motivo de doença, quanto por acidentes e lesões graves ou formação congênita. A prótese ocular surge como um método para a correção estética desta lesão, recuperando o movimento natural das pálpebras. Sendo a lente escleral, utilizada após colocação de implante ou outros procedimentos, objetivando o mesmo que a prótese. Esta correção, do ponto de vista natural, ou seja, maior semelhança possível com o olho contralateral, quando no caso monocular, varia de acordo com a fabricação do produto, com a qualidade técnica do processo de adaptação, além das condições particulares da lesão. No caso da protetização bilateral, a forma do olho fica ainda mais natural, já que não existe a necessidade de aproximar o máximo possível à cor e o formato do olho bom. Na AFAC, o serviço de adaptação de prótese ocular e lente escleral é o único do Estado do Rio de Janeiro, seguido de outro pioneirismo, pois o profissional responsável pelo trabalho é o primeiro terapeuta ocupacional do país a trabalhar com estes recursos. A formação e experiência já vivenciadas pelos profissionais na área de atendimento à pessoa com deficiência e com outros tipos de órteses e próteses, legitima a realização deste serviço que ainda é novidade no Brasil. A aproximação deste setor diretamente com o serviço social, traz imensas possibilidades de intervenção e análise da prática profissional de cada especialista, além de mobilizar a criação de ferramentas para se pensar as dimensões do trabalho interdisciplinar. Neste caso, é possível afirmar na realização do trabalho transdisciplinar, considerando a posição que o sujeito – e a família - ocupa neste processo. Outros conceitos importantes para esta análise são os de reabilitação e habilitação, que geram polêmica no seio do movimento. Para defini-los, será utilizado o conceito presente no Instrutivo de Reabilitação visual, referente às Portarias GM 793 de 24 de abril de 2012 e Portaria GM 835 de 25 de abril de 2012: 1,5

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“Habilitar é tornar hábil, no sentido da destreza/inteligência ou no da autorização legal. O “re” constitui prefixo latino que apresenta as noções básicas de voltar atrás, tornar ao que era. A questão que se coloca no plano do processo saúde/doença é se é possível “voltar atrás”, tornar ao que era. O sujeito é marcado por suas experiências; o entorno de fenômenos, relações e condições históricas e, neste sentido, sempre muda; então a noção de reabilitar é problemática . Na saúde, estaremos sempre desafiados a habilitar um novo sujeito a uma nova realidade biopsicossocial. Porém, existe o sentido estrito da volta a uma capacidade legal ou pré-existente e, por algum motivo, perdida, e nestes casos, o “re” se aplica.” (Instrutivo Deficiência Visual, 2012: 1)

Desta forma, quando se fala de prótese ocular, fala-se a respeito de habilitação, considerando o fato de que a prótese não resgata o sentido da visão, porém, se for considerado o resgate da autoestima perdida, a fragilização dos vínculos sociofamiliares e comunitários ocorridos em virtude da lesão material, é possível tratar de reabilitação. Esta visão é variável de acordo com cada profissional e de acordo com o compromisso ou corrente teórica assumida, podendo estas, irem de encontro ao modelo biológico ou ao modelo biopsicosocial de habilitação/reabilitação. A partir do entendimento básico dos conceitos destacados, seguir-se-á com os demais aspectos de análise sobre esses recursos.

II.II Reabilitação Visual e Prótese Ocular no SUS

A reabilitação visual, conforme já assinalado anteriormente, conta com instrutivo próprio para nortear as diretrizes dos gestores dos centros de reabilitação visual ou para as instituições que desejam ampliar seus serviços a este segmento. A Sala de Adaptação de Prótese Ocular surge como opcional neste documento, assim como o profissional de serviço social. No entanto, o instrutivo estabelece os critérios para as instituições que adotarem o profissional e o equipamento como serviços da sua organização. O instrutivo determina ainda que “o gestor estadual ou municipal deverá instituir serviço próprio ou celebrar contrato, convênio ou congênere com o Serviço de Atenção às Pessoas com Deficiência Visual, especificando a forma de regulação do serviço, e os indicadores qualitativos e quantitativos que serão utilizados para avaliar o serviço e condicionar o repasse dos recursos financeiros ao cumprimento das normas deste instrutivo.” (Instrutivo Deficiência Visual, 2012: 20)

Para cumprir as novas determinações do Plano Viver Sem limites, materializado através deste e de outros documentos, os Estados formaram grupos condutores para desenhar a política pública de cada localidade e verificar as demandas existentes por território, a fim de controlar e organizar a rede de cuidados às pessoas com deficiência. Importante destacar a Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência como um grande avanço na garantia destes serviços e demais direitos. Espera-se que os Estados tenham adesão ao plano, que aqueles que possuem o serviço de adaptação de próteses, mas não estejam habilitados, tenham este serviço

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legitimado, que novos centros sejam criados e este importante trabalho seja garantido a todos os brasileiros a quem dele necessitar – e assim o desejar, já que nem todas as pessoas com deficiência visual que são elegíveis para uso deste recurso, têm interesse em utilizá-lo. É necessário que os centros de reabilitação existentes e em formação, pensem o fornecimento de prótese ocular e lente escleral para além da correção estética ou entrega de um equipamento. “É neste sentido que imagino o reforço do vínculo profissional/equipe de saúde com o paciente como um dos instrumentos capazes de potencializar transformações nessa prática.” (CAMPOS, 1997: 53).É preciso refletir a real função deste recurso, apropriar-se deste momento de aprendizado com cada caso sujeito – ou fam ília – atendido e defender, de fato, este trabalho como um exercício pela garantia de direitos e pela valorização do ser e do direito humano.

III Da correção estética à reabilitação visual: a prótese ocular como instrumento facilitador das relações sociais

III.I Determinantes sociais sobre o uso da prótese ocular

Conforme tem sido defendido ao longo desta apresentação, a prótese ocular deve ser apropriada pelos profissionais, pelo poder público e pela sociedade não somente como um recurso de correção estética, mas como um instrumento facilitador das relações sociais. Quando uma pessoa adquire uma deficiência ou nasce com ela, tanto a fam ília quanto o sujeito e a comunidade criam diversas expectativas e sentimentos diferentes, que vão desde o desejo de tornar o funcionamento do corpo “normal” a qualquer custo até o sofrimento derivado da perda desse membro ou sentido. A perda da visão interfere diretamente no acesso da pessoa aos espaços públicos, limitando, inclusive, as suas relações com a sociedade em geral. Crianças, por exemplo, aprendem necessidades básicas do cotidiano como caminhar, comer, ou brincar, através da sua experiência visual. Na perda desse sentido, é necessário utilizar outros recursos, como o tratamento em reabilitação, que vai auxiliá-la no seu desenvolvimento, buscando minimizar as limitações naturais ocorridas pela perda do sentido da visão. Quando a deficiência visual (neste caso inclui-se a monocular, no sentido da lesão material, entendendo que esta categoria não é reconhecida legalmente como deficiência) torna-se aparente esteticamente, seja por motivo de manchas no olho ou ausência do globo ocular, tem-se mais um agravante determinante nas relações sociais da pessoa. Se a limitação sensorial reflete diretamente a forma como o sujeito será concebido e conceberá a sociedade, o dano estético existente em virtude dessa deficiência torna-se mais um obstáculo na garantia da convivência familiar e comunitária sem preconceito e discriminação, dobrando o sofrimento e a rejeição vivenciada pela pessoa, já

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que a imagem defeituosa, a deformidade ali presente, desperta todos os tipos de intolerância do ser humano para com o outro. Importante ressaltar que não são todas as pessoas com deficiência visual que sofrem por apresentar estas características estéticas, muitas conseguem manter uma vida normal, de modo a não permitir que estes aspectos influenciem nas suas relações. O espaço social ocupado pelo sujeito, o grau de suas limitações e sofrimento em virtude destas, assim como a rede familiar e comunitária que o cercam, são determinantes na escolha por fazer uso ou não deste recurso, isso é facilmente percebido pela equipe de reabilitação ao longo dos atendimentos. “De qualquer maneira, esse sujeito político está sempre referenciado a sujeitos sociais de um determinado contexto social que delimita as suas possibilidades de intervenção.“ (CECÍLIO, 1997:12) Em tempos de fetichismo do capital e da necessidade de intensificar a defesa dos direitos humanos, este deve ser um direito de escolha de cada cidadão. Considerando o quanto Brasil necessita caminhar no sentido da eliminação de barreiras atitudinais, de vencer o preconceito e a discriminação social, faz se necessário a garantia deste e de outros recursos que possam minimizar as experiências de dor segregação vivenciadas pelas pessoas com deficiência deste país.

III.II Relato/Estudo de Caso

Um jovem negro, estudante, de dezenove anos, relata junto com seu pai que leva uma vida comum: frequenta shoppings, joga futebol, estuda e é bom aluno. Ele fala com naturalidade sobre o seu incidente, contando que aos seis anos de idade, soltando pipa, passou correndo pela varanda onde seu pai colocava piso, e havia uma linha de nylon esticada próxima ao chão; quando ele tentou atravessar, tropeçou na linha, que se soltou com pressão e trouxe na sua extremidade um prego que foi certeiro, e fatalmente acertou o seu olho direito, o qual perdeu a visão. No dia em que esse jovem compareceu à AFAC para ser avaliado para uma possível protetização ocular, estava bastante ansioso, mas tinha convicção do que queria. Ao iniciar a adequação, apresentou dificuldades para relaxar a musculatura do olho direito e possibilitar o teste dos moldes, mas após alguns minutos, ele se tranquilizou, continuando os respectivos testes. O terceiro molde ficou bem adequado, ele não relatou nenhum tipo de incomodo. Foi fotografada a imagem dos olhos para que ele pudesse vê-los e observar se havia alguma diferença da imagem vista no espelho (este molde era o tamanho da prótese ocular definitiva). Logo depois foram tiradas outras fotografias, de outros moldes próximos ao seu olho esquerdo, para ter uma boa definição da cor do seu olho (para cor e tamanho da íris) e para a cor da esclera (parte branca dos olhos). Assim foi concluída a primeira parte do processo de adequação da prótese. Os três moldes foram reservados e enviados para confecção, no laboratório que fica em São Paulo. Era visível a ansiedade do rapaz e de seu pai para a colocação da prótese definitiva, era como se pudessem reparar ou consertar um dano causado, como se existisse um sentimento de culpa, não parecia apenas ansiedade.

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Tão logo a prótese definitiva chegou, foi realizado contato com o jovem e agendada a data de entrega para encerramento da adequação do recurso. No dia marcado, o mesmo compareceu na companhia do seu tio. Antes do teste foi mostrada a prótese e iniciado um diálogo com objetivo de diminuir a tensão do rapaz. Durante a conversa, ambos relataram que o paciente joga futebol muito bem, que é canhoto e que sua parte sensoperceptocognitiva era muito boa, que tinha habilidade e destreza. Ele também relatou que contou para os amigos sobre a colocação da prótese, solicitando a opinião deles, que por sua vez lhes disseram que para eles a colocação do recurso não iria interferir na amizade. Também revelou que quando era mais novo, teve diversos apelidos, como “pirata”, “caolho”, entre outros, mas não deu importância a nenhum deles. Enfim, os procedimentos para a colocação do recurso foram iniciados, foi feita a higienização necessária, a lubrificação com um colírio próprio e, desta vez, com bastante tranquilidade, colocada a prótese ocular, que ficou bem adequada, sem causar incomodo. A íris ficou um pouco maior e nasalizada, apesar desses detalhes terem sido praticamente imperceptíveis. Seria necessário um novo ajuste para o recurso ficar perfeito. Ao comunicar que para tanto a entrega demoraria mais um período, ele não pestanejou, imediatamente decidiu aguardar mais um pouco para tê-la definitivamente, com perfeição. Assim, a prótese ocular foi reenviada para o laboratório, a fim de efetuar as devidas correções. Quando a prótese chegou, foi agendada a data de retorno. Ao chegar na AFAC, acompanhado por seu pai, foi iniciado o mesmo processo anterior de adequação. Desta vez, tudo ocorreu com perfeição, não houve ansiedade, a musculatura do olho direito estava bem relaxada, não relatou nenhum incomodo, a prótese ocular ficou com boa mobilidade na movimentação dos olhos, ele aprendeu a fazer a retirada e a colocação da desta (com a ventosa e sem a ventosa). Apesar de tudo ter ficado perfeito, foi combinado o período de uma semana para uma melhor adequação, ao término deste prazo, a prótese ocular realmente ficou mais adequada, sem nenhuma intercorrência. Todas as vezes em que o jovem vai jogar futebol, ele faz a retirada da prótese ocular. Após este relato, perguntou se poderia utilizar algum óculos ou se existe um especial para proteção desta região, para que ele pudesse jogar futebol com a prótese. Informamos que existem óculos para proteção dos olhos de modo geral, não para proteger uma prótese ocular, que fica praticamente solta no olho, e com uma bolada (que é uma das causas de perda da visão) ou um contato mais forte, pode vir a lesar a parte interna do olho. Ele conseguiu entender o motivo de não considerarmos apropriado o uso de um óculos de proteção, mas lhe prometemos uma pesquisa mais profunda sobre o assunto. Hoje, o jovem que já tinha uma vida normal por não permitir que a característica estética da lesão interferisse no seu cotidiano e por fazer parte de um espaço familiar e comunitário que não o limitou através de preconceito e discriminação, continua estudando, jogando futebol e aproveitando a sua juventude com mais autoestima e com mais alegria ao encarar o espelho, possibilitando à equipe que o atendeu a reflexão de que a prótese ocular pode interferir positivamente na vida de qualquer pessoa com deficiência visual, independente das características sociais de cada sujeito ou comunidade. Que este recurso deve ser garantido, que deve ser direito de qualquer indivíduo que dele necessitar e assim o

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desejar, devendo ser fornecido através do S US em todos os centros de reabilitação visual, que todos os cidadãos brasileiros tenham a oportunidade de olhar a vida com outros olhos.

IV Conclusão

Espera-se que o esforço deste trabalho em socializar a existência e a necessidade de ampliação do serviço de fornecimento de prótese ocular e lente escleral no país, no âmbito do SUS, tenha sido alcançado. O empenho dedicado na realização da pesquisa tem como objetivo informar e produzir conhecimento a partir da experiência de distintas formações profissionais, portanto, de olhares técnicos diferentes, que se encontram no objetivo de buscar entender a importância das órteses e próteses na vida da pessoa com deficiência e publicizar, a partir do aprendizado promovido com os sujeitos e seus familiares atendidos, a necessidade de reflexão sobre o fazer profissional de cada categoria e de se repensar as diversas facetas do trabalho multidisciplinar. Não se tem a pretensão de esgotar a reflexão sobre este tema, mas fornecer subsídios para despertar o interesse dos leitores e ouvintes, bem como aquecer o movimento de luta pelos direitos das pessoas com deficiência, quanto à reivindicação por um trabalho tão importante e pouco reconhecido, como a adequação de próteses oculares. A escolha do caso apresentado no último bloco não foi aleatório. Poderia ter sido utilizada a experiência de uma pessoa com os vínculos familiares e comunitários totalmente fragilizados, mas é sabido que este público tem uma busca socialmente justificada pelo recurso. Existe um esforço de comprovar que próteses oculares e lentes esclerais não são recursos unicamente estéticos, mas facilitadores das relações sociais, uma vez que a estética e a beleza tem influencia direta sobre as relações humanas, gerando, no caso da deficiência, uma série de fatores excludentes que permeiam as experiências de vida desse público. Independente das particularidades de cada caso é preciso entender esta ferramenta como direito de escolha de cada cidadão com deficiência visual e perceber que em todos os casos a pessoa humana será beneficiada. Sendo um recurso clínico, um procedimento que faz parte da reabilitação visual, as próteses oculares e lentes esclerais devem ser garantidas no âmbito do SUS. Se o “Plano Viver Sem limites” tem como um de seus objetivos a transformação do modelo de reabilitação que se tem hoje, o entendimento do trabalho profissional em reabilitação sobre as relações sociais do sujeito e questões sociais e comunitárias faz-se de forma urgente. Entender as limitações funcionais, psicológicas e sociais geradas pela deficiência, é construir um modelo de reabilitação alternativo ao modelo biológico, que percebe a pessoa apenas no seu caráter biomecânico. É preciso construir, defender e promover a mudança de cultura no âmbito dos serviços de saúde e compreender que as relações sociais têm influência direta no processo

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de tratamento, saúde e doença. Não perceber a pessoa como um sujeito social é considerála apenas em parte, é fortalecer o modelo de saúde baseado na doença, não nas capacidades e funcionalidades do ser humano. É nesta direção que segue o esforço de traduzir experiências profissionais de relações humanas, acreditando que a produção de conhecimento integrada, onde cada sujeito envolvido tem fundamental importância na construção de um modelo social de atendimento em saúde e reabilitação, que se fundamenta esta pesquisa, na certeza de que a promoção da participação de cada cidadão é o único caminho no sentido de transformar a realidade que se tem hoje. Referências Bibliográficas ALMEIDA. M. C. de; CAMPOS G. V. S. Políticas e modelos assistenciais em saúde e reabilitação de pessoas portadoras de deficiência no Brasil: análise de proposições desenvolvidas nas últimas duas décadas. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo v.13 n.3 São Paulo dez. 2002. Disponível em: . Acesso em: 12 Jul. 2012. BOTELHO, N. L. P. et al. Aspectos Psicológicos em usuários de Prótese Ocular. 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/abo/v66n5/18154.pdf BRASIL. Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, 2008. BRASIL. Portaria GM 793 de 24 de abril de 2012. BRASIL. Portaria GM 835 de 25 de abril de 2012. BRASIL. Instrutivo Reabilitação Visual, 2012. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=30077&janela=1 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: 5°ed., atualizada e ampliada. Saraiva, 2011. CAMPOS. G. W. de S. Considerações Sobre a Arte e a Ciência da Mudança: Revolução das Coisas e Reforma das Pessoas no Caso da Saúde. In: Inventando a Mudança na Saúde. 2°ed.São Paulo, Hucitec, 1997. CECÍLIO. L.C de O. Prólogo. In: Inventando a Mudança na Saúde. 2°ed. São Paulo, Hucitec, 1997. FALEIROS, V. P. Saber profissional e poder institucional. São Paulo: Cortez, 1987. FALEIROS, V. P. Estratégias em Serviço Social. 10 Ed. São Paulo: Cortez, 2011. FREIRE. L. M. B. Et Al. Serviço Social, Política Social e Trabalho. Desafios e perspectivas para o Século XXI. 3° Ed. São Paulo: Cortez, 2010. IAMAMOTO, M. V. O Serviço Social na Contemporaneidade: Trabalho e Formação Profissional. São Paulo: Cortez, 1998. IAMAMOTO, M. V.; CARVALHO, R. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil. São Paulo: Cortez/Celats, 1982. Ludwig Müller-Uri. http://de.wikipedia.org/wiki/Ludwig_M%C3%BCller-Uri SILVA. M. L. L. Um novo fazer profissional. In: CEAD/UnB, Capacitação em Serviço Social e Política Social. Módulo IV: O trabalho do assistente social e as políticas sociais. Brasília: CEAD/UnB, 2000. VASCONCELOS, A.M A prática do Serviço Social. Cotidiano, formação e alternativas na área de saúde. São Paulo: Cortez, 2002.

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