\" SIM! SOU CRIANÇA EU! \" . DINÂMICAS DE SOCIALIZAÇÃO E UNIVERSOS INFANTIS EM UMA COMUNIDADE MOÇAMBICANA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS Centro de Ciências Biológicas e da Saúde Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional Rod. Washington Luís, Km.235-C.P.676-CEP 13565-905-São Carlos-SP. Tel./Fax: (16) 3351-9787

“SIM! SOU CRIANÇA EU!”. DINÂMICAS DE SOCIALIZAÇÃO E UNIVERSOS INFANTIS EM UMA COMUNIDADE MOÇAMBICANA

MARINA DI NAPOLI PASTORE

São Carlos 2015

“SIM! SOU CRIANÇA EU!”. DINÂMICAS DE SOCIALIZAÇÃO E UNIVERSOS INFANTIS EM UMA COMUNIDADE MOÇAMBICANA.

Dissertação apresentada Programa de Pós Graduação Terapia Ocupacional Universidade de Federal de Carlos.

ao em da São

Linha de Pesquisa: Redes Sociais e Vulnerabilidades. Orientadora: Profª Drª Denise Dias Barros.

MARINA DI NAPOLI PASTORE

São Carlos 2015

A todos aqueles que acreditam no brilho do olhar, e às crianças moçambicanas que me fizeram conhecer, enxergar e admirar esse brilho.

AGRADECIMENTOS

Talvez essa tenha sido a parte mais difícil de ser escrita. Pensar e lembrar de todos que me ajudaram a chegar até aqui, desde o rascunho de um possível projeto à conclusão e defesa de um mestrado, me fez ser nostálgica e sentir saudades apertadas de uma distância não tão longa, mas que é grande o suficiente para me fazer apertar o peito e os olhos encherem de lágrimas, ao mesmo tempo em que o rosto esboçava um sorriso. Não pretendo me alongar, até porque não caberia em folhas e palavras meus agradecimentos... Agradeço aos meus pais e meu irmão, que de formas diversas e por vezes tortas, me fizeram entender e compreender que um mundo melhor é possível; só depende do quanto nos debruçamos sobre as questões pelas quais acreditamos e lutamos. Agradeço principalmente a minha mãe, que desde quando eu era criança me mostrou que o mundo não é feito de algodão, e que pode até ter a doçura que imaginamos, basta irmos atrás disso e não desistir, não importa o que aconteça. Do mesmo modo agradeço aos meus avós, que já não estão presentes fisicamente, mas que sempre me apoiaram em tudo que quis fazer e tenho certeza que me acompanham nas decisões e nos caminhos; e agradeço imensamento ao nono e a nona, que sofrem quando estou longe e me acham “maluca”, não entendendo direito o que faço ou o que pretendo, mas que estão lá, me defendendo de quem for, me acolhendo e cuidando de mim com seus mais de 86 e 82 anos, e orgulhosos a cada conquista. Ao meu namorado e companheiro, Lucas, pela paciência e amor nos cinco meses longe, e pelo companheirismo nos dias de hoje. Aos amigos próximos, aos que nem sempre estão presentes, mas que de algum modo aguentam minha loucura e acreditam em mim, e que estão ao meu lado de um jeito ou de outro. A Amandinha, por ter me ajudado, desde 2012, a ir atrás do meu sonho e ter me apresentado um modo de chegar à Moçambique, e por ainda hoje ler tudo o que escrevo e ficar orgulhosa de me ter por perto. Agradeço à Anninha pela ajuda com o inglês e a leitura breve do texto. Agradeço aos meus padrinhos pela primeira boneca negra que me deram, quando ainda tinha 6 anos, e me fizeram perceber que o mundo é bem mais que os estereótipos europeus.

Agradeço aos meus primos e tios que tanto amo e que me fazem compreender que a família, por mais difícil que seja, faz parte de nós. Ao Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Carlos agradeço pela oportunidade dada e pela confiança no trabalho. Do mesmo modo agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela disponibilidade e pelo financiamento recebido durante o processo todo do mestrado, sem o qual a dedicação e viagem ao campo não teriam sido possíveis. A minha turma de mestrado, agradeço a cada uma de uma maneira diferente, mas, de um modo geral, agradeço pelo “folêgo” na reta final e pelas conversas e desabafos trocados coletivamente. Agradeço à toda equipe da Casa das Áfricas: Denise, Mahfouz, Hadi, Debora, Miki, Valdir, Eva, Gianni, Marina, Rafael, Tony e a todos os outros que me incentivam a mostrar o melhor que as Áfricas tem, além da amizade e de todo o apoio ao longo dos anos. Agradeço à AICIMO e ao sr. Patricio pela oportunidade e por ter me levado à machamba pela primeira vez. Agradeço à Roseli, à Patricia, à Maria Antonieta, e à Ana Paula (banca de defesa e suplentes), pelas trocas e interesse no meu trabalho. Foram essenciais para que eu continuasse acreditando e prosseguisse com o estudo. Ao terapeutas ocupacionais, amigos e colegas, e às pessoas que trabalham para um mundo em que a palavra desigualdade seja apenas uma definição no dicionário. Agradeço à Denise, que se tornou mais que minha orientadora, por não só me orientar nos caminhos do mestrado, mas a conhecer diversas rotas e estradas, e que fez enxergar que é permitido sonhar. Agradeço ao Departamento de Letras e Sociologia da Universidade Eduardo Mondlane pelos ensinamentos e pela acolhida. Agradeço em especial as professoras Elena Colonna, que partilhou comigo conhecimentos, angústias, desejos e me ensinou que os estudos com crianças são mais importantes do que muitos imaginam, e a sua família, que me acolheu e me recebeu de forma tão carinhosa, e a Nair Teles, que me fez reabrir os olhos quanto a um projeto infantil e que me permitiu integrar o projeto Munthi Wa SwiVanana (Casa da Criança), ensinando que “ninguém ali trabalha por caridade”, e à Florinda e Madalena, que me ajudaram com os documentos e com as confusões da burocracia universitária.

Aos companheiros de projeto Munthi Wa SwiVanana: Zitha, Duarte, Benilda, Zilu, Gercia e Mariza, pelo trabalho desenvolvido, pelas conversas e pelos momentos prazerosos e surpreendentes. E as crianças do projeto, que em pouco tempo me aceitaram, me integraram e me fizeram parte do seu dia-a-dia, e que me ensinaram que “eu vou, eu vou, pra casa agora eu vou” é muito mais significativa do que parece. Agradeço as minhas duas famílias maputenses: Maibaze e Jamal Caniat, que me acolheram e me fizeram parte, de corpo, alma e coração, e que a todo momento foram minha base e meu porto seguro. Dr André, Dona Gloria, Nilza, Tuxa, Miton, dona Helena, Jamal, Pequina, Deni, Nasser, Junior e dona Rute: a cada um de vocês, com um jeito único e essencial, todo meu amor e minha gratidão. As amigos moçambicanos e a força que cada um me deu. Em especial ao Gabriel, que me levou para dançar, que passeou comigo, que me contou histórias e que ouviu todas as vezes que tinha crises ou dúvidas, ou pelo simples fato de andar pela rua sem rumo. E aos amigos que, de algum modo, encontrei em Moçambique. As professoras, professores e ao diretor da Escola Primária Completa Matola “A”, com quem partilhei diversos momentos e que me acolheram em suas aulas, em seus dias e em suas vidas. Em especial a professora Lucia e a professora Emilia pelo contato desde o primeiro dia de 2012 até as maiores lições nos últimos dia de 2014, e agradeço pelo modo como são com as crianças e o doar-se ao ensino. E, por fim, mesmo sabendo que ainda faltam muitas pessoas, situações, lugares e momentos, agradeço as famílias e às crianças. As minhas famílias e as minhas crianças. As famílias que me aceitaram, me acolheram e escolheram, me fizeram parte, me deram bronca quando ficava muito tempo sem aparecer, ou que me queria por perto sem que eu sumisse de vista, que me ligava à noite para saber se cheguei bem em casa ou se havia comido bem, já que não estava em suas casas. Por me darem pão quando tinha fome, por me oferecerem chá no momento do matabicho, por não me deixarem sem um prato de comida, mesmo quando era insuficiente até para eles mesmos, e por me ensinarem a fazer as comidas típicas que tanto gosto. Pelas festas e pelas risadas, pelas danças, pelos cantos, pelas histórias e pelos abraços e beijos. Por todo afeto e todo amor. As minhas crianças. Não tem palavras que descrevam. O coração aperta, as lágrimas dispontam nos olhos e o sorriso não cabe no rosto. Cada momento, cada situação, cada olhar, cada riso, cada lágrima, cada abraço e cada brincar. Cada ensinamento e cada aprendizado, cada zotho (pega-pega) e tcho-tcho-tcho (esconde-esconde), os chingufus (bola) feitos e

bonecos de barro, as conversas e segredos, os desenhos, as noites, os dias, as tardes. Por simplesmente tudo o que passamos e por vocês conseguirem revelar o meu lado mais humano. Por acreditarem e confiarem em mim, e por me fazerem voltar uma, duas, três e quantas vezes ainda forem possíveis! Kanimambo1!

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Palavra em uma das línguas maternas (changana), que significa “obrigada”.

“Que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós”. Manoel de Barros

RESUMO A partir das últimas décadas, os estudos em torno da concepção da infância e com crianças e seus modos de vida têm crescido progressivamente, embora sua produção ainda seja insuficiente. Pesquisadores e estudiosos da infância buscam compreender os modos de ser criança através do cotidiano e contextos específicos das culturas e sociedades as quais pertencem, colocando-a como protagonista de sua história e buscando a desuniversalização do termo infância, que acarreta numa imagem de criança normativa ou fora da regra. As crianças africanas, por sua vez, são postas como “fora do lugar” por não seguirem os padrões e normas das crianças europeias e norte-americanas: vão de casa para a escola (quando vão para a escola), de lá para alguma outra atividade e responsabilidade: cuidam dos irmãos, ajudam em casa ou na geração de renda, entre outros. Através do quadro apresentado em experiência anterior em uma comunidade periférica próxima a capital de Moçambique, algumas indagações iniciais foram levantadas e posteriormente formuladas, trazendo para a questão o que é o ser criança em uma comunidade moçambicana. O objetivo traçado foi de conhecer e compreender as formas e dinâmicas de socialização infantis neste território. Entendeu-se que para tal era necessário uma pesquisa em que a realidade se mostrasse presente, e a opção foi pela etnografia, cuja pesquisa de campo foi realizada num bairro da Cidade da Matola durante um período de 5 meses. Foram escolhidas 5 crianças para participarem da pesquisa, cujo tempo de convivência foi de aproximadamente 20 dias com cada uma, participando de suas rotinas e atividades domésticas, comunitárias e escolares. Ao estar dentro de suas casas e em seus espaços de pertencimento, pode-se observar que a criança, neste entorno, pertence à família e à comunidade, criando laços e desenvolvimento afetivo entre pessoas de diferentes gerações e de seu convívio, e responsabilidades que culminam em sua formação. As crianças possuem tarefas e responsabilidades que lhe são atribuídas pautadas na divisão social do trabalho. Entre uma atividade e outra, via-se que o brincar e o lúdico sempre estavam presentes, fosse na casa, na rua ou na escola. O lúdico e o riso permeiam o imaginário e os mundos infantis, produzindo formas de ser, estar e atuar no mundo ao qual partilham e pertencem. A escola, outro local de pertencimento da criança e de convívio diário, foi um espaço bastante frequentado e discutido. Tais situações e momentos partilhados são trazidos em forma de narrativas, compreendendo que tal forma de escrita possibilitam a reconstrução e descrição dos momentos vivenciados e suas reflexões. Compreende-se que há uma necessidade de estudos em que se possam desconstruir os modos como as infâncias são impostas e propiciar rupturas em sua universalização, entendendo que não há uma única infância, a partir de um contexto específico, pautado pelo tempo-espaço em que vivem, buscando o direito das crianças de vir a ser e de serem protagonistas dos mundos aos quais partilham e pertencem. Tal estudo visa também contribuir para as pesquisas sobre as infâncias e sociedades africanas. Palavras-chave: infância; criança e cotidiano; etnografia; Moçambique; terapia ocupacional social.

ABSTRACT Since the last decades, the studies around childhood conceptions and children's way of living have grown progressively, although it‟s production is still scarce. Researches and scholars from childhood seek to understand the way of being a child through their daily life and specific contexts from cultures and society from which they belong, placing the child as a protagonist of it's own story and seeking the deconstruction from the term "infância" (childhood), which ends up in an image of a normative or outside the rule child. On the other hand the African child is placed as "out of place" for not following the pattern and rules of the European and north-american child: go to school from home (when they go to school), from there to another activity or responsibility: take care of siblings, help with the work at home, or with the income, among other activities. Through the presented picture in a previous experiment in a peripheral community near Mozambique, some initial questions were raised and subsequently formulated; bringing the issue about what is it like to be a child in a Mozambican society. The outlined objective was to know and understand the ways and dynamics of child socialization in this territory. It was understood that it was necessary a research in which the reality was present and the option was for the ethnography, the field research was made in a neighborhood in the Matola city, during a 5 months period. 5 children were chosen to participate in the research, which the acquaintanceship period was approximately 20 days, participating in their routines and domestic, community and school activities. By being inside their homes and their space of belonging , one can observe that the child in this environment belongs to the family and to the community, creating bonds and emotional development between people in different generation and their daily life, and responsibility that end up in their formation. Children have tasks and responsibilities that are assigned to them guided in the social division of work. Between activities one could observe that to play and the playful are always there, at home, at the street or at school. The playful and the laugh permeates the imagination and the childhood world, producing ways of existing, being and acting in the world that they share and belong. The school, the other place of belonging of a child and daily living, was a week attended place with lots of discussion, those situations and shared moments are brought in narratives, realizing that the writing way enable the reconstruction and description of the living moments and its reflections. It's understandable that there is a need of study in which one can deconstruct the ways that the childhood is imposed and enable ruptures in its universalization, understanding that there isn't only one childhood, from one specific context, based on the time-space in which they keep searching the right of a child of coming and going and of being protagonists in the world that they share and belong. This study also aims to contribute to the researches about childhood and African society. Key words: childhood; child and everyday life; ethnography; Mozambique; Social Occupational Therapy.

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO E MOTIVAÇÕES ................................................................................ 12 CONSTRUÇÃO DO PROBLEMA, JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS ............................................. 15

Discussão sobre a infância na literatura ................................................................................ 17 Contextualizando o universo do estudo ................................................................................ 21 Opções metodológicas: o estudo etnográfico ........................................................................ 24 O estar em campo: relato do processo de pesquisa ................................................................ 27 Participantes do estudo ......................................................................................................... 40 Questões éticas .................................................................................................................... 42 CAPÍTULO 1 – A HISTÓRIA NÃO COMEÇA NO MOMENTO EM QUE NÓS CHEGAMOS: CONHECENDO A CIDADE E O BAIRRO DO MEU ESTUDO E A CONTEXTUALIZAÇÃO DE MOÇAMBIQUE............................................................................................................................... 47 1.1 A grande Maputo e a Cidade da Matola ....................................................................................... 47 1.2 O bairro da Matola A: famílias e comunidade .............................................................................. 51 1.3 Guerra de libertação .................................................................................................................... 56 1.4 Guerra civil ................................................................................................................................. 61 CAPÍTULO 2 – NARRATIVAS PARTILHADAS: AS SINGULARIDADES, VIVÊNCIAS E DIÁLOGOS DO SER CRIANÇAS NO ESPAÇO DOMÉSTICO, COMUNITÁRIO E NA EXPERIÊNCIA DO BRINCAR. ....................................................................................................... 68

2.1. Adelaide ........................................................................................................................ 69 2.2. Januar ........................................................................................................................... 86 2.3. Gina ............................................................................................................................ 102 2.4 Félix............................................................................................................................ 122 2.5. Benito ......................................................................................................................... 139 BRINCAR: A ESSÊNCIA DO SER CRIANÇA.............................................................................. 153 CAPÍTULO 3 – ESCOLA: UMA QUESTÃO QUE SE REPROPÕE .............................................. 159

3.1 Adelaide e a escola ...................................................................................................... 161 3.2 A escola para Januar.................................................................................................... 166 3.3 A escola, Gina e o brincar ........................................................................................... 170 3.4 A escola e as dinãmicas de Félix ................................................................................. 176 3.5 Beni e as aberturas da escola ........................................................................................ 181 BRINCAR E APRENDER: OPOSIÇÃO OU COMPLEMENTARIDADE? ...................... 185 CONSIDERAÇÕES FINAIS. FINAIS? A ETNOGRAFIA, A FOTOGRAFIA E A TERAPIA OCUPACIONAL SOCIAL. .......................................................................... 192 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 197 ANEXO – CADERNO DE IMAGENS ........................................................................................... 209

APRESENTAÇÃO E MOTIVAÇÕES

Menina que brinca, que vai pra escola; menina que chora, menina que ri. Menina que briga, menina que cuida e carrega. Menina que gira e brinca de roda. Menino que joga, menino que corre, menino que vende, que sobe em caçamba. Menino que vê, menino que pula, que pega carona, e menino que volta. Menino que cuida de casa... Quantas crianças cabem em si? Ano de 2012, ano de Moçambique. Foram dois meses ali na Matola A: questionamentos de antes, indagações que se repetem. O que poderia eu querer, o que estaria ao meu alcance afetivamente, intelectualmente? Se apenas ao ver, não consigo enxergar? Como, estando de fora, geramos regramentos para quem está dentro? Por que, para quem acho que posso dizer do Outro? Um ano e meio passou. As crianças ainda correm muito. Agora talvez mais do que antes. E brincam também. Elas agora cuidam de mim além dos irmãos e brincam muito. Quantas coisas fazem? Crianças de muitas idades, cuidam, trabalham. Trabalham? E brincam de roda, de ponta-cabeça, brincam de cócegas, e vão pra escola. Que mundo é este, o da escola? Estudam um pouco e logo desenham. Preciso é não se atrapalhar, têm que passar de ano. E, ao voltar, em casa, precisam assumir seus muitos lugares e ajudar. Ajudar? Mas isso é ser criança? Vou lá perguntar: - E você, é criança? Resposta plural, som unívoco: - Sim! Sou criança eu! Eu sou! Eu sou ... Marina Di Napoli Pastore (CADERNO DE CAMPO, 2012)

No ano de 2012, no mês de julho, tive a oportunidade de realizar um trabalho social numa Organização Não-Governamental (ONG) no bairro da Matola A, localizada na Cidade da Matola, proximidades da capital moçambicana. A ONG atendia, em parceria com uma escola pública da região, 822 crianças com idades entre 3 e 15 anos, vinculadas a programa de 12

apoio a educação do primeiro grau do ensino primário da 1ª à 5ª classe (Governo de Moçambique. Lei Nº 6/1992).2 Durante o trabalho que desenvolvi na instituição moçambicana, participei de um mapeamento de famílias das crianças com objetivos diversos, tais como: estabelecer o número de pessoas por família/grupo doméstico; avaliar a estrutura física das moradias; número de crianças matriculadas em escola da região; nível econômico e números de pessoas com emprego formal. No decorrer desse processo pude notar que o dia-a-dia das crianças transcorria em um intenso trânsito da casa para a ONG e vice-versa. No âmbito doméstico, estavam frequentemente ocupadas em diferentes atividades. Tive oportunidade de conhecer, então, um número significativo de crianças e familiares, ressaltando uma diversificação importante na composição dos membros do grupo doméstico, traduzindo um desenho plural do sentido mesmo da definição de família nos bairros de caniço: grande número de pessoas em espaços pequenos, habitações precárias, sem serviços básicos de saneamento; economias centradas na busca da subsistência. Muitas crianças auxiliavam nas atividades domésticas e econômicas; além de frequentarem a escola, circulavam sem a companhia de adultos por lugares diferentes do bairro: igreja, casa de parentes (como tios) ou de outros membros da comunidade. O cotidiano mostrou pertencimentos diversificados. Foi durante esse período que as questões sobre as atividades na/da infância passaram a me interessar. Quais seriam os espaços do brincar dessas crianças? Em qual momento elas podiam, de fato, ser crianças, naquele cotidiano que, então, me parecia tão regrado? Como entender o fio que separa socialização da noção de trabalho infantil, lembrando que o Fundo das Nações Unidas para a Infância, Unicef, considerou grave o envolvimento de crianças moçambicanas em trabalho nefasto, durante a III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, ocorrida em 2013? Mas, como apreender essa questão do ponto de vista interno, ou seja, na perspectiva das crianças, das famílias, educadores da própria comunidade? A experiência de 2012, juntamente com a minha formação como terapeuta ocupacional, criou, igualmente, um interesse afetivo, desenvolvido no meu próprio cotidiano

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O Sistema Nacional de Educação de Moçambique prevê do Ministério da Educação os níveis primário e secundário. O Primário, iniciado com a criança de 6 anos completos, possui sete classes, sendo elas subdivididas em 1º grau (da 1ª à 5ª classe) e 2º grau (6ª e 7ª classes). Secundário se realiza em cinco anos com dois ciclos: 1º ciclo (da 8ª à 10ª classe) e 2º ciclo (da 11ª à 12ª classe). Ver http://www.portaldogoverno.gov.mz/Legisla/legisSectores/edu_leg/reajusteSNE.pdf

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que gerou laços com as crianças, mais fortemente com algumas: brinquei, ri, chorei e estudei com elas, senti medo e curiosidade em vivências partilhadas. Retornei ao Brasil e muitas questões ainda permaneciam. Decidi não deixar escapar essa oportunidade de aprendizado, assim emergia a necessidade de continuar os estudos que me levariam a formular a pesquisa de mestrado. O problema inicial possuía uma formulação geral, ligada aos sentidos de ser criança em Moçambique. De maneira mais específica formulei as questões centrais: quais são as atividades que permeiam o dia-a-dia das crianças em Matola A, sejam elas espontâneas ou atribuídas como responsabilidades e/ou dever? Quais os universos de socialização? Quais os discursos sobre a infância (da escola, da família, das crianças)? Como se realizam as dinâmicas de socialização? A pesquisa foi se desenhando e o foco passou a ser, então, a compreensão da(s) noção(ões) de infância situando-se com base em estudo empírico em uma comunidade urbana da periferia da capital moçambicana. O esforço centrou-se na discussão sobre como se processam as relações entre as crianças e entre elas e os adultos, ressaltando as dinâmicas e processos que geram suas responsabilidades nas atividades cotidianas familiares, escolares e comunitárias. Assim, o objetivo do estudo delineou-se a fim de compreender como as crianças organizam seu dia-a-dia, quais são as atividades valorizadas, desejadas e exigidas no contexto cultural e sociopolítico das famílias, da comunidade e da escola. Procurei conhecer e descrever as atividades e responsabilidades infantis orientada pelas seguintes questões: quais são as atividades realizadas pelas crianças nos meios em que participam? Como são percebidas as tarefas cotidianas? Como as crianças se relacionam entre pares e entre elas e os adultos? Quais são as dinâmicas próprias daquele contexto? Como se dá o brincar? Em quais espaços ele é permitido? Um dos grandes desafios vivenciados na formulação e no desenvolvimento da pesquisa situa-se no bojo mesmo da literatura específica sobre a criança na África. O foco se fez na busca de estudo que assumisse as crianças como atores sociais e de sujeitos de direitos e de participação sociopolítica. O desenho do estudo se fez situando a criança em local e tempos específicos e recusando metodologicamente as visões de infância universal. Busco, assim, contribuir para a compreensão da criança moçambicana nos dias atuais, considerando, também, a história recente e sua repercussão sobre suas vidas. A dissertação está organizada na forma de apresentação com motivações e a construção do problema central do estudo, seguida de três capítulos e considerações finais. 14

Em anexo, há um caderno de imagens com algumas das fotos que as crianças selecionaram para seus álbuns. A apresentação traz a discussão de como a pesquisa foi planejada e realizada, desde a construção do problema no trabalho de campo e sua subsequente análise de dados. O primeiro capítulo discute a constituição do bairro da Matola A, universo do estudo, e sua relação histórica dentro da Cidade da Matola e do país, com suas respectivas guerras. No segundo capítulo, explora-se, em forma de narrativas, as histórias vividas com as crianças e suas famílias nos espaços doméstico e comunitário, no qual há ênfase para o brincar. O terceiro capítulo traz um retrato das experiências das crianças no espaço escolar e como tal instituição acaba por se configurar na realidade em que está inserida. Por fim, as considerações finais apresentam, a título de conclusão, a reflexão e discussão que pretendemos estabelecer dentro do campo de pesquisas com crianças e dos estudos sobre as infâncias, apontando para a realização de uma prática em contextos outros, com culturas e situações sociopolíticas distintas, em que a criança possa ser entendida a partir de um espaço-tempo específicos, culturais e sociais. Pretende-se, ainda, contribuir para os estudos pesquisas sobre as sociedades africanas.

CONSTRUÇÃO DO PROBLEMA, JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS

É preciso que nos convençamos de que as aspirações, os motivos, as finalidades que se encontram implicitados na temática significativa são aspirações, finalidades, motivos humanos. Paulo Freire, 2011.

O objetivo central da pesquisa que embasa esta dissertação volta-se para a compreensão do universo de socialização de crianças moçambicanas em idade escolar, entre os 7 e 13 anos de idade, a partir de estudo de campo realizado em um bairro periférico da capital do país. Na Convenção sobre os Direitos da Criança ratificada por Moçambique através da Resolução n.°19/90, considera-se criança “todo indivíduo compreendido entre os 0 e 18 anos de idade”, com uma distinção na definição dessa criança, colocada na Resolução nº 32/2006 da legislação moçambicana, em que, a partir dos 15 anos o conceito adotado é o de jovem (compreendido como idade apta ao trabalho): “considera-se jovem todo indivíduo entre

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15 e 35 anos”(UNICEF, 2006; REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, 2012; ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2012). O estudo sobre a criança moçambicana nos dias atuais, temática central desta pesquisa, exigiu uma atenção a sua história recente, marcada pelas relações coloniais com diversas formas de exploração delas decorrentes e, igualmente, pelo longo período das lutas pela independência (1964 a 1975) e a guerra civil (1976 a 1992). Alguns autores, de diferentes disciplinas, como Couto (1992), Costa ( 2004; 2011), Cabaço (2007) e Granjo (2007; 2009), entre outros, enfatizam a importância da violência vivida - física e simbólica -, principalmente no período da guerra civil. Desta forma, a sociedade conheceu deslocamentos e migrações em massa do campo para a cidade e vice-versa, modificação dos grupos domésticos com constituição de famílias alargadas pelo grande número de agregados e circulação descontrolada e involuntária de grande número de crianças e jovens pelo território nacional. As questões mobilizadoras iniciais surgiram da experiência anterior mas assumem questionamentos novos, pois trabalham sobre a construção da percepção acerca da criança a partir da descrição e entendimento de suas atividades cotidianas e do modo pelo qual a responsabilização participa da socialização na infância. Ou seja: quais são as tarefas e responsabilidades, considerando as práticas histórico-culturais e sociopolíticas em que emergem? Como organizam seu dia-a-dia em atividades e responsabilidades atribuídas, tempo livre? Quais são as atividades mais valorizadas, desejadas e exigidas no contexto da família, do bairro, da escola? De que forma o Estado moçambicano se faz presente? A partir desse objetivo mais amplo, outros específicos foram sendo delineados:

1. Observar e descrever quais são as atividades realizadas pelas crianças nos cenários doméstico, cultural e educacional, bem como as formas de responsabilização das mesmas nesses espaços sociais (família, escola e bairro). 2. Discutir como são percebidas as tarefas cotidianas das crianças na família, na escola e no bairro. 3. Discutir as responsabilidades atribuídas às crianças e a noção de trabalho e de direitos da infância a partir da percepção de seus atores e das pessoas envolvidas no seu processo de socialização. 4. Compreender as relações estabelecidas entre as crianças e, entre elas, e os adultos nos âmbitos doméstico, escolar e do bairro. 16

5. Compreender e discutir as dinâmicas estabelecidas pelas crianças na casa, na escola e no bairro, buscando a percepção sobre seus espaços de significação.

DISCUSSÃO SOBRE A INFÂNCIA NA LITERATURA Conhecer as crianças impõe, por suposto, conhecer a infância. Isto vale por dizer que os itinerários individuais, privados e singulares de cada criança só fazem completo sentido se perspectivados à luz das condições estruturais que constrangem e condicionam cada existência humana. Sarmento, 2002, p. 16.

O primeiro levantamento realizado acerca da questão da infância em Moçambique, principalmente em literatura de língua portuguesa, mostrou que ainda é escassa a produção específica de documentos que trazem a criança como foco principal, excetuando-se alguns documentos oficiais moçambicanos. Estes últimos constituem documentos publicados pela UNICEF-Moçambique, como o relatório “As crianças em Maputo Cidade: cifras e realidade” do Instituto Nacional de Estatística de Moçambique, ou ainda, o Plano Nacional de Acção para a Criança 2006-2010 (GOVERNO DE MOÇAMBIQUE, 2006) e o Plano Nacional de Acção para Crianças Órfãs e Vulneráveis (CARDOSO, 2010). A preocupação predominante está ligada a problemáticas delimitadas como o adoecimento, o abrigamento, a vulnerabilidade social, a adoção, a situação de rua, entre outros. Nenhum deles preocupou-se, porém, em compreender a infância no país e nem dialogou diretamente com as crianças. Percebi que, embora as crianças fossem temas decorrentes de pautas levantadas por alguns dos órgãos, como os citados acima, o material bibliográfico sobre a infância era escasso e a preocupação com o dia-a-dia das crianças, seus modos de vida, responsabilidades e direitos a partir de uma visão contextual era praticamente inexistente. A infância é assumida de forma genérica e abstrata, ocultando ou deixando de explicitar sua definição e as premissas que orientam sua concepção. Percebi, deste modo, que esse material era insuficiente para alicerçar o caminho que pretendia trilhar. Passei a buscar, então, estudos sobre a infância na África, ampliando a pesquisa quanto ao campo empírico e a língua (português e inglês) de produção acadêmica. Mesmo assim, a criança africana raramente apareceram. Eu buscava referências que dessem voz às crianças, e que não restringissem a infância à perspectiva da vulnerabilidade e da falta, predominante nos estudos sobre crianças no continente africano. Neles, são diversos os 17

estudos com temas envolvendo privações e violação de direitos das crianças (JONKER, SWANZEN, 2007; SARKYM, 2008; VAN AS, MILLAR, 2012; WITTENBERG, 2013; HENDRICKS, 2014, entre outros) e, também, sobre a questão de adoção (MEZMUR, 2008). Em outras publicações, seus autores discutiam o envolvimento da criança-soldado nas guerras (HONWANA, 2005), a exploração pelo trabalho, ou ainda sua presença em rituais de passagem/socialização (SCHUTTE, 1980; ADEYANJU, SALAMONE, 2014, entre outros). Connolly e Ennew (1996), criticam as abordagens tipo “out of place”, isto é, a insistência em perspectiva que compreende a criança africana como fora da infância normativa por não corresponder aos padrões definidos a partir da referência societária não africana. Afirmam que é fundamental estabelecer outras bases para a compreensão das crianças africanas pois elas possuem experiências diversas do padrão ocidental, no qual a criança vive fundamentalmente entre a casa e a escola, ocupando-se, no dia-a-dia, das brincadeiras e das tarefas escolares (estudos) em espaço e tempo precisos e divididos. Elas ocupam outros lugares e possuem outras atividades; a infância é entendida, por esses estudos, como uma categoria normativa, sem que haja desvios aceitáveis. Tarefas e responsabilidades infantis não entram nesse discurso, a criança africana acaba por ser vista e apresentada como “fora de lugar”. Nos últimos anos, porém, essa questão vem sendo trazida para um debate no qual a infância não deva ser percebida em uma perspectiva universalizada, mas contextualizada. Quando consideramos a criança como “fora de lugar”, as ações realizadas por elas acabam sendo associadas a desvios e/ou patologias, e suas famílias, comunidades e países, considerados culpados e estigmatizados. Não podemos estudar a criança sem questionarmos a infância, os modos e meios que a circundam, as relações e símbolos que a permeiam, as gerações, enfim, a sociedade e as culturas em períodos históricos precisos. No período que passei em Maputo, de fevereiro a julho de 2014 para realização da pesquisa de campo, duas experiências enriqueceram o trabalho. A primeira, foram as aulas de Sociologia da Infância na Universidade Eduardo Mondlane, ministradas pela Drª Elena Colonna, cuja pesquisa de doutoramento foi sobre o trabalho de cuidar de irmãos das crianças de um bairro periférico também próximo à capital do país. A segunda, foi a participação no projeto Munthi Wa SwiVanana (Casa da Criança), do Grupo de Pesquisa Sociedade e Saúde, coordenado pela Drª Nair Teles. Ambas me colocaram diante de questões e experiências que acabaram por favorecer um espaço para trocas e discussões a respeito do trabalho de campo e do meu entendimento acerca da infância. 18

A sociologia da infância foi essencial para o desdobramento da pesquisa: para o entendimento da infância através de suas condições sociais e culturais, sem excluir os aspectos que envolvem a vida cotidiana e as relações. Assim, os autores do campo da sociologia da infância com foco sobre a linha interpretativa passaram a ser um referencial teórico importante, pois nele a criança constitui ator social que recebe, interpreta e devolve o conhecimento adquirido.

Ao estudar a infância, não é apenas com as crianças que a disciplina se ocupa: é, com efeito, a totalidade da realidade social o que ocupa a Sociologia da Infância. Que as crianças constituem uma porta de entrada fundamental para a compreensão dessa realidade é o que é, porventura, novo e inesperado no desenvolvimento recente da disciplina (SARMENTO, 2008b, p. 19).

Esta orientação volta-se para a ação das crianças, que recebem, elaboram, interpretam e desenvolvem conhecimentos recebidos de acordo com sua maneira de ser e de estar no(s) mundo(s) ao(s) qual(is) pertence (COLONNA, 2014; SARMENTO, 2014). Trata-se, portanto, de estudar os sentidos das ações das crianças, assim como os significados que assumem em meio social. James e Prout (1990), e Alanen (2001), assumem a infância como uma fonte para a análise social e cultural específica que varia de acordo com a sociedade por razões diversas: econômicas, sociais, culturais, de gênero, de etnicidade, entre outras. Não há uma única forma de infância, bem como não é possível chegarmos a um modelo de criança atemporal e descontextualizado culturalmente. Deste mesmo modo, a criança é vista de maneira ativa: ela interage e interfere na sociedade como tal, desenvolve processos de adaptação, apropriação, reinvenção e reprodução realizadas por elas próprias – “sujeito concreto que integra essa categoria geracional [infância] e que, na sua existência, para além da pertença a um grupo etário próprio, é sempre um actor social que pertence a uma classe social, a um género, etc.” (Sarmento, 2005, p. 371). A criança negocia, compartilha e cria cultura com seus pares (CORSARO, 1997; DELGADO E MÜLLER, 2005) e o modo como realiza tais processos, deve ser apreendido em estudos qualitativos e singularizados. Considerando as crianças como atores sociais de pleno direito, não como depositários ou “miniadultos”, passa-se a reconhecer também a capacidade da criança enquanto produção simbólica e cultural. Sarmento (2004) afirma que, ao reconhecer a contribuição das crianças, 19

passamos a falar sobre culturas da infância ou culturas infantis, sendo estas consideradas como um conjunto de atividades que formam uma rotina, ou artefatos, valores e ideias que as crianças compartilham com seus pares e com pessoas de seu universo de interação. As culturas da infância são resultantes dos modos diferenciados, de dinâmicas sociais, bem como das relações sociais e as estruturas das mesmas. Sarmento coloca que “essa convergência ocorre na acção concreta de cada criança, nas condições sociais (estruturais e simbólicas) que produzem possibilidade da sua constituição como sujeito e actor social” (SARMENTO, 2004, p. 374), o que reforça o direcionamento de um entendimento sobre as relações sociais e meios aos quais a criança está inserida, e não apenas a infância de maneira isolada. Sarmento e Pinto defendem que “a interpretação das culturas infantis, em síntese, não pode ser realizada no vazio social, e necessita de se sustentar na análise das condições sociais em que as crianças vivem, interagem e dão sentido ao que fazem” (SARMENTO, PINTO, 1997, p.11). As variações sociais e as condições em que as crianças vivem são fatores fundamentais para a heterogeneidade existente entre as crianças, pois, além das questões individuais, há as de estrutura social na qual elas se encontram, que acabam por delinear a posição social ocupada pela criança, que, segundo Sarmento e Pinto (1997), mobiliza formas de ser e estar dentro do contexto familiar e perante a estrutura ocupada, como modos de socialização, valores, desempenho em atividades domésticas, aspirações e estratégias familiares, entre outros. A criança, tal como a infância, deve ser compreendida a partir de contextos abrangentes, como sociedade e cultural às quais estão inseridas. Sarmento e Pinto entendem que O estudo das crianças fora dos respectivos contextos sociais de pertença poderia iludir numa categoria comum a existência de diferenças essenciais à compreensão dos seus modos diversos de agir socialmente. Parece por isso indispensável considerar na investigação da infância como categoria social a multivariabilidade sincrónica dos níveis e factores que colocam cada criança numa posição específica na estrutura social. Em simultâneo, é necessário considerar os factores dinâmicos que possibilitam que cada criança na interacção com os outros produza e reproduza continuamente essa estrutura. Preconiza-se, deste modo, uma perspectiva para a inteligibilidade dos mundos de vida das crianças que não ilude a natureza individual de cada ser humano, mas que a considera no quadro relacional múltiplo e dinâmico que constitui o plano da estrutura e da acção social (SARMENTO E PINTO, 1997, p. 11).

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Por isso, ao estudar a infância é essencial não cindir nem deslocar a criança de seu mundo, pois se trata de experiência com especificidades que se modificam de acordo com a experiência histórica e a vivência de cada pessoa. Colonna (2009), ao pôr em causa a criança “out of place”, redimensiona as experiências infantis de crianças que “quotidianamente brincam, cuidam dos irmãos, estudam, ajudam nas tarefas domésticas, trabalham, se organizam e lutam continuam a ser sistematicamente ocultados pela imagem das „crianças africanas pobres e doentes‟” (COLONNA, 2009, p. 20). A infância constrói seus sentidos a partir de “olhares e interpretações de indivíduos sociais e culturalmente localizados”, sendo, de tal modo, um “fenômeno plural e relacional” (COLONNA, 2009, p. 12).

Eis então a relevância de ocupar-se da multiplicidade de condições de existência das crianças num dado contexto e não apenas de algumas categorias, porque o significado da vida de uma sociedade está ligado de forma indissolúvel ao que faz ou pensa fazer com todas as suas crianças (COLONNA, 2009, p. 11).

Estudar a infância em Moçambique significa, então, estar conectado à realidade local, conhecer e reconhecer os valores e culturas existentes, que delineiam os modos como a criança é vista e percebida. Não podemos estudar a criança sem questionarmos a infância, os modos e meios que a circundam, as relações e símbolos que a permeiam, as gerações, enfim, a sociedade como um todo, frutos de uma cultura. “Estudar uma sociedade sem levar em conta como as categorias sócioetárias que a compõem, entre as quais a das crianças, agem e pensam, é, antropologicamente, um estudo incompleto” (COLONNA, 2009, p. 19 citando Ângela Nunes, 1999). Este é um esforço importante: contribuir para a discussão sobre as crianças urbanas, vivendo na periferia da capital moçambicana: conhecer suas atividades e responsabilidades, suas dinâmicas e relações, com seu lugar singular no mundo, no seu mundo.

CONTEXTUALIZANDO O UNIVERSO DO ESTUDO A história do continente africano é marcada por inúmeros desafios sociais, políticos e econômicos, vinculados à formação dos Estados Nacionais cujas origens não se separam dos processos de colonização europeia. Esta, por sua vez, já carregava as marcas do longo período de exploração e da escravização. 21

Na contemporaneidade, as sociedades africanas são confrontadas com os processos de neocolonização e monopólio crescente de investimentos estrangeiros, principalmente nos setores industriais, agrícolas e de extração de minérios e petróleo, além de grande ingerência externa, notadamente do Banco Mundial. Elas devem, ainda, fazer face a diferentes desafios como: 1) as políticas monetárias de instituições controladas pelos ex-colonizadores; 2) a problemática de governança e de governabilidade de populações que, muitas vezes, não compreendem ou não se reconhecem em seus governos; 3) os pactos de empresas internacionais

com

governos

locais

que

dificultam,

ou

mesmo

inviabilizam,

concepção/mudança de leis trabalhistas, visando melhorar a distribuição da riqueza assim como condições de trabalho e salariais; 4) o tráfico de armas; 5) a conivência de líderes africanos com interesses que conflitam com o desenvolvimento social e cultural (SANTOS, 2010). Moçambique, país em que propomos nosso estudo, localizado ao sul do continente, possui uma história recente marcada por guerras. Ressaltamos a ocupação dos portugueses de seu território, e, posteriormente, a guerra pela libertação do país que tomou contornos mais nítidos em 1964. A guerra, surgida como resultado da violência da administração portuguesa, limitando direitos individuais e acesso à terra e a bens sociais, como educação, emprego formal e cidadania, eclode numa tentativa de busca por independência. Em 1975, após um período longo de guerra e de grande desgaste político, econômico e social, os moçambicanos conquistam a independência (Mosca, 2008; Santos, 2010). Porém, o período de paz durou pouco: em 1976 começaria uma nova guerra, dessa vez contrapondo a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) – que lutou contra o exército português na guerra de libertação – e a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), partido surgido como grupo opositor. A violência física e simbólica foram marcas importantes deste período, com consequências e cicatrizes que permanecem até os dias atuais: migração de famílias inteiras do campo para a cidade, no intuito de fugir dos ataques e dos campos de concentração instaurados; desagregação das relações comunitárias e formação de grupos domésticos com grande número de pessoas (parentes e agregados com diversos tipos de vínculos e alianças) numa tentativa de buscar meios de sobrevivência; economia baseada na subsistência; entre outras questões. A guerra chega ao fim em 1992, mas seus efeitos não cessam aí. Sendo um dos principais centros urbanos de Moçambique, a Cidade da Matola é considerada como extensão de Maputo, como área suburbana da capital. Ela foi criada no período colonial – 17 de novembro de 1945 - como posto administrativo, obtendo sua 22

emancipação municipal dez anos depois. O município possui três postos administrativos: Infulene, Machava e Matola Sede, cada um com diversos bairros. Matola Sede - onde se encontra o bairro Matola A, local da pesquisa de campo deste estudo - é o mais populoso e com maior precariedade quanto à infraestrutura urbana (ARAÚJO, 2006). A cidade foi fortemente impactada pelas guerras, mas seu crescimento intenso mantém-se até nossos dias. Há outra diferenciação importante em Matola Sede, que está vinculada ao tipo de construção das habitações: a divisão entre as casas de cimento e as de caniço onde a água não é canalizada e a eletricidade não chega. Araújo afirma que este fato pode ser explicado porque o posto administrativo possui a maioria dos bairros suburbanos com ocupação desordenada e com as maiores densidades demográficas, dificultando a implantação de infraestrutura urbana e social. Deste modo, as estratégias econômicas e de redes sociais alternativas são fundamentais para sobrevivência das pessoas que ali vivem. O aumento do número de habitantes vem ocorrendo ao longo das últimas décadas. Nas décadas de 1960 e 1970, o crescimento populacional foi favorecido pela expansão urbana colonial, além da instalação de parque industrial. Assim, com a instalação de fábricas grande movimento migratório ocorreu e diversas famílias deixaram as áreas rurais; este movimento foi intensificado, ainda mais, pela guerra civil (ARAÚJO, 2006). A cidade é caracterizada, principalmente, por uma presença de pessoas de vários pertencimentos étnicos ocasionada nos períodos coloniais e de guerras: ronga, pertencente ao grande grupo dos tsongas (changanas, rongas e matswas), além de chopes, bitongas e matswas (COSTA, 2004; 2011). O posto da Matola Sede, considerado o maior em extensão, é caracterizado, ao mesmo tempo, por possuir a maior taxa de natalidade e o maior número de mulheres em idade reprodutiva. Sua população geral é jovem, com um total de 42,5% de pessoas com até 15 anos, sendo que 55% possui menos de 20 anos (ARAÚJO, 2006). Matola A foi, por sua vez, constituído inicialmente por trabalhadores das fábricas de cimento ou de alimentos que utilizavam o bairro apenas para dormir (em meados de 1968), uma vez que seus locais de origem ou nos quais moravam com suas famílias eram muito distantes. Com a guerra civil, durante o período de 1976 a 1992, principalmente a partir de 1982, o bairro acabou servindo como fluxo migratório de muitas pessoas, que acabaram se refugiando e construindo suas casas ali. A divisão do bairro é feita em quarteirões: são 55 quarteirões. A princípio, cada quarteirão era dividido a cada 40 casas; com o grande número migratório no bairro, a contagem já não é assim (mas não há uma estimativa oficial de quantas casas por quarteirão 23

havia até o momento da realização da pesquisa). O número de habitantes no bairro, segundo o Censo de 2007, era de 57.765 pessoas, sendo que as crianças totalizavam 25.382 (com até 18 anos). Estima-se que o número de crianças, bem como o de famílias, tenha aumentado. Os espaços destinados à formação das crianças não têm aumentado, sendo que o número de escolas públicas permaneceu igual. Existem, atualmente, 4 escolas, sendo 2 escolas primárias (com salas até a 5ª classe) e 2 escolas completas (com salas até a 7ª classe). Não há escolas de ensino secundário no bairro. Alguns autores (COSTA, 2004; MOSCA, 2008; SITOÉ, 2010) destacam o processo de auto-organização das famílias que buscam maneiras para desenvolver estratégias econômicas e sociais condizentes com suas condições e sua realidade. Neste contexto, crianças e jovens são percebidos como responsabilidade comum da comunidade. Nele, as famílias formam grupos domésticos complexos, com agregados (aliados) e uma parentela com diferentes membros da família extensa. Segundo Costa (2004), a própria circulação entre os diferentes núcleos domésticos termina por ser geradora de “coesão familiar reveladora dos processos através dos quais se constituem e partilham identidades no seio das famílias” e da própria comunidade (COSTA, 2004, p. 350). No bairro da Matola A pude conviver com crianças, jovens, suas famílias e professores, construindo os dados empíricos que integram esta dissertação de mestrado. Naquele período foi possível observar seus trânsitos, modos de compartilhar experiências e de criar cultura (Müller e Delgado, 2005).

OPÇÕES METODOLÓGICAS: O ESTUDO ETNOGRÁFICO Para compreender e discutir as atividades, o cotidiano e as responsabilidades que permitem constituir a pessoa adulta, a noção da infância deve ser construída alicerçada em seu contexto e tempo específicos, considerando as dinâmicas sociais, culturais, de valores e relacionais. Desta forma, o estudo de campo passou a ser um imperativo: era preciso partilhar experiências e práticas cotidianas das crianças para poder refletir sobre elas. Conhecer a visão das crianças sobre o mundo que as rodeia, através de uma pesquisa etnográfica, possibilitou viabilizar dispositivos para “encarar as vidas das crianças estudadas como uma realidade complexa, marcada por luzes e sombras, potencialidades e criticidades” (COLLONA, 2012, p. 4).

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A leitura crítica das abordagens que compreendem as crianças africanas dentro do paradigma “out of place” favoreceu minha própria reflexão e intensificou tanto o propósito como o desafio de realizar um estudo que desse visibilidade à criança a partir do seu lugar e contexto sociocultural. Comecei a entender que este estudo deveria ser realizado com crianças e não sobre elas, assumindo a interlocução com a criança no processo de estudo. No intuito de entender a criança e sua cultura, seus modos de ser e de estar presente, suas redes de relações, espaços sociais e formas de socialização, optei por realizar um estudo etnográfico. A comunidade do bairro da Matola A com a qual havia trabalhado no âmbito de ação social de uma ONG no ano anterior, fornecia as condições necessárias para a proposta. Müller e Delgado (2005, p.353) afirmam que “necessitamos pensar em metodologias que realmente tenham como foco suas vozes, olhares, experiências e pontos de vista”. A pesquisa etnográfica com crianças é, também, para estes autores, um caminho metodologicamente enriquecedor. Desenvolvida ao longo de décadas pela antropologia, a etnografia foi sendo pouco a pouco um desafio de outras disciplinas como a sociologia, a história e, igualmente, para a terapia ocupacional social. Magnani (2002, s/p) assinala, a este propósito que:

Desde as primeiras incursões a campo, a antropologia vem desenvolvendo e colocando em prática uma série de estratégias, conceitos e modelos que, não obstante as inúmeras revisões, críticas e releituras (quem sabe até mesmo graças a esse continuado acompanhamento exigido pela especificidade de cada pesquisa) constituem um repertório capaz de inspirar e fundamentar abordagens sobre novos objetos e questões atuais (MAGNANI, 2002, s/p).

A etnografia permite acessar - pela observação, diálogo, convívio e formas diferenciadas de registro - ações de crianças além dos sentidos atribuídos a suas atividades, em seu universo de relações que são “profundamente enraizados na sociedade e nos modos de administração simbólica da infância” (SARMENTO, 2005, p.373). Geertz enfatizou que a prática da etnografia vincula-se à busca de entendimento de redes de significados sociais e dos símbolos presentes em comportamentos, valores e práticas sociais; deve-se estudar as culturas através de seus próprios parâmetros, para isto é fundamental para o/a pesquisador/a “estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário e assim por diante” (GEERTZ, 1989, p. 4). A etnografia exige, assim, um trabalho relacional entre o pesquisador e seus colaboradores, entrar em relação com

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o Outro através do encontro e desconstruir os diversos momentos desse processo que comporta dificuldades teóricas e o aprendizado de técnicas e reflexões específicas. Quais são as implicações de se introduzir na vida cotidiana de pessoas de uma outra cultura? Como estabelecer a relação de proximidade sem esquecer-se como diverso? Para isto, é necessário aceitar o desafio de arriscar-se num lugar outro, no qual pesquisador e pesquisado formem uma parceria dialógica, sem perder de vista que o processo de construção de conhecimento é “uma realidade participada e partilhada” (Soares, Sarmento e Tomás, 2005). No caso da etnografia com crianças, esse desafio se tornou, para mim, ainda maior: como relacionar o meu mundo adulto e de quem vem de fora, com o mundo delas, de quem está dentro? “Considerar a alteridade da infância implica ter em linha de conta o conjunto de aspectos que a distinguem do Outro-adulto” (SOARES, SARMENTO E TOMÁS, 2005, p.54). Magnani traz um aporte interessante para a pesquisa etnográfica em meio urbano. Deve-se voltar, diz ele, para um olhar de perto e de dentro, permitindo que os atores sociais com “suas múltiplas redes, formas de sociabilidade, estilos de vida, deslocamentos, conflitos, etc.” (MAGNANI, 2002, p. 15) - possam constituir o elemento fundamental que dá vida e contexto ao estudo. Assim, as crianças também devem aparecer como protagonistas e coautoras desta pesquisa , ainda que a análise apresentada na dissertação seja de minha inteira responsabilidade. Ao trabalhar com as crianças como atores sociais plenos, assume-se, também, suas competências para a formulação de interpretações sobre seus mundos e modos de vida, e como reveladores das realidades sociais nas quais se inserem. Segundo Soares, Sarmento e Tomás (2005, p.54), um papel que reconhece a criança como “sujeito de conhecimento, e não de simples objeto, instituindo formas colaborativas de construção do conhecimento nas ciências sociais que se articulam com modos de produção do saber empenhados na transformação social e na extensão dos direitos sociais”. Assim, integra o método os dispositivos de interação com a criança, compreendida como parceira no trabalho interpretativo, na qual sua voz e sua ação são valorizadas em todo o processo que deve ser, segundo Soares, Sarmento e Tomás, aberto, interativo e mesmo intuitivo para aceder a suas “singularidades mais significativas dos quotidianos da infância, com profundidade, riqueza e realismo da informação e análise” (SOARES, SARMENTO, TOMÁS, 2005, p.55). 26

Optei por realizar a pesquisa de campo no bairro da Matola A, e trabalhar com cinco crianças; esse número foi escolhido para que assim pudesse ter uma vivência mais aprofundada e detalhada sobre o dia-a-dia delas, sendo capaz de captar os símbolos e significados de uma maneira mais precisa – porém, o envolvimento e convivência com as outras crianças, nos espaços em que tive acesso, como a escola, não foram excluídos; eles serviram, também, para ampliar e clarear algumas experiências e suas possíveis interpretações. Assim, fui para Moçambique em fevereiro de 2014, e tinha, naquele momento, uma câmera fotográfica, um gravador, um caderno e muitos questionamentos, mas apenas uma certeza: viver plenamente o desafio da pesquisa de campo. O trabalho de campo forma, então, um elemento central para acessar a produção do sentido simbólico e de inscrição das crianças do bairro Matola A, participantes deste estudo. Minha inserção deveria permitir a busca de cenários de interação sociais essenciais para a compreensão das atividades das crianças, suas responsabilidades, seus modos de vida, especificando sua contextualidade, para que assim, numa pesquisa realizada em parceria, chegássemos à construção de um cenário significativo de interação (FERREIRA, 2011).

O ESTAR EM CAMPO: RELATO DO PROCESSO DE PESQUISA A pesquisa de campo, base desta dissertação, teve duração de 5 meses, entre 11 de fevereiro e 15 de julho de 2014. Após quase uma semana de adaptação ao país e ao lugar em que estava, resolvi visitar a ONG na qual havia trabalhado e rever as crianças. Era dia 17/02/2014. Quando lá cheguei, o senhor José, funcionário da ONG, informou que as crianças encontravam-se na escola lá perto, explicando que havia sido rompido o acordo entre a ONG e a escola. No entanto, duas das crianças que conhecera no ano anterior estavam lá e foram minhas acompanhantes até a Escola Primária Completa Matola “A”. Encontrei uma professora com quem havia tecido um laço de amizade na experiência anterior. Foi ela quem me apresentou ao diretor da escola. Após apresentação pessoal e, talvez, pautado pela confiança da professora, obtive a oportunidade de expor o projeto de pesquisa. O diretor deu seu aceite, afirmando entender que a escola era um lugar de referência para as crianças e um local em que elas passavam boa parte do tempo. Assim, tive livre acesso para lá estar e desenvolver o trabalho. Apresentei-me posteriormente aos professores e expliquei o estudo para os que estavam presentes. Com as crianças, foi um reencontro, pois 27

muitas se lembraram de mim e correram em minha direção, abraçaram-me dizendo “voltaste! tivemos saudades”. Expliquei o projeto de estudo e que estaria na escola nos próximos dias. Fui à escola algumas vezes para retomar o contato com as crianças. Nas primeiras duas semanas permaneci no espaço externo às salas de aula: sentava no degrau que separava as salas do pátio e ficava lá, observando as crianças ocuparem aquele espaço e tentando perceber sua dinâmica. Muitas crianças sentavam ao meu lado, tocavam minha pele, perguntavam se podiam tocar meu cabelo e se o cabelo era meu (lá, as meninas e mulheres acabam comprando mechas de cabelo humano ou sintético e fazem penteados - e assim as crianças queriam saber onde tinha comprado o meu “mas é seu esse cabelo? Onde compraste?”). Além disso, brincávamos de correr e, quando sentava para descansar ou para me proteger do sol, elas queriam saber mais sobre o que eu estava fazendo ali. Entendi que seria importante contar sobre a pesquisa de uma maneira que as crianças pudessem entender. Havia crianças que vinham me perguntar quando visitaria suas casas, e eu respondia que quando elas quisessem, e depois de terem perguntado à mãe ou pai se eu poderia ir. Assim, algumas levaram-me para conhecer suas casas ou rever seus pais – no caso de já ter conhecido em 2012; outras não mais falaram sobre o assunto. Desta forma, fui me familiarizando com as crianças e criando oportunidades para que se familiarizassem comigo, tal como os professores; alguns pais vieram à escola para se informar sobre quem eu era e o que fazia ali, outros iam me cumprimentar e dizer o quanto era bom me ter de volta. No caminho para a escola, depois de descer na paragem do ônibus, podia fazer dois caminhos, ambos andando cerca de 20 minutos: um pela estrada, conhecida como “estrada velha”, e outro por entre as casas do bairro. No início, por insegurança, ia pela estrada, pois era mais fácil. Certo dia, porém, resolvi passar na ONG e rever alguns dos funcionários. No momento da volta, arrisquei o trajeto por dentro do bairro. Nesta tentativa, escutei um “Mana Marina! Voltaste! As crianças falaram, mas eu não tinha acreditado!” – era Virgínia, mãe de Laila e Beni, duas das crianças com as quais trabalhei em 2012. Após uma conversa rápida, ela me perguntou onde estava indo, e eu disse que iria para a escola, mas que ainda não sabia o caminho por ali. Ela, então, me guiou até meu destino. Ao fazer este caminho outras vezes, passava diante de muitas casas de crianças conhecidas, e muitos de seus pais e/ou responsáveis me reconheceram. Decidi que passaria a fazer este trajeto nos próximos dias. 28

Após duas semanas de idas à escola e andando por entre as casas, acostumada com o caminho, pude perceber que além de mais familiarizada com o percurso em si, as pessoas passaram a me reconhecer, perguntar, cumprimentar. Já começava a encontrar um ambiente um tanto mais familiar. No dia 26 de fevereiro, enquanto ia para a escola, passei próximo à casa de Beni. Ele estava brincando na rua com seus amigos e, ao me ver, cumprimentou-me sorridente e disse que sua mãe estava em casa, e que ela desejava me cumprimentar. Fomos até sua casa e fui convidada para entrar. Conversamos sobre minha ida para lá, meu mestrado. Após explicar que meu estudo envolvia conhecer as atividades do dia-a-dia das crianças, Virgínia afirmou que “as crianças aqui me ajudam muito. Beni é mais preguiçoso, não gosta muito, mas Laila ajuda bem. Agora está até cozinhando. Se quiseres, podes vir aqui e olhar como eles fazem. Podemos te contar como é e você usa na sua pesquisa” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014). Perguntei a Beni o que ele achava de participar da pesquisa, e com sua resposta positiva, afirmando que gostaria que eu fosse à sua casa e de participar, eu tive meu primeiro caso para o estudo. Havia definido critérios iniciais para a seleção de cinco situações de estudo. Esperava que a criança tivesse tido algum contato comigo em 2012 e estivesse matriculada na escola primária completa Matola “A” no momento da pesquisa. Porém, durante o diálogo com Virgínia, decidi adotar metodologia complementar para seleção das crianças. No momento em que me perguntassem da pesquisa, explicaria como seria e o que pretendia fazer e, caso demonstrassem interesse, perguntaria se queriam participar. Ressalto que meu primeiro contato era com as crianças. Desta forma, caso elas quisessem que eu fosse a sua casa e, caso surgissem questões sobre o motivo de minha presença e/ou qual era a pesquisa durante as visitas, perguntaria às crianças e aos seus pais se aceitavam participar. Conversei com algumas crianças separadamente, algumas disseram que não sabiam se desejavam participar, outras que teriam que ver com os pais. Não insistia. Uma delas me levou até sua casa e, após conversar com o avô, ele disse que não sabia se eu podia ir, pois tinha que conversar com sua filha; passaram-se dias, e ele ainda falava que não sabia – entendi que aquilo era um não, e que não mais insistiria. Compreendi que deveria ter a sensibilidade de saber até onde poderia chegar, e assim o fiz. Não mais questionei e passamos a nos relacionar de uma maneira amigável, mas sem chamá-lo novamente para a pesquisa. Januar, um dos meninos de uma das salas da 5ª série, veio conversar comigo: “eu falei com minha mãe e ela está te esperando em casa! Podes ir amanhã conversar com ela?”. 29

Combinamos de ir no dia seguinte e, ao chegar em sua casa, Dinha, sua mãe, já se antecipou: “Januar disse que estás a fazer pesquisa aqui. Se queres ficar aqui, não há problema. Vamos te receber” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014). Contei sobre a pesquisa e reafirmei a disposição em participarem, recebendo novamente o aceite dela; questionei Januar e este me abraçou e disse “quero que venhas e fique aqui”. Tinha a segunda criança do estudo. Em algumas das idas à escola passei pela casa de Adelaide, uma menina que estava matriculada na 7ª classe e que havia tido um contato bem próximo no ano em que trabalhei por lá. Adelaide me apresentou sua mãe e me convidou para entrar. Sua mãe perguntou o que eu estava fazendo por lá e falou que Adelaide sempre falava da “amiga brasileira”, de como tinha saudades e que eu havia voltado. Expliquei o que me trazia de volta. Margarida perguntou à Adelaide “queres que ela venha aqui? Se quiseres, não há problemas. Vamos esperar por ela”; Adelaide sorriu e disse que queria, e assim tinha meu terceiro aceite. As outras duas crianças foram Gina e Félix. Gina, que estava na 2ª classe, sempre pulava no meu colo e perguntava quando ia a sua casa, que sua mãe queria me ver. No caminho, ela falava sobre querer que eu fosse a sua casa e que era pra eu pedir pra sua mãe se poderia ir; expliquei que contaria da pesquisa e, caso ela falasse que gostaria que eu fosse lá ou achasse interessante, eu perguntaria. Combinamos e assim prosseguimos: contei para seus pais sobre a pesquisa e que Gina queria que eu conversasse com eles. Jalilo, seu pai, disse que eu aprenderia muito com essa pesquisa, e que eu tinha a casa aberta para mim, a hora que quisesse, para poder perguntar e estar ali. Gina era minha quarta criança. Já Félix foi um outro processo. Durante uma das visitas iniciais na casa de Januar, revi Félix na escola. Ambos ficamos felizes ao nos reencontrar; depois, ele passou a me acompanhar todos os dias nas idas à casa de Januar, permanecendo junto de Januar durante o período que lá fiquei. Quando disse que iria visitar Gina em sua casa e que ele não poderia ir (Gina havia me avisado que não queria ele por lá), ele passou a ir à escola no horário que Gina saía para me cumprimentar. Passado algum tempo, resolvi perguntar se ele queria participar da pesquisa. “Eu quero! Achei que nunca ia perguntar”, afirmou. E assim Félix foi o quinto selecionado para a pesquisa. 3 Passei cerca de 20 dias com cada criança, partilhando todos os momentos com elas: chegava no bairro às 7h e saía às 17h, quando não dormia na casa de uma delas. Caso a criança estudasse à tarde, ia para sua casa, ajudava nas tarefas e depois íamos para a escola, 3

A apresentação e discussão detalhada de cada um dos participantes do estudo encontra-se no item cinco do presente capítulo.

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como foi o caso de Adelaide e Beni. Gina entrava no meio da manhã, então ia para sua casa às 7h, realizava as mesmas tarefas que ela, íamos para a escola e, às 13h, voltávamos para sua casa. Januar e Félix entravam às 6:30h na escola, então ia direto para suas salas, assistia aula com eles e, então, íamos para suas casas. Brincava junto nos momentos em que era chamada e observava os que preferiam brincar sem mim. Aos finais de semana, conforme me convidavam, alternava as visitas (quase todos os finais de semana durante os cinco meses, passei com as crianças e suas famílias, na Matola A). Cada criança que acompanhei referia-se a mim de uma maneira sua, singular. Adelaide me tinha como sua amiga brasileira, e suas mães (ou seja as co-esposas em famílias poligâmicas) referiam-se a mim deste modo: “é a amiga brasileira de Adelaide”, quando perguntavam de onde me conheciam. Mas, ao falarem comigo, tratavam-me por filha, tanto na maneira de chamar como no cuidado comigo. Era comum, enquanto estava em sua casa, ouvir “filha, anda cá. Pega esse prato e leva lá pra lavar”, ou, quando ficava algum tempo sem aparecer, me davam bronca “ah filha, não estamos felizes com você. O que sua mãe do Brasil vai achar de você não visitar suas mães aqui? Você é nossa filha, não pode ser assim, ouviu?” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Januar me tinha como madrinha, e assim se referia quando dizia quem eu era: “você é minha madrinha, né? De coração é”, e seus pais me tinham como parte da família. Numa cerimônia com a família, Florêncio disse “ela é minha família. Lembram-se do tio que tinha uma filha e morreu? Vocês lembram o nome dela? Era Marina. E agora ela voltou. Você é nossa família” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014). Gina me tinha como sua irmã e quando nos perguntavam se eu era sua mãe ou o que era, ela dizia “é minha irmã. Tás a duvidar? Pergunta pra ela”, e então eu dizia “sou a irmã brasileira”; era o suficiente para ela rir e me abraçar. Jalilo e Maria me consideravam como membro da família e diziam: “essa é sua casa, essa é sua família. Queremos que se sinta em casa”. Félix, também, assumiu o mesmo tratamento, assim como sua tia. Quando falava para os outros, como com seus amigos da escola, ele dizia que eu era sua tia. “Marina, não é verdade que és minha tia? Ele não quer acreditar”, disse-me Félix um dia na escola. Respondi que sim, mas seu amigo falou que não acreditava. Félix insistiu: “é minha tia. É tia do Brasil!”. Porém, no dia em que finalizei o acompanhamento, ele me disse “sabes Marina, quando fores embora, eu vou chorar. Eu juro. Nunca tive uma amiga como você”. As pessoas de sua família referiam-se a mim como uma amiga, e a mãe de Félix apresentava-me como 31

sua nora, principalmente quando algum homem queria falar comigo, dizendo “é a futura mulher de Félix, não tás a ver?” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014), e então ríamos. Por fim Benito, ele tratava-me como irmã. Virgínia, sua mãe, reforçava essa ideia dizendo continuamente: “mana Marina é sua irmã, é como nós”. Colocar o “mana” na frente do nome é uma atitude de respeito dos mais novos com os mais velhos, sendo utilizado também entre irmãos: os mais novos devem chamar os mais velhos de “mano” ou “mana”. Algumas crianças me chamavam de “mana”, outras de “tia” ou “titia”. Os professores me tratavam de forma mais horizontal e amigavelmente, mas comentavam frequentemente minha relação com as crianças e, em muitos casos, disseram: “Ela quer ser como elas. Assiste aula... Senta no chão...” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014). Fui formando, assim, diversas identidades do ser pesquisadora. Em alguns casos, pais ou adultos que não me conheciam, principalmente os que moravam nas áreas mais afastadas, como os moradores do “bairro novo”, acabavam por me ter como uma pessoa de fora que havia ido para lá para raptar as crianças. Há casos de sequestro de crianças e jovens para tráfico de pessoas e de órgãos, principalmente por estarem numa área que é de fácil acesso à África do Sul, país que tem um índice elevado desse tipo de caso. Essa questão foi muito forte e procurei conversar e falar sobre o que fazia. Creio que foi fundamental para minha aceitação no bairro a relação com as crianças, de forma que diversas pessoas disseram: “as crianças gostam de ti. Tens um bom coração. Se gosta delas e elas de ti, és porque é uma pessoa de coração nobre” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 3, 2014). Outro fato importante e que chamou atenção foi ser chamada frequentemente de mulungu, termo que se referia à minha cor de pele, ou ao modo como aprenderam a chamar os que vinham de fora. Com o passar do tempo, principalmente com as crianças, meu estatuto de mulungu mudou para mulata. A primeira vez que me chamaram de mulata foi na escola, enquanto brincava com alguma das crianças. Uma delas disse “mulungu!” e, rapidamente, as outras começaram a repetir a mesma coisa. Joaquina, porém, passou por mim e me chamou de mulata. Ao ouvirem a expressão mulata, outras crianças adotaram a expressão. Ao bater o sinal de saída, muitas crianças estavam ao meu redor – a maioria eu não conhecia, e nem elas a mim: perguntaram meu nome e repetiram a pergunta, do mesmo modo que fiz e ainda farei com elas (são 4.171 crianças nessa escola). De repente, escuto um “oi mulata!”, e um riso que eu conhecia

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muito bem: Joaquina, agora com 5 anos, mas que apelidei carinhosamente de peste da outra vez, pois eu sentava, ela pulava na minha cabeça; eu levantava, ela fazia de tudo para me puxar para baixo; eu andava, ela puxava minha calça... E quando ela me chamou assim eu ri. Ri porque, embora a palavra e o conceito de mulata seja totalmente pejorativo e preconceituoso, ao ouvir ela me chamar assim, eu me senti mais em casa – não sei explicar, mas como se eu não fosse a mulungu, branquinha, de fora; eu era a mulata, como tantos outros ali, em que a cor da pele não era um destaque por si só – e assim os menores me chamaram também, e riam, e então, na hora de ir embora, Joaquina disse “tchau Marina mulata” e se foi com sua pasta rosa e saltitando por aí... (MOÇA DE BIQUE, 22 de fevereiro de 2014).

Assim havia dia em que eu não era nem mulungu, nem mulata: era mulandi, termo ao que se referem às pessoas de pele negra, aos próprios moçambicanos. Outras vezes, ainda, quando me chamavam de mulungu ou mulata, as crianças repreendiam e diziam “ela não é mulungu. Ela é pessoa”. Essa forma também vivi com os adultos. Com o tempo, eles também foram discutindo meu estatuto: “ela não tem culpa de ter nascido branca. É brasileira, mas tem bom coração. É pessoa ela”. A cor da pele foi deixando, aos poucos, de ser um sinal de opressão e diferença negativa, passando a deixar, também, uma distinção com quem era “de dentro” e eu, que vinha “de fora”. Ter a cor branca passou a ser um detalhe que constituía o meu ser pessoa. Num dos dias, enquanto ia para a escola (e ainda não havia começado a ir à casa das crianças), passei pela casa de Adelaide. Margarida, sua mãe, me convidou para entrar e tomar chá. Conversamos sobre o Brasil, sobre minha vida e meus estudos. Laurinda disse “aqui nesta casa são três espaços. Cabe você. Aqui é sua família agora também”; ao final da conversa, Margarida me deu uma capulana4 “agora você vem com ela, como a gente. É das nossas”. A partir daí, ao entender a importância e o significado daquele gesto, passei a usar a capulana quando ia à Matola. Após algum tempo usando a capulana, passei a notar a diferença no modo como as pessoas me tratavam quando a usava e quando não: as pessoas mais velhas, principalmente, sorriam e abaixavam a cabeça, num modo de me cumprimentar, o que raramente acontecia quando ia sem a capulana. As crianças ficavam sorridentes quando me viam de capulana, e muitas me elogiavam “como tás bonita!”, e até na escola a relação era diferente. Certa vez, enquanto andava pelas ruas do bairro, encontrei Obadias que, ao me ver, cumprimentou-me e disse “falhaste hoje!”; não havia entendido e repeti “falhei?”, e então Obadias respondeu “a 4

capulana é um tecido moçambicano, que as mulheres usam na parte inferior do corpo. Segundo escutei de muitas pessoas do bairro, é o símbolo da mulher moçambicana. Geralmente, só as mulheres mais velhas é que usam (as crianças só utilizam em alguma ocasião importante, como ir à Igreja, por exemplo).

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capulana!”. Referia-se à falta dela. Outra vez ainda, quando fui ao mercado com mãe Laurinda, uma senhora a parou e conversaram em changana5 língua que fui aprendendo com a convivência ali, e pude entender que a senhora falou “a mulungu dzimba capulana! (...). Ushonguili”.6 Depois, mãe Laurinda comentou que a senhora estava admirada em ver uma branca usando capulana. Usar a capulana parecia ser símbolo de reconhecimento e de atitude de respeito às mulheres moçambicanas para quem a capulana representa a força da mulher, e que é considerado um símbolo nacional. Usá-la era, igualmente, um modo que me fez sentir mais familiar. Geertz (1997, p. 85) discute a questão de que só podemos captar as diferenças de significados na pesquisa etnográfica, se buscarmos o “ponto de vista dos nativos”. Corsaro (2005) por sua vez considera que, para compreender os mundos das crianças, precisamos estar dentro e que a etnografia envolve, em certa medida, “tornar-se nativo”. Aprendi a comunicar-me com algumas palavras em changana, e cumprimentava as pessoas usando-as: “lichile!” quando queria desejar um “bom dia”, e “kanimambo” quando agradecia. Trancei o cabelo – após perceber que as crianças insistiam com a ideia e por lembrar que, em 2012, foi um modo para me aproximar delas: “como estás bonita assim!”, era uma das frases que escutava com frequência naquelas ocasiões. Percebi também a importância de trançar o cabelo em dois momentos: uma amiga me viu com as tranças e disse “trançaste! Moçambique entrou em ti”, o que me fez perceber que trançar o cabelo era uma característica forte ali, bem como usar capulana. Quando cheguei à escola após ter trançado o cabelo, muitos professores disseram: “como estás bonita assim! Queres ser uma delas, né?”, “Tás bem assim, gostei”. Estar em campo é situação de grande complexidade e vai além de um exercício de presença, envolve sutilezas de pertencimentos fugazes, mas fundamentais. A presença no trabalho de campo exige o domínio crescente de regras e símbolos implicados na linguagem da cultura, em adquirir novos conhecimentos para legitimar seu estar ali; para ser aceita e manter tal aceitação, é permanente a negociação. Foi preciso reconhecer a cultura para de fato estabelecer diálogo e estar atenta para aprender continuamente. Retomo aqui uma passagem registrada em Moçambique que adensa esta reflexão:

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língua nacional muito falada no sul do país “a branca amarra capulana! (...) Está bonita!”

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Certa vez, enquanto ia para casa, um senhor me parou. Mais tarde, vim saber quem era: vô Damião, segurança da escola: Vô Damião: Menina, essa capulana é o símbolo do nosso país, sabes disso? Eu: sei sim! Acho muito bonita! Vô Damião: Representa a mulher moçambicana... Sabe, nosso país é o berço da humanidade. É um país muito bom, de matérias genuínas. Muita gente não sabe disso, e os portugueses acham que levaram tudo. Mas não, não sabem nada e não descobriram nada. O que temos de melhor está aqui. Somos um dos melhores países, até dentro da África. As pessoas nos chamam de "país de terceiro mundo". É porque não sabem como é aqui, como é viver aqui e o que é Moçambique. Eu: Exatamente! E os portugueses só destruíram coisas boas aqui... Vô Damião: Não é? As pessoas falam que não querem vir para cá, têm medo. Mas vejo aviões no aeroporto todo dia - e daonde vêm então? Os turistas vêm e não querem ir embora... Eu: Eu sou um deles então! Fico aqui até julho! Estou estudando a infância aqui na comunidade. Vô Damião, após um sorriso calmo e bonito: Não. Isso aqui (e aponta a capulana e o lenço) é o símbolo da mulher moçambicana. Representa tudo o que elas são. És uma delas. Força menina, força! (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

Para Geertz (1989), a problematização de cultura só se faz no contexto, dentro do qual eventos, comportamentos e processos podem ser descritos de maneira inteligível: “Entender a cultura de um povo expõe sua normalidade, sem reduzir sua particularidade [...] a torna acessível” (GEERTZ, 1989, p.14). O autor enfatiza, ainda, que

Os usos da diversidade cultural, de seu estudo, sua descrição, sua análise e sua compreensão têm menos o sentido de nos separarmos dos outros e separarmos os outros de nós [...], do que o sentido de definir o campo que a razão precisa atravessar para que suas modestas recompensas sejam alcançadas e se concretizem (GEERTZ, 2001, p.81).

Na escola, para poder estar com as crianças e entender os sentidos multiformes de suas atividades cotidianas, notadamente da/na escola, e compreender seus modos de estar, passei a assistir aulas com elas (sempre que pediam e que me autorizavam). Sentava com elas no chão, dividindo suas capulanas (não há cadeiras e carteiras na escola, e as crianças estudam sentadas no chão, com os livros sobre as pernas; e assim o fiz, da mesma maneira). No começo, quando perguntava aos professores se podia assistir suas aulas, eles pediam a alguma criança para pegar uma cadeira para mim. Com o passar do tempo, eles perceberam que eu não sentaria na cadeira, e então deixaram de pedir, “ela senta no chão, quer ser como eles”, disse uma das professoras numa conversa com duas colegas suas. Assim 35

foi meu “estar na escola”: descobria uma maneira não apenas de reconhecer os símbolos, mas de vivê-los, conseguindo pouco a pouco formular reflexões sobre o que era estar naquele lugar e os movimentos de sua dinâmica.

A primeira aula que assisti com Adelaide foi no dia 11/03/2014. Por ser o primeiro dia, apresentei-me para a turma e expliquei meu estudo, e então, depois da autorização deles e do professor, sentei-me ao lado de Adelaide. As crianças sentam-se no chão, pois há falta de cadeiras e carteiras – usam a capulana; Adelaide dividiu a dela comigo. Em sua sala são 66 crianças, todas sentam no chão. Assisti aula de educação visual e retornei para casa (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

Inicialmente, achava que era preciso estar em sala de aula. Com o tempo, percebi que era necessário estar estudando, e fui cobrada pelas crianças. Gina, junto com as crianças de sua sala, me fez copiar os exercícios, levar para a professora, corrigir e vistar, responder chamada oral quando perguntada – isso me aproximou das crianças. Ponderava que “nós adultos temos de considerar o conhecimento das crianças no trabalho que é feito para compreender os relacionamentos entre grupos sociais” (MAYALL, 2005, p. 123). As crianças, ao chegar na escola, formavam filas para cantar o hino: juntavam-se em filas e aguardavam as ordens dos professores. Com as crianças menores, além de cantar o hino moçambicano, os professores realizavam algumas brincadeiras para prender sua atenção e usar do lúdico no processo de educação. Gina, certa vez, me chamou para entrar na fila: “vamos lá formar”. Então passei a formar todos os dias e a brincar quando elas brincavam. Nas turmas dos mais velhos, como a da Adelaide, juntava apenas para a formação e cantar o hino. Certa vez um dos professores me viu e rindo disse-me: “é aluna agora?”. Em uma das salas, a de Félix, os meninos me deram até número de chamada: havia 76 crianças na sala, eu passei a ser o número 77. E assim fui partilhando muitas vivências escolares junto com as crianças:

Algumas vezes, assisto aula com as crianças. Mas com elas mesmo: sento no chão, na capulana, faço tarefa, corrijo tarefa. Até prova fiz esses dias... Dentre as salas, uma de 5ª classe: sento com os meninos do “fundão”. E como assisto COM eles, faço o que eles fazem e não interfiro na dinâmica e, muitas vezes, não prestamos atenção na aula. Mas devo dizer que é difícil prestar atenção: são 76 alunos e apenas um professor. Bom, brincamos, por vezes jogamos uns jogos no papel de construir quadrados, outras conversamos sobre coisas da vida. Algumas vezes fico meio apreensiva e acho que estou tumultuando muito, e então presto atenção na aula, mas acabo sendo a única: eles não estão nem aí pro triângulo isósceles ou pros

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pronomes demonstrativos invariáveis, por vezes começam uma luta... Esses dias até levei um soco, sem querer, porque estava sentada entre eles... Uma vez dessas, logo no começo, Enrique, após a chamada, me perguntou "qual teu número?", e eu disse que não sabia, pois não tinha... Aí ele disse "Tem 76 aqui. Você é o 77". A partir dali, eu não era apenas alguém que via aulas junto. Eu SOU aluna. E meu número de chamada é o 77. Fizemos um desenho coletivo, e o professor pediu para colocarem o número das pessoas do grupo. E o 77 era um deles... (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

Na etnografia realizada com crianças há grande desafio para se estabelecer uma relação horizontal, pois aceitar o mundo da criança e interagir nele “é particularmente desafiador por causa das diferenças óbvias entre adultos e crianças em termos de maturidade comunicativa e cognitiva, poder (tanto real como percebido) e tamanho físico” (CORSARO, 2005, p. 444). Estar com as crianças e interagir com seus mundos foi preciso para conseguir estar presente e partilhar o dia-a-dia não só no ambiente doméstico, mas no bairro e na escola. Isto foi essencial para captar situações, o que não seria possível sem este envolvimento, que parte da reflexão e do método. Passei a estar com elas, não sendo uma delas, como muitos afirmavam, mas dividindo situações e sendo, conforme elucida Corsaro (2005), um adulto diferente do que elas estão habituadas a lidar. Isto por compartilhar atividades e situações sem evocar na ação conjunta os códigos de poder instituídos e, por vezes, estereotipados nas relações com os adultos. Era um “adulto atípico” (CORSARO, 2005), em situação com ambiguidades que eram, no entanto, plenas de espaços criativos e de possibilidade reflexiva.

A etnografia é o método que os antropólogos mais empregam para estudar as culturas exóticas. Ela exige que os pesquisadores entrem e sejam aceitos na vida daqueles que estudam e dela participem. Neste sentido, por assim dizer, a etnografia envolve "tornar-se nativo". Estou convicto de que as crianças têm suas próprias culturas e sempre quis participar delas e documentá-las. Para tanto, precisava entrar na vida cotidiana das crianças – ser uma delas tanto quanto podia. Mas o que há de fazer um homem crescido para ser aceito nos universos das crianças? Quando iniciei minha pesquisa não existiam modelos definidos para se seguir. Então, quando de minha entrada nas primeiras das muitas préescolas que estudei nos Estados Unidos e na Itália, decidi que a melhor maneira para tornar-me parte dos universos das crianças era "não agir como um adulto típico” (CORSARO, 2005, p. 446).

Paulo Freire (1989) conclui nesta mesma direção, afirmando que para que o trabalho estabelecido possa ser configurado em parceria com aquele que se estuda, a dialogia deve estar não só presente como atuante. Nesta forma de interação forma-se um campo ético 37

“respeitando-se a individualidade da criança, seus valores e suas expectativas. Com autenticidade e verdade, coerência. O importante é saber por quem estamos fazendo opção e aliança” (FREIRE, 1989, p. 13). Na relação dialógica é preciso “se identificar com a criança sem perder sua individualidade, buscando com as crianças as propostas para suas inquietações de „existir no mundo‟. Fazendo a história com a criança” (FREIRE, 1989, p. 13), deve haver a democratização do poder com participação da criança nas decisões das situações do processo de pesquisa. Por meio dessa vivência de cinco meses, foi possível compreender a dinâmica estabelecida e as relações entre as pessoas, adultos e crianças, e entre as próprias crianças. O bairro é o espaço com características próprias em que se vão configurando como lugar do sersendo da criança no mundo ao qual ela habita, envolvendo sua relação e sua ação sobre este mundo. A proximidade das casas, a relação entre os moradores, o modo como são resolvidos os problemas decorrentes dessa convivência influenciam e estabelecem os modos como as crianças se configuram e de como se relacionam nele e com ele. A criança pertence à comunidade no sentido em que dela participa, transita e atua. Em suas casas, passei a realizar com elas as tarefas domésticas; na escola, adotei a mesma posição, igualmente quando brincavam e me convidavam. Embora situado num período de tempo específico, as vivências demonstraram muito do que é este viver em comunidade. Foi preciso reconhecer a cultura e permitir o diálogo. Saber ler, atentar-se e buscar-se para apreender os símbolos e significados de uma cultura outra que, para Magnani, afeta, transforma, produz-se nela e, “no limite”, converte o pesquisador daquela visão inicial e distante, para algo próximo e de dentro (MAGNANI, 2002, p.16). Esse exercício de estar com elas foi um esforço para poder compreender o seu dia-a-dia a partir do cotidiano delas, realizado com elas, feito por elas. Mayall (2005) defende que, num trabalho com crianças, se faz necessário adquirir o seu próprio e único conhecimento e entendimento do que significa ser uma criança, especialmente nos espaços sociais em que convivem, como na casa e na escola. “O caráter e a qualidade das vidas diárias das crianças são mais bem estudados através de contextos” (MAYALL, 2005, p. 125). Magnani ressalta, por sua vez que

O pesquisador não apenas apreende o significado do arranjo do nativo, mas ao perceber esse significado e conseguir descrevê-lo agora nos seus termos (dele, analista), é capaz de atestar sua lógica e incorporá-la de acordo com os

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padrões de seu próprio aparato intelectual e até mesmo de seu sistema de valores (MAGNANI, 2002, p. 16).

Como ocorre no trabalho etnográfico, técnicas diversas - além da observação em campo - foram utilizadas para melhor construção das informações e material para reflexão, como fotografia, gravações em áudio e conversas informais. Mayall entende que, ao conversar com as crianças e com seus amigos, há uma forma importante de adquirir conhecimento que, talvez, não fosse passado numa conversa formal como uma entrevista, por exemplo, visto que muitas crianças sentem-se pressionadas pela situação da própria entrevista ou por estarem em um ambiente que pode ser, de certa forma, ameaçador, como a escola ou a própria casa, a depender do assunto a ser tratado; por isso, a autora traz a questão de que “para o investigador, escutar as conversas pode ser uma forma de aprender sobre este processo” (MAYALL, 2005, p. 129). Utilizei inicialmente o gravador em algumas conversas mas percebi, com o tempo, que as conversas ficavam limitadas. Certa vez, enquanto estava na casa de Gina, perguntei à sua mãe o que ela achava que era a criança. Começamos a conversar e, em determinado momento, perguntei se poderia, ao invés de só tomar nota, gravar aquilo que ela me dizia; Maria ficou constrangida e disse que, se fosse para gravar, era melhor escrever o que pretendia, organizar as ideias e depois marcar para me falar. Quando seu marido chegou ela comentou sobre minha questão, e então ele disse que ele poderia dar a entrevista, pois falaria melhor sobre o que achava que era a criança; eu estava com Gina no quarto e então ele me chamou “podes vir agora. Estou pronto para te dar a entrevista que queres”. A conversa levou cerca de 40 minutos, sendo que, no início, foi falado muito sobre o desenvolvimento infantil, utilizando as quatro fases colocadas por Piaget (Jalilo chegou a comentar sobre a fase oral e anal, por exemplo); a conversa tornou-se mais confortável quando perguntei de suas filhas, de sua irmã, e então a formalidade foi deixada de lado. Minha opção foi, na maioria das vezes, não usar mais o gravador e deixar as conversas fluírem, tomando nota quando necessário – adotei essa posição tanto para os adultos quanto para as crianças, embora as crianças gostassem de gravar o que falavam e depois escutar. Muitas das conversas, ainda, aconteciam no caminho de casa para a escola ou vice-versa. Os registros da experiência de campo e dos dias passados e partilhados com as crianças e suas famílias, bem como as vivências, desdobramentos e reflexões foram anotados de maneira sistemática em cadernos de campo, num total de quatro cadernos, com realização de 39

leituras subsequentes para elaboração de material para análise. Foram realizadas três leituras das anotações: a primeira leitura foi do material todo, no intuito de separar as vivências de acordo com cada história colhida e vivida; a segunda leitura realizada foi de cada história, com o intuito de construir um resumo sobre cada criança participante do estudo, o qual está colocado no próximo item deste trabalho, sobre “participantes do estudo”; a terceira leitura foi para a construção das narrativas singulares, de cada caso, e identificação das temáticas mais relevantes. Esta seleção foi a base para uma análise conjunta a partir de temáticas comuns ou mesmo as específicas, com discussões posteriores envolvendo as crianças, suas famílias, as relações e as dinãmicas infantis a qual integram e pertencem. O uso desta metodologia e do modo como foi conduzida a pesquisa pretendem trazer para o debate o modo como a criança é pensada e vista na sociologia da infância, na antropologia e também no campo da terapia ocupacional social.

PARTICIPANTES DO ESTUDO Os critérios escolhidos para participação no estudo foram descritos anteriormente, no item 3.1. Escolher cinco crianças foi uma tarefa difícil. Cheguei a pensar em mudar a estratégia inicial e observar um maior número de crianças, para não excluir a maioria; porém, com o passar dos dias, percebi que não seria viável um estudo envolvendo mais crianças, ao menos no período do mestrado (por ser um tempo curto e pelo campo ter uma duração de apenas cinco meses). Mantive o número de cinco crianças levando em consideração que em cada casa eram, no mínimo, duas crianças presentes para observar suas rotinas e atividades, e que uma relação mais próxima com seus cotidianos e práticas poderia ser estabelecida, sendo possível uma descrição detalhada sobre as vivências partilhadas e uma reflexão que incorporasse as vivências, os símbolos e significados de maneira singular e, ao mesmo tempo, partilhada. Após o consentimento, o trabalho de campo propriamente dito pôde ser iniciado: a convivência e a observação do dia-a-dia das crianças em suas atividades cotidianas e das responsabilidades a elas atribuídas, tanto no espaço doméstico como na escola e na comunidade – ao entender que as crianças estabelecem relações não só no ambiente doméstico mas como nos espaços que o bairro oferece, e na relação com as crianças e adultos residentes ali. O trabalho etnográfico, com convívio intenso, permitiu então construir cinco 40

estudos com as seguintes crianças e seus familiares, os quais apresento de forma resumida logo abaixo: 1. Adelaide, 11 anos. Morava com as mães (co-esposas, ambas chamadas de mãe: mãe Margarida e mãe Laurinda), o pai (pai Jaime), 5 irmãos (Celinha, Cristina, Fatiminha, Ferisberto e Gerson) e uma sobrinha (Chelsia), que compunham um mesmo grupo doméstico (também tinha mais 4 irmãs e uma sobrinha que moravam em outros bairros). Estudava no período da tarde, realizando suas atividades domésticas de manhã, intercaladas com os momentos do brincar, até o meio-dia. Aos finais de semana costumava brincar com as crianças que também moravam em sua rua; 2. Januário (Januar), 11 anos. Morava com Dinha (mãe), Florêncio (padrasto) e Yumina (irmã recém-nascida). Alguns tios e primos por parte do pai moravam no mesmo bairro, em casas próximas, sendo intensa a circulação dos familiares entre as casas, compartilhando-as em diversos momentos, principalmente durante as refeições. Estudava no período da manhã, realizando suas atividades e espaços para o brincar no período da tarde;

3. Virgínia (Gina), 7 anos. Morava com o pai Jalilo, mãe Maria (madrasta), tia Manzura (Mana Manzura) e Judinha (irmã mais nova). O avô Pereira (por parte de Jalilo) e alguns irmãos sempre estavam por lá, no espaço doméstico, fosse para visitas ou para resolver alguma questão pendente. Estudava no horário das 10h, realizando atividades e brincadeiras antes e depois da escola. 4. Félix, 13 anos. Morava na casa de sua avó, junto com os demais familiares: tia Rosinha, Tio Salvador, Tio Verdiano, Tia Rosa, o marido da tia Rosa, Vó Clemência, Germano (irmão mais novo), Omilton, Manelito, Captino e Arsênio (primos). Salvador ficava mais tempo no trabalho, em Ressano Garcia, voltando apenas no fim de semana; o avô Bento morava numa segunda casa, com sua segunda mulher; a mãe de Félix, Zaida, estava numa casa alugada no bairro, mas vivia na província de Zambézia, localizada mais ao centro do país, junto com seu marido e mais dois filhos, Richard e Clemência. Félix estudava no período da manhã, retornando às 13h para a casa de sua avó, com quem morava, e então ajudava nas atividades que lhe era pedido ou ia brincar com seus primos e amigos.

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5. Benilton (Beni), 10 anos. Morava com a mãe Virgínia e mana Laila (irmã), que moravam na mesma casa. Seu pai morava na África do Sul; a avó, os tios e um irmão mais velho moravam numa casa que era de seu pai, no próprio bairro da Matola A. Beni entrava na escola às 13h, realizando suas atividades domésticas antes do meio-dia, mesclando também com os espaços do brincar. Durante esse período, pude participar de atividades culturais, socioeconômicas e políticas derivadas desse “estar-com”, buscando apreender momentos significativos do modo de vida, os sentidos das atividades na/da infância. Nos cinco casos discutidos de maneira aprofundada e, posteriormente, em uma abordagem transversal, busquei as semelhanças e diferenças que permitiram discutir o cotidiano e a construção das responsabilidades na infância. A partir das análises, foram construídas cinco narrativas, com o intuito de contribuir, através da forma de escrita, para a compreensão do ser criança na comunidade do bairro da Matola A.

QUESTÕES ÉTICAS Creditar as crianças como actores sociais e com o direito de se apresentarem como sujeitos de conhecimento nos seus próprios termos, sendo indissociável do seu reconhecimento como produtoras de sentido, é então assumir como legítimas as suas formas de comunicação e relação, mesmo que estas se expressem diferentemente das que os adultos usam habitualmente, para nelas se ser capaz de interpretar, compreender e valorizar os seus aportes como contributos a ter em conta na renovação e reforço dos laços sociais nas comunidades em que participam. Ferreira, 2010, p. 157-158.

Ao realizar uma pesquisa com crianças, e não sobre elas - como dito anteriormente -, é preciso construir, durante todo o processo, uma atenção especial. Isto porque “tratar das populações infantis em abstrato, sem levar em conta condições de vida, é dissimular a significação social da infância” (KRAMER, 2002, p. 43). É preciso atentar todo o tempo para a construção da concepção da criança enquanto sujeito da história e da cultura. Além dos mundos infantis, há questões legais que devem ser consideradas: seus nomes, rostos e devolução dos dados colhidos durante a pesquisa. De acordo com Colonna, 42

A experiência do trabalho de campo com as crianças demonstrou-me que a sua participação na pesquisa não é garantida uma vez por todas no momento em que elas, depois da proposta da investigadora e dos eventuais esclarecimentos, dão o seu consentimento a tomar parte das actividades. Ao contrário, a participação das crianças na investigação é negociada ao longo de todo o processo, cujos aspectos-chave são entendidos como parte de um diálogo entre o investigador e os sujeitos envolvidos (COLONNA, 2012, p. 142).

Trilhar o caminho deste estudo, acompanhado de reflexão sobre ética na pesquisa com crianças, estabeleceu um desafio específico que apresento como parte da descrição do processo. Quando passei a frequentar o bairro e principalmente a escola, crianças e adultos perguntaram inúmeras vezes o que fazia em Matola. A todos respondia “estou fazendo um estudo de mestrado, e pesquiso sobre as crianças aqui do bairro” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1 a 4, 2014). Conforme conversávamos outras perguntas surgiam, como “você está por qual escola?” ou “vens em conjunto com a Eduardo Mondlane? E vais ficar por cá ou voltas ao Brasil?” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1 a 4, 2014). Por diversas vezes me perguntaram sobre minhas roupas, “compraste aqui ou no Brasil?”, ou sobre minha família, “e lá no Brasil moras com quem? Tens foto? Deixa lá ver”. As perguntas sempre foram respondidas e, quando eu tinha fotos, mostrava – entendi este gesto como a reciprocidade, uma vez que sempre as questionava sobre seus cotidianos, sobre as questões ligadas à cultura, à comunidade. Pautada pelo código de ética do antropólogo (ABA), ressalto alguns pontos relevantes sobre os direitos da população com a qual se realizou o estudo. O primeiro ponto das questões éticas diz sobre o direito de serem informados sobre a natureza de pesquisa. Ao realizar a pesquisa com crianças, há que se ter em conta que o consentimento deve vir tanto das crianças como de seus responsáveis. Ao definir as crianças que participariam da pesquisa (conforme descrito acima, no item 3.1) e para poder estar em suas casas, foi essencial passar a informação sobre a pesquisa, como a realizaria, como construiria os dados e em que contexto os utilizaria. Considerando o fato inicial das crianças terem uma maior compreensão oral que escrita, e levando em conta que muitas delas não sabiam ler, optei por realizar o consentimento de forma oral: expliquei o que era o estudo, como seria realizada a pesquisa, quantos dias passaria em suas casas, as atividades que gostaria de acompanhar. Fomos negociando, a todo momento, o meu estar ali. 43

Após ser autorizada pelas crianças e elas aceitarem participar da pesquisa, pedi a autorização dos responsáveis, que também foi realizada em forma de consentimento oral pelo mesmo motivo das crianças e, ainda, pela maioria dos adultos compreender melhor o changana que o português, sendo muitas vezes realizada por meio da tradução das crianças (principalmente com adultos mais velhos, como avôs e avós). A opção por também ter a autorização dos pais e/ou responsáveis se deu por levar em conta que, sendo a criança como sujeito de direito, era meu dever pedir autorização legal, uma vez que os responsáveis legais pelas crianças, até completarem seus 18 anos, são seus pais (ou responsáveis em questão). Assim, a pesquisa foi explicada, aceita, questionada e autorizada não só para as crianças e seus responsáveis envolvidos, mas para todos os moradores da casa, sendo permitida minha estadia e meu convívio ali. Informei também sobre o uso de materiais audiovisuais, como câmera fotográfica e gravador de áudio. Sem desrespeitar a intimidade de cada criança nem ir contra os padrões culturais, as fotografias foram tiradas de acordo com os momentos oportunos, como ao realizarem alguma atividade ou quando fosse pedido. As crianças, na maioria das vezes, foram quem tiraram as fotografias dos espaços da casa, dos amigos, da família, da escola. Essa escolha se deu pelo entendimento de ter a criança não só como informante, mas também como colaboradora, e por entender que nada melhor que o olhar das crianças sobre seus mundos infantis para poder captar estes mundos (JOUBER, 2012). O uso das imagens foi informado tanto às crianças quanto aos adultos e, caso houvesse alguma restrição, eles seriam (como foram) atendidos. Certa vez, por exemplo, enquanto estava na casa de Adelaide, as mulheres mais velhas separavam carvão para vender; quis tirar uma foto daquele momento, e então fui interrompida “ah filha, não queremos uma foto assim, suja. Depois tiramos”; guardei a câmera e voltei a brincar com as crianças, respeitando este pedido que me foi feito (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 20014, 2014). Outras vezes foi pedida a minha presença para fotografar alguns momentos, como o aniversário de Félix ou na apresentação dos pais de Januar – aceitei o convite e a função de registrar os momentos, compreendendo a reciprocidade nas relações que ali constituímos, que seria importante também para as negociações durante o processo de pesquisa. Quando estava na escola, o primeiro contato foi com o diretor. Expliquei a ele sobre a pesquisa e ele afirmou que não haveria problemas em realizá-la no local, e que eu estava livre para assistir as aulas, desde que os professores não se importassem com minha presença. Com o diretor, combinei de realizar um consentimento livre, esclarecido de maneira formal e 44

escrita; com os professores, a cada aula que gostaria de assistir para estar junto das crianças, pedia se podia assisti-la; depois, perguntava às crianças daquela turma. De início, explicava sobre a pesquisa, mas com o tempo passei a perguntar apenas sobre poder ou não assistir a aula específica tanto aos professores quanto às crianças. A situação ocorria conforme no exemplo que segue:

Eu: Bom dia! Crianças: Bom dia, Mana Marina! Eu: Bom, como alguns de vocês sabem, eu estou aqui na escola e estou realizando uma pesquisa. Não sei se todos sabem meu nome: me chamo Marina. Vim lá do Brasil e estou estudando as crianças aqui do bairro. É uma pesquisa de mestrado. Vocês sabem o que é mestrado? Crianças: Não! Eu: Mestrado é assim. Agora vocês estão na escola primária, que vai até a 7ª classe, certo? Aí vocês acabam a 7ª classe e vão lá pra escola secundária, e fazem até a 12ª classe, não é isso? Crianças: Sim! Eu: então, aí quando acaba a 12ª classe, vocês podem continuar estudando e fazer licenciatura. Quem aqui quer fazer faculdade, licenciatura? (Algumas crianças levantam as mãos, sorridentes; outras apenas riem). Eu: Aí quando acabar a licenciatura, se quiser continuar estudando, faz mestrado. E é isso que estou fazendo. Conseguiram entender? Se quiserem perguntar, podem perguntar. E então as perguntas, quando surgiam, eram sobre onde eu estava morando, se ia assistir aula sempre, se ia voltar pro Brasil e se não queria trabalhar lá. Assim, conseguimos estabelecer uma relação em que pude explicar os modos como pretendia trabalhar e que ficasse de fácil entendimento por parte delas (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

Algumas vezes, crianças de outras salas pediam para que eu assistisse à aula com elas ou que fosse tomar chá em suas casas. Busquei conciliar as atividades do programa da pesquisa dos casos com participação em outros momentos significativos de um conjunto mais amplo de relações. Isto foi feito pois muitas crianças quiseram participar da pesquisa, mas devido à minha disponibilidade de tempo para a realização do estudo de campo, muitas não puderam participar da mesma maneira que as cinco situações priorizadas para o estudo. No intuito de garantir a importância da palavraa das crianças e torná-las responsáveis na produção da dissertação, os nomes das crianças, bem como suas imagens, foram mantidos, uma vez que as crianças pediram para que suas fotos fossem mostradas e por entender que elas formaram um grupo de colaboradoras e parceiras na construção desta pesquisa.

Januar: Marina, você vai mostrar essas fotos que tiramos lá pras pessoas no Brasil, né?

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Eu: Não sei... Você quer que eu mostre? Januar: Sim! Félix: Claro! Ah, eles vão saber que brincamos, que damos pino. Vamos ficar famosos! A gente podia gravar um vídeo e você colocava na internet, assim a gente ganhava dinheiro! Eu: eu não acho que vocês iam ganhar dinheiro com os vídeos... Félix: não tem problema! Eles vão saber que as crianças aqui em Moçambique brincam melhor que eles! Januar: É! E vão ver que você estava com a gente! Que você fez o trabalho aqui. Como vão saber que você estava aqui se não mostrar? Eu: eu vou escrever, vou falar... Félix: Melhor mostrar. Vai lá, tira outra foto aqui, vou dar pino. Vem Januar! (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

Nenhuma das imagens expõe as crianças a risco, do mesmo modo que as conversas estabelecidas. No período em que estive lá, a cada finalização realizada com as famílias que convivi, foi construído um álbum de fotos dos momentos que passamos juntos. A escolha das fotos foi realizada em conjunto, sendo que as crianças selecionaram as fotos que mais agradaram, e então as revelei. A montagem do álbum foi realizada por mim, com folhas coloridas, plástico e fita – com exceção do Félix, que pediu para montar o álbum junto comigo. A devolução dos dados, sua análise e texto, serão realizados ao finalizar a pesquisa, sendo que levarei uma cópia da dissertação para a escola. Pretendo voltar e conversar com as crianças, pais e responsáveis, além dos professores e diretores sobre os desdobramentos e rumos que este trabalho tomou. Sair de campo fez parte do processo da pesquisa, tendo sido importante cuidar do regresso, informando e trabalhando a despedida. Expliquei que regressaria ao Brasil e informei a data, e que exporia o que foi me ensinado, compartilhado e vivenciado até o prazo de fevereiro do ano seguinte. A autorização para meu retorno foi consentida e liberada, desde que retornasse no próximo ano. Assim, saí de campo com a promessa de retorno em 2015 desde que as condições culturais e políticas estejam favoráveis. Pretendo, portanto, rever minhas famílias e as crianças que me acolheram e que foram essenciais para a produção dessa dissertação.

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CAPÍTULO 1 – A HISTÓRIA NÃO COMEÇA NO MOMENTO EM QUE NÓS CHEGAMOS: CONHECENDO A CIDADE E O BAIRRO DO MEU ESTUDO E A CONTEXTUALIZAÇÃO DE MOÇAMBIQUE.

A história não é simplesmente terreno da racionalidade e produção, mas é também de sentimentos e de fantasia; ela não pode ser simplesmente horizonte de descrição, mas deve ser antes de mais, horizonte de juízos e de valor. E é exactamente no âmbito significativo e de valores que a história é susceptível de uma análise filosófica. Ngoenha, 1992, p. 18-19.

1.1 A GRANDE MAPUTO E A CIDADE DA MATOLA

Maputo, hoje capital de Moçambique, é uma cidade que se localiza ao sul do país. Era chamada de Lourenço Marques, cidade fundada em 1887 pelos colonizadores portugueses. Com o fim do processo de colonização, a cidade recebeu o nome de Maputo (1976), que designava um rio cujas águas desaguam em sua baía (ARAUJO, 2006; CABAÇO, 2007; DAVID, 2013). O último senso em 2007 contabilizou quase 1 milhão e 100 mil habitantes. Próxima à Maputo encontra-se a Cidade da Matola. Juntas, formam a área metropolitana de Maputo, conhecida também como “grande Maputo”7 com a população de 1.766.823 habitantes (INE, 2007). Durante o período de guerra civil (1976 a 1992), ambas as cidades tiveram grande cresciemnto populacional. Paul Jenkins (2004) relatou, em seu estudo sobre o acesso a terra em Moçambique,8 que tanto em meios urbanos como em zonas rurais, uma estratégia comum para a sobrevivência no período da guerra foi a organização social através dos diversos arranjos familiares e de grupos domésticos. O parentesco passou a ser entendido como pessoas da mesma família, mas que podia ser acrescido de amigos próximos que se ajudavam, principalmente na ocupação de terras e atividades de subsistência. Para o autor, o conceito de família utilizado nas áreas rurais “foi estendido horizontalmente e verticalmente na situação

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segundo Araujo, 2006, tal fato se deve pela proximidade geográfica e pela continuidade física de ambos espaços urbanos, além dos laços e relações sociais e econômicas mantidas entre as cidades. 8 Texto: access to Land in Maputo, Mozambique. In: Reconsidering informality. 2004.

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urbana em relação às necessidades dos indivíduos, famílias e outros grupos que compartilham o mesmo espaço social” (JENKINS, 2004, p. 215 – tradução nossa). Costa (2004) entende que esta reestruturação no contexto familiar fez com que as famílias desenvolvessem “estratégias de sobrevivência e reprodução social que se caracterizam essencialmente por uma articulação de recursos e de fontes de rendimentos diversificadas”, sendo que esta articulação acaba por pressupor a “manutenção e criação de relações de reciprocidade que possibilitem a entreajuda entre um grupo heterogéneo e disperso de parentes” (COSTA, 2004, p. 335). A constituição dessas formas de composição familiar foi decorrente do processo de mobilização de pessoas do meio rural para as metrópoles, da migração campo-cidade ocorrida no período de guerra. As comunidades rurais eram alvos de ataques, havia dificuldades no fornecimento de alimentos, alta de preços de bens essenciais de consumo, precariedade em serviços sociais e de transporte, ou seja, tinham condições de vidas deterioradas; tal situação levou as famílias a buscarem recursos nas áreas urbanas, principalmente nas periferias das cidades de Maputo e de Matola, áreas consideradas urbanas e onde as condições eram melhores. O fim da guerra, por sua vez, não fez com que as famílias retornassem às suas regiões de origem. Assim elas desenvolveram estratégias “mistas”: parte da família regressava e parte ficava na cidade, continuando as atividades que tinham desenvolvido para gerar renda. Essa dinâmica é percebida principalmente nos bairros de caniço: precariedade de infraestrutura urbana e de serviços sociais, elevados índices de pobreza e de desemprego formal. A circulação de pessoas e bens entre o meio rural e o meio urbano, principalmente na “grande Maputo”, além de constituir uma estratégia econômica recorrente, acabou por possibilitar a manutenção e recriação de relações familiares entre os diferentes núcleos de uma única família, caracterizando a articulação de recursos e fontes de rendimento diversificadas (COSTA, 2006). Os processos de mudanças e diferenças entre o centro e as áreas da periferia resultam de procedimentos históricos e da política pós-colonial adotada. Nos bairros de caniço houve crescimento em área e aumento da densidade populacional, porém não foi acompanhado de planificação urbana nem de investimentos em infraestruturas.

Enquanto espaço urbano, a

“grande Maputo” é constituída por zonas distintas que são caracterizadas por fortes assimetrias sociais, demográficas e econômicas, nas quais as áreas suburbanas são caracterizadas pela falta de planejamento urbano e as áreas centrais são constituídas de zonas 48

industrializadas – o que classifica a cidade enquanto “bairros de cimento” e “bairros de caniço” (COSTA, 2007).

Os contrastes identificáveis nas cidades de Maputo e Matola são numerosos. Caminhando dos centros dos municípios em direcção às periferias, a simples observação visual permite captar o atravessamento de diferentes paisagens urbanas. Passa-se de contextos onde a ocupação do solo é total e organizada, o predomínio do betão constitui a marca fundamental e a vida apresenta determinados ritmos, atitudes e comportamentos, a outros espaços onde a ocupação é menos densa, não ordenada, os materiais de construção são diferentes e mais precários e a vida social transmite outros valores e comportamentos (COLONNA, 2012, p. 81).

Na Cidade da Matola, onde se realizou este estudo, o aumento do número de habitantes e constituição de famílias extensas com a configuração atual pode ser visto como decorrente da criação de espaços urbanos, com áreas de expansão para trabalhadores coloniais, além de instalação de indústrias tanto na Matola quanto em Machava (cidade vizinha) nos anos 1960 e 1970. Houve, assim, processos de migrações em que os trabalhadores das áreas rurais e de bairros suburbanos se instalaram nas periferias das áreas urbanas. Este fato, como citado anteriormente, foi agravado pelos deslocamentos do período da guerra civil (ARAÚJO, 2006). Matola, caracterizada por ser a segunda área urbana com maior número de pessoas (chegando a um milhão em 2013), foi criada como posto administrativo em meados de 1945, durante a época colonial, e teve sua emancipação municipal dez anos depois. Por conta da miscelânea de grupos étnicos, acaba por associar diversos tipos de “variáveis económicas e os seus respectivos processos de produção organizados, por meio desta associação, não apenas a produção, mas também a reprodução dos elementos e instituições necessárias à solução dos problemas ecológico-económicos” (FELICIANO, 1989, p. 299). É na Cidade da Matola que se encontra o governo da província de Maputo (uma dentre as onze províncias do país), e que passa a mais importante rodovia construída no país, que liga Moçambique à África do Sul. Matola possui uma área de quase 400 km², e é repartida em três postos administrativos, com um total de 41 bairros: Infulene, Machava e Matola Sede. O posto administrativo da Matola é o mais populoso e, contrariamente, é o que possui bairros com menor ordenamento urbano. Segundo Araújo (2006), este fato pode ser explicado pelo distrito possuir a maioria dos bairros suburbanos, com ocupação desordenada e maiores densidades 49

demográficas, dificultando as ações para melhoria de infraestrutura urbana e social. Este fato reafirma a necessidade das estratégias de sobrevivência das famílias, utilizando-se de atividades econômicas e reprodução social. O posto administrativo da Matola concentra grande porcentagem de homens, o que pode ser explicado pelas atividades econômicas e serviços da cidade, uma vez que a maioria dos locais de serviços formais encontram-se neste espaço; possui as maiores taxas de natalidade dentre os postos administrativos e o maior número de mulheres em período de fertilidade; possui inúmeras famílias com agregados (família extensa) e é um posto considerado jovem pela idade de seus habitantes (ARAÚJO, 2006). A dimensão média dos agregados familiares é bastante ampla na Matola, com um número médio de 5,1 pessoas por família, variando para 4,9 pessoas por família no posto administrativo da Matola Sede. É neste posto que se encontram, também, as famílias com 9 ou mais agregados, considerada uma característica por ser o posto mais urbanizado (INE, 2007). De acordo com Araújo, um estudo realizado em 1997 reconheceu que a maioria dos agregados eram chefiados por mães solteiras ou viúvas, recorrentes dos períodos da guerra; porém, o posto da Matola Sede é o que possui um número menor de famílias chefiadas por mulheres, embora o número ainda seja bastante significativo. Essa ideia faz pensar nas atividades de sobrevivência exercidas e o tipo de reprodução social dessas famílias com números de agregados tão superior (ARAÚJO, 2006).

Ainda, os chefes dos agregados familiares que possuem melhores condições económicas e de residência costumam hospedar vários dos seus parentes, sobretudo crianças e jovens, que são mandados para a cidade para estudarem (COLONNA, 2012, p. 82).

Tem-se notado, também, um aumento nas famílias chefiadas por mulheres, idosos e criança (em caso de morte dos país, decorrentes de violência ou mesmo de doenças) (ARAÚJO, 2006), principalmente nos bairros mais periféricos, como é o caso do bairro da Matola A, localizado no distrito da Matola Sede. Juntamente com o número de agregados chegando a 10 pessoas, o bairro da Matola A é um dos que possui maior crescimento no número de crianças nos últimos anos, bem como o número de pessoas vindas de outros distritos. As características mais aprofundadas deste bairro serão trazidas adiante. Como observado e discutido, a “grande Maputo” acaba por configurar realidades que se distinguem em alguns aspectos, mas com importantes questões comuns. Os bairros 50

periféricos, como o que foi trazido para o estudo, possuem insuficiência de estrutura e dinâmicas associadas ainda ao período das guerras, que se fixaram como marcas de reprodução e sobrevivência de tais bairros e famílias. Cabe salientar que a memória e as sequelas da guerra ainda se fazem presentes nestes distritos, fato observado até mesmo nas brincadeiras.

1.2 O BAIRRO DA MATOLA A: FAMÍLIAS E COMUNIDADE

Em conversa com o secretário do bairro9 e com alguns moradores, pude entender melhor a estrutura e a história que formou, e continuava a formar, aquele espaço considerado Matola A. O bairro da Matola A era constituído, inicialmente, pelos trabalhadores das fábricas de cimento ou de alimentos da região; geralmente esses trabalhadores utilizavam o bairro apenas para dormir, pois costumavam vir de outros locais ou moravam com suas famílias em locais distantes. Com a guerra civil, principalmente a partir de 1983, o bairro foi lugar de fuga e rota migratória de muitas pessoas, que acabaram se refugiando e construindo suas casas ali. Alguns relatos, como o de mãe Margarida e de dona Luísa ilustram tal realidade:

Meu pai trabalhava na fábrica de cimento. Nascemos aqui mesmo. Ele ia todos os dias e voltava. Sempre esperávamos ele. E brincávamos com as crianças daqui mesmo, íamos lá embaixo brincar naquela zona que tem a escolinha, sabes? Era um lago. Como era bom (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014) Não morava aqui, morava em Boane. Quando conseguimos sair, que a guerra estava melhor, viemos pra cá, conversamos com o chefe de quarteirão10 e ele nos deu esse pedaço. Construímos nossa casa de caniço, e 9

Secretário do bairro é um cargo, dentro da Constituição da República de Moçambique, que tem a função de líder comunitário, que responde a questões políticas, sociais e de mobilizações. É eleito por indicação do partido que está no governo. Para ser eleito tem que ser morador do bairro há, pelo menos, cinco anos, ter mais de trinta anos de idade e ter nacionalidade moçambicana. Dentre suas competências estão dirigir e controlar as atividades do bairro; garantir a construção e manutenção das infraestruturas do bairro; garantir o horário de comércio do bairro; divulgar as leis, deliberações e outras informações sobre o município para os moradores do bairro; garantir a ordem e a segurança do bairro; entre outras. Tais competências e responsabilidades estão dispostas na secção I do artigo 7 do Boletim da República de Moçambique, de 23 de janeiro de 2012. 10 Chefe de quarteirão também é um cargo dentro da Constituição da República de Moçambique. O bairro é dividido em quarteirões e cada quarteirão tem um chefe comunitário que representa as 40 casas (1 quarteirão). Este chefe é nomeado pelo presidente do Conselho Municipal, e seu mandato tem duração de 5 anos. É subordinado do secretário do bairro, e também deve residir no quarteirão de sua responsabilidade. Dentro de suas

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depois conseguimos deixar assim. Foi em 98 (Dona Luisa, ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

Segundo o secretário o número de pessoas que chegam no bairro tem aumentado desde a invasão de 1983: “outros estão a chegar, as zonas estão a aumentar, zonas de expansão. Outras são organizadas em espaços parcelados, mas aqui na Matola A já não há esse tipo de estruturação, pois as pessoas estão a vir se fixar na direção do mar” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014). Por conta desse crescimento “desordenado” e do fluxo de pessoas para o bairro, as casas não são organizadas em espaços adequados, sendo, muitas vezes, várias casas num mesmo local – são chamadas “não parceladas”, enquanto as outras, como em áreas e espaços divididos e demarcados, são chamadas de “civilizadas”. Muitas casas são de cimento, e outras ainda são de caniço – tidas como as casas mais recentes, de quem está chegando, que não tem condições de comprar e/ou construir a de blocos, como é o caso das famílias localizadas no chamado “bairro novo”, que fica próximo à praia e são provenientes, em sua maioria, de Quelimane – chegou-se a apelidar aquela zona como “Quelimane da Matola”, segundo moradores. Para o secretário do bairro, são “pessoas que estão aparecendo agora, que viviam em outras províncias. Ninguém está a dizer que vão ficar aí, mas estão se colocando desorganizadamente”, aumentando o número de casas, famílias e, consequentemente, crianças no bairro. O bairro tinha duas características: a de bairro urbano e pré-urbano, como relata o secretário. As áreas urbanas eram consideradas as que tinham suas casas construídas através de um planejamento, no qual os lotes eram demarcados e vivia uma família por terreno, separado por muros, enquanto as áreas pré-urbanas eram as casas construídas desordenadamente, sem um planejamento, em que mais de uma família dividiam o mesmo espaço, geralmente de caniço ou só de reboco, mas que já possuía energia e água. Até a industrialização, a principal atividade do bairro era a agricultura, seguida de pesca, artesanato (arsenagem) e comércio. A indústria na região era principalmente de produtos alimentícios e de ferro. A maioria das famílias vivia do trabalho informal e/ou da agricultura e pesca, consideradas muitas vezes de sobrevivência, voltada para o auto consumo. funções estão dinamizar os trabalhos a nível de quarteirão; realizar reuniões com os moradores e chefes de dez casas (a cada dez casas, um chefe é nomeado para facilitar o entendimento e concentrar as questões referentes ao seu aglomerado habitacional) visando solucionar os problemas que atingem as famílias e a comunidade; acolher sugestões e cotnribuições dos moradores sobre melhoria do quarteirão e levar ao secretário do bairro, entre outros. Deve ser morador do quarteirão há, no mínimo, dois anos e meio, ter mais de vinte e cinco anos de idade e prestar contas aos moradores trimestralmente, e ao secretário do bairro mensalmente. Boletim da República de Moçambique. Publicação oficial da República de Moçambique. Janeiro de 2012.

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As famílias ganham, geralmente, o vencimento básico. É o vencimento que o Estado estipula para quem trabalha nas casas, indústrias, numa empresa. Quando está numa empresa deve ganhar obrigatoriamente aquele valor. O valor é de 3.200 meticais, assim. Quem trabalha na pesca, comércio, não ganha isso. Tem patrão, trabalhou, tirou. Até as pessoas podem ganhar a mais, podem ganhar a menos. Vai depender do rendimento que ela tiver, se vai trabalhar um mês, se vai vender. Na pesca, vai depender do que o pescador vender (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

As crianças acabavam, muitas vezes, por auxiliar nessas formas de geração de renda. Tal estratégia era utilizada com meio da divisão do trabalho nas famílias: eram as dinâmicas em que as crianças participavam, num intuito de cooperação e formação, e pautado nas relações de cuidado e ajuda com os mais velhos. Com base na observação e participação no modo de viver das famílias e do bairro, pude comprovar que a maioria das famílias vivia de renda “informal”: a partir das vendas nas bancas e barracas, principalmente de produtos alimentícios, como verduras, legumes, caldo; bebidas alcoólicas; e por meio dos biscatos (que eram trabalhos feitos sem que houvesse uma remuneração concreta e mensal; eram aqueles trabalhos realizados apenas naquele momento), o que, muitas vezes, acabava por não chegar ao vencimento mínimo (salário mínimo mensal) estabelecido pelo governo.

A lei não permite trabalhar aqui. Até 18 anos é criança. Não pode, a lei não permite. O que mais tem é quando tá na barraca. A mãe põe o filho a trabalhar. Mas não é trabalho, pois a criança não recebe. Quando ajuda nas barracas não é trabalho. Ela está a ajudar a família (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

Em muitas conversas com os moradores a questão da guerra interna aparecia, fosse no diálogo sobre histórias pessoais ou sobre fatos que ouviram quando crianças. Inês contou ter tido uma infância marcada pela ausência do pai por ele ter sido um combatente. Disse ela:

Meu pai não ficava muito conosco. Era guerrilheiro, estava sempre fora. Ah, da guerra não me lembro. Morava em Boane. Quando ouvíamos barulho, ah, corria pro mato. Passava muito tempo ali, sabes? Era ouvir qualquer barulho, pronto, corríamos. Era criança (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

Lurdes que, quando criança, relatou ter vivido situações de grande tensão com sua família enquanto morava em outro bairro. Ela relatou que: 53

A época da guerra eu vivi, a dos 16 anos. Minha mãe era daqui mesmo, mas meu pai de Inhambane. Minha mãe vendia coisas e, naquela época, teve um tempo que eles tiravam as coisas de quem vendia. Decidimos ir pro mato, porque minha mãe sabia trabalhar na machamba e podia tirar coisas para nós, para sobrevivermos. Meu pai não tinha salário. Por causa da guerra, larguei há muito tempo a escola. Era em 82, e parei na 7ª classe. Com a guerra era difícil estudar. Aí não voltei mais. Uma noite, vieram bater em casa e nos mandaram sair. Ficamos sem roupa. Eu estava com as maminhas a crescer, lembro que as cobria com as mãos assim, fiquei só de calçolas; meu pai, só de calção. E nos mandaram andar, carregando nossa roupa. Eram os soldados da RENAMO. Meu pai tinha nos bolsos um papel do governo, que ele trabalhava na segurança pública. Nossa sorte foi que acho que eles não sabiam ler, ou não entenderam o que estava escrito. Pegaram o papel e logo rasgaram, jogaram tudo ali, no quintal mesmo, antes de andarmos. Se vissem aquele papel, iam falar que comíamos com Samora, que era presidente na época. Isso aqui é comida de presidente, a comida dele? Tinham nos matado se vissem. Foi Deus, só pode. Andamos um caminho longo, descalços, e uma areia ruim de pisar, doía. Mandavam segurar coisas. Não importa o que era, nos mandavam: saco de sal, pegavam e mandavam levar na cabeça. Não queriam saber. Quem não aguentava, eles esfaqueavam. Quantos não foram! Andamos do anoitecer até amanhecer, sem sapato, no escuro. Às 12h, o sol a aquecer, sem água nem nada. E não chegávamos no lugar. Foram muitos esfaqueados. Só meu pai conseguiu. Nos soltaram e falaram que iam ficar com ele. Minha mãe chorou. Aí o soltaram. Não tínhamos força para voltar. Tinha fome aquela época. Não tínhamos pão, você sabe o que é isso? Ficávamos na fila do pão, de madrugada, a esperar e, de dia, só nos davam 2 pães. 2 pães! Éramos 7 em casa. E tinha famílias que tinham 10, 12, e recebiam só 2 pães também. Arroz, no abastecimento, que era como chamavam os mercadinhos aquele tempo: abastecimento, era meio quilo por pessoa, no fim de cada mês. Meio quilo, por pessoa, pro mês todo. Podíamos pensar 'matabichamos ou almoçamos com pão, e deixamos o arroz pro jantar', mas não tínhamos nem o pão. Esses adolescentes de hoje nem imaginam como foi. Por isso morro de medo da guerra voltar. O mundo chora. Foram momento horríveis (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

Muitas das histórias da guerra levaram a um ponto em comum: a mudança para o bairro da Matola como meio de fuga durante o conflito ou, no pós-guerra, como meio de retomar e reorganizar a vida. A mesma sensação ocorria com quem vinha de outras províncias residiam em casas improviadas e em locais não planejados, modificando a estrutura do bairro e reorganizando-se como grupo social, como ouvi de tia Tina, “aqui formamos uma unidade”. Assim o bairro ia se desenhando não apenas pelo seu espaço geográfico, mas pela sua história e pelas relações que mantinha com seu passado, as dinâmicas de sobrevivência que partilham e como se relacionam seus moradores.

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Costa e Maciel, ao estudarem os sentidos da comunidade, colocam uma importante observação sobre o bairro: “o bairro pode ser compreendido como espaço físico e afetivo no qual ocorrem as relações sociais cotidianas do sujeito” (COSTA, MACIEL, 2009, p. 63). As autoras indicam também que a percepção da disposição física dos bairros dentro da cidade se justifica no "cotidiano coletivo quando são representativas ou dotadas de significado para a população” (COSTA, MACIEL, 2009, p. 63), sendo a subjetividade um ponto importante nas concepções de um bairro. Ao localizarmos o bairro não apenas pela sua demarcação geográfica, mas valorizando-o como lugar de pertencimento onde a pessoa participa de grupos, possui relações diversas com os moradores e com os lugares, onde há conjuntos concretos que se encontram e mediatizam a vida pessoal e a coletividade, atribuímos a ele marcas identitárias. A história da cidade completa-se nas particularidades de cada região, reconfigura-se em seus conflitos e origens identitárias, culturais e linguísticas diferentes. Trata-se neste sentido de comunidade em que se compartilha no mesmo espaço, experiências e histórias comuns. Assim, o termo comunidade é utilizado frequentemente para nomear um espaço social específico dentro do bairro (COSTA, MACIEL, 2009, p. 63). As famílias estruturadas cada uma em uma casa, divindo seus quintais, músicas e danças, comidas e espaços, dentro ou fora, acabavam formando campo de experiências partilhadas e de desafios comuns. Nesse as pessoas não só se conhecem, mas se reconhecem em valores e atividades construídos historicamente, tornando-se, como sugere Magnani, seu “pedaço”, ao qual há pertencimento e legitimidade.

Não foi difícil reconhecer a existência de pedaços em regiões centrais da cidade, quando se tratava de áreas marcadamente residenciais: a lógica era a mesma. Em outros pontos, porém, usados principalmente como lugares de encontro e lazer, havia uma diferença com relação à idéia original de pedaço: aqui, diferentemente do que ocorria no contexto da vizinhança, os freqüentadores não necessariamente se conheciam – ao menos não por intermédio de vínculos construídos no dia-a-dia do bairro – mas sim se reconheciam como portadores dos mesmos símbolos que remetem a gostos, orientações, valores, hábitos de consumo e modos de vida semelhantes (MAGNANI, 2002, p.22).

O bairro da Matola A, desde sua constituição, foi um lugar de chegada e viveu transformação importante: havia quem tivesse ido para trabalhar, quem mudou por conta da guerra, quem se refugiou e, ao mesmo tempo, quem ainda continua chegando. Quem nasceu 55

ali, cresceu e ainda vive lá, ou os que estavam de passagem. Mas um lugar em que os espaços são pedaços, as histórias são plurais, as vivências são singulares e múltiplas, tal como as lembranças de um passado que se tornara presente. As crianças como fruto daquele tempo e local, carregado de memórias e de vida. Uma comunidade.

1.3 GUERRA DE LIBERTAÇÃO

O homem teve consciência de sua inferioridade técnica e industrial. Aliás, era desta sua inferioridade que provinha a sua situação de oprimido. Contudo, ele teve, ao mesmo tempo, consciência que o seu valor não podia ser medido pelo coeficiente da sua produção e da sua tecnologia. Isto leva-o, primeiro, à reivindicação da sua liberdade, da sua dignidade e depois à luta. Ngoenha, 1992, p. 15.

A história do continente africano é marcada por inúmeras questões sociais, políticas e econômicas, vinculadas à formação dos Estados Nacionais cujas origens não se separam dos processos de colonização europeia. Esta, por sua vez, já carregava as marcas do longo período de exploração e da escravização. Moçambique, dentro deste quadro, é um dos países africanos demarcados, explorados e que possuem marcas até os dias atuais.

A economia-mundo, à medida que se implanta, atribui a função subordinada e complementar ao continente africano, bem como determina o destino da riqueza produzida. A radical alteridade cultural que caracteriza o pensamento europeu, associada à urgência da racionalização de meios na empresa expansionista, determinará um crescente processo de polarização, na relação com as colônias e com os povos colonizados, que se vai traduzir num desequilíbrio econômico geograficamente definido e na transposição dessa situação dual para o interior dos territórios em África: a ordem implantada no continente vai ser a da existência, em paralelo, de duas sociedades diferenciadas, a dominadora e a dominada, a cuja relação político-econômica se sobrepõe a distinção “racial”. Essa estrutura tendencialmente dual, ao exprimir-se em todas as manifestações da vida dos territórios ocupados, formará no decurso do século XIX uma totalidade indissociável: o sistema colonialista (CABAÇO, 2007, p. 37).

Em Moçambique, assim como nos demais países africanos colonizados, os grupos existentes, de diferentes etnias, passaram a dividir os mesmos territórios, além da divisão 56

interna de espaços entre úteis e não-úteis (CABAÇO, 2007). As áreas consideradas não úteis tiveram investimentos sociais e economia familiar ou de subsistência, deixando o poder central nas áreas úteis, através de domínio da metrópole – no caso, Portugal.

Falar de Moçambique é falar de um aglomerado de povos e culturas num amálgama arbitrário, e por razões desconhecidas e alheias aos Moçambicanos. Na origem de Moçambique, não estão razões éticas e humanas, mas ideais de dominação de um homem sobre o outro, em nome de uma pretensa superioridade; quando um grupo de homens quer expandir a própria liberdade e, portanto, a própria história sobre a liberdade e a história do outro homem (NGOENHA, 1992, p. 11).

Percebe-se que, desde o período da colonização, Moçambique teve seu território dividido conforme utilidade e função econômica que teria algum retorno a Portugal, com investimentos direcionados para tais fatos. A racialização das relações ganhou contornos extremos, como a escravilização A pratica de classificação da população em indígenas, colonos, e assimilados é parte dos processos históricos que marcaram a formação de Moçambique e precisam ser considerados quando se discute a formação social atual, mas que não pode ser aprofundado no âmbito desta dissertação11. A população estava dividida, bem como seu território. A classificação acabara por separar, de fato, quem era considerado cidadão e quem era tido como “indígena” – que era a grande maioria dos africanos negros (esmagadora parcela da população moçambicana). Segundo Zamparoni (2000), as medidas tomadas procuravam definir características para a criação de uma “nova” identidade para o “indígena”, como um não-cidadão, além de traçar fronteiras entre africanos e colonizadores. Para o autor, o Regime Provisório para a Concessão de Terrenos do Estado na Província de Moçambique, de 1909, ao tratar das concessões de terrenos a indígenas, trazia consigo a definição dessa categoria: “o indivíduo de cor, natural da Província e nela residente que, pelo seu desenvolvimento moral e intelectual se não afaste do comum da sua raça”, sendo acrescentado, algum tempo depois, com “indígena” não só o “filho de pai e mãe pertencentes às raças nativas da África”, mas também os que, “tendo os caracteres físicos dessas raças não possa provar descendência diferente” (ZAMPARONI, 2000, s/p). 11

Assimilado foi uma categoria colonial instituída com o intuito de separar os africanos: aqueles que seguiam as tradições nacionais eram considerados indígenas e não tinham acesso a escola, aos serviços e empregos, a saúde, entre outros; já aqueles que demonstrassem deixar sua cultura e tradições, aliando-se ao governo português, poderiam ter acesso a estes recursos. O título não era vitalício, podendo ser retirado a qualquer momento.

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A reforma dessa lei fez com que, colocando-se a questão principalmente dos costumes como característica para definir a identidade indígena ou não, surgisse uma nova categoria: a dos assimilados. Para compor esta categoria, era necessário que o indivíduo apresentasse alguns requisitos: abandonasse os chamados “usos e os costumes maternos”; tivesse conhecimento avançado da língua portuguesa (leitura, fala e escrita); adotasse a monogamia; tivesse uma profissão (arte ou ofício compatível com a visão portuguesa) ou que ganhasse seu rendimento atraves através de meios lícitos para sustentação de sua família; não tivesse sido notado como refractário ao serviço militar nem dado como desertor. Aqueles que acreditassem se enquadrar deveriam escrever de próprio punho um requerimento solicitando sua condição de assimilado, além de apresentar uma série de documentos: atestado de residência comprovado pelas autoridades administrativas; comprovante que abandonou, de fato, os “usos e costumes” dos negros; comprovante de fluência em português; certificado de aprovação no exame de instrução primária de primeiro grau; certidão civil de casamento ou declaração de solteiro e afirmar que adotaria a monogamia. O “alvará” viria, segundo Zamparoni, caso cumprisse os requisitos, com “nome, idade, o estado civil, a filiação, a profissão, a naturalidade, a residência e trazer uma fotografia do assimilado, além do nome e idade da mulher e dos filhos menores de dezoito anos que, automaticamente, passavam a desfrutar da condição do marido e pai” (ZAMPARONI, 2000, s/p). Cabe lembrar, no entanto, que a aquisição da condição de assimilado poderia ser revogada a qualquer momento, caso fosse, por exemplo, provado que a pessoa seguisse suas práticas religiosas ou práticas históricas diversas dos considerados como legitimamente portugueses (ZAMPARONI, 2000; CABAÇO, 2007; HERNANDEZ, 2008). Com essa categoria criada, novas barreiras ergueram-se. Estar dentro dos “padrões” portugueses era uma forma de separar e distinguir os indígenas e oferecer, se podemos assim dizer, uma parcela de “direitos” na forma de concessão, não de cidadania. A categoria mais afetada foi a pequena burguesia moçambicana, que passou a não mais gozar dos poucos direitos que tinham anteriormente: estavam impedidos de ingressar em carreira pública, de frequentar boas escolas, eram demitidos ou preteridos nas promoções. Além disso, a concepção pendia para um viés “ético-católico” na qual tornar os indígenas “civilizados” era ensiná-los a viver como “bons católicos” e disciplinar através da experiência do trabalho, do labor (ZAMPARONI, 2000; CABAÇO, 2007). As crianças e jovens partilharam o mesmo destino e perspectivas: nas escolas, deveriam seguir os bons costumes e portar-se como “bons católicos”. O ensino, dado em 58

língua portuguesa, não contemplava nenhum aspecto da cultura moçambicana nem história da África. Essa era uma das medidas da política dos assimilados: trazer para o presente o que era moderno, enquanto o tradicional deveria ser deixado de fora, no passado, como a religião, a língua, as tradições e rituais, por exemplo. Os que recebiam o título de assimilado deveriam viver dentro das regras ditadas pelos portugueses, e eram supervisionados a todo instante. O título, do mesmo modo que era dado, poderia ser tirado. Alguns poucos direitos eram oferecidos aos assimilados, como frequentar as escolas e estar num ambiente em que alguns colonos participavam.

No sistema de ensino oficial, o Estado completava o projeto de extirpar o colonizado da própria história e da tradição sociocultural para o fazer assumir os valores, os comportamentos e a história de Portugal. O sistema educacional era unificado a todo o império pelo modelo em vigor na metrópole. Na escola primária, em Moçambique, estudava-se (eu estudei), até meados da década de 1960, em textos que se referiam à vida rural em Portugal, sua vegetação e fauna, sua paisagem, seus “usos e costumes”. Era a tentativa de alienação física do espaço sociocultural e da natureza que cercava a criança das colônias. As disciplinas de História e Geografia, física humana e econômica, que se prolongavam por todo o ensino médio, referiam-se à história e à geografia de Portugal, visando a comprometer deliberadamente o universo da imaginação e mitificar a metrópole. O passado de África remontava às ”descobertas”! O sistema colonial se repetia: a história de Moçambique começava com a “resistência heróica dos nossos antepassados lusitanos” à ocupação do Império Romano, como em Dakar e em Argel se aprendia sobre a história de “nos ancêtres, lesgaulois” (CABAÇO, 2007, p. 158).

A desqualificação cultural era explícita. Com essa situação presente no país, reivindicações começaram a ganhar espaço e força lentamente: o acesso à educação, a liberdade do movimento, mobilidade laboral, entre outros espaços até então interditos começaram a ser pretendidos pela população considerada indígena (antes privilégio apenas dos colonos e uma parte mínima dos assimilados) (CABAÇO, 2007; AFONSO, MARTELO, s/d).

O homem que vivia em Moçambique, quer fosse de origem banto, portuguesa, indiana ou chinesa, por mais que tentasse conservar a própria cultura de origem, já não era aquilo que antes fora. Ele participava consciente ou inconsciente na formação de uma nova identidade cultural e de uma nova história (NGOENHA, 1992, p. 15).

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Outro fator importante na classificação dos indígenas e assimilados dizia respeito à migração. Com a ocidentalização e padrões europeus em Moçambique, muitas pessoas vindas do campo acabaram encontrando algum tipo de refúgio nas cidades, dando origem, segundo Cabaço, a um “novo tipo sociocultural que o maniqueísmo estreito da colonização em Moçambique insistia em continuar remetendo para a classificação residual de indígena” (2007, p. 193). Afastado de sua comunidade de origem, o moçambicano vindo do campo ou das periferias dos centros urbanos passava a orbitar dois universos culturais paralelos.

[...] era o africano da periferia dos centros urbanos, que, mantendo suas cosmogonias e falando quase que exclusivamente a própria língua, se encontrava distante de sua comunidade, desenquadrado das relações hierárquicas, dos vínculos tradicionais, das práticas consuetudinárias, dos espaços rurais. Ele vivia solicitado por hábitos e comportamentos diferentes, tinha de gerir diferentes espaços, era compelido a desenvolver aptidões técnicas e educacionais da sociedade urbana, recebia o influxo de novos conhecimentos. Nesse parcial desenraizamento, ele não rompia, contudo, com suas origens e era sobre tais referências que construía suas várias identidades na nova situação: nos subúrbios urbanos, reestruturava-se em sistemas de organização da vida que refletiam a simbiose dos dois universos culturais em que orbitava (CABAÇO, 2007, p. 193).

Uma nova dinâmica social acabara surgindo e interferiu em todas as esferas: social, educacional, informativa, econômica. A estrutura passa a ser não apenas como “área útil” para o governo, mas combina-a com uma produção para autoconsumo, para subsistência e sobrevivência, com produção de culturas de rendimento. Segundo Cabaço, esse encontro entre os “povos do campo” ou “peri-urbanos” com os assimilados originou a chamada “pequena burguesia africana” que, junto aos intelectuais, vai permitir a luta pela libertação e independência do país. Depois de longo período colonial, iniciou-se em 25 de setembro de 1964, a guerra pela libertação de Moçambique, opondo os soldados moçambicanos do exército da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e o exército português. A guerra da libertação foi uma luta armada de grande violência. As batalhas intensificaram-se em 1969: Eduardo Mondlane, presidente da FRELIMO, foi assassinado numa emboscada; Samora Machel assumiu a presidência da FRELIMO em 1970, e em 1971 Portugal operou o chamado “Nó Górdio”, cujo objetivo foi erradicar as rotas das guerrilhas e paralisar as tropas inimigas. A duração da operação foi de 7 meses e os saldos foram alarmantes, tanto em questão de soldados mortos e capturados, quanto em minas e bases 60

detectadas ou desativadas, além de grande aumento no número de armas – mostrando, mais uma vez, as consequências as quais a população seria obrigada a carregar (DAVID, 2013). Com o passar dos anos, a guerra parecia estar desgastada – deslocação e dispersão das populações, criando crises e enfraquecendo a estrutura tradicional. A FRELIMO acabara perdendo a boa imagem, pois combateu valores e práticas rituais de diferentes sociedades com sua base alicerçada na ancestralidade. A participação estava voltada para a luta pela independência considerada como uma questão de sobrevivência e essencial para a vitória (CABAÇO, 2007) e o novo projeto de sociedade que se desenhava. Portugal sofreu golpes militares de esquerda importantes neste período, seu exército enfraquecia e, ao mesmo tempo, a FRELIMO via seu número de soldados aumentar. Este quadro culminou, em 25 de junho de 1975, no acordo de paz entre Portugal e Moçambique e, consequentemente, na independência do país. A cultura da guerra coexistia com a construção e formação do Estado. A situação da população ficou indefinida após a libertação, no que dizia respeito às suas propriedades, bens, situação profissional, além dos meios básicos como educação e acesso aos direitos. Cada indivíduo foi criando, segundo Cabaço, “respostas ancoradas nas diferentes experiências de resistência à tutela estatal, reforçando, assim, referências da identidade de origem” (CABAÇO, 2007, p 417). O movimento de libertação elaborou um projeto de identidade nacional na qual diversas respostas culturais pudessem confluir; porém, nenhuma delas correspondeu, em momento algum de todo o processo, como uma identificação conforme as propostas políticas. Iniciava-se, então, uma nova fase em Moçambique, trazendo consigo a guerra civil, que durou 16 anos (1976 – 1992).

1.4 GUERRA CIVIL

Hoje, não se nos pede de inventar um caminho novo, ainda menos viver a dimensão específica de moçambicanos e africanos, mas existe um dogma histórico que se chama democracia, desenvolvimento, liberalismo, o qual constitui a única dimensão histórica da humanidade, e é garantia da nossa antihistoricidade. Ngoenha, 1992, p. 20.

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Na luta pela libertação, como relatado anteriormente, o movimento da FRELIMO estava cindido. O inimigo a ser combatido agora, segundo Samora Machel (citado por CABAÇO, 2007), era outro: era o inimigo interno, o “nós contra eles”, as “ideias erradas” que, de algum modo, separavam não só o movimento, mas também a própria população do movimento e das ideias socialistas. A guerra trouxe a dispersão das populações. As propostas colocadas como novas formas de socialização do país, por ora independente, reprovando alguns dos costumes e rituais e crenças tradicionais, fizeram com que parte da população reprovasse as atitudes e forma como a FRELIMO estava lidando com o futuro do país. A opção escolhida pela FRELIMO de como liderar o país, após a luta armada, foi pelo socialismo, marcando sua política identitária.

A guerra, pela politização do não político, se transformou em conflito civil, dividindo fidelidades. O projeto da FRELIMO de uma convergência das identidades locais numa única identidade moçambicana, fundada na diferença da sociedade colonial e congregada em torno da apropriação nacional da “modernidade”, debilitou-se no turbilhão caótico da confrontação militar e a paz se resolveu, no plano cultural, por uma ambígua opção multiculturalista (CABAÇO, 2007, p. 430).

Após sua independência, Moçambique passou por algumas transformações. Em 1974, Armando Guebuza, chefe de Estado e ministro da Administração interna da transição cria, com apoio total da FRELIMO, os chamados campos de reeducação, com o intuito de fazer uma “limpeza” na população. Inspirados em outros regimes totalitaristas socialistas, como o da ex-União Soviética e o da China, o objetivo inicial era reeducar as mulheres consideradas prostitutas, como as mães solteiras ou as que moravam sozinhas. O processo se alargou e outras pessoas eram mandadas para os campos: dissidentes políticos, pessoas consideradas suspeitas por ligação com o governo português, autoridades e chefes tradicionais (como os curandeiros, por exemplo, ou chefes das aldeias); alcoólatras; testemunhas de Jeová. Tem-se uma estimativa não oficial que, de 1974 a 1980, mais de 10 mil pessoas foram enviadas aos 12 centros de reeducação existentes no país (SOUSA, 2013). David (2013) discute a questão sobre a negação da tradição em favor da modernidade.

Logo após a independência de 25 de Junho de 1975, o governo revolucionário deu início à nacionalização dos serviços essenciais à

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população como a saúde, a educação e habitação, bem como à socialização do setor rural. (...). Contudo, estas campanhas aumentaram o descontentamento entre os residentes estrangeiros, portugueses na sua maioria, que ainda permaneciam em Moçambique. Assim, houve outro grande esvaziamento deste contingente provocando a paralisação de muitas empresas e o colapso de setores industriais. Por sua vez, à população local o que causou descontentamento foi a intensificação de medidas governamentais indesejáveis como o encaminhamento dos cidadãos “ainda não adaptados ao novo país” para os campos de reeducação e a distribuição de jovens formados a regiões com baixo adensamento demográfico para desenvolvê-las. Estas medidas somadas à criação de uma polícia altamente repressiva alcançaram, inclusive, a população urbana, aumentada rapidamente no final da década de 1970 e início da década de 1980 (DAVID, s/d, p. 18-19).

O pressuposto da FRELIMO era romper com qualquer vínculo capitalista ou que remetesse ao colonialismo português; porém, grande parte da população acabou sendo pressionada e levada de maneira forçada aos campos. Os detidos eram parados nas ruas, levados à delegacia e encaminhados aos campos, sem qualquer comunicação com a família e amigos, e lá eram forçados a trabalhar nas machambas (lavoura), sendo os campos afastados das comunidades. Sousa (2013, s/p) relata “através do trabalho forçado na agricultura, ou machamba, como habitualmente se diz em Moçambique, as pessoas deveriam ser reeducadas e, nesse processo, aprender os princípios do marxismo-leninismo”. Os episódios revistos por aqueles que lutaram por uma mudança no país, e que se prendiam às tradições, à ancestralidade, às crenças e costumes, eram um cenário de terror. A ideia de um movimento de combatente à FRELIMO acabou ganhando repercussão: estava aí instaurado um embate que começaria em 1976 e perduraria por longos 16 anos – a guerra civil moçambicana. David reafirma que “nas zonas rurais de Moçambique o Estado nacional foi concebido em ruptura com as autoridades tradicionais reconhecidas e respeitadas pelas populações locais” (DAVID,s/d, p. 31). Os primeiros cinco anos da guerra civil - até o final de 1980 - foram considerados guerras de guerrilhas: a RENAMO acabou por instalar diversas minas terrestres para ataque ao exército da FRELIMO, o que fez com que a RENAMO tenha sido considerada como um movimento terrorista (David, 2013). Além das minas, a RENAMO recrutava seu exército através de sequestros nas aldeias ou comunidades, fortalecendo ainda mais seu título de organização terrorista. Muitos dos enviados aos campos de reeducação acabavam sendo capturados pela RENAMO ou se aliando, numa tentativa de lutar por uma democracia, de fato. David, ao citar Christian Geffray, discute e aponta a existência de três grupos que foram 63

prejudicados pelas ações da FRELIMO e, portanto, encontravam-se favoráveis a um enfrentamento maior: os chefes tradicionais, que haviam sido afastados por conta da nova política instaurada pelo partido - que privilegiava a modernidade em prejuízo das tradições; os deslocados, que haviam sido forçados a largar suas casas e concentrar-se nas aldeias comunais; e os jovens, que não conseguiam integrar-se nas cidades e, assim, acabavam não enxergando seu possível desenvolvimento.

O Estado, substituindo o carisma da independência pelo autoritarismo do quotidiano, contrapôs-se aos privilégios herdados, a cidadãos urbanos inculturados pelo colonialismo e a sectores do poder tradicional, desencadeando reacções emocionais e novos processos da identidade por oposição (CABAÇO, 2007, p. 427).

O conflito assumiu dimensões regionais , ocorrendo uma importante implicação da África do Sul que apoiou a RENAMO, dando mais força ao movimento. Moçambique encontrava-se devastado em meio à guerra que ainda vivia: pessoas morrendo de fome, aldeias destruídas, fortes secas e terror instaurado. Para agravar os fatos, a guerra entre Iraque e Irã começava naquele ano de 1980, tornando ainda mais complicado o fornecimento de combustíveis petrolíferos para Moçambique e prejudicando os diversos tipos de abastecimento e locomoção no país (MEDEIROS, 2009). A instabilidade econômica, assim como a social, acabou agravando-se no decorrer da guerra, uma situação que já era precária e que perdurou nos quase 30 anos de guerra (somando-se a luta de libertação e a guerra civil) e que, ainda hoje, é bastante forte no país. O país não estava preparado para a guerra, e tampouco para o pós-guerra.

[...] Sejam quais forem as tendências ideológicas expressas pelos vários grupos, presentes no seio da FRELIMO durante a guerra de libertação e depois da independência; ou mesmo por grupos separatistas durante e depois da guerra; estes grupos são sempre pensados em função da estratégia mundial, mesmo se os protagonistas não são sempre devidamente conscientes. Nunca existiu uma verdadeira unidade entre os diferentes grupos étnicos, culturais ou sócio-económicos quanto ao objetivo no novo Estado. Esta diversidade de opinião esteve sempre presente (NGOENHA, 1992, p.67).

Partindo dessa visão, Paulo Granjo afirma que esse período foi marcado por violência física e simbólica, com atentados diretos à população.

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Moçambique viveu, desde pouco tempo depois de sua independência até meados de 1992, uma guerra civil particularmente violenta em termos físicos e simbólicos. Aquilo que começou por ser um conjunto de pontuais acções de sabotagem realizados por um grupo restrito, apoiado diretamente pelos regimes rodesianos e sul-africano, acabou por se transformar numa guerra em larga escala, que pôde alongar no tempo e alargar no espaço devido à capitalização (GRANJO, 2011, p.2).

Durante a guerra, ambos os grupos usaram de força e terror em suas estratégias: a FRELIMO focou seu controle sobre as populações das cidades, enquanto a RENAMO tinha por base as populações rurais. Embora os grupos agissem com maior ênfase com populações em um espaço específico, os dois utilizaram-se de raptos para a formação de seus exércitos: a FRELIMO capturava jovens pelas ruas e vilas, com o discurso de servir ao Estado, enquanto a RENAMO, tida como “grupo da tradição”, optava por raptos de mulheres jovens e crianças do sexo masculino dentro das aldeias que saqueavam, com o discurso de “recuperação de populações” (GRANJO, 2011). O autor afirma, também, que foram utilizados atos considerados “repulsivos, desumanizantes e imperdoáveis, que pretendiam „cortar as pontes‟ entre os recrutados e suas comunidades de origem, impedindo de desertarem, regressando a casa” (GRANJO, 2011, p.3), como, por exemplo, jovens e crianças serem obrigados a matar parentes próximos ou utilizar partes dos corpos como utensílios e até mesmo a prática do canibalismo. As crianças e jovens formavam um grande número nos exércitos, principalmente nos da RENAMO. Foram tirados de suas casas, forçados a realizar atos contra sua vontade, e tiveram uma “infância roubada” – “num país de população jovem, o conflito teve um impacto tremendo sobre a criança” (Cabral, 2005/06, p. 140). Em seu texto, Cabral (2005/2006) traz uma estimativa de que 50% das vítimas fatais tinham menos de 15 anos; que “cerca de 250.000 crianças foram separadas de suas famílias, das quais pelo menos 25.000 foram transformadas em crianças-soldado. 2/3 dos cerca de dois milhões de crianças em idade escolar foram deixados sem educação” (CABRAL, 2005/2006, p 141).

O uso de menores como soldados não foi exclusivo da Renamo, também o exército governamental e as Milícias Populares (forças paramilitares governamentais) recorreram por vezes ao recrutamento ilegal de menores para as suas fileiras. Contudo a Renamo destaca-se por ter recrutado crianças de idade bastante jovem, de um modo muito mais sistemático e violento, sobretudo no sul do país (CABRAL, 2005/2006, p. 141).

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A RENAMO foi acusada de cometer diversos crimes contra a humanidade como parte dessa estratégia de desmobilização: além dos fatos relatados como violência física, como estupros e assassinatos, a violência moral e simbólica era ainda maior: a técnica da mutilação foi bastante utilizada, principalmente em crianças; a fome instaurada foi um modo de recrutamento forçado; aldeias incendiadas e destruídas; saques e violência contra a população como forma de coagir e instaurar o medo; estupros e recrutamento de mulheres, além de crianças. A FRELIMO, por sua vez, não escapa deste sistema de terror; casos de violência física e simbólica também foram práticas comuns: campos de reeducação; estupros; a vida em aldeias comunais por parte da população, como estratégia de controle e não aproximação ao grupo da RENAMO (GRANJO, 2011; SOUSA 2013).

O conflito armado teve um efeito de ruptura sobre o tecido social e as infraestruturas de base do país. As principais vítimas foram a população civil e as estruturas associadas ao governo: escolas, postos de saúde, fábricas, lojas, campos de cultivo, vias de comunicação, aldeias comunais, sedes de distrito e staff técnico (professores, médicos, enfermeiros, técnicos, chefes distritais, etc.). Quando a guerra terminou em 1992, 1/3 da população moçambicana estava mal nutrida e 2/3 vivia abaixo da linha de pobreza, mais de 1.800 escolas haviam sido destruídas e mais de 50% da rede de saúde básica e da rede rodoviária encontrava‑ se destruída ou inviabilizada (CABRAL, 2005/2006, p. 140).

A guerra perdurou até 1992, após inúmeras mortes, desalojamentos, refúgios, linchamentos, assaltos, sequestros e ataques violentos. Frequentemente, os casos relatados envolviam crianças e mulheres, que foram as principais vítimas dos ataques e de recrutamentos forçados, com o intuito de se criar um exército forte e obediente. Ngoenha afirma que, em mais de vinte anos de guerras e conflitos, a vida das populações de Moçambique passou por diversas transformações, desde a ilusória sensação de liberdade e de “donos de seus detinos”, decorrente da independência, aos anos de medo e opressão. E que, além das perdas de vidas humanas em mais de dez anos de conflitos internos, outras perdas também foram destacadas, seja em questões econômicas, em circuitos migratórios, em infância perdida ou, em resumo, em sofrimentos.

Para além da guerra, assistimos a um grande fenômeno de desestruturação social: o divórcio entre os jovens e o resto da população, o divórcio entre o campo e a cidade, o divórcio entre os „intelectuais‟ e as massas populares (NGOENHA, 1992, p. 25).

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A guerra não foi apenas física. Foi e ainda é simbólica, e marca a identidade de um povo, de uma cultura e de infâncias que foram deixadas para trás e que, ainda hoje, são colocadas como grupos marginalizados.

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CAPÍTULO

2



NARRATIVAS

PARTILHADAS:

AS

SINGULARIDADES,

VIVÊNCIAS E DIÁLOGOS DO SER CRIANÇAS NO ESPAÇO DOMÉSTICO, COMUNITÁRIO E NA EXPERIÊNCIA DO BRINCAR.

As vivências com cada uma das crianças e com suas famílias assumem na forma da narrativa escrita, o esforço de reconstituição e descrição de momentos significativos e de reflexões temáticas das situações de vida dos envolvidos no processo. Busquei guardar, na análise e na construção das narrativas, o olhar de quem participou e partilhou pensamentos, valores, reflexões e vivências não só na oralidade, mas, também, nas expressões, nas vivências e nas sutilezas da construção de significados (CUNHA, 1997; COSTA; GUALDA, 2010). Para Cunha (1997), a narrativa traz consigo um caráter participativo e um significado que lhe é próprio. Nesta metodologia da escrita, os símbolos culturais e suas significações, produzidos tanto por aquele que fala, como por aquele que ouve, transformam o processo em um momento e um tempo específicos de partilha e de escuta, nos quais a narrativa acaba sendo, por si só, um processo cultural, que envolve interpretação de vários lados e participantes. Ainda para o autor, „[…] [de] alguma forma a investigação que usa narrativas pressupõe um processo coletivo de mútua explicação em que a vivência do investigador se imbrica na do investigado” (CUNHA, 1997, s/p).

Há muitas maneiras de contar histórias e muitas lentes através das quais elas podem ser interpretadas. A perspectiva da narrativa revela-se uma maneira de descrever, analisar e interpretar as histórias. Para tanto, Mattingly e Garro (2000) sugerem ser necessário que os episódios estejam selecionados entre a vasta escala das possibilidades no fluxo da experiência, e apresentados em uma ordem própria que revele intencionalmente ou não os significados. Além do mais, o aspecto social adquirido pela voz na narrativa, na descrição dos eventos, tem um interesse particular em pesquisas etnográficas. Características como entonação e qualidade da voz devem ser consideradas, além da apreciação da linguagem não verbal, tais como gestos e expressões (COSTA; GUALDA, 2010, p. 934).

A escolha pelo uso das narrativas revela um posicionamento que considera a reprodução e a reconstrução das experiências que foram singulares e partilhadas, além de dar significado ao universo experimentado, através das vozes múltiplas.

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Uma narrativa é frequentemente precedida por uma proposta para se contar uma história e a aceitação em ouvi-la. Narrar eventos é uma atividade relacional empática que envolve, de um lado, alguém que, ao falar, consulta a história inteira da vida, um amálgama de materiais autobiográficos; e, de outro, um ouvinte com escuta atenta. Todavia podem existir lacunas entre a experiência – a narrativa –, a análise e a leitura final, uma vez que a narrativa pode ser afetada pelos processos da memória (COSTA; GUALDA, 2010, p. 935).

As cinco narrativas reproduzidas a seguir, foram construídas, tecidas, escritas e amarradas de acordo com as experiências, momentos e conversas estabelecidas, tanto de maneira formal, como de maneira informal. Levantadas em tópicos que se repetem, e em campos temáticos e problemáticos que tecem a discussão, como as questões referentes às relações, às tarefas realizadas e ao brincar, podemos dar visibilidade não apenas aos fatos, mas às crianças, às suas famílias e aos lugares de importância de cada uma delas; cada criança, família, momentos e situações construiram narrativas, forneceram as bases para a descrição, para o processamento e para a reconfiguração dos momentos e das situações.

2.1. Adelaide

Adelaide foi uma das primeiras crianças com quem me reencontrei, ao chegar à escola. Ela estava de tranças e com um penteado diferente do das demais vezes em que a vi: agora, com 11 anos, usava os cabelos curtos, com mechas e tranças. Ao me ver, ela saiu correndo de dentro de sua sala e abraçou-me. Havia sido a retomada de nosso contato. Nosso vínculo, se deu há três anos atrás, na ONG em que trabalhei. Conheci nessa época sua família, por quem fui acolhida e, pouco a pouco, passei a tornar-me parte dela: era cuidada, realizava algumas tarefas, ajudava no que era possível. Conhecer as histórias, jeitos, culturas e tradições se deu sem maiores dificuldades: muitas vezes, as histórias eram contadas sem que eu tivesse que perguntar. Convivi com Adelaide e sua família em um período de dezessete dias, entre os dias 10 e 27 de março de 2014. Fui convidada para passar alguns fins de semana esporádicos, para reuniões familiares.

2.1.1 Constituição familiar e relações

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Adelaide nasceu no dia 24 de setembro de 2002 e tinha 11 anos no momento da pesquisa. É a caçula dentre as filhas de Laurinda, 48 anos, e de Jaime, 45 anos. Ao matabicharmos12 pela primeira vez, cada um contou-me de onde veio e como passou a integrar a família Mondlane – a começar com Laurinda. Laurinda veio da província de Gaza, quando a guerra civil começou. Foi para Maputo com 18 anos e na cidade Machava conheceu Jaime, quando tinha 23 anos. Ao se mudar para o bairro Matola A, passou a viver na mesma casa em que mora atualmente. Teve sua primeira filha, Rute, e depois mais três meninas, sendo Adelaide a última sorte13. Mãe Laurinda tem seu comércio próprio: revende carvão e lenha, em sua própria casa, e consegue cerca de 2.400 meticais14 mensais. Lá em Gaza era guerra, matar pessoas, queimar os carros, queimar as casas, por isso nós conseguimos ir lá de Gaza pra aqui em Maputo. Eu tinha 18 anos, acho que começaram nós ali pegar pessoas, matando pessoas. Nós corremos ir na vila, vimos que não dava para chegar na vila, pegamos. Machibombo e viemos. Era preciso vir com machibombo. Prontos, fiquei aqui na casa do meu tio, lá na Machava. Fiquei, fiquei, até 20 anos, prontos. Comecei a arranjar um trabalho aqui. Lá na cidade, eu era empregada doméstica. Prontos, cresci lá. Aqui a guerra era mais ou menos, não havia guerra, tinha muitos soldados. Mas agora lá, soldado mandava, mandava e só queimava os carros quando ia lá, aqueles bandidos. Eram soldados da Frelimo. Eram os da Renamo que queimavam as coisas. Queimava as casas, quando pegaram criança, matar. Morava no mato mesmo, era longe. Vila era longe. Para ir na vila tem que andar 60 km da vila. Lá também tinha ataque, por isso nós saímos por aqui. Vim com minhas irmãs, meu irmão; meu pai ficou lá com minha outra irmã. Eu tinha 18 anos quando a guerra começou. […] Eu tinha 23 anos quase quando conheci o pai Jaime. Moro nessa casa faz tempo, há 23 anos. Nós com meu marido, minha rival. Margarida é a rival, que é quando tem o mesmo marido – nasceu criança, ah nasceram muitas crianças. Tenho quatro filhas: Inocência, Cecilia, Adelaide. Eu só tenho mulheres só. Eu que tive filho primeiro (GRAVAÇÃO DE ÁUDIO, 2014).

Jaime nasceu na província de Gaza, região central de Moçambique. Saiu de sua província natal para procurar emprego em Maputo, onde tornou-se mecânico, de uma oficina em Matola A. Quando conheceu Laurinda, já estava casado com Margarida. Construíram a casa na qual moram no bairro há 23 anos. Em julho de 2013, sofreu um acidente enquanto trabalhava, permanecendo em estado de coma por três semanas. As esposas cuidaram dele e

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Termo usado para se referir a tomar o café-da-manhã. Em Moçambique, costuma-se referir aos filhos através do termo “sorte”. 14 Moeda nacional moçambicana. O salário mínimo estipulado é de 2500 meticais. Em valor de conversão, 1 metical equivale a 13 reais, aproximadamente. 13

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da casa. Jaime recebia seu salário integral, graças a um acordo feito com seu chefe (cerca de 11 mil meticais). Sai de Gaza para vir para cá trabalhar. Estava tendo guerra lá. Há muitos anos, comecei a trabalhar, há muitos anos. Nas oficinas. Mas agora, como estou doente, já parei de trabalhar. Já devia trabalhar na oficina, mas sofri acidente. A empresa parou-me. Já era casado com mãe Margarida há pouco tempo, e morava aqui mesmo. Conheci mãe Laurinda e falei “quero ter um filho com você”. Ela riu e aceitou ter um filho com papa. Casei com ela também. Mãe Margarida é muito boa, aceitou o papa e a mama Laurinda, e construímos essa casa aqui. Fui eu que construí essa casa, Mama. E aqui tenho todos meus filhos. Todos esses são meus filhos. E essas são as mães. Elas se gostam, e meus filhos também. São filhos das duas, chamam de “mama Laurinda” e chamam de “mama Margarida”. Não há problema nessa casa. Se gostam minhas mulheres. Aqui em Maputo moro há muito tempo. Há muitos anos, muitos mesmo. Eu vim aqui há muito tempo. Esses meus filhos aqui são todos pessoas nascidas aqui. Eu não trabalho, estou doente, mas meu patrão me dá o salário. Trabalho com ele há muito tempo, muito tempo mesmo. Desde que cheguei trabalho com ele. Ele já me conhece. Mas agora não trabalho, estou doente (GRAVAÇÃO DE ÁUDIO, 2014).

Margarida tem 38 anos e é a primeira esposa de Jaime. Ela nasceu em Matola A, onde seus pais trabalhavam nas fábricas ali existentes. Chegou a sair do bairro para estudar, mas retornou algum tempo depois. Não viveu diretamente a violência da guerra instaurada no país, embora tenha sentido um aumento na população do bairro ocasionada pela migração. Aos 14 anos, Margarida teve sua primeira filha com Jaime: Julia. Casaram-se e tiveram mais 4 filhos: Celia, Cristina, Ferisberto e Gerson. Têm atualmente uma neta: Chelsia, filha de Celia. Margarida também tem seu próprio comércio: uma barraca dentro da casa do qual retira o valor de 2 mil meticais mensais, aproximadamente.

Nasci aqui mesmo eu. Muitos vieram pra cá fugindo da guerra; meus pais não: meu pai e minha mãe vieram para trabalhar na fábrica. Aqui tinham dois tipos de fábricas: a de cimento, e a de biscoito, farinha... De massas. Era nesta que meu pai trabalhava! Aqui nem era cheio assim, as casas eram grandes, tinham machambas. Trabalhávamos com nossa mãe na machamba. Aqui aumentou muito. O problema é da guerra: as pessoas vieram do mato para cá, e não voltaram. Aqui não tinha guerra. Quando era criança eu brincava aqui mesmo, por todos os lados. Ali embaixo, onde tem a escolinha, era um lago. Eu não estudei aqui. A 1ª e a 2ª classe fiz em uma escola lá na Manhiça, onde morava uma irmã minha. Depois quis voltar a morar com minha mãe, ai voltei pra cá. Quando fiquei mais velha, quis ir morar em Marracuene com uma tia minha; fiquei quatro anos e depois voltei. Agora não saio mais daqui. Essa casa temos faz muito tempo. Desde o começo morava o papai Jaime e eu. Moramos bem aqui. Todos nós. Meus

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filhos nasceram aqui, e moram aqui. Os da mãe Laurinda também. Somos em muitos, como estás a ver. Mas, aqui é normal assim mesmo (GRAVAÇÃO DE ÁUDIO, 2014).

Com as dificuldades provocadas pela guerra, muitas famílias deixaram seus lares e terras de origem e migraram para as cidades. O bairro da Matola A já era rota migratória para as pessoas que trabalhavam nas fábricas, mas a situação piorou com os seguidos ataques, havia falta de abastecimento de água e alimentos além de inúmeras situações vexatórias e de violências. A reorganização familiar e suas dinâmicas foram se modificando de acordo com a “nova” situação instaurada: mudanças do campo para as cidades mais próximas ao centro, muitas mulheres, tendo perdido seus maridos, tornaram-se chefes de família. Com a família de Adelaide o processo não foi diferente. Adelaide morava, então, com a mãe Laurinda, pai Jaime, mãe Margarida, e seus irmãos Celia, 20 anos; Cristina, 16 anos; Ferisberto, 13 anos; Fátima, também com 13 anos; e Gerson, 7 anos; além de sua sobrinha, Chelsia, de 1 ano. Fátima era filha de uma terceira mulher, Marta, que teve um envolvimento passado com pai Jaime. Fatima foi morar na casa da Matola A após sua mãe falecer, enquanto ainda era pequena; antes disso, morava com sua avó, em Manhiça que, segundo ela, era um lugar longe da Matola A. Chegou a morar com a família de Adelaide antes de a mãe falecer, fazendo as 1ª, 2ª e 3ª classes da escola primária no bairro, mas depois voltou a morar com sua mãe. As outras irmãs de Adelaide não moravam na casa – moravam no lar15 com os seus maridos. Adelaide ainda tinha mais dois sobrinhos, filhos de Mana Rute. No total, são em 10 irmãos. A família Jaime Mondlane era assim constituída: um pai com duas esposas (duas mães), 10 filhos, e 3 netos. Na casa vivem o pai Jaime, mãe Laurinda, mãe Margarida, Adelaide, Celinha, Fatiminha, Ferisberto, Gerson, Cristina e Chelsia. A renda familiar total é de aproximadamente 15 mil meticais, o que equivale a uma renda de 1600 meticais por pessoas. Celinha (mãe da Chelsia), durante uma das conversas que tivemos, contou-me que não pretendia ter tido a filha. Segundo ela, foi um acidente. No momento da pesquisa, Chelsia morava com ela, mas Celinha pretendia terminar de amamentá-la, e, ao iniciar a idade escolar, pretendia fazer com que Chelsia fosse morar com o pai. Muitas crianças, em caso de separação ou mesmo de morte de um dos dois, passam a morar com o pai ou com a família do 15

Termo referente à casa do marido. Em Moçambique, quando a mulher se casa e passa a morar na casa do marido diz-se que ela foi para o lar.

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pai – diferente do Brasil, em que a guarda e os cuidados ficam sob responsabilidade da mãe. Esse fato era corriqueiro por lá, conforme fui observando nas demais casas. Além das relações familiares, havia as relações com as pessoas da comunidade, principalmente as que frequentavam a mesma Igreja ou as que moravam nas casas vizinhas. Adelaide e sua família frequentavam a igreja Zione16. Em um dos domingos, fui à missa com Adelaide. Por ser criança, Adelaide vestiu-se com uma roupa própria da Igreja: saia azul e uma blusa branca, com uma faixa entre elas. Essa vestimenta é usada apenas pelas crianças, no primeiro domingo de cada mês; nos demais, usava capulana assim como as mulheres adultas, como sinal de respeito. Também, por ser criança, sentava ao fundo, nos bancos, e participava da missa cantando e rezando junto com as demais crianças. A missa sempre era rezada em changana. Não havia muitas crianças na missa, mas Adelaide reafirmou que gostava bastante de ir à Igreja, embora, por vezes, não conseguisse ir por estar realizando alguma tarefa ou por estar na casa da irmã Rute. Segundo Adelaide, “se tenho vontade e termino de ajudar em casa a tempo, eu venho!” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014). Entre as pessoas da comunidade, uma das relações mais próximas era com Inês, que morava na casa da frente, em um quintal dividido entre mais três casas. Era comum Inês sentar-se com as mães no espaço do quintal e, então, conversarem, enquanto Adelaide e/ou Fatiminha cuidavam de seu filho menor, Custem, com 3 meses na época. Em contrapartida, muitas vezes, Rute ou Inês trançavam seus cabelos, sem cobrar nada para além da troca mútua de favores. Outras vizinhas, que tinham uma relação de parentesco com mãe Laurinda, conviviam com maior frequência os momentos de almoço e de descontração aos finais de semana, dançando juntas e bebendo até às 23 horas, como era o caso de uma “amiga” e de sua “afilhada” (sempre eram assim chamadas, e foi assim que as chamei. O nome era apenas um detalhe que não fazia diferença ali). O contato era próximo e as pessoas partilhavam os momentos da vida em comunidade, como no período em que pai Jaime ficara doente, muitos de seus vizinhos ajudavam as mães em seu cuidado, sendo comum passarem em sua casa para 16

As primeiras igrejas zionistas surgem na África do Sul. Em Moçambique, sua entrada se deu principalmente com os trabalhadores de minérios que trabalhavam no país vizinho. A característica principal da religião é a invocação do Espírito Santo e a “cura divina efectuada por meio de sua acção milagrosa” (AGADJANIAN, 1999, p. 416). Segundo o autor, “a Igreja zione é uma Igreja de comunidade por excelência – localizada dentro da comunidade e sendo parte integrante da vida social comunitária”. Suas principais curas voltam-se as mulheres, e as “doenças de mulheres”, na qual a principal nomeada é a esterilidade, e as doenças das crianças, advindas também das mulheres. Embora oponham-se aos cultos tradicionais dos antepassados, seus rituais e curas são parecidos com os dos curandeiros tradicionais.

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perguntarem como ele estava. Pude perceber que as visitas tornavam-se mais frequentes, quando alguém ficava doente. Aos finais de semana, geralmente havia alguma comemoração e/ou festa, que poderia ser familiar ou partilhada com alguns vizinhos. Nesse período de 5 meses, fui convidada para algumas festas de sua família: dois estiques17 e uma cerimônia de falecimento18. Um dos estiques foi realizado na casa de Adelaide. Naquele dia, cheguei bem cedo e ajudei no preparo dos alimentos junto com as filhas mais velhas da família; as crianças, por sua vez, não trabalharam esse dia– estavam apenas brincando. Quando a mãe dava a festa, quem cozinhava eram sempre as filhas mais velhas, recebendo, em alguns momentos apenas, ajuda das crianças. Durante a festa, as crianças ficaram em um espaço reservado para elas, sem estarem na mesa principal. Para que elas possam se sentar, é colocada uma esteira no chão, onde as crianças deverão sentar-se e onde realizarão as refeições. A relação entre as crianças e os adultos era de cuidado e, ao mesmo tempo, de obediência dos mais novos com os mais velhos, ilustrado, por exemplo, pela hora da comida: em nenhum momento as crianças se servem; são servidas por algum adulto. A mesma cena se repetiu na cerimônia de falecimento, que foi realizada na casa de vó Isabela 19 (localizada em outro bairro). Do mesmo modo se dava a relação de Adelaide com seu bairro: ela andava com bastantes propriedades, sabia o caminho e as alternativas que podíamos pegar para onde quer que fôssemos. Até mesmo para ir ao mercado Santos tinham diversos caminhos – e, cada dia, fazíamos um, a depender de condições adversas, como, por exemplo, a chuva, que poderia ter tornado algum dos caminhos mais dificultoso. Certa vez, quando estávamos voltando do Santos, Adelaide decidiu que queria me mostrar um novo caminho e entrou em uma rua estreita; a rua, cheia de lixo, tinha um cheiro ruim. Adelaide disse que não gostava daquele caminho, mas havia desejado me mostrar. “Eu não gosto desse caminho, cheira mal”. Questionada sobre o motivo de tê-lo escolhido, disse: “mas mãe Margarida gosta muito! E eu

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Estique é uma prática social comum em Moçambique e baseia-se numa forma de organização em que as pessoas envolvidas comprometem-se com a arrecadação mensal de determinado valor em dinheiro estipulado previamente e, a cada mês, realizam um encontro comemorativo e o montante de dinheiro arrecadado é entregue para a pessoa daquele mês (que é estipulado anteriormente; a cada mês, uma pessoa é quem recebe a arrecadação). A pessoa que receberá o dinheiro do estique é também quem organiza a festa e as comidas que serão servidas, sempre discutido em reunião anterior. É uma prática com função econômica e social. 18 Cerimônia de falecimento é uma homenagem feita ao espírito da pessoa que morreu. É realizada 40 dias após sua morte, em um intuito de celebrar a vida e a morte, para que a pessoa tenha uma vida pós-morte digna. 19 Era a irmã mais velha de mãe Margarida. Era chamada de vó por ter um neto na mesma idade de Adelaide.

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queria te mostrar” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014). Mostrar os caminhos era um modo de ampliar meu pertencencimento e tecer cumplicidade. Conforme os dias foram passando e os sons foram se tornando mais familiares (bem como o português moçambicano e algumas palavras em changana), pude perceber melhor o que acontecia ao redor. Dentre os fatos, um deles chamou minha atenção: na casa, as crianças não eram chamadas pelos nomes conhecidos por mim, mas, sim, por outros nomes. Adelaide, por exemplo, era chamada por Kanguela. Ao questionar o porquê, mãe Margarida me explicou que os nomes com os quais as crianças foram registradas são usados em momentos considerados mais formais, como, por exemplo, na escola que adota os nomes que constam nos bilhetes de identidade (BI). Em casa, ambiente mais familiar, as crianças são chamadas pelos “nomes de casa”, como no caso de Kanguela. Cada um tem seu nome “da escola” e o nome “de casa”, que também podia ser um nome que se relacionava com algum grau de parentesco de algum antepassado. Por exemplo Ferisberto, que era chamado de “avô”, por ter recebido o nome do pai de Jaime (o pai de Jaime também se chamava Ferisberto). Até eu recebi um nome de casa com o passar dos dias vividos – era chamada de Marlen. Lá em Gaza lá, quando foram nascidos nossos avós, pais, tinham aqueles nomes tradicionais, da região ou da família que nasceram, que eram daqueles que morreram há muito tempo; tinha nome antigo. Ai quando nasce a criança, põe o nome antigo. Mas ai quando nasce a criança, você tem que pôr o nome bonito pra estar no documento - Kanguela não serve; Adelaide é bonito, pode pôr no documento. Kanguela é o nome da tia do papai Jaime. Ela era Kanguela, era de Gaza. Mas não tinha o nome bonito, só o antigo: Kanguela. No BI era Kanguela, mas nós, para civilizar (risos), não fizemos igual nossos pais, e damos o nome bonito para civilizar, como estamos na cidade. Aqui em Moçambique é muito comum, ter dois nomes. Fazemos aqui para civilizar, e isso tá a crescer em todo país. Eu nasci meu filho. Dei o nome do meu pai. Mas não chamo do nome do meu pai, se meu pai é vivo. Eu não posso. Eu chamo “pai, pai”, e a criança há de crescer, quando chega nessa zona, a criança chama pelo nome de “pai”. Eu dei o nome do meu pai. É uma questão de respeito, ele é meu pai. Estás a ver aquela minha filha que não veio no sábado? O nome dela é Julia, mas aqui na zona nasceu a crescer como “Vovotinha”. Porque é o nome da minha avó. Você pode se perder e perguntar “quero chegar em uma casa. A casa, a filha que está é Vovotinha”. Ah, vão saber onde é. Pode estar lá no mercado Santos, vão saber, e vão te trazer aqui. Mesma coisa com Kanguela. Adelaide ninguém conhece, você pode perguntar e ah, vai andar, andar, mas Kanguela hão de te trazer aqui (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

Os nomes relacionados aos familiares e parentes inscrevem-se em sua dinâmica e valores culturais: diz respeito ao lugar, província e grupo étnico de seus antepassados. A 75

clivagem entre campo e cidade também aparece. Um exemplo é a firmação de que “não fizemos igual nossos pais, e damos o nome bonito para civilizar, como estamos na cidade”. O conceito de civilização, surgido como parte da agressão colonial e ressonou nos valores posteriores à independência, notadamente por meio da política da FRELIMO de modernização do país. Um dos resquícios foi a questão do nome que deve constar no bilhete de identidade (BI)20. É o que Paulo Freire traz na discussão sobre o termo “invasão cultural”: a cultura que vem de fora, do outro, como sendo superior a cultura local, tradicional, e os hábitos tendo que se moldar a tal cultura externa para ser validada dentro do país. As crianças vivem em mundos plurais, às vezes com poucas conexões socialmente partilhadas: a experiência da escola - com seus valores culturais específicos - foi raramente vivida pelos pais e avós. Esses transmitem valores ancestrais por meio de uma socialização cotidiana - seja no processo de atribuir nome, pela religiosidade, pelos cultos aos ancestrais, seja pela busca de um terapeuta changana. Há desafios novos na relação com um universo externo que do colonizador impôs, mas não desapareceu no contexto do Estado-nação. Nos relatos, a pulsação do sentido exige soluções criativas.

2.1.2 Tarefas e responsabilidades (atividades cotidianas?)

No primeiro dia em sua casa, 10 de março de 2014, pedi para ajudar Adelaide no que fosse fazer e, então, realizei as tarefas com ela. Adelaide separava a louça que sobrou do jantar da noite anterior para lavar, enquanto Fatiminha varria dentro e fora da casa (inicialmente com uma vassoura, e depois com um esfregão úmido). Depois que as tarefas iniciais foram finalizadas naquela manhã, as meninas revezaram-se em outras duas: atender quem chegasse para comprar algum produto na barraca da Mãe Margarida e preparar o matabicho. A preparação do matabicho foi feita por Adelaide: ela esquentava a água no fogão improvisado com carvão e lenha, pois o gás havia acabado, e fritava as batatas. Enquanto esquentava o óleo, parecia receosa, e então comentou “tenho medo de me queimar”, mas não por isso deixou de fritá-las. Ao mesmo tempo, permanecia atenta ao movimento da barraca e, caso Fatiminha se ausentasse, ela atendia quem chegasse. “Quando o matabicho ficou pronto, Adelaide ficou dentro da barraca, atendendo enquanto comia. As meninas eram chamadas 20

Documento de identidade de Moçambique, Contem as informações pessoais, o número de registro perante o Governo, a data de nascimento e o nome dos pais.

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sempre, mesmo que estivessem em outra atividade; os nomes dos meninos nem se ouvia” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014). Observei, posteriormente, que lavar a roupa era uma atividade não tão corriqueira, mas fazia parte do leque de tarefas que Adelaide realizava. Excetuando-se os meninos e o pai, cada uma era responsável por sua roupa. Mãe Margarida lavava a de Ferisberto e Gerson, por serem filhos biológicos dela e Celia lavava a dela e a de Chelsia. A roupa de pai Jaime era dividida entre as duas esposas, enquanto as meninas lavam suas próprias roupas. Adelaide comentou, ainda, que lavava as roupas desde pequena, mas quem começou foi Fatiminha. “Lavo minhas roupas há muito tempo! Desde que vim morar com papai Jaime eu que lavo as minhas. Adelaide quis aprender, agora lava também” (ANOTAÇÕES CADERNO CAMPO 1, 2014). Pude perceber, com o passar dos dias ali, que, quando eu chegava em sua casa, entre 7h30 e 8h da manhã, observava a mesma cena: as meninas, Adelaide e Fatiminha, eram as primeiras a acordar, e logo começavam as tarefas, sem que ninguém tivesse que mandar. Quando acabavam as atividades da casa, abriam a barraca e, caso alguém aparecesse procurando algum produto, vendia-os – ambas sabiam os preços de cada produto, e faziam a atividade com a destreza do hábito bem estabelecido. Outra atividade de responsabilidade das meninas era fazer compras no mercado Santos, um grande comércio do bairro. Adquiriam os produtos que estavam em falta na barraca da mãe Margarida. Essa atividade era realizada de 3 a 4 vezes na semana, sempre pela manhã. Antes de sair, Adelaide ou Fatiminha faziam a lista e revisavam com mãe Margarida, discutindo os preços pagos da última vez, depois, separavam o dinheiro em sacos plásticos, para facilitar o controle dos gastos com cada item. Geralmente iam juntas. Enquanto estive lá, sempre acompanhei as meninas nessa atividade. Ao chegar, encontrávamos muitas meninas conhecidas. Compreendi que elas iam, também, fazer compras para os responsáveis. Para economizar tempo, separavam-se de acordo com os produtos que preferiam comprar e depois, juntavam-se para comprar o que tivesse um peso maior, como o fardo da farinha, por exemplo. Elas escolhiam os produtos, faziam as contas em uma calculadora (geralmente a do aparelho celular), separavam o dinheiro e conferiam o troco e, reclamavam se algo estivesse errado. Alegravam-se quando percebiam que haviam economizado algum dinheiro. A compra de créditos para celular, também vendidos na barraca, era realizada pelas meninas. Geralmente era Adelaide a responsável por tal tarefa. Em uma dessas vezes, Adelaide fez o pedido e, ao conferir, percebeu que o vendedor, um adulto, deu uma 77

quantidade do produto menor do que ela havia pedido. Ela voltou à fila e reclamou com ele e esse, sem nem conferir ou refazer as contas, entregou-lhe os créditos que faltavam. As crianças pareciam ter grande respeito com os adultos e vice-versa. Quando estavam fora de suas casas, as relações de respeito eram as mesmas, e algumas relações com os adultos eram mais próximas, como a das meninas com um dos vendedores de uma loja de óleo, ou mais distantes, como no caso dos vendedores de arroz, em que iam uma vez ao mês, apenas. Mas a relação de confiança estava presente, fosse para comprar algo, fosse para conferir o troco. Havia credibilidade no que faziam e naquilo que diziam. Entre Adelaide e Fatiminha havia uma relação de igual para igual, sem que Fatiminha, por ser mais velha que Adelaide, tivesse maior autonomia ou responsabilidade. Já na relação com Gerson ou Chelsia, ambas possuíam autoridade sobre eles. Certa vez, Gerson entrou na casa chorando: haviam batido nele enquanto brincava na rua. Adelaide reuniu Fatiminha e Ferisberto, perguntaram a Gerson o que havia acontecido e quem havia lhe batido. Gerson contou que foi seu amigo, da mesma idade. Adelaide e Ferisberto foram atrás da criança, trouxeram-na para dentro do quintal da casa deles, bateram nele e fizeram com que pedisse desculpas a Gerson, depois os dois voltaram a brincar. Os irmãos mais velhos pareciam ser responsáveis pelos irmãos mais novos. Se algo acontecesse, eles tinham autorização para tratar do assunto. Do mesmo modo ocorria entre os adultos: os mais velhos eram ouvidos no caso de alguma discordância. Uma vez vó Isabela orientou mãe Laurinda sobre sua conduta com Fatiminha, dizia que era preciso permitir que terminasse de almoçar antes de chamá-la para alguma outra atividade. Como ressalta, Sarmento refere-se ao assunto como uma relação de autoridade entre pares. As meninas estavam constantemente se ocupando de algum bebê, e Chelsia era uma delas: faziam com que não chorasse, trocavam, cuidavam – e isso ocorria, igualmente, com as crianças mais novas, mesmo que os adultos estivessem por perto. As crianças mais velhas cuidam das mais novas e possuíam responsabilidades; as crianças mais novas deviam demonstrar respeito pelas mais velhas, principalmente na ausência de um adulto. Como forma de demonstrar esse respeito, era costume que os mais novos (fossem crianças ou adultos) chamassem os mais velhos por “mana” (se fosse do sexo feminino), ou “mano” (se fosse do sexo masculino)21. Gerson, por exemplo, deve chamar Adelaide de “mana” Adelaide, assim

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Este tratamento era usado desde que o o adulto em questão não tivesse idade para ser mãe, pai, avô ou avó de alguém; caso contrário, eram chamados de “mama”, “papa”, “vovó”, “vovô”. Eram os tratamentos de respeito com os mais velhos. No caso de “mana” ou “mano”, era o respeito entre as crianças, jovens e adultos jovens.

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como Adelaide chama suas irmãs de mana Rute, mana Celinha, mana Julia. O tratamento interpessoal é uma linguagem social extremamente cuidada na socialização infantil, ele revela elementos de identidade pessoal e grupal significativos que precisam ser preservados. Os meninos não realizavam as mesmas atividades que as meninas, nem assumiam em sua ausência as responsabilidades que cabem a elas. Enquanto as meninas lavavam ou varriam, iam ao mercado ou ajudavam na barraca, os meninos dedicavam-se a uma atividade muito apreciada: à dança - que é muito comum tanto entre as crianças quanto entre os adultos -, ou às brincadeiras na rua. Foram raras às vezes que os vi ajudarem na barraca, a não serem momentos em que as meninas encontravam-se ocupadas ou não estavam em casa. Adelaide assume importantes suas atribuições, como fica explícito no diálogo a seguir.

Adelaide matabicho dentro da barraca, pois estava responsável pelo atendimento e pelas vendas. Adelaide referiu sempre ajudar na barraca, também, tanto pelo dia quanto ao voltar da escola, embora o movimento maior seja aos finais de semana (enquanto estão na escola, são as mães que cuidam da barraca, principalmente mãe Margarida, que é a dona do comércio). Perguntei, então, dos irmãos: Marina: Seus irmãos não ajudam em casa? Adelaide: Nas coisas de casa? Não. Eles ajudavam quando meu pai estava bom, trabalhava. Marina: Ajudavam como? Adelaide: Indo lá, no trabalho com ele. Mas aqui não (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

Dialoguei com as mães sobre as tarefas das meninas. Mãe Margarida considerava que as crianças começassem tais tarefas desde muito cedo, ajudando a mãe a lavar, varrer, até alcançarem uma idade maior para realizar outras atividades de acordo com as capacidades. Sobre a distinção entre tarefas de meninas e meninos, afirmam elas que o menino só trabalhava quando não tivesse menina na casa, ele, então, poderia realizar todas as tarefas: lavar, varrer, cozinhar, entre outras.

Nós também fazíamos, disse mãe Laurinda. Mãe Margarida toma a palavra: era do mesmo jeito. Começa com 6 anos a ajudar em casa. Com 5/6 anos, começa a mandar a criança “pega esse prato ai, traz aqui. Lava lá lavar panela. Varre cá aqui dentro”. Pode nem ficar limpo, se ainda está a aprender. Depois você volta de novo para lavar. Ele sabendo que ah, quando eu fazer isso aqui, isso aqui é assim. Ele vai praticar com o passar do tempo. Aqui em Moçambique, meninos e meninas fazem o mesmo trabalho. Cozinhar, varrer, tudo. Só na casa quando não tem menina, os meninos fazem todo trabalho. Outras mães só têm rapazes, não tem menina. Esses meninos é que fazem trabalho de casa, varrem, cozinham, tudo; ou às vezes

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a mãe trabalha, o pai trabalha, ele que fica com o trabalho. Esse trabalho pra nós é normal. Porque nós também, as mães, quando éramos criança, tínhamos que trabalhar. Até antes mesmo, quando não tinha muitas casas, as crianças iam pra machamba. Nessa região mesmo, as casas eram afastadas, tinha muito mato, onde cultivava. Íamos à machamba com as nossas mães, cultivar, depois voltar. Agora já é muito longe as machambas, você vai de carro. Tem muitas casas agora. Nós, os adultos, também ajudam as crianças a fazer os trabalhos. Quando vão à escola ajudam a cozinhar, ou também podem não ir à escola, eles (adultos) ajudam. Aqui é assim mesmo (GRAVAÇÃO DE ÁUDIO, 2014).

No mesmo sentido, Adelaide e Fatiminha comentaram suas tarefas.

Marina: De todos os trabalhos que você faz em casa, qual você não gosta? Adelaide: Lavar a loiça. Marina: E qual mais gosta? Adelaide: Todos, menos lavar a loiça. Marina: Quais os trabalhos que você faz? Adelaide: Todos... Marina: Todos quais? Adelaide: Lavo, varro, lavo roupa, fico aqui (estávamos dentro da barraca). Todos! (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014). Marina: Com quantos anos você começou a trabalhar? - perguntei para Fatiminha. Fatiminha: Mas nós não trabalhamos! Fiquei sem entender. Sem precisar questionar, Fatiminha adiantou-se: não podemos trabalhar, somos crianças. Só com 18 podemos. Então reformulei a questão: com quantos anos você passou a ajudar em casa? Fatiminha: ah, desde cedo! Com 8. Cozinho desde os 10. Gosto de trabalhar (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

O termo trabalho não fazia sentido para elas; não fazia sentido ali. As atividades que as crianças realizavam não era como um trabalho, mas sim era visto como ajuda. Tal ajuda era comum entre as crianças e os mais velhos, e, segundo as crianças, era ajudando nessas tarefas que elas cuidavam de quem cuidou delas, como a mãe Margarida e a mãe Laurinda. As relações de cuidado entre as gerações voltava a se repetir em práticas assim. As meninas organizavam elas mesmas a execução das tarefas, revezando-se de acordo com o dia. Adelaide diz que começou a ajudar em casa a partir dos 7/8 anos, assim como Fatiminha. Para elas, era o habitual e esperado, pois “todos fazem”, diziam. A transmissão de valores e atitudes, concretizadas nas tarefas cotidianos era, portanto, construída de geração para geração segundo uma visão pautada pela divisão social do trabalho, que incluía o gênero. As meninas, ao realizarem as tarefas domésticas, visando o casamento e o cuidar do marido 80

posteriormente, aprendiam ainda a assumirem atividades econômicas e a moverem-se com autonomia e capacidade decisória; os meninos seriam cuidados pelas futuras esposas no que se referia ao trabalho no espaço doméstico. No meio de tais atividades as crianças brincavam, corriam uma atrás da outra, ou dançavam entre uma tarefa e outra. Algumas vezes, paravam e riam de algo que eu estava fazendo, mas sempre voltavam ao que deixaram em espera, sem que ninguém tivesse que pedir. A festa era um elemento presente e a dança uma expressão que eclodia a todo momento, fosse por iniciativa das meninas, meninos ou mesmo dos adultos. Nos finais de semana, intensifica-se. Adelaide e Fatiminha gostavam de assistir desenhos animados na televisão; comentaram que assistiam “bonecos” (forma a qual chamam os desenhos lá, não importa qual) sempre que podiam. Ainda passavam, segundo elas, em horário em que tinham tarefas a realizar. O mais apreciado por elas, era “pica-pau”, que passava no canal da TV Record em Moçambique. Em uma dessas vezes, enquanto os meninos assistiam bonecos, Fatiminha foi lavar roupa, e Adelaide foi preparar o matabicho, eu acompanhei a última. Enquanto Adelaide esquentava a água para o chá, arrumava os utensílios (xícara, colher, talheres). As mães, Celinha e os meninos esperavam do lado de fora, conversando. Depois de terminada a tarefa, Adelaide pegou uma cadeira para mim e sentou-se na rua. Ela quis cantar para mim as músicas das brincadeiras de roda. Começamos ali, uma conversa sobre as tarefas que realizava. Essas tarefas fazem parte de uma ética de cuidado em que crianças cuidam dos mais velhos como parte fundamental do processo de socialização. Um exemplo disso vem no diálogo abaixo. Marina: Melhor o quê? Adelaide: Trabalharmos! Marina: Por quê? Adelaide: Porque as mães não precisam fazer mais. Marina: E o que elas fazem ou tem que fazer? Adelaide: Vender na barraca. E tá bom (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

Quando assistiam à televisão, a programação variava entre desenhos, que eram os chamados bonecos: pica-pau, principalmente. Por vezes, assistiam novelas: “la patrona”, uma novela mexicana ou a brasileira “avenida Brasil”. Nos finais de semana, gostavam de assistir “a hora do Faro”, outro programa brasileiro. As mães e pai assistiam durante o almoço, o 81

telejornal moçambicano “balanço geral”, esse era, igualmente transmitido por canal brasileiro e inspirava-se em programa transmitido no Brasil. As crianças, por vezes, jogavam no computador ou no aparelho celular. O celular é usado também para a comunicação entre eles – comigo mesma isso acontecia: as crianças me ligavam para conversar, para cumprimentar e para se certificar de quando iria à escola, assistir suas aulas. Os aparelhos, as propagandas, as novelas, as roupas que as crianças usam possuem desenhos de personagens norte-americanos, algumas vezes, os mesmos dos desenhos, como do rato mickey ou de alguma princesa. Paulo Freire discutiu intensamente a noção de “invasão cultural” (2001, p. 284) que parece reveladora de conteúdos nem sempre conscientes de símbolos e mercadorias que são consumidos e que geram necessidades novas. A televisão não mostra seu universo cultural, seus símbolos, trazem sempre algo distante e que só se alcança pela imaginação. Alguns símbolos são agressivos e desqualificadores de seu mundo e de suas identidades, a cor da pele dos bonecos dos desenhos, seus cabelos remetem ao branco na pele e aos cabelos lisos. O mesmo ocorre com as novelas, mulheres brancas eram ricas e poderosas e tinham trabalhadoras domésticas negras. A linguagem (e seus símbolos) levada aos moçambicanos daquele bairro interferia não apenas na sua cotidianidade, mas se propunham como referências, como de padrões estéticos e de beleza. A desqualificação da cultura moçambicana acabava por aparecer nos desenhos e nos programas de televisão brasileiros ou mexicanos. Não pude, entretanto, aprofundar essa dimensão na vida das crianças. Em um dos finais de semana de março, cheguei por volta das 10 horas. Adelaide já havia saído para ir ao mercado Santos; Fatiminha e Ferisberto não estavam. Ela havia ido à escola para um treino de futebol, e ele também fora ao mercado Santos a fim de levar o computador para consertar. As crianças permaneceram em suas tarefas domésticas até por volta das 16 horas. As meninas preparam e serviram o almoço Adelaide fez o arroz, e Fatiminha, o frango (desde matar, depenar até cozinhar). Inicialmente foi estranho para mim, ver criança matar frango. Porém, ali elas, a partir de determinada idade, aprendem essa tarefa. Adelaide, porém, disse ter medo da galinha e deixava para a irmã. Depois do almoço, o movimento na rua estava menor; mas elas ajudavam na barraca. Na vizinhança outros acontecimentos atraíram nossa atenção.

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Por volta das 22 horas, mãe Laurinda chegou com o carvão que foi pegar para vender, e as crianças foram chamadas para ajudar – o carvão era tirado do caminhão por dois homens, e as crianças, em pares, levavam os sacos de 50 quilos para dentro da casa; terminado os sacos, foi a vez de levar as lenhas e, depois, limpar a sujeira feita pelo pó do carvão. Terminadas as tarefas, as crianças voltaram a brincar, e pararam lá pelas 23 horas. Elas retornaram para suas casas, e Adelaide, Fatiminha, Ferisberto e eu fomos dormir (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

Nos domingos, Adelaide acordava um pouco mais tarde, mas não passava das 8h30, e logo começava suas tarefas: lavava a louça ou varria a casa, dependia do que havia realizado no dia anterior; preparava o matabicho e, quando tinha tempo, ia para a Igreja. Como em outros dias, ajudava na barraca e ia comprar cerveja e refrescos se fosse preciso. Por volta das 13 horas, conseguia brincar com suas amigas na rua. Embora Adelaide tivesse muitas tarefas e responsabilidades, a brincadeira estava bastante presente no seu dia-a-dia. Fatiminha que dizia não gostar de brincar com as meninas, mas se animava se fosse para jogar bola com os meninos. Ferisberto, também jogava bola e gostava muito de dançar. Gerson, por sua vez, e por ser o menor, com 7 anos, era o que mais brincava, a qualquer momento. Existiam as tarefas, mas existia o espaço do brincar, ou o espaço que permitia o lúdico. Adelaide tinha suas atividades, como forma de responsabilidades que ela deveria ter e que faziam parte de uma formação, conforme fui entendendo ao estar ali e durante as conversas que tivemos, mas não deixava de dedicar um tempo para a brincadeira.

2.1.3 Culturas do brincar e do cultivo do riso Como foi possível notar, a brincadeira aparecia de uma maneira “tímida” nos espaços domésticos, sempre intercaladas com a realização de alguma tarefa. Mas, nos finais de semana, principalmente no espaço da rua, a diversão das brincadeiras tomava forma e intensificavam-se. No fim de semana que passei na casa de Adelaide, pude perceber que, após as 16 horas, as crianças juntavam-se na rua e brincavam juntas. Adelaide brincava com Nilza, Aida, Jessifa, mana Avó, Olímpio, Gerson e mais algumas crianças de sua rua em brincadeiras de roda. Sentadas em seu quintal, as crianças cantavam e brincavam. As brincadeiras eram, em sua maioria, em roda e de bater as mãos; entre elas: “a família maluca”, na qual a criança que recebesse o tapa na mão no momento do “ca” saia da roda; “adomina”, na qual se usava o 83

corpo todo, começando com as mãos na cabeça e descendo pelos ombros, cintura e pernas, de acordo com cada sílaba cantada “a-do-mi-na”, seguido de palmas e uma canção que diz: “Imagina que eu vi o passar do tribunal, no biquíni do juiz, embrulhado no papel. Essa rua cheira mal, essa rua cheira sangue. A-do-mi-na. Alguém se matou? Quem matou foi tu”, e então as crianças apontam alguém – aquela que tiver mais dedos apontados para si, sai da brincadeira (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

Outra brincadeira, também de palmas e roda, era com a canção da mesa: “em cima duma mesa, havia uma carta, escrita do seu noivo, ou sua noiva. Como se chama? Alguma vez já lhe viste? Alguma vez já lhe beijaste? Alguma vez já lhe abraçaste? Isso é sinal que gosta de ti” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014). As respostas variavam de acordo com o que a criança quisesse responder, com o nome que escolhessem, e quem levasse a última palmada na mão, ao terminar a música, saia da brincadeira. A última brincadeira de roda que presenciei naquele dia foi a do “beija quem quiser”: “em cima duma mesa. Ia, ia, ôa. Beija quem quiser. Ia, ia, ôa”, e quem levasse a última palmada na mão escolhi uma das crianças para enviar um beijo, deixando assim a roda. As letras chamaram-me atenção: há beijos e abraços, mas há sangue e morte. Pensei sobre o conteúdo das músicas: estariam ligadas à memória da guerra civil, em que as crianças e mulheres sofriam violações, e que muitos foram mortos em suas próprias casas e ruas? A violência trazida nas músicas era, muitas vezes, traduzida nas brincadeiras de luta ou nas tentativas de beijos e abraços forçados entre as crianças; refaziam-se para serem retrabalhados todos os dias pela linguagem infantil. A cena se repetia em outros espaços. Na escola, por exemplo, as brincadeiras apareciam, principalmente, nos momentos de aula vaga, quando algum professor faltava. Assim como no dia-a-dia, em meio às tarefas, o brincar surgia em alguma oportunidade, como um momento de eclosão espontânea entre uma atividade e outra. Os meninos acabavam por brincar de luta ou alguma brincadeira que envolvesse algum tipo de briga, machucando-se em diversas vezes (as crianças mais novas chegam a chorar), enquanto as meninas traziam as brincadeiras de roda e as mesmas músicas cantadas nas brincadeiras nas ruas.

Nas brincadeiras de roda, brincavam mais as meninas que os meninos. Esses, enquanto elas brincavam desse modo, jogavam bola na rua. Fatiminha, por sua vez, não gostava de brincar desse tipo de brincadeira, preferindo jogar bola com os meninos. “Não gosto de brincar. Tem músicas que insultam, se

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batem. Peço para parar e me insultam. Ah, não brinco. Prefiro assim” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

No final do dia, quanto mais tarde ficava, mais se via crianças se juntarem para brincar. Na rua em frente à casa de Adelaide brincavam de correr e pegar (zotho), escondeesconde (tcho-tcho-tcho), muitas brincadeiras de roda e de canto/dança como referido anteriormente. O futebol se jogava com uma bola feita de saco e fita – chamam-na de “chingufu”. Gerson gostava de brincar de luta com seus amigos, ou de fazer carrinhos de barro. Enquanto as crianças brincavam, os pais ficavam dentro da casa, conversando e dançando. No diálogo com as mães, entendi que não havia problema em brincar na rua, já que todos se conheciam; as crianças estavam acostumadas a estarem ali, bem como as pessoas que moram lá conhecem as crianças.

Aqui também tem essas coisas de violência, mas nós estamos acostumados, porque até nós quando éramos criança brincávamos assim mesmo, na rua, a passear, na casa das amigas. Estamos acostumados. Até ficam muito tempo, 22 horas dormem. Como no sábado/ domingo não há escola, eles brincam até 21, 22 horas. Estava cheio de criança sábado, cheio de criança dessa zona. Estava cheia a rua. Porque eles não vão longe, moram aqui perto. Eles estavam a brincar aqui mesmo, nessa rua. Não passam pra lá, na outra rua, porque é perigoso. Não passam, podem apanhar criminosos. Mas aqui na nossa zona não tem problema (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

As crianças habitavam a rua como um espaço para as brincadeiras e para o próprio brincar – espaço esse permeado, também, pelo ir e vir e pela possibilidade de habitar o bairro de diversas formas, de acordo com as tarefas que realizavam e que transitavam pelas suas ruas. Observa-se, então, que a rua é um espaço de significação e experimentação da criança, na qual ela se faz presente. Do mesmo modo os espaços dos quintais das casas também eram ocupados nos momentos das brincadeiras. Era comum, principalmente durante os dias da semana, Adelaide ir até a casa de suas amigas e brincarem por lá, ou essas, após o horário das aulas, brincarem em seu quintal. Não havia preocupação dos adultos com o uso do espaço de casa para tal ação, assim como era com a rua. Era permitido as crianças estarem nos espaços externos da casa, mas nunca nos espaços de dentro: as crianças brincavam no quintal ou na varanda, mas não tinham autorização para entrar na casa. Nem mesmo os adultos, que permaneciam conversando sempre fora. O espaço do dentro era privado; o fora, mesmo que sendo o quintal ou varanda, 85

era pertencente aquele local da comunidade – era comum as crianças brincarem nos quintais uma das outras, tal como a rua: era um espaço partilhado entre elas. Por mais que as crianças tivessem que cumprir suas obrigações e realizar as tarefas pré-estabelecidas, as crianças encontravam um modo de intercalar a brincadeira com o que fosse que estivessem fazendo: em meio a lavar os pratos, ao estudar, ao ir até o mercado. A dança entrava em um meio parecido: de repente, estava-se dançando, com ou sem música, e deixando o corpo vivenciar tal experiência e momento. Os espaços e o brincar eram misturados com as tarefas e responsabilidade das crianças, sem que atrapalhassem ou parassem o que estavam fazendo ou deveriam finalizar. O brincar tinha seu espaço reservado, mas tinha também os entre espaços. Durante esses dias de observação que passei com Adelaide, pude perceber a dinâmica que se tinha ali na casa e no bairro. As crianças tinham conhecimento das ruas e dos locais onde estavam acostumadas a irem, como o mercado Santos, por exemplo, e sabiam as “leis” de negociação existentes – como o vendedor de créditos ter acreditado na palavra de Adelaide sem ao menos conferir o produto. Em sua casa, Adelaide usava os espaços que eram permitidos, e usava a rua de uma maneira significativa: era onde brincava com as amigas, onde conversava com os vizinhos, onde se fazia presente ali no bairro. As pessoas vizinhas a conheciam e vice-versa, e chamada sempre de Kanguela, tinha uma rede de suporte constituída e firmada ali, fosse pela família ou pelos vizinhos. Quando questionada sobre o bairro, Adelaide me afirmou “eu gosto daqui. Das pessoas, da minha casa. Não quero sair. Gosto daqui”.

2.2. Januar

Em um dos dias em que estava na escola, um grupo de meninos se aproximou e perguntou se eu lembrava deles, dizendo “estudávamos lá na escolinha, estás a lembrar? Você nos fez desenhar, compraste uma bola”. Foi uma oportunidade para conversarmos e para explicar minha presença e, também, de falar da pesquisa. No entanto, os mesmos meninos dirigiram-se “mana Marina, estamos a pedir para ires embora. Vais pra casa, estamos a pedir”. Sem entender, fui sendo guiada por um deles até a sala do diretor. Januar ficou comigo e explicou “estão a querer te roubar, mana Marina! Não quero que nada de mal aconteça a ti. Vais de carona com professor. E não traga computador ou coisa assim na escola. Estou a pedir!”. Mais tarde entendi o que houve ali: um grupo de garotos estava rondando a escola. 86

Por não ter muros, fica mais fácil para pessoas que não são de lá entrarem. Por eu ser de fora, e tirar fotos com as crianças, fiquei visada. Mas nada aconteceu, pois fui protegida. Naquele dia, ao chegar em casa, recebi um telefonema: “chegaste bem? Não ia aguentar se algo acontecesse a ti, mana Marina. Tenhas cuidado, estou a pedir”. Era Januar. No dia seguinte, Januar não saiu do meu lado e pediu para visitar sua casa. Sua mãe contou que ele estava preocupado e que gostava muito de mim. Conversamos sobre minha pesquisa e nosso trabalho realizou-se entre 28/03/2014 e 15/04/2014. Ele se mostrou muito cuidadoso comigo, fosse na escola, fosse no caminho para sua casa ou qualquer outro lugar. Quando chovia, me dava a mão para descer os caminhos de pneus que guiavam até sua casa; quando estávamos na escola, estendia a capulana para que eu sentasse. Ao mesmo tempo, demonstrava incomodo quando outras crianças queriam estar ao meu lado. “Marina está aqui por minha causa!”, dizia ele. O contato foi sempre próximo e Januar não deixava nada passar: contava casos, histórias da família, participava da brincadeira com os demais.

2.2.1. Composição familiar e relações

Januar nasceu no dia 27 de julho de 2002 (tinha 11 anos no momento deste estudo). Ele é filho de Dinha, 29 anos, e de Ismael, seu ex-marido de quem se separou antes de Januar nascer. Há cerca de 6 anos, Dinha passou a viver com Florêncio, também com 29 anos de idade, padrasto de Januar. Eles tiveram uma filha, Yumina, que nasceu no decorrer da pesquisa – estava com 3 meses quando o campo foi finalizado. Januar demonstrava grande afeto e proximidade com Florêncio, o qual chamava de “papa”, mas não com seu pai biológico. Por parte de pai, Januar tinha 3 irmãos: Ercília, de 11 anos, e Rosa, de 8 anos, e Junior, de 4 anos. Seu pai mora em um bairro próximo de Matola A. Logo após a separação de Dinha, passou a viver com uma outra mulher, a quem Januar tem por madrasta.

Mama separou do meu pai quando nasci. Antes até. Ai mudou pro Congolote. Fui morar com mamã, meu avô, tio, tia, outro tio, mais dois filhos do meu tio, mais uma menina chamada Amélia. É filha do meu tio, irmão da minha mãe, mas não esses que morei, outros tios. Morei pouco com meu pai, falo com ele às vezes. Sabes, mama gostava muito de comer ovo, sempre gostou, e ai meu papa, que é como chamo meu pai Florêncio, vendia ovo perto da casa dela. Todo dia ela ganhava um ovo dele, e ai começaram a namorar. Não casaram ainda, não sei quando vai ser. Papa gosta muito de mim, e eu gosto muito dele! (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014).

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O nome de Januar, que era diminutivo de Januário (seu nome de registro), foi dado por um amigo de seu pai. “Foi meu xará22”, disse Januar, “quem me deu esse nome. É amigo do meu pai. Mora na casa dele no T323”. Em casa, era comum o chamarem de “pai”. Dinha contou que era chamado de pai porque ficou o primeiro ano de vida sem ter um nome. Ao questionar se esse era seu nome de casa, constatei “pai” era a forma pela qual Januar era chamado por pessoas mais próximas e pelos familiares por parte de mãe. Seu nome de casa 24 era, Marcelo, que foi dado por outro tio de Januar, por parte de mãe, mas raramente o chamavam assim. Januar tinha e era reconhecido 3 diferentes nomes. Dinha uniu-se a Ismael quando tinha 18 anos, foi viver em sua casa no T3. Antes do nascimento de Januar, contudo, decidiu voltar para casa de seu pai, no Congolote. Embora separados, Januar visitava o pai, mesmo sendo poucas vezes, e cabia a ele escolher se ia ou não. Dinha contou-me que faz parte da tradição de sua família voltar à casa do pai quando separa “o marido tem que devolver a água25 para a família de onde tirou, então fui morar com meu pai de volta”. Sua família é matswa (pertencente ao grande grupo dos tsonga), a qual há grande importância e culto aos antepassados, levados em consideração até os dias atuais, vieram de Inhambane, província localizada no sul do país. Lá, Dinha viveu com sua família até os anos 2000, mudando-se para o Congolote após a grande cheia 26que invadiu todo o país. Conheceu Florêncio há cerca de 6 anos e, depois, decidiram morar juntos. Mudaram-se para Matola faz quase 2 anos. Inicialmente, moravam de aluguel em uma casa de caniço, passando a habitar a atual casa há cerca de um ano . Antes mesmo de ter Januar, voltei pra casa do meu pai. Não dava certo com o pai dele. Tinha 18 anos, assim. Aqui no sul, quando você separa, volta a morar com o pai, é da nossa tradição. Quando conheci Florência, Januar já era mais grande assim. Florêncio morava na casa do irmão em Congolote, e então cansou, e decidiu que iria vir pra cá. Falou com outro irmão e alugamos a casa de caniço no quintal 22

Xará refere-se à pessoa que leva o mesmo da outra. Por exemplo, Januar, que leva o mesmo nome de seu tio, passa a chamá-lo de xará, e não por tio 23 Dizem que este bairro chama-se T3 por conta de uma bebida típica moçambicana, chamada “tontonton”, muita consumida naquele local. O nome T3 faz alusão à bebida 24 Nome diferente do registrado no bilhete de identidade e que se refere a nomes de familiares/parentes e de lugares (conforme explicado na narrativa de Adelaide, na página x). 25 Termo referente à filha daquela família. Água é utilizado, geralmente, quando refere-se aos ritos anteriores ao casamento, como a apresentação (que é a permissão para casar) e pedido do lóbulo (casamento tradicional moçambicano). 26 As cheias de 2000 ocorreram entre os meses de fevereiro e março, ocasionadas por chuvas torrenciais e ciclones, atingindo principalmente as 5 províncias mais ao Sul do país (Maputo, Inhambane, Sofala, Gaza e Manica). A consequência foram 500.000 pessoas deslocadas, danos em infraestrutura, econômicos, e sociais (USAID, 2002).

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dele mesmo, enquanto ia construindo essa, e aí estamos aqui. Era perigoso, não gostava. As pessoas entravam e roubavam tudo! Não podia deixar nada lá dentro e ficar mais de duas horas fora. No calor era bom morar, no frio não (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014).

Florêncio veio da província de Quelimane, localizada ao norte do país. Mudou-se para Matola em 2011, juntamente com Januar e Dinha. Dois irmãos seus já moravam no bairro há algum tempo, com suas respectivas famílias. Passaram a viver em um espaço do quintal cedido por um de seus irmãos, onde construíram uma casa de caniço, pois tinham o intuito de mudarem para sua casa própria ficar pronta. Essa foi construída no mesmo bairro, em um local chamado “bairro novo” chamado como “Novo Quelimane” por ter muitas famílias oriundas dessa província. É um lugar muito úmido, o que faz com que, em épocas de chuva, alague e forme matopes27; as casas precisam ser revestidas para que a umidade externa não entre. A casa deles possui dois cômodos, o quarto do casal e a sala, que serve, também, como quarto de Januar (estendem uma esteira e colocam um colchão à noite). Os móveis e eletrodomésticos são poucos: possuem uma televisão e um aparelho de DVD, apenas. O banheiro e a cozinha estão em área externa da casa. Florêncio e Dinha explicaram. Florêncio: Antes de aparelhos eletrônicos, mobília, preciso terminar de construir. Aí sim vou pensar em televisor, não sei mais o quê. Dinha: aqui molha essa casa, nem adianta agora. Tem que terminar de revestir antes. Florêncio: De oferta não se vive. A oferta não faz a vida. Tenho que por energia aqui, para não depender dos outros. – Neste momento, acaba a luz – estás a ver? Pega lá uma vela (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014).

Florêncio trabalha como mecânico em uma oficina de carros de irmão, localizada no próprio bairro. Trabalha todos os dias da semana, incluindo os finais de semana, no horário das 7h30 até às 18h30, mas quando “chega serviço e ai ficamos até mais tarde. Sempre faço hora extra, e ai tiro uns 300, 400 meticais a mais”. A renda mensal varia entre 5000-5500 meticais. No momento da pesquisa, era o único que trabalhava. Dinha já havia trabalho como empregada doméstica em uma residência, mas parou há algum tempo. Planejava abrir um comércio próprio e vender créditos para celular. No mesmo bairro, moram ainda dois irmãos de Florêncio, ambos mais velhos. Zitha, irmã de Florêncio, é quem está mais próxima à sua casa. Ela vive com seus 4 filhos: Ilda, de 27

Termo utilizado para se referir as poças de água. Matope é uma palavra em changana.

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16 anos, Luizinho, 15 anos, Lívio com 11 anos e Mãe, com 7 anos (nome ao qual sua filha mais nova era chamada), e estava grávida do 5º filho. Trabalha junto de Florêncio na oficina do irmão, realizando faxina e auxiliando na recepção. Sua casa acaba sendo uma referência para Januar: é lá que ele fica quando os pais estão fora, e é com Lívio que ele geralmente brinca. Mãe, Ilda e Luizinho sempre estão aos arredores da casa de Januar, e fazem as refeições junto com ele e Dinha, como matabicho ou almoço, por exemplo. Duas vizinhas, Vitorina e Gina, partilham muitos momentos com a família de Januar, sendo que o marido de Vitorina foi padrinho de Florêncio no momento da apresentação28. Vitorina tem 20 anos e dois filhos, Constâncio, de 2 anos, e Sônia, de 1 ano, além de um sobrinho que também mora em sua casa, Emílio, de 9 anos, e moram em uma casa que ainda está em construção, de reboque; Gina é irmã mais velha de Vitorina, porém diz não saber sua idade. Também tem dois filhos, Cremildo, 4 anos, e Gina, de 7 meses, e mora em uma casa de caniço. Vieram também de Quelimane, e, segundo Vitorina “não ia aguentar trabalhar nas machambas. Ai viemos pra cidade”. Vitorina tem uma barraca em frente de sua casa, na qual vende produtos alimentícios, bebidas e produtos de higiene. Gina tem uma barraca e vende pães. Os maridos de ambas trabalham fazendo biscatos, sendo a renda familiar de acordo com o que conseguem vender e com os trabalhos que são contratados. Durante o período da pesquisa, Dinha, Vitorina e Gina passavam, quase o dia todo esperando que viesse algum comprador para atender na barraca. As crianças menores, como Constâncio, Sônia e Samira ficavam nas proximidades, e as outras brincavam espalhadas, geralmente atrás da casa de Dinha (sobretudo em dias de muito calor). Quando chovia, ficavam dentro das casas, sendo que, muitas vezes, Vitorina e Gina vinham para dentro da casa de Dinha e permaneciam lá, conversando. “A vida naquele bairro é mais tranquila”, pensei diversas vezes, ao mesmo tempo em que era mais difícil, por ser mais afastado das outras casas e do centro do bairro, dificultando a circulação e a chegada de pessoas e mercadorias. O dia-a-dia e a vida das pessoas eram partilhados entre os moradores da comunidade. Em um dos dias, quando já não estava mais acompanhando Januar, uma das meninas que visitei a casa me perguntou se eu ia visitar Januar e que sua mãe estava doente. Perguntei se ela o conhecia, e ela disse que não, mas que ouviu a tia contar para a mãe, e que a doença era

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Refere-se a uma festa em que o noivo é apresentado a família da noiva com o intuito de ser aceito e fazer com que as famílias se conheçam. É uma cerimônia que antecipa o casamento. Nas religiões cristãs, é o equivalente ao noivado.

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de pressão. Fomos até a casa de Januar, e Dinha estava descansando, pois estava com pressão alta e precisava repousar. Algumas vizinhas foram a sua casa, e, durante o caminho, outras me perguntaram se ia visitá-la, pois não estava bem e, quando saia, me perguntavam como ela estava; outras vezes, apareciam em sua casa para conversar sobre algo que aconteceu na semana ou algum problema que precisavam partilhar. Um exemplo foi quando uma das vizinhas foi na casa de Dinha contar sobre sua preocupação com a filha, que estava com um namorado e que ela não achava que era uma pessoa ideal para ela, pois tinha medo de que a menina engravidasse. Outras duas vizinhas entraram na conversa e a discussão sobre as medidas a serem tomadas eram partilhadas entre as quatro. Por ser um espaço localizado na parte mais periférica do bairro da Matola A, Januar acabava por caminhar bastante ao redor de sua casa e redondezas. A começar com a ida e vinda da escola, na qual percorria um caminho extenso tanto para ir quando para voltar. Esse caminho era feito com algumas crianças e, conforme a escola se aproximasse, mais crianças se juntavam para fazê-lo (e a volta da escola também ocorria assim, ficando com um menor número de crianças conforme iam se afastando da escola e se aproximando da casa de Januar). Além do caminho casa-escola, escola-casa, Januar saia bastante para ir ao mercado Santos comprar algo para sua mãe, como peixe, por exemplo. Aos sábados, ia para a catequese, passando na casa de seus colegas e chamando-os para irem juntos (Livinho e mãe eram dois deles). Durante o caminho, era comum Januar e quem estivesse junto irem brincando, ou de correr ou de pegar algo de um deles e começar a jogar, como um caderno. Paravam ao se aproximar da Igreja. Ao saírem, logo retornavam para casa. Januar gostava bastante de ir ao Congolote, na casa da avó, e brincar com os primos que moravam naquele bairro. Mantinha uma relação próxima com a família de sua mãe. Sempre que tinha dinheiro para apanhar chapa, pedia para a mãe e, se essa autorizasse, ele ia. Na cerimônia de apresentação, em que eu estava presente, acabamos por ir ao Congolote. Para irmos, foi preciso apanhar chapa em um ponto do mercado Santos. Januar avistou o chapa que vinha e sabia a paragem que deveríamos descer, sendo questionado até por Florêncio de qual ponto era melhor. O mesmo ocorreu na volta, em que Januar foi quem negociou com o motorista onde eu pararia (ia para a cidade, então deveria parar em um ponto antes da Matola). Na apresentação, Januar não teve um lugar na mesa da família – as crianças não se sentam à mesa, e, mais uma vez, ocupavam a esteira estendida no chão. 91

A relação de Januar com seu bairro era de grande desenvoltura: sabia os caminhos, os locais que podia ir e os que não eram permitidos para ele, como o bar próximo a sua casa. Em um dos dias que quis me mostrar os seus lugares preferidos do bairro, junto com Félix, foram decidindo os caminhos a serem tomados, entre ruas e mais ruas semelhantes, ao menos para mim. Em determinado ponto, ficamos em um lugar mais alto, sendo possível ver o tamanho do bairro e suas casas, muitas em construção. “Marina veio para cá e não sabia o tamanho daqui. Viste como é grande? Dá para se perder”, disse-me Januar, no qual Félix reforçou “não a gente, mas você sozinha há de se perder. Conhecemos aqui!” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014). As relações não eram apenas com as pessoas, mas com os espaços que compunham a comunidade.

2.2.2. Tarefas e responsabilidades

Januar disse que, por acordar muito cedo para ir à escola, acabava realizando suas tarefas domésticas apenas quando chegava em casa, após as aulas: Como o horário de entrada é às 6h30min na escola, acordava por volta das 5h30min. Quando não estava escuro, ia até a casa de sua tia Zitha pegar água e encher os bidões29 para que pudessem utilizar, e depois tomava banho. Ia para a escola e retornava depois das 12 horas. Em meu primeiro dia com Januar, em 28 de março, fomos à escola e depois, ao terminar a aula, fomos para sua casa. Chovia muito e o caminho estava repleto de matope e lixo. Januar foi cuidadoso durante o trajeto todo. A questão do cuidado foi constante e durante todo o tempo. Muitas crianças, entre as mais velhas, manifestavam seu sentimento de responsabilidade por mim, como no caso de Januar. Ao chegarmos a sua casa, Januar começou a brincar com alguns carrinhos e bonecos que tinha em cima da estante, localizada na sala. Sua brincadeira foi interrompida quando sua mãe pediu que fosse comprar carvão para preparar matabicho. Januar foi, mas não permitiu que eu fosse junto, dizendo “está chovendo muito. Há de cair. Ficas, vais na próxima”. Ele voltou todo sujo, pois havia escorregado durante o percurso. Limpou-se e, então, arrumou o carvão e acendeu o fogo para esquentar a água para o chá. O assunto foi o fato de eu tomar chá sem açúcar (tema que voltou muitas vezes durante minha estadia lá). Terminado o chá, Dinha foi lavar louça, mas não aceitou minha ajuda. “Fica a brincar com teu amigo”, disse 29

Termo usado para se referir a galões que armazenam água, variando de 5 a 20 litros.

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ela. Passei a brincar com Januar e com seus carrinhos, até que Dinha entrou e pediu para Januar ir à barraca próxima comprar peixe para o almoço. Ele saiu, e algumas crianças vieram até sua casa para passarem algum tempo comigo, e assim ficamos conversando até Januar voltar. Uma dessas conversas chamou minha atenção: falaram sobre meu cabelo. Disseram que era cobiçado. Cobiçar foi o termo utilizado pelas meninas que lá estavam, com idades entre 6 e 10 anos. O cabelo liso, forma de desqualificação apreendida e introjetada desde a agressão colonial reiterado no presente pós-colonial, é considerado símbolo de beleza (a maioria das meninas e mulheres moçambicanas compram cabelo para trançar mechas). Essa dimensão permeia o imaginário já na infância. Januar retornou e pediu para tirar foto das amigas, contando que as meninas que lá se encontravam foram as suas primeiras amigas no bairro. Pouco tempo depois, elas retornaram para suas casas, pois tinham trabalhos a fazer, segundo elas. Dinha começou a preparar o almoço e Januar voltou a brincar com seus carrinhos e bonecos. Após a refeição, por volta das 15 horas, Januar me acompanhou até a escola e, de lá, retornei para a cidade. No segundo dia quando ia para a casa de Januar, encontramos Félix. Após conversarmos bastante, pois ele ainda não havia me visto na escola e então não sabia que eu havia voltado. Félix perguntou aonde eu iria, e eu o informei “vou na casa de Januar, ali no bairro novo”. Félix disse que não sabia onde era e se despediu. Quando estávamos próximos da casa de Januar, Félix passou correndo por nós, afirmando que havia nos encontrado e que passaria o dia com a gente. A partir de então, Félix, com permissão de Januar, nos acompanhou durante todo o período em que passei com ele. Com o passar dos dias ali, fui percebendo a mesma rotina perante as atividades domésticas de Januar: quando chegávamos em sua casa, geralmente sua mãe não estava, pois havia ido para o mercado comprar algo para preparar para almoço. Como não tinham geladeira, Dinha precisava comprar os alimentos quase diariamente. Às vezes ido ao hospital, já que estava no 9º mês de gestação e fazia acompanhamento do pré-natal e controle da sua pressão. Januar preparava o carvão, cortava lenha para aumentar o fogo e aquecia a água para tomarmos chá; saía para comprar pão na barraca de Gina e ovos na barraca de Vitorina. Em sua casa, fritava-os, com a ajuda de Félix (os dois revezavam a tarefa de fritar, sendo que Felix dava algumas dicas para Januar, como, por exemplo, bater mais o ovo antes de colocar na frigideira para que esse ficasse maior e pudesse ser dividido entre nós 3). Quando matabichávamos, era comum Constâncio, filho de Vitorina, aparecer na casa de Januar, fosse trazido por Vitorina, fosse vindo sozinho (ele andava de sua casa até a de 93

Januar com grande frequência). Sempre que aparecia, Januar preparava uma xícara com chá e um pedaço de pão com ovo para Constâncio. Depois de terminar de comer, Constâncio aproximava-se de Januar e queria brincar com ele. O cuidado de Constâncio era, muitas vezes, uma responsabilidade de Januar. Após a refeição, Januar recolhia a louça usada e separava para lavar. A louça do matabicho e do almoço era sua tarefa. Ele levava pratos e talheres para fora e lavava no espaço externo a casa, utilizando duas bacias: uma com água e sabão em pó, e outra só com água, para o enxague. Depois, ia brincar, e assim passava o dia: brincando com seus amigos Livinho, Emilio, Félix e alguns outros vizinhos. Por vezes, quando Dinha comprava peixe, cabia a Januar descamá-lo. Geralmente, descamava o peixe na parte externa de sua casa enquanto conversava com seus amigos. Certa vez, Dinha comprou uma galinha e pediu para Januar matá-la. Félix ajudou-o. Esse dia teve uma cena particular: Constâncio, antes de matarem a galinha, estava brincando com ela. No momento que Januar a pegou, ele pediu para que eu não deixasse Constâncio perceber o que iriam fazer, dizendo que “não deixe ele chegar perto. Ele não pode ver, há de chorar. É só uma criança”. Livinho me ajudou a segurar Constâncio, fazendo uma barreira com as pernas em frente a ele para que não conseguisse passar para aquele lado em que estavam Januar e Félix. Esse evento demonstrava, mais uma vez, o cuidado que Januar tinha com Constâncio. Observei, durante esses dias, que Januar realizava menos tarefas que Adelaide, por exemplo, e até mesmo que sua mãe, Dinha. Conversamos sobre seus trabalhos em casa: “o trabalho que faço é catar água, lavar loiça do matabicho, e, quando mamã não está, varro dentro. Depois brinco. Mas quando meu irmão ou minha irmãzinha nascer hei de ajudar mais” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014).

Marina: Januar, o que você acha desses trabalhos que você faz aqui, como preparar o carvão, ir apanhar coisas no mercado, catar água? Januar: Pra mim é bom! Marina: Por que é bom? Januar: Ajudar mamã! Hei de ajudar mais quando tiver um irmãozinho pequenino. Marina: Você quer um irmão? Januar: Muito! Marina: E como vai ajudar? Januar: Se eu voltar da escola, vou lavar aquilo ali, os pratos, varrer dentro, catar água, fazer matabicho. Basta de matabichar, hein de pegar água. Marina, o que você acha que a criança tem que fazer? Marina: Eu? Ah, não sei... O que você acha?

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Januar: Ah, tem que trabalhar, cozinhar, ajudar mamã no que tem fazer. Saber ler, se esforçar em estudar, brincar pouco e estudar muito. Só (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014).

Dinha afirmou que Januar não realizava muitas tarefas, apenas a ajudava em algumas coisas ao retornar da escola. E reforçou o fato de, por ser menino, não era preciso que aprendesse muitas tarefas.

Dinha: Januar aqui não faz muita coisa. Eu faço tudo, e quando ele volta da escola está tudo pronto. Só tem que matabichar, estudar, almoçar, lavar prato do almoço. Depois, se precisar, mando apanhar algo, ir no mercado... Marina: E o que você faz aqui Dinha? Dinha: Ah, eu lavo, varro, pego água quando Januar sai muito cedo, eu e o pai que pegamos, cozinho, faço tudo! Só quando não estou é Januar que tem que fazer. Marina: Na outra casa que eu estava, eram as meninas que faziam essa parte. Dinha: Sim, porque são meninas. As tarefas das meninas são diferentes, porque elas vão pro lar e precisam saber cozinhar, arrumar, varrer para cuidar do lar e casar (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014).

A divisão das tarefas segundo gênero é bastante presente. Em conversa com Florêncio, ele questionou sob o modo como as pessoas que vem de fora entendem as tarefas atribuídas às crianças. Disse ele que […] a criança é aquela que brinca, que deve se preocupar em brincar, em estudar e ajudar em poucas coisas em casa, como lavar a loiça, varrer dentro, mas trabalhos pesados já não é pra criança pequena. A partir de uns 13 anos já dá para ajudar/trabalhar melhor. Muitos que vem de fora encaram o trabalho como uma violência, mas não entendem que a criança tem que aprender a fazer pra quando ela for grande, ser uma pessoa que sabe o que fazer. Esses trabalhos ensinam que ela tem que fazer pra ela, porque ninguém vai fazer, e pra ela não se sentir uma pessoa a mais que as outras. Que não depende dos outros e que não vai ter alguém que faça. É pessoa como qualquer outra. Tem que formar caráter e ser humilde, saber pedir ajuda, e saber fazer sozinho (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014).

Certa vez, quando fui direto para a casa de Januar, procurei-o e não o encontrava. Vitorina, então, me disse que ele estava na parte dos fundos de sua casa. Quando o avistei, ele estava junto de Livinho e Emílio, os 3 com uma pá nas mãos, retirando areia de dentro da casa de Vitorina e jogando para fora. Ao questionar o que estavam fazendo, eles me afirmaram que estavam trabalhando, dizendo “estamos a trabalhar, para ter meticais. É um biscato, sabes? Assim vamos juntar para poder comprar pipoca na escola”. Os três ganhariam 18 meticais 95

pelo serviço, o que daria equivalente a 6 meticais cada (comprariam a pipoca que custava 5 meticais na escola). O biscato era uma prática comum ali, principalmente o realizado por crianças, como pude observar em outras situações. No fim de semana seguinte ocorreu a festa de apresentação de Florêncio e Dinha. Quando cheguei, Januar não estava. Passados 40 minutos desde minha chegada, Januar chegou, correndo, todo suado. Por ser mês de março, o sol estava muito forte. Januar diz, apontando para fora de sua casa, que “estava a carregar essas madeiras”. Eram 2 troncos de arvores, grandes e aparentemente muito pesados, mas Januar disse ter carregado sozinho desde o mercado Santos até sua casa, em uma caminhada de uns 40 minutos sob o sol. Os troncos serviriam de suporte para segurar a lona da festa. Qual seria a relação estabelecida entre trabalho leve e trabalho pesado? Quem poderia determinar tal medida? A questão do trabalho visto como parte da formação das crianças, do mesmo modo como é visto pelo padrasto de Januar, é uma partilhada em outros universos, como o da Igreja, por exemplo. Aos sábados, Januar ia à catequese em uma igreja católica. Uma vez fui com ele. A catequista dizia às crianças que elas deveriam agradecer a Deus pelas suas vidas. Ao ser questionada sobre como fazer isso, respondeu que deviam agradecer “lavando loiça, varrendo dentro, varrendo o quintal, ajudando em casa. Vocês têm que fazer suas tarefas sem despachar, porque Deus não gosta” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014). Novamente, as questões do trabalho e das tarefas aparecem como parte da formação na socialização realizada no contexto do dia-a-dia das crianças e está implicado numa cultura de ajuda e cuidado aos mais velhos, onde colaborar com tais tarefas era a representação da passagem de um mundo da criança pequena, aquela com menos de cinco anos e que ainda não podia ajudar, para as crianças que integravam um universo em que as tarefas cotidianas se faziam presente. Na escola Januar tinha dificuldades na leitura e, segundo seu professor e seus pais, ele não sabia ler. Conforme minhas idas à escola junto com ele foram sendo contínuas, percebi que a questão não era não saber ler, mas se revelava como dificuldade que o envergonhava. Combinamos que iríamos praticar leituras diárias, e assim fizemos. Conforme íamos dando continuidade, sua leitura foi fluindo mais. Certa vez, quando saíamos da escola, chovia muito. Durante o caminho para a casa de Januar, paramos em um lugar pros meninos se trocaram "melhor molhar a roupa que a pasta" foi o coro geral. Januar saiu correndo na frente e Félix ficou para ir comigo. Felix havia machucado a perna na semana anterior: um menino o 96

empurrou enquanto ele ia pra casa de Januar em um dia em que eu não fui. Ele caiu em cima de uma garrafa de vidro. Fomos andando mais devagar por conta de sua dificuldade. O caminho para casa de Januar, em dado momento, era uma descida, coberta por pneus e lixos e, quando chovia, por lama também, que tornava o caminho escorregadio. Nesse dia, em especial, por conta da chuva forte, havia correnteza ali. Felix, com sua perna machucada, andava na frente "Vem por aqui, Marina", e me dava a mão, ou me ajudava indicando onde eu deveria pisar. Em dado momento, ele disse "Sabe, eu não vou parar de andar. Mesmo que as pernas cansarem, vou usar as mãos para andar, mas não vou parar. Não tenho medo". Félix tinha uma visão muito positiva e forte da vida; demonstrava uma força e vontade que eram dele. Ao chegarmos, Januar disse “olha, nem molhei os cadernos!”, e tirou um dos livros para que pudéssemos ler. Após a leitura, disse-me “quando crescer vou ser professor. Vou ensinar bem. Meus alunos vão repetir mil vezes, mas vou ensinar. E não vou bater!". E então Januar me fez uma pergunta “mana Marina, você trabalha com direito das crianças, né?”. Ao responder que “sim”, Januar continuou a conversa “vou querer fazer isso quando crescer... Trabalhar com direito das crianças. Elas vão ter que ser amadas, ter uma família que a trate com respeito, com amor, não serem abandonadas no lixo nem nas ruas.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014). Quando finalizei o período de observação em sua casa, entreguei o álbum que fiz com as fotos escolhidas por Januar: a maioria era dele em algum momento de brincadeira, sozinho ou com seus amigos, havia uma com seus pais, e outras de meu lanche preferidos – que ele e Félix decidiram que era pão com ovo. Ao entregar o álbum finalizado, Januar me abraçou e chorou. E então me disse que ele, Felix, Livinho e Mãe já sabiam o que era ser criança e queriam me contar. O dia terminou em uma conversa sobre o que era esse ser criança e os direitos das crianças para eles e para mim.

Januar: Ser criança deve ter os pais, ter o pai e a mãe. Mãe: avós. Januar: deve ter uma família, não deve ser abandonada. Félix: deve ser tratada com amor, carinho, não sofrer. Januar: deve ir à escola, ajudar trabalhos de casa, ter respeito. Não lhes abandonarem na rua nem nas lixeiras. Há pessoas que fazem isso... Marina: No Brasil também tem... É muito triste... (Silêncio) Marina: e o que vocês acham que são os trabalhos que vocês têm que fazer?

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Januar, Mãe e Félix, juntos: tem que lavar os pratos, varrer dentro, limpar, varrer quintale, fazer matabicho pra mãe ou pra família, arrumar a cama. Deve estudar. Félix: brincar com os irmãos. Januar: não odiar pessoas. Não bater os irmãos mais novos. Mãe: e os mais velhos. Januar: amar com carinho os irmãos. Não fazer sofrer. As crianças devem trabalhar, mas isso não é violência doméstica. É um trabalho que querem ensinar a criança, pra quando crescer, saber fazer trabalho. Marina: E me diz uma coisa, o trabalho de vocês é trabalho igual ao de seus pais? Por exemplo, você acha que o trabalho que seu pai faz na oficina é o mesmo que você faz aqui em casa? Januar: Não. É diferente. Ele é mecânico, eu só ajudo a lavar pratos, varrer dentro, dobrar minha cama, catar água, às vezes cozinhar... Limpar... Mas não posso mentir, limpar eu não sei. Livinho: Essa aqui sabe cozinhar essa aqui – e aponta para Mãe. Januar: É educação trabalhar. Marina: E quando vocês terminarem a escola, vocês sabem a profissão que vão querer seguir? O pai do Januar é mecânico, eu sou terapeuta ocupacional. E vocês? Januar: eu quero trabalhar muito, muito, fazer minha carta de condução e comprar meu carro. Quero ser chapeiro. Quero ser eletricista, Ih, quero ser muitas coisas... Felix: quero ser piloto. Mas se não for piloto, vou ser chapeiro, ajudar as pessoas que tem doença... Quero ser cantore também... Januar: quero ser cantore também! Quando canto me chamam de romântico... Mãe: eu quero ser médica... Quero cuidar bebê... Livinho: quero trabalhar em um LG. Marina: O que é um LG? Livinho: É um caminhão que pega coisas para descarregar em outros paíeses. Sai daqui, vai pra África do Sul. Volta às 12... Depois vai de novo. Vou dirigir esse caminhão. Carregar coisas, grandes, gordo! Januar: E você, já acabou o direito da criança? Marina: Se eu já acabei os direitos da criança? Januar: Qual é o direito da criança que você acha? Marina: Hum... Ter uma família que a trate bem, tem que ter condições de ter uma vida boa, ser amada, poder estudar... Acho que são esses. Quais você acha, Felix? Félix: São esses que a gente já disse... Januar: Podemos ouvir agora? (GRAVAÇÃO DE ÁUDIO, DATA, 2014).

Januar não realizava muitas tarefas domésticas, porém, havia uma série de atividades sob sua responsabilidade, e, entre elas estava os estudos.

2.2.3. A cultura do brincar e o cultivo do riso

O brincar esteve muito presente no dia-a-dia de Januar. Não apenas nos ínterins das suas tarefas, mas como na maior parte dos seus dias: brincava com seus carrinhos e com 98

alguns bonecos. A brincadeira, começada por ele mesmo era rica em movimento imaginário, falas vindas desse seu mundo de relações.

Januar: Vruuuuuuuum! Vruuuuuum! Saia daí agora. Estou mandando. Mas aqui ninguém me manda. Eu que digo o que fazer. Seu bandido! Bandido nada! Vou te pegar... Tenta! Vruuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuum! Ah, mas quem pensa que és? Eu quem mando aqui! Vou te prender. Peguem ele! Marina: Posso brincar? Januar: Pega esse.Aaaaaaaaaaaaaaah, saia daqui. Sou mais forte! Marina: Eu que sou! Te pego! Januar: Ele está a fugir! Rápido, rápido! Januar abandona os carrinhos. Marina: Que foi? Brinquei errado? Januar: Nããããão! Tenho que meter lenha para preparar matabicho (MOÇA DE BIQUE, 3 de abril de 2014).

Quando Félix começou a partilhar aqueles momentos conosco, ele e Januar passaram a brincar de dar pinos30. A brincadeira consistia em pegar dois pneus, arrumá-los um em cima do outro, deitados, e então os meninos saíam correndo e faziam acrobacias e cambalhotas no ar. Essa brincadeira aconteceu por dias consecutivos. Algumas crianças juntavam-se para brincar, como Livinho, mas eram em momentos pontuais. Félix e Januar gostavam que fotografasse os saltos e pediam para colocar nas redes sociais “Marina, vais levar e colocar no Facebook, havemos de ficar famosos! E ricos! Vão nos conhecer no Brasile, né? Iiiiuuupi”, dizia Félix. Januar partilhava esta ideia, dizendo “Marina, no Brasile vão saber que você veio aqui e brincou conosco, né? Vais e mostra como brincamos aqui, vão ver como anima pino!” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014). Januar mencionou, certa vez, que aquelas meninas que conheci em sua casa foram as primeiras a brincar com ele no bairro. Respondendo a uma questão feita por mim, disse que, às vezes, Livinho ia e pedia os carrinhos emprestados, mas que não chegava a brincar com ele, e que, quando se mudou para aquela casa, havia se acostumado a brincar sozinho. “Aquelas meninas que você viu aquele dia lá, sabes? Brinco com todas elas. Mas elas não brincavam comigo antes... Mas não sei por quê. Ai eu brincava sempre sozinho. Um dia estava a fazer TPC, elas apareceram e começamos a brincar”, disse-me Januar. Perguntei se

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Pino é uma brincadeira realizada principalmente pelos meninos. Eles juntam alguns pneus, tomam distância, correm e então dão saltos e cambalhotas no ar, e a tentativa é de cair em pé no chão.

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ele gostava de brincar com as meninas ou se preferia brincar sozinho, e a resposta que obtive foi “gosto de brincar com pessoas” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014). As crianças brincavam entre elas em diversos momentos, e a distinção maior nas brincadeiras entre meninos e meninas, no caso do Januar, foi na brincadeira do pino, na qual as meninas não brincavam; mas, nas outras, costumavam brincar juntos. Durante as brincadeiras, era comum as crianças menores pedirem para participar, como Constâncio correr quando brincavam de zotho (pega-pega). Januar permitia que essa dinâmica ocorresse, porém ficava próximo de Constâncio, e, caso esse caísse, estava pronto para o socorrer e/ou leva-lo para a mãe. Outra brincadeira que as crianças praticavam era a pesca. Próximo a sua casa havia uma vala, na qual se encontrava água parada. Alguns peixes pequenos nadavam por ali, e era comum fabricarem uma lança de madeira e pescarem esses peixes. Em algumas outras ocasiões, as crianças até fritavam os peixes. Por conta da umidade e dos espaços com água próximo, era comum, também, elas construírem carrinhos e bonecos de barro. Florêncio tinha uma bicicleta, que usava para ir trabalhar. Quando a deixava em casa, Januar sempre brincava com ela. Luizinho, Livinho e Felix apareciam e acabavam brincando juntos. Faziam manobras, empinavam a bicicleta (inclinando-a para trás) e apostavam corrida, em um espaço demarcado. A bicicleta, conforme observei, era um meio de muitas crianças se juntarem e poderem brincar juntas. Observei isso em outras situações, como na escola ou quando Januar me acompanhava de bicicleta, juntavam outras crianças ao seu redor. Vi uma criança brincando com uma bicicleta e seus amigos esperando sua vez. Em um dos dias, enquanto Januar brincava com Livinho e Emílio no quintal de Vitorina, Felix ficou sentado em um dos pneus utilizados para dar pinos e construiu duas motos de barro. Uma das motos, com um boneco também de barro sentado em cima era minha: “essa é você na sua moto”, disse Felix. A outra era ele. As crianças construíam carrinhos, motos e bonecos, principalmente, e brincavam entre elas depois, imitando os sons dos veículos e o modo como corriam. O mundo dos adultos mostrava suas marcas sobre o universo infantil, sendo ressignificado em sua linguagem lúdica. Em uma tarde ensolarada, os meninos resolveram me levar até a praia, localizada perto da casa de Januar. Próximo a ela, encontramos dois meninos que brincavam em um barco parado. Januar e Félix entraram no barco e pediram por foto. Convidaram os meninos para irem conosco à praia, mas esses continuaram no barco. Passamos por uma espécie de lago, bem grande e próximo à praia também, no qual Januar disse que era sujo, mas que muitos 100

brincavam ali. Félix mesmo disse que “sempre que tá calor e posso, venho aqui brincar. Como anima!”. Ao chegarmos à praia, Januar contou que sempre ia lá com seu pai (padrasto), mas que esse passou a trabalhar muito e que agora só ia sozinho, quando estava calor. A praia, conhecida como “praia da Matola”, era um lugar frequentado por muitas crianças, não só as que moravam perto, como Anabela, uma das crianças da escola, que mora próximo ao mercado Santos, me contou. Havia muitos barcos estacionados na areia, pois serviam para pesca. Alguns grandes navios também estavam atracados por lá, por conta do carregamento dos produtos das fábricas existentes na região. O espaço da areia era praticamente inexistente, mas as crianças não se importavam com ela. “Gostamos do mar. Ih, de nadar, pescar”, disse-me Januar. “De brincar. Nesse calor, como anima! Tens que vir brincar conosco quando viermos”, convidou-me Félix (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014). Na escola era comum as crianças irem ao campo da escola para brincar quando os professores faltavam. Os meninos brincavam geralmente de futebol, com uma bola que algum deles trazia de casa e, caso não tivesse bola, faziam uma (chingufu). As meninas brincavam dos jogos em roda, como era com Adelaide. Juntavam-se quando jogavam queimada, não havendo distinção entre meninos e meninas. Por vezes, brincavam de luta, e outras brigavam mesmo, sendo os socos dados de uma maneira que parecia ser forte. Raramente outras crianças interferiam no sentido de separar os envolvidos, deixando a luta ocorrer, juntando-se ao redor e gritando por mais. Quando interferiam, defendendo alguém, principalmente se fosse uma briga entre menino e menina, acabavam por entrar na luta. Januar gostava de brincar com os meninos de sua turma, mas também com as meninas caso elas fossem jogar queimada. Judite, uma menina de sua sala, era quem ele considerava sua amiga mais próxima, e com ela conversava e brincava mais. Entre os meninos, tinha diversos amigos com quem brincava apenas na escola. Um deles, Lulu, morava próximo a sua casa, e faziam o caminho juntos, mas, no entanto, não costumavam brincar fora da escola. O espaço da rua era, igualmente, um lugar de brincadeiras, sendo habitado pelas crianças. O brincar acontecia ali, na dinâmica de um bairro afastado, cheio de matopes, e bastante espaço para a experiência e para o experimento. O espaço fora, não doméstico, formava um era muito importante para as crianças de experimentação e de criação de significados e de culturas partilhadas. Por ser um lugar que não há iluminação de rua, escurecia cedo (por volta das 18 horas, quando estava calor). As crianças brincavam na rua até esse horário, e depois permaneciam 101

dentro de suas casas. Livinho brincava com Januar até às 18h30, e depois ia para sua casa, retornando apenas no dia seguinte. Depois desse horário, Januar também não saia, e ficava assistindo televisão com a mãe. Geralmente assistiam o que passava, que era o jornal de Moçambique, seguido de novelas brasileiras, como “Guerra dos Sexos” e “Avenida Brasil”; desenhos não assistia, pois nem passava àquela hora. Em um dos últimos dias em sua casa, Januar quis me mostrar uma versão diferente do hino moçambicano. Junto com Mãe, Livinho e Félix, cantaram para mim “Moçambique nossa terra cheira ovo. Pedra a pedra me bateram na cabeça. Filho de branco não toma banho. Só lava os pés, cheira a xixi”, e então riram. A questão do preconceito racial, frequentemente associado à cor da pele aparecia com frequência, fosse durante as brincadeiras na escola, fosse no modo como se insultavam ou até mesmo no modo como me chamavam. Na modificação da letra do hino, faz-se uma alusão ao português e aos modos de vida que leva, ou a que levavam no período da colonização e da política dos assimilados, na qual foram poucos os moçambicanos que tiveram oportunidades de acesso aos serviços e instituições públicas, e que foram tratados com extrema violência, antes e depois da guerra de libertação. Natalia, uma amiga de Januar de 13 anos, disse que os brancos não eram bem vistos, pois acreditava-se que eles iam para explorar ou sequestrar as pessoas ali. Cantar algo que os diminuísse era um modo de mostrar que não seriam aceitas as provocações que foram no passado e que aconteciam em diferente escala nos dias atuais. As culturas infantis retratam em seus modos de interpretar e na brincadeira o que apreendem dos mundos adultos aos quais partilham. Após esses dias de observação e participação no dia-a-dia de Januar e sua família, pude conhecer as bases da rede de relações e suporte criadas entre sua família e os vizinhos, como Gina e Vitorina, além da relação familiar com a irmã de Florêncio. O modo como Januar ocupa os locais próximos de sua casa e como tece as relações na escola acaba por interferir e refletir-se nos modos como se relaciona com as outras crianças e com os adultos.

2.3. Gina

Em 2012, no dia em que me despedi das crianças, uma delas agarrou meu pescoço e então perguntou se eu queria casar. Respondi que sim, e ela disse “então prontos, és casada comigo. Agora vai ter que dormir na minha casa e não podes mais ir embora”. Ri da situação enquanto me deslumbrava com aquilo que ouvia. Esta criança era Gina, e tinha 5 anos de idade na época. 102

No ano de 2014, assim que me viu, Gina me abraçou as pernas e depois pulou no meu colo, dizendo que estava me esperando em sua casa. Um dia depois veio informar que seus pais me esperavam, sendo logo depois “intimada” a comparecer para uma visita. O diálogo com Gina fluía bem: falava sobre coisas da escola, sobre sua casa, sua mãe e seu pai, seus amigos, suas brincadeiras, medos e fantasias. A relação com sua família transcorreu de forma aberta e tranquila, ajudaram-me sempre no que foi preciso. Nossos dias e experiências de mais proximidade ocorreram entre 16 de abril e 16 de maio de 2014.

2.3.1.

Composição familiar e relações

Gina era a mais nova das crianças que acompanhei. Tinha 7 anos no momento da pesquisa, e completaria 8 anos no dia 08 de outubro de 2014. Era filha de Jalilo, 35 anos, com Aisha, mas morava com a madrasta, Maria, de 23 anos. Em sua casa moravam ainda sua tia Manzura, de 14 anos, e sua irmã Judi, de 6 meses. Seu tio-avô, a quem Jalilo chama de “pai”, morava em uma cidade próxima, e visita-os quase diariamente. A casa que moram pertence a esse tio. A estrutura da casa dividia-se em duas partes, sendo um quarto e uma cozinha externos, que é onde moravam Jalilo e a família – Gina divide o espaço da cozinha, adaptado e com uma cama de solteiro, com Manzura, enquanto Jalilo dormia no quarto com Maria e Judi. Na outra parte da casa, que é a parte central, moram dois irmãos, para quem a casa era alugada. Partilhavam o quintal e a casa de banho, que eram externos. Em sua casa havia uma televisão, um DVD e um congelador. Em um dos dias, comentou que as pessoas no Brasil não tinham o que comer, nem o que vestir, mas que tinham televisão, DVD, celular. Perguntei como sabia aquelas coisas, e ela disse: “vi na Tv. Vemos muito nas novelas”. Ao olhar ao redor, observei um quarto rodeado de aparelhos tecnológicos, mas não havia alimentos como referido por ela ao falar do Brasil. Amartia Sen (2013)31, em seu livro “Desenvolvimento como liberdade”, traz para a discussão do que colocamos como preferências e necessidades no mundo capitalista e de bens de consumo ao qual vivemos, em que possuir roupas de determinada marca ou eletrodomésticos de última geração sejam mais importantes que outras escolhas, como a priorização da alimentação.

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Economista indiano e ganhador do prêmio Nobel de economia. Foi idealizador do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

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Seu nome foi escolhido pelo pai, que era também o nome de sua avó paterna: Virgínia Jalilo Sares Pereira; Gina era o nome de casa. Jalilo veio da província de Quelimane para Maputo para estudar, mas teve que largar os estudos aos 18 anos, quando seus pais morreram. Jalilo assumiu a responsabilidade de cuidar dos irmãos, uma vez que era o mais velho, sendo que a irmã mais nova, Manzura, passou a morar com ele quando tinha 9 anos.

Fomos almoçar e Jalilo pediu cadeira. Como só tinha a que estava sentada, ofereci a ele. Jalilo: Não, pode ficar, era só pela companhia. Marina: Mas já terminei. Fico de pé. Jalilo: Estou acostumado. Fui soldado. Marina: Soldado? Faz tempo? Jalilo: Dos 28 aos 30. Marina: Quantos anos tem agora? Jalilo: 35 anos. E você, já se acostumou com as tradições daqui? Marina: Ah, estou acostumando. Mas acho que sim. Jalilo: Quando vim aqui pro sul, achei muito estranho. Sou de Quelimane. Marina: E com quantos anos você veio? Jalilo: Vim quando fiz 18 anos. Marina: E veio por qual motivo? Jalilo: Vim estudar. Já tinha família aqui, até aquele avô que você conheceu, que chamo de pai, ele é irmão do meu pai, que faleceu. Meu pai seguia a ele. Marina: E faz tempo? Jalilo: Foi em 2003, 2004. Não, foi em 98! Eu vim fazer a 8ª classe, fiz até a 10ª, aí fiquei sabendo o que aconteceu. Parei de estudar e começar a trabalhar para poder voltar e cuidar de todos. Marina: Estavam todos em Quelimane? Jalilo: Isso. Eles todos seguiam a mim, então eu tinha que cuidar. Mas quando cheguei lá vi que a situação era mais complicada. Voltei e comecei a trabalhar para trazer um por um para cá. Lá só ficou um agora. Marina: E quantos vocês são? Jalilo: Somos 8 (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 3, 2014).

No diálogo com Jalilo sobressaem várias dimensões das exigências e dificuldades de gerações de moçambicanos que como ele, passaram pelos anos duros de conflito e de migração. Os pais de Jalilo morreram em um acidente, e, por ser o mais velho (o que era seguido), tornou-se o responsável por cuidar de seus irmãos. Era comum o irmão mais velho tomar para si a responsabilidade quando algo acontecia, como foi com os pais de Jalilo. Essa relação estava presente em todas as relações familiares com que tive contato, e me parece ser algo de costume dali. Os mais velhos são responsáveis pelos mais novos, independente se o mais velho ainda for criança ou não. A renda da família é quase inexistente, segundo Maria: ela não trabalha, e ele agora fazia biscatos, e dependia de quando os tinha e quando o pagavam. A casa em que moram foi 104

construída pelo tio Pereira, que deixou que eles morassem naquela parte. O aluguel da outra parte é repassado para Pereira, que dá uma quantia para Jalilo poder fazer suas coisas, comprar comida em casa, principalmente. Pereira tem um histórico de guerras: batalhou por muitos anos na guerra civil moçambicana, e agora estava aposentado. A conversa é explicitada abaixo.

Jalilo: Essa casa aqui é do meu pai. Ele construiu e moro nessa parte, que ele deixou morarmos. Marina: E seu pai veio para cá para trabalhar, por conta da guerra ou um pouco dos dois? Porque eu conversei com o secretário do bairro e ele me falou que, inicialmente, as pessoas vieram para trabalhar e depois foram chegando e se refugiando da guerra. Jalilo: Foi isso mesmo. Ele saiu de Quelimane por causa da guerra e começou a trabalhar. Marina: E ele trabalhava onde? Jalilo: No serviço militar. Era do serviço obrigatório. Trabalhou pro exército muito tempo. Era da FRELIMO. Ele saiu de Quelimane pra Beira. Lá foi capturado e ficou no serviço. Depois foi enviado para outra província e ficou como instrutor. Marina: instrutor do exército? Jalilo: Isso mesmo. Aí foi pra Tanzânia e também foi instrutor. E então voltou. Aí cansou. Cansou de verdade: entregou a farda e foi para o ministério das relações Internas e o mandaram para a Guarda Nacional, então foi trabalhar como guarda de banco. E saiu uma lei que todos os guardas que trabalhavam no banco sabiam os segredos do banco, então só podiam trabalhar nos bancos. Marina: Ele trabalhou bastante já! Jalilo: Sim. Vai reformar em 3-2 anos. E construiu essa casa. Mas agora mora em uma casa grande na Matola Rio. Quando ele comprou lá, eu mesmo falei que não queria porque era mato. Mas agora, ah, como é acomodável! (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 3, 2014). Naquele momento se observava um movimento contrário ao do período de guerras: estava começando um processo de movimentação de alguns de seus moradores: muitos que eram da Matola

A compraram terrenos na Matola Rio. Os terrenos dessas casas são parcelados, com medidas, e não há uma casa junto a outra, diferente das casas ali da Matola A, como me disse Jalilo. Era um processo de mobilidade que tem ocorrido no bairro, movimentando muitas pessoas. Por ter que cuidar dos irmãos desde cedo, Jalilo deixou os estudos, após ter completado até a 10ª classe. “Eu queria ser doutor, sabe. Médico. Mas, às vezes, a vida acaba nos levando para outros caminhos e paramos de estudar” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014). Ele me mostrou os certificados e diplomas de serralheiro mecânico, que era sua profissão. Trabalhou algum tempo com isso, mas saiu das empresas por questões de violação de direitos trabalhistas e corrupção “as empresas não queriam seguir o que a lei 105

colocava. Fiquei doente, fui tirar meu dinheiro no INSS, onde estava? Não tinham depositado, e me descontaram dizendo que sim. Cansei e agora trabalho por conta. Mas quero voltar a estudar” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 3, 2014). Maria também deixou os estudos e, mesmo que quezesse voltar, não tria com quem deixar Judi, pois Manzura estudava à noite uam vez que as aulas ministradas aos mais velhos eram ofertadas apenas à noite. Mesmo assim, afirmaram que iriam tentar retomar os estudos. Maria em seus 23 anos não tinha outros filhos além de Judi. Havia começado um investimento por iniciativa própria, uma banca de frutas, mas antes do meu retorno ao Brasil desistiu do mesmo: certo dia houve uma confusão por conta de laranjas e, ao fim do dia, seu avô faleceu. Ela associou os dois eventos e acreditou que a morte estava ligada ao feitiço da vizinha, parando de atender na barraca. Estava com Jalilo há 10 meses, e não pretendia ter mais filhos: a principal questão era a econômica.

Sabes Marina, já não temos leite. Judi recusou esse meu, começou cedo a tomar o outro. Mas já não há dinheiro. Eu não trabalho, meu marido não trabalha. Fica difícil. E Jalilo quer outro ainda. Agora, só a Judi estava boa. Mas Jalilo quer mais, quer um menino. Vamos tentar. Mas vai ser só mais um e se for menina, ele vai ter que aceitar. Eu queria só ela. Para ter bebê é preciso ter três coisas: coragem, paciência – ah, essa aqui requer muita paciência, muito cuidado. Toda hora quer atenção, chora muito, não fica sozinha. Chora, tem que estar junto. E com a banca fica difícil, sabes? E tem que ter força, porque quando fica doente, ih, é difícil. Aqui tem muitas doencinhas, de bebê, que passa da mãe pro bebê. Tem que cuidar da mãe para não passar pro bebê, depois tratar o bebê... Aqui é difícil. E tem que ter condições. Falta dinheiro, leite, e tem muitos gastos com a escola, Seriam 4 aqui: Manzura, Gina, Jui e o novo bebê. Tudo se paga na escola: matricula, uniforme, lápis, folha disso, daquilo, provas... E fica mais caro quanto maior for a criança, folha de fichário. Muito gasto (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 3, 2014).

Ao conversarmos ainda sobre a gravidez e sobre tradição, Maria contou sobre sua história: deixaram Inhambane cedo, quando a mãe de Maria abandonou a ela e o pai. O pai veio para Maputo, ficando no bairro da Zona Verde, e casou-se novamente. Maria tem mais 9 irmãos, todos por parte de pai. Quem a criou foi sua avó paterna. Sua família ainda mora no referido bairro. A mãe de Gina morava no bairro, próximo a uma paragem de transporte conhecida por Bic (por haver uma fábrica da caneta ali), e era longe para Gina poder ir e vir da escola todos os dias. Gina morou com ela até os cinco anos; quando passou a frequentar a escola, mudouse para a casa do pai. Embora fosse longe, ela ia visitar sua mãe quando tinha vontade, mas 106

acompanhada de seu pai ou por Manzura, por ser um longo caminho. Dizia que não lhe agradava ir a casa da mãe pelas crianças que tinham lá: batiam muito, principalmente em seu irmão. O uso da a violência aparecia também na relação entre as crianças. Manzura tinha 14 anos e passou a morar com Jalilo quando tinha 9 anos. É a mais nova dos seus irmãos. Considera Maria como mãe, e é responsável por cuidar de Judi – chama-a até de “meu bebê” ou “minha filha” – e pela maioria das tarefas em sua casa. Estudava à noite, por ter repetido uma série. Outros irmãos de Jalilo moravam pelo bairro, e era comum encontra-los para uma visita. A madrinha de Jalilo também morava por lá, e era ela quem ajudava quando a comida era pouca. Certa vez, enquanto a madrinha chegou e trouxe com ela dois mamões, um cacho de banana, um saco de açúcar e um de farinha, além de um leite em pó para Judi. Maria disse que a madrinha sempre os “salvava”: “teve uma vez, enquanto estava de barriga, que não conseguia dormir de fome. Não tinha nada para comer. Deitei e a barriga doía. Pensei „não vou dormir com fome‟. Levantei e fui andando de madrugada até a casa da madrinha, lembras? Sabia que ela ia me dar o que comer. Voltei e consegui dormir” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014). A madrinha é a tia Adelina, irmã do pai de Jalilo. Ela mora próximo a casa deles e, sempre que era possível, levava algum tipo de alimento para eles. Os vizinhos que moravam na casa, no espaço alugado, não tinham muita participação na vida deles, apenas quando precisavam dividir a casa de banho ou de manhã, ao acordarem e se encontrarem no quintal. Ambos vizinhos trabalhavam fora, e só retornavam à noite. Com exceção de alguns dias que eu estava lá, que os vi com mais frequência, mas sem muita interação com Maria ou Jalilo, a não ser “bom dia”. Era raro ver pessoas na casa de Maria, a não ser seus irmãos e uma amiga deles, Tininha, que era da Igreja. Maria frequentava a Igreja Assembleia de Deus, e levava as meninas consigo. Manzura era muçulmana, porque sua família era de origem muçulmana, mas acabava participando da missa na igreja com Maria. Gina afirmava ir a outra igreja com sua mãe “vou na Universal. É dessa que gosto. Mas vou com mãe Maria também”. Outra pessoa que tinham contato grande era com Vó Lambo. Gina principalmente e particularmente gostava muito da idosa, a qual fazia companhia e pegava peras e abacates em sua casa. “Hoje não sonhei bem, sabes. Sonhei que ia na casa de Vovó Lambo e ela não me via. Ai apanhei dinheiro dela para comprar pipoca e levar na escola. Mas eu não faço isso. Não apanho dinheiro eu. Só pera e abacate. Como anima!”. A relação de Gina com vó Lambo 107

era próxima, e roubar, mesmo que em sonho, a deixava pensativa. Além disso, preocupava-se com Vó Lambo, e comentava que a visitava porque achava triste ela dormir sozinha. As referências de Jalilo e sua família eram voltadas principalmente aos familiares. Por terem irmãos morando no bairro, a rede familiar era mais próxima e parecia ser mais forte que as formas comunitárias mais ampliadas. Gina tinha propriedade para andar pelo bairro sozinha. Quando pequena, andava apenas com Jalilo, que a ensinou os caminhos e os atalhos. Em uma conversa com Inês, vizinha de Adelaide, foi trazida a questão sobre as crianças andarem pelas ruas desde cedo: “criança aqui basta ter um ano, começar a andar, prontos, já está a andar sozinha”. Isso fazia as crianças serem conhecidas e conhecerem o bairro e seus moradores. Com Gina não parecia ser diferente. Conhecer o bairro e os moradores, além de pertencimento, fazia com que Gina não tivesse medo do caminho, apesar de estar escuro e não conseguirmos ver muita coisa. Conhecer e descobrir os caminhos de seu bairro, desde cedo, é uma forma de ter segurança, manter relações e criar laços.

2.3.2.

Tarefas e responsabilidades

No caminho para sua casa, no primeiro dia, avistei Manzura logo ao dobrar a esquina. Eram 7 horas e ela estava arrumando as laranjas na banca em frente sua casa. Maria surpreendeu-se e disse “conseguiu chegar no horário combinado!”, e então acordaram Gina, que ainda estava dormindo. Ao acordar, pegou uma vassoura e me chamou “Bom dia! Anda cá. Anda varrer. É assim”, e me mostrou como varria. Gina disse que varrer era seu “primeiro trabalho depois de acordar”. Começou varrendo dentro da casa, na área do quintal, e depois passou o esfregão. Ia varrer na parte de fora da casa, mas passou a vassoura para mim “vai lá, quero ver você varrer”, e foi o que fiz. Gina queixou-se sobre a quantidade de terra que varria, dizendo “ah, me mandam varrer muito aqui. Não consigo tudo. Não quero saber, vou limpar até aqui. Essa já é outra casa, não vou varrer. Não quero saber”. Questionei o que mais ela tinha que fazer, e Gina disse que “muita coisa. Varrer aqui, aqui, depois ficar na banca. Ir pra escola, voltar. Fico na banca com mama, depois brinco. Às vezes lavo prato. Trabalho muito eu!” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014). Enquanto varríamos, Manzura arrumava as laranjas na banca. Quando terminamos de varrer, ocupamos o lugar de Manzura, que foi para dentro da casa limpar. Gina sabia os preços dos diferentes tipos e tamanhos de laranja, variados entre 2 e 20 meticais. Enquanto 108

ficávamos na banca, duas vizinhas se aproximaram para brincarem. Gina disse que deveria tomar conta, mas que podia brincar por perto. Pegou minha mão e, ao reparar o tamanho das minhas unhas, assustou-se “está grande! Pera ai”. Voltou com um cortador de unha de seu pai e cortou as minhas. “Melhor assim”, ela disse, e foi brincar com as meninas na rua mesmo. Em torno das 9 horas, entramos, pois o frio e a chuva eram grandes. Manzura estava com Judi no colo enquanto preparava o matabicho dela. Gina foi escolher a roupa que iria na escola. Suas roupas ficavam em uma bacia colocada em seu quarto, e era ela quem escolhia o que usaria. Embora usasse uniforme na escola, colocava uma blusa por baixo, porque achava que era melhor. Próximo das 10 horas, saímos para ir à escola, permanecendo lá até às 13h. Quando retornamos, Gina voltou a cuidar da banca, e fiquei com ela. Manzura ficou ao lado, e passamos a conversar, até que se retirou para preparar o jantar. Comentei que não sabia cozinhar, e Manzura, surpreendida, respondeu “mas tens que saber. Tens que aprender a cozinhar. É mulher, tens que saber” e entrou. Essa questão me fez pensar na divisão das tarefas com as crianças que pude observar. A menina tem essa preocupação com o ser mulher, que diz de ir para o lar, como Dinha, mãe de Januar, já contou. A divisão das tarefas é feita por gênero, e visando o ir para o lar, o papel da mulher como quem cuida da casa e do marido e, então, as tarefas separadas entre homens e mulheres, reforçadas pela fala de Manzura. No dia seguinte, retornei no mesmo horário combinado. As meninas encontravam-se dentro do quarto, e estavam cuidando de Judi. Manzura arrumava as roupas que foram lavadas no dia anterior, e Gina brincava com Judi em cima da cama. Enquanto Manzura dobrava as roupas, me entregou as provas que havia feito na escola, para que eu olhasse suas notas. Uma das questões chamou atenção: era de história, e perguntava sobre por que os brancos na época colonial tinham privilégios. A pergunta vinha exatamente com esse termo: brancos. A desqualificação que os moçambicanos passaram durante os anos de guerras aparece nos dias atuais. Parece-me que se referir aos portugueses com o termo branco (naturalizando a diferença) reenvia a dominação à questão racial, esvaziando o caráter político, ideológico e econômico da exploração colonial. Manzura então disse “vou ter que expulsar vocês. Preciso varrer o quarto”, e então Gina e eu saímos. Judi ficou sozinha na cama, e começou a chorar. Enquanto isso, Gina decidiu que queria montar a banca: pegou as tábuas de madeira, que servem de base para a banca, que vai por cima da base de ferro. Neusia, sua prima de quatro anos que passava um período de férias lá, também quis ajudar. Gina e ela resolveram pegar as tábuas de madeira, 109

mas logo Gina desistiu por conta do peso então me falou, em um tom quase de bronca, “Ajuda lá, Marina! Ela só tem 4 anos. Não consegue sozinha!”. Ajudei Neusia e então fomos para fora montar a barraca. Manzura arrumou as laranjas e pediu para Gina segurar Judi, mas logo Gina cansou e pediu para que eu a segurasse. Terminamos de montar a banca e ficamos lá fora, para caso algum cliente aparecesse. Judi ainda estava nos meus braços quando Gina disse “ah, tá a vazar esse ai. Anda cá, dá-me lá ela”. Foi até seu quarto, colocou Judi na cama e tirou a fralda. Olhou-me e disse “Ah, tá de coco. Vou trocar”. Quando Gina disse que iria trocar Judi, achei que ela iria chamar por Maria, mas não: foi até o quarto, pegou uma fralda de pano, limpou e trocou Judi, que chorava, e Gina tentava a acalmar, dizendo para ela “não chora. Calma, já estou acabando”. Manzura apareceu no quarto, pegou Judi e disse para Gina voltar a tomar conta da banca. O cuidar dos irmãos mais novos é algo que percebi ser corriqueiro no dia-a-dia das crianças ali, como sendo um cuidado e uma responsabilidade partilhada e, muitas vezes, mais das crianças que dos adultos. Maria acordou, foi até a banca e explicou os preços dos produtos para Gina: “a laranja tem de 5. As tangerinas têm essas de 2 e de 3. O cigarro está aqui e é 2 meticais e meio. A menta é 1 metical. Percebeu? Vou tomar banho”. Gina ficou responsável pela banca, e alternou a tomar conta da banca com o brincar com as meninas de sua rua, até o horário de ir para a escola. Em todos os dias que lá estive, e enquanto a banca existia, Gina era quem ficava responsável pelas vendas no período da manhã; no fim da tarde, voltava a cuidar da banca, recolhendo os produtos e guardando-os em sua casa. A banca funcionava até às 17 ou 18 horas, todos os dias. Gina tinha ainda outras tarefas domésticas que eram de sua responsabilidade. Uma delas era a limpeza da casa de banho. Na primeira vez que a mandaram limpá-la, enquanto estava lá, Gina fechou a cara e cruzou os braços “não gosto de limpar a casa de banho. Por que eu tenho que limpar? Gosto de fazer tudo, menos limpar a casa de banho. E só sou eu que limpo”, disse enquanto enchia o balde de água e pedia ajuda para carregá-lo até a casa de banho. Perguntei quais tarefas ela gostava de fazer, e Gina respondeu “gosto de todas. De lavar louça, varrer, varrer dentro, separar roupa, e até de cozinhar. Não gosto de lavar a casa de banho. Só” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 3, 2014). Conforme passaram os dias, percebi duas situações: Gina possuía tarefas pontuais e que iniciavam e terminavam naquele momento, a não ser tomar conta da banca; já a maioria das tarefas de maior duração e complexidade era realizada por Manzura: lavar a louça, limpar 110

a casa, lavar sua roupa, cuidar de Judi, cozinhar. A idade influenciava nos tipos de tarefas que as crianças realizavam. Certa vez, quando dois tios de Jalilo apareceram, chamaram pela Gina ao perceberem que havia louça para lavar: “Gina, tem que lavar isso aqui. Você quer ser boa mulher ou não? Então tens que lavar”. Ela pegou os pratos e foi levar. As tarefas das meninas correspondiam aos cuidados que deveriam ter com a casa quando se tornassem mulheres adultas. Quando tomava conta da banca, Gina sempre comentava sobre a vontade de comer o que tinha lá, afirmando que gostava de tudo. As frutas passaram a virar personagens de suas brincadeiras: a laranja era uma bola gigante, ou uma rainha; os clientes imaginários que iam comprar e ela negociava. Até que chegou uma mulher querendo comprar menta, e Gina negociou com ela. Falou o valor, fez as contas e eu a ajudei com o troco. Embora Gina soubesse contar, entender o valor do dinheiro ainda era difícil para ela. Todas as moedas valiam 1 (um), independentemente do valor que tinham. Permanecemos na banca até a hora de Gina ir para a escola. Retornamos da escola às 13 horas e almoçamos. Gina recolheu os restos da comida para brincar. Enquanto brincávamos, Maria gritou para Gina “não faz mais nada você, hãm?”. Gina largou a brincadeira e disse “vamos lá lavar louça”. A louça a ser levada virou outra brincadeira. Manzura irritou-se e começou a lavar no lugar de Gina. Acabado a louça, duas crianças apareceram em seu quintal: estavam esperando a explicação32. A explicação era dada duas vezes por semana, em um período de uma hora, geralmente das 16 às 17 horas. Cobravam 150 meticais por mês. Manzura era a responsável pela explicação das crianças. Chamou Gina para participar e estudar junto. Uma das crianças tinha 8 anos e a outra 12. Ambas estavam aprendendo a ler, e a aula era em torno de leitura e escrita, como um ditado. Em um dado momento, Gina me chamou de Marina, e Manzura a repreendeu, dizendo “É mana Marina, ouviste? Mana Marina. Se ouvir a chamar de Marina de novo vou te bater, percebeu? É mana!”. Questionei o motivo e Manzura explicou que era uma questão de relação entre mais novos e mais velhos.

[...] ela não tem a mesma idade que você. Tem que te chamar de Mana porque és mais velha. Tem o direito de te chamar assim. Mesmo você não se importando, tem que ser assim. Senão Judi vai acostumar e vai chamar de Gina, e tem que ser mana Gina, porque é mais velha”. Perguntei se era uma questão de respeito, e Manzura disse que sim. “Sim, é respeito. Você é mais 32

Explicação era o equivalente ás aulas de reforço, fora do horário de aula escolar, em que se revizava alguma disciplina. Tinha exercícios e a matéria era explicada novamente.

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velha. Tem que ser assim (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 3, 2014).

A relação entre as crianças mais novas com as mais velhas se dava desse jeito, mas não achava que chamar de “mana” ou “mano” era culturalmente colocado. São os símbolos culturais que passam a ficar legíveis com o estar submerso na cultura do outro, que passou a ser a minha também. Em uma das noites que lá dormi, Gina assistia desenho e eu estava com ela. Maria foi até o quarto e me perguntou se eu cozinhava, e eu afirmei que pouco. Então ela disse que aprendeu logo cedo, por sua mãe tê-la abandonado, e que iria ensinar Gina também, assim como fez com Manzura. “Minha mãe nos largou quando nasci. Foi essa minha avó que me criou. Você viu o que aconteceu com os pais do meu marido. Não sabemos o que pode acontecer. É por isso que ensinamos as coisas. Gina vai aprender a cozinhar já já também” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 3, 2014). Naquela noite, conversei com Jalilo sobre a infância.

Jalilo: A criança... Ié, criança pra mim é muita coisa, muito estimada que existe. Começando a gravidez até chegar ao ponto de ter uma idade... É uma coisa muito importante pra mim porque eu dedico-me muito a criança e gosto muito de criança. Principalmente quando tá nessa fase assim. Marina: Igual a Judi? Jalilo: Ié. Porque eu gosto de acompanhar a criança passo a passo, até o crescimento. Quando tá grande assim, igual a Gina, tá a rodar por ai. Mas não deixo de acompanhar. Nunca deixo, posso estar distante, mas eu me apercebo. O que me motiva muito na criança é aquelas metamorfoses que ela passa, desde pequeno até a fase adulta. Fui descobrir que a criança tem 3 fases: a primeira é a anal, a fase que a criança gosta muito de... Ah, caga muito. Faz muito coco! Desculpa... A criança caga muito, e há certo momento que chora, a chorar porque está a chatear e sente prazer a estar a chorar. A segunda é a bucal, pequena coisa que apanha vai pra boca. É uma fase que vai levar uma fase muito maior, principalmente agora, já tem os seus 6 meses. Judi está na fase bucal. Há de levar até mais ou menos até os seus 1 anos, no máximo, chegar até 1 ano. Depois de 1 ano pra lá já é a da curiosidade. É a última. É curioso. Tudo que encontra “pai, o que é isto aqui? Pai o que é aquilo ali?”, e tens que responder. Isso já é curiosidade, eu quero saber. Isso é uma fase que vai com ela até o crescimento dela (GRAVAÇÃO EM ÁUDIO, 23 DE ABRIL DE 2014).

Perguntei quando ele considerava que a criança deixava de ser criança, quando terminava a infância. Sua reflexão demonstra a complexidade da reflexão e da própria definição de infância que é relacional e singularizada.

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Marina: Quando vocês falam “ah, agora já não é mais criança, é adulto”? Quando deixa de ser criança? Jalilo: A criança deixa de ser criança quando já tem a capacidade de audir (ouvir). É perceber falar e é perceber e executar aquilo que papa diz. Porque tem aqueles que são tímidos, fala e ele percebe, mas por estar ai a brincar acaba esquecendo. A Gina tem dessas. Você fala com ela, como ela brinca muito, esquece aquilo que foi dito, tá nas brincadeiras. Quando é assim, ah, não precisa gritar com a criança, mas nós temos tido a maneira de assustar quando não está concentrado. Mas 100% não é assim. Nós te mandamos fazer aquilo, vai fazer agora. Mas ela não vai fazer agora, mas quando for fazer vai dar voltas. Vai ter dificuldades. Pega isso aqui, deixa isso ai, faz o seu serviço. Há de pegar, vai fazer com rapidez. Marina: A Manzura é criança ou não mais? Jalilo: Aquela? Aquela ali pra mim é criança. Porque ainda tem teimosia. Fala com ela, ela escuta, percebe, mas saindo daqui dá volta, vai pegar uma outra coisa, fazer. Esqueceu aquilo que foi dito. Quando última aquilo que foi dito a fazer, vem sentar; esqueceu aquilo que mandaram fazer. Aquela pra mim vai estar madura, bem crescida, quando começar a ver a diferença que existe entre a vida e as brincadeiras. Marina: Então não é tanto uma questão de idade? Jalilo: Aquilo depende da capacidade de cada criança. Porque há criança que são mais capazes, são muito rápidas de pensar. Que você manda uma coisa, faz. E vai te fazer do jeito q você nem podia imaginar q ele pudesse ser capaz de fazer aquela coisa. Existe. Isso depende de capacidade, da maneira, da percepção da pessoa. Mas pra essa criança que eu tenho aqui, ainda não tem essa capacidade. Precisam de ser educados. Por isso eu me dedico muito. Dias desses a Manzura veio ter comigo, que querias trabalhar. “Queres trabalhar? Você não está na altura de trabalhar”. “Mas por que, mano?”, veio falar Manzura. “Porque” eu disse, “porque aqui em casa tem dificuldades de ouvir, minutos depois diz que esqueceu. O serviço não quer isso. O serviço chega, o patronato diz faz isso, faz aquilo, em simultâneo, e você tem que ter a capacidade de fazer tudo aquilo, e se der, fazer mais, pra quando ele ver, encontrar fiz aquilo, fiz aquilo, está pronto, então podes sair e faz podes sair outra cosia. Se ele ver, tá tudo bem, ele merece. Que é quando o patrão passa a confiar em ti, tem atenção. Quando é criança não tem como (GRAVAÇÃO EM ÁUDIO, 23 DE ABRIL DE 2014).

Por fim, perguntei sobre o que considerava ser da responsabilidade de criança, dentre as tarefas que elas acabam por realizar.

Marina: E o que é da responsabilidade da criança? De todas as tarefas que ela faz, o que você que é só a criança que tem que fazer? Jalilo: Hum, tá bom... Uma criança, mais ou menos, o que deve fazer, principalmente pra nós cá, em Moçambique, a criança tem que fazer, em primeiro lugar, não tem que mandar fazer coisas pesadas, mas sim primeiro a mostrar que, as condições da vida que nós levamos não são aquelas adequadas. Então tenta ensinar o pouco, pouco que fazia enquanto pequena. Porque quando crescer, vai fazer quando não te viu fazer as cosias, é difícil. Quando a gente acorda de manhã, a lavar a louça assim, chama “Gina, vem lavar”, mais para quê? Poder ver como faz as coisas, para captar, ao andar do tempo vai saber que a loiça lava assim, passajas assim, passa a limpo e

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depois guarda. Mais ou menos assim. Coisas pesadas não pode. Enquanto eu estiver aqui, ou a mãe estiver aqui, ela sabe dizer que ela não pode fazer coisas pesadas, porque ela não tem capacidade... Senão vai carregar um peso que tem lá seus 20 quilos, aquilo cai, e cai em cima dela, vai dar uma lesão, entorno, luxação. Então, criança, na norma, não tem que fazer coisas pesada, tem que dar acompanhamento daquilo que os mais velhos fazem, pra ele tá a captar. Assim, a crescer ser capaz de meditar. Ela pode fazer com dificuldade, mas se encaixar com aquilo que já viu ali antes. É assim. Aqui em Moçambique é assim (GRAVAÇÃO EM ÁUDIO, 23 DE ABRIL DE 2014).

Terminamos a conversa quando Manzura chegava da escola. Maria deu-lhe uma bronca: Manzura enviou uma mensagem de texto no celular de Maria dizendo para voltar para a sala e que sairia em 15 minutos da aula para encontrá-la, mas já havia passado mais de uma hora. Manzura disse que mandou a mensagem errada, que era para uma amiga sua. Maria disse que já sabia que Manzura, se seguisse por esse caminho, ia logo engravidar. Manzura calou-se e foi arrumar suas coisas e preparar para jantar. A preocupação de Maria dizia do modo como ela tratava Manzura: como uma criança na qual ela se sentia mãe e responsável pelo seu cuidado. E foi o que Maria conversou mais tarde com Jalilo: que Manzura estava em uma idade em que as coisas começavam a aparecer e eles tinham que ter cuidado. No dia seguinte, Manzura levantou às 6 horas, e disse que dormiu demais. “Precisava acordar antes! Ih, já estou a ir pra casa, tem muita coisa a fazer. Tenho que começar a varrer já. Vocês podem ficar a dormir ainda”, e saiu para voltar a sua casa. Gina disse que Manzura trabalhava muito, e não brincava. Perguntei a ela o que ela achava desses trabalhos que ela fazia em casa, e ela perguntou se eu ia gravar. Falei que não estava com o gravador, mas que podia gravar no celular. “Então liga ai, vou falar e depois quero ouvir, tá bem?”, disse Gina.

Gina:bababaaaaa. Bababaaaaaa (estava cantando). Marina: O que você acha de todos os trabalhos que você faz em casa? Gina: Eu? Acordo, varrer... Lavo prato. Huum... Varro dentro, limpo dentro, e lavo casa de banho... Gosto de trabalhar! Marina: Você gosta? Gina: Gosto! Marina: Por que você gosta? Gina: Eu goooosto de trabalhar! Marina: O que você sente quando tá trabalhando? Gina: Eu? Marina: Hum. Gina: Às vezes fico sem vontade de trabalhar eu... Varrer... Marina: O que? Gina: Varrer ali no pátio eu...

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Marina: Hum. Gina: E varrer lá dentro, lavar os pratos... De tudo em casa! É bom! Marina: Você acha que é importante trabalhar? Gina: Hum. Marina: Por que é importante trabalhar? Gina: Eu gosto! Marina: Você gosta? Gina: Hum. Marina: Quem te ensinou a trabalhar? Gina: É minha mãe Marina: Sua mãe, mana Aisha? Gina: A daqui mesmo. Marina: Mana Maria? Gina: Sim... Marina: Ela falou que vai te ensinar a cozinhar Gina: Já sei cozinhar eu Marina: Ah, já sabe... Você sabe de brincadeira. Gina: Vou cozinhar eu. Marina: O que você vai cozinhar a primeira vez? Gina: Eu? Marina: Hum. Gina: A primeira? Marina: Hum. Gina: Lavar o arroz, por agua a ferver, por arroz, depois de... De... Depois de fazer ferver, cozer, aprovar, se ver que não cozeu, vou por água, deixar ferver. Ver que já cozeu vou despejar água de arroz, deixar abafar e, tira, depois lava cebola, corta, corta, pôr o óleo, depois quando ficar a queimar, mexer e, mexer de novo, depois, quando ficar bem aquela cebola, vou cortar tomate. Cortar, cortar, pôr na panela, deixar um pouco, depois cortar cebola, por, pode cortar carne, por, depois quando ferve por caldo, deixar mexido, ferver, depois quando deixar ferver, tirar e, servir... Prontos! Marina: Tá bom... Gina: Trabalho muito eu. Ai. Pronto, quero ouvir... (GRAVAÇÃO EM ÁUDIO, 24 DE ABRIL DE 2014)

Gina acabou por trazer questões ligadas ao seu envolvimento e socialização no mundo partilhado com os adultos. As tarefas e responsabilidades, os trabalhos, envolvem e permeiam o dia-a-dia das crianças, mexendo também com o imaginário. Por diversas vezes, durante as brincadeiras, Gina usava de algum de seus trabalhos para ilustrar uma situação, como por exemplo, quando brincava de vender sorvete enquanto tomava conta da banca e os preços eram os mesmos (essa cena será trazido no item abaixo), ou mesmo nessa conversa, em que Gina não só diz saber cozinhar como relata o modo de preparo do arroz. Durante o passar dos dias, as tarefas das meninas eram sempre as mesmas: lavar, varrer, cozinhar, cuidar de Judi, entre as outras já descritas. Em um dos dias em que Gina estava se arrumando para ir à escola, fiquei na banca com Manzura, que cuidava de Judi. Manzura perguntou se eu tinha filhos – aliás, era uma pergunta comum feita a mim, por 115

diversas crianças e pessoas distintas – e eu afirmei que não. Manzura disse que já era pra eu ter, pois não era mais criança. Perguntei, então, quem era criança, como relatado abaixo.

Manzura: Quem tem até os 18 anos. Marina: E só depois disso não é criança? Manzura: É. Ou quando faz 18 anos ou quando alcança o ciclo menstrual. Marina: Então só menina pode deixar de ser criança antes? Manzura: Acho que sim. Menino acho que não tem... Marina: Não, menino não tem. E com quantos anos a menina deixa então de ser criança? Manzura: Acho que com uns 14 anos. Menina cresce mais rápido que menino sempre. Logo deixa de ser criança. Marina: Por causa do ciclo? Manzura: também... Marina: e você, o que é? Manzura: Ah, sou criança. – e ri timidamente (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 3, 2014).

A questão da definição do ser criança - de suas atividades preferidas e sua visão sobre os deveres a elas atribuídas - aparecem em cada uma das três narrativas. Gina tinha 7 anos e já reconhecia suas tarefas e responsabilidades, diferenciava as suas e as de Manzura. Por ser a mais velha, era ela quem cuidava mais das coisas da casa, como cozinhar, e de cuidar de Judi. O que me chamou atenção, nesta narrativa, é que Jalilo e Maria consideravam que as crianças tinham que fazer as tarefas pelo modo de vida que levavam ali, sem ter condições adequadas, como disse Jalilo, ou por não saber o que podia acontecer e, de repente, ficar sozinha, como afirmou Maria. A educação das crianças vinha baseada na educação que os dois tiveram e nas ausências deixadas. Em sua semana de férias, Gina decidiu que queria descansar. Na vez em que dormi lá e era semana de férias, Gina estava assistindo bonecos, Tom & Jerry, e Manzura varria o quarto. Manzura dirigindo à irmã disse: “essa tarefa é sua, Gina”, que apenas respondeu “estou de férias, quero descansar. Vou ver bonecos, comer e dormir. E brincar. Tá bom assim”. Nesse mesmo dia, enquanto dormíamos (dividi cama com Gina), ela esqueceu de me acordar para fazer xixi, e fez na cama. Ao acordamos, Gina fez “ôou”, e disse que havia esquecido de acordar. Era frequente Gina fazer xixi na cama, mas havíamos combinado que ela me acordaria e eu iria com ela até o balde, que ficava dentro do quarto, fazer (a questão de Gina era que ela tinha preguiça de levantar para fazer xixi durante a noite); porém, esse dia, não deu certo. Gina virou e disse “esqueci, sou criança, ah, fazer o que. Fica a ver bonecos que hei de dormir mais um pouco”. 116

Quando isso acontecia, os adultos diziam que era por preguiça da criança levantar, ou por medo de fazer xixi fora de casa, como aconteceu com muitas crianças. Fazer xixi ao dormir era algo comum dentre as crianças que tive a oportunidade de conhecer e partilhar os momentos. Não consegui compreender nem aprofundar o porquê isso acontecia e com tanta frequência.

2.3.3. A cultura do brincar e o cultivo do riso

Talvez pela idade, ou por ser a mais nova das cinco crianças que acompanhei de perto, Gina era a que mais brincava. Não apenas em momentos isolados ou nos chamados tempos “livres”; Gina brincava enquanto fazia as tarefas, usando de sua imaginação e criatividade em tudo o que fazia. Quando lavava louça, por exemplo, ela juntava o resto da comida e parava para brincar de ser a dona de sua banca. Para isto, ela usava um carrinho de ferro que ficava na parte dos fundos de sua casa, sobre o qual depositava folhas de árvores: eram suas verduras e outras eram as folhas de chá. O resto das folhas representavam o arroz, o tomate, a farinha. Vendia tudo pelo preço mínimo de 5 meticais, chegando até 100 meticais. As notas também eram as folhas da árvore picadas. Quando, em sua brincadeira, estava sem troco, dizia que podia levar o que comprei, e que ela iria a minha casa mais tarde, levar o troco. “Não se preocupe. Hei de levar. Podes ir”, dizia Gina. Certa vez, quando cheguei em sua casa, Gina disse – me que ela iria varrer dentro da casa e a mim caberia o lado de fora. “Sabe varrer você?”, perguntou-me Gina. Respondi que sim, mas ela insistiu que eu não saberia, e foi me mostrar como fazer. Então pegou uma vassoura e me perguntou se eu sabia o que era aquilo. Respondi que sim, era uma vassoura, ao que ela disse “não!” (E riu). “É uma régua, e vou te dar chapada!”, e passa a correr atrás de mim. Ressalto aqui que, na escola, os professores usavam de régua para bater nos alunos quando entendiam que havia algum "mau" comportamento. Reagi, dizendo que iria então fazer um ataque de cócegas e ela começou a rir. Sua mãe gritou do quarto: “Gina, não faz mais nada você?”. Gina voltava-se novamente para a tarefa da louça, dizendo: “Marina, vamos lavar a loiça... Mas antes vamos fazer almoço... Esse é o seu”. Perguntei se era peixe e ela responde afirmativamente, dizendo que “Sim. E xima. Pode comer. Mas não é pra comer 117

de verdade! É só de brincadeira”. Dei risada e disse que sabia, e assim, enquanto lavávamos a louça, Gina ia separando os alimentos para podermos brincar na sua banca no quintal.

Gina: Aqui vai ser arroz de 150 meticais. E esse de 130 meticais. Mas temos que variar, pra comprarem mais... Marina: Tá bem... Gina: E você tem que comprar... Marina: E o dinheiro? Não tenho... Gina: Vou te apanhar folhas, pera lá! E lá vai Gina, sobe na árvore e arranca algumas folhas Gina: Pronto, são esses seus meticais. Sua mãe chama de novo " Gina, tem coisa para fazer!" Gina: Vamos lá, Marina. Marina: E a banca? Gina: Tá trancada, ninguém vai mexer. Tá no controle (PASTORE, MOÇA DE BIQUE, 24 de abril de 2014).

O lanche apareceu diversas vezes como questão. No dia em que dormi em sua casa, por exemplo, o avô Pereira estava lá. Com o carro do avô estacionado na parte de fora da casa, Gina disse para entrarmos, para podermos brincar. Havia três bichos de pelúcia, e Gina disse que eram todos irmãos. A brincadeira se desenrolou com os três entrando em um quintal e pegando abacates, peras, maças e goiabas, e recolhendo alguns meticais para comprar pipoca e levar de lanche para a escola. Perguntei para Gina porque levar de lanche para a escola, e ela respondeu que “é ruim não ter lanche, não anima, sabe?”. Ter o lanche, e poder dividir, era importante para Gina. Certa vez, ao saímos de sua casa, Gina me disse que havia ganhado dinheiro para comprar um lápis. Depoi decidiu que não o compraria, mas sim um lanche para o intervalo. “Me deram dinheiro do lápis hoje. Não vou comprar lápis, vou emprestar das minhas amigas. Esse dinheiro vou comprar lanche. Vamos lá naquela barraca a caminho da escola. Vamos!”. E assim fomos. Paramos na primeira barraca, na esquina de sua casa, e Gina perguntou o preço de um pacote de pipoca: 3 meticais. Pegou a pipoca e disse para irmos em uma outra barraca, pois queria comprar mais coisas. “Agora vamos nessa aqui comprar mais coisas. Quero 2 bolachas. Viu, compramos muita coisa! Hoje tenho lanche, hoje tenho lanche! E ainda vou comprar um doce na escola”. Fomos para escola, enquanto Gina pulava de satisfação por ter seu lanche. Ao chegarmos, Gina comprou uma bala e dividiu comigo. Gina mostrava-se hábil com o dinheiro: ela sabia o que comprar e calculava quanto gastaria em cada item para poder comprar tudo o que queria. Além dessa questão, o ter lanche era um ponto importante, pois na escola, no momento do intervalo, Gina sempre dividia seu 118

lanche. Caso não tivesse, outras crianças dividiam com ela. O dinheiro aparecia constantemente nas brincadeiras e era ressignificado no dia-a-dia. Observei um outro dia, enquanto tomava conta da banca e Neusia estava lá, Gina resolveu pegar as colheres medidoras do leite em pó de Judi e utilizá-las como forma para seus sorvetes. Gina: Hum, vamos fazer sorvete, vamos fazer sorvete! Temos sorvete, temos sorvete! E abraçava Neusia. As duas riam e se abraçavam. E pegava lama da matope com as colherinhas... Gina: Esse é pra você, Marina. Marina: Hum, é de chocolate? Gina: Não. Chocolate está a faltar faz tempo. É só sorvete mesmo. Marina: Tá bem então... - e aproximei a pazinha da boca. Gina: Não vais comer isso ai! É de brincadeira, Marina! - gritou Gina... Eu ri... E então disse "não vou comer, querida. Ia comer de brincadeira também". Gina: Ah, então tá bom. E comemos e fizemos mais sorvetes. Gina os deixou para gelar embaixo da cadeira, na sombra... Suas vizinhas apareceram, e fomos brincar de bola. (MOÇA DE BIQUE, 18 de abril de 2014).

Maria apareceu e perguntou se havia passado algum cliente. Gina disse que não e Maria voltou para casa. Ela e as meninas voltaram a brincar com os sorvetes e as vendas da banca. Encontraram uma caixa de colgate (nome que usam para se referir à pasta dental), picaram em pedaços quadrados e os fizeram de meticais. As meninas tinham bastante noção de compra e venda, valores e negociações – talvez por ficarem tanto nas bancas e ajudar nas vendas (as outras duas ajudavam na banca da frente de suas respectivas casas, também na rua de Gina). Em dado momento, Gina disse que um dos sorvetes era o mais caro, custando mais de 1.000 meticais e Tininha disse que já havia pago. Começaram a se acusar e, depois,a se bater. Pedi para que parassem, e fui surpreendida com a resposta: é tudo brincadeira.

Gina: está a mentir! Tininha: Não estou! Gina: Está sim. Dá-me lá. Tininha: Não dou. Gina: vou te matar! E então começam a lutar, mas lutar de verdade. Com direito a socos, jogarem-se no chão e se enforcarem. Marina: Vocês estão se machucando! Elas param, me olham e riem. Gina: É brincadeira, Marina! Marina: Mas de luta?

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Tininha: Sim, brincadeira de luta Gina: É! Luta de brincadeira. Estamos brigando de brincadeira. E voltaram a se bater. Filó e Neusia também entraram na tal brincadeira, e assim ficaram se batendo e se jogando no chão por mais algum tempo (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 3, 2014).

Esse evento me chamou atenção: lembrei imediatamente de outra cena que presenciei dia antes, enquanto estava a caminho da Matola. O cobrador e um passageiro do chapa estavam brigando porque o passageiro não tinha os meticais suficientes para o pagamento da passagem e o cobrador resolveu que aquilo só poderia ser resolvido pela agressão física. O cobrador bateu diversas vezes no rapaz, dando-lhe socos no rosto, travando uma luta ali, na rua, na frente dos demais passageiros e das pessoas que esperavam pelo seu chapa. As pessoas de fora apenas riam. Pensei na brincadeira que acabara de presenciar com Gina e o modo como as crianças reelaboram o mundo dos adultos. Elas, que fazem parte do mesmo ambiente cultural e social, reconstituem relações no contexto da própria cultura de pares de seu mundo infantil delas. Muitas vezes, a violência, a disseminação são vividas e recriadas, assim como tentativas de soluções. Eu perguntei, sem elucidar completamente, se essas expressões seriam parte dos frutos de um pós-guerra. Quando escurecia, Gina brincava dentro de casa, sozinha. Maria não a deixava ficar na rua à noite, e ela também afirmava ter medo, pois “tem muitos bandidos por aqui”, dizia. “É bom ficar em casa”. Em casa, gostava de brincar na sua banca no quintal, ou de fazer comida; brincava com Judi e assistia desenhos na televisão. Não tinha brinquedos; ela os inventava. Em um dos dias, enquanto assistíamos Rebeldes, uma novela mexicana, Gina começou a mexer em meu estojo. Ao ver os lápis de cor, quis desenhar: fez uma casa no meu caderno, muito colorida, e contou uma história sobre ela. Era a casa de Deus. Ao fim, resolveu que ambas deveríamos ter lápis de cor para podermos desenhar.

Gina: Agora vamos dividir os lápis! Marina: Dividir os lápis? Gina: É! Você que falou, não lembras? Marina: Eu não falei isso não! Gina: Ah, mas agora já quebrei um - e ela me mostra 3 lápis que já havia cortado ao meio Marina: Bom, agora corta os outros, né? Gina: É que assim eu e você ficamos com lápis. São muito grandes pra você só! E a cada lápis que quebrava, ela os media e me dava os maiores... Falei que podia ser uma grande pra mim e um pra ela, e então ela negou. Gina: Não, você é grande, fica com o grande! (MOÇA DE BIQUE, 16 de maio de 2014).

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Gina sempre dividia suas coisas com as outras crianças e passou a dividi-las comigo, e a dividir as minhas coisas com ela também, como os lápis. Quando jantávamos e eu terminava antes que ela, era normal ela encher uma colher de arroz e dar em minha boca, dizendo “prova lá do meu”. Pensei sobre esse assunto e percebi que a maioria das crianças tinha a mesma atitude: dividiam canetas, lápis, caderno, biscoitos, gelinhos, brinquedos. Essa cultura da dádiva, associando dar e pertencer é comum entre aquelas crianças; implica em relações de trocas muito complexas, favorecendo as trocas. Dar e receber são parte de uma socialização distributiva, ao mesmo tempo, a necessidade de uma economia de negociação interativa e criativa. Na escola, Gina brincava bastante. Por estarem na 2ª classe, a aula em si possuía característica mais lúdicas do que nas classes posteriores, havia momentos para as brincadeiras. Gina gostava de chegar mais cedo para brincar com as crianças, principalmente meninas. Brincava de zotho, de brincadeiras de rodas e de luta, esta última entre meninos e meninas. Presenciei vezes em que Gina estava chorando porque alguma das crianças lhe bateu e machucou, como presenciei outras crianças chorando porque Gina as machucou. Quando questionava o porquê de terem se batido, a resposta sempre era a mesma “estávamos a brincar, e ela/ele me aleijou”. As brincadeiras, muitas vezes, vinham acompanhadas de violência entre os pares. Em alguns dias, Gina demonstrou querer brincar com Tininha e Filo de bola. A bola de ping pong era emprestada do irmão de Tininha. Ao jogarem para cima e para baixo, ganhava quem fizesse o maior número de repetições sem deixar que a bola tocasse o chão. Gina era quem jogava a bola mais baixa, quase não saindo de sua mão. Perguntei por que ela não jogava mais alto, e a resposta foi “porque assim vai cair. Não sei jogar alto. Quero ganhar”.

Gina: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7..., 49... Ah, 60! Marina: Depois do 49 vem o que? Gina: 60! Marina: Depois do 4 vem o que? Gina: Huum...5? Marina: Isso. Então depois do 49, vem 50. Gina: Ah! 51, 52, 53,..., 59... 90! Marina: Não! Depois do 5 vem o que? Gina: 6! Marina: Então é 60... Gina, assim não vale!

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Gina: Vale sim, quero ganhar! Se jogar alto não consigo, vou perdere! (MOÇA DE BIQUE, 18 de abril de 2014).

Em uma das vezes, Gina desejou guardar a bola para poder bricar mais tarde e a escondeu das outras meninas. Elas ficaram durante muito tempo procurando, e Gina não contou que estava com ela. Conversamos a respeito e Gina dizia que se não fosse assim, ela não ia conseguir brincar. Depois de um tempo, ela decidiu devolver, sem porém revelar seu segredo. Aos finais de semana, Gina costumava brincar na casa de um outro tio, pois havia lá uma prima. Em um desses dias, ela pegou um livro, que era de uma coleção da Igreja que frequentavam. A história baseava-se no modo como as crianças devem conhecer Jesus e amálo, e acabava por relevar questões morais, como a mulher ser fruto do homem e ter que obedecê-lo. Gina discutiu comigo que não entendeu direito, e me recontou a história de seu jeito: “era um homem, a mulher. Queriam sair, teve uma cobra, e ai foram pra sua casa. Fim”. Repensar os modos como as histórias são escritas e contadas às crianças é importante para estimular o hábito pela leitura e alcançar mundos novos. Na semana do dia 1 a 8 de maio, a escola entrou em recesso escolar. Gina brincava todos os dias na rua. Maria havia desistido da banca, e o tempo livre de Gina foi tomado por brincadeiras, dormir e fazer seus trabalhos. Quando perguntei a ela o que achava, ela respondeu “eu gosto de ir na escola, porque brinco. Anima! Mas aqui brinco, brinco muito! E depois durmo. Estou a cansar. Vamos lá dormir?”. O brincar permeava, portando, o dia-a-dia de Gina, fosse nos momentos livres, fosse nos momentos que permeavam o intervalo de suas tarefas ou mesmo durante elas. E, para Gina, “criança brinca!”.

2.4 Félix

Meu primeiro contato com Félix foi em 2012, quando ele estava com um machucado na perna. Com o material de primeiros socorros que tinha na bolsa, fiz um curativo e cobri a parte exposta, evitando que os mosquitos pousassem. Posteriormente, uma das casas que visitei foi a dele, fazendo contato com sua família e criando um laço. No dia em que me dirigia, pela primeira vez, para a casa de Januar um menino gritou meu nome: era Félix. Desde então ele foi um companheiro: ficava comigo na casa das outras 122

crianças, ia ao meu encontro se soubesse onde eu estava, acompanhava-me até o lugar em que eu apanhava o transporte para retornar para a cidade. Conversávamos sobre inúmeras coisas, situações, sentimentos. Nossa história comum foi construída assim, no diálogo constante. Sua família, porém, acolheu minha presença da maneira mais cautelosa que as demais. O período de convívio em sua casa foi de 17 de maio a 08 de junho de 2014.

2.4.1. Composição familiar e relações O nome completo de Félix era Félix Vasco Nhantumbo, porém, em casa, era chamado de Feligirdo. Nasceu no dia 31 de maio de 2001, tendo, durante estudo, completado 13 anos, sendo o irmão e primo mais velho de sua casa. Félix não morava com sua mãe, mas sim com sua avó Clemência. No primeiro dia que fomos em sua casa e me reapresentei, pois conheci sua avó e sua tia Rosinha em 2012, acabei por conhecer também sua mãe, Zaida, e sua irmã mais nova, Clemência, que recebeu o mesmo nome da avó materna. Neste dia contei sobre a proposta da pesquisa e vó Clemência disse que eu seria bem-vinda. No dia que retornei à casa deles não havia nenhum adulto. Morava na casa, segundo Félix: “meu tio, minha tia, meu outro tio, tia, e minha avó” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014), as crianças eram “meus primos, eu e meu irmão também.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014) Tia Rosinha chegou junto de outra criança: Arsênio, seu filho de 5 meses. Tivemos uma conversa rápida e logo ela me fez sentar à mesa junto com o avô Bento, que havia chegado para me ver, e assim matabichamos. Vô Bento tinha 64 anos e estava reformado (aposentado). Trabalhou durante muitos anos em uma empresa de ônibus da cidade, a Transporte Público de Moçambique (TPM). Devido à idade, buscava um trabalho que, segundo ele, “não exija muito, não force, e não me canse, para não pensar muito.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Estava trabalhando em alguns serviços leves, como consertos. Félix sentou-se conosco, e só se serviu quando o avô autorizou, depois de eu ter falado para ele dividir comigo. Vô Bento contou que era de Inhambane e, quando me servi, ele se admirou com a quantidade. Comes pouco, sempre dizia ele. Contei-lhe que comia mais lá em Moçambique do que geralmente comia quando estava no Brasil e vô Bento perguntou o porquê e eu disse que lá tinha mais fome; porém, vô Bento entendeu o contrário e achou que 123

eu tivesse dito que em Moçambique havia mais fome que no Brasil. Disse que a comida era cara em Moçambique, sendo este o motivo de muitas pessoas sobreviverem das colheitas das próprias machambas.

Vô Bento: Ah, aqui tem fome? Não tem fome aqui, tem muita comida! Marina: Não, eu tenho fome! Vô Bento: Ah sim... Marina: Não acho que o país tenha fome, tem muita comida mesmo! Vô Bento: Moçambique não é pobre; tem muita riqueza, muito ouro. […]. Moçambique não tem pobre, pobre. Tem pobre, mas não que passa fome. Daqui a nada não vai ter pobres. Vai ter diferenças, mas pobre igual hoje, não. É só quem vem agora mudar. Está mudando... Na África do Sul quem trabalha recebe ajuda, aqui não. O Governo não dá essa ajuda. Se dessem 100, 200, 500 meticais, as pessoas já iam se organizar para comprar o que comer, mas não. Isso ia diminuir os roubos. Tem muito roubo aqui, sabes? E é por isso. Aqui você pode estudar, fazer faculdade, se licenciar, mas não consegue um emprego. Falta oportunidade. Diferente se você vir pra cá, vai ter muito emprego para você. Valorizam quem vem de fora, mas não dão oportunidade para quem está aqui dento. Marina: Entendi. O que percebo aqui é que tem comida, mas é muito cara. Vô Bento: É muito cara! Aqui no sul é mais difícil. Eu sou de Inhambane. Lá temos machamba. Ah, como é farto! Tem coqueiro, mangueira, é só apanhar e comer, não tem que pagar. E não tem adubo, é natural. Tem uns chineses que foram lá trabalhar e fizeram machamba. Agora não querem mais voltar pra China! Marina: Quando a gente acostuma é difícil voltar... E o senhor vai voltar para Inhambane? Vô Bento: Dá pra ficares longe, não voltar. É só o coração não estar isolado. Amanhã hei de ir para lá! Vou descansar um pouco. Acabei o trabalho aqui. Minha senhora está lá. Vou deixar você com essas crianças aqui. Marina: Não há problema! Vô Bento: É muito bonito lá. Já foi considerado o lugar mais bonito de todos. Quando voltares da outra vez, é só me falar, programamos e vamos. Agradeci. Os meninos me chamaram para brincar e assim me retirei da mesa. (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

Rosinha foi quem me contou um pouco da composição familiar: a casa era de sua avó, Clemência, que era sua sogra. Naquele momento, referiu que o número de moradores da casa eram 7. Havia ainda as pessoas que estavam trabalhando em Ressano Garcia, uma outra cidade um tanto distante de lá, e na África do Sul. Seu esposo trabalha em Ressano Garcia, numa obra. Dormia em sua casa apenas em dia de folga, morando praticamente a semana inteira na obra; é irmão da mãe de Félix. Rosinha explicou que Félix morava com a avó desde pequeno. Segundo a tia, “ele prefere morar aqui que com a mãe. O irmão também, mas agora tá na casa da outra avó”. Félix, por sua vez reafirmou que morava com sua avó “há muito tempo! A casa de minha mãe é pequena, não cabe todos.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE 124

CAMPO 4, 2014). Ele tinha 3 irmãos: Germano, Richard e Clemência; era o mais velho de todos. Sou o “mano”, dizia ele para mim. Seu pai faleceu quando ele era criança, e ele não gostava de falar sobre isso. “Te contei quando estávamos na casa de Januar, não está a lembrar? Faz tempo, era pequeno”. A relação que tem com a família de seu pai ainda era presente: aos finais de semana, quando sua mãe lhe dava dinheiro para apanhar chapa, ele ia até a casa de sua avó, que ficava na Brigada (uma paragem de chapa antes da portagem, que levava cerca de 20 minutos da Matola A). Com a avó paterna moravam dois tios seus. Félix referia gostar muito de ir visitá-los. Na semana de férias escolares, passou a semana inteira lá. Rosinha casou um pouco antes de Arsênio nascer, estavam esperando nossa casa ficar pronta e, ela própria, acreditava que até o ano de 2015, terminariam de construir. Quando a conhecia em 2012, ela tinha mais um filho: Tony, que estava com 10 meses na época, porém, tinha uma doença no intestino e faleceu dois meses depois, coincidindo também com o momento do falecimento de sua mãe: “Tony morreu em novembro de 2012, a gente estava de baixa no Hospital Central, e ela ficou doente de repente. Morreu em dezembro de 2012.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Comentei que havia sido pouco tempo e que imaginava o quanto foi difícil e pesado para ela, que e respondeu que “temos que ser fortes, porque aqui a vida é assim […] E mãe é tudo pra gente.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). O contato com Zaida foi acontecendo aos poucos. No segundo dia que fui na casa de Félix, ela foi visita-los, dizendo ter ido ver como os filhos dormiram, já que a mãe estava fora. Fez diversas perguntas sobre mim: onde eu morava, como havia chegado a Moçambique; perguntou com quem morava no Brasil, se tinha filhos, irmãos, namorado. Além disso perguntou: “aqui em Moçambique assistimos novelas do seu país. Lá vocês assistem as daqui? Tem programas daqui que passam lá?” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014) Ao responder que não, Zaida então questionou “lá vocês não nos consideram porquê? Assistimos tantos canais de Brasil aqui.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014) Disse-lhe que não saberia responder ao certo, a não ser que, de fato, as novelas brasileiras eram transmitidas em muitos países, mas o contrário muitas vezes não ocorria. Esse assunto voltou diversas vezes, e Zaida fazia questão de puxá-lo sempre que me apresentava alguém. Discutíamos racismo e preconceito, e falávamos sobre como o Brasil era retratado pelas novelas. Zaida também falou sobre ela: Félix, era seu primeiro filho, depois teve Germano, que tinha 8 anos, Richard com 4 e Clemência com 2 meses, na época. Ela nasceu na Matola A, 125

mas morava na Zambézia, outra província mais ao norte do país, com seu marido, Valério, que era pai de Richard e Clemência. Ele era professor numa escola de lá, e mudaram-se quando passou no concurso do Estado. O pai de Félix havia morrido quando ele tinha 5 anos de idade, e o pai de Germano era um outro homem que morava no bairro. Germano revezava entre a casa de sua avó materna e sua avó paterna. Ela retornou à Matola para o parto de Clemência e pretendia ficar lá até agosto, e então retornaria com Richard e Clemência para a Zambézia. Naquele momento, morava num quarto alugado na casa de Tia Dina. Seu quintal tinha 3 quartos alugados e a casa onde morava ela própria. Saber ao certo onde Zaida morava não foi fácil, levou algum tempo para que ela me contasse e então me convidasse para ir lá. Richard nasceu com o cordão umbilical enrolado no pescoço, fato que, segundo Zaida ocorreu porque ela usou um colar durante a gravidez e mesmo no momento do parto. Essa associação era fortemente presente entre as pessoas de Matola que conheci. Diziam ainda, que era importante amarrar uma pulseira de linha com um botão ao meio no pulso do bebê para evitar que ficasse estrábico. Passado algum tempo, Clecle (como era chamada Clemência) teve uma doença que ocorre principalmente no sul do país, em que o bebê para de crescer: segundo a crença local, era uma doença que deveria sair do bebê ao nascer, mas em Clemência acabou entrando e permanecendo em seu corpo. O tratamento realizado, também realizado no sul do país, contou com ervas e medicamentos naturais, que se passava em sua cabeça e um líquido especial para que ela bebesse. Conforme os dias foram passando, fui reconhecendo a configuração daquele grupo doméstico: moravam ali Clemência, avó de Félix e dona da casa, Verdiano, tio mais novo de Félix, de 20 anos; Rosa, casada com um tio de Félix que só vi uma única vez, irmão de sua mãe; Rosinha e Salvador, que trabalhava em Ressano Garcia e só ia para casa quando tinha folga. Entre as crianças havia Félix, Omilton, primo de Félix cuja mãe, irmã de Zaida, faleceu; Manelito, cujo pai faleceu e a mãe trabalhava na África do Sul, mas era casada com um homem que morava no bairro, próximo da casa, local onde ficava quando estava na Matola; Arsênio e Captino, filhos de Rosinha e Salvador; e Germano, irmão de Félix, quando não ficava na outra avó. Vô Bento morava em outra casa com sua segunda esposa. O total de moradores podia chegar a 12 pessoas. Tinham dificuldade em comprar comida, pois a renda principal era do vô Bento, que por estar reformado, recebia vencimento (aposentadoria), que repassava para vó Clemência e ela então fazia as compras básicas, como arroz e xima (mistura de farinha com água fervida). Como um saco de arroz de 25 quilos não durava o mês inteiro, revezava-se entre 2 dias arroz, 126

um dia xima. Rosa comprava o carvão algumas vezes, e Rosinha outras, com dinheiro que seu marido lhe dava. A carne (frango, peixe) quem tinha dinheiro, comprava. A renda mensal girava em torno de 20.000 meticais, aproximadamente. Rosinha, enquanto me contava sobre as compras, acrescentou dizendo que “as coisas aqui são difíceis. Comida é muito cara!” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014) Sua fala foi a mesma que de vô Bento, em meus primeiros dias, e foi uma fala recorrente durante o período em que estava lá, pronunciada não só por eles, mas pela maioria das pessoas que tive contato. Quando comentei que vô Bento havia me dito isso, Rosinha completou.

[...] fazemos de tudo para não faltar comida. Para acordar, ter matabicho, brincar. Voltar, almoçar. Brincar, jantar e dormir. Fazemos de tudo para não ter fome, não faltar arroz. As crianças brincam e andam muito, se ficarem com fome vão querer apanhar comida em algum lugar, e aí começam a roubar. Fazemos de tudo para não acontecer isso, para terem o que comer. (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

Essa conversa me fez lembrar uma outra que tive com tia Dina. Certa vez, enquanto estávamos em seu quintal, ela me perguntou se havia pessoas que passavam fome no Brasil. Eu disse que havia, e tia Dina pareceu assustar-se. Virou-se para mim e então respondeu “aqui fazemos de tudo pra não faltar um prato de arroz. Damos um jeito, sabe? Pedimos emprestado, mas ninguém dorme com fome. Aqui em Moçambique tem unidade. A vida aqui é difícil, mas é assim mesmo […].” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). A relação entre as pessoas da comunidade era de união. De partilha, pertencimento, era uma relação compartilhada. A preocupação com as crianças fazia parte do dia-a-dia da família de Félix e das outras também. Ter comida era algo necessário, e “sempre se dá um jeito”, como já me disse mãe Margarida, mãe Laurinda, Jalilo, Florêncio, tia Dina e naquele momento Rosinha. A vida partilhada entre pessoas, entre comunidade. A família de Félix era assim constituída. Suas relações com os vizinhos também eram significativas: por morarem no bairro desde 1972, tinham uma rede ampla de relacionamentos. A começar com as vizinhas que moravam em frente à casa deles e ao lado. Era bastante comum as vizinhas reunirem-se para conversar no momento da realização de alguma atividade como lavar as roupas no quintal de uma delas – geralmente era no de da casa de vó Clemência. Zaida, quando precisava lavar uma quantidade grande de roupas, também ia até a casa de sua mãe e lavava no quintal. Muitas vezes cozinhavam na parte 127

externa de suas casas, além de conversarem sobre o que estavam preparando, as vizinhas comiam juntas e, quando sobrava, pediam o resto da comida para si. Assim, elas partilhavam conversas, situações, chateações, comidas, tarefas e afazeres domésticos. Uma das vizinhas tinha um salão de beleza, sendo frequente as mulheres esmaltarem as unhas uma das outras, ou mesmo trançar os cabelos: formas de troca entre vizinhas e amigas. Zaida relacionava-se de forma intensa com tia Dina e com Violeta, moradora de um dos quartos alugados do quintal. Pela manhã, sentavam-se na parte externa de seus quartos e faziam seus afazeres dividindo conversas, cuidados e tarefas. Félix e as crianças contavam, do mesmo modo, com essa rede ampliada de laços e suporte. A vida transcorria, assim, em comunidade. Entre as crianças que acompanhei, Félix era o que mais caminhava e o fazia sozinho, pelo bairro em que morava e até mesmo por outros bairros, como quando ia visitar a família de seu pai: ia até a paragem final do chapa, chamada de “Godinho”, e então apanhava um chapa que o levasse até a Brigada, uma paragem que ficava em outro bairro. Quando íamos para a casa de Januar a primeira vez, Félix se despediu e eu prossegui o caminho com Januar. Um pouco depois, Félix apareceu correndo, já sem sua pasta e com outra roupa: havia ido para casa de sua avó e se trocado para ir nos encontrar. Perguntei se ele já tinha ido à casa de Januar, e ele afirmou que “nunca”. Nos dias que se seguiram, Félix aparecia na casa de Januar, muitas vezes para me procurar, outras para brincar com os meninos. O fato é que ele, desde a primeira vez, sabia o caminho. Uma vez, ao voltarmos da casa de Chiça, uma das meninas que me convidou para conhecer sua casa, Félix disse “sabes onde estamos? Perto da casa de Januar. Havemos de passar lá.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014) Eu não sabia, mas Félix sim, e então fizemos uma rápida visita. Ao sairmos, Félix falou que faríamos um caminho por dentro. “Marina, vamos por esse caminho. Há de ser mais rápido.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014) O caminho era no meio de mato e matopes. Perguntei como Félix sabia aquele caminho e ele disse: “é a segunda vez que hei de fazer. A primeira foi uma vez que vim brincar com Januar sozinho.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Os caminhos que fazíamos para ir a sua casa variavam conforme o dia: certas vezes, íamos pela estrada principal, e então pegávamos uma rua à esquerda para chegar à casa de Felix; em outros íamos pelas ruas de terra, por dentro do bairro, a minha referência era a barraca de frutas ao lado da barraca que vendia cadarços, e então sabia que deveríamos virar à esquerda. Certa vez, num sábado, enquanto ia sozinha para a casa de Félix, a barraca não 128

estava lá, e eu continuei seguindo em frente. Entrei em uma rua qualquer à esquerda, mesmo sabendo que não era aquela o caminho. Duas meninas me encontraram e vieram correndo em minha direção e perguntaram para onde eu iria: “Marina, estás a ir no Félix? Não é por ai! Havemos de te levar, há de se perder você!” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014) Então, elas me levaram até sua casa, despediram-se e voltaram a brincar. Outro caminho que demorei a aprender foi o da casa da Zaida. Félix gostava de variar, e ficava difícil para eu conseguir lembrar os percursos. Quando aprendi um dos caminhos, Félix ficou contente: “agora já podes vir sozinha!”, exclamou ele. Numa das vezes que lá estava, Zaida quis comprar peixe e fui junto com ela e Richard. Richard andava na frente ou ficava para trás, brincando com algo. Zaida percebeu que eu parava para esperar por ele e então disse: “Ah Marina, não há de se preocupar. Não se perde esse ai.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014) Zaida contou que muitas vezes Richard ia até a casa de sua mãe (vó Clemência) sem ela. Quando contei que havia me perdido para chegar lá, ela riu e disse “Não tem vergonha você? Nem Richard se perde! É por isso que criança aqui começa a andar cedo, assim não há de se perder.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014) Na volta, ela me disse “sabes onde estamos agora?” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014), e eu disse que não. Zaida disse que eu deveria ficar com Richard, já que ele me mostraria o caminho, e foi andando na frente. Duas quadras depois, estávamos em sua casa. Richard, de 4 anos, sabia; eu não. Fui percebendo que não era preciso ir aos lugares para saber onde eram, como foi o caso de me levarem até o Félix: as meninas não costumavam ir lá, mas sabiam onde era sua casa. Pensei que o mesmo pode ter acontecido em relação a Félix saber onde era a casa de Januar, pois Félix disse que “adivinhou” onde era – talvez tivesse ido em alguma casa perto, e perguntou se sabiam onde morava Januar. Isso era comum acontecer: as pessoas perguntavam onde eram as casas ou os lugares pelos nomes de quem morava ou trabalhava neles, e assim era indicado o caminho. Comigo aconteceu muitas vezes assim, até que os caminhos fossem se tornando familiares e eu passasse a perceber as casas ao redor, as barracas, as bancas, os trajetos. Constância, amiga de Félix, me disse para visitar sua casa um dia. “Moro perto de Félix. Sabes onde tem aquela casa amarela? Então, ai você anda, anda, chega onde tem aquela árvore no quintal, sabes? Ai vira e prontos, tá na minha casa.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). As referências eram tidas não por nomes de rua, mas por noções espaciais diferenciadas e mais próximas do dia-a-dia. 129

2.4.2 Tarefas e responsabilidades Logo no primeiro dia em sua casa, dois de seus primos ajudavam seu tio Verdiano a cavar um buraco na parte externa de casa: era pra construção de uma nova fossa. Ao perguntar se era trabalho ou biscato, os meninos afirmaram ser trabalho. “Estamos trabalhando, ajudando”, disseram. Félix disse que quem fazia tudo por lá era sua tia Rosinha. Quando sua tia chegou, pediu que Félix fosse comprar um pão e um ovo, para o matabicho, e foi Félix quem o preparou. Tia Rosinha perguntou se eu sabia que o Félix cozinhava, dizendo “Félix cozinha, tás a ver Marina?”, enquanto Félix fritava o ovo. Conforme fomos conversando, Rosinha reafirmou que os trabalhos da casa eram realizados por ela, e que Félix apenas a ajudava em algumas tarefas específicas, como ajudar na preparação de algum alimento, fritar o ovo ou cozinhar o arroz. Segundo Rosinha, “quem faz tudo aqui em casa somos eu e a outra tia. Antes de ir trabalhar, ela varre aqui fora e lava loiça. Essa aqui foi ela quem lavou, e eu varro dentro, lavo roupa, cozinho […].” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Quando a questionei se os meninos ajudavam, sua resposta foi “ih, nada! São folgados, só brincam só. Só me ajudam com o bebê quando ele está a chorar”. Com o passar dos dias, pude ver que, quando Arsênio chorava, se Felix estivesse por perto, era ele quem o pegava no colo, verificava se era precisava trocá-lo ou se era fome, entregando-o a Rosinha. Caso Félix não estivesse, uma das crianças que estivesse por perto fazia isso. Félix não só cuidava de Arsênio como das outras crianças. Quando Germano aparecia na casa de vó Clemência, Félix perguntava onde ele havia dormido, se havia comido; caso suas roupas estivessem sujas, dizia que Germano deveria avisar a avó que precisava lavar ou pedir uma nova, se fosse o caso. Com seus primos, também, havia esse cuidado: certa vez, ao chegarmos na casa de vó Clemência, Manelito estava chorando e com a boca inchada e sangrando. Os outros correram em sua direção e disseram que Daimo, amigo de Omilton, havia batido em Manelito porque este destruiu seu carrinho de barro. Félix o consolou e disse “ele há de ver. Nunca mais entra aqui nem vem aqui. Hei de bater nele e ele há de ver. Não choras.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Outra vez, ainda, Manelito havia saído da casa de sua avó numa sexta-feira e não passou o final de semana lá. Na segunda, quando encontrei Félix, ele disse que estava preocupado com o primo e me levou na casa de um tio de Manelito, para ver se o menino 130

estava com ele. Os tios disseram que já havia saído e, então, retornamos para casa de vó Clemência. Algum tempo depois, Manelito chegou. Félix foi quem fez as perguntas “onde você estava? Por que não avisaste?” e deu uma bronca. Félix era o responsável por ele naquele momento. Do mesmo modo, era Félix quem separava a comida de seus irmãos e dava para eles quando chegavam na casa de vó Clemência. Num dos dias, Richard chegou sozinho e nem foi preciso dizer nada: Félix foi até a cozinha, abriu as panelas e separou um tanto de arroz para Richard comer. Através da convivência não só com Félix, mas com as outras crianças e famílias, percebi que o mais velho tem uma socialização construída diariamente em uma série de responsabilidades específicas, principalmente na ausência de um adulto. Quando adulto, o irmão mais velho acaba sendo referência dos demais. Na casa de Zaida era Félix quem ia comprar pão e quem esquentava a água do chá, a pedido de sua mãe. A louça acaba por ser sua tarefa, bem como o banho de Richard. Embora Rosinha e Félix afirmassem que quem fazia as coisas em casa era a tia, pude perceber que o quarto dos meninos era de responsabilidade deles, principalmente de Félix: as camas e as roupas ficavam desarrumadas até quem um deles se prontificasse a organizar. Félix disse que, geralmente, é ele quem arruma e limpa o quarto. Em seu quarto dormem ele, Omilton e Manelito, e quando Germano está, acaba por dormir lá também. A arrumação tinha uma dinâmica: separar e afastar as camas para varrer o chão, e, depois, tirar os lençóis, batê-los e volta-los a colocar nas camas. Num dos dias, ao voltarmos da escola, ele entrou no quarto e enquanto me mostrava seus pares de sapato, disse “vamos arrumar a bagunça”, e começou com as roupas espalhadas pelo chão. As suas, ele colocou num saco para lavar; as dos meninos, separou num outro monte, e deixou no chão. Félix disse que há um revezamento entre ele e sua avó para lavar a roupa: “Sou eu ou a vovó. Mas como ela não está, sou eu”, afirmou. Presenciei, por duas vezes, Zaida lavando a roupa dos filhos, inclusive a de Félix. Ele ainda arrumava o quarto e quando perguntei quem o ajudava, respondeu: “só eu. Os outros tem preguiça. Mas ano que vem hão de ver! Vou fazer limpar!” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Depois, quando começou a varrer o chão, reclamou da poeira e dos ratos, dizendo: “tá com muita poeira, vish! Ih, esses ratos aqui!” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014); eles se escondiam num buraco que havia na parede, explicou. A presença deles foi percebida devido aos restos de amendoim espalhados pelo chão, próximo ao buraco referido. Levantamos as camas para limpar melhor, e encontramos muitas coisas: folhas, cadernos, 131

bolas e roupas. Félix separava o que ia guardar, mas jogou quase todo o resto. Enquanto limpava e varria seu quarto, fazia-o em forma de brincadeira: dançava a música que tocava, ensinando-me os passos, brincava com a vassoura. Ao pegar um cobertor, fez uma cara de pensativo. “Hei de sofrer para dobrar isso” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014), disse Félix. Disse que o ajudaria e assim o fiz. Félix completou “foi fácil porque está aqui. Quando não estás, ih! Sofro!” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Durante a arrumação de seu quarto, conversamos sobre muitas coisas; entre elas, o que era ser criança. Num dos dias, enquanto jogavam videogame, os meninos disseram que eram jovens, mas Félix afirmou que ele era criança e explicou: “não eu ainda não tenho quinze anos. […] Quando tiver 15 anos, eu já vou deixar de ser criança.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Diante de minha dúvida sobre a diferença entre criança e jovem, respondeu que “ela joga mais, brinca com os outros, não bate. […] Não bater nos outros. Ajuda a lavar pratos.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Ao terminarmos a conversa e a arrumação do quarto, Félix foi brincar. No dia em que dormi lá, Rosinha me ofereceu seu quarto e dormimos na mesma cama, junto com Arsênio e Captino. Félix, ao acabar de jantar, foi dormir. “Tenho que esperar para comer. Como e já vou dormir, juro!”, havia me dito Félix, e foi o que aconteceu: nem cinco minutos depois, estava dormindo e roncando. Rosinha disse que Félix dormia cedo e demorava para acordar – motivo de seus atrasos na escola. Antes de dormirmos, Rosinha separava as fraldas de Arsênio, que estavam numa bacia com água para limparem. “Tem que se ter cuidado com as crianças, principalmente com os bebês. Tem que ter muito cuidado, cuidar bem. Porque é mais sensível, não sabemos o que pode dar.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Ao deitarmos, Rosinha me fez algumas perguntas e conversamos; ao final, ela concluiu que as crianças de lá “são livres”.

Rosinha: Marina, você acha aqui bonito? Marina: Aqui onde? Sua casa? Rosinha: Aqui, Moçambique. Marina: Acho. Acho muito! Rosinha faz uma careta e diz “hum”. Marina: Ah, eu acho! Acho que tem muito o que melhorar, e que vocês têm muitas riquezas mas que, infelizmente, fica na mão de poucos. Rosinha: Isso é. Mas o que mais gostas aqui: Marina: São os olhos! Rosinha: Os olhos? Nossos olhos? Marina: É! Não sei explicar, mas são diferentes. Tem um brilho que é diferente. Ainda mais os das crianças.

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Rosinha: O das crianças acho que são porque elas brincam muito. Marina: Pode ser. Rosinha: As nossas crianças são livres. Brincam e andam por ai, e sabem que, quando voltar, vão nos encontrar aqui, e vão ter o que comer. As mães fazem de tudo. O brilho é isso. Marina: É a liberdade? Rosinha: Ser livre. Hum... (e faz um sinal de sim com a cabeça). Não digo que são todos. Aqueles que são apagados é porque sofrem muito, não tem a mãe. Não que a madrasta não cuida, mas não é a mesma coisa. Uma mãe faz e vai fazer de tudo mesmo pelo seu filho. A madrasta pode fazer, mas não é a mesma coisa. Quando perdi a minha, morri junto... (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

Adormecemos, mas essa questão permaneceu. Ao acordarmos, Rosinha e eu conversamos sobre a idade que Rosinha começou a trabalhar.

Marina: Mana Rosinha, com quantos anos você começou a trabalhar? Rosinha: Aqui? Marina: Não, na sua casa. Rosinha: Ah, com 8 anos já varria dentro e lavava prato. Marina: Começa com essa idade mais ou menos? Rosinha: Ah sim, que já consegue. Marina: E é só menina ou menino também? Rosinha: Ah, menino só brinca. A menina cresce mais rápido. Marina: Cresce como? Tamanho? Rosinha: Tás a ver se Félix fosse menina, já ia aprender a cozinhar agora. Menina com 5 anos já sabe que vai ter que ajudar a mãe. As filhas daqui da vizinha tem a idade do Captino e ficam a ver a mãe, lavam loiça já. Então já sabem que vão ter que ajudar. Marina: Por isso crescem? Rosinha: Sim. A vida aqui é assim mesmo. É normal (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

A noção de as meninas crescerem mais rápido que os meninos, no sentido de amadurecimento, apareceu de forma recorrente. Ao realizar as tarefas desde cedo, as meninas “crescem” antes que os meninos, segundo Manzura e Rosinha. Os dias passaram e Félix era solicitado em momentos pontuais. No dia em que sua mãe preparava o bolo de seu aniversário, todos os ingredientes que precisava era pedido a Felix, como pegar limões na árvore. Félix atendia, embora brincasse entre as tarefas e então retornava a brincadeira original. As tarefas de Félix eram poucas; maiores parecia ser sua responsabilidade com os irmãos e primos. Num dos dias que Félix me levava para a paragem, passamos numa rotunda (rotatória) e havia uma mulher lavando a praça. Félix olhou e disse “trabalho doméstico”! Perguntei se realizava muitos trabalhos domésticos e sua resposta foi 133

que não, mas que os considerava importantes: “acho bom. Muito bom. Pra quando for grande não ter vergonha de procurar emprego” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). A preocupação com um futuro emprego apareceu diversas vezes. Quando me levava para apanhar chapa, Félix disse que, se fosse cobrador, não iria arrecadar nada das pessoas, […] não as que estão doentes. Ela precisam se cuidar, deixar dinheiro para comprar remédio. Quando tiver dinheiro, hei de comprar um chapa e falar pro cobrador não deixar as pessoas doentes pagar. Só as outras (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

Félix queria ser cantor, cobrador, jogador. Mas, dentre muitas coisas, havia uma que Félix queria desde quando o conheci, em 2012: ser piloto. Após o período de observação, percebi de forma mais nítida do quem nas outras vivências que o brincar consistia uma forte marca na vida de Félix. Pareceu-me que ele brincava mais do que trabalhava e isto levou-me a repensar todas as outras vivências. De um jeito ou de outro, as crianças acabavam por ter um mundo de brincadeiras e de espaço lúdico em suas vidas. Félix, contudo, tinha suas tarefas e suas responsabilidades, que assumia sem que precisassem ser cobradas.

2.4.3 A cultura do brincar e o cultivo do riso O brincar estava presente em todos os momentos que estive com Félix, fosse na escola, nos caminhos e enquanto andávamos, com seus amigos ou mesmo sozinho, ou ainda dentre as tarefas que realizava. Quando íamos na casa de Januar, Félix sempre brincava de algo com ele, principalmente de dar pinos. Essa brincadeira era comum entre os meninos, e sempre que avistava algum pneu, preparava-se para os saltos. Em casa, pelo caminho e na escola, uma certa ludicidade sempre se manifestava. Gostava de fazer carros e motos de barro, e conforme fui passando os dias com Félix, pude perceber que fazer esses brinquedos e brincar com carros, motos e bonecos de barro era atividade de muitas crianças do bairro. Atrás da casa de Félix havia um terreno em que não tinha casa construída: era coberto, em parte, por mato e árvores. Para muitos, aquele espaço era o campo de futebol; mas, para Félix, era o esconderijo de seus brinquedos de barro. Ele os enterrava em algum espaço ali e colocava uma pedra em cima. “Ninguém há de pegar assim”, dizia Félix. Seus primos e irmãos também montavam bonecos, motos e carros de barro, e muitas vezes brincavam juntos. Daimo gostava de montar camas e casas. Outro esconderijo de Félix situava-se em 134

cima do telhado; ele gostava de guardar algumas coisas ali, mas nunca me mostrou que coisas eram. Félix gostava muito de carros. Em seu quarto havia carros de fio de ferro, feitos por seu tio Verdiano. Os ferros eram encontrados pelas ruas, em obras, no lixo, e as crianças, juntamente com alguns adultos, construíam os carrinhos. Muitas corridas entre carrinhos e caminhões de ferro eram realizadas, mesmo que o mais importante fosse correr e empurrar os brinquedos. Era comum ver essa cena nas ruas: os meninos que tivessem carrinho emprestavam aos que não tinham e então brincavam em grupo. Algumas vezes, assumia uma forma competitiva, outras não. Félix queria me dar um carrinho para que eu levasse comigo para o Brasil. “Quando tiver um filho, há de dar pra ele. E ele vai brincar e gostar muito! Anima esse carrinho” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014), disse. Quando estávamos na escola, principalmente no momento da saída, era comum os meninos criarem brincadeiras envolvendo algum tipo de luta, por vezes, brincavam de luta mesmo, ou ainda de zotho (pega-pega). Quem fosse pego levava chutes e socos. Até mesmo nas aulas as crianças se batiam, a maioria das vezes em forma de brincadeira. Félix dizia que quem brincava assim não sabia brincar, pois acabavam se machucando. Numa das vezes, enquanto brincavam na sala, um dos meninos acabou batendo em mim, sem intenção. Félix e Elsídio, seu amigo, disseram “parem com isso. Não estão a ver que isso não é brincadeira? Hão de aleijar Marina assim. Vocês pá!”. Os professores não separavam, nem mesmo durante as aulas. Félix e os meninos tinham um cuidado comigo; certas vezes, comportavam-se como com uma irmã mais nova, protegida pelos mais velhos. Ao perguntarem minha idade, admiraram-se ao saber que tinha 24 anos naquele momento. “Vinte e quatro? Não podes ser! Está a mentir. Fala lá. Vinte e quatro? Ia falar que tinha 16, 17. 18! 24 não!” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Talvez por parecer mais nova, os meninos tinham maior proximidade comigo, e isso fazia com que brincassem comigo como se fosse um garoto da idade deles. Em uma das vezes que Félix brincava e eu o aguardava, um dos meninos que participava da brincadeira de zotho agarrou Félix pelo pescoço e o trouxe até mim, e então disse “fala a verdade. Está a mentir esse ai”. Félix, sem graça, apenas ria. O menino insistia e então Félix perguntou “Marina, não és uma tia pra mim?”. Eu ri e disse que sim. Seu amigo disse “ah não podes ser”, o soltou e voltou pra sala. Perguntei a Félix o porquê daquilo, e ele disse que o menino “estava a duvidar que és uma tia pra mim!” (ANOTAÇÕES CADERNO 135

DE CAMPO 4, 2014). As crianças mais próximas, como as que acompanhei, assumiram a mim como alguém da família: podia ser filha/irmã, tia, madrinha. Félix quis passar na casa de um amigo, o qual chamava de “Mano” para pedir emprestado o videogame. Ele era um aparelho da marca Sega, conhecido no Brasil e principalmente por mim: havia sido o videogame da minha infância. Quando contei isso a Félix, ele se assustou por ser tão velho e disse “e aqui quase não tem! Havemos de jogar muito então!” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Como Félix gostava muito, Mano sempre lhe emprestava o aparelho. Ao chegarmos em sua casa, juntamente com alguns de seus amigos, tanto os da escola quanto alguns vizinhos, juntamo-nos na sala e então jogamos por muitas horas. Por ter apenas um controle, havia um revezando. O jogo preferido dos meninos era um de corrida; o meu era o de destruir alguns blocos de tijolo e desviar de uma nave espacial que perseguia o jogador, que era o atirador, que os meninos me ensinaram a jogar, bem como o de corrida, mas não obtive êxito neste último. Os meninos ficavam amontoados em frente à televisão, e conforme perdiam, passavam o controle para quem estivesse ao lado. Verdiano jogava muitas vezes com os meninos, mas, as crianças menores não tinham permissão para jogar. Questionei os meninos sobre o motivo da proibição: “criança não joga isso. Tem que saber, eles só querem estragar!” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014) Criança, para eles, eram naquele momento Manelito (9 anos), Germano (7 anos), Captino (5 anos) e Richard (4 anos).

Marina: E vocês, não são crianças? Todos: Não! – e riram, inclusive o tio Verdiano, de 20 anos. Marina: E são o que? Edilson e Mano: Jovens! Marina: E quantos anos vocês têm? Todos: Ah, 10... 11... 14! Marina: Então tenho que avisar: jovem só com 15 anos! Edilson: Tenho 14! Sou quase! Félix: Eu sou criança! E todos riem. Digo ao Félix que concordo com ele e ele diz “eu brinco, sou criança”. (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

Quase todos os dias em que estive lá os meninos jogaram videogame. Com exceção de dois dias: um dos dias em que Zaida quis que eu ficasse em sua casa e Félix não quis, pois disse que jogaria videogame e voltaria mais tarde; ao retornar, estava suado e disse estar cansado. “Falei que ia voltar. Tava a correr. Brincamos de zotho. Eram muitos! Nem sei quantos tinham” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014), disse-me Félix; e num 136

outro dia que Félix disse estar cansado e com vontade de desenhar. As crianças gostavam bastante de desenhar, e Félix, especialmente, desenhava princesas e bonecos de uma revista que fazia alusão a personagens norte-americanos. Mais uma vez, as culturas externas acabavam por permear o dia-a-dia de Félix; era difícil ver Félix desenhar algo que não fosse esses personagens, com exceção dos desenhos que realizava na escola, onde desenhava carros, como seus amigos. Quando jogavam, Félix e os meninos permaneciam por algumas horas concentrados. Era comum que quem não estivesse no turno do controle saísse para brincar fora, geralmente na construção de brinquedos de barro. As brincadeiras dos meninos revezavam-se entre videogame e estes brinquedos. As tecnologias, como o videogame, começavam a fazer parte das brincadeiras de algumas das crianças e acabavam por criar maneiras de separar quem podia brincar com as tecnologias e quem tinha acesso a elas das outras, enquanto as brincadeiras como a construção dos carrinhos de barro e zotho, por exemplo, juntavam mais crianças e o número era livre. Todos podiam brincar, não importando a idade ou a condição econômica. A questão da tecnologia acabava gerando experiência de disputa e de competição específica entre eles. A minha câmera fotográfica assumiu, as vezes, esse lugar de objeto de desejo escasso. No primeiro dia em que fui em sua casa, Félix pediu minha câmera emprestada. Junto com seus amigos, subiram no caminhão que estava parado em seu quintal e quis tirar fotos. Félix colocou Arsênio na caçamba e brincou com ele com um bidão de água, fazendo uma batucada. Ainda com a câmera em mãos, Félix quis gravar um vídeo seu subindo no coqueiro, e assim o fez. Subir no coqueiro era uma atividade solicitada às crianças; não vi ou presenciei nenhum adulto pegar coco. Félix subia com grande agilidade. Assim, foi filmado por um vizinho. Mesmo que seus primos e irmão pedissem a câmera, Félix não deixou que a tocassem. “Há de quebrar vocês” dizia ele. Apenas após conversa com os mais velhos e dizer que os mais novos poderiam usar é que permitiram que tirassem uma ou outra foto, mas ainda assim era um uso restrito e acabava por gerar brigas entre eles, como o videogame. Enquanto os meninos jogavam, Captino e Germano, oscilavam entre assistir e brincar de outras coisas. Numa dessas vezes, resolveram que brincariam de cócegas comigo. Quando os meninos passaram a correr atrás de mim, os que jogavam videogame pararam e vieram participar da brincadeira. Germano e Captino correram e se esconderam no quarto, e os meninos voltaram a jogar videogame. Quando os dois pediram para jogar, foram 137

repreendidos, novamente. Nas outras brincadeiras era permitido a eles participar. As brincadeiras de cócegas, por sua vez, eram muito comuns entre as crianças mais novas. Nos finais de semana, como não havia aulas, as crianças começavam a brincar desde cedo. Félix juntava-se com as crianças que moravam perto de sua casa e brincavam na rua. A maioria das crianças eram meninas, brincavam sem a preocupação de distinguir os gêneros. As brincadeiras eram de correr; um jogo de queimada com uma bola feita de plástico (chingufu); zotho ou tcho tcho tcho (esconde-esconde). Quando não brincava na rua em frente à casa de Félix, escolhiam alguma rua nas proximidades ou em algum quintal que fosse grande, como era o da casa de Félix. Os meninos brincaram, ainda, de corrida de pneus: um de cada lado da casa de vó Clemência segurava um pneu à frente do corpo. Quando o juiz, escolhido pelas crianças, desse a largada, deviam correr e dar a volta na casa, retornando pelo outro lado. Vencia quem chegasse primeiro. Algo que me chamou atenção foi o envolvimento de Félix com a dança. Sempre que tocava uma música, Félix sabia não apenas cantar, mas dançar. Seus primos e irmão faziam o mesmo, seguiam Félix em alguns passos. A dança é uma constante presença, fosse em casa, fosse no meio das tarefas e atividades que realizava, ou ainda nas andanças e percursos que fazíamos. Félix disse que gostaria de ser dançarino, mas que não dançava tão bem quanto seu amigo. Certa vez, referiu que, às sextas-feiras ia em uma balada, e lá dançava. Perguntei se ele entrava na balada, e ele disse que não “fico fora, a ouvir e dançar. Havemos de gingar muito”. Muitas vezes, tentou me ensinar e riu de mim; quando aprendi, disse “agora sim! Aquele dia na casa de Cacilda estava a rir de ti. Não dançavas nada! Mas agora aprendeu. Tás quase moçambicana mesmo.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Uma cena que presenciei no final de semana que dormi lá e que se repetiu durante a semana foi a de crianças brincando de sinuca em um bar. Félix mesmo jogou e só não ficou mais tempo porque não tinha 2 meticais para poder pagar a sua rodada. No bar não só havia crianças brincando, mesmo quem tomava conta naquele momento, era, também, uma criança. Não só Félix, mas outras crianças frequentavam, vez por outra, esses lugares. Os espaços do brincar misturavam-se, assim, com os dos adultos em muitas vezes. Félix gostava também de fazer dobraduras de papel, como barcos ou chapéu. Presenteou-me com uma coroa e disse “agora você é uma princesa”. Pensei que ele fazia alusão aos desenhos que gostava de copiar da revista de Enrique, seu amigo da escola. Quando me fez um chapéu, Richard comentou: “você é a cozinheira do mundo!” Carros de papelão eram feitos por Félix com frequência tanto na escola, como tarefa, como para brincar. 138

Quando decidimos montar o álbum, que ficaria como um trabalho construído para a saída de campo, Félix quis montá-lo inteiro comigo. Enquanto montávamos, Félix ia dando as coordenadas de como achava mais simples montar, ao mesmo tempo em que fazia brincadeiras e a tesoura virava um personagem que corria da cola, ou da fita adesiva. Como afirmou Rosinha, as crianças ali brincavam bastante. Ser criança, ali, era poder brincar e, como Rosinha concluiu, elas eram livres por isso. Fui compreendendo o laço íntimo entre a noção de liberdade e o brincar nas suas vidas; as brincadeiras e o lúdico foram as marcas dos dias em que passei com Félix. Quando finalizamos as idas em sua casa, Félix quis fazer o álbum juntos. As fotos escolhidas eram de momentos nossos, de imagens de carros e motos que fotografamos, dos seus amigos, de sua namorada e do seu “brada dançarino”. As fotos dos irmãos, tia e primos ele pediu para dar separado. A capa ainda não tínhamos definido; ao finalizarmos, Félix disse “Marina, já sei como quero a capa. Vai ser Marina e Félix”. Sorri como se retribuísse o presente. Félix olhou para baixo e disse “não posso pensar em você ir embora. Já quero chorar eu. Juro. Vou chorar quando fores. Sabes Marina, nunca tive uma amiga como você.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

2.5. Benito Embora tenha vindo de Virgínia e Benito o primeiro “sim” que recebi, ele acabou sendo a última criança que acompanhei no cotidiano de suas atividades. No planejamento inicial, seria a segunda; porém, com as viagens de Virgínia para a África do Sul quase mensalmente e a ausência das crianças em sua casa, acabamos por combinar uma data que fosse viável e que não atrapalharia o processo da família nem o andamento da pesquisa. Meus dias com Benito começaram em 9 de junho e estenderam-se até dia 20 de junho, data que marcou a outra viagem de Virgínia. Por serem poucos dias, os períodos ali passados foram maiores em algumas vezes, como o único fim de semana que lá passei, no qual dormi em sua casa de sexta a domingo. Benito permaneceu bastante tempo sozinho, sem que sua mãe ou irmã estivessem presentes, e isso fazia com que dormisse até mais tarde (acordava por volta das 9 horas) e que estivesse sempre a brincar com seus amigos num espaço outro que o de sua casa. A relação com Beni e sua família transcorreu com facilidade. Embora houvesse 139

os desencontros e pelo espaço de tempo, a relação e o estar junto foram intensos e produziram muito significado e conhecimento.

2.5.1 Composição familiar e relações Quando conversei com Virgínia, logo em fevereiro, ela havia me dito que em sua casa moravam apenas ela e seus dois filhos, Beni e Laila. Com as idas em sua casa, acabei conhecendo melhor sobre a história de sua família, contada pelos três. Virgínia é de origem maronga33. Seus pais nasceram em Maputo, mas tiveram uma vida conturbada por conta da guerra e por não poderem ficar juntos, pois uma era de família de camponesa e o outro de vendedor urbano. Passaram-se muitos anos até que se casassem.

Minha origem é maronga. Tem maronga de Inhambane, daqui, de Catembe. O apelido da minha mãe era “tembe”, que mostra que é de Catembe. Mas se falar changana hei de entender; mesmo o ronga daqui. Meus pais nasceram aqui em Maputo mesmo e eram namorados. Mas meu pai era filho de camponês, pobre, enquanto o pai de minha mãe tinha algum dinheiro, por trabalhar na África do Sul. Ele não aceitou que se casassem e a fez casar com outro, tiveram cinco filhos; mas ah, não deu certo. Mas meu pai era um filho de camponês que estudou, e então acabaram se casando depois, tiveram mais duas filhas, que sou eu e minha irmã, que hás de conhecer, e ficaram juntos até falecerem. Meu nome veio de uma brasileira que meu pai conheceu no trabalho; trabalhou com ele em Manhiça. Ele disse que se nascesse menina, ia dar seu nome, e prontos. Ela era minha madrinha. Me mandava sempre coisas do Brasil, mas agora já não temos mais contato (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

As questões da identidade e da origem apareceram de maneira forte com a narrativa de Virgínia: o fato de Virgínia ser maronga dificultava muitas conversas com vizinhos, principalmente os mais velhos, que não falavam português. Além disso, a relação com seu exmarido, pai de seus filhos, foi conturbada por não terem da mesma origem étnica. “Por isso que a família do pai de Beni não me aceitou. Eles são de Gaza, e queriam alguém de lá.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

Teve a apresentação e fui anelada, daí fui morar na África do Sul com meu irmão. Meus pais tinham falecido e não podia ficar sozinha. Faz uns 18 anos isso. Chamei meu marido na época, pai de Beni, e ele mudou pra lá comigo e começou a trabalhar de eletricista mecânico. Ele pediu para meu irmão para morar comigo, e mudamos para uma casa alugada. Passou um tempo, fomos 33

Sociedade do sul do país. Encontra-se principalmente na região da Cidade da Matola.

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morar com a mãe e a irmã dele numa casa que era do meu marido. As duas me faziam fazer tudo e sempre reclamavam, até que me expulsaram do lar. Arrancaram meu filho de mim. A Laila tinha seis meses e só por isso ficou comigo. Vim morar nessa casa, que era da minha mãe e eu ajudei a construir. Se minha mãe fosse viva não seria assim. Continuamos nos encontrando e por isso temos o Beni. Meus três filhos são mesmo pai, mas depois soube que ele anelou outra escondida, e eu pus um fim nisso. Não nos falamos desde então. Ele não me ajuda com nada. […] Me viro sozinha com eles (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

Virgínia estudou até a 5ª classe. A escola primária era em sua aldeia. Questionei-a sobre a aldeia, e então ela me explicou: por conta da situação de guerra, as casas eram bem próximas umas das outras, e então eram chamadas de aldeias. Mas, passado algum tempo teve que mudar, porque a escola só ia até o ensino primário. Teve que ir para uma escola fora da aldeia e foi difícil, e então ela parou os estudos. Retomou quando Beni nasceu, parando e voltando diversas vezes, mas não concluiu ainda. Falar sobre o passado era doloroso para Virgínia. Não perguntei coisas a mais, e conversamos apenas sobre o que ela espontaneamente trouxe. Teve três filhos: Edimilson, de 17 anos; Laila, que completou 12 anos durante a pesquisa, e Beni, que faria 11anos dia 24 de setembro de 2014. A relação com o filho mais velho carregava certo sentimento de distância, pois este morava com a avó paterna e os tios, na casa que era do pai. Virgínia trabalhava com vendas de produtos, os quais ia para África do Sul comprar e revendia-os na Matola; era desta atividade que tirava sua renda mensal a qual variava de acordo com as vendas. Beni era o mais novo dos três filhos. Seu nome completo era Benilton Lázaro Nuvunga. Certa vez, enquanto matabichávamos, Beni me perguntou sobre minha família e se pretendia casar e ter filhos. Após respondê-lo, perguntei “e você?”, e então Beni disse que gostaria de casar e ter três filhos: “um meninos, uma menina e um menino.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Naquele momento, percebi que era a mesma constituição familiar que a sua, e o indaguei sobre isso “igual sua família?”, e Beni disse, sorrindo, que sim. As referências familiares são presentes na vida de Beni e tem influências em seu dia-adia. Virgínia contou que morou com as crianças e o pai delas por três anos na África do Sul, durante 2005 e 2008, mas acabaram retornando para Matola quando descobriu que ele estava com outra mulher. Laila também me contou que quando eram crianças não moravam

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ali. “Moramos na África do Sul. Como gostava de morar lá! E sabia inglês. Agora já esqueci. Não voltei mais pra lá, só mamã que vai.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Ao falar sobre as viagens de sua mãe, questionei como era a rotina quando a mãe não estava. Laila disse que eles iam para a casa da avó, e lá ficavam com ela, seus tios, primos e irmão mais velho, na casa que era de seu pai. A casa ficava próxima do mercado Santos, o que, segundo Laila, deixava sua escola mais perto que para Beni. Havia tias que moravam em outros bairros, o contato com elas ocorria geralmente por telefone ou por meio de visitas em finais de semana. Beni era quem mais ia até a casa da tia, irmã mais nova de Virgínia. Já as relações com as pessoas vizinhas não pareciam intensas. Laila disse que sua mãe não tinha muitas amigas lá, e por sua mãe ser quieta e gostar de ficar dentro de casa, as pessoas se incomodam com ela. “Dizem que mamã tem desprezo. Mas não é desprezo, ela é quieta, não gosta de conversar. E ela fica muito dentro de casa, e falam que ela não gosta das pessoas aqui. Até me provocam por isso.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Certa vez, uma vizinha foi atrás de Laila e lhe bateu; a justificativa foi por Virgínia não respeitar e ter desprezo pelos outros.

Estava a brincar com minha amiga e passei na casa aqui do lado. Me perguntaram algo e eu não ouvi. Perguntei “o que?” e não me responderam, e continuei a andar. Ela veio atrás de mim e disse que não respondi, e me tacou uma pedra, mas desviei. Calei. No outro dia, estava a brincar com minha amiga, e vi que ela vinha me bater. Corri e entrei em casa. Nem falei nada pra mamã pra não se zangar. Calei. Ai da outra não teve jeito. Eu estava a brincar de costas, e ela me pegou por trás, não pude ver para correr. Me pegou nas costas. Levantei e corri. Mamã viu e perguntou, falei. Ela começou a brigar com ela e se bateram. Mamã a aleijou. Foram pra esquadra34. Não voltou a me chatear (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

Virgínia contou a mesma história, e disse que era a segunda vez que faziam isso: na primeira foram questioná-la do porquê de fazer as refeições dentro de casa, e não no quintal, como a maioria dos vizinhos.

Ah, logo entrei na minha casa e não quis saber. Disseram que tenho desprezo porque não faço o prato de comida e como lá fora, com os outros. Não gosto de comer fora, gosto de ficar dentro. Fui criada assim, desde pequena. Falam muito aqui (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

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Delegacia

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Já na segunda, foi quando atacaram Laila. Virgínia disse que as pessoas ali eram muito violentas e gostavam de falar da vida dos outros; até por isso preferia não falar com ninguém. As relações de Virgínia eram preferencialmente com as pessoas da igreja. Virgínia e Beni frequentavam a igreja Universal, e ela ia à missa quase todos os dias, nas reuniões das 6 horas, mas Laila frequentava a Católica. “Ia lá com mamã, fiz batismo e resolvi não mudar. Estou a fazer catequese e vou na missa sozinha”. O fato de Virgínia não se relacionar bem com os vizinhos era um problema: eles interpretavam como desprezo, embora Virgínia dissesse que era seu modo de ser. Não compreender changana acabava por agravar essa distância com os outros moradores – pelo fato de ser uma das primeiras áreas habitadas do bairro, havia muitos idosos que falavam apenas changana, apenas alguns eram ainda falantes de ronga. Esse distanciamento dificultava algumas relações e redes de suporte. As relações das crianças com os vizinhos, porém, eram de maior proximidade. Beni e Laila sempre brincavam com as crianças que moravam próximas de sua casa. A constituição familiar e as redes de suporte eram assim organizadas. As crianças contavam principalmente com a mãe, e esta com as pessoas da Igreja ou ainda um primo que morava no bairro, mas por estudar e trabalhar, não podiam depender de sua ajuda constante. Do mesmo modo, era difícil encontrar Virgínia conversando com vizinhas, a não serem as que iam à mesma igreja que ela frequentava, como certa vez em que Virgínia lavava roupa e duas vizinhas conversavam com ela sobre a questão do hospital e da precariedade da saúde. Ao terminarem o diálogo, uma delas ajudou a preparar o almoço para Beni enquanto Virgínia tomava banho. Embora mais restrita do que das outras famílias, também ali, os laços comunitários e familiar formavam a base da rede de suporte que dava assistência e partilhava alguns momentos com Beni e sua família, mostrando sua importância e a existência de ajudas múltiplas. Beni andava bastante pelo bairro, principalmente quando brincava com os amigos. Virgínia disse que os filhos começaram a sair sozinhos cedo. Laila foi a primeira: certa vez queria ir ao pirlimpimpim (programa infantil), mas a moça que havia combinado de ir com ela desistiu. Laila perguntou se poderia ir mesmo assim, e Virginia permitiu. Laila tinha dez anos na época. “Tem coisas que não tem pra que negar. Fui com ela até a paragem, coloquei no chapa e ela foi. Expliquei o chapa pra apanhar na volta e prontos. Ah, depois disso ela vai sempre.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO, 2014) Beni passou a ir sozinho até a casa da tia este ano, com a mesma idade que Laila tinha quando começou. 143

A escola de Laila era em outro bairro, mas tinha que ir a pé, levando cerca de 30 minutos caminhando. Seu horário de saída era às 13 horas, mas havia dias que ela tinha que voltar para a escola para realizar educação física, e então chegava em torno das 19 horas. Quando o horário se aproximava e Laila não chegava, Virginia já se inquietava. Num dos dias, Laila tinha ido ao Shoprite, atrasando a volta. Este fato desagradou Virginia, pois acabava chegando tarde e sozinha em um bairro que Virginia considerava perigoso. Beni afirmou que o perigo derivava de brigas entre pessoas de seu bairro com pessoas dos outros bairros.

Nesse bairro não há muitas brigas. Mas tem brigas entre as pessoas do outro bairro. Eles vem lutar com as pessoas daqui pra ver qual bairro é mais forte. Esse sempre ganha, eles treinam. Uma vez teve festa lá e quiseram entrar, do bairro 17. Não deixaram, impediram. Aqui se ajudam muito. (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

Contaram uma história do “team ferro” (time do ferro). No ano anterior (2013), começaram ataques entre soldados da FRELIMO e da RENAMO, quando o Acordo de Paz foi decretado como cancelado, após terem explodido a cede da RENAMO. O medo da retomada da guerra era geral, e alguns ataques isolados começaram, como foi o caso conhecido na Matola A como “team ferro”.

Ano passado, quando esse medo da guerra voltou, tiveram uns ataques. Aqui tinha um tal de team ferro, que mandavam avisos e entravam nas casas, levavam tudo. Eles entravam nas casas, comiam a comida, bebiam a água, levavam tudo. E te queimavam com óleo quente, pisavam com ferro quente. Tínhamos medo. Mas aqui no bairro não tiveram ataques: todos se juntaram. Nas ruas, fecharam com pneus, e nenhum carro passava, nem polícia; à noite, quando tinha suspeita de ataque, saiam com tambores e velas, e passavam de casa em casa e gritavam 'ninguém dorme, ninguém dorme', e nos juntávamos a eles. Mas um dia eu pensei 'se eu for, quem vai ficar em casa? Hão de roubar tudo', e ai ficamos. Trancados, sem dormir e com medo. Laila: Ah, eu nem queria ir na escola. Estudava a tarde, tinha medo de voltar às 18... Beni: Eu nem dormia. Tinha medo de me queimarem. Mas aqui ninguém entrou... Virgínia: Achávamos que era a RENAMO novamente, mas parece que eram bandidos que a polícia soltou. Depois, isso passou. Mas o medo que sentimos, e eu principalmente, era da guerra e aquela cena toda voltar... Foi por pouco (MOÇA DE BIQUE, 18 de junho de 2014).

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O medo da guerra, suas marcas deixadas e o receio de sua retomada e de novas marcas ainda apareciam por ali. As crianças tinham medo do que conheciam, e os adultos do que vivenciaram e do que sabiam que poderia acontecer. Terminamos a conversa e as crianças foram tomar banho. Virginia trouxe uma caixa com fotos para olharmos fotografias: uma delas era de Virginia em seu tempo de criança, ela ficou a olhar a foto, fixada na imagem, e com o pensamento longe. Depois, abriu um sorriso e nos contou uma história sobre o período de guerra e o ataque que quase sofreu.

Quando era pequena, eu era atleta. As escolas incentivavam o desporto naquela época, não era como agora. Eu ainda estudava, parei na 7ª classe. Tínhamos um campeonato na Matola Rio, um pouco mais pra frente assim […]. Chegamos um dia antes, treinamos. Ao fim do dia, nos mandaram pra casa e voltaríamos amanhã. Eu estava cansada, queria dormir. Mas os colegas em que estava hospedada quiseram ir numa festa. Me levaram obrigada. Fui e fiquei sentada na cadeira, quase dormindo. Tinha tambores, música e festa. Estava bem cheio mesmo. Às 4h, voltamos. No caminho, escutamos vozes e pessoas andando, mas não vimos nada. Às 7 fomos para a escola, e estava tudo vazio. E então um senhor nos disse 'vocês não souberam? Teve ataque da RENAMO ontem. Levaram todos, só vocês ficaram. Podem ir pra casa, tudo está cancelado...', e foi assim que me livrei de ter sido levada pelo exército da RENAMO. E mais tarde descobri que o lugar que me levaram era para reunir o maior número de pessoas, para não dormimos e nos protegermos (MOÇA DE BIQUE, 18 de junho de 2014).

Virginia optou por permanecer em casa ao invés de se juntar aos demais. Sua precária relação com as pessoas do bairro implicou numa maior solidão. As relações moldam formas de segurança e de pertencimento, e a fragilização desse laço pode ampliar receios, como o medo do roubo. A questão da guerra apareceu de uma maneira mais intensa: fantasma e assombros que faziam parte das pessoas, dos espaços, do bairro. Do mesmo modo que partilhavam caminhos, dividiam medos antigos e anseios ainda nos dias atuais.

2.5.2 Tarefas e responsabilidades No primeiro dia que passei lá, foi Laila quem me recebeu embora fosse horário, por volta das 8 horas, da escola. Disse que estava com dor de barriga e então ficou por lá. Virgínia fora para a Igreja e Beni também não estava: havia ido à casa de sua tia e voltaria apenas no período da tarde. 145

Laila começava a separar a louça do jantar para lavar, e então fui ajudá-la. Após limparmos a louça, Laila foi limpar a parte interna da casa. Sua casa era constituída de dois quartos e uma sala, que dividia espaço com a cozinha; a casa de banho ficava na parte externa. Embora houvesse dois quartos, todos dormiam em um só. “Não tem lâmpada esse” foi o que Laila me contou. Quando acabou de varrer dentro, Laila falou que “agora só temos que preparar o matabicho e acabamos. Não há muito o que fazer”. Enquanto fomos comprar pão para matabichar, Laila e eu conversamos sobre as tarefas realizadas. Para ela, havia uma diferença entre o que ela realizava e o que sua amiga, que morava numa casa vizinha, era obrigada a fazer: “algumas coisas podes considerar abuso, mana Marina” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

Laila: Mana Marina, agora vais voltar e discutir lá no Brasil tudo que viste aqui? Marina: Isso! acho que não tudo porque é muita coisa, mas algumas coisas sim... Laila: Quais? Marina: Duas me chamaram atenção: todas as atividades que vocês fazem aqui e as crianças andarem sozinhas desde pequenas. É difícil eu ver isso onde eu moro. Laila: Você acha que é abuso, Mana Marina? Marina: O que? Laila: Os trabalhos que havemos de fazer? Marina: ah, acho que não... Laila: Sabes Mana Marina, mas tem coisas que às vezes pode se considerar abuso. Aqui nessa zona, que é onde conheço, tem muito. Tem criança fazendo trabalho que não é de criança. Tá a ver essa vizinha? Lá são 3 mulheres que moram, que se apresentaram e cada dia é dia de uma fazer tudo em casa: lavar, cozinhar e assim vai. A minha amiga mora lá, e a mãe tá grávida. No dia que é pra mãe fazer as coisas, ela não faz, e manda minha amiga fazer, mesmo que ela não sabe cozinhar, aprende na hora. Tá a ver que tem uma banca aqui? Minha amiga que toma conta, aí quando a mãe sai, ela brinca enquanto toma conta, mas é só avistar a mãe voltar que corre. Como lhe bate! Ela é até pequena, nem parece que tem onze anos. Ela nem tava a estudar. A mãe casou e acho que eles não ligam pra isso. Tiraram ela da escola e só voltou agora. E tá na primeira classe, porque parou de estudar há muito tempo. Era pra estar comigo! (Laila estava na 8ª classe). Marina: É, isso já não é normal... Laila: É abuso! (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

A conversa sobre a vizinha voltou algumas vezes: umas por Beni, outras por Laila e algumas pelos amigos de Beni. A questão era presente em seus cotidianos e marcava uma distinção entre as tarefas que elas mesmas realizavam: era tida como abuso. 146

Voltamos e preparamos matabicho. Beni chegou por volta das 10h40min, e então contou o que havia feito na casa da tia; dentre as coisas, ajudou a varrer fora e a lavar pratos. Laila disse que “aqui ele nem há de levar. Quem faz tudo é mamã e eu ajudo.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Enquanto Beni brincava, Laila passava seu uniforme, que sua mãe havia lavado. As roupas eram lavadas por Virgínia. Por volta das 13h, Beni foi para a escola e eu fui com ele. Nos dias seguintes, com Laila na escola, era Virgínia quem lavava a louça e varria a casa. Numa das vezes que a ajudava, um dos meninos que moravam perto de sua casa apareceram e passaram e gritar “mulungu, mulungu” para mim. Virginia incomodou-se e deu uma bronca nos meninos, dizendo “quem chamou de mulungu foi você? Você não sabe que é mana Marina? Você ia gostar se te chamassem de negro? Vão brincar em outro lugar.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). O menino respondeu que “não” e então foram brincar em outro lugar. Essa havia sido a primeira vez que alguém respondeu desta forma, chamando o outro por outra cor (das outras vezes me diziam que eu era pessoa como todas elas). O racismo passava, por vezes, de forma quase sutil, mas que não era deixado de lado. O colonialismo, dominação e suas consequências tomavam forma nas discussões da cor da pele. Sempre que chegava, por volta das 7h40 às 8h, Beni estava dormindo e Virgínia realizando alguma tarefa: ou lavava a roupa, ou lavava a louça, ou anda limpava a casa de banho. Quando Beni acordava, por volta das 9h às 9h30, ele pegava a vassoura e varria uma parte do quintal. Segundo ele “essa parte é a minha, a da mamã é a do outro lado”, referindose ao fato de dividir o quintal para poder varrer. Quando íamos matabichar, era Beni quem ia comprar pão, e então eu o acompanhava. A banca era perto de sua casa, e não andávamos muito. No caminho, muitas conversas surgiam, dentre elas, uma me chamou atenção: era sobre as manifestações ocorridas no Brasil no período da Copa do Mundo. “Mana Marina, tem muitos bandidos no Brasil né? Tava a ver na televisão com mamã e tá tendo muita briga no Brasil. Você viu?” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Conversamos sobre o que estava acontecendo no Brasil e sobre a repressão policial. Beni disse que “havia de ver tudo na televisão. Como brigam! Ah não gosto eu”. Essa questão apareceu outras vezes, com outras crianças. A televisão traz notícias de fora, bem como as novelas, e acaba por criar uma imagem para as crianças e para os moradores dali – que, muitas vezes, pode não ser a imagem do real, mas acaba por fazer parte do imaginário ali. 147

Ao retornarmos, Virgínia perguntou se eu gostava de ovo, e então fritou um para nós. Contou-me que Laila havia aprendido a fritar ovo sozinha, sem que ela ensinasse, num dia em que estava sozinha em casa, mas que só soube algum tempo depois. Falamos, então, sobre as tarefas que realizava.

Laila começou muito cedo a me ajudar. Com 7 varria fora. Mas não lavava loiça, porque eu não gostava de comer onde criança lavava, então eu não deixava. Mas aqui em frente, ali (e apontou um terreno) tinha uma casa que Laila gostava de brincar, e ela via as amigas fazendo e vinha pedir pra lavar, mas eu não deixava. A mãe veio ter comigo “ensina ela”, e eu falei que na minha casa não ia fazer, mas se queria ensinar na dela, tudo bem. E aí Laila foi fazendo. E cozinhar ela ainda não sabe, mas temperar saber muito bem. Matar galinha ela tem medo, eu também tenho, mas corta, faz tudo. E o primeiro ovo fritou sozinha. Vim saber um dia que fui fritar pra ela, e ela disse “eu sei fazer” e me contou (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

Por mais que Virgínia não quisesse ensinar, era permitido a sua vizinha fazê-lo, desde que fosse em sua casa, e assim o fez. As relações com as pessoas vizinhas acabavam por trazer implicações que, mesmo não sendo da ordem de como Virgínia achava que deveria ser, eram autorizadas, aceitas e validadas. A criação da criança e a vida eram tidas em comunidade. A influência do externo permeava o modo como as crianças, e principalmente Laila, lidavam com isso. Para ela, era “normal ajudar mamã. Ela não pode fazer tudo sozinha, tem que vender suas coisas e viajar.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Desde cedo, era Laila quem ajudava Virgínia; Beni não gostava de ajudar e, segundo as duas “esse ai só foge. Prefere ir brincar.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). E o brincar era válido ao Beni, e pareceu-me que assim continuaria por algum tempo. Num dos dias em que matabichávamos, Virgínia disse algo sobre “essas crianças”, e então questionei Beni sobre o que ele achava. Quando a questão era “você é criança?”, Beni respondeu que não, e insistiu nessa resposta. “Não sou criança. Sou adolescente.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Tentei aprofundar a questão, e Beni disse que criança era aquela que tinha até 9 anos, e por ele ter 10 já era adolescente; depois dos 18 anos já era adulto. Algum tempo depois, seus amigos surgiram e Beni contou que eu achava que ele era criança. Os meninos, todos da mesma faixa etária, riram e disseram que “já somos grandes, pá!” Virgínia me olhou e disse que “se é grande, pode fazer coisa de gente grande

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já.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Os meninos se olharam e foram jogar bola. Virgínia disse que Beni achava que era grande, mas ainda era criança. Beni nos olhou e discordou com a cabeça, e então foi brincar. Perguntei se quando ele fosse adulto continuaria brincando, e ele disse que não sabia, mas que agora ia brincar, pois ainda não era adulto. Rimos e fui observá-lo jogar bola. Principalmente quando matabichávamos, Beni gostava de conversar comigo. Após aquecer a água, sentávamos à mesa e então ele puxava alguns assuntos: sua família, a escola, o brincar. Beni conversava sobre qualquer assunto e sem que tivesse que dizer sobre o que queria falar. Certa vez, numa dessas conversas, Beni me disse que seu amigo Léo era o que mais trabalhava. Questionei o porquê, e então Beni disse “tem quintal grande na casa dele!”. Entendi como sendo Léo o responsável por varrê-lo, e Beni me confirmou que sim. “E o que mais Leo faz?”, indaguei. “Só”, respondeu Beni. Varrer o quintal era a atividade que Beni realizava, e era sua referência também. O modo como as crianças vão criando referenciais a partir dos seus modos de vida foi bastante presente com Beni, fosse com a família, com a profissão futura e, naquele momento, com as atividades realizadas. Os dias passados foram assim. Como Virgínia e Laila colocaram diversas vezes, Beni “fugia” para não ter que ajudar, e ia brincar. Beni brincava bastante e o brincar era essencial para ele, por mais que achasse que já era “grande” – o que era medido por idade, num intuito de separar os que tinham uma idade inferior aos seus próprios amigos, onde a faixa etária variava entre 10 e 14 anos. Beni tinha suas atividades, brincava, “fugia”, voltava a brincar, ia à escola, e então brincava de novo. Essa foi a percepção do dia-a-dia ali.

2.5.3 A cultura do brincar e o cultivo do riso No primeiro dia que passei lá, Beni não estava. Laila pediu ajuda para lavar sua cabeça e, enquanto fazíamos isso, cinco amigas suas apareceram e ficamos a conversar no quintal. Algumas crianças foram se aproximando e então passaram a brincar num monte de areia, que pertencia à reforma da casa de Virgínia. Enquanto as crianças brincavam, e Laila se integrou na brincadeira, ouvimos um barulho de batidas bem alto. “Estão a bater em criança”, gritaram as outras enquanto corriam. Amontoadas, as crianças se espremiam para ver aquela cena.

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Algumas riam, outras diziam ter pena. Ao fim, todos correram, ameaçadas de apanharem também. O brincar foi interrompido por uma vizinha que batia em sua filha; porém, o que me prendeu a atenção foi o fato das crianças quererem assistir e rirem da situação. Aquilo me fez pensar nas brincadeiras que as próprias crianças têm entre si, de lutas e brigas. Naquela mesma semana, numa conversa com Beni e Léo, eles comentaram que “aqui se bate muito” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Conversamos sobre o tema. Léo e Beni entendiam que “aqui é assim mesmo. Moçambique é assim. As crianças veem os pais brigando, lutando, e aí faz igual. Aqui é assim” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). O limiar entre algumas brincadeiras e a violência pode ser tênue, pode misturar-se como expressão da linguagem do mundo dos adultos, permeando o universo infantil. Numa conversa durante um matabicho, Beni me contou sobre uma briga no dia anterior. Enquanto brincava com seus amigos, um deles não quis devolver a bicicleta e então começaram a brigar. Este amigo saiu correndo e chamou a mãe, que perseguiu Beni e os outros; eles se esconderam até que a mãe do amigo voltasse para casa. Depois, o amigo voltou com um rapaz de 18 anos que, segundo os meninos, “não sabe o que faz esse ai e não fala, e ai bate.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Uma terceira senhora ainda apareceu para bater nas crianças, que conseguiram fugir.

Pai chamou Bethinho pra nos bater. Bate muito ele. Corremos. Nos pegaram e começaram a bater em Léo. Não podia deixar meu amigo sozinho. Batemos. Pai correu e voltou com uma senhora para nos bater. Corremos até o mercado Santos. Só eu e Leo, os outros são traidores: falaram onde estávamos escondidos. Voltei pra casa e a porta estava fechada, e só tinha um balde de água fora. Fui tomar banho e mãe abriu a porta (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

Beni disse que não mais brincaria com Pai, seu amigo; porém, no dia seguinte, ele estava lá, enquanto Beni me contava a história, e voltaram a brincar de bicicleta juntos. A bicicleta era do irmão mais velho de Leo, que emprestava para os meninos poderem brincar. Todas as manhãs, antes de irem para a escola, Beni, Edi, Pai, Paito, Leo, Feliz e Luiz se juntavam em frente a porta de Beni para brincar em seu quintal, dando voltas pela casa, ou iam até a casa de Leo e brincavam por lá (isso acontecia quando Leo não aparecia na porta de Beni, muitas vezes por estar tomando conta da banca de sua mãe).

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Os meninos passavam horas brincando de bicicleta: revezavam-se a cada duas voltas completas dadas ao redor da casa de Beni, e iam mudando os jeitos de pedalar: em pé, com dois na bicicleta, sentados, com ambas as pernas em um único lado. E conforme iam pedalando, mais crianças se juntavam para vê-los brincar; porém, só era permitido aos meninos, as meninas permaneciam apenas a observar. Enquanto observavam, elas também iam brincando: faziam montes de areia, brincavam de zotho, e queriam tirar fotos. Algumas crianças menores, entre 3 e 5 anos, também se aproximaram. Um dos meninos, Paulinho, de 3 anos, permanecia distante e corria quando eu chegava perto, até que um dia aproximou-se de mim e sentou no meu colo. As crianças riram e disseram que ele tinha medo de mim. Perguntei o porquê e ele disse “chipoco” – que significa fantasma em changana. Expliquei para ele que não era fantasma, era apenas minha pele que tinha cor branca, mas as crianças disseram que ele não entendia português, apenas changana, e então traduziram para ele. A partir deste dia, Paulinho sempre ia à casa de Beni e sentava em meu colo. Percebi que era difícil Beni brincar com meninas. Por mais que as meninas estivessem por perto e pedissem para brincar, não lhes era permitido pelos meninos. “Vão brincar vocês lá”, dizia Beni. E assim as meninas faziam: brincavam de pular corda ou de brincadeiras de roda entre elas. Outra brincadeira que Beni e seus amigos gostavam era de jogar bola. Ele tinha uma bola de futebol vermelha, que ganhou do pai. O espaço lateral da casa servia como campo para os meninos, que se dividiam em duplas e assim formavam dois times; quando não havia número suficiente, era um contra um; ao fazer 5 gols, o perdedor saia e entrava outro menino. Eu permanecia observando, junto com uma menina. Ela me perguntou se eu jogava futebol, e eu disse que “às vezes, mas não sei jogar direito. Sou ruim.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Ela riu e disse que não jogava, “sou menina, não posso jogar futebol. É coisa de menino.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Falei para ela que meninas também podiam jogar, e que não tinha brincadeiras de meninas e de meninos; ela continuou afirmando que futebol era de menino e por isso não jogava, enquanto observava os meninos jogar. Quando os meninos saíram e deixaram a bola, ela foi chutar e pediu para brincar com ela. O futebol não era permitido, no momento anterior, por ter meninos jogando, mas depois passou a ser. As distinções entre as brincadeiras de gênero eram maiores entre essas crianças. Num dos dias em que Leo não apareceu, Beni pegou sua bola e fomos até a casa de Leo. No caminho, encontramos seus amigos que nos acompanharam. Leo tinha 3 vizinhos 151

pequenos, que de início me estranharam, assim como Paulinho, mas que depois se integraram comigo e passamos a jogar bola, enquanto os mais velhos tiravam fotos e viam a moto do irmão mais velho de Leo. Algumas crianças menores tinham receio de mim, e muitas associavam minha imagem a um fantasma – acredito que pela cor. Conforme ia me aproximando, as crianças iam diminuindo essa distância, mas que só era posta ao fim através do brincar e de algumas brincadeiras. O lúdico permitia não só a expressividade do ser criança, mas como o meu fazer parte ali. Beni tinha dois carrinhos, os quais sua mãe comprou há algum tempo. Geralmente, Beni deixava-os guardado dentro de sua casa, por medo de roubarem, mas costumava brincar com eles no quintal. Montava uma pista sob a areia e fazia um circuito junto com Leo ou Pai, seus amigos, e então competiam: uma corrida entre dois carros e quem não saísse da pista e conseguisse cruzar a linha ganhava. Quando terminavam de brincar, Beni deixava os carrinhos na entrada de sua casa, e então Maló e Paulinho aproximavam-se e brincavam com eles. Embora ambos brincassem de carrinho, não brincavam juntos – a diferença de idade era um fator de separação naquele contexto específico. Laila já não brincava tanto. Segundo ela, tinha muitas coisas a fazer, e preferia dormir ou assistir televisão. Quando assistia, gostava de ver novelas e bonecos – mas tinha preferências pela novela “A Patroa” e “Rebeldes”. Beni assistia televisão pouco antes de dormir, pois preferia brincar a assistir televisão. Aos finais de semana, Laila juntava-se com umas amigas e ensaiavam coreografias de dança. “Ensaiamos com a mãe de uma nossa amiga. Havemos de ir no pirlimpimpim apresentar. Já fomos uma vez, agora temos que esperar nos chamarem de novo. Como anima!” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Este programa de televisão é visto por muitas das crianças, e foi comentado por muitas delas também. Quando estava lá, tentamos ir, mas não conseguimos porque Virgínia não tinha dinheiro para que as crianças pudessem ir até a cidade. Beni, diferente de Laila, não dançava tanto. Dizia ter vergonha, mas já havia ensaiado com um grupo de meninos. Assim como Laila e suas amigas, eles se apresentariam no pirlimpimpim, mas não chegaram a ir ao programa. Seus amigos fizeram alguns passos de dança para me mostrar, num momento específico em que queriam que filmasse. Certa vez Beni pediu para gravar seus amigos dando saltos, como se fossem cambalhotas e chutes no ar. As crianças se organizaram em filas e assim filmaram. Quando a bateria da câmera acabou, elas deixaram a brincadeira de lado e foram jogar futebol, e não 152

retomaram em demais dias. O futebol e a bicicleta eram mais presentes que brincar de saltos e pinos, como no caso de Januar e Félix, por exemplo. A brincadeira também estava muito presente na escola. Os professores de Beni costumavam faltar muito, deixando espaços vagos que as crianças acabavam utilizando para brincarem. Na escola, a cena era: meninas brincando de roda ou de pular corda, e meninos de correr, de futebol e de luta. Raras vezes se juntavam e brincavam juntos, mas não deixavam de brincar. Beni costumava brincar até às 20 horas, e não passava deste horário nem aos finais de semana, pois Virgínia considerava ser perigoso, a não ser que brincasse na frente de sua casa. A questão de não ter um contato maior com os vizinhos acabava aparecendo também na preocupação do horário de brincar de Beni. O espaço do brincar era amplo no dia-a-dia de Beni, e não havia diferenças entre os dias de semana ou finais de semana – com exceção de não ter que ir para a escola, em que Beni continuava a brincar sem ser interrompido. Brincar era parte da maior parte dos seus dias. A despedida com Beni e sua família foi mais delicada. A entrega do álbum fez Virginia, Laila e Beni sorrirem e lágrimas esconderem, e a escolha das fotos mostrava a relação que eles tem: fotos deles, de sua família dentro dos espaços da casa, e apenas de um ou outro amigo num momento de brincadeiras.

BRINCAR: A ESSÊNCIA DO SER CRIANÇA

O brincar é um modo de habitar o mundo. Luiz Carlos Garrocho, 2002.

As narrativas trazem suas singularidades, mas partilham de momentos comuns. As tarefas surgiam, nos contextos vivenciados, como parte do aprendizado que integram uma cultura que visa a formação das crianças em pessoas que, futuramente, cuidariam de si e de sua família. As atividades que as crianças realizavam tinham a premissa de ajuda e do cuidado, principalmente com os mais velhos. Numa passagem do livro “O menino negro”, o senegalês Camara Laye (2013) narra relações existentes entre adultos e crianças e os laços entre as responsabilidades e as brincadeiras, que podem ser percebidos nas passagens a seguir. 153

Meus amigos e eu escalávamos a escada que levava até o alto e com o estilingue caçávamos os pássaros, às vezes os macacos que vinham saquear os campos. Pelo menos era essa a nossa missão, e a cumpríamos sem reclamar, bem mais por prazer que por obrigação; mas de vez em quando, envolvidos em outras brincaeiras, também esquecíamos o motivo pelo qual estávamos ali, e senão para mim, pelos menos para meus amiguinhos a coisa não se passava sem problemas […]; assim, devidamente esclarecidos, ficávamos de olhos nas colheitas, ainda que fizéssemos confidências apaixonantes, que os ouvidos dos adultos não deviam ouvir […] (LAYE, 2013, p. 42).

Os espaços das tarefas e responsabilidades misturavam-se com o do brincar, com as brincadeiras e com o faz-de-conta que a imaginação e a criatividade traziam à tona. Adelaide, Januar, Gina, Félix e Beni, ao realizarem suas tarefas, encontravam no brincar o descanso necessário e a vontade de finalizar e, segundo Rosinha (tia de Félix), “serem livres para correr por ai”.

A trégua se prolongava até as duas da tarde, e os homens a passavam dormindo à sombra das árvores ou afiando as foices. Quanto a nós, incansáveis, brincávamos, íamos montar armadilhas; fazíamos uma barulheira, como era nosso costume, mas evitávamos assobiar, pois não se deve assobiar nem apanhar lenha morta durante todo o tempo que dura a colheita; são coisas que atraem desgraça para o campo. (LAYE, 2013, p. 53)

As crianças possuíam e desenvolviam suas atividades, fossem domésticas ou comunitárias, mas exerciam também àquela que lhes era garantida por direito: o brincar. Adelaide, Januar, Gina, Félix e Beni, nas inúmeras idas em suas casas e momentos vivenciados na comunidade, deixavam à mostra suas alegrias e ansiedades para poderem brincar, fosse entre as tarefas, fosse em tempo exclusivo, e para poderem estar entre as crianças. Maria Amélia Pereira, no projeto “movimentos a favor da infância” (2013), coloca-nos o brincar como a linguagem universal das crianças e de todo ser humano. As diversas formas de brincar fornecem o exercício criativo à criança que constrói-se a si, desenhando suas experiências fundamentais. Pereira considera o brincar não apenas como maneira de se expressar da criança, mas como modo de existir e de atuar no mundo. É uma questão vital e de direito inalienável.

E por que brincar? Porque brincar é a língua das crianças. Simplesmente isso. É a língua universal de todo ser humano que se inicia nesse planeta. As crianças tem essa capacidade extraordinária 154

de se apropriar da vida delas próprias e se adaptar ao local que elas vivem de uma forma diferente da do adulto. Uma forma onde elas estão inteiras, onde elas vivem o dia-a-dia no aqui e no agora, com muita alegria. Brincar é a raiz da alegria para a humanidade. E se a gente não permite que as crianças brinquem a gente está amortecendo a força de vida do ser humano e do nosso planeta terra. Por isso eu digo o seguinte: que não é uma luta. É a questão de direito humano. É uma questão de dar a criança possibilidade de ser (PEREIRA, 2013, vídeo). O brincar acontece no aqui e no agora, no momento presente em que a criança o realiza. É um ato que se cumpre e se explica por si só, criando espaços e tempos próprios (ABRAMOWICK, 2011; PEREIRA, 2013).

É entendido como ação voluntária do ser

criança, cuja essência está no “exercício da liberdade e a finalidade esgota-se em si mesma” (CRUZ, 2005, p.119).

A maneira brincante de se apropriar do mundo e conhecer a si próprio não pertence ao sistema da lógica, presente na linearidade das programações elaboradas para um espaço seriado por idade cronológica. Ela pertence a uma inteligência interna, não lógica e qualquer tentativa de torná-la externa no papel e, em programas detalhados, se transforma imediatamente numa rotina vazia, sem significado expressivo e representativo (CASA REDONDA, on line). Pelo brincar, as crianças descobrem outros significados que compartilham e têm a oportunidade de criar e recriar, transformar e intepretar o mundo ao qual integram e participam, sejam os universos infantis ou dos adultos; criam laços e espaços de um mundo ao qual passam a não só fazer parte, mas pertencer. Finco e Oliveira (2011) defendem que as crianças, nas brincadeiras e nos espaços do brincar, vão se constituindo como sujeito lúdico, que passa a ressignificar seu brincar, suas experiências culturais e suas relações sociais. A brincadeira é concebida, ao mesmo tempo, como fato da cultura e como espaço de construção das práticas sociais e culturais infantis; é pelo lúdico que se permite as interações sociais entre as crianças e as práticas de sociabilidade entre pares (BORBA, 2007, p.42). Sarmento (2002; 2005) destaca que o brincar, visto como processo construído principalmente através da partilha e da ação coletiva, constitui-se como uma atividade que propicia a aprendizagem da sociabilidade e um dos elementos das culturas infantis. Para Delalande (2001), é brincando juntas que as crianças constroem e compartilham significações, gestos, sentimentos, valores e regras que passam a pertencer aos seus mundos. 155

É brincando que ela desenha no seu espaço vital ritmos que vão afirmando sua singularidade. É neste exato momento que o Brincar cumpre sua função transcendente, ordenando os elementos singulares em um espaço que se liberta do cotidiano e, suspendendo o tempo, cria outra realidade. Esse corpo que brinca carrega o mistério da espontaneidade e naturalidade como linguagem humana de origem. O Brincar é o território da Alegria onde a ação da alma é também a ação do corpo e vice versa. O conhecimento que vem da infância é considerado o mais importante porque pertence à linguagem do sensível onde a vida, pulsando em liberdade, abre caminho para o imprevisível encontro consigo mesmo, com o outro e com seu entorno (CASA REDONDA, on line). As experiências vividas pelas crianças nos seus espaços de significação e pertencimento, como os familiares e escolares, com suas normas e valores próprios de organização e de funcionamento, reforçados por um espaço de criação conjunta e sentimento de partilha geram a necessidade de criar e manter um “espaço interativo comum e de brincar juntas, que as crianças instituem sua própria ordem social.” (FERREIRA, 2004, p. 48-49). Silva (2012) acredita que é na brincadeira que a criança reconstrói os elementos da realidade e compreende o seu entorno através de uma lógica própria. Para o autor, é durante o brincar que a criança formula as hipóteses para a compreensão das pessoas e da realidade a qual interagem, com seus problemas e seus encantos. As crianças vão, “num espaço à margem da vida comum” (SILVA, 2012, p. 118), fazendo uso do brincar para compreender sua realidade, mudando e transformando as situações que vivenciam. Angela Nunes, em um trabalho com as crianças A‟uwe-xavante, traz para a reflexão os modos como são organizados o dia-a-dia das crianças na aldeia e como o cotidiano, com suas regras e símbolos particulares, que passam a pertencer e incorporar os mundos infantis de acordo com os valores culturais e sociais em que elas vivenciam e partilham: andam em pares, não importa a idade que tenham as crianças, observam e partilham entre si seus modos de pensar, agir, habilidades, invenções, medos, descobertas. Iam aos lugares que lhe convinham, ouviam as conversas e olhavam o que ocorria (NUNES, 2011, p. 347). Com Adelaide, Januar, Gina, Félix e Beni constatou-se situações semelhantes, no qual os relacionamentos entre elas eram diferente dos adultos, mas nem por isso deixavam de seguir regras: embora não estabelecidas verbalmente, iam identificando, abordando e vivenciando-as no âmbito privado e no público, na comunidade e no pessoal, obtendo um conhecimento a partir de suas vivências e experiências sobre a comunidade a qual pertencem e os indivíduos que ali vivem 156

e que a compõem (BORBA, 2007; NUNES, 2011). Era através do brincar que as crianças iam explorando e se apropriando não apenas dos valores e dos significados, mas das suas simbologias, de seus espaços e de seus modos de vir a ser, dos seus mundos que as permeiam e dos quais participam, assumindo formas de experimentar o ser criança que lhes é atribuído.

Cada sociedade tem códigos através do qual expressa sentimentos, preferência por cores ou sons, gestos, sentidos, modos de vestir ou cortar o cabelo, de se pintar e ornamentar, de andar ou dançar... sempre em estreita relação com o corpo e manifestando-se simbolicamente através deste (NUNES, 2011, p. 356). Nos mais diversos espaços, sociedades e culturas, o que permite à criança o estar num mundo outro é a possibilidade para o brincar. Em estudos que trazem as crianças em situação de geurras, o brincar surge como uma fuga de uma realidade dura para um mundo de imaginação e criatividade na qual brincar faz parte e cria modos de poder ser (SARMENTO, 2002). Sarmento afirma que é nessa […] forma de conseguir criar um mundo outro, nas condições de mais dura adversidade, através do jogo e da ficção de uma existência onde até o horror aparece transmudado em projecção imaginária de uma realidade alternativa (SARMENTO, 2002, p. 1). As músicas e brincadeiras de luta, no contexto das cinco narrativas aqui descritas, ganham forma e contorno nas situações cotidianas e no imaginário, que possibilitam diversas formas do viver imaginário e do real, no qual o mundo adulto permanece nos universos infantis com a força do presente. Os espaços também integram o leque de representações das brincadeiras das crianças. Coelho (2007), ao investigar os espaços vivenciados nas brincadeiras das crianças que moram em favelas, aponta para a construção de identidade da criança em relação ao espaço ao qual vive, da qual o brincar é parte fundamental.

A experiência da brincadeira guarda, assim, um sentido de domínio de espaço, fazendo com que a criança conheça melhor ela mesma, e a possibilidade de desenvolver sua autoestima e estabilidade emocional. O espaço, como um dos agentes construtores, contribui nesse processo com as diversas possibilidades de apropriação vividas em brincadeiras, e que são despertadas no imaginário infantil. Criança e 157

espaço unem-se no brincar para a construção de suas identidades (COELHO, 2007, p. 178). Com este capítulo e suas narrativas, pode-se constatar que as crianças, através do brincar, não só exercem seu direito, como criam sentidos e seus modos de ser e de estar no mundo. As brincadeiras, sejam as de luta, as com chingufu, carros e bonecos de barro e as cirandas, mostram-nos a apropriação das crianças e a interação com a espontaneidade, criatividade, uso da imaginação e do faz-de-conta. É através da brincadeira e do brincar que a socialização vai se constituindo e as dinâmicas que a permeiam passam a pertencer a criança. O brincar e o riso se fazem presentes o tempo todo na vida das crianças, imaginando, fantasiando e agindo sobre seus mundos. A infância é vivenciada a partir dos limites entre as “coisas de criança” e o mundo dos adultos. O lúdico é o mecanismo de resistência mais importante encontrado pelas crianças para se relacionarem com os espaços adultizados que são criados para elas, nos quais prevalece uma esteriotipização do que seja infância (BURNIER, 2007, p. 3). A criança é um ser que se desenvolve porque brinca e brinca porque se desenvolve, partilha, pertence, constrói e constitui. A necessidade que temos nos dias atuais de validar o brincar como parte significante dos direitos das crianças é a necessidade de, segundo Pereira (2013, on line), “afirmar que o brincar é uma necessidade fruto de uma sociedade que esqueceu de si própria. Esqueceu do humano que nós somos. Criança, natureza e alegria é a soma da saúde física, emocional, mental, espiritual do ser humano”. Compreender as brincadeiras e o brincar como parte inerente do ser criança permite a ampliação do olhar para a infância e, consequentemente, a importância de se considerar todos os aspectos que circundam e valorizam seus meios e espaços, culturas e sociedade, no qual a redescoberta dos traços das crianças e da própria infância, marcados principalmente pelo brincar, nos permite a possibilidade de experimentar um mundo “infinitamente mais pacífico.” (SARMENTO, 2002, p. 16-17).

158

CAPÍTULO 3 – ESCOLA: UMA QUESTÃO QUE SE REPROPÕE

A dimensão da escola na vida das crianças com as quais trabalhei em Matola, assume grande importância no contexto de sua formação, socialização, experiência de vida, mesmo para compreender as dimensões que o brincar e a ludicidade, de um lado e, as suas interfaces com a responsabilidades que possuem. Assim retomo elemento fundamentais da educação em Moçambique a fim de criar uma moldura histórica mais ampla às suas experiências pessoais. A educação carrega ainda marcas do pensamento autoritário instituído desde a colonização portuguesa. Durante a época colonial, era um privilégio de poucos, destinada apenas aos colonos e aos filhos de colonos, e, numa segunda fase, aos assimilados 35. Para as crianças moçambicanas, e africanas, havia poucas escolas, sendo estas regidas, em sua maioria, pelas missões católicas. O entendimento era que uma estratégia que retardava a entrada delas nas salas e na escola em si havia sido criada: havia sido imposto o limite para a criança de que a idade máxima para entrar na escola primária e continuar cursando-a era de até 13 anos de idade, sendo obrigatório os exames de adaptação para continuação dos estudos, e uso obrigatório da língua portuguesa nas formas de ensino (SELIMANE, 2012). O sistema de ensino moçambicano, bem como os dos demais países do continente, foi se modificando, mas não deixou de sofrer influências dos processos educacionais europeus e norte-americano, principalmente no que diz respeito aos sistemas de organização do ensino. A escola era organizada em dois currículos distintos: um que atendia as elites e formava os filhos vindos da burguesia (elite formada por uma minoria branca, filhos de portugueses), com pretensão de continuidade de ensino, como as universidades, e um outro que atendia as massas populares e os nativos, que eram destinados a formação mais generalizada. Para Basílio (2010, p. 97), tais formas de organização tiveram repercursão extensiva ao continente, sobretudo para a África do Sul e Moçambique, o que, segundo o autor, “garantiu a reprodução das diferenças ou desigualdades escolares e culturais, no sentido de que alguns são formados para manter a continuidade à classe burguesa e outros são formados para o trabalho assalariado e atividades socioeconômicas subalternas”. Do mesmo modo, além da separação, havia a questão da discriminação racial muito presente neste processo, conforme trecho destacado. É neste período que a educação começa a ter um cunho rácico e marginalizante: os chamados povos primitivos deviam ser civilizados sim, 35

Conforme discutido no capítulo 1 desta dissertação

159

mas lentamente e a sua educação devia, sobretudo, estar virada para a formação em trabalhos manuais. Além disso, esta educação devia estar em harmonia com os usos e costumes, assim como com o grau de desenvolvimento intelectual e moral do povo indígena... tendo em conta que as condições climáticas (calor, clima inóspito) impedem que os europeus possam entregar-se ao trabalho físico, os indígenas, mais habituados ao clima, podem ser educados só na medida e na exigência do trabalho muscular. O liberalismo e a igualidade só se aplicam como princípios para os colonos brancos. Os negros, esses podiam continuar oprimidos (CASTIANO, NGOENHA, BERTHOUD, 2005, p. 14).

Logo após a independência, Moçambique, seguindo o fluxo dos demais países africanos, iniciou o projeto da reconstrução nacional, pautado na organização das instituições políticas do Estado e de sistemas educacionais que visassem a reconstrução do território e simbologia nacional. Entre as demandas colocadas encontrava-se a organização da escola com conteúdos africanos, capaz de resgatar sua história, cultura e sociedades, ampliando o conhecimento sobre o país e fazendo parte da construção da nova identidade moçambicana (BASÍLIO, 2010). A criança deveria estar na escola e, neste entendimento, a escola tornavase, assim, “uma das instituições decisivas de construção da moçambicaneidade fundada na igualdade dos direitos e na formação para a cidadania e para o trabalho.” (BASÍLIO, 2010, p. 94). Com o período conturbado de guerra civil (1976-1992), a educação passou novamente por uma reforma, na qual notou-se uma incapacidade do Estado em garantir o acesso a todas as crianças à educação, além das faltas, reprovações e desistências de um número significativo de crianças (CASTIANO, NGOENHA, BERTHOUD, 2005). Castiano, Ngoenha e Berthoud (2005) sugerem que as escolas e a organização do ensino deveriam passar pela africanização ou modernização da educação, na qual há o entendimento de que as escolas são capazes de transformar cultura local em conhecimento e, mais do que isso, que o papel da escola na formação da identidade nacional no pós-independência e pós-guerra civil deve ser resgatado. O objetivo traçado pelo Governo 36 foi (e ainda permanece), como a garantia do acesso e a melhoria na educação como plano nacional, com qualidade no ensino, na qual há um entendimento que a educação é a melhor arma para o desenvolvimento humano (MAZULA, 2005; BASÍLIO, 2010) e, segundo Castiano (2005), é importante fazer uso dos saberes locais como forma de resgatar não só essa memória, mas como integrar as crianças no processo de ensino e educação ao qual fazem parte.

36

Plano de Governo da FRELIMO.

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As narrativas são ainda utilizadas neste capítulo, compreendidas como um elemento central tanto do estudo de campo quanto como método de escrita e análise a fim de reconstruir as experiências e observações realizadas no espaço da Escola Primária Completa Matola A, localizada no bairro desde após a independência. Segundo o diretor, a escola funcionava inicialmente em outro local, mas com a constituição do bairro a partir do ano 2000 e o aumento de crianças, foi preciso recorrer a um espaço maior. No ano do estudo, em 2014, a escola contava com 4.182 alunos, 55 professores, 1 diretor, 1 diretora pedagógica, 2 secretárias. Eram, então, 66 turmas de ensino primário distribuídas em quatro horário diferentes, com classes da 1ª a 7ª série cada uma com cerca de 65-70 crianças. As narrativas aqui construídas foram se compondo a partir da convivência diária, de forma que cada uma das crianças trouxe para o texto dimensões escolares, familiares, comunitárias e do ser criança fundamentais.

3.1

Adelaide e a escola

O caminho de Adelaide para a escola era sempre o mesmo: passava pelas ruas do bairro e chamava suas amigas, em suas casas, para seguirem juntas até a escola. A escola ficava próxima de sua casa, eram cerca de 10 minutos de trajeto. Tinha seis aulas por dia, das 13h15 às 18h10. Sua rotina para ir à escola iniciava-se por volta das 12 horas, quando começava a se arrumar: terminava o trabalho de casa (TPC), tomava banho, vestia seu uniforme e saia. Devia chegar à escola às 13h10 para a formação (cantar o hino moçambicano e realizar a disciplina escolar). A disciplina escolar era realizada antes da canção do hino moçambicano: contava com algumas perguntas que os professores ou o diretor faziam, em voz alta, para os alunos daquele horário, como “como vão de saúde?” e outras relacionadas aos seus estudos, como perguntarem se haviam ido bem em alguma prova anteriormente realizada. As crianças permaneciam em filas, na posição de “sentido” (referência ao exército), em uma maneira disciplinada; quem saísse dessa linha ou estivesse com o uniforme sujo ou sem ele, era chamada atenção na frente de todos os outros alunos, sendo mandado de volta para casa e podendo retornar se usasse o uniforme de forma correta e limpa, segundo as ordens da escola. O símbolo da autoridade parecia estar presente no ambiente escolar. As crianças só podiam entrar nas salas quando o diretor ou algum professor autorizasse “agora podem ir para a sala, sem correr”; e caso a sala estivesse suja, o professor 161

responsável pela sala mandava-os alunos limparem, ou então não daria aula. Para as questões de higiene e organização das salas de aula haviam chefes e subchefes de turma e de higiene. Tais postos eram ocupados pelas crianças das mesmas classes e representavam a autoridade em sala quando o professor estivesse ausente. Era um aluno para cada cargo, em cada turma, totalizando 4 por sala. Geralmente, era o professor mais velho quem escolhia quem seriam os chefes das turmas. Caso a sala entrasse em desordem, eram os chefes os responsáveis por mandar os outros silenciarem-se ou arrumar a bagunça; caso contrário, eram os responsabilizados por tal desorganização. Certa vez, enquanto assistia aula com Adelaide, uma das professoras questionou a chefe da higiene quem havia comido uma maçã e jogado os restos no chão. Esta respondeu dando o nome de duas meninas. Ao retornarem do banheiro, ambas levaram dez reguadas nas palmas de cada mão como castigo por terem deixado a sujeira em sala. Algumas crianças fecharam os olhos e fizeram cara de espanto; outras riram da situação vexatória que as colegas passavam. Com o passar dos dias, percebi que aquele tipo de situação era corriqueiro, em uma tentativa de disciplina baseada na coerção. Adelaide dizia que não queria ser chefe, pois não gostava de mandar os outros e levarem bronca. Alguns professores, ainda, faltavam com frequência. Adelaide, bem como as outras crianças, referia a esse fato como sendo algo habitual, mas que dificultava o aprendizado. Ela questionou o fato de alguns professores baterem nas crianças – prática aceita por muitos familiares, como a de Adelaide. Tratava-se, como pude perceber e conhecer através de diálogos com os mais velhos, de uma prática antiga e que foi vivida por várias gerações. As mães diziam que seus professores também lhes batiam, “aqui é normal isso”, afirmou Margarida. O diálogo abaixo ilustra tal fato.

Adelaide: Na outra escola os professores batiam menos. Eu não acho bom. Não é certo, preferia que não batessem. Não deviam bater, pode dar problema. Marina: Que problema? Adelaide: Das crianças baterem e pode dar problema. Você bate nas crianças e podem se aleijar... Marina: Deve ser ruim mesmo. Já te bateram? Adelaide: Já! Uma vez eu errei a resposta, e me bateram com o apagador na mão. Assim oh (e me mostrou a posição de sua mão – palma voltada para cima e fez gesto de como o professor lhe bateu). Ficou vermelha. Como dói! Tenho medo, não respondo mais nada, só quando me chamam. Marina: Por isso você não responde as perguntas? Adelaide: Não. É que tenho vergonha. Não gosto ainda de falar muito! (Risos). Marina: E são todos os que batem?

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Adelaide: Não. Não todos. Uns batem menos. Só um professor não bate. Dá bronca, mas não bate. Marina: E ele é um bom professor? Adelaide: Sim! Marina: E qual você mais gosta? Adelaide: O de ciências naturais Marina: E qual você menos gosta? Adelaide: O de matemática. Marina: Mas quem dá matemática não é o mesmo? Adelaide: É, mas gosto dele dando Ciências Naturais... Marina: Ah, entendi! Ele é o que você mais gosta, em Ciências Naturais, e o que menos gosta, em matemática? Adelaide: Sim! E a matéria que mais gosto é Ciências Naturais. Não gosto de matemática (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

Fatiminha, quando questionada sobre o fato dos professores baterem, respondeu-me que em sua escola os professores não batiam muito. E completou a frase com uma reflexão importante a ser tomada: “aqueles que sabem, não batem. Mas quem bate, bate, bate, não sabe, e então não explicam nada” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014). Tal conversa voltou algumas vezes. A posição das crianças quanto ao bater ia se clareando nos meus dias. Em um certo dia, enquanto Adelaide fazia um trabalho para uma disciplina, alguns vizinhos se juntaram para ajudar. Conversamos sobre a escola, a discussão sobre a forma disciplinar da escola surgiu: afirmaram as pessoas que, na época delas, as crianças eram mais disciplinadas, pois os professores eram bravos, batiam e assim educavam: “não é como hoje, que quase não bate. Tinha disciplina naquela época. Se não tivéssemos tomado banho, nos batiam e mandavam pra casa; nem arriscávamos chegar sujos. Agora não, são indisciplinados esse ai, fazem tudo de qualquer jeito” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014). A educação era vista, naquele espaço, como sinônimo de disciplina e autoridade, baseada muitas vezes na palmatória e nos castigos colocados como forma de educar. Na escola, Adelaide tinha nove disciplinas: matemática; português, educação física, educação visual, ofício, educação musical, moral e cívica, ciências naturais e ciências sociais. Todas as disciplinas eram realizadas dentro da sala de aula, com exceção de educação física cuja parte prática era realizada no campo da escola em conjunto com outra turma da 7ª classe. Na disciplina de ofício, as crianças aprendiam alguma profissão; geralmente, era algum trabalho de artesão, como a construção de tapetes de folhas de árvores ou de um vaso de cerâmica.

163

Adelaide considerava que a escola em que Fatiminha, sua irmã, estudava era melhor, pois tinha uma estrutura física mais adequada; as mães tinham, também, essa percepção. Suas críticas fundamentais eram relativas à estrutura física da escola, como o muro inacabado, deixando inadequadamente delimitada a separação a estrada e a escola. Em relação ao modo como os professores educam, a preferência era pela escola com parceria com a ONG em que trabalhei em 2012.

Tem muro, grade, segurança na porta e cadeira para todos. Não sentam no chão. Na nossa tem pessoas que vão para roubar dinheiro, pasta, caderno. Gostava mais da outra, no Spapate. Podíamos brincar, tinha comida, e as crianças tinham respeito. Os professores não batiam. Aprendíamos mesmo. (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014).

Anabela, uma das amigas de Adelaide, concordou com ela sobre as aulas na ONG. Referiu que “lá aprendíamos a ler. Não era igual aqui, que nos batem, batem, e às vezes sabemos, às vezes não. Quando não sabemos, ai batem bem! E aqui nos roubam, não tem cadeira pra sentarmos. Ah, preferia estudar no Spapate” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Além das questões já referidas, Adelaide e Anabela comentaram sobre uma das professoras, que naquele momento também dava aula da escola, e que, na ONG, as ajudou com aulas extras de português e leitura. “Se não fosse ela, não estaríamos a ler. Ela nos ajudou muito! É boa pessoa” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Adelaide não faltava na escola e, durante as aulas, sentava na frente. Por vezes, esquecia-se de fazer o TPC ou não conseguia terminar (não entendia os exercícios ou o próprio enunciado) – e então copiava de algum amigo da sala. Adelaide falava o português apenas nos momentos das aulas, ou quando eu estava junto; nos outros momentos, fosse em casa, com suas amigas ou até em compras, changana era seu idioma, como o de muitas crianças que partilhei os dias. A imposição do português como língua oficial e obrigatória no ambiente escolar prejudicava não apenas a alfabetização, mas como o entendimento e a educação como um todo. Nos momentos de leitura em voz alta, Adelaide não gostava de participar. “Não sei ler”, dizia ela, ou tinha medo de errar. “Se errar hei de apanhar. Ah, prefiro não falar nada” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014). Quando os professores faltavam, Adelaide saía da sala e permanecia fora, junto com as outras meninas, e brincavam de roda ou ficavam sentadas conversando. As conversas, por vezes, eu não entendia – falavam em changana, o que era muito comum ali; o português era utilizado só durante as aulas e ao falarem comigo, muitas vezes. “Ele não entende bem o 164

português, por isso não está a te responder”, disse uma das crianças; “E como ele entende a aula?” perguntei a ela. “Boa pergunta”, foi sua resposta (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014). Duas dificuldades apareciam para mim: o uso do português como única língua possível no processo de aprendizagem, e o uso da violência como meio de educar. O excesso de faltas de alguns professores completava o quadro escolar. A escola, para Adelaide, era um lugar que ela precisava estar, mas não necessariamente em que gostava de estar. Em uma conversa sobre a escola e a futura profissão a ser seguida (que se iniciou com a questão sobre o que eu fazia), Adelaide disse sobre o que esperava escola: “eu quero saber, poder ler. E depois trabalhar. Qualquer trabalho, empregada doméstica pode ser. Não sei se vou fazer faculdade. Quero trabalhar” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014). Em uma conversa com os vizinhos de Adelaide, surgiu a questão sobre os professores daquele momento serem mais novos do que os antigos, e ter a diferença dos professores antigos terem terminado o magistério para poderem dar aula, o que não acontecia nos dias atuais. A diretora pedagógica e alguns professores afirmaram que muitos professores não possuíam formação universitária. Alguns estavam cursando a graduação, mas não necessariamente no campo da educação. Quando alguns professores atingiam o grau superior completo, eram enviados para as escolas secundárias, que possuíam o ensino das 8ª às 12ª classes. A escola primária, base da educação infantil, continuava com a falta de professores tanto em questão em numérica quanto na questão de formação e qualificação. Adelaide não se importava quando os professores faltavam, pois o tempo para brincar era maior nessas situações. Mãe Laurinda e mãe Margarida consideravam importante as crianças estarem na escola, ao mesmo tempo em que não sabia sobre o andamento de seus filhos na mesma. “Estudar é importante. Tivemos mas paramos. Eles que tem que saber e ir estudar, poder ter um trabalho bom. Ai vão sair de casa e ter sua família”, disse mãe Margarida. Os espaços da escola eram utilizados, muitas vezes, para o brincar. Adelaide gostava das brincadeiras de roda com as outras meninas. Nas aulas de educação física, em que se separavam as turmas e a sua classe esperava por quase uma hora, ela e suas amigas se trocavam, colocando roupas mais confortáveis, como shorts e camisetas mais largas, e então espalhavam-se pelo campo. Uma roda era para as brincadeiras de canto; outras, na espera, brincavam de correr. Havia as que pegavam uma bola e jogavam. Dificilmente as meninas 165

misturavam-se com os meninos, que brincavam de futebol ou de luta. Enquanto observava, fui convidada para brincar. “Mana Marina, anda cá. Vais ver como anima brincar!”. Em um dia atípico, em um momento de formação, a professora responsável chamou a atenção das crianças com a mesma brincadeira que fazia com as crianças menores, da 1ª e 2ª classes. Alguns reclamaram, dizendo que não eram mais crianças para isso. Adelaide e a maioria das crianças se juntaram e pularam, cantaram, marcharam, conforme a música cantada pela professora pedia. Com um sorriso no rosto, Adelaide me disse que “a escola anima quando é assim”. Certa vez, o diretor deu um aviso às crianças: “quem vem a escola, vem para estudar. Não quero ver nem ouvir vocês brincarem pelos espaços das salas. Usem o campo. Escola é lugar de estudar. Brincar vocês brincam em casa, ouviram?” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014). O discurso ressoou como um aviso para mim: a escola deveria ter mais espaços voltados ao lúdico. Adelaide prestava mais atenção nas aulas quando os exemplos lhe eram familiares, como algo de seu dia-a-dia, e quando o riso permeava os estudos, como nas aulas de desenho visual, em que o professor responsável pela disciplina usava do humor e de brincadeiras para ensinar as crianças as técnicas do desenho e a importância na vida escolar e fora dela. A escola deve contemplar um espaço de formação como um todo.

3.2

A escola para Januar

Januar estudava em uma das salas de 5ª classe da Escola Primária Completa Matola “A”. Entrava às 6h30min, sendo que precisava estar na escola às 6h20min para cantar o hino. O caminho de sua casa para a escola era sempre o mesmo, e tinha a companhia das crianças que moravam perto, como Linho e mãe; o trajeto levava em torno de 30 minutos. Por ser da 5ª série, havia apenas um professor que dava todas as disciplinas. Eram 7 disciplinas: matemática, português, ciências sociais, ciências naturais, educação visual, ofício e educação musical. Em sua sala, havia 73 crianças. Todas repetentes: já tinham cursado a 5ª classe ao menos uma vez, tendo crianças que chegava a ser a 6ª vez. A maioria delas não sabia ler, ou tinha grande dificuldade na leitura, como era o caso de Januar. Em conversa com o professor da turma, ele contou que tem crianças na sala que se encontram com 14, 15, 16 anos, e que não sabem ler. Quando me perguntou qual criança eu acompanharia, Januar respondeu que seria ele. O professor insistiu com a questão de Januar não saber ler, em sua frente, causando constrangimento no mesmo. 166

Esse ai não sabe ler. Já trabalhei muito com ele, foi na quarta classe. Fiquei duas semanas depois que o professor saiu. Parei e fiquei fazendo leitura. Aqui na 5ª classe a maioria não sabe ler. Fiz leitura, até estou atrasado na matéria. Para uns adiantou, mas esse aqui nada! E se você perguntar, ele não fala o porquê não sabe (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014).

Essa situação conduz à própria concepção e organização da educação e o sistema educacional no país destinado às crianças dos bairros periféricos. Com a grande quantidade de alunos na sala e o número de professores insuficientes, bem como de espaço físico, as crianças não aprendem, e chegam na 5ª classe com sua grande maioria não sabendo ler ou com grandes dificuldades. A questão da oposição entre o português e a língua changana na escola é algo que me chamou atenção, em especial nas aulas com a turma de Januar. Durante as aulas, as crianças só tinham permissão para usar o português, tanto na escrita quanto na fala. Porém, certa vez, enquanto o professor explicava uma passagem matemática (era uma aula sobre ângulos), as crianças não entenderam. O professor resolveu explicar em changana, dizendo “perceberam o que estou a pedir? Como é mais difícil, vou falar em dialeto, assim vocês percebem”. Após a explicação em changana, perguntou se as crianças entenderam, e elas afirmaram que sim. “É preciso falar dialeto, que elas estão acostumadas. Português fica mais difícil”, disse o professor para mim (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014). Quais as consequências na vida dessas crianças da imposição de se expressar-se, oralmente e na escrita, por meio de uma língua que mesmo sendo a oficial do país, não é língua falada por elas nem por seus familiares? Esta dinâmica revela um desafio imposto pela ideia de construção do Estado - nação, mas que se ergue sobre a desqualificação cultural local. Como compreender, nos dias atuais, tal paradigma? Que consequências tem a proibição do uso do changana na escola? Estas foram algumas das questões que me acompanharam neste período. Nas vezes em que assisti às aulas, as crianças vinham falar comigo em diversos momentos. Julia, uma das meninas da turma, ao me chamar pelo nome, foi corrigida por Januar, que disse “não é Marina, é mana Marina!”. Ao questionar sobre essa questão, Januar me explicou que tinha que ser assim, porque era mais velha. Entendi como um sinal de respeito. Durante as aulas, era comum os exemplos dados pelo professor se referirem ao dia-adia das crianças ou a questões que envolviam o país. Certa vez, em uma aula sobre ciências naturais, o tema era “água”. “Onde vocês utilizam a água?”, perguntou o professor. As 167

respostas foram diversas “para lavar roupa”, “para cozinhar”, “para limpar”. Ao citarem essas atividades, as crianças comentaram sobre os trabalhos que realizam em casa. O professor questionou qual deles havia gostado do fim de semana que passou, e uma das crianças respondeu que ela não, pois havia trabalhado. O professor respondeu “mas é isso que você tem que fazer. Achas que deve só brincar?”, e as demais crianças riram. A questão das tarefas que as crianças realizam em suas casas aparecia não apenas nas conversas e no dia-a-dia do ambiente doméstico, mas como na escola e nos livros didáticos que utilizavam, com ilustrações que traziam crianças lavando a louça, varrendo a casa, trazendo baldes na cabeça, entre outras. As tarefas e atividades das crianças aparecia também na escola, como naturalizada e sem reflexão. Também na escola as crianças realizavam alguns trabalhos que eram chamadas. Certa vez, enquanto estávamos em aula, o segurança da escola passou convocando as crianças da turma de Januar para irem no sábado seguinte lavar a casa de banho (banheiro), e, quem não fosse, teria que lavar sozinho na segunda-feira. É função das crianças a limpeza dos ambientes escolares? Januar disse que era comum isso acontecer, mas que ele não iria, pois tinha catequese no sábado. “Não hei de vir. Se perguntarei, direi que tenho catequese. Não vou limpar casa de banho, nem uso”, reforçou Januar. Em um dos dias, durante a aula, uma das crianças reclamou com o professor sobre terem roubado as bolachas de dentro da mochila de sua irmã, que também estava naquela 5ª classe, no dia anterior. O professor chamou a irmã e ela explicou o ocorrido: no dia anterior, em que o professor havia faltado, todos foram para o campo brincar. As mochilas ficaram juntas, embaixo de uma árvore e, quando ela foi tomar seu lanche, percebeu que a mochila estava aberta e outras crianças disseram quem foi que a abriu. As meninas acusadas do roubo das bolachas foram 4, e o professor as colocou para fora da sala e depois chamou uma por uma, para ouvir a versão de cada individualmente – mas tudo sendo feito perante a sala toda. Ao fim, as meninas disseram que pegaram as bolachas e o professor, como modo de castigo, fez as quatro meninas assistirem aulas em pé, uma em casa canto da sala, até o fim do dia. Sobre a própria questão do roubo, como foi chamado o caso, ele apenas disse “roubar é errado. Não se pode fazer isso. Alguns professores poderiam bater, mas não vou fazer isso”, e me olhava, “agora vão lá, vão assistir aula em pé para aprenderem”, finalizou o professor. Entendi o jeito de o professor me olhar como um modo de mostrar que, se ele quisesse, bateria, mas não o fez pela minha presença ali (como as próprias crianças me disseram), mas não deixou de ressaltar o fato de que poderia bater. A questão foi resolvida com um castigo, 168

no qual não houve uma conversa sobre o fato do roubar e uma postura em que a escola, como lugar para a educação, se envolvesse. Na classe de Januar, enquanto eu acompanhei, houve apenas um caso em que o professor bateu nas crianças. Aconteceu em um dia em que cheguei atrasada. Fui até a porta e as crianças estavam viradas para trás, algumas com cara de espanto, outras com um sorriso no rosto. Ouvi o professor dizer “quem falou para não fazer TPC? Quem falou? Vocês querem chumbar37 a classe de novo?” enquanto ouvia barulhos fortes vindos do bater o apagador na mão de cada criança que não havia feito a lição de casa, sendo dez batidas em cada palma de cada uma das crianças que deixou de fazê-lo. Ao me ver, saiu da sala, e quando retornou, tentou explicar a todos a atitude tomada, tentando se justificar dizendo que quando ele faltava, como no dia anterior, as crianças deveriam estudar para poderem passar de classe ou assistir aula em outra classe ao invés de irem brincar, e isso o havia deixado chateado, o que fez com que descontasse nelas. Expliquei a ele que fomos ao campo porque uma outra professora mandou, já que ia utilizar a sala. O professor disse que não sabia disso e que se as crianças tivessem falado, ele não teria agido daquele modo. Perguntei se o professor batia nas crianças, e elas disseram que sim, “mas não muito”, como outros professores que já tiveram. Desde o momento em que estava lá, não havia presenciado nenhum evento deste tipo, mas as crianças afirmavam que “é porque está aqui. Mas ele bate, às vezes”. Depois que parei de acompanhar Januar, perguntei às crianças se o professor voltou a batê-las, e elas disseram que não. Em uma conversa com o professor, ele afirmou que não achava certo bater, mas que, às vezes, era preciso, mesmo que preferisse evitar. A partir de então, conversamos diversas vezes sobre os métodos utilizados em sala de aula e sobre os relatos de muitas crianças que afirmavam ter medo, e então não aprendiam direito. Januar disse que, depois que cheguei, o professor ficou “menos bravo. Até quando aquela menina chegou atrasada, viste que ele deixou ela entrar? Em outros dias não deixaria. Aqui não pode atrasar nem errar” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014). Sobre a questão dos professores terem direito de bater, Januar tinha uma postura muito bem definida: era contra. Quando conversamos sobre isso, ele disse que até sabia ler, mas não gostava do professor falar na frente dos outros que ele não sabia, e então ele deixava de tentar. Certa vez, quando seu professor faltou, novamente, ele quis assistir aula em uma outra sala “Marina, é melhor pedirmos para ver aula, né? Assim o senhor professor não briga que não

37

Termo que se refere à reprovação na escola. Repetir o ano escolar.

169

estudamos. E se estou na escola tenho que estudar”, disse-me. O critério para escolher a sala que pediria para ver a aula foi o bater “vamos entrar nessa aqui, que o professor não bate. Nas outras batem muito”, resolveu Januar. Quando conversamos sobre o futuro, Januar disse que queria ser professor, mas que não bateria, e assim as crianças iam aprender. Januar enfatizou sua crítica dizendo que quando fosse professor iria ensinar bem mais, “[…] meus alunos vão repetir mil vezes, mas vou ensinar. E não vou bater!” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014). Januar não faltava, mesmo se estivesse chovendo ia à escola e sentava na frente. Tentava resolver os exercícios e passamos a realizar leituras em sua casa, o que certamente o ajudou na escola. Januar, quando diz o que uma criança tem que fazer, reforça que a criança tem que ir à escola e estudar, compreendendo a escola como lugar importante. Em um dos dias, na hora da entrada, enquanto o professor não chegava, uma conversa com as crianças de sua sala me chamou atenção. Estavam sentadas em um degrau e me cumprimentaram. Dois meninos começaram a se bater e queriam bater em uma das meninas, Judite, que estava de saia. Falei para não fazerem aquilo e Julia disse que ela era da RENAMO. Questionei o porquê disso e Julia disse que “Não estás a ver como está a se vestir? Quer se insinuar para os homens. É da RENAMO esse ai”. Perguntei se as mulheres da RENAMO faziam isso, e ela afirmou que sim, e todos riram. O professor chegou e fomos para a sala. Não consegui voltar e aprofundar esse assunto. O que queria dizer ser da RENAMO para aquelas crianças? E o dizer da ideia de que as mulheres da RENAMO se insinuavam para os homens? Como era colocada as questões de gênero e sexualidade ali? Infelizmente não consegui aprofundar e tais questionamentos persistiram. A violência justificada pela quebra de código de moralidade e a relação entre feminino e imoral não são desconhecidas e eclodem em situações diversas de anomia e ausência de mediação cultural de conflitos. São também, marcas profundas das relações em lógicas de guerra. RENAMO surgia ali como álibi para o uso da força. A guerra revelou-se ainda muito presente, na linguagem e no dia-a-dia, sendo igualmente explicitada nas brincadeiras e conversas infantis.

3.3

A escola, Gina e o brincar

Gina estudava na 2ª classe, no período das 10h às 13h. Sua classe tinha 63 crianças com idade entre 7 e 9 anos. Sua sala era constituída de paredes de chapas (telhas) e possuía 170

chão revestido por cimento. A classe contava com apenas uma professora, responsável por cinco disciplinas: português, matemática, educação física, desenho e educação musical. Gina ia sozinha à escola, pois sua casa era bem próxima. Ela pegava o caminho pela estrada principal, que é na verdade um caminho em que os carros transitam em alta velocidade. Muitas crianças sofream acidentes e muitas crianças arriscavam-se diariamente no percuros entre escola e moradia. Gina disse, durante o trajeto que realizamos juntas, para eu levar a mochila sempre na frente do corpo, enfatizando: “como roubam aqui!”. Essa preocupaçãp com o roubo, principalmente na escola, repetiu-se diversas vezes. Gina disse que tem crianças que roubam o lanche das outras, batem e saem correndo. Disse que que há criança que quando roubada, chora; mas ela não, prefere correr atrás de quem pegou e faz devolver. Ao chegarmos na escola, as crianças se juntavam para fazer a formação. Em filas, as professoras começavam o dia com músicas e brincadeiras infantis, tais como “patinho, patinho. Sim, senhor? Tem água no tanque? Sim, senhor! Então puxa pra frente. Pula pra frente, pula pra frente. Agora puxa pro lado, puxa pro lado, puxa. Agora puxa pra trás, puxa pra trás, puxa”. Em seguida, era outra: “Criança? Ôe, ôe, ôe! Atenção! Sentido! Atenção! Marcha! Marcha, marcha companheiro, marcha, marcha com força, com o pé no chão. Atenção! Sentido”. Essa música e sua sequência eram inteiras em posições que remetiam as do exército: ficavam em posição de sentido, marchavam, faziam a posição do descanso, voltavam a estar em sentido e, em seguida, cantavam o hino, voltados para a bandeira. Em uma véspera de feriado religioso (sexta-feira santa), após as crianças fazerem a formação e cantar o hino – Gina ficava me olhando para ver se eu sabia cantá-lo, e ao se certificar que sim, me abraçou -, o senhor diretor foi dar um aviso: segunda-feira elas fariam avaliação, e que era preciso trazer dinheiro para prova (como dito anteriormente, eles pagam as folhas de avaliação), lápis e borracha. Algumas crianças se manifestaram, dizendo que não tinham, e o diretor disse para conseguirem até lá. Perguntei a Gina como ela ia fazer, pois gastou o dinheiro do lápis comprando lanche, e ela disse que não sabia, mas ia dar um jeito (no fim, pegou emprestado de Mana Manzura, sem que ela soubesse). Após o aviso da prova, o diretor avisou que não haveria aula no dia seguinte, pois era sexta-feira santa, e então disse que “amanhã vocês não vêm à escola. Vocês vão à Igreja em vez de vir à escola. Vocês são cristãos, não são?”, e as crianças, quase todas, responderam “não”. O diretor espantou-se e tentou convencê-las de que eram, dizendo “vocês não rezam? Não vão à Igreja? Então são cristãos. Amanhã devem ir à Igreja. Agora podem ir para a sala de vocês”. 171

A questão da religiosidade é forte ali. Muitas crianças me perguntaram se eu ia à Igreja e me convidaram para ir com elas. Porém, as religiões e crenças ali são distintas, Adelaide, por exemplo, era Zione; Januar era católico; e Gina era da igreja evangélica. O feriado da sexta-feira santa é um feriado religioso, porém é da Igreja Católica. A maioria das crianças não se considerava dessa religião. O papel da escola deveria ser o de respeitar as diferenças; porém, do mesmo modo que a língua estabelecida era a do colonizador, a religião e os feriados religiosos também acabavam por ser. As crianças, por si, gostavam pelo simples fato de não terem aula. Nas aulas, Gina se distraia muito com suas amigas, que ora brincavam, ora desenhavam, ou ainda abriam lanche e comiam. A professora sempre chamava a atenção de Gina, que se distraia não só com as amigas, mas também com as crianças que passavam correndo ao redor – por ser uma sala de telhas fazia muito barulho, e ficava de frente para o pátio, o que distraia ainda mais as crianças. A professora então me diz “a Gina se distrai muito. É preciso chamar a atenção dela a todo momento”. A estrutura e a realização da aula se dão de maneira dinâmica: primeiro a professora pergunta qual o nome da escola, e todos respondem em voz alta; depois, cantam uma música “bom dia, mama. Bom dia, papa. Não tenho lápis para ir pra escola. Senhora professora tá à minha espera. Não tenho lápis para ir pra escola”. Ao terminar a música e com a atenção voltada para si, a professora pergunta do TPC (tarefa para casa) e então passam a corrigi-lo. Essa música remete a uma realidade ali: há falta de material escolar, como lápis e cadernos. A escola dá um livro por ano, quando tem auxilio do Governo ou doação e, mesmo assim, não dá para todos os alunos. Era comum as crianças mais novas usarem os cadernos antigos dos irmãos mais velhos. A mesma cena se repete com os livros. A professora, de uma maneira sensível, afirma não haver problema: quem não tivesse livro, escrevia no caderno, e ela passava a lição no quadro, para que todos pudessem copiar. Com Gina era assim. O quadro era colocado sobre uma cadeira, por não ser fixo na sala. Em uma das vezes, o quadro caiu em cima de uma menina. A pouca estrutura, ou a falta dela, para as salas de aulas é um dos motivos que acaba por interferir no aprendizado das crianças, principalmente na das mais novas. A casa de banho também fica próxima a sala de Gina, e o mau cheiro vindo dela geralmente ficava na sala. A sala ao lado, de uma turma da 3ª classe, é separada apenas pelos alunos: os alunos da professora L sentam virados para frente, enquanto os da professora M sentam de costas para os da outra turma. Não há divisão com paredes. Na sala 172

de Gina, não é muito diferente, pois a parede que separa sua sala da turma ao lado é um pedaço de telha, que não chega até o chão. Quando as crianças terminam os exercícios que faziam, levam para a professora A vistar. Logo no primeiro dia, as crianças perguntaram se eu não ia copiar a lição. Passei a copiar e, ao terminar, elas me perguntaram “e você não vai vistar?”. Disse que esperaria por Gina e, quando tinham a lição corrigida, vinham mostrar para mim. Fui para a fila com Gina e as crianças pediram para ver minha correção. Ao verem que acertei tudo, disseram “vai passar com a gente!”. Assim foram nos demais dias: fazia a lição com elas, algumas vezes competíamos para ver quem acabava antes, e então vistávamos as lições. Somente as provas eu não fiz com elas – elas se distraiam e eu acabaria atrapalhando-as. Nesses dias, ficava sentada em um banco de cimento que ficava ao lado da sala, esperando que acabassem e então sentava com elas no chão para o resto da aula. Em certo momento, quando a professora passava na lousa uma lição sobre o uso do “s” entre as vogais, Germano, irmão do Félix disse que eu não sabia escrever o que a professora escrevia. Fizemos uma competição e eu acabei antes. Germano olhou para Gina e disse “ih, nos thcanguelô38!”, referindo-se ao fato de eu ter ganhado deles. A partir desse dia, passei a realizar minhas tarefas mais devagar. Para ensinar as vogais, ou mesmo números e as demais disciplinas, Armandina sempre cantava para as crianças, tornando a aula mais didática e lúdica. Geralmente, as crianças traziam água de casa para beber, raramente tomavam da torneira da escola – reclamavam que era suja a água que de lá saia. Em um dos dias, Gina não levou água e pediu a minha. Depois dela ter tomado, Germano pediu um pouco, e Gina negou-se, dizendo “vai beber água de mulher?”. Perguntei o porquê disso, e Gina me respondeu que “é água de mulher. Ele vai colocar essa boca de homem... Credo!”, e não deixou Germano tomar, mas suas amigas beberam. Tentei perguntar o porquê da distinção, e Gina me disse “mulher bebe água de mulher. Homem bebe de homem. É assim”. Tentei observar se com as outras coisas também eram assim, como emprestar o lápis ou dividir o lanche, por exemplo, mas não eram. Apenas com a água, ou coisas para beber é que funcionava assim. As cores usadas, os enfeites de cabelo, as roupas cor de rosa ou de azul não tinham diferença: tanto os meninos quanto as meninas usavam. Para brincar, era mais comum as

38

Palavra em changana que equivale a “nos ganhou”

173

meninas brincarem entre elas e os meninos entre eles, porém, não era um impeditivo de brincarem juntos. Na hora do lanche, por exemplo, as crianças ficavam dentro da sala para comer. Juntavam-se em pequenos grupos e dividiam o que trouxeram. Se alguma criança não havia trazido, era só pedir para quem trouxe que eles dividiam, sem que ninguém tivesse que falar nada. Uma das meninas levantou, certa vez, e me deu um pacote de bolachas. Tentei insistir para que ficasse com ela, mas ela disse que havia trazido para mim. Abri o pacote e dei uma bolacha para ela, peguei uma para mim e dividi as outras com as demais crianças que estavam ao meu redor e pediram. Zaida, uma amiga de Gina, deu a ela um pedaço de pão. Gina perguntou “é para mim e para Marina?”, e Zaida respondeu que não. Compartilhar o que possuem é comum entre elas e compõe um aprendizado da ética de relações de forma explícita. Nos outros dias, conforme Zaida foi se aproximando e passou a dividir o lanche comigo. Quando voltamos para casa de Gina, perguntei a ela se foi bom eu ter dividido as bolachas que recebi. Gina me afirmou que sim, dizendo “foi melhor ter dado. É sempre melhor. Eu sempre distribuo. Tudo o que come, eu dou. Não deixo terem vontade. Até se não me pedem, eu dou” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2014). Com o passar dos dias, reparei que era assim com a maioria das crianças da sala. Lembrei que com Adelaide e Januar era a mesma coisa: se pedissem, eles dividiam entre si o que tinham; comigo, nem era preciso pedir. Era comum eles me comprarem um gelinho, uma bala ou uma pipoca e fazerem questão de me dar. A diferença era que eles não aceitavam quando eu oferecia algo que me deram, e diziam “isso é seu, come”, o que era diferente com Gina e as crianças menores, que pegavam mesmo se eu não tivesse oferecido, ainda. Em uma das vezes, enquanto a professora corrigia lição, uma criança começou a chorar. Fui levantar para ver o que era, mas nem foi preciso: um dos meninos, Samiro, foi até ela, perguntou o que havia acontecido, chamou quem havia lhe batido e fez pedir desculpas. Perguntei o que estava acontecendo, e Samiro apenas me respondeu “resolvendo uma cena”. As crianças se resolviam desta maneira, fosse em casa, com os amigos ou mesmo na escola. Era difícil algum professor tomar a discussão para si, as crianças se resolviam antes mesmo disso acontecer. Em um dos dias, porém, enquanto as crianças foram para o intervalo, muitas delas voltaram correndo, desesperadas. “Marina, um menino subiu no carro, caiu, um caminhão tentou pisar-lhe! Ele está com ferida! Bateu a cabeça, está com ferida aqui (e apontavam o olho), está com sangue! Vem!”. Não havia entendido ao certo o que estava acontecendo, mas 174

fui com elas. No meio do caminho, o menino apareceu chorando e cheio de sangue. “É ele”, disseram as crianças. Perguntei a ele o que havia acontecido, mas ele só chorava. O fato foi que, ao invés de estar na aula, ele estava na estrada (a avenida ao lado da escola), brincando de subir nas caçambas do carro. Esse tipo de brincadeira é muito comum com as crianças ali: elas ficam paradas na esquina, esperando algum carro que tenha caçamba e pulam nela, com o carro em movimento. Geralmente, o motorista freia e a criança cai, e foi o que havia acontecido. Porém, havia um caminhão atrás desse carro e o menino quase foi atropelado. Ele estava com a cabeça sangrando, o olho inchado, a orelha bem inchada e também sangrando, assim como a boca. Fui levá-lo para a sala do diretor, mas a professora chegou nesse instante. Disse que havia um acidente na sala e mostrei a criança. A professora se assustou e perguntou o que havia acontecido, mas nenhuma das crianças se manifestou. Eu perguntei “vocês não querem falar?”, e elas ficaram mudas. Eu contei o que havia escutado e a professora levou o menino para se lavar. Ao retornar com ele, disse que ele não estava na sala, e ao invés de estudar estava brincando na rua. Deu-lhe uma bronca “agora você vai aprender que é para estar dentro da sala, ouviu?”, e perguntou qual das crianças morava perto dele. Samiro levantou a mão e a professora pediu que avisasse a mãe dele o que havia acontecido, principalmente que ele não estava na escola, e sim na estrada, brincando. A aula prosseguiu normalmente. Duas coisas me chamaram atenção nesse episódio: o fato das crianças não terem contado para a professora o que havia acontecido, ao passo que, para mim, vieram correndo e pedindo ajuda; e o encaminhamento dado pela professora sem fazer contato direto com a família. As crianças tinham dificuldades de falar com os adultos e de se aproximarem do modo como era comigo, pois havia um vínculo diferenciado, além que talvez tivesse para ela um estatuto diferenciado. Se o vínculo fosse mais próximo com os professores, talvez em uma relação mais horizontal, a relação pudesse favorecer o aprendizado. Em outros casos, a escola também enviava recado pelas outras crianças, como pedir ao pai de alguém para ir conversar com a professora no dia seguinte, sem que fosse a escola a chamar o pai. O papel da escola e sua responsabilidade misturava-se com a das crianças. Nos demais dias, o menino entrou em todas as aulas, e participava de maneira mais ativa quando solicitado. Quando voltávamos da escola, percorríamos o caminho da estrada. Gina sempre tomava cuidado, e cuidava de mim também. Em uma das vezes, uma menina passou e a bateu, sem que Gina tivesse feito nada. Gina apenas me disse que “ela há de ver. Vou na casa dela, vou dar uma chapada bem na frente da mãe dela, ai ela vai ver”. Conversava com Gina sobre 175

essa questão do bater, e embora Gina dissesse que não gostava e que não ia bater na menina, era algo muito forte: as crianças se batiam muito. E as mais novas parecem que se batiam mais que os mais velhos, ao menos na escola. Era comum alguma das crianças estar chorando porque apanhou e, em seguida, bater em outra criança e parar de chorar. A escola não tomava nenhuma posição e não parecia incentivar a não-violência entre as crianças, a não ser, em raras as vezes, dar bronca em quem batia e colocar de castigo. Gina ia todos os dias na escola, a não ser quando estava doente. Se chovesse, ia do mesmo modo. Quando perguntei se gostava de ir, ela disse que não muito. “Prefiro a explicação, sabe. É mais rápido, dá para ver bonecos. Na escola é muito tempo. Fico cansada” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 3, 2014). A relação de Gina com a escola era parecida com a das demais crianças: tinham que estar ali, ao mesmo tempo que era um lugar que elas gostavam de estar, e, além disso, era um espaço delas.

3.4

A escola e as dinãmicas de Félix Félix estava na 5ª classe mais uma vez – havia repetido o ano anterior. Estudava das

6h30min às 10h, embora não conseguisse chegar no horário estimado, como a maioria de seus colegas; a formação, ainda mais cedo (6h20), geralmente era vazia, pois chegar às 6h20 na escola implicava em acordar muito cedo. Félix era um dos que não chegava antes das 7 horas na escola. Eram 76 crianças em sua turma (e eu me tornei o número 77), a maioria eram meninos com idades entre 11 e 16 anos, alguns repetentes. Muitos não sabiam ler, como era o caso de Félix. A maioria das crianças sentava em bancos de cimento, e dividiam o espaço entre 6 ou 7; as outras, quando não cabiam nos bancos, sentavam no chão. Quando passei a assistir aula com Félix, meu lugar era ao seu lado. De início, funcionou bem, mas depois passou a ficar um tanto confuso, pois os outros meninos queriam sentar ao meu lado, o que causava certo tumulto quando eu chegava. Então eles se resolveram: Félix sempre sentaria de algum lado, e os outros se revezariam. Entre os meninos, havia um grupo que era mais próximo: Gerson, Enrique, Elsídio, Edilson, Fabião, Feliz. Nos primeiros dias que passei a ir à aula com Félix, percebi que ele ficava disperso, a atividade mais frequente era desenho. Num certo momento, começou a brigar com seus amigos. Perguntei o que estava acontecendo, Félix respondeu que “estão a rir do meu sapato”, e então me mostrou: em um pé usava sapato fechado, de cor preta; no outro, usava um 176

chinelo. Olhei para ele e ele me disse “o outro não servia. Mas como gosto desse sapato!” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Rimos os dois. Certa vez, seus amigos disseram que Félix gostava muito de desenhar, e fazia lembrar um grande artista moçambicano. “Esse ai é filho do Malangatana. Conheces Malangatana, Marina? É o maior pintor de Moçambique. E é pai desse ai”. Malangatana foi um artista em ambos sentidos: artes plásticas, esculturas, gravuras, tapeçarias; poeta, ator, entre outros, e deputado da FRELIMO. Chegou a ser nomeado artista da paz pela UNESCO. Faleceu em 2011 (NORONHA, 2014; PÚBLICO, 2014). As crianças tinham conhecimento sobre Malangatana e sempre que Félix desenhava, chamavam-no assim; Félix ria e dizia que era bom, mas não era Malangatana “ainda”. Os desenhos de Félix eram copiados de uma revista de Gerson, geralmente desenhos de princesas e personagens norte-americanos. Outras vezes os desenhos eram livres, e então a imaginação era partilhada com os amigos: carros, monstros, personagens, músicos, instrumentos. Muitos me faziam lembrar os brinquedos de barro que faziam. Certa vez, Félix levou um carrinho de barro que havia feito e um de ferro, e então os meninos voltaram a repetir “tás a ver! É filho de Malangatana esse ai” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Félix e seus amigos tinham dificuldades na escrita e na leitura: copiavam o que era escrito no quadro, mas não sabiam ler o que dizia. Essa situação foi me incomodando e, conforme olhava para os lados, percebia muitas crianças na mesma situação. Félix ainda saia do lugar e ia para frente da lousa copiar, mas muitas vezes seu plano fracassava, pois apagavam o quadro antes mesmo deles terminarem a cópia. Certa vez, a professora passou um ditado. Questionei-me como seria, já que muitas não sabiam escrever sem fazer a cópia. Félix e os meninos perguntaram se eu ia fazer o ditado, e eu disse que sim. Sentado ao meu lado, Félix foi copiando as palavras que escrevia. Ao terminar, Félix disse “Não saber ler... Ah, dá confusão! Quando Marina não está, ah, fico a sofrer!” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014) Félix termina, olha para frente enquanto espera a professora passar e vistar o caderno, e então diz “quero desenhar. Ainda tem lápis de cor?” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Com a dispersão da sala, a professora ameaça “ou lê ou sai.” Félix me olha assustado e então vai para frente da sala, e conforme a professora ia se aproximando para pedir ao próximo aluno para ler, Félix mudava de lugar; ele ia driblando a professora e trocando de lugar para que sua vez não chegasse. Félix já chegou a fazer isso comigo, num dos dias que cheguei mais tarde e fingiu que não havia ido a aula. Comigo foi na brincadeira, mas com a 177

professora era o modo dele estar na aula sem precisar passar vergonha, como ele mesmo explicou. A professora então completa “bater não posso, mas tá aqui seu lugar: ficar ajoelhado pode. É justo ter gente que vem, se esforça, enquanto outros tão a brincar? 5ª classe exclui39, e aí nem vai pra exame, esse é o bom. Sabiam vocês? Agora leiam em voz baixa o que escreveram, e não é pra pedir ajudar”. Após ouvir, Félix exclama “não é pra pedir ajuda?! Nós não sabemos ler!” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014), mas nenhum dos três professores presentes na sala o ouviram; ofereci ler com ele, mas Félix não quis “eu vou desenhar”, e então passou a brincar com os amigos. Os meninos ao redor seguiram o mesmo que Félix, e passaram a brincar de um jogo chamado “quadrado”, no qual o objetivo era ligar os pontos e fazer o máximo de quadrados possíveis, ou ainda brincarem de luta. Os meninos contavam a hora no relógio para irem para casa, e Elsídio então me disse “gostam de ir pra casa esses aí. Você gosta, Marina?” Eu disse que sim. Ao faltarem cinco minutos, os meninos não paravam quietos no lugar – e assim foi nos dias seguintes. Ao chegar, muitas vezes os professores passavam para conferir a lição. Félix logo fugia para frente e ia mudando de lugar conforme a professora se aproximava. Talvez por eu estar nas aulas, Félix tenha ficado mais visado, e sempre era chamado para responder alguma coisa. Quando não conseguia se esconder, seus amigos passavam a resposta para ele e ainda chamavam sua atenção. “Félix, diz que é 48. Tens que prestar mais atenção você! Queres chumbar de novo?” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Félix respondia o que lhe era passado e disse, numa das vezes que chamaram sua atenção, que “se não passar vai ser por sorte. Não tenho sorte eu”, referindo-se ao fato de repetir o ano. Elsidio disse que não era sorte, que era preciso estudar. Félix riu e voltaram a brincar. A dinâmica da aula era baseada em muita conversa e brincadeiras paralelas. Os professores não conseguiam conter as crianças, e elas não conseguiam prestar atenção no que era passado. Por diversas vezes, Félix tentou dizer que era difícil porque não sabiam ler, mas não foi ouvido em nenhuma das vezes. Num dos dias, um dos professores mudou a dinâmica de uma das aulas: era aula de educação visual e o tema era “tipos de materiais de pintura.” Conforme o professor foi falando sobre cada um deles, foi separando as crianças em grupo para produzirem um trabalho coletivo. As crianças estavam excitadas e empolgadas, mas concentraram-se em suas tarefas, e trabalharam juntas. Eu fiquei no grupo com Félix, Gerson,

39

Termo que se refere à reprovação escolar sem ter realizado o exame/prova final.

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Feliz, Elsídio, Edilson, Fabião, Enrique. Nosso material foi a tinta guache – que, segundo os meninos, só nos deram porque eu estava ali. No momento de decidir o que seria feito, os meninos disseram “vamos fazer nossas bandeiras! De Moçambique e do Brasil” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014), lembrando de uma aula que tivemos na semana anterior, em que pediram para eu mostrar como era a bandeira do Brasil; desde então, todos os desenhos levaram a bandeira brasileira. Félix me olhou e disse “eu sou moçambicano e você é brasileira. E sou brasileiro também; sou moçambicano e brasileiro, e você é brasileira e moçambicana.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Ambos sorrimos e passamos a desenhar. Naquele momento, todas as crianças estavam concentradas para realizar a tarefa e depois falar sobre ela. Depois, a aula voltou ao normal, e as crianças ficaram dispersas. Talvez se as outras aulas tivessem sido levadas com uma dinâmica assim, as crianças poderiam ter aproveitado mais; Félix era um deles. Depois da dinâmica da pintura, as crianças estavam agitadas, e foi difícil contê-las até o final da aula. Dado o sinal, foram para suas casas. Félix ainda continuou na escola, brincando com seus amigos: brincavam de lutas ou de dar pinos. A escola parecia, muitas vezes, o espaço do encontro e das brincadeiras mais que o do ensino. Félix via desse jeito também: certa vez, quando conversávamos, ele disse que ia a escola porque mandavam, mas gostava de encontrar seus amigos e brincar. “E desenhar também. Como gosto de desenhar lá.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Num dos dias, a escola estava preparada para receber profissionais da saúde. O objetivo era medicar as crianças até 15 anos contra as “disparidades” (dor de barriga, enjoos e dor de cabeça), como me disse a professora. As crianças estavam agitadas e muitas não queriam tomar o remédio. Logo que cheguei à escola, algumas crianças vieram correndo e disseram estar com medo do tal medicamento “minha amiga desmaiou. Vomitou. Não hei de tomar” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014), me disseram muitas delas. A professora, ao anunciar que tomariam o remédio, disse para irem para casa, pois tinham que comer senão passariam mal no meio do caminho. Nenhuma outra explicação ou falar sobre a importância do remédio foi passada. Muitas crianças, ao pegarem os comprimidos, deixaram na boca por um tempo e depois cuspiram. Tentei conversar com alguns e explicar que seria importante, mas foi em vão. Questionei-me se não seria papel da escola, e até dos profissionais de saúde, explicarem o motivo do comprimido e sua importância, para quais disparidades serviam. Mas esse questionamento ficou apenas comigo. 179

As aulas eram baseadas em cópias e exercícios. Dificilmente havia explicação de alguma matéria e, quando havia, as crianças mal entendiam – e devo confessar que também encontrava dificuldade: os professores falavam baixo, sua voz não podia ser compreendida no fundo da sala, a explicação era rápida, o que favorecia as dispersões das crianças. Os professores eram jovens e ainda cursavam a faculdade As crianças me disseram que não sabiam os nomes deles. Perguntei à professora e ela perguntou em voz alta “quem aqui sabe meu nome?” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014), ninguém respondeu. Ela então chamou a atenção da classe “vocês não sabem meu nome? Eu não falei no primeiro dia, quando me apresentei? A vocês, não prestam atenção mesmo. Só sabem brincar vocês” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014), e continuou sem dizer seu nome. Félix voltou a indagar, mas foi ignorado. Só no final da aula descobri seu nome. Algumas tarefas passadas às crianças colocavam em questão a própria escola como enviá-las para comprar pão ou refrigerante para os professores. Num dos dias, enquanto fazia o caminho para a escola, ouvi meu nome. Ao olhar para trás, vi Félix, Enrique e Elsidio correndo em minha direção. Perguntei onde estava, pois ainda era horário de aula (eram quase 9 horas) e então me disseram que haviam ido até a padaria comprar pão para o professor. Questionei se a aula havia acabado, e eles disseram que não “mas nos mandaram. Havemos de voltar agorinha”. A padaria ficava cerca de 20 minutos da escola, o que fazia as crianças perderam quase uma hora de aula. Outro exemplo foi quando o segurança da escola passou anunciando que as crianças deveriam ir no sábado, a partir das 6h da manhã, para capinar a grama que havia no pátio e na calçada da escola. Como nenhuma criança queria ir, foi feito um sorteio: do número 1 ao 18 iriam. Félix era número 34, ele ficou aliviado e ainda me disse: “ninguém há de vir. Esse trabalho não é nosso”. Essa frase eu voltei a escutar de duas meninas, no sábado, quando passei pela escola, às 10 horas e vi algumas poucas crianças ajudando a carpir, embaixo de um sol forte. Questionei o que é tarefa da criança na escola. Várias crianças disseram que aquilo era abuso: “esse ai não está a fazer o trabalho que é dele, e nos faz fazer. Não é certo. É abuso isso.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Alguns adultos pareciam não concordar com essa ideia, e as crianças continuavam a realizar tais tarefas no ambiente escolar, durante o período de aulas. Félix faltava muitas vezes e chegava atrasado. O número de quem se atrasasse ficava no quadro, e o nº 34 sempre estava escrito nele. Félix achava que era muito cedo para poder chegar, e, segundo Rosinha, ele não gostava de ir à escola. “Esse ai levanta às 5h30min, enrola e sai às 6h30 para ir à escola. Como às 7h não chega? Ah, fica a brincar pelo caminho 180

esse ai. Não gosta de estudar.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Félix respondia que não era assim, embora fosse assim na maioria dos dias. O papel da escola não parecia fazer sentido para Félix, a não ser pelo fato de poder estar num lugar que tinha seus amigos. Numa das vezes, a professora chamou sua mãe para conversar – pediu a Félix para voltar para casa e trazer a mãe. Zaida não sabia das faltas de Félix, e a professora reclamou sobre a ausência dela nas reuniões. A professora me chamou para conversar também e Félix disse que não sabia ler, mas que queria aprender. Combinamos de fazer um trabalho juntas, e que a primeira cosia a ser feita era Félix aprender o alfabeto; a professora passaria algumas lições para ele e trabalharíamos juntos. Félix ficou animado, e o jeito que arrumaram para que Félix não faltasse foi o de ser ajudante de um dos professores: ficou encarregado de cuidar da vara do professor. Embora Félix tenha ficado empolgado com a escola e se preocupava em não atrasar, o significado paradoxal da vara inquietava – era usada, na maioria das vezes para bater nos alunos. O professor disse que para ser ajudante não poderia faltar, pois ele não trabalhava sem a vara. A vara era símbolo da violência permitida na relação dos professores com as crianças – talvez as crianças preferissem quando Félix faltasse. A minha despedida da turma foi um tanto delicada: os meninos e eu estávamos muito próximos: disseram que eu iria os abandonar e agradeceram pelos momentos ali, com eles.

Ontem vi minha última aula com eles. Essas coisas de último aqui, último cá, mexem com a gente. Já fui resolvendo não pensar em nada... Mas nunca é assim quando chego lá. Félix abriu maior sorriso e logo os meninos se revezavam para ver quem ficava ao meu lado. E então Elsídio e Gerson começaram uma conversa quase inocente... Elsídio: Gostei de você. De brincar com você. Mas você já está a nos fugir... Gerson: É verdade. Está a nos fugir... Marina: Fugir? Por que vou embora? Elsído: Sim. Vai nos deixar sozinhos. Vamos chorar! Gerson: E dá vontade mesmo. De cair lágrimas assim, agora. Feliz e Enrique me perguntaram "e quando você volta? Por que não vai nos deixar pra sempre, né?; Elsídio me disse "Dentro do meu coração eu gostei de você". Edilson continuou "És boa pessoa você. Gosta de nós. Isso é bom". Gerson ainda disse "Seu coração é bom, sabias disso?". E Fabião finalizou: "É. És como uma irmã pra nós" (MOÇA DE BIQUE, 2 de julho de 2014).

3.5 Beni e as aberturas da escola

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O primeiro contato que tive com a escola foi através de uma conversa com Beni: começou um assunto “na escola pagamos para fazer prova.” Eu já tinha conhecimento desta prática e resolvi dialogar com Beni a respeito disso. Beni disse que não eram só as folhas que eles pagavam, mas todo o material, inclusive os professores, que tinham que levar o próprio material para poderem dar aula ou emprestarem os únicos que tinham na escola. O assunto foi sendo levado para questões internas, como o fato de entrarem pessoas outras na escola que não estudavam ali.

Entram muitas pessoas lá porque não tem muro. Passaram pedindo dinheiro na sala pra levantar o muro. 200 meticais cada, eu não dei ainda, mas meus colegas já. Muitas pessoas vão lá nem estudam! Vão pra roubar, e Vô Damião não consegue, lhe batem também (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

A violência apareceu na primeira conversa sobre a escola. Para Beni, ter um muro melhoraria a questão da violência externa e os roubos, como outras crianças haviam mencionado anteriormente. Beni citou a escola 30 de janeiro, afirmando que lá tinha muro e que “se entrar não há de sair. Se entrar, prendem na casa de banho e fazem limpar.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014) Quando perguntei se aquela escola era melhor, Beni afirmou que sim, mas que “a escola mais bonita é a Oficial.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). O muro era visto como a proteção das crianças, mas a punição realizada já não tinha problema – o entrar e roubar eram ruins, mas punir quem fez isso não. Essa prática era comum e eu presenciei cenas de adultos linchando outros que cometeram uma tentativa de roubo. Cenas como essa eram reproduzidas nas falas e nos meios em que as crianças e os adultos partilham. Beni estava na 6ª classe no momento do estudo. Entrava às 13h e saia às 18h10. Em sua sala havia 66 crianças, das quais algumas também não sabiam ler. Beni era um que tinha bastante dificuldade, principalmente nas leituras em voz alta. Em uma das aulas que assisti com ele, a professora estava dando leitura, e Beni reclamou logo ao perceber. Em sua vez, falou baixo e devagar, e a professora disse que ele deveria treinar leitura. Beni me disse que sabia ler mais ou menos, mas que não gostava de ler em voz alta. Quando anunciaram o nome de uma das meninas, todos começaram a rir e fazer barulhos como “iiiih”, num intuito de constrangê-la. Beni comentou rindo “essa aí não sabe ler! Vais perceber”. A menina, que era mais velha e já havia repetido algumas vezes, não sabia ler. A professora e os alunos sabiam disso, mas ela ainda era chamada para ler em voz alta, e quando tentava ler, recebia chacotas. 182

Durante uma conversa que tive com Beni antes de irmos para a escola aquele dia, ele havia dito que “tem gente que não sabe ler na minha sala, não consegue. A chefe não sabe. Uma chefe que não sabe ler... E quem escolheu foi uma professora! Acho que porque é grande, sabes. Tem muitos grandes que chumbaram, e nem todos sabem ler.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). Conversamos sobre ser ruim não saber ler e os outros brincarem com isso, e você ter vergonha. Beni concordou e disse que não gostava disso; porém, era um dos que riam da menina. A escola acaba por ser um espaço de reprodução de linguagens de violência não era apenas física, dificultando o aprendizado das crianças. Assisti a poucas aulas com Beni. A maioria de seus professores faltava, e as crianças usavam o espaço das aulas para brincarem. Era comum as meninas brincarem de roda e os meninos de bola, ou de colocarem panos e capulana ao redor do resto e passarem nas salas chamando a atenção das demais crianças. Muitas crianças acabavam interrompendo ou tumultuando a dinâmica das aulas quando faziam isso. Eu mesma fazia tumulto quando assistia às aulas, já que muitas vinham na porta para me ver. Com a turma de Beni isso nem chegou a acontecer – tivemos apenas poucas aulas em uma semana. Quando os professores faltavam, as crianças não eram avisadas e nem liberadas para irem para casa, e permaneciam na escola até o horário final. Algumas saiam depois de brincarem muito tempo, como foi o caso de Beni numa sexta-feira em que a última aula era de educação física, mas as crianças sabiam que esse professor não apareceria. Questionei como elas sabiam e se não era melhor confirmarmos, mas elas me afirmaram que não era preciso. “Esse professor nunca vem. Nós nunca tivemos educação física na vida! Ele vem, assina o caderno e vai embora. Às vezes fica até às 14h, depois se vai.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). As crianças disseram que todos sabiam que ele fazia isso e que podia perguntar para as outras que nem eram de sua sala. Adelaide e Ferisberto me afirmaram o mesmo: quando estavam na 6ª classe nunca tiveram aula de educação física; a mesma frase foi repetida por muitas crianças ali. A formação era um momento em que alguns avisos eram passados, e entre esses, numa das vezes, o diretor afirmou que a escola era lugar para estudarem, e que se quisessem brincar que ficassem em casa. As crianças iam para a escola com o intuito de estudarem, mas os professores faltavam. E os da classe de Beni, de forma bem repetida. Um professor de outra sala, quando ouvia barulho vindo da sala de Beni, ia até eles e batia em quem alcançasse lá dentro. As crianças corriam e passavam a brincar fora da sala. A escola revelava-se ali como 183

um espaço de contenção formal de crianças, preenchido por atividades que elas mesmas criavam na ausência constante daqueles que deveria ser seus educadores. O primeiro dia que assisti aula, fui apresentada por uma das professoras à turma, embora já tivesse me apresentado para as crianças antes. Mas, a professora fez questão de uma nova apresentação, durante a qual ela afirmou que eu era uma professora e que iria avaliar o comportamento deles. Diante da delicadeza da situação, procurei explicar que pretendia apenas assistir aula com eles. Durante os exercícios, a professora falou para a sala que quem estudasse e tirasse boas notas poderia ir comigo para o Brasil, e que eu ia levar presentes para quem tivesse um bom desempenho. O sinal tocou e ela saiu. Eu conversei com as crianças explicando que eu estava ali para fazer um estudo meu, como havia dito anteriormente, e que não haveria presentes nem levaria alguém para o Brasil comigo. “Sabemos mana Marina! Mas não havemos de contar a senhora professora” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014), e riram. A minha presença foi usada de diversas formas, mas aquela situação era de grande dificuldade. Estar em campo na pesquisa exige situar a dimensão ética constantemente. Nos dias em que tínhamos aula, sentava ao lado de Beni. Ele gostava de sentar encostado na parede, mais ao fundo. As professoras exigiam o uso do uniforme e colocavam para fora da sala quem estivesse sem. O material também era exigido, mas Beni quase sempre esquecia. Numa das vezes, Beni olhou para minha caneta e a pediu; uma menina sentada a sua frente, Aninha, me entregou a dela, e assim ninguém ficou sem material para escrever. Dividir era sempre presente ali.

Ao voltarmos para casa, num dos dias, Beni e Leo começaram uma conversa comigo. Perguntaram se no Brasil batiam nas crianças na escola. Eu respondi que não, e que era proibido. Leo me disse que lá também era proibido, que o senhor diretor falava em reunião que os professores estavam proibidos de bater, mas que de nada adiantava. Aqui também não se pode bater, senhor diretor não deixa. É um bom diretor, só não quer que a gente brinque na sala. Mas ah como batem. Aqui batem muito! Mas bem mesmo. Aquele professor na 7ª classe como bate! Dá chapadas, bate com vara, bate na perna. Bate assim ó. Pega as cabeças e bate (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

O bater aparecia mais uma vez e fazia parte do dia-a-dia da rotina escolar. Virginia dizia não concordar com isso e que, certa vez, foi acompanhar uma professora até a escola e, ao chegar, viu um professor bater em Beni por não ter feito o TPC. A professora ao seu lado disse a ela que estava a bater com a mãe do menino ao lado, e Virginia apenas o olhou. “Nem 184

foi preciso dizer mais nada. Ele calou e saiu. Disse que não queria mais ele a bater em meu filho.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014). As crianças reclamavam de outros professores, como podemos ver no trecho a seguir.

Tás a ver aquela ali? Essa finge que dá aula. Entra na sala, coloca a pasta na mesa e sai, fica a beber cerveja. Antes era boa professora, agora já não dá mais aulas. Todos sabem! E gosta de nos bater. (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

O número de faltas dos professores era muito grande, e muitas vezes as crianças e juntavam em duas salas para terem aula; porém, muitas delas preferiam brincar ao assistir aula. Félix, numa conversa que tivemos quando ele apareceu na escola a tarde para me ver, disse que isso acontecia pois as crianças não sabiam ler, e brincar animava mais. Para Beni, a escola não parecia fazer muito sentido, bem como para os demais de sua turma. Com a ausência dos professores na maioria das aulas, a leitura de todos ficava prejudicada, bem como o conjunto do aprendizado. Retomar de onde pararam não era uma opção. A educação ficava truncada e a escola era mais um espaço usado para o brincar.

BRINCAR E APRENDER: OPOSIÇÃO OU COMPLEMENTARIDADE? O mundo age sobre a criança como natureza e como sociedade. Os elementos a educam - o ar, a luz, a vida na planta e no animal; e as circunstâncias sociais a educam também. O verdadeiro educador representa um e outro; mas sua presença, diante da criança, deve ser como um dos elementos. Buber, 2001.

A escola para a maioria das crianças era, em minha observação de campo, um espaço pleno de questões de grande complexidade. No entanto, a dimensão do brincar impõe-se em grande número de momentos e situações, neste universo em que as crianças encontram-se, frequentemente, como principais protagonistas de espaços de liberdade mesmo que em interstícios do poder dos adultos e de um programa educacional nem sempre compreensível ou acessível. A começar pelo uso obrigatório da língua portuguesa, dificultando a compreensão do conteúdo e o próprio desenvolvimento escolar. Essa questão apareceu com

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Adelaide, Januar, Gina, Félix e Beni: o português era um obstáculo real para eles. Félix, por exemplo, só sabia copiar as letras pois “desenhava-as”, mas não entendia o que significavam. Adelaide falou sobre as dificuldades de entender as disciplinas de português e matemática, pois não entendia o que o professor queria dizer; num outro momento, também na escola, enquanto conversávamos, um menino passou e ficou olhando aquela cena (de conversa com as meninas). Ao perguntar o que ele queria, ele correu. Adelaide então disse “ih, não está a entender este ai. Não sabe português”, e ao questioná-la então como ele compreendia e participava das aulas, ela respondeu “boa pergunta. Não sei.” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 1, 2014). Moçambique é um país com mais de 20 milhões de habitantes, do qual a maioria comunica-se em línguas nacionais, como o changana e o rhonga. Os falantes de português no censo de 1997, considerando-o como segunda língua, constituiam em 3% dos habitantes do país; já no último censo realizado, em 2007, este número aumentou para 8,8% (enquanto 11,4% da população tem o changana como língua materna mais frequente). De qualquer forma, a maioria das crianças acabava utilizando o português apenas na escola, imposto como língua oficial no plano de educação do país (INE; 2007; MEDEIROS, 2007; COSTA, 2009). Numa conversa com a professora E., durante um momento destinado à formação e disciplina escolar das crianças e enquanto a escola encontrava-se vazia, foi possível compreender a dinâmica das crianças com a escola, o compromisso e/ou ausência dos pais e outras questões que foram surgindo para além do uso do português: ela era moradora do bairro e quando criança também estudava naquela escola, como pode ser observado abaixo.

Eu nasci aqui, eu sei entender as coisas daqui. Eu sei porque as crianças não chegaram, estão atrasadas. Sabe onde elas estão? Os pais deixam as crianças assim, soltas. Elas estão guevando40 algo, ou estão no mercado, e aí se atrasam para vir na escola. Sabe, eu não sei o que alguns pais acham da escola. Desde quando eu era criança era assim: muitos pais saem cedo para trabalhar e os filhos ficam, e a responsabilidade de vir à escola é deles. Tem pai que chega no fim do ano e não conhece o professor do seu filho. O filho falta muito, chamam para falar das faltas, e o pai não vem. Não ajudam nos trabalhos, não olham o TPC. Isso acaba influenciando no baixo rendimento da criança na escola: ao invés de falar pro filho ir na escola, ser médico ou outra coisa, não. Isso é por conta também do baixo nível econômico do bairro. As mães saem para trabalhar cedo e os filhos ficam, e fazem a mesma coisa que fizeram quando eles eram crianças, e aí não cuidam, e os filhos vão fazer o mesmo quando tiverem filhos. Outro fator é que muitos aqui são órfãos, as mães casam e vão morar no lar, e as crianças moram com as avós. 40

Termo em changana que se refere a comprar.

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As avós saem para ir às machambas, ou guevar algo, e a criança fica. Muitas ficam sujas e vem assim para a escola. […]. Tem criança aqui que tá sempre suja. E isso influencia no baixo rendimento (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

COSTA (2009; 2011), ao estudar a relação entre as escolas, famílias e as crianças em bairros periféricos de Maputo, ressalta que a ordenação dos bairros periféricos, e entre eles o da Matola A, ganha um contexto importante: a região passou por um acelerado processo de urbanização, mas muitos serviços sociais e criação de infraestrutura básica não chegam a ser acessível por questões diversas. O suporte social prescinde da auto-organização tanto de grupos domésticos quanto de vizinhança, como relatadas e discutidas no capítulo anterior. Ele é o mesmo alicerce do contexto no qual estão inseridas as escolas da região. Tais constatações caminham para um questionamento fundamental: de que modo a escola conduz a formação de crianças e como participa da formação da dimensão cidadã de crianças e de suas famílias? Segundo a professora E., muitas crianças não sabem ler nem escrever, o que também é dificultado, em sua visão, não só pela dinâmica ligado à obrigatoriedade do uso do português, mas, também, pelo que considera ser desinteresse dos pais. Estes, segundo as observações de campo, tiveram pouca e nenhuma experiência escolar ou viveram um processo de escolarização interrompida em algum momento, como foi com Zaida, mãe de Félix, com Laurinda e Margarida, Dinha e Florêncio, Virgínia, Jalilo e Maria.

Muitas crianças não têm acesso a uma creche, porque os pais não têm dinheiro. E aí entram logo na 1ª classe. Na 1ª classe não se pode chumbar, e aí tem aquele número de alunos grandes e muitos passam sem saber ler. E se fossem para a creche, fizessem o pré, iam saber algo já ao entrarem na escola. Eu dei aula para uma 2ª classe ano passado. Tinha aluno que nem desenhar a letra A sabia, tás a ver? Ai você tem que dividir a sala e dar exercícios diferentes para os que sabem algo, e ensinar os que não sabem a começar a ler. E você sozinha na sala. Falaram que iam colocar o pré na escola, que seria obrigatório, mas ainda nada. Vamos ver. Aqui é assim.... E tudo isso influencia no baixo rendimento do aluno (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 4, 2014).

Paulo Freire (1989), em texto “educadores de rua”, afirmou que é necessário que os educadores entendam, sejam estes professores, assistentes ou diretor, que a presença de atitude compreensiva do mundo do educando, e do respeito ao seu universo de conhecimento é indispensável para que a educação tome a criança como integrante importante na construção da sociedade a qual pertence. O uso da língua portuguesa e os moldes voltados à educação sistemática e à organização de ensino voltados aos moldes europeus, enfaticamente ao 187

português (provas, reprovações, entre outros), por exemplo, mostram a existência de uma cultura outra que se impõe à as culturas locais. Paulo Freire, ao nomear tal fenômeno de “invasão cultural” (1989), pontua que o “invasor pensa, na melhor das hipóteses, sobre os segundos, jamais com eles; estes são “pensados” por aqueles. O invasor prescreve; os invadidos são pacientes da prescrição” (FREIRE, 2001, p. 264). No mesmo sentido, percebe-se, através das vivências e dos diálogos, que o abuso da autoridade e do poder verticalizado recorre à estratégia de conversão com formas de violência explícita como o uso da palmatória. No entanto, nos textos oficiais, a educação, com base no que a legislação moçambicana 41 garanta um entendimento de que a educação seja igualitária dentro de ambiente de garantia de direitos e em que a integridade das crianças sejam preservados. Segundo Paulo Freire, “a antidialogicidade e a dialogicidade se encarnam em maneiras de atuar contraditórias, que, por sua vez, implicam em teorias igualmente inconciliáveis” (FREIRE, 2001, p. 263). É necessário ressaltar que no período colonial a maioria da população não teve acesso as escolas e ao sistema educacional como um todo (COSTA, 2009). As violências física, psicológica e simbólica fizeram parte do processo pedagógico de muitas crianças e adolescentes, com reforço do uso de uma relação pautada no autoritarismo e nas relações hierárquicas, e que, anos depois, muitos desses adolescentes e crianças vieram a se tornar professores, repercurtindo numa apropriação de técnicas aceitas e reproduzidas pela sociedade de um estado pós-guerra, no qual o uso da violência passou a ser aceito e legitimado como ato cultural pertencente aquela sociedade (BALOI, 2011). Paulo Freire afirma que é necessário “inventar uma pedagogia que não seja a da conversão, no sentido referido, mas a do crescimento, que não se faz sem a transformação da realidade concreta que está gerando injustiças.” (FREIRE, 1989, p. 18). Os processos do ensino e da aprendizagem devem ser um “compromisso fundamental com a transformação do mundo” (FREIRE, 1989, p. 18). Para muitas famílias, a escola era o espaço em que a criança deveria estar, mas ao serem questionadas sobre sua finalidade, era difícil definir seu papel; ao mesmo tempo que, para as crianças, era divertido haver falta de professores pois o espaço e o tempo eram destinados ao brincar. Costa (2009) ilustra este fato na discussão abaixo.

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Lei 6/92. I Série – número 19. Governo da República de Moçambique.

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Assim, a consciência da (in)formalidade da educação formal está presente nas famílias, quando estas a consideram importante em termos ideais mas, na prática, e em muitos casos, só investem em alguns anos de formação e de forma desigual em relação aos seus diferentes filhos. A partir de um certo nível de formação – quando as exigências em horas de estudo e as despesas relacionadas com a escola se tornam maiores – muitos dos jovens são retirados da escola pelos familiares ou estes desconsideram as actividades que estes aí desenvolvem, entregando-lhes outras tarefas que consideram prioritárias e que roubam às crianças tempo e disponibilidade para as actividades escolares. Ter um diploma é importante para obter um emprego, para tirar a carta de condução mas a maior parte do trabalho que efectivamente realizam não o exige. As hipóteses de conseguir os em-pregos a que aspiram são muito limitadas, mas, mesmo assim, muitas das famílias referiram que se esforçam para que os seus filhos estudem (COSTA, 2009, p.25-26).

Alguns autores (CASTIANO, NGOENHA, BERTHOUD, 2005; COSTA, 2009; 2011) discutem, ainda, sobre a questão da insuficiência e da falta de espaço físico e estruturas para as aulas, bem como a falta de qualificação e de reconhecimento dos professores, a ausência de materiais e as dinâmicas de aulas. Para Santos (2012), é necessário a compreensão de que a educação infantil possa ser um espaço coletivo educativo para a valorização das diferenças e o respeito; um espaço de educação que favoreça a diversidade, sendo necessário romper com os processos de submissão, autoritarismo, homogeneização, entre outros, que silenciam as crianças, embasam preconceitos e a deixam de fora do seu processo de conscientização do mundo ao qual afetam e são afetados. De facto, quando se fala de educação formal importa consciencializar os obstáculos que se apresentam à sua concretização prática. Mesmo que os pais considerem prioritário dar uma educação escolar aos seus filhos e façam inúmeros sacrifícios para o conseguir, muitas vezes não conseguem atingir esse objectivo. São conhecidos os inúmeros entraves que se lhes colocam: superlotação das escolas; dificuldades em matricular os filhos (muitas vezes só vencidas através de subornos); má preparação e desmotivação dos professores (baixos salários e falta de condições de trabalho); heterogeneidade das turmas que reúnem alunos de diferentes idades e grupos linguísticos; o facto de o português constituir uma segunda língua. E, no caso de todas estas dificuldades serem superadas, a educação formal, por si só, não implica uma mudança em termos sociais e económicos ou de atitudes. Os empregos formais são escassos mesmo para indivíduos com uma certa formação escolar e a frequência da escola, na cidade ou nos subúrbios de Maputo, não é por si só motor de desenvolvimento, não representa necessariamente mudança social ou de comportamentos (COSTA, 2009, p. 11).

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Ao entendermos a educação como processo de formação humana, deve-se considerála como um trabalho educativo, no qual, segundo Saviani (2005), é um “ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (SAVIANI, 2005, p. 13). Compreender a educação e o ato de educar como um processo histórico, social, econômico e cultural de formação humana é compreender a formação humana do ser humano, da qual se torna possível um maior grau de consciência e compreensão da realidade da qual fazemos parte, pertencemos e participamos. Os autores Jurdi, Brunello e Honda (2004) discutem que o processo de educação se dá através dos encontros. Estes possibilitam às crianças o acesso aos conhecimentos diversos que fazem com que a apropriação do mundo humano seja parte do seu processo democrático de aprendizado, em que se possa ser criados espaços de transformação, significação, sentido e pertencimento. Segundo os autores, “apropriando-se de um determinado saber, o indivíduo cria possibilidades de intervir e agir no ambiente, transformando-o.” (JURDI, BRUNELLO, HONDA, 2004, p. 27). Mesmo em contexto adverso, as crianças, dentro dos espaços escolares, tanto nas salas de aula, no pátio ou os espaços próximos, expressavam-se e interagiam entre elas e socializavam-se através das brincadeiras, do desenho, da pintura, da divisão dos alimentos no momento da entrada ou no intervalo entre aulas. As relações entre pares, entre elas e os adultos e entre o espaço da instituição escolar dizia das relações de respeito, de cuidado, de autoridade e de autoritarismo, misturados e que aconteciam no mesmo local. Paulo Freire nos faz refletir sobre a experiência do pensar, em que “a prática e a realidade em que ela se dá, como objeto de nossa reflexão crítica, termina por nos revelar obviedades que, porém, não suspeitávamos.” (FREIRE, 1985, p. 11). Permanece urgente e necessário pensar e repensar as práticas escolares e educacionais, entendendo a ação das crianças e da comunidade como fundamentais no processo e que os saberes locais, culturais e sociais devem integrar o quadro da educação. A educação como prática da liberdade é a relação com o outro e sua problematização; é pensar as relações sem hierarquias e verticalidades nas interações, numa relação com o outro. Somente os seres que podem refletir sobre sua própria limitação são capazes de libertarse desde, porém, que sua reflexão não se perca numa vaguidade descomprometida, mas se dê no exercício da ação transformadora da realidade condicionante. Desta forma, consciência de e ação sobre a

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realidade são inseparáveis constituintes do ato transformador pelo qual homens e mulheres se fazem seres de relação. A prática consciente dos seres humanos, envolvendo reflexão, intencionalidade, temporalidade e transcendência, é diferente dos meros contactos dos animais com o mundo (FREIRE, 1976, p. 66).

A escola, como espaço de formação, deve adotar dinâmicas que incluam as crianças e processos de aprendizagem que sejam significativos e produzam sentido, pertencimento e conhecimento. Apropriar-se dos saberes mútuos, locais e partilhados, e permitir o lúdico dentro do ambiente escolar, entendendo-o como linguagem e como possibilidade de interpretação do mundo e das experiências adquiridas é abrir espaço para a formação como um todo, compreendendo esta como possibilidade de transformação e atuação aos mundos que partilham e pertencem.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS. FINAIS? A ETNOGRAFIA, A FOTOGRAFIA E A TERAPIA OCUPACIONAL SOCIAL.

Passava os dias ali, quieto, no meio das coisas miúdas. E me encantei. Manoel de Barros.

Ao realizar uma pesquisa, há que se ter em mente que se trata, direta ou indiretamente, de relações interpessoais em que o imaginário e as experiências partilhadas e a construção de um espaço de trocas participam da construção do conhecimento que construímos conjuntamente. No processo de um estudo etnográfico um conjunto muito complexo de saberes e de dinâmicas intersubjetivas exigem, além da preparação do/a pesquisador/a, uma disponibilidade para o outro. Esta não é, contudo, espontânea, mas sim aquisição tão frágil quanto fundamental que só pode ser construída na reflexão, juntamente com a autoobservação constante, além de intenso trabalho intelectual e pessoal; é um processo mútuo: somos observados/as e este é um dos aprendizados significativos da prática antropológica. Cabe aqui ressaltar os laços com a formação do/da terapeuta ocupacional, sobretudo no campo social, pois este precisa construir interações e (auto) reflexões sobre/na a atividade humana e aprender permanentemente a interagir e a dialogar no universo do agir, do fazer, do trabalho e do brincar. Assim, houve em minha formação e trabalho profissional aproximações importantes com o percurso da pesquisadora. Tanto no contexto da pesquisa etnográfica como no trabalho comunitário em terapia ocupacional social, há que se elaborar a pluralidade de possibilidades e de sentidos em que as interpretações da ação apenas apreendem sentidos na dialogia freiriana e na tensão do entrelaçamento entre crianças, redes sociais, famílias em seu contexto social, histórico e cultural. Na diversidade conhecemos, ainda que parcialmente, os sentidos múltiplos, particulares e específicos às atividades das crianças.

Para a construção do conhecimento é necessário interagir com as regras e com os símbolos implicados na alteridade e nas dinâmicas relacionais e culturais, e é preciso, também, carregar junto de si a premissa de que se poderá adquirir novos conhecimentos, estando sempre abertos/as para o novo. No caso deste trabalho, a pesquisa só foi possível com o reconhecimento da legitimidade da cultura das crianças, abrangendo seu universo simbólico, as diferentes formações de famílias, a força da ancestralidade na produção da pessoa que é plural e relacional, as formas de organização social, as relações entre pares, as contradições e esforços dos profissionais no espaço educacional na escola, as disposições e dinâmicas 192

existentes na comunidade e a história do bairro. Estar em campo exigiu relação dialógica, tecida progressivamente na busca de parceira para a construção do entendimento. No trabalho de campo, o/a pesquisador/a precisa ler o mundo do outro e atentar-se para apre(e)nder os símbolos e significados novos nem sempre acessíveis através do olhar, mas sim pela experiência sensível, vivenciadas e partilhadas. Quando se realiza um estudo com crianças é necessário ponderar um conjunto de cuidados, desde as questões que a pesquisa levanta, até a maneira de ser conduzida no trabalho de campo. Deve-se considerar ainda as características da comunicação e da interlocução com crianças, compreendendo, nesse contexto, o modo como a pesquisa é processada e informada aos participantes, o lugar em que estamos e o lugar que queremos estar, como é devolvida e, por fim, concluída. Exige-se do/a pesquisador/a a sensibilidade e a ética pertinentes à linguagem das crianças, sem esquecer a permanente interlocução com seus familiares e com as pessoas envolvidas em suas vidas, principalmente durante o processo em que se realiza a pesquisa. É preciso, ainda, levar em consideração o espaço-tempo, a cultura e a sociedade em que nos disponibilizamos estudar e que, de maneira recíproca, se disponibilizaram para nós como campo de estudo. Nos estudos em que se coloca em relação com o outro, e, no caso, com o ser criança, elementos outros acabam por emergir e fazer parte de um processo contínuo, em que o brincar está presente de uma maneira intensa e que aparece de diversas formas. O brincar nos leva ao mundo do imaginário humano e a um mundo em que o nosso ser criança refloresce: é através do brincar que a sensibilidade e as formas de se expressar das crianças, e também dos adultos, vem à tona. Ao propormos um estudo com crianças, a partir de um olhar e de vozes próprias, permitimos que o ponto de partida seja a percepção deste ser criança (e das infinitas possibilidades de ser) e das infâncias por elas mesmas, compreendendo a espontaneidade e naturalidade que são particulares, mas também a criatividade e modos de poder ser coletivos, típicos do ser criança, que não estão implicados e implicitados numa ordem lógica, cronológica, mas sim a partir das vivências culturais infantis, dos universos de pertencimento, dos tempos outros, não calculados e delimitados pelo relógio, mas pelas formas de encontro que são permitidas e ofertadas às crianças, sempre sensíveis ao seu entorno e as formas de perceber as transformações ao seu redor. A escola, enquanto instituição em que a infância acontece, e como lugar destinado a elas, acaba por andar na contramão dos estudos sobre as crianças: é o descompasso de um 193

anacronismo espacial e temporal que traduz a incapacidade de levar a sério o brincar e a ludicidade e torná-los formas de conhecimento e saberes próprios das crianças, frutos da expressão e construção de uma racionalidade infantil que exige espaço para vir a ser, e que, muitas vezes, não cabe no espaço-tempo da escola moderna, em que a realidade da ação do professor encontra-se distante da comunidade, embora sua estrutura física habite o centro da mesma, num movimento contrário a tomada de consciência e de transformação, em que o diálogo parece cada vez mais distante. É preciso pensar e repensar os espaços de ensino e de formação destinado às crianças e as práticas que queremos levar enquanto educadoras e, possivelmente, transformadoras. O estudo permitiu, dentre muitas afirmações, compreender que falar de uma infância já é insuficiente. Desconstruir os modos como as infâncias são retratadas e propiciar rupturas na universalização desta visão, eurocêntrica e globalizada, são os desafios que os sociólogos da infância, antropólogos e terapeutas ocupacionais, entre outros estudiosos das crianças e das infâncias encontram, compreendendo, também, que a partir de um olhar pela e da própria infância conseguimos captar os múltiplos olhares e saberes de grupos sociais e culturais diversos que nos propomos a estudar. Fazer pesquisa é descobrir modos próprios de ser pesquisadora. É entrar em contato com particularidades não antes experimentadas, pensadas ou mesmo sonhadas. Utilizar da escrita como único instrumento não pareceu ser suficiente para capturar os símbolos e significados aos quais estava disposta a encontrar; experimentei então recursos outros, como a fotografia e o vídeo, partilhando o entendimento e significado da diversidade e alteridade numa cultura específica, expressa nas relações construídas, (re) significando um universo singular, integrado e coletivo de símbolos, sentidos e lógicas próprias. Cabe então destacar aqui uma reflexão sobre o lugar da fotografia neste estudo. Para isto, retomo uma das notas do caderno de campo:

Ontem vi minha última aula com eles. Essas coisas de último aqui, último cá, mexem com a gente. Já fui resolvendo não pensar em nada... Mas nunca é assim quando chego lá. Félix abriu maior sorriso e logo os meninos se revezavam para ver quem ficava ao meu lado. Como eu fazia parte daquela sala e do grupo de crianças, como assim diziam, eu era o número 77 da chamada. A lição do dia era trabalhar junto: fizemos um desenho coletivo, e o professor pediu para colocarem o número das pessoas que participaram – o meu estava ali, no meio do papel crafit, representando meu lugar. O tema da pintura era livre, e então os meninos resolveram desenhar as nossas bandeiras – a do Brasil, que eu ensinei, e a de Moçambique, que eles me ensinaram. A justificativa era uma só: "porque você é brasileira, mas é

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moçambicana, não é? E nós também, somos moçambicanos e brasileiros", diziam eles. “Temos que tirar fotos”, disseram em seguida. Félix questionoume “Marina, lembras o que te falei quando tirou fotos na minha casa? Aqui é assim também: queremos fotos para você não esquecer da gente. E porque gostamos muito de ti!”. Sem perguntar o porquê aos outros, já foram dizendo: “há de entregar essas fotos para nós. Havemos de guardar. Nós gostamos de você, mas está a nos fugir. Vais embora! Vamos olhar para a foto e lembrar que brincaste com a gente, que nos ajudaste na tarefa. Que nos filmou! E como brincaste! Você tens 24 anos, mas parece 16 sabes? Às vezes és criança como nós. E dentro do nosso coração sabemos que és boa; és uma irmã para nós”. Fui percebendo aquele movimento, que foi se repetindo em muitas salas, com muitas das crianças. De repente, consegui compreender algo que estava implícito, mas parecia escondido: eu tinha um lugar ali, que ia para além do ser pesquisadora; brincar, correr, pular muros, se perder, ir para a aula, amarrar capulana, tentar falar em changana... Tudo isso me fazia ser a Marina, a mana Marina, a filha, a irmã, a madrinha, etc. Ser brasileira e moçambicana, como as crianças descreviam, era ter duas nacionalidades, duas raízes, duas etnias, duas culturas. Era me reconhecer ali, e fazer as crianças se reconhecerem em mim; aquilo me chamava para a compreensão do que vivi ali, do ser criança e das possibilidades de ser, não só delas, mas de mim, enquanto ser humano em constante movimento. Era o elo de ligação de um processo para além do campo. E a fotografia? Ah, a fotografia me faria estar presente, mesmo que ausente; era uma marca viva da minha passagem, das minhas conquistas e do meu abandono. Era a lembrança e a cobrança da volta, das memórias vividas, dos momentos passados. Como me disse Rosinha, “não esqueceste da gente, nem da nossa história... Agora você faz parte dela...” (ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO, 2014).

A fotografia e o vídeo misturaram-se, nessa pesquisa, com o ato do brincar e com a ludicidade dos momentos. Brinquei porque faz parte do meu ser humana, enquanto lugar de direito, mas brinquei também porque, como terapeuta ocupacional de formação, compreendendo que o brincar é um dispositivo do fazer junto, e um mecanismo para conhecer o outro, vinculando-me a este, ao mesmo tempo em que não me torno ele (o outro). Construir atividades, como o desenho coletivo, me fez estar junto às crianças e suas famílias de uma outra forma, e que, complementada com as imagens, produziram a interação do ser pesquisadora com os sujeitos da pesquisa, com os dados e com a composição final, propiciando a produção de conhecimentos em instâncias do não-verbal, mas no universo do sensível e para além dos domínios do visível, como resultados de uma construção cultural e social específicas. Ao utilizar tais recursos entramos no campo do imaginário em que a memória, o patrimônio e as narrativas se fazem presente, com alternância entre a destruição e a reconstrução dos territórios da vida, trazendo para o trabalho etnográfico a possibilidade de 195

desenvolver novas competências que o modelo da escrita linear não necessariamente permite; a fotografia, o vídeo e as imagens criadas revelam a possibilidade de uma análise em que os aspectos mais sensíveis e subjetivos estejam presentes, muitas vezes ocultados no percurso, trazendo-as como expressão de um processo de pesquisa e relação. A câmera fotográfica foi, entre outros, instrumento de comunicação e de construção comum do olhar sobre o mundo da experiência significativa. A liberdade de seu manejo das crianças em sua operação e nas fotos que tiraram, possibilitou trocas em exercício da prática etnográfica de maior vinculação, num caminho de uma pesquisa (com)partilhada e porta para os entendimentos múltiplos e diversos. Assim, compreende-se a importância do processo de retorno e de restituição das fotografias, veiculando vínculos e reciprocidade entre as pessoas participantes da pesquisa. A partir da compreensão que elas oferecem alternativas para a elaboração e construção de formas outras de conhecimento, compreendendo direções distintas do imaginário, singular e coletivo, social e cultural, as imagens captadas e co-produzidas foram colocadas no final deste trabalho. Esta opção se deve ao entendendo de que sua incorporação no copo da dissertação exigiria um tempo que não dispunha a fim de dar conta da análise, discussão e apropriação de significados e sentidos. Entendo que este é dos desafios para trabalhos posteriores. Contribuir para a construção do campo das pesquisas sobre a infância na terapia ocupacional é sem dúvida uma das ambições deste estudo; conhecimento que pode se enriquecer ao se assumir como campo de interfaces com a sociologia e a antropologia. A criança aqui revela o caminhar humano, que ela percorre de forma singular acrescentando riquezas e inovações ao nosso entendimento sobre a vida, as relações sociais em suas ambiguidades e paradoxos, mas também em um grande universo de atos de criação e de capacidades de ler e escrever o mundo da cultura com suas atividades, imagens, relações e significações.

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