\" Sozinho \" numa casa de shows \" deserta \" : a relação entre estranhamento e familiaridade e o papel da subjetividade na construção do conhecimento antropológico

June 8, 2017 | Autor: C. Mauricio Junior | Categoria: Ethnography, Anthropology of emotions, Participant Observation, Anthropology of Religion
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“Sozinho” numa casa de shows “deserta”: a relação entre estranhamento e familiaridade e o papel da subjetividade na construção do conhecimento antropológico Cleonardo Mauricio Junior1

Resumo: Este artigo é resultado de trabalho de campo2 realizado no 8º Congresso de Avivamento Despertai protagonizado pelo Pr. Silas Malafaia, onde procurei compreender como os líderes carismáticos são elevados a uma posição de virtuosismo religioso acima de seus pares. Valendo-me das anotações no meu diário de campo, debato a relação entre estranhamento e familiaridade presente nesta experiência etnográfica, haja vista já ter sido evangélico e aspirante a pregador. Discuto ainda o lugar da subjetividade e o papel das emoções na construção do conhecimento antropológico, especificamente em meio à etnografia do fenômeno religioso. Palavras-chave:

ETNOGRAFIA.

ESTRANHAMENTO.

FAMILIARIDADE.

CONHECIMENTO. SUBJETIVIDADE. EMOÇÕES

Abstract: This paper is the result of fieldwork conducted at the 8th “Avivamento Despertai” Congress leading by Pastor Silas Malafaia, where I tried to understand how charismatic leaders are elevated to a position of religious virtuosity above their peers. Drawing on the notes of my field diary, I discuss the link between familiarity and strangeness present in this ethnographic experience, taking into account I used to be evangelical and an aspiring preacher. It also discusses the place of subjectivity and the role of emotions in the anthropological knowledge construction. Keywords:

ETHNOGRAPHY.

STRANGENESS.

FAMILIARITY.

KNOWLEDGE.

SUBJECTIVITY. EMOTIONS

1

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) 2

Realizado no âmbito do projeto Textualidade e Oralidade da Bíblia, coordenado pela professora Roberta Campos (PPGA - UFPE) e financiado pelo CNPq

Imagine o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamento, numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa, vendo a lancha que o trouxe afastar-se no mar até desaparecer de vista... você não tem nada para fazer a não ser iniciar imediatamente seu trabalho etnográfico. Suponhamos, além disso, que você seja um principiante, sem nenhuma experiência, sem roteiro e sem ninguém que o possa auxiliar... Imagine-se entrando pela primeira vez na aldeia, sozinho ou acompanhado de seu guia branco... Bronislaw Malinowski. Os Argonautas do Pacífico Ocidental, 1976.

Foi exatamente este trecho da introdução dos Argonautas que lembrei ao entrar naquela casa de shows lotada, não para a apresentação de algum grupo, cantor ou cantora musical de sucesso (se bem que fosse haver muita música naquela noite ainda), mas para ver de perto o Pr. Silas Malafaia conduzindo o 8º Congresso de Avivamento Despertai, realizado no Recife, em outubro de 2010. Imaginei o frio que percorria a espinha do grande Malinowski ao se ver sozinho naquela praia deserta sem ter nada para fazer a não ser começar sua etnografia, suponho, para espantar rapidamente o desejo de desistir e fugir dali. Eu estava sozinho, mas não tinha sido levado por uma lancha, lá cheguei dirigindo o carro do meu pai. Não estava em uma praia deserta, ou entrando numa aldeia, mas na maior casa de shows do estado. Também não precisei de guia branco algum, pois podia entender perfeitamente o português que ali se falava, mas mesmo assim, como consta no meu diário de campo elaborado naquela noite, sentia-me “acuado, fora de lugar, sentado no canto fazendo anotações, sem coragem alguma de me levantar e falar com as pessoas”. Não precisava supor ser um principiante, sem nenhuma experiência, sem roteiro e sem ninguém que pudesse me auxiliar, pois esta era exatamente a descrição fiel de minha situação (ainda sou principiante, porém já posso contar esta experiência). Restava-me apenas, como eu supunha ter sido a estratégia de Malinowski, começar a fazer alguma coisa antes que eu cedesse às súplicas de minha consciência para que saísse de lá, afinal, eu não precisava esperar outro barco vir me buscar, era só pegar o carro e ir embora. Ainda que decidido a dar início ao que eu entendia ser o trabalho etnográfico propriamente dito (gravar, anotar, observar), permanecendo assustado com todo aquele novo mundo a explorar, não procedi como havia planejado: não elaborar de imediato o diário de campo, deixar aquela primeira noite apenas para observar e gravar minhas impressões imediatas3. Ao invés disso “preferi anotar a gravar minhas impressões. Morri de vergonha de 3

A técnica de gravar o diário de campo foi registrada primeiramente por Adjair Alves na sua tese “O rap é uma guerra e eu sou gladiador: um estudo etnográfico sobre práticas sociais dos jovens happers e suas representações sobre violência e criminalidade”, PPGA-UFPE, 2009. Sob orientação da Prof (a) Roberta Campos.

tirar o gravador e começar a falar nele: todos iriam ficar olhando”. Estava ali para analisar a performance do Pr. Silas Malafaia durante a mensagem que ele daria aos congressistas e pretendo, através desta experiência que tive, explorar a relação entre estranhamento e familiaridade, além do papel da subjetividade, na construção do conhecimento antropológico.

Do familiar e do estranho Roberto Da Matta (1978), em seu já clássico artigo sobre o trabalho de campo, diz que tornar-se antropólogo é aprender a fazer uma dupla tarefa: transformar o exótico no familiar e/ou transformar o familiar em exótico, estando o estranhamento, requisito indispensável para a construção do conhecimento antropológico, presente em ambas. Para o autor a primeira transformação – do exótico em familiar - corresponde ao movimento original da Antropologia, quando os etnólogos buscavam o “outro” distante sociologicamente, e geograficamente, e tentavam compreender os enigmas sociais incompreendidos pelo Ocidente. A segunda transformação corresponde ao momento presente, “quando a disciplina se volta para a nossa própria sociedade, num movimento semelhante a um auto-exorcismo, pois já não se trata mais de depositar

no

selvagem africano ou melanésio o mundo de práticas primitivas que se deseja objetificar e inventariar, mas de descobri-las em nós, nas nossas instituições, na nossa prática política e religiosa. O problema é, então, o de tirar a capa de membro de uma classe e de um grupo social específico para poder – como etnólogo – estranhar alguma regra social familiar e assim descobrir (...) o exótico no que está petrificado dentro de nós (...)” (DA MATTA, 1978: 28)

Depois da experiência obtida no 8º congresso de Avivamento Despertai percebi que as duas transformações estavam presentes no meu trabalho. Antes de mostrar esta imbricação entre transformar o exótico em familiar e o familiar em exótico na minha etnografia, é necessário falar do que me era familiar - e do que me era exótico – em relação aos adeptos do protestantismo pentecostal antes de entrar sozinho naquela casa de shows “deserta”. Fui evangélico, membro de uma igreja pertencente à convenção batista nacional, a qual havia rachado com a convenção tradicional (batista brasileira) pelo fato de uma parte de seus líderes terem passado pelo que chamaram de renovação espiritual. O grupo que havia fundado a comunidade da qual participava saiu de uma igreja batista tradicional na cidade de Camaragibe, a primeira a surgir ali, para abrir outra, ligada à ala renovada dos batistas.

Devido à formação tradicional dos fundadores, práticas reconhecidamente pentecostais como a ênfase na cura, e em outros dons do espírito, ainda que fossem incentivados, não eram centrais na liturgia da nova congregação. Isto possibilitou a convivência entre grupos que iam dos mais aos menos “avivados” no seio da mesma comunidade, o que faz com que eu a classifique como tendo uma prática intermediária entre a liturgia pentecostal e a protestante histórica. Eu fazia parte do grupo mais próximo das práticas tradicionais. Aos 14 anos me converti justamente na comunidade da qual os membros fundadores haviam saído para criar a nova, e renovada, igreja. Alguns anos depois, aos 18, fiz o mesmo caminho: saí da igreja tradicional e busquei a congregação que havia passado pelo “avivamento”, mesmo sem saber ao certo o que isto significava. O que realmente procurava era uma liturgia menos sisuda e cheia de restrições, característica muito atrativa para um jovem. Cheguei à igreja renovada quando esta possuía cerca de 13 anos de existência, já sendo, a esta altura, a congregação com o maior número de jovens na cidade. Envolvi-me naquela instituição com um grau de comprometimento acima da média. Participei de grupos de música, teatro, dei aula na escola bíblica dominical, até tornar-me líder dos adolescentes e, posteriormente, dos jovens. Decidi tornar-me, então, pregador. O momento da pregação era o mais sublime de todos para mim. Ficava entorpecido com o efeito que a mensagem deixava nas pessoas. Imputavam a mim o dom da palavra: cheguei a ser várias vezes o pregador no culto principal da igreja, que possuía, nesta época, em torno de 3.000 membros. Escolhi para estudar, ratificando minha posição mais próxima aos protestantes históricos, em um dos seminários teológicos mais tradicionais do Brasil. Envolvi-me também, posteriormente, com um grupo de teólogos percebidos no meio evangélico como sendo progressistas: os adeptos da teologia da Missão Integral, que podem ser classificados como integrantes da versão protestante da teologia da libertação católica. Esta trajetória, as escolhas e os grupos aos quais aderi tornaram-me extremamente resistente às doutrinas essencialmente pentecostais, sobretudo neopentecostais. Criticava ferrenhamente a teologia da prosperidade como a comercialização do evangelho e via os pastores nela envolvidos como meros charlatões. Aos 25 anos, um ano antes de desistir do curso de Economia e transferir-me para o curso de Ciências Sociais, deixei a igreja e o curso de Teologia. Não desejava mais ser pregador, nem tampouco evangélico. Os pentecostais, sobretudo os neopentecostais, eram para mim, então, uma multidão que se reunia para “bater panelas”, ou seja, fazer muito barulho desnecessário sem nenhuma consistência teológica. Entendia-os, ainda, como um bando de (des)enganados pelos charlatões da palavra. Ao entrar naquela casa de shows e verificar que as impressões em mim

arraigadas desde o tempo em que era um “nativo” não se confirmaram, começou ali o processo de transformação do exótico em familiar. A identificação de classe foi a primeira a aparecer, como relato em meu diário de campo: “Com certeza há pentecostais de classe média. A aparência das pessoas denuncia. Não devia esperar nada diferente disto já que o ingresso custa R$ 40,00”. Entendi que os pentecostais não eram apenas compostos por pobres, fáceis de serem ludibriados. A estética também foi um motivo de estranhamento. Não havia apenas mulheres de saias longas, cabelos amarrados, de estilo conservador/retrógrado, como eu esperava. Jovens com roupas da moda desfilavam o tempo inteiro pelo salão. Como relatei no meu diário vi que “algumas mulheres têm seus trajes de acordo com as pentecostais tradicionais, mas várias usam calça, maquiagem e outros”. Impressionava-me o fato de que “as pessoas são mais bonitas do que eu pensei que seria”. A liturgia também não era um “bater constante de panelas”, como eu esperava. Os cânticos e as manifestações de louvor dos fiéis eram esteticamente belas, até. Entendo que o meu maior motivo de estranhamento foi ter percebido que eu poderia estar ali, não como pesquisador, mas como um deles, não fossem minhas escolhas. Estar lá me fez passar pelo processo que Da Matta (1978) afirma ser um encontro com o que a própria cultura do pesquisador reveste de bizarro. Foi por meio de apreensões cognitivas (citando Da Matta ainda), através da via intelectual, que pude desfazer a imagem que tinha dos pentecostais, construída por mim desde os tempos da atuação militante entre os teólogos da missão integral. Esta relação imbricada entre “familiar” e “estranho” é relatada por Maria Laura Viveiros de Castro (2003) no artigo em que fala de sua experiência de trabalho de campo entre os espíritas. As noções de familiar e estranho/exótico são diferentes em Da Matta e Viveiros de Castro, mas analisar tais noções nesta autora serve para compreender, na minha pesquisa, o processo chamado por ela de “des-conhecer”, o qual se assemelha à atitude de transformar o exótico em familiar de Da Matta. Para Viveiros de Castro, o centro espírita onde realizava sua pesquisa lhe era “familiar” porque se localizava num bairro que remetia à sua infância. E “estranho” ao ser o responsável por mudar a configuração daquele lugar que ela conhecia anteriormente como um supermercado, onde brincava quando criança com as cores das latas empilhadas pelos corredores, sem falar em todo o segredo, e o medo, que ronda esta religião, para aqueles que, obviamente, não a conhecem. Para ela, estar ali era “aproximar-se de um „familiar‟ – aquele comecinho de Ipanema – que lhe era „estranho‟ – os bazares, sujos, desarrumados e espíritas!” (CAVALCANTI, 2003: 120). E aqui está a diferença das noções levantadas por estes autores trabalhadas até aqui: em Viveiros de Castro

o “estranho/exótico” e o “familiar” não são os extremos a serem transformados um no outro, a depender da situação, pelo antropólogo herói ou xamã (termos utilizados por Roberto Da Matta para definir o tipo de protagonista de cada viagem de transformação). O “estranho” e o “familiar” convivem no mesmo “objeto”, situação que também aconteceu no meu próprio trabalho de campo. Focando na questão da familiaridade, comparando minha experiência com a da autora, soava “familiar”, para mim, falar dos pentecostais, tecer comentários sobre quão desengonçadas eram as assembleianas, criticar sua inaptidão teológica ou seu fanatismo e intolerância costumeiros. Para a autora, “familiar” era o lugar da pesquisa, as pessoas lhe eram “estranhas”. Para mim, as pessoas me eram familiares (pelo menos achava que era até estranhá-las), afinal, elas foram, durante muito tempo, o principal motivo de críticas de um jovem candidato a pastor. O lugar, e no meu caso se tratava de um lugar sociológico, este sim, foi o principal fator de estranhamento, ao contrário do que aconteceu com Maria Laura Viveiros de Castro. Ter me deparado com um grupo oriundo das camadas médias urbanas no momento do meu trabalho de campo foi, justamente, o gatilho para iniciar-me neste processo imprescindível a todo antropólogo. Perceber que não havia entre nós, à primeira vista, fronteiras sociológicas, produziu em mim o estranhamento de projetar-me neles (já que não queria fazê-lo), ver-me caber ali, podendo ser amigo daquelas pessoas as quais eu considerava tão diferentes de mim. Esse des-conhecer, ou seja, desfazer-se de conhecimentos pertencentes à esfera do senso comum (e é justamente o tipo de conhecimento que eu possuía, pois nunca havia participado de um evento pentecostal daquela dimensão antes) na medida em que se aproxima do grupo a ser estudado é, segundo a autora, uma exigência para a construção do conhecimento antropológico. Tal des-conhecer foi completado ao verificar que estava enganado quanto às minhas concepções anteriores, e que havia ficado, poderia dizer, encantado pela estética das pessoas, do local, e da liturgia. Quanto à segunda transformação citada por Roberto Da Matta (1978), transformar o familiar em exótico, descobrir o exótico no que está petrificado dentro de nós, foi, como vários outros autores, e o próprio Da Matta, já o disseram, um processo mais difícil (que ainda não se encerrou, já que a pesquisa sobre os líderes carismáticos ainda se encontra no início). O objetivo de minha ida ao 8º Congresso de Avivamento Despertai era verificar a performance do Pr. Silas Malafaia analisando-o, nas palavras de Simon Coleman (2009), como um Mestre da Narrativa. Era necessário acompanhar a mensagem que o Pastor Malafaia realizaria naquela noite e verificar como sua posição de superioridade espiritual em relação aos demais é construída na interação com os fiéis. Perceber, também, se esta interação seria,

nos termos de Joel Robbins (2009), produtora de energia emocional, era outro objetivo premente. Mesmo não freqüentando um culto evangélico sequer há cinco anos, nem me identificando mais como evangélico já há algum tempo, ainda havia um resquício de encanto em relação a este momento, o da prédica. A academia ainda não me proporcionara as sensações que me vinham quando do recebimento, ou da execução, de uma prédica, nos meus termos, bem realizada. Tornar a mensagem o centro de uma pesquisa científica e entendê-la como fazendo parte de uma ideologia lingüística4 que a abrangia e de uma dramatização do carisma por parte de quem a realizava não seria tarefa fácil, mesmo que o pastor fosse alguém a quem, na minha época de pregador, eu não admirasse tanto. Eu precisava fazer o que Roberto Da Matta (1978) chamou de a viagem do xamã, para dentro de mim mesmo, a fim de poder transformar o familiar em exótico, desligar-me emocionalmente daquilo e, finalmente, encontrar-me com o outro e com o estranhamento. A experiência no campo de Carmen Susana Tornquist (2007), ao realizar sua pesquisa no seio do movimento social do qual era ativa militante, o movimento pelo parto humanizado, serve para iluminar um pouco do que acontecera comigo. Não pretendo equiparar nossas experiências, pois não fazia minha pesquisa dentro do meu próprio grupo, o que só aconteceria, ainda que dele não faça mais parte, se analisasse os teólogos da missão integral. No entanto, o conceito de alteridade construída utilizado pela autora, serve para esclarecer, guardadas as devidas proporções, minha experiência. Tornquist mostra que “a antropologia das sociedades urbano-industriais exige que o estabelecimento de fronteiras, tênues do ponto de vista geográfico e social, sejam estabelecidos simbolicamente pela pessoa que faz a pesquisa” (TORNQUIST, 2007: 44). A questão, então, se resumia em erigir fronteiras simbólicas esforçando-me para objetivar, em mim mesmo, tais fronteiras. O questionamento da autora sempre foi “como estranhar o que me era tão familiar?” e eu precisava fazer esta pergunta a mim mesmo, ainda que, diferente dela, não mais convivesse com este familiar. Se bem que eu nutria (ainda nutro?) a esperança de num futuro longínquo, cansado das vicissitudes da vida acadêmica, eu voltasse a tratar não mais de desencantar as almas dos meus leitores, mas de voltar a encantar a vida de alguns. Rememorar e recolocar as lentes da teoria foi a estratégia utilizada por mim para analisar a 4

Robbins diz que a ideologia lingüística, termo usado pioneiramente pelos antropólogos do Cristianismo, “refere-se às idéias compartilhadas pelas pessoas sobre a natureza da linguagem, como ela funciona, e como as pessoas devem usá-la. Ideologias da linguagem variam muito entre os grupos, e formam componentes cruciais da visão que as pessoas possuem, não só sobre comunicação, mas também sobre a natureza da pessoa, ação e moralidade” (ROBBINS, 2010, p. 13).

performance do Pr. Malafaia para que, ao invés de fazer uma análise teológica da mesma, procedesse com uma análise antropológica.

O lugar da subjetividade e o papel das emoções no fazer etnográfico A subjetividade foi relegada ao segundo plano na construção do conhecimento científico ocidental, não só nas ciências naturais, mas também nas ciências humanas. O nascimento da Sociologia, e a construção de seus métodos, estão enquadrados na tentativa de transportar inequivocamente a metodologia pretensamente garantidora da objetividade das ciências naturais para as ciências do espírito. Roberto Cardoso de Oliveira (RCO) (1995) nos mostra como Durkheim, nas suas Regras do Método Sociológico, faz questão de desqualificar a subjetividade como integrante da verificação dos fatos sociais na Sociologia, a fim de conferir cientificidade a esta disciplina então nascente. Durkheim visa, esclarece RCO, eliminar tudo aquilo que seja variável na análise dos fatos sociais. Quanto mais fixidez no objeto a ser estudado, mais objetividade, conseqüentemente, menos variação. A variação é o vilão da história na medida em que ela implica a presença do elemento individual, portanto variável e, por sua vez, perturbador de qualquer tentativa de generalização, ou seja, de se alcançar o conhecimento objetivo. RCO nos mostra que, para Durkheim, devem-se estudar os fatos sociais onde eles se apresentam isolados de suas manifestações individuais. O método serviria, então, para garantir a eliminação da subjetividade do sujeito cognoscente e da conseqüente individuação do objeto cognoscível, os quais trariam como conseqüência a inviabilidade de qualquer pretensão científica, entendida aqui como a capacidade de quantificar os fenômenos (OLIVEIRA, 1995) Tendo o que ele chama de cientismo se solidificado na sociologia, RCO diz como a hermenêutica vai resgatar a subjetividade para seu interior. Primeiro há a necessidade de superar a confusão que o cientismo faz entre verdade e certeza. É somente a segunda que o procedimento metodológico garante através da verificação de seus passos. A verdade não é monopólio do método. Em segundo lugar, é necessário, segundo RCO, de um momento nãometódico, chamado pela hermenêutica de compreensão, em oposição à explicação, o momento estritamente metodológico, para apreender o excedente de significação não apreensível pelo método. Não se trata de desfazer-se da explicação devido às possibilidades abertas pela compreensão, “mas saber o que pode estar em seu lugar quando – e somente quando – dele escaparem realidades tangíveis por qualquer outra realidade que não seja

metódica” (OLIVEIRA, 1995: 8). A subjetividade é resgatada e entendida como envolvendo o momento metódico, ou seja, o momento da explicação, já que o “precede, acompanha e fecha”, no sentido de que a própria escolha dos assuntos a serem pesquisados está inserida no domínio da subjetividade, bem como no sentido de ser a única maneira de se apreender os fenômenos não quantificáveis. RCO fala do resgate da subjetividade para a epistemologia, porém, em seu texto, não fica claro como ela atua na construção do conhecimento. E era justamente esta questão que me angustiava enquanto entrava naquela casa de shows onde passaria pelo meu “batismo antropológico”. Fui ao Congresso imbuído de alguns conceitos quanto à postura que deveria assumir no trabalho de campo, mas ficava em aberto ainda, e principalmente, como eu conseguiria, uma vez no campo, construir conhecimento sobre o papel do pregador na expansão do pentecostalismo. Pretendia entender a relação entre o pastor e os fiéis como sendo produtora de energia emocional e possuía algumas recomendações, advindas de minhas leituras, de como deveria me portar a fim de conquistar meu objetivo. Sabia, como diz Maria Laura Viveiros de Castro (2003), que era necessário “deixar-se levar”, o que significa um aparente abandono de si diante de uma determinada situação. Esperava que o “descentramento”, causado pelo choque entre minha cultura e a dos meus pesquisados, como diz José Guilherme Magnani (2009), iluminasse os elementos que eu buscava, fazendo com que, conforme disse Roy Wagner (2010), eu conseguisse efetuar a “invenção da cultura” pentecostal, tornando-me um intérprete dela, baseando-me, inevitavelmente, na minha própria cultura. Preencher os “resíduos” entre minha teoria e a teoria dos nativos, conforme disse Mariza Peirano, ou deixar-me “afetar”, como recomendou Favret-Saadra, também eram meus objetivos. Mas como exatamente faria isso na prática? Deixaria que “a presença continuada no campo e uma atitude de atenção viva” (MAGNANI, 2009) ou “uma mistura de empatia e humildade como forma de abordar a realidade” (CAVALCANTI, 2003) fizessem seu trabalho? Ficaria ali sentado no meio daquelas pessoas e esperaria passivamente ouvir os primeiros acordes do “anthropological blues” (DA MATTA, 1978)? É através das emoções, os agentes da subjetividade, que apreendemos, e ao mesmo tempo construímos, aquilo que o método não consegue dar conta. O papel das emoções na construção do conhecimento é detalhado por Alison M. Jaggar (1997), quando ela esclarece a relação entre a observação e as emoções. A observação constitui as emoções, na medida em que estas não são simples respostas instintivas a situações ou eventos, em vez disso, dependem essencialmente do modo como percebemos estas situações, através de nossos

valores, e de como aprendemos ou decidimos responder a elas. Da mesma forma que a observação constitui as emoções, estas constituem a observação, já que observar não é apenas inferir, mas é uma atividade de seleção e interpretação, e o que se seleciona e se interpreta é influenciado pelas atitudes emocionais. Em suma, “a experiência individual da emoção focaliza a atenção seletivamente direcionando, moldando e até definindo em parte nossas observações, exatamente como nossas observações direcionam, moldam e definem em parte nossas emoções” (JAGGAR, 1997: 167,168). Não haveria outra forma mais intensa das emoções entrarem em cena na construção do conhecimento do que na prática antropológica. Miriam Pilar Grossi (1992) chama de “mergulho na subjetividade” o contato com o outro, pois este suscita perguntas como “afinal, quem sou eu mesmo?”, “o que significa minha própria cultura?”. A subjetividade é entendida como constituidora do processo de conhecimento na medida em que conhecemos porque sentimos, assim como Loring Danforth, cita Grossi, só conheceu o significado da morte para um grupo de camponeses gregos a partir de seu próprio sentimento de perda, suscitado por uma canção em um velório (GROSSI, 1992). Esta autora, citando diretamente Danforth, permite entendermos o que se sucedeu: “... quando começaram a cantar um lamento sobre a separação violenta de dois irmãos pensei em meu próprio irmão e chorei. A distância entre eu mesmo e o outro tinha se tornado realmente pequena” (GROSSI, 1992: 13,14). Diante daquela multidão entoando um canto que eu conhecera ainda na minha adolescência, comecei a me lembrar do quanto fiz amigos naquela época. De como amizades profundas, verdadeiras e duradouras foram construídas no tempo, 11 anos, que passei entre uma igreja e outra. Comparei imediatamente a situação com a que vivenciava na atualidade: o número que considerava reduzido de amizades (verdadeiras) num ambiente que remete diretamente à competição. Fiz, sim, amigos na faculdade, havia, também, competição naquela outra realidade, mas o sentimento balizador daquela sociabilidade, o que eu via acontecer novamente diante dos meus olhos, era a solidariedade mútua. Percebi que a energia emocional está muito mais na congregação do que no pastor5. Este serve, como diria Durkheim (2008), 5

A construção coletiva do carisma do líder pentecostal e o papel primordial do fiel nesta construção foi tema base de nossas reuniões no âmbito do projeto “Textualidade e Oralidade da Bíblia”, coordenado pela Prof(a). Roberta Campos e financiado pelo CNPq. A continuidade deste trabalho de campo nas Assembléias de Deus Vitória em Cristo no Recife, bem como minha permanência no referido projeto, rendeu como fruto meu Trabalho de Conclusão de Curso “Da cultura pentecostal ao líder carismático: Os crentes da assembléia de Deus e a performance do pastor Silas Malafaia” onde este tema foi trabalhado em detalhes.

de símbolo desta energia, fazendo o trabalho de gatilho emocional, utilizando-se, consciente ou inconscientemente, de termos e dramas na sua mensagem performada que identifiquei como “marcadores da efervescência”. A música suscitou as lembranças de Danforth e as minhas. Porque sentimos, conhecemos. Minha subjetividade, constituída na lembrança de minhas amizades, apreendeu, compreendeu, a subjetividade daquele grupo que se abraçava e entoava um lindo cântico e passei a “ver” a energia emocional “reaching me out” (me alcançando), como diria Simon Coleman (2009), se lesse o trecho do meu diário de campo que se refere justamente a este momento: “As pessoas todas juntas, cantando e batendo palmas. Não há como não se arrepiar no meio desta multidão”. A distância entre eu mesmo e o outro tinha se tornado realmente pequena.

Considerações Finais As subjetividades são os motores de nossa prática cotidiana, conforme nos diz Sherry Ortner (2007). Para compreendê-las, num outro grupo, é preciso um “mergulho na subjetividade”, como diria Grossi (1997). A prática etnográfica, após esta experiência, deixou de ser, para mim, simplesmente anotar, gravar e observar. A subjetividade deve ser entendida, nos dizeres de Da Matta(1978) , como um “dado sistemático da situação”, e como nos diz, mais uma vez, Miriam Pillar Grossi (1997), “constituidora do processo de conhecimento”. Subjetividade só se lê, já que a cultura é um texto, com as lentes de nossas subjetividades, os motores da ação social, nossa e de nossos “outros”, e os vetores da construção epistemológica. São nossas subjetividades protagonistas, também, no processo de estranhamento, crucial para o conhecimento antropológico. Se familiarizar o exótico faz parte de uma tarefa racional e cognitiva, a viagem contrária é subjetiva, emocional, afetiva e provoca um encontro com a alteridade, seja ela sociológica ou construída simbolicamente, além de um encontro com nós mesmos. Se Heráclito diz que não se pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois nem o rio, nem nós seremos os mesmos, participar deste rito de passagem que é a etnografia é “estranhar” cada vez mais a si próprio, tornar-se um degredado, já que, sendo uma ponte entre duas culturas, se é sempre ponte, transição, sem pertencimento completo. Há uma enorme diferença entre os ensinamentos obtidos nas leituras e o momento onde se ouvem os acordes do anthropological blues. Como provar deste momento? Imaginese, você, leitor, numa casa de shows “deserta”... Referências Bibliográficas

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